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Seminário Internacional Fazendo Gênero 12 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2021, ISSN 2179-510X
“A REVISTA DAS CONSTRUCÇÕES MODERNAS”: O LAR COMO ARENA
DO VIVER MODERNO A PARTIR DO PERIÓDICO A CASA.
Juliana Regina Pereira1
Marinês Ribeiro dos Santos2
Resumo: A revista “A Casa” surge em 1923 como a primeira publicação do ramo da arquitetura e
interiores voltada para um público leigo de classe média, conforme se observa nos projetos
apresentados de casas econômicas de tamanho pequeno ou médio, adaptadas ao estilo de vida das
cidades em expansão. Embora editada no Rio de Janeiro, a então capital federal, “A Casa” obteve
circulação nacional durante um período significativo, até 1952, quando foi, então, encerrada em
definitivo. No arco temporal abrangido pela publicação procuro compreender como os modelos de
moradia para a classe média propostos pela revista constroem a ideia de um viver moderno,
entendendo que as ideias de modernidade foram negociadas na arena de discussão constituída pelos
espaços domésticos. Ancoram a discussão os conceitos de cultura material e a noção de tecnologia
de gênero, como forma de avaliar a intertextualidade dos discursos apresentados pela revista enquanto
construtores de uma ideia de modernidade a ser vivenciada nos arranjos materiais do espaço do lar.
Palavras-chave: Domesticidades. Cultura material. Tecnologias de gênero.
Introdução
O presente texto é um desdobramento do processo de pesquisa que se encontra em andamento
desde 2019 junto ao Programa de Pós-graduação em Tecnologia e Sociedade da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (PPGTE UTFPR), que tem por finalidade a elaboração da tese de
doutorado que carrega o título provisório de Tecnologias do morar: domesticidades e apropriações
do moderno sob perspectiva de gênero na revista A Casa (1923-1952). Centrando-me sobre o tema
das domesticidades, examino a revista de arquitetura e interiores A Casa numa abordagem
interdisciplinar como forma de compreender os aspectos gerais do projeto moderno no Brasil do início
do século XX. Para tanto, o trabalho parte de uma análise crítica ancorada no conceito de tecnologia
de gênero desenvolvido por Teresa de Lauretis (1994), articulada ao arcabouço teórico relacionado à
cultura material a partir de Vânia Carneiro de Carvalho (2008). Desta forma procuro demonstrar a
partir da análise de diferentes tipos de moradia apresentados na revista A Casa, que o moderno não
constitui um ideal unívoco, mas se apresenta sob múltiplas versões, constituindo diferentes formas de
habitar e viver negociadas e transformadas no arco temporal compreendido pelo período de circulação
da revista. Ademais, cabe ressaltar que o processo de confecção do texto aqui apresentado é
1 Mestra em História pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Aluna regular de doutorado do Programa de
Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade (PPGTE) da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) na linha
de pesquisa Mediações e Culturas como bolsista do programa CAPES/DS. E-mail: [email protected]. 2 Doutora em Ciências Humanas pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora vinculada ao
Departamento Acadêmico de Desenho Industrial (DADIN) e ao Programa de Pós-Graduação em Tecnologia e Sociedade
(PPGTE) na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). E-mail: [email protected].
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inescapavelmente marcado pelas contradições extremadas em função do contexto histórico que se
desenrola no presente, e, por essa razão, leva em consideração o redirecionamento e
redimensionamento do trabalho com as fontes documentais, bem como a apropriação de questões
postas pela realidade pandêmica que nos confronta neste início de século.
“A revista das construcções modernas”
O surgimento relativamente tardio da imprensa no Brasil não implicou uma atividade exígua;
ao contrário, ao longo do século XIX é quase incontável o número de publicações, cuja principal
característica foi a variabilidade de duração e periodicidade (COHEN, 2012, 121), de forma que a
modernização das técnicas de impressão e ilustração, já no início do século XX, propicia a
multiplicação de títulos publicados com cada vez maior número de páginas e ilustrações, inclusive
em cores, cujas tiragens aumentavam na mesma medida em que o crescimento da malha ferroviária
permitia o incremento de sua distribuição. Atendendo principalmente a demandas comerciais, mas
também à iniciativa de dar visibilidade a determinados atores sociais, a diversificação e especialização
do mercado editorial teve como desdobramento a diferenciação entre jornais e revistas, cabendo à
revista
a especificidade de temas, a intenção de aprofundamento e a oferta de lazer tendo em vista
os diferentes segmentos sociais: religiosas, esportivas, agrícolas, femininas, infantis,
literárias ou acadêmicas, essas publicações atendiam a interesses diversos, não apenas como
mercadorias, mas ainda como veículos de divulgação de valores, ideias e interesses (COHEN,
2012, 123)
Logo, a especialização emerge num contexto em que a imprensa periódica se consolidava
como vetor privilegiado de uma lógica da configuração capitalista, ao oferecer produtos atrativos
que veiculavam ao mercado leitor as infinitas possibilidades de consumo no mundo moderno
(COHEN, 2012, 125). No segmento editorial dedicado à arquitetura, as primeiras décadas do século
XX testemunharam o surgimento de oito publicações: Architectura no Brasil em 1921, A
Construccção em São Paulo em 1923, A Casa em 1923, Architectura e Construcções em 1929,
Revista de Arquitetura em 1934, Arquitetura e Urbanismo em 1936, Urbanismo e Viação em 1938 e
Acrópole em 1938 (NERY, 2014, 3). Essas revistas tiveram papel de grande importância no processo
de consolidação das práticas em arquitetura e urbanismo no Brasil, uma vez que atuaram como arenas
de negociação de regulamentações técnicas, disputas entre tecnologias e linguagens estilísticas, e
espaço multivocal de suas práticas sociais num período de intensas transformações no campo da
arquitetura.
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Notadamente uma das mais longevas publicações do segmento, A Casa – Revista bi-mensal
de architectura e arte decorativa surge no Rio de Janeiro em outubro de 1923, tendo logo passado a
circular em edições mensais que seriam publicadas até seu encerramento definitivo em dezembro
1952, contabilizando um total de 332 edições. Destas, 292 edições, cerca de 88% do total, se
encontram digitalizadas e disponíveis gratuitamente para acesso via internet por meio da Hemeroteca
Digital Brasileira, portal vinculado à Biblioteca Nacional que viabiliza ampla consulta a seu acervo
de periódicos nacionais por meio de um sistema de busca que utiliza reconhecimento óptico de
caracteres para identificação de palavras-chave. A disponibilidade de acesso por meio digital foi
fundamental para a elaboração de fichas descritivas do conteúdo publicado pela revista, etapa de
pesquisa que tem como objetivo o desenvolvimento de um temário geral da publicação a ser analisado
no decurso da elaboração da tese. Considero, todavia, que a busca pelas 40 edições faltantes não tem
previsão de retomada, em vista não apenas das restrições, mas das responsabilidades individuais e
coletivas colocadas em quadro pela pandemia da Covid-19.
A longevidade e abrangência da publicação de A Casa – foram, afinal, 29 anos de circulação nacional
– indicam sua larga penetração tanto entre o publico especializado quanto aquele leigo interessado no
tema da arquitetura residencial e de interiores. A intenção de trazer o discurso legítimo de
profissionais da engenharia, arquitetura e artes decorativas ao público geral se encontra descrita no
editorial do primeiro número da revista, onde se explica que seu surgimento responde à lacuna de
publicações nacionais que conciliem o discurso técnico às particularidades do clima, da vida e do
estilo arquitetônico nacional (A CASA, n.1, 1923, 4). Assim, o texto assinado pela redação coloca
que:
Interessamo-nos especialmente pelo typo de construcção pequena, afim de facilitar aos
menos abastados a escolha e organisação do seu futuro lar. Os modelos que publicamos em
nossa revista, deverão servir do mesmo modo aos profissionaes, como aos leigos n’esta
seductora arte, que é a Architectura (A CASA, n.1, 1923, 4).
No entanto, a formação de gosto não era a única agenda da revista A Casa. A publicação
surge no bojo de um novo movimento de renovação urbana do Rio de Janeiro que, sob a presidência
de Epitácio Pessoa e a prefeitura de Carlos Sampaio, foi responsável pela eliminação de numerosos
cortiços e casas de cômodos no bairro da Misericórdia, bem como pela demolição do Morro do
Castelo, sob pretexto de higienização e modernização da cidade por ocasião da visita do rei Alberto
da Bélgica em outubro de 1920 e da celebração do centenário da Independência em 1922 (NERY,
2014).
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Também em 1920, a celebração de um ethos profissional da arquitetura no sentido de
promover a organização e a criação de leis reguladoras do exercício profissional nos diversos países
do continente americano culmina com a realização do I Congresso Pan-Americano de Arquitetos,
ocorrido em Montevidéu, que tem como um de seus desdobramentos mais imediatos a criação de um
Instituto Brasileiro de Architectos3, composto por vinte e sete profissionais entre engenheiros e
arquitetos, em sua maioria relacionados à Escola Nacional de Belas-Artes (OLIVEIRA, 2013, 97).
No mesmo diapasão, a fundação da revista em 1923 abre uma arena para discussão do exercício
profissional da arquitetura, na mesma medida em que cria um mostruário de circulação nacional para
os projetos elaborados por um grupo de arquitetos da capital federal A publicação recebe, na década
de 1930, o epíteto de “revista de architectura, engenharia e arte decorativa” e passa a aceitar
colaborações por via postal e promover concursos, ampliando pelas décadas seguintes a agenda de
discussão de diretrizes e de promoção do exercício profissional da arquitetura numa abordagem
pautada pela discussão de valores ideais, linguagens estilísticas e configurações materiais do
“moderno” num contexto em que as formas de morar se modificavam no ritmo do crescimento e
expansão das cidades.
Na medida em que se consolida o espaço profissional do arquiteto, a revista passa a abrir
espaço para outras negociações e disputas, e com isso se afirma como veículo de inovações técnicas
e estilísticas na produção arquitetônica brasileira, passando a se colocar como “a revista das
construções modernas”. A lacuna de dois anos no conjunto digitalizado da revista não permite ver
quais as escolhas editoriais feitas no período da publicação do afamado livro Brazil Builds:
architecture new and old, 1652-1942 (GOODWIN; SMITH, 1943), mas já em 1943 a revista aparece
com novo layout sob o título “A Casa – A revista do lar”. O formato e o conteúdo da publicação se
mantém em relativa uniformidade com os últimos anos analisados, até que em meados de 1945 o foco
da revista se desloca em definitivo da produção de casas por meio da arquitetura para a produção do
lar em suas configurações materiais e sociais, passando, por fim, a contemplar como público
preferencial “a mulher” – em especial a dona de casa – até o fim da revista em 1952, e subsequente
da falência da editora O Construtor.
Faces do morar moderno: higiene, racionalidade e privacidade
Aliada ao discurso então prevalente de higiene urbana e social, os editores de A Casa argumentam
que na construção de habitações higiênicas reside a solução das mazelas sociais e sanitárias que
3 Hoje chamado Instituto de Arquitetos do Brasil, IAB
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afligem a capital federal, conforme se observa no editorial de dezembro de 1927 que, sob o título As
‘Favellas’ vão desapparecer, defende a demolição das
choupanas que desafiam as leis do equilíbrio, cobertas por algumas folhas de zinco [onde
vivem] famílias numerosas, na mais abjecta, na mais repugnante promiscuidade, [cujas]
condições materiaes e moraes em nada differem das do “Pateo dos Milagres” descripto por
Victor Hugo (A Casa, n. 44, 1927, 17).
No entanto, o texto afirma que sem um plano de construção de
pequenas casas hygienicas [para dar conta da] elevada parecella de desabrigados que vae se
juntar à fileira dos que já vinham luctando contra a falta de moradia, agrava as já deficientes
condições sanitárias da cidade, [na mesma medida em que promove] a degradação de todos
esses seres humanos, que pensam, que raciocinam [...] e têm direito à vida ao conforto e à
saúde (A Casa, n. 44, 1927, 17).
Anunciado na capa, o editorial ocupa papel de destaque na edição da revista, apresentado sob
um cabeçalho ilustrado em bico de pena na qual se vê o mitológico arquiteto Dédalo e seu malfadado
filho Ícaro apontando – desde a colunata de um templo da Grécia clássica – em direção à Baía de
Guanabara, onde palmeiras tropicais dividem o plano com a inconfundível silhueta do Pão de Açúcar
(Figura 1). Esse pastiche do mitificado passado clássico apontando em direção ao futuro sobre o Rio
de Janeiro moderno caracteriza a seção editorial da revista, a qual já trouxera em edições anteriores
as qualidades da “moradia higiênica” sob o discurso legítimo do arquiteto, entendendo que
é complexo o problema da habitação sob o ponto de vista hygienico, problema esse que e
geral não é levado em conta pelo proprietário, absorvido como está inteiramente pelo factor
economico, único que interessa no momento (A Casa, n. 35, 1927, 10).
Figura 1: Detalhe do editorial As ‘Favellas’ vão desapparecer (A Casa, n. 44, 1927, 17).
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira (http://memoria.bn.br/)
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Se no entendimento da revista o viver moderno é, fundamentalmente, um viver higiênico, é
porque discursos cientificamente legitimados tanto de arquitetos e engenheiros, como de médicos
higienistas concorrem na construção material de um ideal de “moradia higiênica” que, de acordo com
Margareth Rago (2014) constitui o ponto de partida para a moralização do sujeito que habita – a dizer,
o trabalhador e sua família. A prevalência do determinismo social é marca do discurso legítimo, de
forma que entre especialistas vigora a ideia de que um habitar higiênico visa instituir
hábitos moralizados, costumes regrados, em contraposição às práticas populares promíscuas
e anti-higiênicas observadas no interior da habitação operária, [que] na lógica do poder
significava revelar ao pobre o modelo de organização familiar a seguir” preconizando que a
família nuclear, reservada, voltada sobre si mesma, instalada numa habitação aconchegante
deveria exercer uma sedução no espírito do trabalhador, integrando-o ao universo dos valores
dominantes (RAGO, 2014, 87).
Assim, a pedra de toque da revista é a residência unifamiliar, apresentada sob diferentes
formatos – do palacete à habitação rural –, onde a marca da forma burguesa de habitar se traduz
principalmente no modo como se especializam e se espacializam os cômodos domésticos. Deste
modo, o entendimento moderno de moradia se configura como aquele em que a economia de materiais
e ornamentos, isto é, a racionalização dos recursos, encontra a racionalização dos espaços onde
prevalece a hierarquização funcional, na forma da especialização dos cômodos, e uniformização das
relações sociais intrafamiliares, visto que “as primeiras propostas e projetos de construção
massificada, de moradias populares alcançava e regulava os moradores no interior de seus lares
mediante a definição de cada um dos cômodos residenciais” (MARINS, 1998, 162).
Na mesma tônica, o projeto do engenheiro Edgard Garcia de Souza, apresentado pela revista em 1929
(Figura 2) é caracterizado pela divisão do edifício em pavimentos que isolam os espaços de convívio
social – duas salas atendendo a diferentes funções e cozinha – no andar térreo daqueles de convívio
íntimo – os quartos e sala de banho – localizados no primeiro pavimento, celebrando assim a
privacidade tanto no interior da casa, quanto em relação ao espaço de circulação pública por meio de
um frondoso pórtico que protege o acesso ao interior da casa. Projetos como esse, voltados para os
segmentos médios, em grande medida mimetizam a lógica burguesa do habitar num contexto em que
se expandem as classes médias urbanas, atualizando a lógica que rege relações sociais e de gênero
em mediação com o espaço construído, tanto no interior como no exterior do ambiente doméstico.
Entendendo gênero como fator que impregna todos os aspectos da vida em sociedade, Carvalho
(2007) coloca que a categoria se encontra em atualização permanente por meio da ação corporal, na
medida em que tanto o corpo como as materialidades (re)produzem incessantemente formas de viver
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e perceber o mundo carregadas de determinantes sexuais. A autora coloca que os espaços da casa não
reduzem o fenômeno da produção do gênero à fixação estática de valores e sentidos, mas por meio
da ação se estabelecem o gênero do espaço, do artefato e do próprio corpo, de forma que “o uso de
uma janela, o ritual de comer ou mesmo a necessidade de sentar, deitar, recostar, relaxar não são
ações sexualmente neutras” (CARVALHO, 2007, 181).
Figura 2: Habitação Econômica (A Casa, 1929, n.59, 22-23)
Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira (http://memoria.bn.br/)
Já na década de 1930, é possível perceber em determinados projetos publicados em A Casa a
preocupação não apenas com a economia de materiais e ornamentos, mas também com a possibilidade
da moradia de classe média ser construída com a previsão de acréscimos futuros na medida em que
aumente a família e se obtenha acesso a crédito, ou, conforme a revista assevera a seu leitor
masculino, “se as suas necessidades o obrigarem e seus recursos o permitirem” (A Casa, n. 173, 1938,
39). Deste modo, são as prescrições do modelo familiar burguês que estabelecem as diretrizes para a
materialização de um morar urbano de classe média e/ou trabalhadora urbana, tanto quanto os
estreitamentos entre habitação e salubridade, conforme se observa no projeto Habitação Proletária de
J. Cordeiro de Azeredo, publicado na edição de outubro de 1938, que traz entre suas recomendações
a manutenção do maior espaço possível entre a casa e a rua. (Figura 3).
Figura 3: Casa proletária prevendo acréscimos futuros (A Casa, n. 173, 1938, 39-41)
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Fonte: Hemeroteca Digital Brasileira (http://memoria.bn.br/)
O morar moderno entre determinismos e tecnologias de gênero
O caráter disciplinar da articulação entre o morar e o trabalhar se tornariam tema de artigo em
1941, quando é publicado o texto A Habitação Popular (A Casa, n. 201, 1941, 9-12), que, escrito e
ilustrado por G. Chaussat4, não traz indicação de data ou veículo de sua publicação original, ainda
que seja possível especular que, assim como outros editoriais traduzidos e publicados por A Casa,
integrem conteúdo divulgado pelo Serviço Francês de Informação, habitualmente indicado pelo
acrônimo S.F.I.. O artigo (Figura 4) ressalta que a cidade operária avassala todo o espaço urbano
“agravando todos os males do maquinismo e a produção coletiva de grande rendimento”, pois, uma
vez que a vida não mais transcorre “no próprio local em que se explorava a propriedade”, afirma não
ser mais possível admitir que as massas se alojem nos “velhos casarões” ou nas habitações insalubres
que se
aglomeram ao longo das ruas tumultuosas, pardieiros que só têm por horizonte as fachadas
fronteiriças ou o pedaço de céu entrevisto através das frestas das cornijas [formando] um
cinturão perigoso para a sociedade e para a civilização (A Casa, n. 201, 1941, 10),
No entanto, para o autor os pobres passam a caber nas prescrições do urbanismo moderno, mas apenas
porque são vistos como uma grande multidão de trabalhadores e empregados, ou em outras palavras,
“massas populares” (A HISTÓRIA, 2004).
4 Possivelmente o arquiteto Gaston Chaussat, autor de artigos para a revista mexicana Arquitectura/México no mesmo
período (PINA, 2015, 105).
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Assim, no processo de redesignação dos espaços destinados ao trabalho (produção) e à família
(reprodução), a “desodorização do espaço privado do trabalhador” se opera de duas maneiras
principais: na designação das formas de moradia popular, conforme se observa de maneira objetiva
nas páginas de A Casa; e, de maneira subjetiva, na forma da “higienização dos papeis sociais
representados no interior do espaço doméstico” (RAGO, 2014, 87), sendo que às mulheres, na figura
da esposa-e-mãe, passa a caber a função de agente do discurso higienista na racionalidade da vida
doméstica, na medida em que, tanto médicos como publicações especializadas
procuravam aconselhar as mulheres a trazerem seus maridos e filhos de volta ao lar,
afastando-os dos “antros de perdição”, figurados pelos botequins, bares, casas de diversão e
jogo, bordéis, ou centros libertários e socialistas de cultura social (RAGO, 2007, 228).
Nesse sentido, o estatuto privilegiado das tecnologias que concorrem sobre o habitar permite
inquirir sobre a não-neutralidade dos discursos técnicos dos profissionais – da arquitetura à medicina
– que compõem a revista, entendendo-se que a escolha de determinados modelos de habitação se dá
em detrimento de outras formas de morar. Regem estas escolhas não apenas motivações técnicas, mas
também motivações sociais. Consequentemente, o escamoteamento das relações de causalidade
unidirecionais entre “o social” e “o tecnológico” gera tensões entre o que se entende por determinismo
social e o determinismo tecnológico (DAGNINO; BRANDÃO; NOVAES, 2004, 22-23).
Figura 4: Artigo A Habitação Popular, por G. Chaussat (A Casa, n.201, 1941, 9-12)
Fonte: A HISTÓRIA, 2004 (http://www.mom.arq.ufmg.br/ )
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Na visão de Chaussat, a configuração do espaço doméstico representa fator determinante na
formação de sujeitos aptos à vida social e à disciplina do trabalho, visto que a insuficiência material
na vida doméstica pode ter como consequências “complicações absurdas que podem resultar para a
mentalidade do casal e para a formação dos filhos” (A Casa, n.201, 1941, 11). Mais adiante, o autor
prescreve que diante da falta de acesso ao “bem estar e alegria de viver numa casa individual”, bem
como da ausência de infraestruturas de transporte que facilitem o acesso do “chefe de família” a seu
local de trabalho, também
na casa coletiva bem acondicionada a família da classe média pode reconquistar a liberdade
e a alegria de viver como nunca tinha imaginado [...] cada um pode ter a ilusão de
independência completa pela posse total de sua casa, desde que para isso tenha recursos
suficientes para edifica-la com dignidade (A Casa, n.201, 1941, 12).
Neste aspecto, o artigo faz eco a outro texto publicado dez anos antes, “Os Apartamentos,
factores da crise de habitações”, que investiga as origens dessa tipologia, argumentando que,
diferentemente dos apartamentos luxuosos da Paris e Viena de fins do século XIX, no Brasil estes
seriam construídos para os segmentos médios e baixos da sociedade, isto é, pessoas que trabalham e
precisam estar no centro urbano: “o apartamento é a casa de aluguel por excellencia; dificilmente se
pode alugar uma casa isolada” (A Casa, n.84, 1931, 5-6). Entendendo este pensamento como parte
de uma postura editorial de A Casa, é possível perceber, então, que a revista vem reforçar um modelo
específico de segregação tanto espacial, quanto socialmente gendrada, atendendo a uma lógica
discursiva no interior da qual os projetos de casas são apresentados como investimentos em
determinadas masculinidades/feminilidades que são caracterizadas fundamentalmente pela posse, ou
seja, por um recorte de classe.
Ao preconizar normas específicas de comportamentos gendrados, entendo que a revista atua
como tecnologia de gênero, conceito cunhado por Teresa de Lauretis (1994) que abarca os aparatos
sociotécnicos através dos quais os sujeitos são constituídos subjetivamente por interpelação de uma
norma de gênero binária e mutuamente excludente que, embora se apresente como propriedade de
um suposto dimorfismo biológico, é constituída como efeito discursivo sobre essas diferenças nos
corpos, nos comportamentos e nas relações sociais. Ao instrumentalizar esse conceito, parto do
princípio que o gênero resulta de diferentes tecnologias sociais, tais como os discursos e práticas
institucionais, científicas e cotidianas, bem como a hierarquização de gênero dos espaços físicos – de
habitação, trabalho, descanso e lazer – e demais campos sociais, aos quais se pode somar o sistema
de mídia ao qual se integra a revista A Casa.
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Considerações finais
É possível compreender a partir da leitura dos artigos publicados em A Casa, que subjazem
aos discursos progressistas da arquitetura moderna determinadas práticas, orientações e costumes que
seriam paulatinamente incorporados aos sujeitos da vida moderna em seu modo de habitar e agir
mediante negociações que têm como arena o espaço doméstico. Isto posto, entendo que é a partir da
configuração discursiva do lar e de quem o habita que são determinadas diferentes maneiras por meio
das quais se dão práticas sociais e familiares das mais diversas naturezas, que abrangem desde as
necessidades das crianças, cuidados com o corpo e a saúde, e exigências de limpeza e higiene, até a
melhor forma de dividir o tempo entre o trabalho e o descanso, as maneiras apropriadas de preparar
a comida e de cuidar das roupas, passando, inevitavelmente, pela configuração material do próprio
espaço da casa por meio da decoração de seu interior (SANTOS, 2010). Concluo, assim, que estes
são elementos característicos no sentido de conformar um modelo de domesticidade hegemônico em
cujos arranjos espaciais reverberam transformações dos sistemas de normatizações e padrões de
comportamento decorrentes, mas também constitutivos, de um período de intensa modernização
econômica e tecnológica, numa arena onde se entrecruzam marcadores de classe, de gênero, mas
também – como espero aprofundar em trabalho futuro – de raça/etnia.
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SANTOS, Marinês Ribeiro Dos. O design pop no Brasil dos anos 1970: domesticidades e relações de
gênero na revista Casa & Jardim. 2010. Doutorado em Ciências Humanas – Universidade Federal de
Santa Catarina, Florianópolis, 2010. Disponível em:
<https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/93961>. Acesso em: 6 out. 2019.
Abstract: The magazine “A Casa” first appeared in 1923 as the first publication in the architecture
industry dedicated to a non-specialized middle class readership, featuring affordable house designs
and small sized residence projects syncopated with the increased pace of life in growing urban centers.
Although edited in Rio de Janeiro, Brazilian then capital city, “A Casa” attained nationwide
distribution until 1952, when the publication was lastly discontinued. In the time span covered by the
publication, I contend to understand how the housing models for middle class living proposed by the
magazine construct the idea of modern living, taking into consideration how the negotiation of
modern ideals can take place both in the discursive arena and the domestic space. The concepts of
material culture and technologies of gender anchor the discussion as a means to evaluate the
intertextuality in the magazine discourse as constructor of an ideal modernity to be experienced in the
material arrangements of the domestic space.
Keywords: Domesticities. Material culture. Gender technologies.