UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM LINGUÍSTICA
A RELEITURA DA FOTO DE NICK UT (GUERRA DO VIETNÃ) E A RELAÇÃO DIALÓGICA IMBRICADA
CAMILA LOPES PEREIRA
Orientadora: Profa. Dra. Sonia Sueli Berti Santos Dissertação apresentada ao Mestrado em Linguística, da Universidade Cruzeiro do Sul, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Linguística.
SÃO PAULO 2014
AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL DA
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
P49r
Pereira, Camila Lopes. A releitura da foto de Nick Ut (guerra do Vietnã) e a relação
dialógica imbricada / Camila Lopes Pereira. -- São Paulo; SP: [s.n], 2014.
98 p. : il. ; 30 cm. Orientadora: Sonia Sueli Berti Santos. Dissertação (mestrado) - Programa de Pós-Graduação em
Linguística, Universidade Cruzeiro do Sul. 1. Análise do discurso 2. Guerra do Vietnã 3. Relações
dialógicas 4. Esfera jornalística. I. Santos, Sonia Sueli Berti. II. Universidade Cruzeiro do Sul. Programa de Pós-Graduação em Linguística. III. Título.
CDU: 81’42(043.3)
UNIVERSIDADE CRUZEIRO DO SUL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
A releitura da foto de Nick Ut (guerra do Vietnã) e a relação dialógica imbricada
Camila Lopes Pereira
Dissertação de mestrado defendida e aprovada pela Banca Examinadora em 14/09/2014.
BANCA EXAMINADORA: Profa. Dra. Sonia Sueli Berti Santos Universidade Cruzeiro do SUL Presidente Profa. Dra. Ana Elvira Luciano Gebara Universidade Cruzeiro do SUL Prof. Dr. Fábio Cardoso dos Santos Centro Universitário Metropolitano de São Paulo
Dedico esta pesquisa à minha família, em especial meu pai, Mauro
Pereira, minha irmã, Bruna Lopes Pereira, e meus avós. Sem os quais eu não teria
condições de caminhar, pois me prestam a alegria de suas presenças, a inteligência
de suas palavras e o amor incondicional. Amo vocês!
In memoriam de minha mãe, Cleide Aparecida Lopes Pereira, que,
mesmo ausente, sempre está presente na minha vida, por tudo que me ensinou, por
ter sido o meu exemplo de profissional e leitora, além do meu porto seguro.
AGRADECIMENTOS
Apresento esta dissertação de mestrado agradecendo a todos os que fizeram parte da minha vida acadêmica.
Aos professores do grupo de mestrado, que conseguiram unir inteligência e simpatia em todas as aulas.
À professora e orientadora, Dra. Sonia Sueli Berti Santos, que, sempre, com carinho, orientou-me, dando aulas inesquecíveis em breves encontros de orientação, as quais serão lembradas por toda minha vida.
Aos membros da Universidade Cruzeiro do Sul – Unicsul.
PEREIRA, Camila Lopes. A releitura da foto de Nick Ut (guerra do Vietnã) e a relação dialógica imbricada. 2014. 98 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)– Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2014.
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo fazer uma releitura dos discursos verbo
visuais de gêneros jornalísticos sobre a guerra do Vietnã, em especial sobre a foto
da garota Kim Phúc, tirada pelo fotógrafo e jornalista Nick Ut em 1972. Esta
pesquisa elegeu como corpus de análise duas notícias, uma da Folha de São Paulo
e outra do Estado de São Paulo, publicadas em 1972, e uma entrevista, publicada
no site da revista Veja, em 2012, ambas abordam a guerra do Vietnã e a foto
histórica tirada por Nick Ut. O método de análise baseia-se na visão dialógica do
discurso, de linha bakhtiniana, aos trabalhos sobre o discurso da informação, de
Patrick Charaudeau, e aos estudos sobre fotografia, de Susan Sontag. Um
levantamento do contexto histórico sobre a guerra do Vietnã também faz parte da
pesquisa, o qual dialoga com as notícias e contribui para a releitura. Com base na
contextualização histórica e no aporte teórico, analisando os enunciados, busca-se
como os jornalistas apresentam seu juízo de valor. A releitura, inicialmente, a partir
dos trabalhos de Charaudeau e dos trabalhos de Sontag, leva em conta as
características da esfera de circulação - jornalística – e os aspectos genéricos das
notícias, da entrevista e da fotografia, os quais compõem o corpus. Posteriormente,
procura-se, na releitura, com aporte em Bakhtin e o Círculo, analisar conceitos como
tom valorativo, alteridade, estilo, atitude responsiva, unidades discursivas, conceito
de cronotopia e exotopia, a fim de alcançar uma amplitude interpretativa, a qual
possa dar conta da construção evenemencial explorada pela mídia. Ressaltando a
influência que a mídia exerce na vida contemporânea, ao analisar o simbólico,
construído pelos textos jornalísticos do acontecimento em questão e seus reflexos
sociais, a pesquisa busca contribuir para a prática de leitura crítica.
Palavras-chave: Análise dialógica do discurso, Esfera jornalística, Guerra do Vietnã.
PEREIRA, Camila Lopes. Taken by Nick Ut, historical photo (Vietnam war) briefing on a dialogue of the speech. 2014. 98 f. Dissertação (Mestrado em Linguística)–Universidade Cruzeiro do Sul, São Paulo, 2014.
ABSTRACT
The present dissertation aims at making a rereading in verbo-visual discourses of
journalistic genres about the Vietnam war, particularly about Kim Phúc’s photo, which
was taken by the photographer and journalist Nick Ut in 1972. This research has
elected as analysis corpus two news, one published in Folha de São Paulo, and the
other one in Estado de São Paulo, they were published in 1972, and an interview,
published in Veja magazine website, in 2012, both ones approach Vietnam War and
the historical photo taken by Nick Ut. The analysis method is based on dialogical
visionof discourse, of bakhtinian line of research, on studies of information discourse
of Patrick Charaudeau, and on photography studies, of Susan Sontag. An historical
context research about the Vietnam War constitutes the work, which one dialogues
with the news and contributes to the rereading. Based on historical context and on
theoretical contribution, analyzing the enunciations, it quests how the journalists
show their judgment. The rereading, initially, from Charaudeau and Sontag studies,
analyses the public sphere features – journalistic one – and the genres aspects of
the news, interview and photography, which ones compose the corpus. After that, the
rereading Intends to, based on Bakhtin and his Circle, analyze concepts as
evaluative tone, otherness, style, responsive attitude, discourse units, chronotopy
and exotopy concepts, to guide the corpus rereading, to achieve a wide interpretation
which one may contemplate the evenemencial creation exploited by the media.
Considering the influence that the media has on the contemporary life, analyzing the
symbolic, constituted by the journalistic texts about the studied fact and his social
reflexes, intends to add to a practice of critical reading.
Keywords: Dialogic analysis of discourse, Journalistic sphere, Vietnam War.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 09
1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA ....................................................... 13
1.1 O Vietnã: um breve olhar ....................................................................... 13
1.1.1 Relações entre nações e a Guerra da Indochina ................................. 15
1.1.2 A Guerra Do Vietnã ................................................................................. 19
1.2 O Brasil contemporâneo à guerra do Vietnã ........................................ 23
2 EMBASAMENTO TEÓRICO .................................................................... 27
2.1 A relação entre o autor e a personagem .............................................. 27
2.1.1 O excedente da visão estética: posição exotópica ............................. 30
2.1.2 Cronotopo: a questão do homem no tempo e no espaço .................. 35
2.1.3 O embate de consciências na leitura, e não uma leitura apenas empática .................................................................................................. 41
2.1.4 A obra enquanto contexto axiológico .................................................. 46
2.2 Gêneros do discurso .............................................................................. 49
2.2.1 Conceituação bakhtiniana sobre os gêneros do discurso ................. 50
2.2.1.2 Considerações sobre os gêneros midiáticos ...................................... 54
2.2.1.2.1 Entrevista ................................................................................................ 57
2.2.1.3 Considerações sobre o gênero fotografia ........................................... 59
3 ANÁLISE DO CORPUS NUMA PERSPECTIVA BAKHTINIANA DA
ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO .................................................. 66
3.1 Apresentação do Corpus ....................................................................... 66
3.1.1 Notícia 1 - O Estado de São Paulo ........................................................ 67
3.1.2 Notícia 2 - Folha de São Paulo .............................................................. 69
3.1.3 Entrevista - Veja ...................................................................................... 72
3.2 A releitura da foto de Nick Ut (guerra do Vietnã) e a relação dialógica imbricada ................................................................................................ 78
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 94
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 97
9
INTRODUÇÃO
As mídias, de acordo com Charaudeau (2010), exercem grande influência na
construção do simbólico a partir dos relatos de acontecimentos considerados de
interesse social na sociedade em que vivemos. Atualmente, a informação é
valorizada por meio de gêneros jornalísticos verbo-visuais, as pessoas entram em
contato com diversos discursos, dos quais são autores-contempladores, ou seja,
coautores, na medida em que, junto com o autor (jornalista), dão acabamento ao
discurso, a partir de suas posições no mundo e da posição que o autor traz do
mundo.
Partindo da pesquisa de análise dialógica do discurso, de linha bakhtiniana, e
dos trabalhos sobre o discurso da informação, de Patrick Charaudeau, também na
linha da análise do discurso, e de considerações de Susan Sontag, sobre a
fotografia, procuramos, no presente trabalho, analisar os discursos jornalísticos.
A partir das considerações sobre os gêneros do discurso, de Bakhtin (2010), a
análise discursiva, não se restringe apenas a análise do material, mas,
principalmente, da análise discursiva, de valores. De acordo com o autor, o
dialogismo trata da relação entre o eu e o outro, necessária na constituição do
enunciado, relação que pode ser entendida a partir de conceitos de cronotopo e
exotopia, além da concepção de enunciado, enquanto unidade discursiva. Essa
relação entre o eu e o outro pode ser observada na relação entre autor e
personagem na constituição de discursos, entendida não somente na obra de arte,
mas na constituição de todos os gêneros.
Sobre os gêneros do discurso, a teoria bakhtiniana estabelece que há
limitações, ou seja, levando em conta traços que são repetíveis, há as
características genéricas, porém há também características singulares, não
repetíveis, já que a construção do enunciado concreto reflete a individualidade do
falante. Sobre a individualidade do falante, a teoria ressalta as relações entre os
discursos que são trazidos para o enunciado, fazendo um recorte único da realidade,
no qual, a partir de uma leitura crítica, é possível perceber quais são as vozes que
permeiam os discursos de um determinado texto.
10
Assim, para analisar como os jornalistas fazem o juízo de valor, tom valorativo
deles, que ideologia há nas suas falas e como, a partir de uma contextualização
histórica, podemos traçar uma releitura das notícias, consideramos esses conceitos
bakhtinianos sobre o gênero, tais como o tom valorativo, alteridade, estilo, atitude
responsiva, unidades discursivas, e os conceitos, também dialógicos, de cronotopo e
exotopia para alcançar uma amplitude interpretativa a qual possa dar conta de trazer
para a pesquisa subsídios teóricos para analisar a construção evenemencial
explorada pela mídia.
Para a teoria bakhtiniana, o enunciado é uma unidade real da comunicação -
único, diferentemente das unidades da língua, representadas por sons, palavras e
orações, que são repetíveis. Assim, por ser uma unidade de comunicação, o
enunciado, para estar completo, permite a resposta do outro (leitor) e de outros
discursos – relação dialógica. Como todo enunciado é individual pode refletir a
individualidade do falante – o estilo: cada escolha do falante é um ato estilístico.
O conceito de exotopia, na visão bakhtiniana, leva em conta a alteridade: a
constituição de um pelo discurso de outro, ou seja, o olhar do artista. Já o de
cronotopo relaciona-se com as dimensões de espaço e tempo atrelados à
concepções humanas sobre tais dimensões em um determinado gênero analisado.
O conceito de exotopia é explicado da seguinte maneira:
A posição exotópica, equivalente a “estar num lugar fora”, é um “fora” relativo, uma posição de fronteira, posição móvel, que não transcende o mundo mas o vê de certa distância a fim de transfigurá-lo na construção arquitetônica da obra, estética ou não. [...]
A posição exotópica é a posição a partir da qual é possível o trabalho estético, a ação de construir o objeto estético (...) (SOBRAL, 2012, p.109).
É do seu lugar único, a partir do excedente de sua visão, que o jornalista,
enquanto autor-criador, e o fotógrafo, também nessa posição, relacionam-se com as
dimensões de espaço e tempo, atreladas a concepções humanas sobre tais
dimensões em um determinado gênero analisado para construir seus discursos.
Todorov compreende o cronotopo de maneira bastante ampla:
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(...) a noção de cronotopo não é utilizada por Bakhtin de maneira restritiva, e não relaciona simplesmente à organização do tempo e do espaço, mas também à organização do mundo (que pode legitimamente se chamar “cronotopo” na medida em que o tempo e o espaço são as categorias fundamentais de todo universo imaginável). (TODOROV, 1981, p.129)
Holquist enfatiza que “os cronotopos são muito sensíveis à mudança histórica:
diferentes sociedades e períodos resultam em diferentes cronotopos tanto dentro
quanto fora dos textos literários” (HOLQUIST, 2002, p.112).
Dessa forma, o cronotopo, como todos os conceitos desenvolvidos por
Bakhtin, integra-se de maneira orgânica ao mundo construído por meio das relações
sociais mediadas pela linguagem verbal e, portanto, pelos discursos que, por sua
vez, contêm os embates que se travam a partir dos reflexos e refrações do signo
linguístico.
Levando em conta a esfera de circulação do corpus: jornalística, uma teoria
sobre o discurso midiático fez-se também necessária para a fundamentação teórica
do trabalho. Assim, a partir do trabalho de Patrick Charaudeau sobre o discurso da
informação, dispomos de conceitos que abrangem tal esfera de circulação,
procurando entender o texto jornalístico como processo evenemencial construído
pela instância midiática, carregado de uma visão social do mundo.
Sobre os gêneros midiáticos, Charaudeau (2010) postula que como instâncias
financeiras precisam atingir o maior número de pessoas, ressaltando a
heterogeneidade do público-alvo, como instâncias cidadãs objetivam denunciar,
dentre outras coisas, acontecimentos que fogem da normalidade e ganham status
de notícia de acordo com o interesse público. Ao considerar-lhe um público plural, a
notícia pode gerar respostas (leituras) diversificadas.
Sobre o gênero fotografia, Sontag (2004) ressalta que são caracterizados pela
falsa ilusão de trazerem um retrato fiel da realidade. Sendo necessário, para o leitor
crítico considerar que é a visão do fotógrafo, sua posição no mundo, que escolhe o
que será fotografado e eternizado pela fotografia. Ainda, a autora ressalta que as
fotos podem reforçar posições ideológicas, mas não podem criá-las, já que nelas
prevalece a ética sobre a estética, ou seja, com o passar do tempo, são tidas mais
como objetos do belo do que por sua postura axiológica.
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Tendo feito um panorama geral do embasamento teórico de nosso trabalho,
postulamos que nosso corpus de análise é composto por duas notícias sobre a
guerra do Vietnã, publicadas no ano de 1972, nos jornais Folha de São Paulo e O
Estado de São Paulo. Ambos os jornais trazem a foto, que ficou conhecida
mundialmente, de crianças vietnamitas correndo após terem sido atingidas por
bombas, dentre essas crianças, Kim Phúc sobreviveu e pode contar sua história
para o mundo. Além desses textos, trouxemos, para o nosso corpus, uma entrevista
da revista Veja, de 2012, com a vítima de guerra Kim Phúc, frisamos que a
entrevista, além da foto histórica, na qual a vítima era criança, traz uma foto da
mesma na fase adulta.
Para fazer a análise, buscamos também aporte no contexto histórico da
guerra do Vietnã, já que, para a teoria bakhtiniana, a posição valorativa dos autores
está ligada com o contexto social e histórico no qual estão inseridos e estabelecem
relações. Assim, buscamos os discursos que são evocados pelas notícias e pela
entrevista juntamente com a foto histórica sobre a Guerra do Vietnã de acordo com o
recorte da realidade feito pelos jornalistas na construção das notícias e da
reportagem. A partir da materialidade linguística e visual (foto), podemos perceber
tais discursos, considerando nossa posição na releitura desses discursos.
O primeiro capítulo, intitulado “Contextualização Histórica”, é um meio
norteador pelo qual buscamos construir nosso conhecimento prévio sobre os fatos
históricos que ocasionaram a guerra do Vietnã, os interesses políticos e ideológicos.
No segundo capítulo, construímos um embasamento teórico, no qual a teoria
bakhtiniana tem grande peso, haja vista nosso interesse em fazer uma análise
dialógica dos discursos jornalísticos. Assim, salientamos a relação entre autor e
personagem, gêneros do discurso, cronotopo e exotopia. Além de trazer as
considerações do autor sobre os gêneros do discurso, considerações de
Charaudeau sobre o discurso midiático e reflexões de Sontag sobre a fotografia.
No terceiro capítulo, apresentamos o corpus, fazemos as análises, buscando
aporte tanto no contexto histórico como no embasamento teórico, para entender as
relações discursivas presentes nos enunciados.
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1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
1.1 O Vietnã: um breve olhar
Procuramos traçar um olhar sobre o Vietnã, de maneira a enfatizar
características do país, como seus aspectos geográficos, culturais e econômicos
que foram afetados e afetaram os vários conflitos decorrentes de colonizações e
guerras no país.
De acordo com Olic (1988), o Vietnã está localizado na península da
Indochina, Sudeste Asiático, juntamente com os países Camboja e Laos.
Localização quase toda intertropical: clima quente e úmido com vegetação de
florestas densas e savanas, onde ocorrem intensas chuvas no verão e períodos de
muita seca no inverno. Tais características climáticas foram influentes para as
estratégias militares durante os conflitos bélicos.
Ainda segundo Olic (1988), os norte-americanos e os sul-vietnamitas sempre
procuraram isolar as planícies litorâneas e o delta de Mecong da ação dos
guerrilheiros vietcongues. Já que a ocupação demográfica era maior nos vales e
deltas e os planaltos interiores apresentavam um povoado bastante rarefeito, as
densas florestas serviram de refúgio a grupos guerrilheiros, o que desencadeou a
destruição de cerca de 40% das florestas durante a Guerra.
Não somente a situação demográfica foi atingida durante os conflitos bélicos,
segundo Russell (1967), a herança cultural vietnamita foi quase aniquilada por conta
das dominações coloniais. O autor ressalta que a cultura vietnamita é rica e antiga,
porém “foi o processo totalitário de colonização que destruiu a sociedade vietnamita
e estreitou os laços entre o povo e seu passado.” (RUSSELL, 1967, p.3).
Olic (1988) destaca que todo o sudeste asiático foi objeto de exploração
colonial a partir do século XIX, por conta de matéria-prima agrícola e mineral. A
Revolução Industrial fazia com que os países europeus precisassem cada vez mais
de matéria-prima, além da visada comercial em ampliar mercados e investimentos.
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A dominação colonial francesa, segundo Russell (1967), “romanizou” a língua
vietnamita para obter uma nova língua oficial, além de insistir no uso do francês
pelos vietnamitas mais intelectuais, diminuiu as instituições educativas e modificou
profundamente a economia: “Matérias-primas industriais, e não os produtos
agrícolas do consumo, eram os prêmios mais cobiçados” (RUSSELL, 1967, p.3). A
vida dos camponeses foi transformada por conta da nova relação com o trabalho,
forçando-os a vender suas terras.
Russell (1967) comenta como até mesmo a religião e a nobreza tradicional
foram dizimadas pelo domínio dos colonizadores:
A nobreza tradicional e os mandarins* perderam todo prestígio e respeito, ocupando os administradores franceses todos os postos de autoridade do país. Na atmosfera de suspeita e desconfiança que passou a predominar, o colonizador buscava signos de subserviência. O cristão convertido, que se dobrava conscientemente à autoridade da fé do homem branco, passou a ser menos temido e, por conseguinte, recompensado. (RUSSELL, 1967, p.4)
Mesmo com toda essa repressão, segundo Olic (1988), a população
vietnamita, assim como todo o povo da península da Indochina, sempre foi
resistente a invasores. Buscaram várias formas de libertarem-se da dependência
chinesa e das invasões francesas, japonesas e norte-americanas. Russell (1967)
destaca que o próprio conhecimento da língua francesa, ironicamente, auxiliou
vietnamitas intelectuais a entrar em contato com textos sobre o que acontecia no
mundo, como por exemplo, a vitória do Japão sobre a Rússia czarista em 1905 e a
Revolução Russa, acontecimentos que tiveram importância simbólica para muitos
intelectuais vietnamitas, o que reforçava a resistência.
Outro fato fez com que os vietnamitas tivessem contato com o mundo:
durante a Primeira Grande Guerra, muitos trabalhadores vietnamitas foram
importados para trabalhar na França. Segundo Russell (1967), foi no território
francês que eles tiveram contato com os ideais de liberdade, igualdade e
fraternidade da Revolução Francesa. Alguns nacionalistas vietnamitas, sem alcançar
êxito, aproveitaram a oportunidade para negociar a independência de seu país,
dentre eles, Ho Chi Minh1.
1 Ho Chi Minh – importante líder vietnamita, Ho Chi Minh conseguiu ser até presidente do país.
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Russell (1967) aponta que a colônia francesa reprimia fortemente as revoltas,
abrigando milhares de prisioneiros políticos, fazendo milhares de mortos. Tamanha
era a dificuldade para lutar contra a colônia, que muitos descontentes buscavam a
salvação espiritualmente, a religião modificou-se e espalhou-se pelo país, entre as
novas seitas, os que se destacaram mais foram os Hoa Hao e os Cao Dai, sendo os
segundos os mais inovadores, eram caracterizados por elementos do budismo, do
cristianismo e do hinduísmo, incluindo Vitor Hugo entre os santos. Até mesmo essas
novas seitas foram motivo de desconfiança e perseguição por parte dos franceses,
fazendo com que as comunidades religiosas sentissem necessidade de portar
armas.
Percebemos em nosso breve olhar como a situação colonizadora e os
consequentes conflitos abalaram profundamente tanto os aspectos geográficos
como culturais dos vietnamitas. Nas próximas subseções faremos apontamentos
mais específicos sobre a situação colonial e os conflitos bélicos.
1.1.1 Relações entre nações e a Guerra da Indochina
A guerra entre a França e o Vietnã ficou conhecida como Guerra da Indochina
e não aconteceu primordialmente por motivos colonialistas, a possível instauração
do socialismo no país não era bem vista pelo mundo capitalista. Estavam envolvidos
na exploração do Vietnã, principalmente, a França, o Japão e os Estados Unidos, e
as relações entre esses países influenciaram conflitos.
A conquista colonial francesa começou desde o século XIX, segundo Russell
(1967), o Vietnã era usado como rota até a China pelos franceses, pouco a pouco foi
sendo invadido pela França, até que por volta de 1840 já era sua colônia.
Ainda segundo Russell (1967), desde a segunda década do século XX,
enquanto o Vietnã ainda era colônia francesa, os Estados Unidos emergiam como
potência mundial e estavam interessados na exploração do Oriente. Em
contrapartida, o Japão ocupava regiões da Ásia, porém não eram vistos como um
“concorrente” pelos Estados Unidos, já que os investimentos americanos na Ásia
estavam ligados ao Japão.
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De acordo com Olic (1988), o Sudeste Asiático tinha sido partilhado entre os
Estados Unidos e as nações europeias. Os Estados Unidos haviam ficado com as
Filipinas e a França com toda a península da Indochina (território que inclui o
Vietnã).
Segundo Russell (1967), os Estados Unidos tinham interesses capitalistas
que eram barrados por conta do difícil acesso a algumas regiões que eram colônias
de outros países. De acordo com seus interesses, buscavam nutrir um espírito
anticolonialista, de luta pelo “mundo livre”, sempre fortalecendo laços com dirigentes
locais das colônias que lutavam pela independência. Dessa maneira, as colônias
poderiam alcançar uma independência nominal e de “portas abertas” para relações
com os Estados Unidos. Porém esse espírito não era viável para o Vietnã, por ser
um território praticamente sem influência americana, no qual, o governo francês não
havia se preocupado com a formação de dirigentes locais.
Russell (1967) aponta que os desentendimentos entre Japão e Estados
Unidos começaram durante a Segunda Guerra Mundial, já que a ocupação japonesa
pela Ásia estava crescendo: o Japão ocupou a Indochina. Na ocupação do Vietnã, o
Japão não se preocupou em mudar as estruturas sociais, mantendo o aparelho
colonial francês.
Russell (1967) aponta que os franceses passaram a colaborar com os
japoneses – colaboração cheia de desconfianças mútuas entre os dois – o que
favoreceu a criação de um movimento de resistência vietnamita.
De acordo com Olic (1988), a partir dos movimentos de resistência surgiram
as seguintes organizações: Partido Nacionalista e Partido Comunista, influenciados
pela China. O Partido Comunista ganhou mais força a partir da ocupação do Vietnã
pelos japoneses (1940). Além desses dois partidos, em 1941, formou-se a Liga
Revolucionária para a Independência do Vietnã, a qual ficou conhecida como
Movimento Vietminh2 e tinha dominância de elementos comunistas. Durante quatro
anos, a Liga ficou lutando contra a ocupação japonesa e mantinha a maior parte das
áreas do norte do país dominadas com domínio restrito no sul.
2 Dentro do contexto histórico, passamos a denominar “vietminh” os guerrilheiros envolvidos com o partido Vietmih
17
De acordo com Russell:
os Estados Unidos e aliados aceitaram o apoio do Viet Minh e enviaram pelo ar algum suprimento para as guerrilhas. A liderança comunista do Viet Minh não era, em absoluto, segredo. À medida que a guerra se aproximava do fim, os Estados Unidos defrontavam-se com o problema de como “estabilizar” melhor o Vietnã e como torná-lo mais acessível aos “interesses americanos”. (RUSSELL, 1967, p.10)
Olic (1988) destaca que ao final da Segunda Guerra Mundial, o Japão,
derrotado, teve de desocupar a região, o que deixou um “vazio político”.
Aproveitando-se da situação política,em 2 de setembro de 1945, Ho Chi Minh
declarou a independência do Vietnã; e em 1946, o governo de Ho Chi Minh foi
legalmente eleito.
Olic (1988) mostra-nos que a tão almejada independência não foi totalmente
conquistada, já que rapidamente os franceses restabeleceram seu domínio sobre o
Sul, onde a influência sociocultural do colonialismo tinha sido mais forte. No entanto,
o Norte era administrado pelos vietminhs, os quais procuravam a conservação dos
costumes e até mesmo reformas agrárias, ganhando apoio popular. O domínio da
França não seria em hipótese alguma aceito pelos vietminhs, e como a França não
concordava em desocupar o país, propondo apenas uma independência limitada,
em 1946 iniciou a guerra entre França, apoiada pelos Estados Unidos, e Vietnã.
Russell (1967) explica-nos que os Estados Unidos estavam apoiando a
França por uma questão anticomunista e contrária à colonização:
Os Estados Unidos deixaram bem claro à França que a ajuda americana cessaria se a guerra demonstrasse abertamente que era uma conquista colonialista. Em vez disso, argumentavam os americanos, ela deve ter a aparência de uma cruzada anticomunista, de uma guerra contra subversivos, bandidos, rebeldes, de uma guerra destinada a deter os propósitos agressivos do “imperialismo soviético”. No lado positivo, a guerra deveria ser a luta de uma força nacionalista “mais genuína” no Vietnã, generosamente auxiliada pela França e pelos aliados do Mundo Livre – e não por um poder colonial. (RUSSELL, 1967, p.16)
Como já vimos anteriormente, o governo francês não tinha se preocupado em
criar laços com nacionalistas do Vietnã, assim, para defender o “mundo livre” e lutar
contra o governo dos vietminhs, a França precisava de um aliado vietnamita. Russell
(1967) aponta que, foram os americanos, os responsáveis por essa tarefa, assim,
após muitas buscas, encontraram um ex-conselheiro político de Ho Chi Minh, o Sr.
Bao Dai, e o convenceram a voltar para política. Então, a partir de 1949, a guerra
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colonialista foi transformada em uma guerra pela defesa do “mundo livre”, com o
propósito de colocar Bao Dai no governo do Vietnã. Explanados tais detalhes
políticos, cabe-nos entender o desenvolvimento dos conflitos armados.
Olic (1988) narra que, no início do conflito, em 1946, os franceses tiveram
vantagem sobre os vietminhs, já que tinham superioridade em armamentos,
ocuparam as áreas mais povoadas do país. Assim os vietminhs foram forçados a
ficar em áreas de difícil acesso, e esperavam auxílio e material dos comunistas
chineses. De 1948 a 1953, os conflitos desenrolaram-se praticamente no Norte do
Vietnã, os franceses tinham vantagem quando atacavam em regiões próximas ao
delta do rio Vermelho, porém quando os franceses saiam das áreas guarnecidas,
eram os vietminhs que tinham êxito nas batalhas, por conta de seus conhecimentos
geográficos.
De acordo com Olic (1988), em 1953, o governo francês decidiu tomar
medidas mais potentes para combater os vietminhs, principalmente por causa da
repercussão negativa que a guerra gerava junto ao povo francês. Planejaram então
a Operação Castor, que previa ocupar a aldeia Dien Bien Phu, a qual era controlada
pelos vietminhs e ficava próxima a Laos, país onde o governo francês acreditava
haver base do inimigo. Além disso, nessa região havia um campo de aviação, o que
facilitaria o trabalho dos soldados, que se baseava no uso de aviões para
locomoverem-se e transportarem mantimentos e material bélico.
Olic (1988) destaca que o plano tinha aparentemente tudo para dar certo, logo
no início os franceses ocuparam a região, porém se esqueceram de avaliar e prever
detalhes geográficos: a aldeia ficava em um vale cercado por colinas densamente
florestadas, envoltas constantemente por neblinas, além de estar na época das
chuvas de verão, o que dificultou o acesso aéreo. Não obstante, os vietminhs
haviam recebido auxílio de material bélico da China e, estrategicamente, tinham
desmontado e transportado canhões com bicicletas pelo meio de trilhas na mata
para as colinas ao redor da aldeia Dien Bien Phu. Em 1954, os franceses foram
surpreendidos pelo ataque da artilharia vietminh, que inutilizou o campo de aviação,
o que fez com que dentro de dois meses a guarnição francesa tivesse que se
render.
19
Olic (1988) observa que a vitória vietminh abalou o prestígio da França, nessa
época apoiada pelos Estados Unidos. Depois de passar por mesas de negociações
internacionais (em Genebra, na Suíça), o Vietnã foi dividido entre Sul e Norte, sendo
que o primeiro ficou sob orientação norte-americana ou capitalista e o segundo
chamado oficialmente de República Popular e Democrática do Vietnã do Norte.
De acordo com Olic (1988), a divisão do país não foi bem vista pelos líderes
do Norte, tão pouco por segmentos da sociedade do Sul, o mundo vivia a Guerra
Fria3 e logo começava a configurar-se novos conflitos no Vietnã.
1.1.2 A Guerra Do Vietnã
De acordo com Olic (1988), os acordos de Genebra (1954) previam a
realização de eleições no Vietnã e o não recebimento de armas, porém os Estados
Unidos e o Vietnã do Sul recusaram-se a assinar os acordos. No Vietnã do Sul, a
França colocou no poder o imperador Bao Dai e como seu primeiro ministro Ngo
Dinh Diem; tal governo foi bastante conturbado por corrupções e atritos com
minorias étnicas e religiosas, até que o ministro Ngo Dinh Diem assumiu o poder
após a derrubada de Bao Dai por golpe de estado, em 1955, e proclamou a
República, apoiado pelo governo dos Estados Unidos, que via no Sul deste país a
esperança do combate à expansão ao comunismo pela Ásia sul - oriental.
De acordo com Russell (1967), os agentes do Serviço de Inteligência da
América preocupavam-se com o governo de Bao Dai, decidindo-se em encontrar um
substituto com menos notoriedade para assumir o Vietnã, sendo que, após muitos
esforços, teriam encontrado Ngo Dinh Diem, em 1950, em Tóquio.
Olic (1988) ressalta ainda que o governo de Ngo Dinh Diem era muito
autoritário e, dentre outras medidas, começou a realizar uma contra-reforma onde
anteriormente os vietminhs haviam realizado uma reforma. O descontentamento
pelo seu governo corroborou para que, em 1960, se formasse a Frente de Liberação
Nacional (FLN), com um exército conhecido como Vietcong, o qual objetivava
derrubar o governo e unir o Sul ao Norte. 3Guerra Fria: De acordo com Szterling (1996), após a Segunda Guerra Mundial, em 1945, os EUA e a URSS continuaram
em confrontos voltados para política, economia e ideologia – oposição entre o mundo capitalista e o bloco comunista, além desses, houve alguns confrontos regionais, a guerra do Vietnã foi um deles.
20
Ainda de acordo com Olic (1988), John F. Kennedy foi eleito presidente dos
EUA em 1960, e declarou que enfrentaria qualquer obstáculo para garantir a
manutenção e o florescimento da liberdade. Em maio de 1961, o vice-presidente dos
EUA, Lyndon Johnson, visitou o Vietnã do Sul e afirmou que era preciso assumir
decisões para ajudar o país. Percebe-se então que as decisões norte-americanas
inclinavam-se para um combate no território vietnamita; assim, entre 1961 e 1968,
milhares de militares foram enviados ao Vietnã do Sul.
Olic (1988) também ressalta que os EUA procuraram influenciar o governo
Diem a fazer algumas reformas políticas, porém o mesmo foi derrubado por um
golpe militar em 1963, o que deteriorou ainda mais a situação política do país. O
Vietnã do Norte passava por um processo de implantação do socialismo com a
ajuda da URSS e da China desde 1960.
Olic (1988) observa que o Vietcong, instalado no Vietnã do Sul, passou a
receber ajuda do governo do Vietnã do Norte, e várias áreas sulistas passaram para
o controle dos guerrilheiros vietcongues. Assim, os EUA, agora governados pelo
presidente Lyndon Johnson, sob o pretexto de terem sido atacados pelo Vietnã do
Norte, receberam o aval do Congresso americano para iniciar os bombardeiros ao
Norte do país.
Ainda segundo Olic (1988), em 1965, cerca de 75% do território sul-vietnamita
estava em poder dos vietcongues, após os constantes bombardeios norte-
americanos, no ano seguinte, muitas áreas dominadas pelos vietcongues já haviam
sido tomadas, e outras estavam bastante abaladas economicamente.
Olic (1988) aponta que os norte-americanos, apesar das vantagens, tinham
várias dificuldades: a impopularidade do governo de Saigon; a incapacidade do
exército sul-vietnamita fazer frente à guerrilha vietcongue, que recebia armas e
mantimentos por meio de trilhas em regiões montanhosas e densamente
florestadas; o Vietcong que combatia o invasor norte-americano e por isso ganhava
grande simpatia junto à população; a opinião pública mundial e norte-americana
mostrava-se cada vez mais contrária à guerra.
21
Olic (1988) ressalta que, aproveitando-se da situação, o Vietnã do Norte
planejou uma ofensiva (conhecida como Ofensiva do Tet) contra o Sul e atacou
todas as cidades e centros administrativos, principalmente Saigon, durante os
feriados do primeiro dia do ano lunar vietnamita – o Tet, em 31 de janeiro de 1968.
Mesmo tendo fracassado militarmente, a ofensiva teve êxito psicológico, pois
desgastou profundamente a imagem do governo e das forças armadas norte-
americanas ante a sua sociedade.
De acordo com Olic (1988), a exibição dos conflitos por meio das mídias,
inclusiva pela TV, a solicitação de mais soldados para a guerra, a resistência
vietnamita, desgastaram a imagem dos EUA no plano diplomática internacional,
poucos ainda acreditavam na tese norte-americana de “defender o mundo livre”.
Assim, após a ofensiva do Tet, houve três consequências imediatas: a suspensão
dos bombardeios norte-americanos sobre o Vietnã do Norte; o início das
conversações de paz em Paris (maio de 1968); saída gradativa dos efetivos militares
norte-americanos (vietnamização do conflito).
De acordo com Olic (1988), em 1969, o presidente Richard Nixon assumiu o
governo dos EUA, dentre suas promessas de campanha, comprometia-se a trazer
os militares norte-americanos “para casa”, porém os combates continuaram, em
menor número e intensidade, enquanto os soldados iam sendo retirados aos
poucos, já que as negociações de paz em Paris não haviam sido concluídas, pois os
norte-americanos só sairiam do Vietnã se cessasse a ajuda dos norte-vietnamitas
aos vietcongues; e os norte-vietnamitas, por sua vez, queriam substituir o governo
do Sul por um governo no qual eles também estivessem incluídos.
Segundo Olic (1988), nesse período, os soldados norte-americanos
enfrentavam uma crise moral, almejavam voltar aos EUA, não se arriscavam mais,
havia conflitos com os oficiais, muitos, desmotivados pelas ideias negativas sobre a
guerra, usavam drogas.
Olic (1988) ressalta que visando desmantelar refúgios vietcongues no
Camboja e bloquear as trilhas Ho Chi Minh em Laos, os soldados do Sul, apoiados
pela aviação norte-americana, e a mando do Presidente Nixon, bombardearam
essas regiões em 1970.
22
As negociações, em Paris, continuavam infrutíferas, segundo Olic (1988), já
que os dois lados buscavam obter vantagens: os norte-vietnamitas almejavam a
saída norte-americana do país, os quais só sairiam em circunstâncias consideradas
“honrosas”. A campanha eleitoral de Nixon para reeleição em 1972 também era
afetada e afetava o desenvolvimento dos conflitos.
Olic (1988) destaca que, em 1972, nos feriados de Páscoa, o general Vo
Nguyen Giap planejou uma ofensiva sobre o Sul, nos dois primeiros meses foram
conquistadas amplas áreas, no entanto os aviões norte-americanos conseguiram
deter a invasão e reiniciaram os bombardeios sobre o Norte – essa ofensiva aérea
ficou conhecida como Operação Linebacker II. Foi a operação mais violenta, que
atingiu além de áreas militares, áreas rurais desmilitarizadas.
Segundo Olic (1988), em janeiro de 1973, o acordo de paz foi assinado em
Paris e no dia seguinte o presidente Nixon, já reeleito, anunciou à nação que os EUA
tinham conquistado uma “paz honrosa” no Vietnã. Segundo o governo norte-
americano, os norte-vietnamitas tinham assinado o acordo de paz por conta dos
bombardeios, porém esse acordo incluía a influência do Vietcong e do exército do
Norte no governo do Sul, juntamente com o governo de Saigon. Assim o Norte saiu
fortalecido e, provavelmente, o Sul não resistiria por muito mais tempo, mesmo com
auxílio norte-americano.
Olic (1988) destaca que mesmo após os acordos de paz e a eleição
democrática no Vietnã do Sul, durante o ano de 1973, os conflitos continuaram no
país. O exército sul-vietnamita, com ajuda norte-americana, conseguiu recuperar
parte de seu território que havia sido outrora tomado pelos vietcongues e norte-
vietnamitas. Entretanto uma série de acontecimentos desfavorecia o Sul, já que o
presidente Nixon sofria a hostilidade por parte do Congresso americano; havia um
grande reflexo negativo na economia devido ao aumento do petróleo; crescia a
corrupção nos quadros do governo; e a URSS ajudava os norte-vietnamitas.
Ainda segundo Olic (1988), em 1974, os norte-vietnamitas e o Vietcong
atacaram novamente o Sul, para testar uma possível represália norte-americana e a
capacidade de resposta do exército sul-vietnamita. Devido a fatos como renúncia do
presidente Nixon, o corte das verbas destinadas ao Vietnã do Sul e a
23
impopularidade da guerra junto à opinião pública, além da debilidade das forças
armadas sul-vietnamitas, não houve preocupação em relação à resposta dos EUA e
dos sul-vietnamitas.
De acordo com Olic (1988), os norte-vietnamitas e o Vietcong conseguiram
conquistar rapidamente o Sul, onde houve grande êxodo de civis sul-vietnamitas, e
posteriormente atacaram Saigon. Os EUA, sob o governo do presidente Gerald
Ford, anunciaram que não estavam mais envolvidos na guerra do Vietnã.
Olic (1988) ressalta que o desfecho da guerra foi transmitido pela mídia ao
mundo todo: nos últimos dias de abril de 1975, foram mostradas as cenas do
abandono de Saigon, tanto pelos norte-americanos como pelos sul-vietnamitas,
inclusive a embaixada norte-americana. Mais ou menos na mesma época,
guerrilheiros comunistas tomavam o poder no Camboja e no Laos.
Olic (1988) descreve que, em 1976, o Vietnã foi unificado sob o domínio
comunista, com capital em Hanói, e a antiga capital, Saigon, passou a ser chamada
de Ho Chi Minh, em homenagem ao fundador do Partido Comunista do Vietnã.
Olic (1988) aponta que, mesmo com o desfecho da Guerra, a Indochina
continuou em conflito, devido aos laços ideológicos com a URSS, o Vietnã tinha
conflitos fronteiriços com o Camboja, o qual tinha relações especiais com a China.
Em 1979, houve tensos conflitos entre a China e o Vietnã, refletindo em conturbadas
relações regionais.
Cabe-nos, no seguinte item, buscarmos a situação do cenário político e
histórico brasileiro contemporâneo à guerra do Vietnã, trazendo assim subsídios
dessa realidade para a compreensão do que foi publicado no Brasil sobre a mesma.
1.2 O Brasil contemporâneo à guerra do Vietnã
O fato do nosso corpus de análise ser constituído por notícias da mídia
brasileira sobre a guerra do Vietnã e a publicação da foto histórica de Kim Phúc, faz
com que nos preocupemos em trazer, para reforçar as análises, uma compreensão
do cenário político do Brasil, o qual se refletiu na visão da guerra pelos jornalistas.
24
De acordo com Szterling (1996), o fato de Cuba ter-se tornado socialista,
aliando-se à União Soviética e rompendo com os Estados Unidos, influenciou uma
onda de manifestações nacionalistas por toda América Latina, as quais lutavam por
melhores salários aos operários, reforma agrária aos camponeses, além de serem
contra a dominação do capital estrangeiro.
Ainda segundo a autora, já que tais reivindicações não eram condizentes com
os ideais capitalistas, começavam a configurar-se conflitos entre os que eram a favor
do comunismo e os contrários. O Brasil, em 1963, era governado pelo presidente
João Goulart, o qual se mostrava mais inclinado a realizar reformas sociais, esse
fato, atrelado às manifestações populares, ameaçava os ideais capitalistas. Assim,
proprietários, empresários, políticos e militares começaram uma conspiração para
derrubar o governo, conspiração que contava com o apoio financeiro e diplomático
da embaixada dos Estados Unidos no Brasil.
Como aponta Arns (1985), os Estados Unidos financiaram organismos para
propagar ideais anticomunistas, dentre eles o Partido Social Democrático e a União
Democrática Nacional; além disso, a grande imprensa e a Igreja Católica também
apoiaram as propagandas contra o governo de Goulart. Assim, boa parte da
população, principalmente a classe média e setores importantes dos trabalhadores
rurais e urbanos estavam contra o governo, consequentemente, havia uma
preparação do país para que o possível golpe de Estado fosse aceito por grande
parte da população.
Szterling (1996) narra que o golpe de Estado ocorreu em 1964, o que
ocasionou a substituição do presidente Goulart pelo general Humberto de Alencar
Castelo Branco, do alto comando do Exército. Começava, então, a ditadura militar
no Brasil.
Silva (1998) destaca que o golpe de Estado teria sido um contragolpe a um
possível golpe comunista:
Sob a ameaça de um golpe em potencial armara-se um contragolpe em que se reuniram as Forças Armadas, no combate ao comunismo e, principalmente, à quebra da disciplina militar: as correntes políticas em oposição a Jango Goulart e suas diretrizes; o empresariado e as classes conservadoras receosas que o processo de socialização acelerado levasse ao comunismo. (SILVA, 1998, p.29)
25
Ainda de acordo com Silva (1998), o governo de Castelo Branco encontrava-
se em posição delicada, sendo que ele era o primeiro presidente militar, de
assumida posição democrática, e as correntes militares não aceitavam plenamente a
democracia. Percebemos assim que esse período da história da política brasileira
não seria caracterizado por um governo democrático.
Szterling (1996) mostra-nos que o regime militar era opressor: muitas pessoas
foram presas, exiladas, políticos foram cassados, escolas e sindicatos começaram a
ser vigiados, os partidos políticos foram extintos. Medidas tomadas para que os
dirigentes militares e os empresários nacionais e estrangeiros tivessem mais
liberdade para recuperar a economia do país. Além disso, a mídia também sofreu a
opressão, sendo proibida de publicar notícias que afetassem a imagem do governo,
leis de censura foram criadas, sobre as quais a autora ressalta que:
A Lei de Imprensa de 1967 oficializou a censura a notícias, fotos e ilustrações de revistas e jornais consideradas ofensivas à imagem do regime militar.
Também os textos de teatro e literatura, as letras de canções e os roteiros de cinema e televisão foram alvo constante da tesoura dos censores. [...]
A falta de liberdade de expressão chegou ao máximo no governo Médici, entre 1969 e 1973. (SZTERLING, 1996, p.8)
Sobre a censura à imprensa, Arns (1985) completa que a Lei de Imprensa de
1967 restringia o direito de informar, de criticar e de discordar, uma das medidas da
censura foi a introdução de agentes especiais de censura na redação de importantes
jornais nacionais para examinar as matérias antes de serem publicadas. Por conta
da opressão, muitos jornalistas foram incriminados, acusados de criticar o Regime
Militar ou autoridades constituídas, incitando, assim, o ódio entre as classes e a
animosidade contra as Forças Armadas.
Percebemos que as notícias que foram publicadas, nesse período, deveriam
ser anticomunistas, haja vista a visão dos governos militares e sua eminente
influência nas publicações dos jornais nacionais, principalmente pela Lei de
Imprensa. Fato que leva-nos a considerar a divisão à qual estava submetido o
Vietnã: parte de influência comunista e parte de influência capitalista, e que os
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Estados Unidos, durante a guerra do Vietnã, defendiam o capitalismo. Além disso, o
apoio diplomático e financeiro dos Estados Unidos, prestado à conspiração militar,
mostra-nos a aproximação do governo brasileiro ao governo norte-americano, o que
pode ter influenciado às instâncias midiáticas, nesse momento histórico, censuradas.
Finalizamos a contextualização histórica e, no próximo capítulo, trouxemos o
embasamento teórico, ressaltando as teorias de análise dialógica da linguagem,
além das especificidades dos gêneros jornalísticos e da fotografia.
27
2 EMBASAMENTO TEÓRICO
2.1 A relação entre o autor e a personagem
De acordo com Bakhtin (2010), a relação entre autor e personagem é
dinâmica e viva, e deve ser compreendida de forma geral e individual:
o autor acentua cada particularidade da sua personagem, cada traço seu, cada acontecimento e cada ato de sua vida, os seus pensamentos e sentimentos, da mesma forma como na vida nós respondemos axiologicamente a cada manifestação daqueles que nos rodeiam; (BAKHTIN, 2010, p.3)
Bakhtin (2010) ressalta que, diferentemente da obra de arte, na vida
respondemos não ao todo da personalidade do homem, mas ao que nos interessa
na prática de um jeito ou de outro. O mesmo acontece na percepção de nossa
própria personalidade, a qual temos mais dificuldade de compreender em sua
totalidade.
Para entendermos essa analogia que Bakhtin faz da obra de arte com a vida,
recorremos a Faraco (2013), o qual explana que, o autor, para discutir o fazer
estético, trabalha com a tríade cognição-ética-estética, à qual estão ligados os três
grandes domínios da cultura humana: a ciência, a vida e a arte. O termo ética está
relacionado ao agir humano, e a cognição, ao saber científico. Faraco ressalta que a
grande preocupação de Bakhtin é: "determinar a especificidade do estético no
confronto com o ético e o cognitivo" (FARACO, 2013, p.99)
Assim, tratando-se de estética, Bakhtin (2010) conceitua que, na obra de arte,
o todo da personagem é relevante, pois caracteriza a obra abrindo espaço para
respostas, para avaliações ético-cognitivas, as quais lhe dão acabamento em um
todo concreto-conceitual singular e semântico, já que é a relação que determina o
objeto.
Bakhtin (2010) mostra-nos que o todo da personagem é construído pelo autor
de forma aleatória, não é de imediato que a personagem assume uma diretriz
axiológica, ela terá máscaras, trejeitos construídos pelo autor de acordo com sua
visão que encobrirão tal diretriz.
28
Sobre a confissão do autor sobre a obra já acabada, Bakhtin (2010)ressalta
que não há exposição do processo de criação, mas sim das impressões do autor em
face da personagem já criada do ponto de vista social, moral, etc.
Bakhtin (2010) explana que na visão tradicional da estética da criação verbal,
costuma-se classificar as personagens de maneira não fundamentada, assim
personagem e autor não são vistos como elementos do todo artístico da obra, mas
sim elementos da vida psicológica e social.
Bakhtin (2010), analisando outros trabalhos anteriores ao seu que, segundo
ele, relacionam fatos da vida da personagem com fatos da vida do autor, salienta:
“ignora-se o elemento essencial: a forma do tratamento do acontecimento, a forma
do seu vivenciamento na totalidade da vida e do mundo” (BAKHTIN, 2010, p.8).
Assim, para o autor, nessa visão procura-se relacionar a visão de mundo do autor na
personagem, puramente factual, sem princípios, chegando ao autor-pessoa e não ao
autor-criador, do qual é possível entender a estrutura criativa.
Para entender o autor-criador, de acordo com Faraco (2013), é necessário
compreender que para Bakhtin há distinção entre o autor-criador e o autor-pessoa,
sendo o primeiro constituinte da obra. Dessa maneira, explica a relação entre os
dois conceitos:
O autor-criador é, assim, uma posição refratada e refratante. Refratada porque se trata de uma posição axiológica conforme recortada pelo viés valorativo do autor-pessoa; e refratante porque é a partir dela que se recortam e se reordenam esteticamente os eventos da vida. (FARACO, 2013, p.108)
Assim, para Bakhtin (2010),o autor e a personagem são considerados
elementos correlativos do todo artístico da obra,e há relação de reciprocidade entre
os dois, pontos que serão aprofundados nas próximas subseções do presente
capítulo.
Bakhtin (2010) conceitua autor como agente da unidade ativa do todo
acabado – obra e personagem. A consciência criadora do autor abrange a
consciência e o mundo da personagem, o qual enxerga além do que as
personagens podem ver, ou seja, o todo da obra. O autor guia a personagem em
29
sua orientação ético-cognitiva de modo acabado pelo interesse artístico do mesmo,
o qual abarca e incorpora as características ético-cognitivas.
Bakhtin (2010) acrescenta que existe essencialmente uma distância no
espaço, no tempo, nos valores e nos sentidos entre o autor e a personagem.
Essa relação aqui formulada de modo até certo ponto genérico demais é de profunda vitalidade e dinamismo: conquista-se a posição de distância, e amiúde a luta não é de vida mas de morte, particularmente onde a personagem é autobiográfica, mas não só aí: às vezes é difícil até colocar-se fora do companheiro de acontecimento da vida e fora do inimigo; tanto estar situado dentro da personagem quanto axiologicamente ao lado dela e contra ela deforma a visão até com elementos palidamente complementares e concludentes; nesses casos, os valores da vida são superiores ao seu portador. O autor vivencia a vida da personagem em categorias axiológicas inteiramente diversas daquelas em que vivencia sua própria vida e a vida de outras pessoas - que com ele participam do acontecimento ético aberto e singular da existência, apreende-a em um contexto axiológico inteiramente distinto. (BAKHTIN, 2010, p. 13)
Bakhtin (2010) explana que, mesmo quando há relação direta do autor com a
personagem, ou seja, autobiográfica, é necessário que o autor torne-se outro em
relação a si mesmo, enxergue-se de acordo como os outros lhe enxergam. Na vida,
mesmo partindo do olhar do outro para chegarmos ao nosso, voltamos para a nossa
consciência que “nunca dirá a si mesma a palavra concludente” (BAKHTIN, 2010,
p.14). Já esteticamente, não deve ocorrer esse retorno a nós mesmos, o todo da
personagem deve ser concluído, “o estético deve proporcionar-lhe um fundo
transgrediente a si mesmo” (BAKHTIN, 2010, p.15).
Sobre o inacabamento do ser, conceito que é usado por Bakhtin em
comparação ao acabamento da personagem, é explicado pelo autor Adail Sobral
(2013), como vemos a seguir:
A concepção do homem como ser inacabado se acha inserida na própria concepção bakhtiniana do sujeito constituído pelo outro, e não dado de uma vez por todas, alguém que se “forma” num dado ambiente histórico social – e que tem raízes na concepção bakhtiniana do ato, intrinsecamente ligada ao dialogismo. (SOBRAL, 2013, p.171)
Assim, o inacabamento do ser na vida contrapõe-se a completude da
personagem na obra de arte, cabe ao autor-criador, a partir de seu lugar de
distância, concluir a personagem.
30
Para Bakhtin (2010), a partir do seu lugar de distância, o autor não pode
coincidir com a personagem, ou seja, para que haja o acontecimento estético,
pressupõem-se duas consciências que não coincidem, caso contrário, quando a
personagem e o autor concordam diante de um valor comum ou estão frente a frente
como inimigos, temos o acontecimento ético (panfleto, manifesto, etc.), quando não
há nenhum personagem temos um acontecimento cognitivo (artigo, conferência,
etc.); quando a outra consciência é a consciência de Deus, há um acontecimento
religioso.
Para entendermos o lugar de distância ocupado pelo autor, vamos, a seguir,
trazer o conceito de Bakhtin sobre exotopia, a partir das analogias com a ética (a
vida).
2.1.1 O excedente da visão estética: posição exotópica
O excedente da visão é constituinte da atividade estética. De seu lugar único,
o autor contempla e conclui a personagem. Para compreendermos esse conceito,
Bakhtin traz exemplos análogos à vida dos sujeitos, mostrando-nos como cada
sujeito ocupa um lugar único, do qual enxerga o outro e o interpreta.
Bakhtin (2010) exemplifica que, ao contemplar o outro, conseguimos enxergar
o que ele não pode ver, de acordo com a relação de reciprocidade entre nós, o que
é inacessível a ele, é acessível a nós. Esse excedente de nossa visão é
condicionado pelo nosso lugar no mundo, pois neste lugar todos os outros estão fora
de nós:
Essa distância concreta só de mim e de todos os outros indivíduos – sem exceção – para mim, e o excedente de minha visão por ele condicionada em relação a cada um deles (desse excedente é correlativa uma certacarência, porque o que vejo predominantemente no outro em mim mesmo só o outro vê, mas neste caso isso não nos importa, uma vez que na vida a inter-relação “eu-outro” não pode ser concretamente reversível para mim) são superados pelo conhecimento, que constrói um universo único e de significado geral, em todos os sentidos totalmente independente daquela posição única e concreta ocupada por esse ou aquele indivíduo; (BAKHTIN, 2010, p. 21-22)
Bakhtin (2010) ressalta que a percepção do mundo único do conhecimento e
a contemplação estética e o ato ético dependem da singularidade do lugar em que
ocupa o contemplador.Enxergar o que o outro não enxerga, ou seja, o excedente de
31
nossa visão, proporciona a completude do outro – o nosso ativismo, as diversas
ações nas mais diversas situações da vida: são ações-atos puramente éticos que
mudam acontecimentos da existência, porém, o que interessa para a estética da
criação verbal, são os atos de contemplação-ação, que não modificam o dado, mas
o unificam e ordenam, pois são puramente estéticos. A contemplação-ação
caracteriza-se pela ação de ver o mundo de dentro do outro, e depois voltar ao
nosso lugar para contemplá-lo e, a partir do excedente da visão, criar um ambiente
concludente para ele.
Para exemplificar a conceituação da contemplação-ação, Bakhtin (2010) cita
o fato de que, se levado em conta que haja diante de nós um indivíduo sofrendo,
excluídos os atos éticos - como ajuda, salvação, consolação - nos caberia, como
contempladores, colocarmo-nos no lugar do outro. Estando no lugar do outro, o qual
só consegue vivenciar parcialmente e na linguagem de suas auto-sensações
internas o sofrimento por qual passa, como contempladores, disporíamos de um
enfoque volitivo-emocional para enxergar a cena total, a expressividade, o ambiente
no qual passa o acontecido, etc. Quando temos a visão abrangente de um fato, e
voltamos ao nosso lugar, fora da pessoa que sofre, que poderia começar a atividade
estética: enformar e dar acabamento ao material da compenetração.
Sobral (2012) postula que, para a teoria bakhtiniana, a posição exotópica, é
“equivalente a “estar num lugar fora”, é um “fora” relativo, uma posição de fronteira,
posição móvel, que não transcende o mundo, mas o vê de uma certa distância a fim
de transfigurá-lo na construção arquitetônica da obra, estética ou não” (SOBRAL,
2012, p.109)
Ainda de acordo com Sobral (2012), ocupar uma posição exotópica é situar-
se em um lugar exterior. De acordo com Amorim (2012), o autor-criador coloca-se no
lugar da personagem, para tentar enxergar o que ela enxerga, depois volta para o
seu lugar, e, da sua posição única e singular e dos valores que ali afirma, de onde
apenas ele pode enxergar o que a personagem não pode enxergar, cria uma
imagem acabada da personagem, do herói. A criação de um herói singular pode
suscitar um sentido abstrato e universal.
32
É a partir da posição exotópica, então, que o autor-criador começa a criar a
imagem externa da personagem. Bakhtin (2010) mostra-nos como na vida, os
sujeitos relacionam-se com os outros sujeitos para terem uma imagem acabada de
si. De acordo com Sobral (2012), o dialogismo é um ponto central para entender o
conceito de sujeito para a teoria bakhtiniana, assim a constituição do sujeito está
fundada na sua relação com os outros, da mesma maneira que a produção de
enunciados/ discursos faz-se no diálogo com outros enunciados/ discursos.
Bakhtin (2010), para mostrar-nos como o dialogismo está presente na
constituição do sujeito na vida e na criação artística, parte da análise da imagem
externa, a qual abrange todos os elementos falantes e expressivos do corpo.
Segundo o autor, não conseguimos enxergar nossa imagem externa concretamente,
pois a vivenciamos de dentro, apenas sob a forma de extratos vindos de dentro que
nossa imagem externa chega ao campo dos sentimentos externos, é o nosso
pensamento que situa nosso corpo no mundo exterior, por isso não conseguimos
formar uma imagem adequada de nós mesmos, já que não é por meio da visão que
nos situamos no mundo.
Segundo Bakhtin (2010), o horizonte da nossa visão real é o mundo de nosso
sonho, do qual somos protagonistas e conhecemos muito mais os outros
personagens do que a nós mesmos, imaginamos apenas o resultado da impressão
da nossa imagem externa produzida sobre os outros.
Para Bakhtin (2010), de um ponto de vista plástico- pictural, tanto no mundo
do sonho como no mundo da percepção real, a personagem central é vivenciada de
dentro e as outras personagens são expressas externamente. Já no mundo da
criação artística “todas as personagens estão igualmente expressas em um plano
plástico-pictural de visão [...] Revestir de carne externa essa personagem central da
vida e do sonho centrado na vida é a primeira tarefa do artista.” (BAKHTIN, 2010,
p.27) A leitura de um romance sem a contemplação das características artísticas do
mesmo, possibilita ao leitor vivenciar a vida da personagem como se ele mesmo
fosse o herói dessa vida, nesse caso o sonho substitui a percepção artística.
Bakhtin (2010) analisa que a nossa imagem externa imaginada por nós
mesmos começa a definir-se pela nossa pessoa vivenciada por dentro; com algum
33
esforço para nos desligarmos de nossas auto-sensações, porém sentimos um
“vazio” ao construirmos essa imagem, pois não temos pra ela um enfoque volitivo-
emocional à altura do mundo exterior.
É preciso reconstruir radicalmente toda a arquitetônica do mundo do sonho, introduzindo-lhe um elemento absolutamente novo, para vivificar e incorporar minha imagem externa ao conjunto de concepções. Esse novo momento, que reconstrói a arquitetônica – a possibilidade de afirmação volitivo-emocional da minha imagem a partir do outro e para o outro; porque de dentro de mim mesmo existe apenas a minha auto-afirmação interna, que eu não posso projetar sobre minha expressividade externa separada da minha auto-sensação interna, porque ela se contrapõe a mim no vazio axiológico, na impossibilidade de afirmação. (BAKHTIN, 2010, p.28-29)
Bakhtin (2010) postula que o pensamento possibilita a abstração da
singularidade do nosso eu, já que o pensamento não se contrapõe às dificuldades
éticas e estéticas da auto-objetivação. Para a auto-objetivação é necessário
encontrar um ponto de apoio para nos vermos como outros de dentro de nós
mesmos. Ao contemplar nossa imagem externa pelo prisma da alma avaliadora do
outro possível, podemos ver a nossa máscara, após voltar para nós, devemos usar
para nós mesmos a avaliação do outro.
Bakhtin (2010) traz exemplos sobre a relação do eu consigo mesmo, tais
como a nossa contemplação no espelho, a qual é um caso específico da nossa
visão de nossa imagem externa, pois vemos apenas o nosso reflexo, e não a nós
mesmos em nossa imagem externa, já que estamos diante e não dentro do espelho.
De acordo com o autor:
De fato, nossa situação diante do espelho sempre é meio falsa: como não dispomos de um enfoque de nós mesmos de fora, também nesse caso nos compenetramos de um outro possível e indefinido, com cuja ajuda tentamos encontrar uma posição axiológica em relação a nós mesmos; também aqui tentamos vivificar e enformar a nós mesmos a partir do outro; daí a expressão original e antinatural de nosso rosto que vemos no espelho [e] que não temos na vida. (BAKHTIN, 2010, p.30)
A partir desse exemplo do espelho, o autor mostra-nos a relação dialógica
que criamos com nós mesmo, a partir de um outro presente na nossa consciência:
nossa visão de nossa imagem refletida no espelho não é imediatamente estética,
para contemplá-la criamos um outro, autor de nossa imagem externa, por isso frente
ao espelho somos influenciados pela nossa tendência volitivo-emocional e criamos
expressões desejáveis pelas mesmas.
34
Bakhtin (2010) analisa que à imagem externa estão ligados os elementos
contíguos como o andar, os modos, etc. nos momentos históricos da vida do
homem, o que só pode ser percebido de modo fragmentado pela nossa
autoconsciência, devido à ausência:
de um enfoque axiológico único da expressividade exterior do próprio homem, feito de dentro por ele; aqui nenhum espelho, fotografia ou observação especial de si mesmo podem ajudar; na melhor das hipóteses, obtém-se um produto esteticamente falso, criado de modo interesseiro da posição do outro possível, desprovido de autonomia. (BAKHTIN, 2010, p.33)
A partir dessas análises, Bakhtin (2010) mostra-nos como o homem,
esteticamente, necessita do outro: o único capaz de criar sua personalidade
externamente acabada, tanto na vida, como na criação estética, numa atividade
dialógica intensa.
Bakhtin (2010) traz o conceito de fronteira para que seja possível entender as
relações dialógicas na visão plástico-pictural do homem. De acordo com o autor, é
no vivenciamento das fronteiras externas que enxergamos o outro no mundo exterior
como um objeto visível e tátil, já nós mesmos, estamos na fronteira da nossa visão.
Observa que “minha auto-representação está construída e não corresponde a
nenhuma percepção real; o essencial no vivenciamento real de mim mesmo
permanece à margem da visão externa.” (BAKHTIN, 2010, p.35)
De acordo com Bakhtin (2010), do ponto de vista estético, ser o sujeito de
qualquer espécie de ativismo (visão, pensamento, etc.) é essencial, pois é de dentro
de nós que nos direcionamos para o mundo, para o objeto; assim o objeto se
contrapõe a nós - sujeitos, e quando queremos nos perceber, fazemos de nós
mesmos nosso objeto, mesmo nesse ato de auto-objetivação, há discrepância com
nós mesmos, já que não conseguiremos nos colocar por inteiro no objeto.
Ainda ressaltando as diferenças da nossa relação conosco e com o outro,
Bakhtin (2010) acrescenta que:
A linha como fronteira do corpo é axiologicamente adequada para definir e dar acabamento ao outro, e ademais no seu todo, em todos os seus momentos, e é totalmente inadequada para me definir e me concluir para mim mesmo, uma vez que eu me vivencio essencialmente, abrangendo-me além de quaisquer limites; minha autoconsciência destrói a capacidade de persuasão plástica da minha imagem. (BAKHTIN, 2010, p.37)
35
Bakhtin (2010) explana que não vivenciamos a nós mesmos como
plenamente conaturais com o mundo exterior, mas o outro sim, já que o vemos
como objeto; porém em nós há algo substancial que podemos contrapor ao mundo:
o nosso ativismo interior, nossa subjetividade. O autor acrescenta que, quando nos
relacionamos fisicamente com o outro, afirmamo-lo axiologicamente no seu
acabamento externo, como reações vitais artístico-simbólicas ao todo do homem.
Estudadas essas concepções que Bakhtin traz sobre a relação entre o eu e o
outro na constituição dos sujeitos no mundo e na arte, percebemos que um sujeito,
enquanto autor, ocupa uma posição de fora do acontecimento de outro sujeito,
enquanto personagem, sendo assim, é o autor, enquanto outro, o único capaz de
dar acabamento à imagem dessa personagem.
E a criação desse outro, dessa personagem, é perpassada pelo lugar único
que ocupa o ator, ou seja, é direcionada por sua posição axiológica. De acordo com
Amorim (2012), a personagem fica em uma espécie de moldura elaborada pelo
autor, a autora exemplifica o conceito de exotopia a partir do trabalho de um artista
pintando um quadro:
A criação estética expressa a diferença e a tensão entre dois olhares, entre dois pontos de vista. Se tomarmos o exemplo do retrato, em pintura, falaremos do olhar do retratado e do olhar do artista. O trabalho deste último consiste em dois movimentos. Primeiro, o de tentar captar o olhar do outro, de tentar entender o que o outro olha, como o outro vê. Segundo, de retornar ao seu lugar que é necessariamente exterior à vivência do retratado, para sintetizar ou totalizar o que vê, de acordo com seus valores, sua perspectiva, sua problemática. (AMORIM, 2012, p.96)
Além do conceito de exotopia, Bakhtin também nos traz o conceito de
cronotopo, no qual são consideradas as concepções de tempo e espaço para o todo
correlativo da obra, analisados com base no dialogismo, explorado no subitem
seguinte.
2.1.2 Cronotopo: a questão do homem no tempo e no espaço
O conceito de cronotopo é usado para designar o tempo e espaço, entendidos
como o lugar das transformações, incluindo-se a noção de homem, ou seja, as
posições axiológicas que perpassam essa noção, trazidas pela visão do autor social
e historicamente situado.
36
De acordo com Amorin (2012), para a teoria bakhtiniana, a visão de tempo é
abrangente, já que considera que não se olha para o passado como uma verdade
absoluta, já que esse pode ser ressignificado, de geração em geração “as
hierarquias e os poderes estabelecidos são contingente e serão transformados.
Esse tempo é maior do que todos porque é utópico da abertura de novas
possibilidades.” (AMORIM, 2012, p. 104) O espaço é o lugar indispensável para que
o tempo das mudanças se desenrole.
Fiorin (2008) também destaca essa ideia de que a relação entre tempo e
espaço varia e sua representação na vida das pessoas não é imutável, muito pelo
contrário, varia social e historicamente:
As pessoas organizam o universo de sua experiência imediata com imagens do mundo, criadas a partir das categorias de tempo e espaço, que são inseparáveis. Esses conceitos têm natureza histórica, pois diferentes povos têm formas distintas de conceber o tempo e o espaço. Para uns, por exemplo, o tempo era cíclico; para outros, o tempo era linear e irreversível. (FIORIN, 2008, p.133)
Assim, Fiorin (2008) mostra-nos como, para Bakhtin, o conceito de cronotopo
tem relação com essa variação que temos de conceber o tempo e o espaço
historicamente, relação que se reflete nos diversos gêneros que circulam na
sociedade, pois, a relação entre o mundo real e o mundo representado é mútua.
Amorim (2012) ressalta ainda que o conceito de cronotopo está ligado ao
lugar coletivo, no qual há várias histórias, enquadradas pelos gêneros e,no qual, o
sujeito é público e partilha o tempo coletivo de acordo com as esferas de atividade.
A própria visão de homem está relacionada ao cronotopo, quase constitui por tempo
e espaço, onde há movimento, transformação.
Em Estética da Criação Verbal, Bakhtin (2010) enfoca o todo da
personagem, usando dois conceitos, o de alma e o de espírito, dos quais faz
considerações sobre o tempo e o espaço.
Assim, postula que, a partir da posição de distanciamento do autor-criador, a
enformação da alma da personagem ocorre nas fronteiras da vida interior de fora.
Nossa posição é vivenciada de fora de nós mesmos no outro: existência axiológica
do outro, ou seja, o excedente de nossa visão dá acabamento ao outro, é do nosso
lugar único na existência que vivenciamos uma nova existência em um novo plano.
37
Ainda segundo o autor, na autoconsciência há fronteiras temporais que não
permitem que sejam vivenciados por nós mesmos o início e o fim de nossa
existência, assim a relação estabelecida com nossa vida e morte é diferente da
relação estabelecida com a vida e morte do outro. Temos medo de nossa morte de
uma maneira diferente de que temos medo da morte do outro, pois a morte do outro
denota para nós a ausência de um ser, já a nossa própria morte só pode ser
imaginada como a ausência que será sentida pelo outro.Não podemos concluir
esteticamente a nós mesmos, mas tão somente os outros.
O acabamento do outro por nós pode ser claramente percebido após a sua
morte, que nos deixa lembranças, a memória será liberta do futuro temporal, e
consolidará “seu acabamento numa imagem esteticamente significativa” (BAKHTIN,
2010, p. 98)
O acabamento artístico, segundo a teoria bakhtiniana, caracteriza-se pela
impossibilidade do porvir, pela determinidade axiológica, e esse fechamento do ser
só é possível quando está voltado para fora de si.
Sobre as diferenças entre as fronteiras temporais e espaciais na
autoconsciência e na consciência do outro, o autor considera que: “Como sujeito do
ato que pressupõe o tempo, estou fora do tempo. O outro sempre se contrapõe a
mim como objeto, sua imagem exterior está no espaço, sua vida interior, no tempo”
(BAKHTIN, 2010, p. 100)
Dessa maneira, o autor define o sujeito do ato – no autovivenciamento - como
espírito, e o vivenciamento do outro - como alma. Sendo impossível o primeiro ser
vivenciado por nós por completo, pois internamente somos indeterminados, a
determinação está na experiência da vivência do outro: o enredo de nossa vida é
construído pelo outro, somos heróis pela construção do outro: “Preciso me afastar
de mim para liberar o herói para o livre desenvolvimento do enredo no mundo”
(BAKHTIN, 2010, p. 102)
Outra questão, levantada pela teoria bakhtiniana, está relacionada com as
condiçõesdo ritmo temporal, buscando a análise das condições de elaboração
38
estética da determinidade interior, ou seja, como a vida interior ganha forma de
“alma”.
Para o autor, a determinidade do movimento interior é a priori difícil de ser
estabelecida, pois está voltada para um sentido e não para si mesma. A posição
axiológica do eu está voltada para o objeto estético, que deve ser ativo em relação
ao seu vivenciamento, assim o eu também precisa procurar posição fora de si
mesmo.
Para o vivenciamento interior tornar-se independente de nós mesmos,
precisamos nos colocar fora do âmbito da aspiração, mas esse afastamento não
pode ser fracionado, não nos basta o afastamento de apenas uma dada vivência,
como acontece no caso de uma vivência que já está no tempo passado, pois não é
só temporalmente que temos que nos afastar das vivências: “o vivencimento deve
afastar-se para o passado absoluto dos sentidos com todo o contexto semântico
com o qual estava inseparavelmente entrelaçado e no qual era assimilado.”
(BAKHTIN, 2010, p. 106). Se estamos no âmbito do nosso vivenciamento, não
conseguimos o seu fechamento pleno, não deixamos de entrelaçá-lo ao futuro, por
conta da nossa condição de viventes.
O ritmo, de acordo com o autor, está ligado ao futuro como categoria de
sentido e não temporal. Na nossa própria vida não é possível que o tempo seja
concluído, pois vivemos um “eterno” recomeço do tempo sem ter certeza do porvir,
podemos enxergar a queda, porém não podemos afirmar como será a ascensão
gradual. Apoiamo-nos no futuro, na incerteza do futuro de maneira constante em
nossas vidas, e é essa relação com o tempo que caracteriza a nossa
inconclusividade.
Bakhtin (2010) acrescenta que ocupamos um lugar único e singular no
acontecimento de nossas vidas e, do lugar onde estamos, criamos a alma do outro,
porém não podemos criar a nossa. Essa criação do outro é direcionada por nossa
posição axiológica, não é possível que seja abstrata, e não coincide com a posição
única e singular do outro: “Para mim, o outro coincide consigo mesmo; com essa
coincidência-integridade, que lhe dá acabamento positivo, e eu o enriqueço de fora e
39
ele se torna esteticamente significativo, se torna personagem.” (BAKHTIN, 2010,
p.118)
O todo da personagem, sua forma estética, para teoria bakhtiniana,
caracteriza-se pela espontaneidade e ingenuidade, por mais que seu interior seja
profundo (o que só é possível quando o autor ocupa posição firme fora dela, dando-
lhe acabamento com seu olhar único). É na memória que a personagem deve surgir,
ou seja, na antecipação de sua morte, já que a morte tem suma importância no
acabamento estético da pessoa.
Mostrando essa relação entre o eu e o outro, e suas relações com o tempo,
Bakhtin mostra-nos que o autor pode concluir, no tempo e no espaço, uma
personagem, a qual não pode concluir a si mesma, ou seja, o eu não pode concluir a
si mesmo, pois não consegue enxergar-se fora da esperança do porvir, do futuro. O
exemplo da morte exemplifica-nos como a memória é a motriz da criação estética,
assim, cabe ao autor, a partir de sua posição axiológica, trazer a visão do tempo e
do espaço para a enformação da personagem, ou seja, o cronotopo.
Criada essa personagem nas limitações de um tempo e um espaço
determinados, o eu deixa de ser espírito e torna-se alma: “É esse todo esteticamente
significativo da vida interior do homem, a sua alma. [...] A alma é uma dádiva do meu
espírito ao outro.” (BAKHTIN, 2010, p.120-121) Assim sendo, a alma está na
categoria do outro, e o seu mundo, é o mundo da arte, e a sua relação com o mundo
é semelhante à relação da imagem visual com o corpo, onde as fronteiras se
combinam.
O autor explica que a existência, a já-presença do ser, foge da esperança,
pois já é tudo, está fora do porvir. Encontra-se no presente e busca a coincidência
consigo mesma, com o sentido que busca enunciar, um sentido que depende do
outro. Vivemos no mundo do outro, a existência presente está no mundo do outro: “A
carne mortal do mundo só tem significação axiológica animada pela alma mortal do
outro;” (BAKHTIN, 2010, p.123)
Além dessas relações do eu e do outro para formar a presença do ser – da
personagem, o autor analisa também as ações do homem (atos externos) no mundo
40
espacial, ressaltando que as ações são vivenciadas na autoconsciência a partir de
fragmentos do externamente dado de nosso corpo, vivenciados de dentro:
O presente, o dado, o definido na imagem visual do objeto situado no raio da ação é separado e decomposto, durante a realização da ação, pela minha ação iminente, futura, ainda a ser realizada em relação a dado objeto: eu vejo o objeto da ótica do futuro vivenciamento interior, e essa é a ótica mais injusta para com o acabamento exterior do objeto. (BAKHTIN, 2010, p.41)
Levando em conta que numa ação exterior intensiva, vivenciamos as
“antecipações” do possível de acontecer, fragmentando o todo do externo, até o
mundo propriamente dito continua sendo vivenciado pela auto-sensação interior.
Assim, o mundo da ação é o mundo do interior previsto, onde a existência dada é
decomposta pela consciência atuante.
Artisticamente, de acordo com a teoria bakhtiniana, só uma consciência fora
do agente da ação pode realizar a verdade artística expressa externamente,
entrelaçando a ação ao fundo do mundo externo. Numa concepção puramente
plástico-pictural, só é possível enformar a ação do outro de dentro nós mesmos.
Bakhtin (2010) aponta as figuras de linguagem que se relacionam com a ação
externa, a fim de mostrar como, no fazer estético, a posição exotópica do autor-
criador relaciona-se com a autoconsciência da personagem ou, em outras palavras,
do agente da ação:
As principais características plástico-picturais da ação externa – epítetos, metáforas, comparações, etc. – nunca se realizam na autoconsciência do agente e nunca coincidem com a verdade interior do objetivo, do sentido da ação. [...] elas transferem a ação do horizonte do agente para o horizonte do contemplador distanciado. (BAKHTIN, 2010, p.42)
Assim, a ação é artisticamente enformada, os objetivos dela não interessam
ao leitor, que substitui o futuro real pelo futuro artístico, vivenciando-a fora do tempo
fatal do acontecimento de sua única vida: “Todas as características plástico-
picturais, particularmente as comparações, neutralizam o futuro fatal efetivo, estão
totalmente disseminadas no plano do passado auto-suficiente e do presente, dos
quais não há acesso ao futuro vivo e ainda arriscado” (BAKHTIN, 2010, p.43)
De acordo com o autor, então, o eu não é capaz de enxergar a si mesmo
dentro do espaço, já que quando está agindo, enxerga o mundo fragmentado, e
41
também não consegue estabelecer a memória da sua vida, já que está sempre na
esperança do porvir. Só o autor, ou seja, um outro em relação ao eu, pode colocar a
personagem dentro de um tempo e um espaço determinados, os quais terão relação
com a concepção de homem de acordo com a posição axiológica do autor-criador. É
nesse ponto que a noção de cronotopo relaciona-se com a concepção de homem.
Levando em conta o todo já estudado até aqui sobre a relação entre o eu e o
outro, entre autor e personagem na atividade estética, e como a relação entre esses
é perpassada pela posição axiológica de ambos, elaboramos, a seguir, um subitem
sobre como Bakhtin, a partir de comparações e análises com a teoria empática,
entende o leitor como autor-contemplador da obra.
2.1.3 O embate de consciências na leitura, e não uma leitura apenas empática
Analisaremos a seguir, como Bakhtin, a partir da análise de uma corrente
sobre a estética, traz-nos a ideia de dialogismo de uma maneira a mostrar-nos que,
enquanto leitores, entramos em um confronto axiológico com o objeto de nossas
leituras, o qual é enriquecedor para o objeto lido e para a nossa formação enquanto
sujeitos. O autor conceitua o leitor como autor-contemplador, longe de uma posição
passiva.
Bakhtin explana sobre uma corrente da estética do século XIX, a qual
interpreta a atividade estética como empatia ou vivenciamento empático, cujas
concepções, essencialmente, trazem o objeto da atividade estética como expressão
de algum estado interior e sua apreensão estética como vivenciamento empático
desse estado interior. Sendo a atividade estética dessa corrente perpassada pelo
estado interior do contemplador, Bakhtin, dentro de seus estudos, passa a designá-
la estética expressiva (T. Vischer, Lotze, R. Vischer, Volkelt, Wundt, Lipps, Gross,
Lange, Cohen, Schopenhauer, Bergson).
O autor mostra-nos que na estética expressiva, o contemplador está dentro
do objeto contemplado, e não há contraposição axiológica do eu (contemplador) ao
outro (contemplado), como se fosse possível ao eu experimentar de dentro de sua
consciência outras vidas.
42
Bakhtin (2010) critica a estética expressiva pelo fato dessa ser incapaz de
explicar o todo de uma obra, já que, do ponto de vista dessa corrente, cada figura
em particular de uma dada obra é compreendida empaticamente. A crítica é feita
para embasar o dialogismo, no qual, uma obra é interpretada como um
acontecimento único e complexo, que não pode ser compreendida em partes
isoladas.
Bakhtin exemplifica casos complexos, nos quais a teoria expressiva recorre
ao autor-criador, trazendo a possibilidade de vivenciar empaticamente com ele o
todo da obra. Para o autor, isso não é possível, pois saindo do mundo das
personagens, o autor-criador não exprime suas emoções, mas sim uma posição
criadora, a qual não pode ser interpretada com vivenciamento empático:
O todo estético não se co-vivencia mas é criado de maneira ativa (tanto pelo autor como pelo contemplador; neste sentido admite-se dizer que o espectador co-vivencia com a atividade criadora do autor); apenas às personagens é indispensável vivenciar empaticamente, só que aí ainda não se trata de um elemento propriamente estético: só o acabamento é esse elemento. (BAKHTIN, 2010, p.61-62)
O autor também analisa que para a estética expressiva a forma tem a função
de exprimir o interior da personagem e do autor, autor enquanto personagem, sendo
a emanação do objeto, presumindo um contemplador passivo, que vivencia o interior
do objeto empaticamente. Por isso, não a considera muito coerente, já que, nela, o
autor-espectador vivencia a obra com os olhos do herói, buscando coincidências
com o mesmo, colocando-se no lugar do herói, como se estivesse em um sonho.
Para a teoria bakhtiniana, a atividade estética não aspira à vivência de uma vida
possivelmente vivida, mas sim a percepção na categoria axiológica do outro.
Ainda falando sobre as considerações sobre a forma na estética expressiva,
Bakhtin (2010) explana que a personagem não vivencia a sua própria tragédia. Por
exemplo, se o leitor colocar-se no lugar da personagem, se privará da categoria
puramente estética do trágico, pois dentro dos valores da personagem que vive a
tragédia, não há elementos que construam a forma da tragédia. E é precisamente no
mundo da personagem, que deve realizar-se seu valor estético, segundo a teoria
expressiva.
43
Na maneira empática de encarar a atividade estética, o autor mostra-nos que
o autor-contemplador acaba fundindo-se com a personagem e a vivenciando como
vivencia sua vida: “onde a personagem central não está expressa em termos
plástico-picturais, mas é igualmente semelhante à estrutura do mundo do sonho [...]
onde a personagem também não está expressa e onde não existe ambiente puro
mas apenas horizonte” (BAKHTIN, 2010, p.67) Enfim, o autor-contemplador perde a
posição firme e ativa fora de cada uma das personagens, necessária para
compreender a obra como um todo, de sua posição axiológica.
Para exemplificar essa relação de empatia, o autor explica-nos que no
espetáculo teatral podemos perceber o equívoco principal da teoria expressiva: o
espectador vivenciando de dentro dele a vida imaginária interpretada pelos atores, e
não considerando que um acontecimento artístico contempla o todo do
acontecimento representado pelos atores.
Bakhtin (2010) considera que, para uma interpretação ser artística, é
necessário o ativismo estético do autor e dos atores, ou seja, todo o trabalho que
eles têm para enformar a personagem, criando suas características físicas, seu
caráter, sua posição volitivo-emocional, etc., e que, no momento em que o ator
encarna a personagem para a apresentação da peça, há o ativismo do espectador
dialogando com a obra.
Esses momentos de movimento, nos quais ocorre a enformação da
personagem – os quais Bakhtin considera estéticos, não são estéticos do ponto de
vista da estética expressiva, pois esta só considera estético o momento da
encenação da personagem pelo ator como sua própria vida, em termos de
expressividade, e a fusão do espectador com o ator a partir da forma expressiva.
Para o autor, um espectador ingênuo vive a obra de arte envolvendo-se tanto
com o enredo, que tem uma atitude ética em relação ao herói, querendo apontar-lhe
o que esse não consegue ver, fato que destrói o acontecimento estético. Quando o
espectador não consegue manter-se firme fora do acontecimento, ficando ao lado do
herói, participa desse plano vital ético-cognitivo.
44
Ainda, para explicar a estética expressiva, Bakhtin traz-nos a estética
schopenhaueriana de Hartmann, um dos teóricos da estética expressiva. Mostra-nos
que, para Hartmann, o vivenciamento empático introduz o conceito de sentimentos
ideais ou ilusórios, estabelecendo relação de diferença entre sentimentos
despertados pela vida real e pela forma estética. “O prazer estético é um sentimento
real, ao passo que o vivenciamento empático dos sentimentos da personagem é
apenas um sentimento ideal. Os sentimentos ideais são aqueles que não despertam
a vontade de agir”(BAKHTIN, 2010, p.73)
Bakhtin (2010) critica tal conceituação pelo fato de considerar que não é
possível vivenciar sentimentos isolados, e ressalta o co-vivenciamento na relação do
leitor com a personagem, relação que amplia os valores do leitor. Do ponto de vista
da teoria expressiva, é apenas um vivenciamento repetitivo, sem enriquecimento por
quaisquer valores novos.
Para o autor, houve um desvio, cometido pela maioria dos teóricos da estética
expressiva, significativo para melhor explicar a atividade estética: o conceito de
empatia simpática. Assim, explica-nos que, de certa maneira, a simpatia é condição
da empatia, pois para vivenciar empaticamente com um objeto, é necessário que o
mesmo seja simpático para nós, pois a antipatia nos afastaria do mesmo. Desse
ponto de vista, entramos na categoria do outro, das vidas dos outros que não
somos, vivenciadas de fora.
Bakhtin (2010) ressalta ainda o uso do termo expressão, o qual transfere o
ativismo do autor para o ativismo da personagem. Considerando a substituição do
termo expressão por representação, muito mais feliz, pois é o autor o sujeito
esteticamente ativo, é o autor que conquista, num primeiro momento, a forma da
personagem, sendo complementada, num segundo momento, pelo espectador, e o
sucesso do acabamento da forma está ligado à “distância tensa e amorosa do autor-
contemplador em relação à personagem.” (BAKHTIN, 2010, p.77)
Ainda segundo o autor, a estética expressiva empobrece e simplifica a
atividade estética pelo fato de querer fundir a consciência do espectador com a da
personagem, sendo que a atividade estética, na visão bakhtiniana, pressupõe duas
consciências para ser criativamente produtiva. Se há fusão, não há tensão entre
45
duas consciências, a tensão entre duas consciências é enriquecedora, já que o
sujeito ocupa um lugar axiológico único em sua existência, estando de fora do
acontecimento da personagem pode enriquecê-lo e enriquecer-se a si.
O autor explica que esse aspecto empobrecedor da teoria expressiva
encontra explicação no gnosiologismo da cultura filosófica dos séculos XIX e XX. A
teoria do conhecimento foi estabelecida como modelo para todas as teorias de
quaisquer domínios da cultura, ou seja, a consciência gnosiológica, a consciência da
ciência. Dentro dessa teoria, a análise estética não visa como seu objeto de estudo
a própria realização estética, mas sim a transcrição e a compreensão do próprio
acontecimento. Isso ocorre porque a consciência científica é única e singular,
determina todas as outras consciências, fundindo-se com elas, ou seja, não é
possível que se relacione com outras consciências diferentes da sua, o que torna
impossível sua relação com consciências diferentes: “Essa consciência única cria e
forma seu objeto somente enquanto objeto e não enquanto sujeito, e o sujeito não
passa de objeto para ela.” (BAKHTIN, 2010, p. 81)
A consciência estética, segundo a análise bakhtiniana, diferentemente, é a
consciência da consciência, na qual não há a fusão de duas consciências, mas sim
se prevalece a subjetividade vital. O autor-criador encara a personagem do ponto de
vista objetivo, já a sua consciência é “inacabável como a consciência gnosiológica.”
(BAKHTIN, 2010, p.81)
O autor analisa também que, um dos conceitos trazidos pela estética
expressiva - a forma espacial é a forma da personagem e de seu mundo – é
considerado válido para a teoria bakhtinina. Porém, ressalta o problema dessa
estética não reconhecer, como característica da forma, a relação entre autor e
personagem. Na relação com a forma, o autor-criador cria valores para a
personagem:
“A forma é uma fronteira esteticamente elaborada. [...] As fronteiras são
vivenciadas de maneiras essencialmente diferentes: por dentro, na autoconsciência,
e por fora, no vivenciamento estético do outro.” (BAKHTIN, 2010, p. 83)
46
Concluímos que, para Bakhtin, o autor e o leitor são responsáveis pela
criação da personagem, e não cabe ao leitor ocupar uma posição passiva, empática
na leitura da personagem, ou seja, na leitura estética. Buscamos entender a
diferença entre viver junto com a personagem os acontecimentos de sua vida, de
maneira isolada, em contraponto com o viver junto com a personagem e retornar a si
mesmo, enriquecendo a si e à personagem.
Consideramos que esses apontamentos feitos por Bakhtin são valiosos para
uma leitura dialógica de qualquer gênero, levando em conta a preocupação em
exaltar os valores axiológicos despertados pelas escolhas do autor-criador e dos
valores axiológicos despertados pela consciência do autor-contemplador.
Percebemos que, para Bakhtin, o leitor ativo axiologicamente é considerado
autor-contemplador, pela sua importância no acabamento da personagem. Como
vimos no subitem sobre o excedente de visão do autor, o autor-criador traz um olhar
único, e o leitor, enquanto autor-contemplador, também traz um lugar único, haja
vista que ambos ocupam um lugar singular na existência, do mundo real ao mundo
representado.
Cabe-nos, no próximo subitem, explorar a concepção bakhtiniana para a
análise do estético, buscando entender o todo da obra.
2.1.4 A obra enquanto contexto axiológico
Bakhtin (2010), nos conceitos que estudamos anteriormente, verifica que o
mundo da visão artística é organizado e é o homem o centro organizador desse
mundo, que a relação entre o eu e o outro é essencial para a realização de qualquer
ato axiologicamente ponderável. Numa análise fenomenológica da consciência
axiológica feita por Bakhtin, foi possível percebermos que: “só o outro como tal pode
ser o centro axiológico da visão artística” (BAKHTIN, 2010, p.17). Na teoria
bakhtiniana, não é possível a nós mesmos, na relação com nós mesmos, a criação
estética, já que somos irreais esteticamente para nós mesmos.
47
A obra de arte, desse ponto de vista, é entendida como acontecimento
artístico vivo por conta de toda essa relação do autor com a personagem, e não
como apenas um todo verbalizado percebido empiricamente.
O autor é o elemento da obra que ocupa posição responsável pelo
acontecimento do existir do todo artístico:
Integram o objeto estético todos os valores do mundo, mas com um determinado coeficiente estético; a posição do autor e seu desígnio artístico devem ser compreendidos no mundo em relação a todos esses valores. O que se conclui não são as palavras, nem o material, mas o conjunto amplamente vivenciado do existir; o desígnio artístico constrói o mundo concreto: o espacial com o seu centro axiológico – o corpo vivo - , o temporal com o seu centro – a alma – e, por último, o semântico, na unidade concreta mutuamente penetrante de todos. (BAKHTIN, 2010, p. 176)
Percebemos que, para o autor, a personagem tem de morrer no sentido de
seu acabamento, o autor-criador precisa ocupar posição fora da personagem para
enxergar o que ela não enxerga e criar uma visão absolutamente nova do mundo. “O
ato estético dá à luz o existir em um novo plano axiológico do mundo, nascem um
novo homem e um novo contexto axiológico – o plano do pensamento sobre o
mundo humanizado.” (BAKHTIN, 2010, p.177)
A teoria bakhtiniana postula que a obra de arte difere-se tanto materialmente
(pintura, poesia, música etc.), como no objeto estético (realidade ético-cognitiva -
mundo vivenciável); é na criação verbalizada que esse mundo é mais concreto e
multifacetado, por não ter forma espacial externa como a pintura. Levando em conta
essa relação, podemos comparar as palavras de uma obra com as cores, contornos
de uma pintura, sendo estas suas formas externas concretas.
Faraco (2013) explanaque, para Bakhtin, a análise da atividade estética não
pode restringir-se apenas ao material, pois a forma não se esgota num dado
material, realiza-se nele, mas é transcendida pelo conteúdo, por isso o autor faz
esse paralelismo entre forma material e objeto estético, o objeto estético refere-se,
ao que Bakhtin, chama em outras obras, de arquitetônica.
Bakhtin (2010) faz considerações sobre o conteúdo, a forma e o material,
ressaltando a interdependência entre os três elementos, já que o conteúdo é
48
enformado e concluído pelo autor com o uso de um determinado material (palavras,
linhas, cores, etc.).
A noção de conteúdo para a teoria bakhtiniana, segundo Faraco (2013), é
entendida pelo modo como os elementos éticos e estéticos são transpostos para o
plano estético pelo autor-criador, criando uma rede de relações axiológicas que
transcendem o material, embora sejam compostas por meio dele, formando uma
nova unidade de sentidos e valores.
Bakhtin (2010) ressalta a interdependência entre todos esses elementos,
sendo a forma condicionada pelo conteúdo e à peculiaridade do material. O artista
trabalha com a língua, entendida como um fenômeno físico, e o todo verbalizado é
assunto para estudo linguístico, a obra de arte é a superação desse mundo físico, o
material é subordinado à via axiológica totalmente guiada pelo desígnio puramente
artístico.
Entendida essa relação entre os elementos da obra de arte, Bakhtin conclui
que,não se restringe apenas aos estudos linguísticos a análise da obra de arte, e
que o estudo axiológico do contexto deve ocupar primeiro lugar, levada em conta a
relação entre língua e contexto axiológico no ato de criação.
O autor explica que o artista trabalha com a palavra para essa expressar o
mundo dos outros e sua própria relação com esse mundo, e que o estilo verbalizado
do autor reflete tal relação, no qual é determinada sua relação com o significado
concreto da palavra.
Assim, o autor mostra-nos como é a elaboração de um contexto literário o fim
da elaboração verbal, linguística, do autor, principalmente condicionada pelo seu
contexto axiológico:
O autor conflui imediatamente com a personagem e seu mundo e só na relação axiológica imediata com ela define sua posição como posição artística, só nessa relação axiológica com a personagem ganham pela primeira vez a sua significação, o seu sentido e o peso axiológico (revelam-se necessários e importantes em termos de acontecimento), os procedimentos literários formais, o movimento-acontecimento se insere na esfera literária material (o contexto jornalístico, a luta jornalística, a vida jornalística e a teoria jornalística39³). (BAKHTIN, 2010, p.182 )
49
A obra de arte, segundo Bakhtin, é guiada pela lei da personagem e do autor,
a lei do conteúdo e da forma. A consciência da personagem está na visão excedente
do autor, à qual ele dá acabamento e objetividade estética; a partir de sua realidade
interior, semântico-axiológica da vida, o autor cria o acontecimento de maneira
verossimilhante: o caráter, a posição, o enredo, etc.
Sentir a beleza, na perspectiva bakhtiniana, significa sentir a forma e seu
peso axiológico, além da nossa consciência criadora ou co-criadora, a partir da
relação com a consciência humana possível da personagem, estando numa posição
fora da mesma.
De acordo com o autor, podemos definir estilo como “a unidade de
procedimentos de informação e acabamento da personagem e do seu mundo e dos
procedimentos, por estes determinados, de elaboração e adaptação (superação
imanente) do material.” (BAKHTIN, 2010, p.186)
A primeira condição para a unidade do estilo, segundo Bakhtin, é a tensão
ético-cognitiva da vida e, a segunda, é a posição de distância, sendo que as duas
estão intimamente ligadas. Temos então o estilo da visão do mundo e estilo da sua
elaboração material. O autor-criador coloca-se ao lado de outros autores, seu estilo
é influenciado e ao mesmo tempo supera outros estilos.
Bakhtin acrescenta que, para o leitor, o autor é o princípio que deve ser
seguido, e não uma pessoa de carne e osso, já que é participante da obra. O autor
guia o leitor no sentido de ser ele quem traz para a obra o excedente de visão, e é
necessariamente quando o leitor objetiva o seu ativismo que o autor deixa de guiá-lo
ativamente.
Nos próximos itens, procuramos explorar a concepção bakhtiniana sobre o
gênero do discurso, que dialoga com o já estudado no presente capítulo sobre a
atividade estética. Além disso, trouxemos um olhar mais específico sobre o gênero
jornalístico, a partir do trabalho do autor Charaudeau, e considerações sobre o
gênero fotografia, da autora Sontag.
2.2 Gêneros do discurso
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2.2.1 Conceituação bakhtiniana sobre os gêneros do discurso
A partir do texto Os gêneros do discurso, presente na obra Estética da criação verbal, de Mikhail Bakhtin, estudamos a concepção bakhtiniana de gêneros
do discurso.
Sobre os gêneros do discurso, destacamos que “cada enunciado particular é
individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente
estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.” (BAKHTIN,
2010, p.262) Assim, temos pontos estáveis a serem analisados nos gêneros
jornalísticos.
O autor postula que a diversidade e a complexidade dos gêneros são infinitas,
o que torna demasiadamente complexa também sua análise. É por meio de
“enunciados concretos que a vida entra na língua” (BAKHTIN, 2010, p.265), e os
enunciados podem ser diferenciados, dentre outras peculiaridades, pelas relações
humanas, os gêneros podem ser definidos como primários – simples, e secundários
- complexos. Os primários estão ligados às situações linguísticas mais espontâneas,
e os secundários, às mais complexas e organizadas; sendo que os primários podem
integrar os complexos.
Ainda segundo o autor, todo enunciado é individual e, consequentemente,
pode refletir a individualidade do sujeito, seu estilo, o qual é um elemento do gênero
do discurso. Além disso, o estilo está estritamente entrelaçado às unidades
temáticas e composicionais dos gêneros, seu campo de atividade.
Bakhtin (2010) acrescenta que o tom é dado pelos gêneros do discurso, ou
seja, temos tons literários, publicísticos, científicos, filosóficos, familiar-cotidiano,
sóciopolítico, etc., de acordo com a especificidade dos gêneros. Certamente que
pode haver subversão do tom de acordo com a intenção discursiva.
O autor analisa que dentro da estilística e da gramática há divergências e
convergências na análise dos fenômenos concretos da linguagem, já que, por
exemplo, a análise de um sintagma apenas no sistema da língua é gramatical e,
numa perspectiva individual, onde há um enunciado dentro de um gênero, é
estilística.
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De acordo com a concepção bakhtiniana da linguagem, é apenas no
momento da compreensão auditiva que há passividade, a resposta em voz alta é
ativamente responsiva. A resposta aos gêneros complexos, na maioria dos casos, é
de efeito retardado, resposta esta entendida como compreensão ativamente
responsiva. Para entender tal relação, é importante uma compreensão mais
profunda da concepção dialógica dos gêneros do discurso.
O enunciado permite resposta, segundo Bakhtin, característica que determina
seu acabamento, sua conclusibilidade. A posição do falante suscita uma posição
responsiva: pergunta-resposta, afirmação-objeção, afirmação-concordância,
proposta-aceitação, ordem-execução, etc., em relação aos discursos imbricados. A
alternância dos sujeitos é uma das características essenciais do enunciado: “O
falante termina o seu enunciado para passar a palavra ao outro ou dar lugar à sua
compreensão ativamente responsiva.” (BAKHTIN, 2010, p.275)
O enunciado é entendido como unidade do discurso, dentro dos estudos
bakhtinianos, já a oração é entendida como unidade da língua, o primeiro suscita
atitude responsiva, a segunda, não. De acordo com Fiorin “cada vez que se produz
um enunciado o que se está fazendo é participar de um diálogo com outros
discursos.” (FIORIN, 2008, p.21)
Bakhtin acrescenta que a possibilidade de resposta é possível a partir de três
elementos: exauribilidade do objeto e do sentido; projeto de discurso ou vontade de
discurso do falante; formas típicas composicionais de gêneros do acabamento. O
autor explana que a exauribilidade do objeto e do sentido de um determinado tema é
maior quanto maior a padronização do gênero em questão, ademais ganha relativa
conclusibilidade de acordo com o tema.
Ainda, acrescenta o autor que, em todo enunciado, há a vontade de discurso
do falante: na escolha do gênero tal intenção constitui-se e desenvolve-se, falamos
por meio dos gêneros do discurso, e não por meio de orações e muito menos de
palavras isoladas. O domínio do gênero dá liberdade para a descoberta da
individualidade, dentro das limitações de sua padronização relativamente estável.
52
Sobre as unidades da língua, Bakhtin postula que são mais estáveis do que
os gêneros, porém, a estabilidade do gênero é também restritiva em alguns
aspectos para o falante. O acabamento de uma oração é gramatical, o acabamento
de um enunciado é discursivo. A oração é abstrata por não ter autor, já o enunciado
tem autor e está imerso em um contexto extra-linguístico que lhe dá conclusibilidade.
De acordo com a ideia do sujeito do discurso – o autor, é feita a escolha dos meios
linguísticos e dos gêneros do discurso.
Sobre o estilo individual, Bakhtin conceitua que é determinado pela
expressividade do falante, sua relação emocionalmente valorativa com o objeto de
sua fala. Podemos claramente perceber que um enunciado pode ser formado
apenas pela entonação expressiva de uma palavra, já no sistema da língua, apenas
uma palavra não pode ser desdobrada em oração:
“só o contato do significado linguístico com a realidade concreta, só o contato
da língua com a realidade, o qual se dá no enunciado, gera a centelha da
expressão: esta não existe nem no sistema da língua nem na realidade objetiva
existente fora de nós.” (BAKHTIN, 2010, p.292)
O processo de escolha de palavras para a construção de um enunciado,
segundo Bakhtin, costuma acontecer não de forma neutra, ou seja, escolhendo as
palavras no sistema da língua, mas sim de outros enunciados nos quais já tenham
sentido congêneres com o qual gostaremos de evocar em nosso discurso, de acordo
com tema, composição e estilo; e segundo a sua especificação de gênero:
pode-se dizer que qualquer palavra existe para o falante em três aspectos: como palavra da língua neutra e não pertencente a ninguém; como palavra alheia dos outros, cheia de eco de outros enunciados; e, por último, como minha palavra, porque, uma vez que eu opero com ela em uma situação determinada, com uma intenção discursiva determinada, ela já está compenetrada na minha expressão. (BAKHTIN, 2010, p.294)
De acordo com o autor, há enunciados investidos de autoridade que dão o
tom de acordo com a época, o círculo social, familiar, etc., e é nesses tons que as
pessoas se baseiam, por isso mesmo a experiência discursiva é dialógica, pois está
em constante interação com os enunciados dos outros.
A entonação da oração, enquanto unidade da língua, é gramatical, a qual
adquire entonação expressiva no enunciado. “Portanto, o enunciado, seu estilo e
53
sua composição são determinados pelo elemento semântico-objetal e por seu
elemento expressivo, isto é, pela relação valorativa do falante com o elemento
semântico-objetal do enunciado.” (BAKHTIN, 2010, p.296)
A expressão do enunciado, de acordo com Bakhtin, exprime a relação do
falante com os enunciados dos outros e com seus objetos, e é a partir dessa
concepção o único meio de entender o estilo plenamente, já que a nossa própria
ideia, nas diversas esferas da atividade humana, nasce dessa relação de luta e
interação com o outro, além de estar no enunciado real verbalizado no mundo, tal
relação dialógica está no nosso próprio pensamento verbalizado.
O processo de alteridade, como nos mostra Bakhtin, pode ser percebido no
estudo profundo de qualquer enunciado real da comunicação discursiva. Ademais, o
discurso do outro é explicitado quando é destacado textualmente, ganhando mais
força, no caso do uso das aspas, travessão, etc.
Sempre que vamos abordar um objeto em nosso discurso, não somos
pioneiros, certamente outros já falaram sobre o mesmo, repetimos os enunciados
que o antecederam numa relação de responsividade, na qual, refletimos e
refratamos discursos anteriormente enunciados.
A construção do enunciado presume também as atitudes responsivas
subsequentes da comunicação discursiva, ou seja, para os outros que o lerão,
outros que também tem um papel ativo na comunicação discursiva. O enunciado
objetiva essa resposta:
Ao constituir o meu enunciado, procuro defini-lo de maneira ativa; por outro lado, procuro antecipá-lo, e essa resposta antecipável exerce, por sua vez, uma ativa influência sobre o meu enunciado (dou resposta pronta à objeções que prevejo, apelo para toda sorte de subterfúgios, etc.) (BAKHTIN, 2010, p. 302)
Esse outro é determinado de acordo com o campo da atividade humana e da
vida a que o enunciado se refere, o sujeito do discurso prevê seus leitores.
Percebemos assim que, na análise dos gêneros do discurso, é necessário
considerar vários fatores ligados à individualidade e à estabilidade dos enunciados
organizados dentro dos campos de utilização da língua.A individualidade do falante
54
pode ser percebida no seu estilo,a estabilidade do gênero pode ser percebida no
tom.
As diferenças entre unidade da língua e unidade do discurso nos mostram
como funciona o processo de alteridade no uso individual da língua – enunciado
concreto. Assim, a conclusibilidade do discurso, que é caracterizada pela
possibilidade de resposta, apresenta a relação dialógica, ou seja, como um discurso
evoca outros discursos, refletindo-os e refratando-os.
No próximo subitem, vamos explorar considerações sobre os gêneros
jornalísticos, de acordo com Charaudeau.
2.2.1.2 Considerações sobre os gêneros midiáticos
De acordo com Charaudeau (2010), no âmbito de uma atividade
socioprofissional, a informação transforma-se no domínio reservado de um setor
particular: as mídias; sendo que “informar” passa a não ser uma atividade realizada
por todos, fato que, compartilhado pela sociedade, evidentemente, faz com que as
pessoas procurem informação na mídia. Enquanto instância cidadã, a favor da
democracia, o principal objetivo das mídias é informar, porém, dentro de uma lógica
comercial, o objetivo é atingir o maior número de pessoas.
Charaudeau (2010) acrescenta que o ato de comunicação efetiva-se na troca
entre duas instâncias: de produção e de recepção. A comunicação midiática
constitui-se de uma relação de lógicas econômica e simbólica, a instância de
produção tem que se preocupar com a recepção enquanto consumidora e enquanto
cidadã (opinião pública).
Assim, segundo o autor, para captar o maior número de pessoas, a
informação depende de uma série de condições: efeito de verdade, credibilidade,
novidade, dramatização, relevância. O conhecimento da fonte é também
responsável pelo valor de verdade, “autenticidade” e “verossimilhança” de um fato.
O autor também acrescenta que no contrato social com o público é
necessário que sejam levados em conta ainda outros fatores: como é a noção de
55
verdade, o que é aceitável, quais são as condições para construção de
conhecimento e quais são os valores e as crenças do alvo ideal.
Levado em conta o fato de que informar é transmitir um saber, uma novidade
a quem não a possuiu, o autor ressalta que o grau de ignorância, por parte do alvo,
fortalece a informação. Porém a heterogeneidade do público alvo, que engloba
pessoas mais esclarecidas, menos esclarecidas e, em sua maioria, pessoas com um
nível médio de conhecimento, a notícia pode ser considerada forte para alguns e
fraca para outros. Portanto essa questão da heterogeneidade coloca um problema
para as mídias: “Como fazer então para atingir a maioria?” (CHARAUDEAU, 2010, p.
19.)
Para atingir a maioria, Charaudeau explica que as mídias procuram despertar
o interesse e tocar a afetividade do público, fazendo um recorte e uma construção
do que ocorre no espaço público, de acordo com o interesse da captação do maior
número de pessoas. Dessa maneira, as mídias manipulam e são automanipuladas.
Charaudeau ressalta que a informação depende da linguagem para,
empiricamente, transmitir um saber a alguém que se presume não possuí-lo. Sendo
assim, a construção da informação está diretamente ligada aos sistemas de signos
internos a uma língua e a sistemas de valores que comandam o uso desses signos.
As escolhas morfológicas, sintáticas e semânticas para a construção da informação
não são inocentes, pois são responsáveis pelos efeitos visados pela instância de
produção.
O mesmo acontece, segundo Charaudeuau, com as escolhas discursivas –
linguagem verbal e iconográfica, que evidenciam certos fatos, deixando outros de
lado. A escolha de certas formas, as quais podem ter vários sentidos: polissemia,
sinonímia, polidiscursividade, dito e não-dito, explícito e implícito no tratamento da
informação.
Charaudeau ressalta que o ato de informar deve descrever, contar e explicar
os fatos de acordo com a troca social na qual o “mundo a significar” se transforma
em “mundo significado”, levando em consideração os seguintes parâmetros
56
envolvidos no ato de informar: identidade do destinatário-receptor, o efeito que se
pretende produzir, o tipo de relação a ser instaurado com este destinatário-receptor.
Assim, o autor conclui que não se pode pretender à transparência, à
neutralidade ou à factualidade na “representação” construída pela informação. Pode-
se apenas adiantar se a inteligibilidade da informação será mais ampla
(vulgarização) ou mais restrita (especialização).
Charaudeau (2010) acrescenta ainda que, para tornar o mundo inteligível, o
homem cria uma visão estruturada do mundo a partir da construção de
conhecimentos, caracterizada por três categorias de base: existencial, evenemencial
e explicativa. Dentro da enunciação informativa, tais tipos de percepção
desempenham diferentes funções:
- existencial: indicar fatos ou esclarecer a conduta desejada ou imposta (já que está
ligada à percepção mental);
- evenemencial: despertar a reconstituição da ação, declaração e identificação dos
atores implicados;
- explicativa: fundamentar na razão para tornar inteligíveis os acontecimentos.
Charaudeau (2010) considera que as crenças são um olhar subjetivo do
mundo para regular as práticas sociais a partir de normas efetivas de
comportamento: pontos de vista éticos, estéticos, hedônico e pragmático. Na
enunciação informativa, as crenças propõem o compartilhamento de seu julgamento
pelo outro (receptor), colocando-o em posição avaliativa, a qual pode ser de caráter
ético, estético, hedônico e pragmático.
Os saberes de conhecimento e crença, segundo o autor, estão no interior do
processo de representação e é difícil determinar a fronteira entre os mesmos, pois
uma enunciação informativa pode suscitar no receptor uma atitude avaliativa de
acordo com as crenças que evoca.
De acordo com Charaudeau (2010), os gêneros midiáticos são especificados
de acordo com o seu suporte: jornalísticos (imprensa escrita), televisivos e
57
radiofônicos. Nossa análise tem como corpus os gêneros jornalísticos da imprensa
escrita.
Define também o gênero da informação midiática, de acordo com o autor, o
cruzamento entre a instância enunciativa, o modo discursivo, o conteúdo e o
dispositivo. A instância enunciativa caracteriza-se pela origem do sujeito falante –
pode ser da própria mídia ou de fora da mídia, ou seja, instância interna ou externa.
O autor acrescenta ainda que o acontecimento midiático é transformado em
notícia de acordo com o modo discursivo e seu processo é definido de acordo com o
gênero. O conteúdo temático constitui o macrodomínio abordado pela notícia, no
nosso caso temos um acontecimento bélico internacional. A seção é um recorte do
acontecimento em macrotemas de acordo com as grandes áreas da informação.
Dentro da seção existem subdivisões ligadas ao seu modo discursivo – as rubricas.
O dispositivo é material e está ligado ao suporte midiático que pode ser a imprensa,
o rádio ou a televisão.
A seguir, trouxemos considerações do autor sobre o gênero entrevista, o qual
faz parte do nosso corpus.
2.2.1.2.1 Entrevista
Charaudeau (2010) acrescenta que, na entrevista, há dois sujeitos envolvidos
na construção dos enunciados: o que questiona e o que é questionado e tem razões
para ser questionado. A entrevista jornalística pressupõe um ouvinte ausente no ato
de sua criação, um sujeito que ainda irá ler a entrevista, o público alvo.
O jornalista precisa definir suas perguntas para fazer com que o entrevistado
revele o que ainda é oculto para o público, fazendo surgir opiniões, já o entrevistado
tem algo a dizer que está de acordo com o bem comum, caso contrário não teria
sido convidado para a entrevista. O público espera, a partir da entrevista, receber
uma revelação que seja de interesse geral.
O autor define que há variantes de entrevistas, dentre elas: a entrevista
política, a entrevista de especialista, a entrevista de testemunho, a entrevista cultural
58
e a entrevista de estrelas. Como nosso corpus é composto por uma entrevista de
testemunho, vamos nos ocupar apenas com a explanação da mesma.
A entrevista de testemunho, segundo o autor, está ligada a um fato
considerado interessante para ser relatado pelas mídias. Normalmente, o
entrevistado é anônimo, pode ser vítima ou observador do fato em questão, e é
levado a narrar o que viveu com mais emoção do que julgamentos de opinião, pode
também representar um grupo social e ter uma história de vida. O entrevistador
busca em suas perguntas despertar a emoção do entrevistado e que ele responda
de maneira breve às perguntas.
De acordo com o autor “A entrevista de testemunho é um gênero que se
presume confirmar a existência de fatos e despertar a emoção, trazendo uma prova
de autenticidade pelo “visto-ouvido-declarado”” (CHARAUDEAU, 2010, p.216).
O autor faz considerações sobre a credibilidade desse gênero. De acordo
com ele, os limites a que está submetido o gênero entrevista, traz um problema de
credibilidade, já que nas entrevistas de testemunho (a qual tem por função autenticar
os fatos), o que é realmente exaltado, de acordo com a brevidade das respostas,
não é a autenticidade dos fatos, mas sim o interesse das respostas, o que é visto em
entrevistas de rua, onde os relatos são selecionados, produzindo um efeito de
“entrevistas-álibis” da informação.
De acordo com o autor, o simbólico que se atribui à fala numa dada
comunidade cultural também precisa ser considerado como elemento de
contradição, a complexidade do fenômeno a explicar presume tempo de fala longa e
pausas. Ressaltamos que quanto mais longo é o tempo de fala, menor é a atenção e
o interesse de grande parte do público. Levando em conta o interesse do público-
alvo, maior ou menor podem ser as pausas ou a continuidade da palavra do
entrevistado.
Aos entrevistadores, sugere o autor, cabe também saber até que ponto é
legítimo o uso de estereótipos, já que a inserção dos mesmos em uma pergunta
evoca discursos que circulam nos grupos sociais e lhes confere valor de verdade.
Analisaremos no próximo subitem, peculiaridades do gênero fotografia.
59
2.2.1.3 Considerações sobre o gênero fotografia
De acordo com a leitura de ensaios da obra Sobre fotografia, de Susan
Sontag (2004), buscamos trazer ao nosso trabalho considerações desse gênero
que, juntamente com a visão bakhtiniana do discurso, compõem o nosso
embasamento teórico. Sontag traz reflexões sobre vários aspectos da foto, dentre as
quais, seu papel na sociedade e sua relação com a realidade, o conhecimento e a
ideologia; considerações sobre a atividade fotográfica; análises das características
éticas e estéticas das fotos e características dos gêneros fotojornalismo e legenda.
Sontag (2004) analisa o papel das fotos na sociedade, mostrando-nos que
esse tem modificado e ampliado nossas ideias sobre o que é interessante de ser
olhado e, mais do que isso, as fotos trouxeram uma sensação de poder, de
apropriar-se da coisa fotografada. Além disso, a autora reflete sobre a relação da
foto com o conhecimento: “Fotografar é apropriar-se da coisa fotografada. Significa
pôr a si mesmo em determinada relação com o mundo, semelhante ao
conhecimento – e, portanto, ao poder.” (SONTAG, 2004, p.14)
Sontag analisa como no começo da atividade fotográfica havia a suposição de
que as câmeras propiciavam uma imagem impessoal e objetiva da realidade, o que,
mais tarde, foi contestado, dando lugar a ideia de que, por mais que sejam um
indício de algo que existiu, um registro, as fotos também são indícios do que um
indivíduo viu e avaliou do mundo, postulando assim que existe uma nova forma de
visão - a visão fotográfica.
A partir da consideração da visão fotográfica, a autora ressalta que a relação
da foto com a realidade, por mais que traga o pressuposto de que algo existiu,
podendo ser considerada um testemunho incontestável, as fotos estão associadas
ao gosto e à consciência do fotógrafo, fato que ressaltamos, com as próprias
palavras da autora:
Ao decidir que aspecto deveria ter uma imagem, ao preferir uma exposição a outra, os fotógrafos sempre impõem padrões a seus temas. Embora em certo sentido a câmera de fato capture a realidade, e não apenas a interprete, as fotos são uma interpretação do mundo tanto quanto as pinturas e os desenhos. (SONTAG, 2004, p.17)
60
A autora mostra-nos também que o ato de tirar fotos é um evento, já que o
fotógrafo interfere, invade ou ignora situações várias ao escolher o que será
interessante para ser fotografado e “imortalizado” pelo mundo-imagem. Contudo,
ressalta que esse ativismo do fotógrafo contrapõe-se a não intervenção do
acontecimento, já que em casos de horror, como numa guerra, o fotógrafo tem de
escolher entre registrar o momento ou nele intervir, sendo que é naturalmente
aceitável, nos dias de hoje, a escolha pelo registro:
Tirar uma foto é ter um interesse pelas coisas como elas são, pela permanência do status quo (pelo menos enquanto for necessário para tirar uma “boa” foto), é estar em cumplicidade com o que quer que torne um tema interessante e digno de se fotografar – até mesmo, quando for esse o foco de interesse, com a dor e a desgraça de outra pessoa. (SONTAG, 2004, p.23)
Como o fotógrafo interfere na criação da foto, a autora explica que, numa foto,
as pessoas podem ver-se como nunca se veem no mundo real, ou seja, há uma
diferença entre a foto – mundo representado, e a pessoa –no mundo real;
observação que está em consonância com o dialogismo proposto por Bakhtin
(2010), em que o autor postula a relação de alteridade na formação de personagens
– o outro é sempre quem define o eu, nesse caso, o fotógrafo cria uma personagem
da pessoa fotografada:
No rosto das pessoas, quando ignoram que estão sendo observadas, existe algo que nunca aparece quando elas sabem disso. [...] suas expressões são confidenciais, não são aquelas que as pessoas mostram para uma câmera. (SONTAG, 2004, p. 49)
A autora comenta que, além de trazer um novo olhar sobre o objeto
fotografado, a foto também participa da mortalidade, pois congela os objetos ou
pessoas fotografados, e pode ser vista como um testemunho das mudanças que
ocorrerão desde o momento congelado pela foto.
Assim, a autora explica que a foto pode imortalizar situações, porém só as
quais tenham um contexto apropriado de sentimento e de atitude podem deixar
marcas na opinião pública, pois “As imagens que mobilizam a consciência estão
sempre ligadas a determinada situação histórica.” (SONTAG, 2004, p.27). Ainda
ressalta que as fotos não criam uma posição moral, mas ajudam a reforçar e a
desenvolvê-las.
61
Sontag atenta para o fato de que as fotos estabelecem uma relação mais forte
com a memória do que imagens televisivas, pois se diferenciam pela estaticidade de
uma e pelo fluxo da outra. A autora traz um exemplo para exemplificar essa relação,
o qual trouxemos por tratar-se exatamente do nosso corpus de análise:
Fotos podem ser mais memoráveis do que imagens em movimento porque são uma nítida fatia do tempo, e não um fluxo. [...] Fotos como a que esteve na primeira página de muitos jornais no mundo em 1972 – uma criança sul-vietnamita nua, que acabara de ser atingida por napalm americano, correndo por uma estrada na direção da câmera, de braços abertos, gritando de dor – provavelmente contribuíram mais para aumentar o repúdio público contra a guerra do que cem horas de barbaridades exibidas pela televisão. (SONTAG, 2004, p.28)
Ainda tratando do exemplo da guerra do Vietnã, a autora analisa que os
americanos e o mundo tiveram acesso as fotos do sofrimento dos vietnamitas, pelo
fato de haver já embrionário um sentimento moral e ideológico por grande número
de pessoas no mundo em relação a essa guerra, que estava sendo entendida como
uma guerra colonialista. A autora compara a guerra do Vietnã com a guerra da
Coréia, e nos mostra que, na segunda, não houve respaldo ideológico para que
fotos fossem publicadas, já que essa tinha sido entendida como parte da justa luta
do Mundo Livre contra a União Soviética e a China, assim, não houve espaço moral
para as fotos do sofrimento da população durante a guerra.
Sontag (2004) analisa que é a ideologia que determina se o evento
fotografado vai ou não afetar moralmente um determinado grupo de pessoas, por
mais chocantes que sejam as fotos, sem o embasamento moral, as fotos
proporcionariam um choque emocional desorientador ou seriam consideradas
irreais. A autora ressalta ainda que, quanto mais familiaridade as pessoas têm com
certas imagens, menos são afetadas pelas mesmas: “Fotos chocam na proporção
em que mostram algo novo [...] uma pseudofamiliaridade com o horrível reforça a
alienação, tornando a pessoa menos apta a reagir na vida real.” (SONTAG, 2004,
p.30/53)
A autora vai além, e postula que o evento fotografado pode tornar-se menos
real para aqueles que foram expostos a ele repetidas vezes, pois considera que as
fotos, com o passar do tempo, ganham um peso mais estético – no nível da arte, do
que ético, sendo esse último, então, uma característica frágil das fotos.
62
Sontag (2004) mostra-nos também que a burocracia é compatível com a visão
realista do mundo, na qual o conhecimento é redefinido como técnica e informação,
e as fotos podem ser usadas como fonte de informação, de notícias. Analisa assim
que, embora sejam instrumentos para a informação, as fotos trazem uma visão de
mundo desprovido de inter-relações ou continuidade, mas de mistério.
Mistério, explica a autora, pelo fato de fotos trazerem uma superfície da qual
podemos imaginar ou intuir o que estaria além, o que seria a realidade, pois as fotos,
por si mesmas, nada podem explicar.
A autora ressalta que a fotografia tem um caráter sedutor de trazer a
realidade por meio de imagens para que possamos, assim, conhecer o mundo,
contundo expõe que as fotos trazem uma aparência do mundo do presente e do
passado, mas não substituem a atividade que o indivíduo tem de compreender, que
é diferente de aceitar o mundo como ele aparenta ser: “a representação da realidade
pela câmera deve sempre ocultar mais do que revela.” (SONTAG, 2004, p.34)
Sontag (2004) também reflete sobre o fotojornalismo, destacando que o
público espera que esse gênero componha-se de informações e registros da
realidade, ou seja, cópias do mundo, assim, as pessoas não se preocupam com a
consciência individual do fotógrafo ou seu estilo, o qual pode suscitar uma
impressão de quebra com a ideia de retrato fiel da realidade.
O fotojornalismo, então, segundo a autora, desperta duas expectativas: “as
que nascem de nosso modo amplamente surrealista4 de olhar para todas as fotos e
aquelas criadas por nossa crença de que certas fotos fornecem informações
genuínas e importantes a respeito do mundo” (SONTAG, 2004, p.121)
A autora mostra-nos que os fotógrafos procuram cenas de violência a fim de
documentar uma realidade, a qual pode ser oculta para parte de seu público, assim
a foto pode trazer a realidade dos outros, fazendo com que o público seja um turista
dessa realidade.
4 “O surreal é a distância imposta, e ligada como por uma ponte, pela foto: a distância social e a distância no tempo.” (SONTAG, 2004, p.73)
63
Ressaltando que, normalmente, o fotojornalismo é acompanhado por uma
legenda, trouxemos algumas considerações da autora sobre essa. De acordo com
Sontag, as legendas podem exagerar os dados da visão, pois as palavras falam
mais alto que a visão, porém “nenhuma legenda consegue restringir, ou fixar, de
forma permanente, o significado de uma imagem” (SONTAG, 2004, p.125) Assim, as
legendas podem interferir no significado da imagem, mas não modificá-los; de
acordo com a autora, os moralistas esperam que a legenda fale a verdade sobre a
imagem, porém a legenda tem uma relação intrínseca com a interpretação de seu
autor sobre a imagem a qual se contrapõe com a falsa ideia de realidade pronta.
A autora aponta para o fato de que a legenda pode variar, e sua interferência
sobre a imagem não pode restringir a pluralidade de significados que uma foto
suscita: “a legenda é uma luva que se veste e se retira muito facilmente” (SONTAG,
2004, p. 125)
O gênero foto, a partir das reflexões da autora, nasce de uma expectativa de
consumir informação, de possuir a realidade, porém a complexa relação entre autor
e personagem, ou seja, o dialogismo que existe na atividade fotográfica não pode
ser deixado de lado na ideia de possuir a realidade. Assim, a realidade chega ao
público, por meio do que os fotógrafos, de seu lugar único, enxergam dos eventos
que fotografam. O fotojornalismo e a legenda das fotos, por mais que sejam o ápice
da expectativa de retrato fiel da realidade, estão perpassados pela posição de seus
respectivos autores e fotógrafos.
Segundo a autora, a característica estética das fotos sobrepõe-se à ética,
mesmo que a foto tenha um cunho documental perpassado por uma visão ideológica
determinada pelo contexto social e histórico do qual surgiu, com o passar do tempo,
a foto é interpretada como um objeto belo para ser apreciado.
O Embasamento teórico trouxe-nos suporte para realizarmos a releitura crítica
do nosso corpus. A relação entre o autor e a personagem na atividade estética
enfatiza a alteridade, para construir a personagem, o autor parte da sua visão de
mundo, escolhendo maneiras de expressar o seu projeto enunciativo para concluí-la.
A posição do autor em relação à personagem, segundo Bakhtin, precisa ser de
distância para que, assim, o mesmo possa concluí-la. O autor é considerado
64
também um elemento da obra, e sua posição axiológica pode ser percebida na
análise do todo da obra.
É a partir da posição exotópica que a personagem é construída. O autor, de
seu lugar único, enxerga o que a personagem não pode enxergar, e, do seu lugar
com suas escolhas valorativas, sintetiza o que vê. No conceito de cronotopo vimos
que a relação do homem com o tempo e o espaço é permeada pela visão do autor
social e historicamente situado.
A teoria bakhtiniana critica a leitura empática, pois essa não considera dois
sujeitos que têm posições diferentes de acordo com o lugar singular que ocupam
social e historicamente. Assim, postula que, durante a leitura, há o embate de
consciências, já que não é possível ao eu “experimentar” a vida do outro, mas sim
colocar-se no lugar do outro, e voltando ao seu lugar, dar significado a vida desse
outro, de acordo com a sua visão de mundo.
A análise do todo de uma obra, de acordo com a teoria bakhtiniana, precisa
levar em conta o todo axiológico. Partindo da análise do material, o analista do
discurso precisa levar em conta conceitos como o tom valorativo, alteridade, estilo,
atitude responsiva e unidades discursivas.
Esses conceitos foram explanados na conceituação dos gêneros discursivos,
os quais, por mais que tenham traços relativamente estáveis, podem refletir a
individualidade do falante, a partir das suas escolhas, e de como essas escolhas
refletem e refratam valores que permeiam a sociedade.
Os gêneros midiáticos, de acordo com Charaudeau, são caracterizados pela
função de informar, porém, mesmo que os jornalistas estejam elaborando uma
notícia, suas escolhas para a composição da mesma não são neutras, são
influenciadas pela construção do simbólico, de acordo com os tons de autoridade
social e historicamente construídos. Além disso, a lógica comercial que visa atingir o
maior número de leitores, também influencia na construção das notícias.
O gênero fotografia, que estudamos a partir de Sontag, é visto, socialmente,
como uma forma de enxergar a realidade tal como ela é. Porém é preciso, em uma
65
leitura crítica, percebermos que a visão do fotógrafo é crucial na captação das
imagens, o que evidencia o processo de alteridade.
Estudando estes pontos teóricos como a relação entre autor e personagem,
conceitos de cronotopo e exotopia, a leitura estética, a obra enquanto contexto
axiológico, e considerações sobre os gêneros do discurso – midiáticos e fotografia,
percebemos que a alteridade - a relação entre o eu e o outro, o eu e o mundo -
perpassa todos os conceitos e é característica fundamental do dialogismo.
Apresentamos, a seguir, o nosso corpus de análise.
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3 ANÁLISE DO CORPUS NUMA PERSPECTIVA BAKHTINIANA DA ANÁLISE DIALÓGICA DO DISCURSO
3.1 Apresentação do Corpus
Apresentamos neste capítulo o corpus de nossa análise, o qual é composto
por duas notícias sobre a guerra do Vietnã de 1972, uma do jornal O Estado de São
Paulo, a qual chamaremos de notícia 1, e outra do jornal Folha de São Paulo, a qual
chamaremos de notícia 2.Além disso, trouxemos uma entrevista com a vítima da
guerra do Vietnã, Kim Phúc, do ano de 2012, da revista Veja. Todos os gêneros que
trouxemos são compostos por textos e fotos, caracterizando-se assim pela verbo-
visualidade.
Esses três gêneros jornalísticos que trouxemos têm em comum o fato de
terem publicado a foto do fotógrafo Nick Ut sobre a guerra do Vietnã, tirada no ano
de 1972. Na foto, que ficou mundialmente conhecida, crianças vietnamitas correm
após terem sido atingidas por bombas de napalm, dentre elas, está a menina Phan
Thi Kim Phúc, na época com nove anos, que ficou mundialmente conhecida e, em
memória aos quarenta anos da foto, concedeu uma entrevista para a Veja, em 2012,
na qual aparece em uma nova foto, adulta e com seu filho nos braços.
A partir da leitura da entrevista poderemos conhecer a história de Kim Phúc,
enquanto vítima de guerra, a qual nos conta partes de como foi a sua vida durante e
após a guerra do Vietnã. Kim Phúc estava no Sul do Vietnã, quando foi atingida por
napalm, que queima por baixo da pele, de acordo com ela, mesmo após quarenta
anos do acidente, ainda sente dores.
Kim Phúc narra como foram suas reações emocionais nesses quarenta anos
de história em relação ao evento que a tornou mundialmente conhecida e como,
atualmente, encontrou uma maneira de aceitar que tal acontecimento pode ser
usado para o bem: participa de congressos sobre tratamento de queimaduras, é
embaixadora da boa vontade das Nações Unidas e criadora da Fundação Kim, que
dá suporte médico e psicológico a pessoas que passam por experiências
traumáticas em diversos países.
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A foto, que traz a imagem das crianças vítimas da guerra do Vietnã, tornou-se
um símbolo dos horrores da guerra e fomentou ainda mais as opiniões contrárias à
guerra. Seguem, nos próximos subitens, as notícias e a entrevista que compõem o
nosso corpus e, posteriormente, a análise dialógica do discurso imbricada tanto pelo
discurso da foto, como pelo discurso jornalístico.
3.1.1 Notícia 1 - O Estado de São Paulo
Apresentamos, a seguir, a página 7, na qual foi publicada a notícia Engano do piloto mata 30 pessoas no Vietnã, no jornal O Estado de São Paulo, em 09 de
junho de 1972, na seção “Geral”, escrita por José Antonio Novais. A parte em
vermelho é um recorte que fizemos para demarcar, dentre as demais notícias que
compõe a página, a única que iremos analisar.
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Texto da notícia 1:
A seguir, apresentamos o texto da notícia 1, o qual foi reescrito por nós, haja
vista a impossibilidade de copiá-lo do site.
Bombas de napalm caem por engano em aldeias sul-vietnamitas
Engano do piloto mata 30pessoasnoVietnã
SAIGON – Aproximadamente 30 pessoas – militares e civis – morreram e outras 20 ficaram feridas, quando dois aviões Skyraiders da Força Aérea sul-vietnamita lançaram, por engano, oito bombas de napalm sobre a aldeias de TrangBang, 40 quilômetros a noroeste de Saigon, que estava cercada por guerrilheiros do Vietcong. Aparentemente, os pilotos sul-vitnamitas confundiram os uniformes do seu próprio Exército, com os uniformes do Exército norte-vietnamita. Foram atingidos pelo napalm um batalhão de infantaria que tomava posição para enfrentar o ataque dos guerrilheiros e um grupo de civis que procurava refúgio junto a algumas trincheiras previamente abertas no centro da cidade. O ataque dos comunistas era dirigido contra o mercado da aldeia e seria possível afirmar que, por estimativa, os disparos partiam das proximidades do local de onde foram lançadas as bombas.
A maioria das vitimas civis é de velhos, mulheres e crianças. Uma menina, que se despiu completamente, pode ser vista correndo por uma estrada, com o napalm fervente, aderido às suas costas. Soldados sul-vitnamitas foram mobilizados para socorrer os feridos, em sua maioria transportados por helicópteros para hospitais localizados em Saigon. A força Aérea iniciou processo para apurar as causas do lamentável acidente. Bombardeio PHNOM PENH – Guerrilheiros comunistas mataram 18 pessoas, ontem, em ataque contra Takhmau, cidade localizada 10 quilômetros ao sul desta capital que, simultaneamente, era bombardeada com foguetes e granadas de morteiros, 10 dos quais eram atingiram o aeroporto Pochetong. Além dos mortos, 20 pessoas ficaram feridas, quando 200 guerrilheiros da Frente
de União Nacional do Cambodge – FUNK – entraram em Takhmau, para atacar uma fábrica de pneumáticos nela existente. Soldados e policiais cambodgeanos, com a ajuda da Força Aérea, conseguiram dominar os atacantes, expulsando da área os sobreviventes. Doze guerrilheiros morreram e 23 foram capturados. O bombardeio de Phnom Penh causou apenas danos materiais de pequena monta. Trata-se do quinto ataque direto a Phnom Penh desde o início da guerra. Até dezembro do ano passado, a cidade jamais fora bombardeada, embora o aeroporto Pochetong tenha sido alvo constante dos artilheiros comunistas. Em Saigon, o comando norte-americano revelou ontem que, pela primeira vez desde 16 de abril, bombardeios B-52 efetuaram 22 incursões contra território norte-vietnamita. Caça-bombardeiros, da Marinha atacaram Hanói, Haiphong, Thanh Hoa e Vinh.
Crianças fogem, uma delas sem as roupas, que se incendiaram
(NOVAIS, 1972, p.7)
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3.1.2 Notícia 2 - Folha de São Paulo
Apresentamos, a seguir, a página 2, na qual foi publicada a notícia Hanói está perdendo o fôlego, no jornal Folha de São Paulo, em 09 de junho de 1972, na
seção “Primeiro Caderno” - rubrica “Exterior”, o autor não é informado, porém o texto
é atribuído à AP – Associated Press. A parte em vermelho é um recorte que fizemos
para demarcar, dentre as demais notícias que compõe a página, a única que iremos
analisar.
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Texto da notícia 2:
A seguir, apresentamos o texto da notícia 2, o qual foi reescrito por
nós, haja vista a impossibilidade de copiá-lo do site no qual está
arquivado.
Hanói está perdendo o fôlego
WASHINGTON, (AP). – Um mês depois que o presidente Nixon ordenou o bloqueio das rotas de abastecimento para o Vietnã do Norte, os oficiais do pentágono dizem ter começado a observar uma redução no poder de artilharia das forças comunistas. Citam os seguintes indícios: uma redução na atividade de artilharia no Vietnã do Sul. Por exemplo, num dia da semana passada caíram 300 granadas de obus em Na-Loc, enquanto que nos primeiros dias da ofensiva, a artilharia norte-vietnamita chegou a disparar até 7.800 num dia.
Os peritos militares estão convencidos de que o Exército do Vietnã do Norte teve que armazenas grandes quantidades de munições na zona desmilitarizada e no Vietnã do Sul em fins de março. Contudo, estimam que o bloqueio das fontes de abastecimento, e o bombardeio sistemático das rotas utilizados pelos comboios militares norte-vietnamitas pode ter obrigado os comandantes comunistas a utilizar suas reservas. Segundo o serviço de inteligência norte-americano, transporte do material bélico para o Vietnã do Norte foi reduzido de 300 toneladas diárias para 18 toneladas atualmente.
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Soldados de
Saigon tomam setor em Hué
SAIGON E HANÓI – ( AP e
AFP) – Contingentes de fuzileiros navais sul-vietnamitas conseguiram penetrar nas linhas defensivas comunistas ao norte de Hue e penetraram ontem em território ocupado pelos norte-vietnamitas, enquanto que os ataques aéreos sobre o Vietnã do Norte alcançavam a maior intensidade das últimas três semanas. Nas proximidades de Saigon, o Exército enfrentou forças norte-vietnamitas que ameaçavam a zona leste da capital. No decorrer dessa ação, um avião sul-vietnamita lançou, por engano, napalm sobre civis em fuga e tropas governamentais. Aproximadamente mil homens enfrentaram várias centenas de norte-vietnamitas postados no povoado de TrangBang, a 40 quilômetros a noroeste de Saigon. As forças terrestres lançaram granadas de mão em combate intenso, e solicitaram o auxílio das unidades aéreas. No Camboja, os comunistas lançaram ataques terrestres e de foguetes contra Phnom Penh e Takhmau, que deixaram um saldo de pelo menos 20 mortos – entre eles 18 mulheres e crianças refugiadas em trincheiras. Os pilotos norte-americanos realizaram mais de 300 ataques contra o norte e empregaram bombardeiros gigantes B-52 pela primeira vez desde 24 de abril, segundo o comando dos Estados Unidos, visando instalações militares de toda a ordem.
Refugiados atingidos
por napalm
TRANG BANG, Vietnã do Sul, (AP) – Uma descarga de napalm lançada por bombardeiros da Força Aérea sul-vietnamita sobre TrangBang, semeou o pânico entre a população civil e os soldados que avançavam pela rodovia número Um.
Algumas pessoas morreram carbonizadas. Uma menina tirou suas roupas e correu desesperada com queimaduras graves nas costas.
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Outras crianças gritavam e choravam. Uma mulher procurava inutilmente ajuda carregando seu filho carbonizado nos braços. Disse que perdeu seus quatro filhos.
O napalm caiu a ...metros do tempo de Cao Di.
Os bombardeiros sul-vietnamitas tentavam expulsar as tropas norte-vietnamitas estacionadas nas mediações de TrangBang, na estrada número UM, a somente 40 quilômetros a noroeste de Saigon.
(ASSOCIATED PRESS, 1972, p.2)
3.1.3 Entrevista - Veja
Apresentamos, a seguir, a página da internet, na qual foi publicada a
entrevista 'A dor física permanece, mas agora eu me sinto livre', na revista Veja, em
11 de outubro de 2012, na seção “Internacional” - rubrica “Entrevista”, escrita por
Cecília Araújo. A parte em vermelho é um recorte que fizemos para demarcar, dentre
os demais textos que compõe a página, o único que iremos analisar.
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Apresentamos, a seguir, o texto da entrevista, copiado e colado da página
onde foi publicado, de maneira que se torne mais acessível à leitura.
Entrevista
'A dor física permanece, mas agora eu me sinto livre'
Kim Phúc, sobrevivente da Guerra do Vietnã retratada na famosa foto de Nick Ut, fala ao site de
VEJA sobre suas lembranças de 1972 e de como tem conseguido superar os traumas da infância
Cecília Araújo
Kim Phúc e seu filho Thomas, em 1995 (Joe McNally/Time & Life Pic/Getty/VEJA)
Em 8 de julho de 1972, no vilarejo de TrangBang, no Vietnã do Sul, uma imagem em que crianças
correm e choram enquanto a fumaça dos explosivos é vista ao fundo seria eternizada pelo fotógrafo
vietnamita Nick Ut. A foto comoveu o mundo e tornou-se símbolo da Guerra do Vietnã. A menina
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Phan Thi Kim Phúc somente se daria conta da importância daquela imagem muitos anos mais tarde.
Em entrevista concedida por telefone ao site de VEJA, ela conta que, quando viu a foto pela primeira
vez, se sentiu muito constrangida, principalmente por estar nua. “Não gostei nem um pouco daquilo,
e me perguntava por que tinham tirado uma foto tão feia”, lembra. Com a repercussão da imagem, o
governo comunista decidiu usar a figura de Kim para fazer propaganda do regime e ela foi forçada a
abandonar os estudos. Hoje, ela lamenta não ter realizado o sonho de estudar medicina em Saigon,
mas olha para a foto de uma forma diferente. “Hoje entendo que ela foi um presente poderoso para
mim. Aceito que fui aquela garota e que agora posso usar minha experiência a favor da paz”.
Na foto, Kim tinha apenas nove anos. Parte do seu choro refletia sua dor após a queimadura por
napalm (líquido inflamável à base de gasolina gelificada) em 55% de seu corpo. Ela está no Brasil
nesta semana para participar do 8º Congresso Brasileiro de Queimaduras, em Florianópolis (SC),
onde deve falar sobre o tratamento ao qual se submeteu e que incluiu 17 cirurgias. A vietnamita
mora em Toronto desde 1992, com o marido e dois filhos, Thomas, de 18 anos, e Stephen, de 15. Em
1997, foi chamada para ser embaixadora da boa vontade das Nações Unidas e criou a Fundação Kim,
que fornece suporte médico e psicológico como forma de superar as experiências traumáticas. A
instituição tem projetos em escolas e hospitais em países como Uganda, Timor-Leste, Romênia,
Tadjiquistão, Quênia e Afeganistão. Um livro sobre sua vida foi lançado em 1999, assim como um
documentário posterior. Recentemente, ela reencontrou o fotógrafo que eternizou sua imagem. Os
dois se encontraram em New Jersey, nos Estados Unidos. “Ele se tornou parte da minha família, nos
tornamos amigos muito próximos”. Leia a entrevista a seguir:
Nick Ut/AP
Phan Thi Kim Phúc, em fotografia histórica tirada por Nick Ut em 1972
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A senhora tinha apenas nove anos quando seu vilarejo foi bombardeado. Do que mais se lembra
daquele dia? Estava em casa com minha família quando os soldados do Vietnã do Sul, que nos
protegiam, vieram avisar à minha mãe que os militares do Norte estavam ocupando a nossa cidade.
Foi então que soubemos que a guerra estava se aproximando. Minha mãe decidiu levar toda a
família para um templo próximo à saída do vilarejo, porque achamos que esse seria um lugar seguro.
Mas, em tempos de guerra, nenhum lugar é seguro. Lembro-me de que as crianças não tinham
permissão para brincar longe de um abrigo antibombas. Estávamos escondidos ali com outros
moradores e soldados havia três dias, até que, depois do almoço, ouvimos o barulho de várias
explosões do lado de fora. E os adultos encontraram marcas feitas com giz nas paredes do templo, o
que significava que o local seria bombardeado em breve. Então, os soldados do Sul avisaram que
todos nós teríamos que correr para não sermos mortos. As crianças foram na frente, e os adultos
vieram atrás. De repente, vi um avião chegando muito perto de nós. Não sabia o que fazer, não
conseguia correr. Fiquei parada ali. Quando virei para trás, quatro bombas caíram. Podia ouvir o som
e ver o fogo por todos os lados. Minha roupa inteira se queimou. Então, vi fogo em meu braço
esquerdo. Tentei apagá-lo com a mão direita, mas acabei queimando-a também. Eu estava tão
assustada. Graças a Deus que pelo menos meus pés não se queimaram. Foi um milagre! Eu teria
ficado ali, sem conseguir me deslocar. O pior poderia ter acontecido. Continuei correndo, até que eu
me sentia tão cansada, que não conseguia mais correr. Então, parei e gritei: “Muito quente, muito
quente!”. Um dos soldados tentou me ajudar e jogou água fria em mim. Depois disso, perdi a
consciência. E não me lembro de mais nada.
História
1. A presença de unidades de combate americanas
no Vietnã só foi oficializada em 1965. Muitos
historiadores, porém, consideram que a guerra
começou em 1961, ano em que o presidente
americano John Kennedy enviou uma carta ao
seu colega do Vietnã do Sul, Ngo Dinh Diem,
comprometendo-se a impedir que o país fosse
unificado sob o comando do regime comunista
do norte da ex-colônia francesa.
2. 2. Considerado o primeiro grande conflito entre
tropas regulares e guerrilheiros, a Guerra do
Vietnã transformou-se em um atoleiro no qual
não se encontraria uma vitória, mas do qual os
Estados Unidos só saíram em 1975, depois que a
opinião pública americana, chocada com
imagens como a da menina queimada por uma
bomba de napalm, se voltou contra a guerra.
Quais pensamentos passavam pela sua cabeça enquanto corria e chorava no momento retratado pela foto de Nick Ut?Logo depois que me queimei, só conseguia pensar em como eu ficaria feia e deixaria de ser normal, que as pessoas me veriam de uma forma diferente. Ainda me lembro disso. Mas, depois, parei de pensar em qualquer coisa, porque estava aterrorizada demais para isso. Só continuava correndo e correndo. Como a senhora reagiu? Os primeiros 20 anos foram os mais difíceis. Achei que nunca teria um namorado, me casaria ou teria filhos. Nunca imaginei ter uma vida normal. Minha autoestima era muito baixa, por causa das queimaduras, das cicatrizes e da dor. Não fui queimada com água quente,
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mas com napalm, que queima por baixo da pele, profundamente. Fiquei no hospital por 14 meses, incluindo as 17 cirurgias que fiz e o período de reabilitação. Isso para uma garota de nove anos... Até hoje ainda sinto dor. Dependendo do clima do lugar onde estou, ela é mais forte. Hoje, meus filhos quando se machucam se lembram de mim: “Nada se compara a sua dor, mamãe”. Quais traumas permaneceram dessa época? Até hoje tenho muitos pesadelos durante a noite. Na maior parte das vezes vejo incêndios e armas que me perseguem. Eu corro sem parar até que acordo cansada e assustada. Tentei evitar por muito tempo ver filmes que tinham armas, guerra e violência. Tudo isso me levava de volta para o momento em que me queimei. Mesmo quando vejo homens fardados, a imagem de um verdadeiro conflito armado vem à minha cabeça. É horrível. Como se sentiu quando soube que uma foto sua se tornou famosa no mundo todo? Pensei: “Meu Deus, minha foto ficou famosa, mas eu não sou famosa!” Já tinha visto a imagem antes, mas só dez anos depois, aos 19, descobri que ela tinha rodado o mundo. No Vietnã, a guerra acabou e ninguém mais soube dessa foto. Ela saiu no jornal local, mas não teve tanto impacto. Me lembro de quando voltei do tratamento de queimaduras, e meu pai me mostrou a foto. Ele tinha recortado do jornal e guardado para me mostrar. Fiquei completamente chocada. Achei muito constrangedor estar nua, e todos podiam ver. Não gostei nem um pouco daquilo, e me perguntava por que tinham tirado uma foto feia. Fiquei me sentindo mal por causa do meu corpo, mesmo. Acho que é normal, todo mundo quer sair bonito numa foto. A fama teve um impacto positivo ou negativo na sua vida? No começo, não liguei muito. Fiquei levemente feliz, pois as pessoas começaram a prestar atenção em mim. Mas, depois, isso foi longe demais. Vários jornalistas me procuravam, minha história virou notícia. E minha vida ficou uma bagunça. Eu tinha um grande sonho: virar médica. E o governo me proibiu de estudar medicina em Saigon, porque eu era muito importante, precisava dar entrevistas. E isso foi muito negativo para mim. Demorou muito tempo, quase 20 anos, para eu entender a importância daquela imagem. Hoje, eu entendo que ela foi um presente poderoso para mim. Aceito que fui aquela garota da foto e que hoje posso usar essa experiência a favor da paz. Quando sua vida tomou um rumo diferente? Desde que me mudei para o Canadá, em 1992, tudo começou a mudar. Antes, achava minha vida horrível. Além das queimaduras, estava emocionalmente perturbada. Sentia ódio, raiva, amargura, e isso era muito duro para mim. Em 1982, me tornei cristã no Vietnã e aprendi a lidar melhor com esses sentimentos. Aprendi a perdoar, amar meus inimigos, como a Bíblia diz. Quanto mais rezo pelos meus inimigos, melhor eu me sinto. Eu ameaçava essas pessoas à morte. Queria que sofressem também. Hoje meu coração está curado. Ador física permanece, mas agora eu me sinto livre. Agora tenho liberdade, aprendi a perdoar, a seguir em frente, a usar minha experiência para ajudar outros que passam pela mesma dor, física ou emocional. Estou muito feliz por achar um propósito para a minha vida. Hoje posso ver o milagre que foi ser queimada e ainda estar viva. Estou muito agradecida, mas demorou um tempo para que eu aprendesse isso.
O que mudou no Vietnã depois da guerra? Não havia mais perigo, explosões, armas. Mas havia
tanto a ser feito pelas pessoas... Muitas casas foram destruídas completamente durante a guerra.
Não tínhamos onde morar ou o que comer, também faltava dinheiro. Nosso objetivo era a
sobrevivência, dia após dia. Nos últimos anos, a realidade no Vietnã tem se tornado cada vez melhor.
O sistema ainda é comunista, mas a economia está crescendo.
Qual mensagem pretende passar aos brasileiros? Queria dividir minha experiência de vida e passar a
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mensagem de que todos podem aprender a viver com amor, esperança e perdão. Se todos pudessem
aprender isso, não precisaríamos de guerra. Se aquela garotinha pode fazer isso, outras pessoas
também podem.
(ARAUJO, 2012)
Apresentamos, na próxima seção, a análise do corpus.
3.2 A releitura da foto de Nick Ut (guerra do Vietnã) e a relação dialógica imbricada
A partir da visão dialógica do discurso, analisamos o discurso da foto
juntamente com o discurso jornalístico, buscando o diálogo construído entre ambos,
e como seus sentidos reconstroem a personagem heróica de Kim Phúc.
Falamos em personagem heróica, porque os fatos narrados nas notícias e na
foto são constituídos por personagens concluídas esteticamente por parte dos
autores. Portanto, saíram do mundo real e foram para o mundo representado, ou
seja, uma pessoa, envolvida em um acontecimento que desperte interesse midiático,
torna-se personagem do relato jornalístico. Dentro desse relato, ela não é mais o
que é para si, mas é uma personagem com acabamento que vai ser lida, dentro da
sua mente, ela não tem acabamento, está sempre na incerteza do porvir, dentro de
uma notícia, ela faz parte da memória midiática. É nessa perspectiva dialógica, que
entendemos que Kim Phúc tornou-se uma personagem heróica.
De acordo com Berti-Santos (2011), para Bakhtin, um gênero é constituído
por uma forma composicional e por uma arquitetônica, assim a primeira está
relacionada à materialidade do gênero, no nosso caso o enquadramento da imagem,
e a segunda, ao projeto enunciativo do autor. Então, na análise da foto, das notícias
e da entrevista, ressaltamos que os autores ocupam um lugar singular, de onde têm
um excedente de visão, posição exotópica, para enquadrar o acontecimento.
Sobre a forma composicional, recorremos à definição de gêneros, sugerida
por Bakhtin (2010) sobre a separação entre gêneros secundários e primários, e
definimos que os gêneros jornalísticos são secundários, haja vista a complexidade
de sua elaboração e relação socialmente estabelecida.
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Ainda, sobre a forma composicional, de acordo com Charaudeau (2010), o
conteúdo temático constitui o macrodomínio abordado pela notícia, no nosso caso
temos um acontecimento bélico internacional. Ainda, de acordo com o autor, a seção
é um recorte do acontecimento em macrotemas de acordo com as grandes áreas da
informação, na qual pode haver também subdivisões ligadas ao modo discursivo –
as rubricas. No nosso caso, a notícia 1 está na seção “Geral”, a notícia 2 está na
seção “Primeiro Caderno” - rubrica “Exterior”, e a entrevista, na seção “Internacional”
- rubrica “Entrevista”.
A entrevista que compõe o nosso corpus caracteriza-se pelo testemunho, de
acordo com Charaudeau, o objeto do gênero entrevista de testemunho é trazer um
testemunho de um sujeito envolvido em um acontecimento considerado importante
para ser relatado. O autor ressalta que esse gênero visa mais à dramaticidade do
que ao aprofundamento de informações.
De acordo com Sontag (2004), o gênero foto, especialmente fotojornalismo,
tem um aspecto composicional que visa trazer a realidade, a informação. De acordo
com a autora, as legendas que acompanham as fotos jornalísticas podem nela
interferir, porém não modificam a pluralidade de significados que as fotos podem
suscitar. Diz a autora, ainda, que as legenda podem ser modificadas várias vezes
para uma mesma foto.
Começaremos a análise pelo visual, apontando características de como as
notícias foram publicadas, formatadas. A notícia 1, do jornal O Estado de São Paulo,
foi publicado no meio da página do jornal, destacando-se dentre as outras notícias
que compõem a página. Além disso, é composta por duas fotografias da guerra,
uma antes do texto e a outra, depois do texto, sendo a segunda a foto de Kim Phúc.
A manchete ocupa duas linhas, com letras grandes, e está praticamente no meio da
página do jornal, juntamente com o texto da notícia, o qual está distribuído em três
colunas e localizado no meio da página. Assim, manchete, fotos e texto ocupam
lugar de destaque na página.
A notícia 2, publicada no jornal Folha de São Paulo, tem uma formatação
diferente da notícia 1, a foto de Kim Phúc, a única foto da página, está no começo da
mesma, no canto esquerdo. Levando em conta que começamos a ler a partir do lado
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esquerdo, a foto é uma das primeiras informações que chamam a atenção do leitor
na página. As manchetes, por sua vez, não ocupam lugar de destaque, pois no
jornal há uma manchete, de outra notícia, com letras maiores do que a manchete de
nossa análise. O texto da notícia está no canto direito da foto, em uma única coluna,
muito estreita, o qual ocupa a página toda, porém não se destaca no meio dos textos
das outras notícias. Portanto, percebemos que a notícia 2 privilegiou, dentro da
página onde foi publicada, a foto de Kim Phúc, já que a manchete e o texto da
notícia não têm posição de destaque comparados a configuração das outras notícias
da página.
A entrevista, que foi publicada em ambiente virtual, é apresentada ao lado
esquerdo, ocupando, praticamente, a página inteira, apenas acompanhada por
outros links localizados em uma coluna estreita ao seu lado esquerdo. No início da
página da entrevista, aparecem a manchete, a foto de Kim Phúc adulta, o texto, a
foto de Kim Phúc na cena histórica da guerra, e, descendo a barra de rolagem do
site, há o restante do texto. Percebemos assim que, por apresentar as fotos, logo no
início da página, a entrevista apresenta um destaque para o gênero fotografia,
buscando despertar, por meio das imagens dramáticas, a atenção do leitor.
Percebemos que, tanto nas notícias, como na entrevista, que são textos
verbo- visuais, as imagens têm mais destaque dentro dos gêneros em que foram
publicadas. Fato que evidencia a função existencial, categoria de base da
enunciação informativa, conforme ressalta Charaudeau, essa função tem por
objetivo indicar fatos ou esclarecer a conduta desejada ou imposta. De acordo
também com Sontag, a fotografia é um gênero interpretado pela sociedade como
fatia da realidade. Dessa maneira, há intenção, por parte da escolha dos jornalistas,
em denunciar a realidade da guerra, o sofrimento das vítimas por meio da imagem
fotografada.
Apontadas as características composicionais – de formatação dos gêneros
analisados, levantamos os aspectos discursivos, a arquitetônica. Amorim (2012)
mostra-nos como a posição exotópica pode ser entendida por meio do trabalho de
um pintor, que tenta captar o olhar do outro e, voltando para o seu lugar, de acordo
com sua perspectiva, valores, sintetiza o que vê.
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Apresentamos a foto de Kim Phúc, retirada da entrevista que compõe o
nosso corpus; ressaltamos que a foto, abaixo, é a mesma que foi publicada tanto na
notícia 1 como na 2, porém, nessas, que são de 1972, a foto não aparece com muita
nitidez, fato que pode ser atrelado à qualidade da impressão dos jornais da época, e
a suas posteriores digitalizações para o acervo digital.
A foto é composta por crianças e soldados, sendo que as primeiras ocupam
uma posição de destaque. A menina que está no meio da foto é a personagem Kim
Phúc, a qual está sem suas roupas e com uma expressão desesperada. Além disso,
no canto esquerdo da foto, na parte da frente, há um menino chorando, na parte de
trás, ainda no canto esquerdo, há outro menino, muito pequeno, olhando para trás.
No canto direito, uma menina está de mãos dadas com outro menino, menor do que
ela. No fundo da foto, atrás das crianças, estão soldados armados.
Kim Phúc está na posição central da foto, e a própria foto ocupou posição
central nos gêneros que analisamos. Na foto, ela já ocupava um lugar central e,
ainda hoje, continua nesse lugar, mas como heroína da guerra, o que podemos
observar na foto dela adulta, publicada na entrevista do ano de 2012, analisada mais
adiante.
Os soldados, que aparecem atrás das crianças, não ocupam uma posição
solidária, temos até a impressão de que eles correm atrás delas, enquanto estas
aparecem desprotegidas e desesperadas. O choro delas e, ainda, o fato de Kim
Phúc estar nua, expressam a total vulnerabilidade a que estavam submetidas no
contexto de guerra. Já os soldados, com roupas, capacetes e armas, estão muito
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mais protegidos, embora também estejam participando do contexto violento da
guerra.
As manchetes principais, que apresentam as notícias analisadas junto com a
foto, são as seguintes:
“Engano do piloto mata 30 pessoas no Vietnã” (Notícia 1)
“Hanói está perdendo o fôlego” (Notícia 2)
As notícias foram publicadas em 1972, quando o Brasil estava na época da
ditadura, na qual a imprensa estava submetida à Lei de Imprensa, que restringia o
direito de informar, de criticar e de discordar do regime militar. Por conta disso,
provavelmente, os textos sobre a cena da foto das vítimas da guerra do Vietnã não
serão contra o regime capitalista.
Analisando as duas primeiras manchetes, que são do mesmo ano, 1972,
atreladas ao contexto histórico do Brasil na época em que foram publicadas,
levantamos o fato do apoio diplomático e financeiro proporcionado pela embaixada
dos Estados Unidos ao golpe de estado. Tal apoio, segundo Arns (1985), visava
propagar ideias anticomunistas e, em 1972, o governo estava sob o comando militar,
o qual defendia ideais capitalistas.
Discursivamente, por uma lógica também da lei de imprensa, as notícias não
poderiam ser contrárias ao lado capitalistas, assim, como a guerra do Vietnã trazia a
luta entre Sul, capitalista e apoiado pelos Estados Unidos, e Norte, comunista e
apoiado pela URSS, as manchetes constituem-se por escolhas lexicais que não
julgam negativamente a ação bélica do Sul.
O ataque de bombas, que deixou vários civis e soldados feridos, o qual foi
capturado pela imagem da foto histórica da guerra, partiu do Sul, porém as
manchetes não foram escritas de maneira a colocá-lo como vilão. A escolha do
jornalista, na manchete da notícia 1, pelo léxico “engano” ameniza responsabilidade
do exército do Sul pela ação violenta, a qual provocaram com o ataque aéreo.
Juntamente com a escolha de “engano” para caracterizar a ação, temos a escolha
de um sujeito singular, ou seja, o “piloto” é colocado como ator principal da ação,
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tirando o foco do coletivo, do exército do Sul, o qual representava a luta a favor do
ideal capitalista.
Ao mesmo tempo em que a escolha dos dois léxicos, “piloto” e “engano”,
amenizam a intenção e a amplitude dos responsáveis pelo acidente, a escolha de
“mata 30 pessoas” ressalta a violência e a injustiça do ato bélico. A manchete,
publicada em cima da foto histórica e juntamente com essa, constrói um discurso
dramático, de injustiça, e, mesmo não julgando intencional o ato, desperta o
interesse do leitor em saber mais detalhes sobre um acontecimento tão chocante.
A manchete da notícia 2, também exerce essa função de não julgar
negativamente a ação do Sul. A escolha do jornalista por colocar o nome da cidade
“Hanói”, na qual havia predomínio das tropas comunistas, como sujeito do
enunciado, traz um discurso no qual o herói, por ser uma cidade, passa por um
processo de personificação, colocando a cidade como um ser vivo, que “está
perdendo o fôlego”, apontando, portanto, para uma futura e possível derrota do
governo norte-vietnamita, ou seja, uma derrota do lado comunista. Levanta, ainda, a
ideia de que o Sul é mais forte, já que, com o seu poder bélico, fez com que o lado
oposto começasse a “perder o fôlego”, aponta para a falta de força do exército do
Norte, ou da fragilidade do comunismo.
Semanticamente, a construção “perdendo o fôlego” dialoga com a imagem
das crianças da fotografia: as quais estão correndo e podem estar também
“perdendo o fôlego”. O visual e o verbal imbricam-se para trazer um sentido único,
um sentido de fragilidade do exército do Norte e força do governo do Sul. Só que
essa força do governo do Sul, apoiada pelos Estados Unidos, também resulta em
sofrimento, ao mesmo tempo em que a manchete tem como sujeito uma cidade,
“Hanói”, a foto, contrariamente, tem como sujeito central uma criança, Kim Phúc, a
qual representa todo o sofrimento que o ser humano pode passar, enquanto
exércitos de ideais contrários lutam pelo poder.
De maneira muito sutil, percebemos que a leitura crítica da manchete
juntamente com a foto da notícia 2, traz uma crítica à guerra, principalmente ao
sofrimento causado às crianças.
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Bakhtin, quando analisa os gêneros do discurso, postula que há enunciados
de autoridade que dão o tom de acordo com a época. Percebemos, em nossa
releitura, que as manchetes, juntamente com a foto histórica, das notícias 1 e 2, são
caracterizadas pelo tom histórico e social vividos nos anos setenta no Brasil: dentro
da censura, não era permitido ir contra ao governo militar, apoiado pelos Estados
Unidos, o qual defendia os ideais capitalistas.
As escolhas individuais dos jornalistas para construírem os enunciados
apresentam seus estilos. Mesmo submetidos ao tom autoritário da censura, os
jornalistas, na relação com o fato que foi objeto das notícias, seguindo a estabilidade
do gênero, expressaram verbal e visualmente, posições axiológicas na construção
evenemencial do fato.
Os dois jornalistas, axiologicamente, em suas escolhas lexicais e visuais,
tomaram posições nas quais julgaram o governo do Sul e dos Estados Unidos mais
fortes e poderosos, em questão de força bélica, do que o governo do Norte e da
URSS. O que aponta para uma defesa do ideal capitalista, e nos mostra como, por
meio da linguagem, as escolhas feitas pelos falantes dialogam com os discursos que
permeiam, social e historicamente, o contexto no qual foram publicadas: a Guerra
Fria, que influenciou diretamente a guerra do Vietnã.
Por estarem, praticamente, proibidos de criticar o bloco capitalista,
representado pelo Sul do Vietnã no contexto da guerra, o qual foi responsável pelo
ataque que feriu as crianças da foto, os dois jornalistas procuraram valorizar, por
meio, principalmente da foto, o sofrimento ao qual os civis estavam submetidos; o
que pudemos perceber no fato da notícia sobre a guerra, nos dois jornais, serem
destacadas nas páginas em que foram publicadas. Portanto, a posição valorativa
que os dois tomaram em relação ao fato foi a de denuncia, eles procuraram, com os
recursos e a pouca liberdade de imprensa que tinham, despertar o interesse e uma
possível reflexão do público em relação à guerra do Vietnã.
Analisadas as questões discursivas suscitadas pelas manchetes das notícias
de 1972, buscamos levantar características de tempo e espaço despertadas pela
releitura das notícias e também da entrevista.
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Para entender os valores e as posições axiológicas que a foto pode suscitar,
partimos do contexto histórico e social da guerra do Vietnã, buscando assim as
vozes que permeiam essa foto. De acordo com Amorim (2012), para Bakhtin, é no
tempo e no espaço que acontecem as transformações da personagem, entendendo
que esses elementos têm relação com a visão de homem, buscamos entender a
relação entre tempo e espaço para a caracterização da guerra representada na foto.
Sabe-se que a guerra era, de certa maneira, ideológica: os Estados Unidos
estavam preocupados com a propagação do comunismo na Ásia, um dos motivos
pelo qual se iniciou a guerra do Vietnã.
Os Estados Unidos mandaram milhares de soldados americanos para o
Vietnã, e os norte-vietnamitas estavam preparados militarmente também para o
confronto com os americanos e os sul-vietnamitas.
Vimos, no contexto histórico, que a guerra do Vietnã foi uma de outras
guerras ocorridas no país, sendo que, anteriormente, houve a guerra da Indochina,
contra a França, além de anteriores conflitos com a França. Portanto, a população
vietnamita foi submetida a longos períodos de conflitos e violência, e a presença de
um colonizador fazia com que a liberdade fosse restringida, além de interferir
diretamente na cultura do povo vietnamita.
Durante a guerra, as pessoas adquirem uma visão muito particular com o
espaço e com o tempo, de acordo com Fiorin (2008), para Bakhtin, a relação entre
tempo e espaço varia e sua representação na vida das pessoas não é imutável,
muito pelo contrário, varia social e historicamente. Assim, no contexto de guerra, o
espaço, o país, a pátria, que poderiam trazer segurança pelo conforto de estar numa
cultura sua, deixam de ser seguros, por receber soldados estrangeiros e com o
poder das armas, as pessoas passam a ser refugiadas no próprio país.
Trouxemos a ideia de refugiados no próprio país como relação da concepção
de homem com o espaço, de acordo com o subtítulo da notícia, publicada no jornal
Folha de São Paulo, em 1972: “Refugiados atingidos por Napalm”. A escolha lexical
“refugiados” pelo jornalista denota toda a insegurança que os civis vietnamitas
estavam vivendo em seu próprio país.
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De acordo com a Enciclopédia do Mundo Contemporâneo, em 1951, houve a
Convenção Sobre o Status dos Refugiados, na qual refugiado é definido da seguinte
maneira:
uma pessoa que, “obedecendo ao temor devidamente fundado de ser perseguido por motivos raciais, religiosos, de nacionalidade, ou de opinião política, pertencente a um grupo social em particular, encontra-se fora de seu país de origem, que não lhe oferece segurança. (2000, p.79)
O uso do léxico “refugiados” para falar dos vietnamitas, que estão no próprio
Vietnã, poderia parecer incoerente, porém, se recorrermos ao contexto histórico,
percebemos que os Estados Unidos propunham-se a “defender a liberdade”, ou
seja, defender os vietnamitas de uma possível falta de liberdade que uma imposição
do comunismo poderia trazer ao país. Além disso, o fato da colonização francesa,
anterior à guerra do Vietnã, também fez com que os vietnamitas se sentissem
“refugiados” no seu próprio país, haja vista a interferência na língua, na política, na
relação de trabalho, na religião, na cultura em geral do país. Os nacionalistas, os
quais lutaram para defender a independência do Vietnã, podem ser vistos,
ideologicamente, como uma voz que buscava mudar essa posição de “refugiados”
dentro da própria pátria.
Essa ideia de “refugiados vivendo na própria pátria” não está apenas na
legenda, mas também na foto: as crianças, no estado de total vulnerabilidade que já
citamos, estão fugindo e sofrendo no próprio país em que vivem, no qual,
provavelmente, nasceram. A relação com o espaço físico, dessas crianças, é de
injustiça e violência.
Tratando da relação com o tempo, a possibilidade de serem atingidas por
uma bomba e morrerem em segundos, faz com que as pessoas que estão num
contexto bélico tenham uma relação muito particular com o tempo: cada segundo
passa a ser precioso para a sobrevivência.
As crianças correm na foto, elas têm pouco tempo, correm pela sua
sobrevivência, estão num espaço onde não há segurança. A dramaticidade do
acontecimento que foi enquadrado pela foto é evocada pelo discurso de Kim Phúc
na entrevista:
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Minha mãe decidiu levar toda a família para um templo próximo à saída do vilarejo, porque achamos que esse seria um lugar seguro. Mas, EM TEMPOS DE GUERRA, NENHUM LUGAR É SEGURO. LEMBRO-ME DE QUE AS CRIANÇAS NÃO TINHAM PERMISSÃO PARA BRINCAR LONGE DE UM ABRIGO ANTIBOMBAS (grifo nosso).Estávamos escondidos ali com outros moradores e soldados havia três dias, até que, depois do almoço, ouvimos o barulho de várias explosões do lado de fora. (Entrevista)
As escolhas lexicais de Kim Phúc, enquanto enunciadora do discurso sobre a
guerra, mostram como era dramática a vida da população vietnamita durante os
conflitos, os léxicos “brincar” e “abrigo antibombas” apresentam contraste entre uma
atividade tão inocente e divertida como o brincar, e um lugar tão violento como o
esconderijo para se proteger de possíveis bombas. A escolha também de “tempos
de guerra” juntamente com “abrigo antibombas” apontam para a relação de
transformação, ocorridas no tempo e no espaço, à qual estavam submetidos. A
guerra trazia transformações permeadas pelo horror, medo e morte, as quais
afetavam a relação das pessoas com o tempo e espaço.
A visão de homem no cronotopo sobre a guerra do Vietnã, despertada pela
foto e explorada nos gêneros jornalísticos, também é caracterizada pelo uso dos
léxicos “civis” e “militares”, tanto pela Folha de São Paulo, como pelo O Estado de
São Paulo. O uso desses léxicos visa separar, dentro do contexto bélico, as
personagens que têm relação direta com o combate – “militares” e os que não têm
relação direta com o combate, a população – “civis”. Porém, na guerra do Vietnã,
não havia campos de batalha, que separassem a população dos militares, vimos, no
contexto histórico, que os guerrilheiros norte-vietnamitas ficavam na floresta, sendo
que, ali, aconteciam as batalhas, os vilarejos ocupados por camponeses sofriam
também ataques.
A foto de Nick Ut mostra-nos bem essa relação de proximidade entre os civis
e os militares, já que na composição da foto há soldados atrás das crianças, na
construção jornalística de O Estado de São Paulo, as vítimas civis são
caracterizadas pela escolha lexical que trazem um peso axiológico de fragilidade, ou
seja, visam intensificar a fragilidade:
A maioria das VÍTIMAS(grifo nosso) civis é de VELHOS(grifo nosso), MULHERES E CRIANÇAS. UMA MENINA(grifo nosso), que se despiu completamente, pode ser vista correndo por uma estrada, com o napalm fervente, aderido às suas costas.(O Estado de São Paulo de 1972)
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As legendas que acompanham a foto variam de um jornal para o outro, e são
as seguintes:
“Crianças fogem, uma delas sem as roupas, que se incendiaram” (O Estado
de São Paulo de 1972)
A miséria da Guerra – Estas crianças correm desesperadas na Estrada Número Um, perto de Trang Bang, onde estavam refugiadas, depois que um avião sul-vietnamita atingiu a localidade com bombas de Napalm para desalojar uma posição inimiga. A criança nua sofreu graves queimaduras. (Folha de São Paulo de 1972)
Sontag (2004) comentou que moralistas esperam que as legendas digam a
verdade sobre as fotos, e postula que a legenda é uma interpretação da imagem,
que a verdade é relativa, além de ressaltar que as legendas podem interferir, porém
não podem restringir a pluralidade de significados que uma foto pode suscitar.
Verificamos que as legendas de um jornal e do outro são diferentes, a
primeira é bem breve, porém nos atemos ao fato do uso do verbo “fogem”, transitivo,
que pede um objeto, já que quem foge, foge de alguém ou de alguma coisa, como
na legenda não há essa referência, olhando para a foto, e vendo as crianças
“fugindo”, como sugere o discurso da legenda, podemos concluir que elas fogem dos
soldados que estão atrás dessas. O que torna o discurso ainda mais dramático, já
que os soldados correrem atrás de crianças feridas pode ser considerado um ato de
covardia, pela superioridade de força física.
Na segunda legenda, da Folha de São Paulo, dentre as escolhas lexicais, há
novamente a ideia de “refugiadas”, além disso, traz novamente o fato dos civis
sofrerem os ataques entre militares “que um avião sul-vietnamita atingiu a localidade
com bombas de Napalm para desalojar uma posição inimiga”. Caracterizando o
cronotopo como um lugar onde não há segurança e onde o tempo é precioso, onde
cada segundo é considerado para a sobrevivência.
O fato de a foto trazer a dramaticidade da guerra, o sofrimento de civis,
remete ao fato de que, durante a guerra, havia um discurso contrário a intervenção
americana no Vietnã, que era fortalecido pelas imagens trazidas por meio de fotos e
pela televisão. Vimos, de acordo com Sontag (2004), que as fotos podem fortalecer
uma posição ideológica, assim, o fotógrafo, de sua posição exotópica, buscou
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denunciar o que de mais dramático poderia ser visto pela sociedade: crianças
vietnamitas atingidas por bombas.
De acordo com Charaudeau (2010), as mídias têm o poder de informar e
buscam, por conta de uma lógica comercial, atingir omaior número de pessoas,
assim objetivam despertar o emotivo por meio da dramaticidade. Sontag (2004)
também ressalta o papel social da foto em relação com a informação. Assim, a partir
da foto da guerra, o público pode entrar em contato com uma realidade aterrorizante.
Mesmo a sociedade podendo entender a foto como uma fatia da realidade –
retrato fiel da realidade, como postula Sontag (2004), a foto é constituída pela visão
fotográfica, vemos pelos olhos do fotógrafo o que ele viu, o que ele selecionou e
considerou importante para ser fotografado.
Entendemos que o projeto enunciativo do fotógrafo dialoga com vozes
contrárias à guerra, e a materialidade da foto é caracterizada pelo dramático –
choro, desespero, desamparo, solidão. A presença de soldados caracteriza o caráter
bélico da mesma, o poder da arma que os soldados carregam, contrapõe-se à
fraqueza que a imagem das crianças traz: tão pequenas e sozinhas, sofrendo.
Tanto a foto como os textos jornalísticos, a primeira pela escolha da imagem,
o segundo pelas escolhas lexicais, buscaram trazer um voz dramática, a fim de
mostrar como a população estava sofrendo durante a guerra, de seus lugares
únicos, os autores dos gêneros analisados, buscaram dar voz a um discurso que
estava em construção na sociedade: a guerra está fazendo muitas vítimas inocentes
e frágeis demais para se defenderem.
De acordo com Bakhtin (2010), é na relação com o outro que o eu se constitui
enquanto personagem, pela visão do outro – fotógrafo, jornalistas e leitores – que
Kim Phúc, a menina que aparece na posição central da foto e nos comentários dos
textos jornalísticos, constitui-se como o símbolo do sofrimento causado aos civis
durante a guerra do Vietnã.
Todo o sofrimento que, no momento real do acontecimento era vivido pelas
pessoas na esperança do porvir, no movimento, na incerteza, nas auto-sensações,
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na notícia, tornou-se concluído e é levado ao público de acordo com as escolhas
lexicais dos jornalistas e do fotógrafo, do estilo deles.
A posição valorativa dos dois jornalistas, autores das notícias de 1972, em
relação aos dois lados da guerra: Sul e Norte, Estados Unidos e Vietnã do Norte,
aponta os Sul e os Estados Unidos como os mais fortes, detentores do poder.
Assim, percebemos que o discurso construído pelas notícias reflete o contexto
histórico da época, no qual, o Brasil, estava submetido a tons ditados por
autoridades políticas, que visavam reforças discursos a favor dos ideais capitalistas,
e, na lógica da Guerra Fria, reforçar o poder dos Estados Unidos, enquanto
representantes do capitalismo, e desmoralizar a URSS, representante do
comunismo.
A ideia de Kim Phúc como uma heroína, por ter sido símbolo de guerra e
ajudado, ideologicamente, fomentar o discurso da opinião pública contrário à guerra,
é percebido na construção do discurso da entrevista, no qual a entrevista, Kim Phúc,
declara a relação que tem com a personagem, criada a partir de sua pessoa, pela
mídia a partir da imagem da foto:
A fama teve um impacto positivo ou negativo na sua vida? No começo, não liguei muito. Fiquei levemente feliz, pois as pessoas começaram a prestar atenção em mim. Mas, depois, isso foi longe demais. Vários jornalistas me procuravam, MINHA HISTÓRIA VIROU NOTÍCIA. (grifo nosso)E minha vida ficou uma bagunça. Eu tinha um grande sonho: virar médica. E o governo me proibiu de estudar medicina em Saigon, porque eu era muito importante, precisava dar entrevistas. E isso foi muito negativo para mim. Demorou muito tempo, quase 20 anos, para eu entender A IMPORTÂNCIA DAQUELA IMAGEM. (grifo nosso) Hoje, eu entendo que ela foi um presente poderoso para mim. ACEITO QUE FUI AQUELA GAROTA DA FOTO (grifo nosso) e que hoje posso usar essa experiência a favor da paz. (Entrevista)
Ao responder a pergunta do jornalista sobre a fama, Kim Phuc ocupa uma
posição exotópica em relação à personagem vítima de guerra, construindo um
discurso sobre o discurso que a foto suscitou. Sua vida virou notícia e, como notícia,
deixou de ser uma vida aberta, fechou-se em um todo acabado emocional e
axiologicamente concluído sobre a guerra, sobre os horrores da guerra que atinge
até os mais frágeis, como as crianças. O uso de “aquela garota” demonstra a
consciência da criação de uma personagem, que foi interpretada pelo mundo,
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inclusive pela própria Kim Phúc que, ao longo do tempo, nas suas escolhas
individuais, interpretou a foto assim como o mundo a interpretou: “a favor da paz”.
A escolha lexical “paz” pela entrevistada estabelece um confronto ideológico
com a guerra. Analisaremos a seguir, como esse discurso está em consonância com
a foto de Kim Phúc adulta:
Kim Phúc e seu filho Thomas, em 1995 (Joe McNally/Time & Life Pic/Getty)
Nessa foto da entrevista, temos Kim com seu filho nos braços, temos a
transformação, os limiares entre morte e vida. As cicatrizes de suas queimaduras
apontam para o passado, no qual vivenciou a guerra e foi atingida por napalm, um
corpo fora dos padrões de beleza, símbolo do sofrimento, já o bebê, em seu colo,
com a pele lisinha, aponta para a esperança de um futuro de paz.
Diferentemente da foto histórica, na qual Kim era uma criança e foi
fotografada num momento desesperador, nessa foto ela sabe que está sendo
fotografada, pode fazer pose e preocupar-se com sua expressão. Expressão que
busca exprimir a paz, assim como o rosto do seu filho, que dorme tranquilamente em
seus braços e também está compondo o discurso de paz. Porém, esse discurso de
paz é contraposto por um passado que não pode ser esquecido, evidenciado pelas
marcas de queimaduras em suas costas, que dialogam com o discurso sobre a
guerra, a violência. Assim, de acordo com o discurso construído pela foto, a guerra
não pode ser esquecida, e deve ser usada como instrumento da paz, o que é
construído no discurso da entrevistada: “hoje posso usar essa experiência a favor da
paz.” (Entrevista)
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A foto traz para o público, então, tons dramáticos e de esperança. Dois
discursos contrários são essenciais para a construção da imagem da personagem
Kim Phúc: a guerra e a paz, o sofrimento e a esperança, tanto na foto como na
entrevista. Assim, a foto de guerra, de 1972, foi um instrumento de paz, a posição
axiológica assumida pelos que a interpretaram foi de transformação, a construção da
imagem grotesca suscitou uma resposta de mudança contra a guerra, por isso
resultou na posterior constituição da foto com a imagem de esperança – com o
bebê.
Concluímos que, a partir da foto histórica sobre a guerra do Vietnã, e das
notícias jornalísticas, vários discursos foram imbricados e resultaram na constituição
da personagem Kim Phúc, como heroína, por sua importância mundial e sua
contribuição para os discursos contrários à guerra.
Percebemos que as noções de cronotopo e exotopia relacionam-se com os
sentidos sobre a guerra, ou seja, o espaço e o tempo são estabelecidos de acordo
com a noção que o homem lhes atribuí, levando em conta a situação de guerra que
vive: o espaço torna-se perigoso, a própria pátria deixa de trazer segurança, haja
vista a presença de militares, colonizadores, que modificam o ambiente no qual
passam as batalhas e do qual surgiu a personagem vítima de guerra. O tempo
também reflete as relações do homem com a guerra, onde é necessário correr para
garantir a sobrevivência, já que o estrago que uma bomba produz leva segundos.
Os discursos contrários à guerra, que existiam no contexto histórico durante a
guerra do Vietnã, eram fomentados pelos discursos trazidos em imagens de vítimas
civis. Os jornais colocam as vítimas civis também em posição de destaque a partir
das escolhas lexicais, o que compõe a dramaticidade das notícias juntamente com a
foto.
Os jornalistas das notícias de 1972 tomaram posições valorativas nas quais
colocaram como protagonista o lado do Sul do Vietnã e os Estados Unidos, sendo
considerados mais fortes e, mesmo tendo sido os responsáveis pelo ataque às
crianças da foto, não são, pelas escolhas dos jornalistas, acusados de terem a
intenção de atingi-las. O que reflete o contexto histórico do Brasil da época.
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Kim Phúc foi uma dessas vítimas civis exaltada pela foto. De acordo com a
entrevista, que traz uma nova foto de Kim Phúc: adulta e com seu filho nos braços,
um novo discurso é construído, no qual há o embate entre guerra e paz. Esse
discurso concebe a ideia de que a paz surgiu a partir de um acontecimento violento
da guerra – o qual foi enquadrado e eternizado pela foto.
Todas essas considerações encerram a nossa análise, porém, como postula
Bakhtin, são inúmeras as possibilidades de análises, haja vista as várias relações
discursivas que compõem os gêneros socialmente estabelecidos.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A relação entre sujeitos para a constituição de si mesmos, a relação entre o
autor e a personagem para a constituição de um objeto estético e a relação entre
discursos que provém desse objeto, são relações infinitas e não podem ser
esgotadas, levando em conta a posição responsiva dos sujeitos em relação aos
enunciados.
Assim, para a constituição do discurso sobre a guerra do Vietnã, destacando
as vítimas civis de guerra, houve um embate de vozes históricas e sociais. A Guerra
Fria, uma disputa entre o mundo capitalista e o mundo socialista, foi um dos motivos
pelo começo da guerra do Vietnã, o fortalecimento do discurso americano em
defender o “mundo livre” moveu a entrada das bases militares no Vietnã, para
combater o inimigo ideológico socialista, que se manifestava no norte do país. O
discurso nacionalista, dos guerrilheiros norte-vietnamitas, que buscavam a
independência do seu país atrelada ao discurso comunista, justificou os ataques.
Percebemos que ambos os discursos, da mesma maneira que se refletem, se
refratam: os dois lados buscavam a liberdade, cada um da sua posição exotópica.
E no meio dessa disputa, estavam os civis, que, nas escolhas lexicais dos
jornalistas e na composição da foto histórica do Vietnã, eram frágeis em relação aos
ataques aéreos de bombas. Os civis, que, dentro de seu próprio país, sentiam-se
refugiados.
Sendo esse fato conhecido pelo mundo, de que pessoas inocentes, que não
tinham como se defender, e estavam sofrendo na guerra do Vietnã, o discurso
contrário à guerra começou a se fortalecer.
As mídias, como apontado por Charaudeau (2010), dentro da lógica
comercial, ao construir suas notícias e outros gêneros jornalísticos, estão buscando
atingir o maior número de público, considerando a heterogeneidade desse público,
usam a emoção para atraí-los. Ainda, dentro da lógica simbólica, trazem ao público
o que eventos considerados pertinentes para serem noticiados.
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Assim, a mídia, atingindo seus objetivos, começou a denunciar o sofrimento
causado aos civis durante a guerra, as notícias e a reportagem que analisamos são
compostas por enunciados dramáticos, tanto visual, como verbalmente.
Levando em conta que de acordo com Bakhtin (2010), todo enunciado suscita
uma resposta e está em constante relação com outros enunciados, com outros
discursos que os permeiam. Quando uma notícia é construída, de acordo com
Charaudeau (2010) não é possível ser o jornalista transparente, neutro, pressupõe-
se que o jornalista tenha uma tomada de posição, e essa tomada pode ser
resgatada pelo seu estilo, ou seja, por toda a materialidade linguística escolhida por
ele.
A posição dos jornalistas, em suas escolhas dramáticas, fortalecia o discurso
contrário à guerra, na medida em que chocavam o público com a descrição do
número de mortos, com as fotos de crianças sofrendo, escolhas que iam construindo
valores ao mesmo tempo em que dialogavam com outros valores.
Valores que traziam a ideia de como estava sendo a relação da população
vietnamita com a guerra, como esses personagens, vítimas de guerra estavam
convivendo com os conflitos, a partir da visão jornalística, da visão fotográfica.
Assim, o excedente de visão dos autores, a partir de suas posições únicas,
formação a visão dessas vítimas como personagens de guerra lidas pelo mundo.
A própria relação com o tempo e o espaço foi estabelecida de acordo com a
concepção de guerra, assim, os jornalistas trouxeram a relação das vítimas com seu
país, a relação delas com o tempo, de acordo com a perspectiva de sobrevivência.
O tom valorativo dos jornalistas, que fortalecia os Estados Unidos e a visão
capitalista, reflete o tom de autoridade ditado pelos governos militares no Brasil, os
quais, a partir da Lei de Imprensa, restringiram a possibilidade da mídia em criticar
os ideais capitalistas. Nas análises, percebemos, claramente, que as ações militares
ditadas pelos EUA e Vietnã do Sul, que causaram o sofrimento às crianças da foto,
são amenizadas pelas escolhas dos jornalistas.
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De acordo com a justificativa de nosso projeto, procuramos, por meio das
análises, uma releitura gêneros jornalísticos, para contribuir com a formação de
leitores críticos, tanto na educação formal quanto informal.
Concluímos que, de maneira nenhuma, a nossa análise, ou melhor, a nossa
releitura, esgota as possibilidades de interpretação de nosso corpus, e outras
análises podem contribuir muito para o enriquecimento de nosso trabalho e de todo
o saber acadêmico sobre leitura crítica, haja vista a concepção bakhtiniana da
atitude responsiva que todo enunciado suscita, nosso trabalho permanece aberto às
interpretações dos leitores, que, de seus lugares únicos, serão coautores de nossa
análise.
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