UNIVERSIDADE FEDERAL DO P ARANÁ
PEDRO HENRIQUE CARRILHO FERREIRA
A SOCIEDADE PORTUGUESA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII-
DÁDIVA E HIERARQUIA NOS TEXTOS TEATRAIS DA ÉPOCA
CURITIBA
2010
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PEDRO HENRIQUE CARRILHO FERREIRA
A SOCIEDADE PORTUGUESA DA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XVIII-
DÁDIVA E HIERARQUIA NOS TEXTOS TEATRAIS DA ÉPOCA
Monografia apresentada à disciplina de Estágio
Supervisionado em Pesquisa Histórica como
requisito à conclusão do Curso de Bacharelado
com Licenciatura em História, Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná
Orientador: Prof. Dr. Magnus Roberto de Mello
Pereira
CURITIBA
2010
3
RESUMO
O estudo apresentado trata da análise de algumas estruturas da sociedade do Antigo Regime em Portugal, com enfoque principal na dádiva e na hierarquia, para que se possa entender o funcionamento desta sociedade. O conceito de representação, como definido por Roger Chartier, norteava as interações sociais, e sendo assim, o “estar em público” era um palco, e os indivíduos, os atores. A hierarquia estava presente em todas as expressões da sociedade do Antigo Regime, e a dádiva era o instrumento com que as relações se tornavam possíveis. Era a “economia da dádiva”, uma troca estabelecida entre dois indivíduos: de um lado havia os serviços, prestados por um indivíduo de classe hierárquica inferior, e do outro, as recompensas, concedida pelo indivíduo mais alto da escala social. Nas peças de teatro utilizadas como fontes para a análise destas estruturas, observa-se como as interações se desenvolviam na prática, no âmbito das relações entre patrão-criado, pai-filho e marido-esposa. Peças de teatro, em especial o entremez, fornecem informações valiosas a respeito da mentalidade da sociedade do Antigo Regime por serem idealizadas e direcionadas a um público espontâneo e influenciável, além de representar o cotidiano vivido por ele. Palavras-chave: Antigo Regime Português. Dádiva e Hierarquia. Peças de Teatro
4
ABSTRACT
The study presented deals with the analysis of some structures of the Ancien Régime on Portugal, with main focus on the gift and the hierarchy, so that it’s possible to understand how this society worked. The concept of representation, as defined by Roger Chartier, guided the social interactions, and being like this, the “being in public” was a theater stage, and the individuals, the actors. The hierarchy was present in all the expressions of the Ancien Régime society, and the gift was the instrument that made the social relationships possible. It was the “economy of the gift”, an exchange established between two individuals: on one side there was the services, conceded by an individual inferior on the social hierarchy, and on the other side, there was the rewards, conceded by an individual higher on social scale. In the theater screenplays used as sources used to the analysis of these structures, there is a realization of how these interactions developed in practice, in the domain of the relationships between lord-servant, father-son and husband-wife. Theater screenplays, especially the entremez, give valuable information about the mentality of the Ancien Régime society, because they’re idealized and directed to a spontaneous and influenceable public, besides representing the daily life of it.
Keywords: Portuguese Ancién Regime. Gift and Hierarchy. Theater
Screenplays.
5
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO................................................................................................6 2 A SOCIEDADE DO ANTIGO REGIME PORTUGUÊS ..................................10
2.1 Disposições gerais......................................................................................10
2.2 O papel da representação: o corpo e a voz................................................11
2.3 O que é a representação?..........................................................................13
2.4 A representação em sociedades de Antigo Regime...................................16
2.5 O teatro e o “estar em público”...................................................................18
2.6 As relações de poder e dominação das classes sociais do Antigo regime:
visão geral.........................................................................................................21
2.7 As instituições de Portugal no século XVIII: o casamento e a condição
feminina.............................................................................................................23
2.8 As instituições de Portugal no século XVIII: o conceito de
família................................................................................................................27
2.9 O papel e o significado dos serviçais nas relações sociais das sociedades
do Antigo Regime..............................................................................................29
2.10 As estruturas da honra e da dádiva nas sociedades do Antigo Regime...30
3 AS CARACTERÍSTICAS DO TEATRO PORTUGUÊS DO SÉCULO XVIII..37
3.1 A formação do conceito de teatro como elemento da sociedade de Antigo
Regime do século XVIII, em Portugal e na Europa...........................................36
3.2 O funcionamento do espaço teatral no Antigo Regime...............................41
3.3 As especificidades do teatro português......................................................46
3.4 As estruturas da dádiva e da hierarquia como retratadas nas peças
teatrais...............................................................................................................53
4 CONCLUSÃO ................................................................................................62
FONTES............................................................................................................65
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................66
6
1 INTRODUÇÃO
Este estudo propõe uma análise de certos aspectos relativos à
sociedade portuguesa da segunda metade do século XVIII, e por isto, do Antigo
Regime. Estes aspectos se referem aos conceitos de hierarquia e de dádiva, e
serão usadas peças de teatro como fontes para ilustrar e deixar chegar a
conclusões sobre a maneira de como estavam estabelecidos na sociedade
portuguesa da época.
O teatro era, no século XVIII, uma das principais fontes de divertimento
procurada pela população do Antigo Regime. Documentos da época ora
condenam esta forma de entretenimento, ora a elogiam. Segundo Norbert
Elias, o teatro tinha, na época, um grande apelo emocional para o público, e
por isso, poderia exercer uma grande influência sobre ele.
Sabendo-se disso, e se for considerada que a sociedade do Antigo
Regime era voltada para a forte hierarquização das classes sociais e do
respeito por esta estrutura, é assinalado de que o teatro poderia ser usado
como instrumento de dominação pelas classes dominantes. O entremez, por
sua vez, era um tipo de peça teatral que, retratando situações cotidianas da
sociedade, tinha um apelo mais abrangente a respeito de quem o assistia.
O teatro não é uma interpretação fiel da realidade, mas sim uma
idealização do que se refere à promoção de valores que deveriam ser
observados pelas camadas da sociedade. Nota-se que os enredos de peças
publicadas na época apresentam muitas vezes os personagens como tendo
intenção de fazer ações que eram reprovadas pela sociedade em que viviam.
Por exemplo, uma personagem que resolvesse não obedecer seu pai desafiava
as ordens hierárquicas estabelecidas pela sociedade e seu desafio era sujeito
de conflitos com outros personagens e de reprovação por conta do próprio
enredo, que tratava de demonizar o comportamento fora da ordem. O final
destas peças era previsível: o personagem que tinha ousado desafiar as
estruturas se arrependia e pedia perdão, e assim voltava para a conduta
padrão, que se esperava dele. Neste tipo de enredo, que será exemplificado
adiante, notam-se as duas estruturas de que o tema deste trabalho pretende
analisar: a hierarquia, revelada quando o tal personagem desafiou uma ordem
7
estabelecida superior e a dádiva, esta muito óbvia, representada pelo perdão
recebido pelo personagem após se redimir de seu desafio.
De qualquer forma o desafio às estruturas da sociedade do Antigo
Regime parece ser bastante comum, e isto levanta dúvidas sobre a
mentalidade vigente na época. Um fator importante que deve ser levado em
conta ao se estudar este tipo de sociedade é o conceito de representação,
como determinado por Roger Chartier. Este conceito não se refere ao teatro,
mas pode ser relacionado à ele, como Richard Sennett apontou, “a vida como
um teatro”.
Para que se possa entender o funcionamento da sociedade do Antigo
Regime em Portugal, é preciso fazer uma análise das estruturas que compõem
esta sociedade, e inclusive das duas estruturas propostas no tema, a dádiva e
a hierarquia. O objetivo é identificá-las e ressaltar sua importância no
funcionamento da sociedade do período em questão, ou seja, de que modo
elas se estabeleciam nas relações sociais entre indivíduos, até que ponto eles
valorizavam estas estruturas.
A sociedade do Antigo Regime aqui analisada é aquela da segunda
metade do século XVIII, um período de transformações, quando as estruturas
que compunham a sociedade estavam começando a dar espaço à novas
ideias e novos costumes, um período quando a aristocracia estava em plena
decadência e totalmente dependente do rei, e também uma época em que a
burguesia ascendia rapidamente, reivindicando privilégios e liberdades para si.
Ao mesmo tempo havia uma disposição em manter o status quo, já que não
interessava nem à burguesia nem à Corte que as “massas” se levantassem.
Em outras palavras, o recorte histórico selecionado para a pesquisa foi a última
época em que as estruturas do Antigo Regime preponderaram nas sociedades
européias. Em breve, a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas
sacudiriam a Europa e transformariam suas sociedades para sempre, mesmo
aquelas mais conservadoras.
Portugal era uma destas sociedades que era bem mais conservadora do
que a da França ou da Inglaterra, por exemplo. Por isso relutava muito mais a
aceitar as mudanças da nova época do que outras sociedades européias do
período. Isto não quer dizer, contudo, que Portugal passou incólume às
transformações. A sociedade portuguesa tinha, assim, como outras sociedades
8
do período, muita curiosidade em relação às novas modas e novos costumes,
embora os tratasse com muito mais desconfiança do que outras sociedades.
Prova disso é a forma de como estas novas “ideias” eram retratadas no teatro
português, quase sempre negativamente, como “destruidoras de famílias e de
reputações”.
Os arquétipos presentes no teatro do Antigo Regime eram figuras que
representavam determinados setores da sociedade, sendo familiares ao
público que o assistia. Deste modo, tornava-se possível que o público se
identificasse com o que o que ocorria no palco. Existia, por exemplo, o
personagem do criado, do pai, da filha, do amante, do marido. Eram
personagens que se relacionavam ao tipo de indivíduos que se relacionavam
em sua vida cotidiana, bem como aqueles para quem construíam sua estrutura
social para lidar com eles.
O que se pretende nesta pesquisa, para que se entenda de que
estruturas se procura depreender da amostra selecionada de peças teatrais, é
primeiro evidenciar o que eram estas estruturas, que importância tinham na
sociedade do Antigo Regime, dando atenção especial à sociedade portuguesa
deste período. A meta é se aprofundar no papel da representação; sobre o
“estar em público”; sobre como a forte hierarquização desta sociedade se
desenvolvia, levando em conta algumas instituições importantes como a
família, o casamento e o ambiente privado da residência; e sobre que
significado e importância o conceito de dádiva possuía nesta sociedade.
Em seguida, se faz uma apresentação sobre o que era o teatro para
uma sociedade do Antigo Regime, e de que maneira estava estabelecido nesta
sociedade, como também quais eram suas características, como funcionava,
quem era seu público e como ele se comportava, assim como porque o
entremez é o tipo mais adequado de peça para análise neste tipo de pesquisa.
Destacar-se-á, evidentemente, as particularidades do teatro português, já que
o seu público tinha características próprias um pouco diferentes daquelas de
outros países europeus.
Pretende-se usar a amostra de peças teatrais como exemplo prático das
relações sociais da sociedade em questão. Assim, se tornará possível saber
até que ponto elas podem ser utilizadas para que se possa construir uma
hipótese sobre o funcionamento e as estruturas da sociedade do Antigo
9
Regime. Ao comparar as informações fornecidas por textos teóricos com
aquelas depreendidas das peças, será possível fazer esta análise.
Basicamente, ao mesmo tempo de que as peças servem como fonte para a
pesquisa, procura-se provar a sua importância e a sua relevância para a
análise das estruturas da sociedade em questão. Ou seja, como as relações
de poder, e conceitos como a dádiva e a hierarquia, eram retratadas nestas
peças, e como este retrato contribui com informações importantes sobre a
sociedade pesquisada.
10
2 A SOCIEDADE DO ANTIGO REGIME PORTUGUÊS
2.1 Disposições gerais
A sociedade de Portugal na segunda metade do século XVIII é definida
como uma época onde a sociedade era fortemente hierarquizada, e os
elementos1 que a compunham deveriam atuar de forma a manter o regime
funcionando corretamente. Qualquer alteração no comportamento de qualquer
parte constituinte da sociedade fazia surgir temores de subversão e da ruína da
situação estabelecida.2 Em todo caso, a mudança de comportamento ocorrida
na época afetou as diversas classes sociais, inclusive com, e por causa, da
ascensão de algumas delas, como a burguesia, à níveis antes impensáveis. A
mudança, de maior parte, não afetou a aristocracia.3 Esta continuou com seu
antigo comportamento e antigas relações. Torna-se óbvio o motivo de que
temia pela mudança da sociedade.
O que poderia ser entendido como subversão incluía o vestuário,
havendo autores que, ao analisar esta sociedade, chegaram à conclusão de
que mudanças ocorridas no vestuário masculino e no feminino na segunda
metade do século XVIII causaram uma forma de subversão por parte das
mulheres.4 No que se refere à diferença do vestuário entre as classes sociais,
Richard Sennett, indica que em uma sociedade do Antigo Regime o próprio
corpo dos indivíduos era como se fosse um manequim,5 e as vestes eram um
grande indicativo sobre o papel que cada indivíduo representava na sociedade.
Desta maneira, havia limitações no que as diferentes classes sociais deveriam
vestir. Isso porque se um comerciante vestisse o mesmo tipo de roupa que um
nobre, ele estaria, de alguma forma, tentando se igualar ao nobre. Em uma
sociedade tão hierarquizada, isto não era bem visto, principalmente para as
classes dominantes. Porém, para o que tinha um status inferior, vestir-se de
1 Sobre os tais elementos, eles podiam incluir as diferentes classes sociais, os papéis dos sexos, e as formas de relações que deveriam ser estabelecidas entre as partes. 2 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989, p. 80 3 Ibidem. ps. 112-113 4 Ibidem, p. 83 5 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988, p. 99
11
maneira a parecer que pertencesse a uma classe superior era uma idéia que
entusiasmava.6
Considerando que a sociedade do Antigo Regime baseava suas
relações sociais nas aparências,7 e que os homens eram, em público, o que
representavam, é natural que aparecesse este tipo de situação “subversiva”.
Leis foram promulgadas para tentar controlar o vestuário das classes sociais,
mas tais leis nunca foram rigidamente observadas,8 possibilitando que as
classes sociais desafiassem os papeis impostos à elas pela sociedade.
2.2 O papel da representação: o corpo e a voz
Para entender o papel do teatro em uma sociedade do Antigo Regime, é
necessário entender o papel de como a representação era estabelecida nesta
sociedade. Como já foi mencionado, a sociedade em questão era baseada nas
aparências. E é desta concepção que se deve partir para que se possa
entender o conceito de representação. Sennett fez uma grande discussão em
torno da questão, centrada na sociedade mais conhecida e mais importante do
período em questão, a francesa. O estudo aqui proposto faz uma discussão em
torno da sociedade portuguesa. Por isso, adaptações de outros autores se
mostram necessárias para levar a discussão proposta por Sennett até a
sociedade em questão, embora ambas sejam sociedades do Antigo Regime, e
portanto, com características muito similares.9
Sennett observou que na sociedade urbana européia do século XVIII, os
encontros sociais deveriam ser necessariamente significativos.10 Isto significa
que os indivíduos deveriam representar um papel ao se relacionarem com
outros no plano público de suas vidas. Isto criava códigos de credibilidade que
eliminavam a necessidade de ter que se definir uns para os outros.11 Os
códigos de credibilidade tinham que ser estabelecidos nas relações de todas as
classes sociais, mas eram sobretudo imprescindíveis ao se relacionar com os
“iguais”. O fidalgo deveria representar o papel de fidalgo, o rico comerciante de 6 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988, p. 91 7 Ibidem, p. 92 8 Idem 9 Ibidem, p.88 10 Idem 11 Idem
12
rico comerciante e assim por diante. A credibilidade tinha ligação com dois
princípios, o corpo e a voz.
A importância da voz no processo de estabelecimento da representação
dos indivíduos estava ligada ao discurso. Dirigir-se a alguém, relatando um
acontecimento, não sensibilizava ninguém, a menos que o sujeito se
expressasse de uma forma significativa, como um ator o faria no teatro.12 O
discurso não era natural, ele era expressivo, e portanto, artificial.
O papel desempenhado pelo corpo, como já mencionado, era o de um
manequim, pelo qual era construída uma representação. No século XVII, o
vestuário era bem demarcado para as classes sociais, mas no século XVIII
apareceram novos ofícios, e, com isso, novas classes sociais.13 Isso gerava
problemas, como o que os representantes destas novas classes deveriam
vestir, que papel iriam representar na sociedade? Elas acabaram por adotar
estilos de vestuário de outras classes preexistentes, as mais altas possíveis.14
As aparências, fundamentais para o estabelecimento de relações na sociedade
em questão, ficavam difusas, pois se as novas classes que apareciam usavam
roupas que pertenciam a classes que já existiam, e não se enquadravam nelas,
não se podia saber com quem se estava tratando.
Sabendo-se disso, percebe-se que o corpo propriamente dito não era
importante, mas sim o que se podia fazer com ele, o que se podia representar
com ele. Isto se mostra ainda mais evidente ao se considerar o fato de que
muita maquiagem era utilizada para aumentar a representação do corpo. A
personalidade individual não tinha valor, o que interessava aos sujeitos era se
tornarem representações da classe a que pertenciam.15 Sabendo das
características que esperavam que as classes sociais possuíssem, os
indivíduos de classe respeitável tentavam se aproximar do arquétipo. O foco
era nas vestes, nos adereços (sobretudo, os do cabelo) e na maquiagem. Os
indivíduos de classes não tão respeitáveis, como já citado, apesar de impostos
a uma representatividade definida por lei, tentavam emular as características
das classes superiores, para assumirem um papel mais marcante na
sociedade.
12 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988, p.99 13 Ibidem, p. 92 14 Ibidem. p. 94 15 Ibidem. p.95
13
Segundo A. C. Martins, se for olhada a questão do vestuário pelo prisma
da sociedade portuguesa, deve-se levar em conta o conceito da “moda
francesa”. Sendo matriz das sociedades de Antigo Regime, a sociedade
francesa passou valores, que incluíam o vestuário, que estimulavam outras
sociedades do mesmo tipo a copiarem estes valores e definirem-nos como
parte integrante do comportamento da sociedade. No caso de Portugal não foi
diferente, tendo a França grande influência no comportamento da sociedade do
país. O teatro de estilo francês, por exemplo, de acordo com Martins, penetrou
na cultura portuguesa no século XVIII, e já era um exemplo tardio desta
influência.16 Mas pode-se perceber também uma certa desconfiança por parte
dos portugueses em relação a certos costumes. Lopes notou, por exemplo, que
os portugueses reprovavam a liberdade dada às mulheres francesas.17 O teatro
também pode ser usado para ilustrar essa questão, pois os textos originais
franceses eram “adaptados” à realidade portuguesa, ou seja, alterados,
destituídos de qualquer material que contrariasse o modelo da sociedade de
Portugal.18
2.3 O que é a representação?
Roger Chartier observou que a representação estava presente nos
instrumentos de dominação utilizados pelos soberanos do Antigo Regime.
Segundo ele, a força que fazia funcionar o sistema hierárquico não era
demonstrada abertamente, mas sim de forma representativa, ou seja, houve
uma multiplicação dos dispositivos que a potencializavam (marchas militares,
medalhas, louvores, narrativas, etc.), no sentido de produzir a obediência e a
submissão sem apelo à violência física direta – é a dominação simbólica.19
Para entender as idéias que Chartier propôs sobre o conceito de
representações coletivas, Francismar Carvalho observa que:
16 MARTINS, A. C. Pombal e Molière. In: _____. Revista de História das idéias. Volume 4. tomo II. O marquês de Pombal e o seu tempo. Coimbra. 1982-1983. p. 291 17 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989, p. 69. 18 MARTINS, A. C. Pombal e Molière. In: _____. Revista de História das idéias. Volume 4. tomo II. O marquês de Pombal e o seu tempo. Coimbra. 1982-1983. p. 316 19 CHARTIER. R. O mundo como representação. In: _____. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002, p. 68
14
As representações são variáveis segundo as disposições dos grupos ou classes sociais; aspiram à universalidade, mas são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam. O poder e a dominação estão sempre presentes. As representações não são discursos neutros: produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade, uma deferência, e mesmo a legitimar escolhas.”20
É certo que elas se colocam no campo da concorrência e da luta. Nas
lutas de representações tenta-se impor a outro ou ao mesmo grupo sua
concepção de mundo social: conflitos que são tão importantes quanto as lutas
econômicas; são tão decisivos quanto menos imediatamente materiais.21
Deste modo, as ditas representações coletivas, segundo Chartier,
expressam uma série de tensões que, de alguma maneira, procuram equilibrar
um pouco a balança da dicotomia entre estruturalismo e filosofia do sujeito, de
acordo com Carvalho. Ele também afirma que esta tensão resulta da
incorporação de elementos explicativos que poderiam ser de uma ou de outra
tradição intelectual.22 Teríamos, segundo Carvalho, a tensão entre
representação que é condicionada pelo social e a representação matriz
constitutiva do social, a tensão entre a função política e a função lógica das
representações, a tensão entre a representação da realidade e a realidade da
representação, a tensão entre as modalidades do fazer-crer e as formas de
crença, entre a imposição de um significado e a pluralidade de apropriações.23
As tensões, segundo Chartier, evidência de que não se pode ver os
fenômenos de forma unitária, sem a possibilidade de haver contradições. As
tensões revelam um potencial explicativo excepcional, segundo Carvalho,
porque não são constituídas por elementos não relacionados ou conectados.
Pelo contrário, elas são reveladas mediante a confecção de um caminho que
orienta os três registros de realidade nos quais os indivíduos ou os grupos
mantêm relações com o mundo social.24
Carvalho também tem informações importantes no tocante ao estudo
das representações coletivas. Ele afirma que, estudando o impacto das
representações em uma sociedade, aparecem dois caminhos teórico-
20 CARVALHO, F. A. L. O conceito de representações coletivas segundo Roger Chartier. In: _____. Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 9, n. 1. 2005. p. 149 21 Idem 22 Idem 23 Idem 24 Ibidem. p. 158
15
metodológicos possíveis para o estudo das representações coletivas. Primeiro
ele propõe o estudo da construção de identidades sociais a partir do confronto
entre as representações impostas por aqueles que detêm o poder de classificar
e nomear, e as representações construídas pela própria comunidade, seja
passivamente, seja resistindo à imposição.25 Em segundo lugar, ele propôs o
estudo da capacidade do grupo de fazer com que se reconheça sua existência
a partir da exibição de uma unidade instrumentalizada pela representação.26
Afirma Carvalho que essa proposta denota que a história cultural estaria
fazendo um duplo “retorno útil ao social”, lançando o olhar para o choque de
forças sociais que move as “lutas de representações” e para a capacidade que
o grupo tem de se fazer reconhecer como unidade e identidade.27
Chartier também propunha uma história social da cultura para uma
História Cultural da Sociedade, recusando o pressuposto de que os contrastes
e as diferenças culturais estivessem forçosamente organizados em função de
um recorte social previamente constituído. Uma das idéias que isto propunha
era a defesa de uma nova abordagem de mesmos documentos, bens e idéias,
contrastando o que eles representavam para cada vertente da sociedade.
Assim, isto significa que as regras que definiam o vestuário para cada estrato
da sociedade do Antigo Regime eram interpretadas de forma diferente por cada
um deles.
Mas o que a representação de Chartier realmente significava? Ela
designava o modo pelo qual em diferentes lugares e momentos uma
determinada realidade é construída, pensada e dada a ler por diferentes grupos
sociais.28 A construção das identidades sociais seria o resultado de uma
relação de força entre as representações impostas por aqueles que tem poder
de classificar e de nomear e a definição submetida ou resistente que cada
comunidade produz de si mesma.29 É deste ponto que a discussão da
sociedade tendo foco na representação se revela relevante, possibilitando uma
análise da forma por que os indivíduos e a sociedade concebem, ou
25 CARVALHO, F. A. L. O conceito de representações coletivas segundo Roger Chartier. In: _____. Diálogos, DHI/PPH/UEM, v. 9, n. 1. 2005. p. 158 26 Idem 27 Idem 28 CHARTIER. R. O mundo como representação. In: _____. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002, p. 71 29 Ibidem. p. 72
16
representam, a realidade e de como esta concepção orienta suas práticas
sociais.
2.4 A representação em sociedades do Antigo Regime
Para o historiador das sociedades do Antigo Regime,nas palavras de
Chartier:
Construir a noção de representação como o instrumento essencial da análise cultural é investir de uma pertinência operatória um dos conceitos centrais manuseados nestas sociedades. A operação de conhecimento está, assim, ligada ao utensílio nacional que os contemporâneos utilizavam para tornar sua própria sociedade menos opaca ao entendimento.30
Nas definições antigas, segundo Chartier, os conceitos correspondentes
à palavra "representação” mostram duas famílias de sentido aparentemente
contraditórias: Se tem, de um lado, a representação que faz ver uma ausência,
o que supõe uma distinção clara entre o que representa e o que é
representado; de outro, é a apresentação de uma presença, a apresentação
pública de uma coisa ou de uma pessoa.31 No primeiro conceito, Chartier diz
que a representação é o instrumento de um conhecimento imediato que faz ver
um objeto ausente substituindo-lhe uma "imagem" capaz de repô-lo em
memória e de "pintá-lo" tal como é.32 Dessas imagens, algumas são totalmente
materiais, substituindo ao corpo ausente um objeto que lhe seja semelhante ou
não: tais os manequins de cera, de madeira ou couro que eram postos sobre a
uma sepulcral monárquica durante os funerais dos soberanos franceses e
ingleses ou, mais geralmente e outrora, o leito fúnebre vazio e recoberto por
um lençol mortuário que "representa" o defunto,33 de acordo com as idéias de
Chartier sobre o assunto.
As formas de teatralização da vida social na sociedade do Antigo
Regime dão o exemplo mais manifesto de uma perversão da relação de
representação. Todas visam, de fato, a fazer com que a coisa não tenha
30 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In:_____. Estudos Avançados. Vol. 5. No. 11. São Paulo. 1991, tirado do site www.scielo.br 31 Idem 32 Idem 33 Idem
17
existência a não ser na imagem que exibe, que a representação mascare ao
invés de pintar adequadamente o que é seu referente. Pascal desnuda este
mecanismo da "vitrina" que manipula os signos destinados a produzir ilusão – e
não a fazer conhecer as coisas tais como são.34
A relação de representação é, desse modo, perturbada pela fraqueza da
imaginação, que considera os signos visíveis como índices seguros de uma
realidade que não o é.35 Corrompida, a representação transforma-se em
máquina de fabricar respeito e submissão,36 num instrumento que produz uma
exigência interiorizada, necessária exatamente onde faltar o possível recurso à
força bruta.
Chartier ainda afirma que toda reflexão engajada sobre as sociedades
de Antigo Regime só pode inscrever-se na perspectiva assim traçada,
duplamente pertinente. Por considerar a posição "objetiva" de cada indivíduo
como dependente do crédito que aqueles de que espera reconhecimento
conferem à representação que dá de si mesmo. Por compreender as formas de
dominação simbólica, pelo "aparelho" ou pelo "aparato” como o corolário da
ausência ou do apagamento da violência imediata. E portanto, no processo de
longa duração de erradicação da violência, tornada monopólio do Estado
absolutista, que é preciso inscrever a importância crescente das lutas de
representação, cuja problemática central é o ordenamento, logo a
hierarquização da própria estrutura social.37
Chartier ainda propôs uma discussão sobre as práticas culturais das
formas de exercício de poder. Ele critica a posição da historiografia francesa, a
qual afirma se fundar sobre o primado da liberdade do sujeito, pensado como
livre de toda e qualquer determinação, e privilegiando a oferta de idéias e
aparte refletida da ação, uma tal posição obstina-se numa dupla importância:
ignora as exigências não sabidas pelos indivíduos e que no entanto regulam –
aquém dos pensamentos claros e muitas vezes apesar deles – as
representações e as ações38; supõe uma eficácia própria às idéias e aos
discursos, separados das formas que os comunicam, destacados das práticas 34 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. In:_____. Estudos Avançados. Vol. 5. No. 11. São Paulo. 1991, tirado do site www.scielo.br 35 Idem 36 Idem 37 Idem 38 Idem
18
que, ao se apropriarem deles, os investem de significações plurais e
concorrentes.39 Sua perspectiva é outra: ele quer compreender a partir das
mutações no modo de exercício do poder (geradores de formações sociais
inéditas) tanto as transformações das estruturas da personalidade quanto as
das instituições e das regras que governam a produção das obras e a
organização das práticas.40 A ligação estabelecida por Norbert Elias entre, por
um lado a racionalidade de corte – entendida como uma economia psíquica
específica, produzida pelas exigências de uma forma social nova, necessária
ao absolutismo – e, por outro, os traços próprios à literatura clássica – em
termos de hierarquia de gêneros, de características estilísticas, de convenções
estéticas – designa com acuidade o lugar de um trabalho possível.41
Mas é também a partir das divisões instauradas pelo poder (por exemplo
entre os séculos XVI e XVII entre razão de Estado e consciência moral, entre
patronagem estatal e liberdade de foro íntimo) que devem ser apreciadas tanto
a emergência de uma esfera literária autônoma como a constituição de um
mercado de bens simbólicos e de julgamentos intelectuais ou estéticos.
Estabelece assim um espaço da crítica livre onde se opera uma progressiva
politização, contra a monarquia do Antigo Regime de práticas culturais que o
Estado tinha durante algum tempo capturado em seu proveito – ou que tinham
nascido como reação a seu ascendente, na esfera do privado.42
2.5 O teatro e o “estar em público”
Aplicados ao Antigo Regime português, os conceitos discutidos por
Chartier mostram a relevância em se tratar dos relacionamentos entre os
elementos que compunham esta sociedade. As “tensões” entre eles revelam
muito sobre seus comportamentos. As aparências apresentadas por Sennett
denotavam representatividades. Se elas eram a base da sociedade do Antigo
39 CHARTIER, R. O mundo como representação. In:_____. Estudos Avançados. Vol. 5. No. 11. São Paulo. 1991, tirado do site www.scielo.br 40 Idem 41 ELIAS, N. A sociedade de corte. Rio de Janeiro, 2001. ps. 108-110 42 CHARTIER. R. O mundo como representação. In: _____. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Trad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002, p. 63
19
Regime, então as representações contidas nela eram baseadas nas
aparências.
Sennett afirmou que “não havia separação entre o teatro e a rua”, que
ambos mostravam uma ênfase na representação de papéis.43 Sabendo-se
disso, é difícil descobrir quem imitou quem: levando em consideração que a
sociedade está em perpétua mutação, e que o teatro já existia há muito tempo,
afinal quem emulava o comportamento um do outro, a sociedade ou o teatro?
Por um lado, nota-se que o teatro era feito para o povo, visando atrair públicos,
e por isso tentava agradar estes públicos. Nada mais natural de que ele
emulasse a mentalidade “das ruas”. Por outro lado, como apontado por
Sennett44 e Elias,45 a sociedade européia do século XVIII começou a nortear as
suas relações sociais baseadas na forma de como se davam no teatro. Sennett
inclusive cita fontes da época em que se constata que “não havia mais
separação entre o teatro e a rua”. Assim como ocorria com os atores, os
indivíduos também adotavam um figurino que os fizesse representar um papel
na sociedade. É então que se consegue entender melhor a importância em se
reservar certos tipos de vestuários e de atuações em público para
determinadas classes sociais, ao se notar que a própria vida em público era
vista como um teatro, como uma representação. Assim como o ator buscava
obter a credibilidade do papel que representava (por exemplo, se estivesse
representando um fidalgo, deveria fazer parecer ao público que era um fidalgo),
o indivíduo deveria fazer parecer para os outros que ele era quem era (um
fidalgo de verdade deveria proceder como o ator, tanto no discurso como na
aparência).
Sennett ainda teve mais observações interessantes no tocante à idéia de
“ver o mundo como um palco”. Ele percebeu que ao se transformar em um ator
do âmbito público, o indivíduo acaba por provocar uma espécie de divórcio
entre suas ações e sua natureza.46 Isto tornava a moralidade presente na
sociedade mais leve, e com isso o indivíduo “se divertia mais”. Como o caráter
das ações e o caráter dos atores eram separados, se tornou possível que se
43 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p.94 44 Ibidem, p. 97 45 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro, 2001.p. 115 46 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 141
20
pudesse censurar um vício, ou uma imperfeição, sem que se precisasse
demonstrar aversão ao praticante deles.47
A representação, tanto na vida real como no teatro, era constituída de
uma ficção, e todos sabiam disso. No entanto, os indivíduos acreditavam
genuinamente nestas representações, tanto nas de si próprios como nas dos
outros, e reagiam emocionalmente à elas.48 A isto Sennett chamou de
“paradoxo da representação”, baseando-se nos escritos de Diderot.
Sennett também apresenta a visão de Rousseau, o qual afirmou ser o
maior escritor sobre a vida urbana49 do século XVIII. Este filósofo era contra a
vida cosmopolita das cidades grandes e denunciava a artificialidade das
relações sociais estabelecidas nelas. Em tal ambiente, segundo ele, o próprio
cerne do ser humano era corrompido, pois este começava a buscar a fama
como um fim em si mesmo, ou seja, ser conhecido, reconhecido, singularizado,
construir uma reputação. O “lugar” que os indivíduos tinham na sociedade,
segundo Rousseau, era também artificial, estabelecido pelo Poder Maior, ou
seja, pelo Estado.50 A cidade como um teatro e a sociedade como artistas era,
segundo o filósofo um desastre moral.51 Rousseau também condenava o
próprio teatro, afirmando que era nele que os indivíduos procuravam modelos
de comportamento.52 Com esta idéia, Rousseau defendia a censura no teatro,
de maneira a promover bons modelos de comportamento para os que o
assistiam. Esta idéia (o teatro usado como influência para o “bom
comportamento” dos indivíduos na sociedade) não é exclusiva do filósofo,
tendo muitos que pensavam da mesma maneira, especialmente, aqueles que
regulavam o teatro em Portugal, sendo inclusive prevalente no país, cuidadoso
com a “manutenção dos costumes” e com a “minimização da influência
estrangeira”.
O teatro é citado por muitos autores que tratam de sociedades do Antigo
Regime como sendo um dos lugares onde se havia uma interação com a
esfera pública da vida pessoal. Outros lugares importantes eram os cafés e os 47 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988 48 Ibidem. ps. 146-147 49 É importante se notar que a discussão da sociedade do Antigo Regime aqui proposta se refere, por excelência, à vida urbana. A vida rural, e os conceitos e representações atribuídos á ela, podiam se dar de forma diferente. 50 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 152 51 Ibidem. p. 153 52 Ibidem. p. 154
21
clubes, lugares onde se podia conversar livremente e onde a hierarquia parecia
desaparecer.53 Outro lugar de destaque era o parque, que possibilitava o
costume do passeio. Neste caso a intenção era o contato breve que se poderia
estabelecer com pessoas de várias classes sociais, como o rei acenando para
um violinista. Apesar de populares na Inglaterra e na França, em Portugal
nenhum destes lugares (exceto o teatro) conseguiu ter sucesso.54 Os jardins
reais de Lisboa, por exemplo, ficavam às moscas. Isto por causa de certas
peculiaridades da cultura portuguesa, que olhava com desconfiança a respeito
de importações estrangeiras. As relações sociais em Portugal se davam em
missas, touradas (comuns à cultura ibérica), e nas festas populares.55
2.6 As relações de poder e dominação das classes so ciais do Antigo
regime: visão geral.
Para se entender as relações entre as diferentes classes sociais no
Antigo Regime, é necessário primeiro entender que o conceito de que todos os
seres humanos têm direito à felicidade é moderno, assim como o que afirma
que todos são iguais perante a lei. Na verdade estes conceitos já estavam
formulados no século XVIII, mas faziam parte apenas dos escritos de
pensadores Iluministas. Não estavam engendrados na sociedade. Havia um
consenso geral de que a Natureza havia definido os homens de forma desigual.
Em uma sociedade do Antigo Regime, a palavra “popular”, nem sempre
tinha o mesmo significado da palavra usada atualmente. Na época, o “povo”
era visto como algo genérico, equivalente a todos aqueles que não possuíam
títulos de nobreza.56 Segundo Silvia Humold Lara:
As relações de poder eram necessariamente relações de dominação, e aqueles que não possuíam poder, tinham que se apropriar de instituições e mecanismos de política e do governo, para fazê-lo funcionar de algum modo na direção de seus objetivos e interesses.57
53 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988, ps. 109-113 54 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989, ps. 156-157 55 Ibidem, ps. 147-159 56 LARA, S. H. Modos de governar. In: ____. Idéias e práticas políticas no império português, séculos XVI-XIX. Org. BICALHO, M F., FERLINI, V.L. A. Alameda, São Paulo, 2005. p. 34 57 Ibidem. p. 35
22
Norbert Elias, em seu estudo sobre como a sociedade de corte era
estabelecida na época do Antigo Regime, notou que a tal “corte” era uma vasta
extensão da casa e dos assuntos domésticos do rei e de seis dependentes,
incluindo todas as pessoas que faziam parte daquela casa.58 Ela descende da
forma de dominação patriarcal que se mostra nos domicílios. A dominação
patriarcal, segundo o autor, é feita sob medida para satisfazer necessidades
domésticas do senhor,59 seus assuntos pessoais e privados. A dominação
“política” de um senhor sobre os outros, não submetidos ao seu poder
doméstico, significou a incorporação de relações de dominação que diferem
quanto ao grau e conteúdo, mas não quanto à estrutura. Esta sociedade era
articulada hierarquicamente em todas as suas manifestações.60 Estas
definições ajudam a entender como as relações sociais eram montadas no
Antigo Regime. Pelo que disse Elias, parece que os indivíduos pertencentes à
sociedade de corte baseavam as relações de dominação a partir do
patriarcalismo doméstico, significando que aqueles hierarquicamente inferiores
eram vistos como serviçais, e isto não ficava restrito ao âmbito doméstico,
principalmente ao se tratar do rei e da aristocracia. Esta aristocracia, como
colocou Elias, tinha papel duplo: perante aqueles que não possuíam títulos de
nobreza eles esperavam ser tratados como senhores, mas diante do rei eles
eram os serviçais. Na época em questão, o século XVIII, a nobreza francesa
estava perdendo sua influência e afundados em dívidas, muitos migraram para
a corte, para viver junto ao rei. Diferentemente do que acontecia na Idade
Média, quando os membros da aristocracia tinham suas próprias terras,
próprios serventes e própria fortuna, podendo ser independentes do monarca,
a situação era diferente no século XVIII, pois com a ascensão do regime
absolutista, o poder passou a se concentrar nas mãos do rei. Ao se mudar para
a corte, a aristocracia estava recebendo um favor do rei, uma dádiva, fato que
a deixava comprometida a desenvolver relações de submissão com o rei.
Estas relações foram discutidas por Elias como fazendo parte da
sociedade francesa, mas segundo afirma Lara,61 e Fernanda Olival,62 tais
58 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro, 2001.p. 66 59 Idem 60 Ibidem, p. 68 61 LARA, S. H. Modos de governar. In: ____. Idéias e práticas políticas no império português, séculos XVI-XIX. Org. BICALHO, M F., FERLINI, V.L. A. Alameda, São Paulo, 2005. p. 38
23
características também poderiam ser aplicadas a Portugal, já que o processo
de centralização do poder e da submissão por parte da aristocracia perante o
rei não era exclusivo da França.
Apesar de serem percebidas como uma camada genérica, o que era
chamado de “povo” tinha muitas hierarquizações, que emulavam suas relações
a partir do modelo de como a aristocracia o fazia.63
2.7 As instituições de Portugal no século XVIII: o casamento e a
condição feminina
Se as relações de dominação das sociedades do Antigo Regime tinham
base no sistema de dominação familiar, é interessante analisar como
funcionava este sistema. Para isso temos os escritos de Antonio Manuel
Hespanha, que dissertou várias vezes sobre o funcionamento da instituição
familiar. Hespanha é um historiador centrado nos estudos de Portugal, mas
neste caso ele afirma que as estruturas discutidas podem ser aplicadas à toda
a Europa do Antigo Regime.64 Então, Hespanha começa discutindo o
casamento, o qual afirma ser um contrato entre duas partes, que tinha três
funções, a procriação, o prosseguimento da linhagem e o interesse
econômico.65 A primeira destas funções se liga diretamente com as duas
seguintes. Com o prosseguimento da linhagem porque deverá haver um filho
varão que assuma as responsabilidades de prosseguir a viabilidade econômica
da família. E com o interesse econômico, pela existência de mão-de-obra para
trabalhar.66 Assim, o casamento era tudo menos idílico. Nada de amor, muito
de objetividade. O casamento era nada mais do que um acordo discutido entre
os pais de um rapaz e de uma moça,67 ou seja, um acordo estritamente
econômico de viabilização das famílias. Se no meio rural o casamento era visto
como meio para continuação do sustento da família, para a burguesia urbana
ele era ainda mais ambicioso, tendo como objetivo a ascensão social de uma 62 OLIVAL Fernanda. Um rei e um reino que viviam da mercê. In:____. As ordens militares e o estado moderno; Honra, mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa. Estar. 2001. ps. 16-32 63 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte. Rio de Janeiro, 2001.p. 68 64 HESPANHA, A.M. XAVIER. A.B. A representação da sociedade e do poder. In:____. História de Portugal IV: o Antigo Regime. Dir. HESPANHA, A. M. Lisboa. 1993. p. 322 65 Ibidem. p. 77 66 Ibidem. p. 322 67 Ibidem. p. 78
24
família. Casamentos entre classes sociais diferentes eram raros, mas mesmo
entre uma mesma classe poderia haver um grande contraste no que se refere à
riqueza e à influência de certos indivíduos comparados a outros. Hespanha
aponta que os casamentos eram autorizados a partir dos 12 anos, para as
mulheres, e dos 14, para os homens.68 É importante a discussão sobre o
casamento no Antigo Regime pois este era um tema muito recorrente em
peças de teatro da época. Deve-se observar que havia contrastes entre a visão
real e a teatral sobre o casamento. Como última observação sobre o
casamento em sociedades do Antigo Regime, Hespanha observou que havia
algumas diferenças entre as sociedades católicas e protestantes,69 embora o
casamento tivesse a mesma finalidade nas duas sociedades. O casamento não
era um sacramento para protestantes, mas uma instituição divina, não melhor
do que o celibato, que era produzido por um acordo mútuo.
Quanto à condição feminina do Antigo Regime, Hespanha afirmou que a
mulher devia ser absolutamente submissa ao homem.70 O marido detinha a
plena autoridade, impondo à mulher seu nome, seu domicílio e sua condição
social. E mais, ele detinha o controle sobre todos os bens da família, mesmo
aqueles pertencentes à mulher, já que esta era julgada como desprovida de
capacidade jurídica, para reivindicar qualquer coisa.71 Sobretudo a mulher
portuguesa, que era uma das que tinham menos liberdade entre todas as
mulheres européias.72 O papel de submissão imposto à mulher na sociedade
do Antigo Regime se mostra evidente ao se analisar documentos da época,
que faziam apologia do “sexo fraco”, frequentemente baseadas em passagens
bíblicas.
Se na casa e na relação a autoridade era do marido, ou seja, do homem,
nas tarefas domésticas havia uma partilha: para o homem as tarefas
profissionais, e para mulher as tarefas domésticas e a educação dos filhos.73
Lopes tem mais algumas colocações sobre a condição feminina no Antigo
68 HESPANHA, A.M. XAVIER. A.B. A representação da sociedade e do poder. In:____. História de Portugal IV: o Antigo Regime. Dir. HESPANHA, A. M. Lisboa. 1993. p. 78 69 Idem 70 Ibidem. p. 79 71 Idem 72 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989, ps. 41-52 73 HESPANHA, A.M. XAVIER. A.B. A representação da sociedade e do poder. In:____. História de Portugal IV: o Antigo Regime. Dir. HESPANHA, A. M. Lisboa. 1993. p. 79
25
Regime. Para ela, a condição das mulheres solteiras era de ainda mais
submissão e menos liberdade do que as casadas, pois a família tinha a
obrigação de “proteger” as mulheres da “maldade” do mundo.74 Uma vez
casadas, as mulheres poderiam começar a gozar de certa liberdade. Poderiam,
por exemplo, sair de casa, ir à lugares públicos, à bailes.75 Solteiras, não
podiam nem ir à missa, muitas vezes.76 Sendo assim, havia um desejo e uma
busca pelo casamento por parte das mulheres solteiras. Além disso, Lopes
observou que havia uma reivindicação da felicidade no casamento por parte da
mulher,77 a despeito das relações estabelecidas, como disse Hespanha, de que
o casamento era um acordo estritamente econômico. Este tema, a tensão entre
felicidade e interesse econômico no casamento, era comum no teatro
português da época, sobretudo nos entremezes, onde era inclusive o tema
dominante.
Lopes ainda revela que as mulheres não aceitaram a condição na qual
estavam submetidas de bom grado, houve resistência e rebeldia por parte
delas, e elas acabaram por conseguir mais liberdade.78 Este é outro tema
recorrente no teatro português da época, o desejo da mulher de “alargar” seu
espaço. Entretanto, segundo mostra Lopes, a mentalidade vigente não era
exatamente favorável à condição feminina. A mulher era vista como um ser
perigoso,79 que poderia fazer ruir as instituições estabelecidas. Se era difícil
controlar os relacionamentos públicos das mulheres, se procurou ao menos
isolar os sexos, ou seja, fazer com que homens e mulheres estivessem
separados em todos os eventos públicos, inclusive missas. Esta situação, foi,
segundo Lopes, única de Portugal,80 não havendo este tipo de esforço em
outras nações da Europa. Foram relatados documentos que mostram o
espanto de estrangeiros em Portugal ao ver que nos bailes, por exemplo, os
homens ficavam em um lugar e as mulheres em outro.81 Esta situação já
estava presente desde o século XVII, e teve continuidade no século seguinte.
74 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989. p 114 75 Ibidem. p. 153 76 Ibidem, p. 112 77 Ibidem. p. 115 78 Ibidem. ps. 118-119 79 Ibidem. p. 17 80 Ibidem. ps. 49-50 81 Idem
26
Houve um impulso na segunda metade do século XVIII que visava
orientar Portugal a lhe dar um lugar melhor diante das demais nações. Isto
significa que a nação não queria mais ficar diferente das demais nações
européias no que se refere aos costumes, segundo nos conta José Gentil da
Silva.82 O autor também afirma que a especificidade feminina, elaborada desde
o Renascimento, com a ajuda de alguns textos clássicos convenientemente
escolhidos era um elemento da separação dos sexos.83 A separação dos
sexos podia ser artificial, mas era útil para as estruturas políticas e sociais da
Europa da Idade Moderna.84 Silva também confirmou a idéia de Lopes e de
Hespanha de que a situação da mulher portuguesa era de mais isolamento do
que era normal na Europa daquela época. Portanto, ela não seguia
perfeitamente a regra européia civilizada.85 Silva também concorda com Lopes
a respeito de que as mulheres casadas tinham mais liberdades do que as
solteiras. No que se refere à seleção de pretendentes, Silva mostra um novo
conceito, o de que o status do pretendente era mais importante do que sua
fortuna.86 Assim, isto parece revelar que a reputação era mais importante do
que o dinheiro, na sociedade em questão. Isto desvirtua a associação entre
poder e dinheiro, mostrando que os dois não são sinônimos nesta sociedade,
ao contrário do que se esperaria de uma sociedade mais moderna. A liberdade
das mulheres casadas em relação às solteiras se torna mais clara ao se notar
que as mulheres casadas eram toleradas a exercerem ofícios na sociedade.87
A importância da mulher na vida cultural e política na sociedade
portuguesa do Antigo Regime foi definida por Silva como sendo tão importante
como a do homem, pois ela contribuía para a formação da opinião dele e de
suas escolhas.88 A Europa moderna, e Portugal não estava excluído, formou
um equilíbrio precário, exigindo que todas as potencialidades humanas se
desenvolvessem. Silva definiu a sociedade de representações de aparências
do Antigo Regime como um lugar onde a “sensibilidade contava pouco e a
82 SILVA, J. G. A situação feminina em Portugal na segunda metade do século XVIII. Revista de história das idéias. Coimbra. v. 4. tomo I. 1982-1983. O marquês de Pombal e o seu tempo. p. 143 83 Acrescentando-se às referencias da Bíblia. 84 SILVA, J. G. A situação feminina em Portugal na segunda metade do século XVIII. Revista de história das idéias. Coimbra. v. 4. tomo I. 1982-1983. O marquês de Pombal e o seu tempo. p. 144 85 Idem 86 Ibidem. p. 148 87 Ibidem. p. 154 88 Ibidem. p. 165
27
brutalidade conquistava”.89 Esta idéia pode estar atrelada ao conceito de que
era necessário representar um papel na sociedade, onde simplesmente possuí-
lo não era suficiente. Houve resistência, segundo Silva, ao sistema
estabelecido, sobretudo por aqueles que não entendiam a situação imposta na
sociedade.90
2.8 As instituições de Portugal no século XVIII: o conceito de família
Hespanha divaga sobre o significado do conceito de família para uma
sociedade do Antigo Regime. Ele apresentou os vários tipos de famílias que
poderiam existir definidos pelo historiador Peter Laslett. Além dos solitários e
dos lares sem estrutura conjugal, havia as famílias “simples”, que se resumiam
ao marido, a mulher e seus filhos; as famílias “extensas”, se constituindo de
mais membros familiares do que as famílias “simples”, possuindo os pais dos
cônjuges, netos ou sobrinhos órfãos, ou os irmãos ou primos dos cônjuges; e
as famílias “agregadas”, que era formadas quando um filho se casava mas não
deixava a casa dos pais, fazendo que uma segunda família se formasse
enquanto tendo seus componentes ainda membros de uma família já existente.
Laslett, segundo Hespanha, não levou em consideração a figura dos criados,
ao determinar os tipos de famílias,91 nem ao dinamismo que as famílias
poderiam ter, ou seja, de se transformarem rapidamente em tipos diferentes,
não estando rigidamente atreladas à uma definição imutável.
Ao se analisar as famílias na época do Antigo Regime, há o encontro
com várias limitações: primeiro, o fato de que os censos de população eram
muito raros, deixando a análise atrelada predominantemente à especulação.
Em segundo lugar, há o fato de que as composições dos grupos domésticos
tinham significados que variavam de acordo com o contexto com que eram
analisados. Hespanha ainda cita uma limitação imposta ao historiador
moderno, que é o fato de este estar “envenenado” pelas concepções modernas
89 SILVA, J. G. A situação feminina em Portugal na segunda metade do século XVIII. Revista de história das idéias. Coimbra. v. 4. tomo I. 1982-1983. O marquês de Pombal e o seu tempo. p. 165 90 Idem 91 HESPANHA, A.M. XAVIER. A.B. A representação da sociedade e do poder. In:____. História de Portugal IV: o Antigo Regime. Dir. HESPANHA, A. M. Lisboa. 1993. p. 86
28
do conceito de família,92 e que isso tornava difícil a sua compreensão do
significado de família para a sociedade em discussão.
Como Hespanha já disse, a família na sociedade portuguesa do século
XVIII era formada independentemente de desejos pessoais, seguindo linhas
dogmáticas e práticas, visando o prosseguimento da linhagem, a geração de
mão-de-obra para a continuidade da economia. A formação das novas famílias
estava nas mãos dos pais dos novos integrantes nelas.93 Vendo sua própria
continuidade nos filhos, os pais agiam de modo a legitimar a própria família. Ela
funcionava, segundo Hespanha, como uma espécie de “universo totalitário”,
onde tudo era pensado em termos de um, significando: um sujeito, um
interesse, um direito. Lembrando de que o chefe da família era o pai, nota-se
que ele, sozinho, equivalia à família, e a vontade desta família era a sua
vontade. Outra questão que ajuda a entender o porquê de a fundação de novas
famílias ser controlada pela figura paterna é o fato de que o amor entre pai e
filhos era superior a qualquer outra forma do sentimento, inclusive o amor entre
o marido e a esposa. Outra questão que pode ser inferida para o entendimento
deste conceito é a grande mortalidade de crianças que se tinha na época. Isto
talvez gerasse um sentimento de que os filhos eram como uma mercadoria
frágil, e se o papel a ser desempenhado por eles era crucial para a
continuidade da família, torna-se evidente a razão de os pais quererem
controlar o destino dos filhos. Com uma taxa de mortalidade alta os pais não
queriam perder as “chances” de dar continuidade à família.
Logicamente, as relações familiares eram diferentes entre as classes
mais abastadas e as mais humildes. Nas primeiras, o aleitamento era feito por
amas-de-leite, mulheres de classes inferiores, e depois o tratamento variava
conforme o sexo da criança. Se fosse do sexo masculino era entregue à um
serviçal que se encarregava de sua educação, e se do sexo feminino, era a
mãe tinha que se encarregar da educação de forma direta, ou se de forma
indireta, teria que supervisionar a educação dada à criança. Nas classes mais
baixas, cuja condição é mais relevante para este estudo, os pais e filhos tinham
92 HESPANHA, A.M. XAVIER. A.B. A representação da sociedade e do poder. In:____. História de Portugal IV: o Antigo Regime. Dir. HESPANHA, A. M. Lisboa. 1993. p. 88 93 Ibidem. p. 89
29
relações mais próximas,94 e tinham de se encarregar da educação dos filhos
pessoalmente, mesmo que possuíssem serviçais. A idéia da continuidade da
família era bem mais tensa para as famílias humildes, já que além da
preocupação com a continuidade, havia a preocupação com a ascensão
social.95
2.9 O papel e o significado dos serviçais nas relaç ões sociais das
sociedades do Antigo Regime
Um personagem comum no teatro do Antigo Regime era a figura do
criado, que parece sempre ser uma espécie de acompanhante daqueles que
representam seus amos. Mas quais eram as características associadas à esta
figura na mentalidade da época? Lopes observa que se esperava que os
criados fossem numerosos, bem trajados e educados. A autora disse que na
sociedade portuguesa em particular havia uma familiaridade, uma
cumplicidade, entre criados e patrões que chegava a assombrar estrangeiros.96
Assim, no caso português, a proximidade dos indivíduos com seus criados era
tanta que o conceito de família poderia englobar estes criados.
Elias não tem muito a dizer sobre os serviçais no seu estudo da
sociedade de corte, pois estes viviam, de certa maneira, nos bastidores da vida
de seus senhores. Sendo considerados cruciais para o funcionamento da vida
pública dos senhores, Elias afirmou que a sociedade de corte se estruturava
sobre uma ampla camada de serviçais.97 A própria forma da organização dos
aposentos em uma casa já mostrava muita coisa sobre as relações entre
patrões e criados. Havia a presença de aposentos criados especialmente para
que os criados pudessem desempenhar funções incumbidas pelos seus
senhores.98 Um destes aposentos era a “sala de companhia”, que se localizava
logo fora dos quartos dos senhores, e que servia exclusivamente para que os
serviçais pudessem esperar as ordens deles. 94 Determinadas até mesmo pelo próprio espaço, já que as casas mais humildes tinham poucos aposentos, tornando o convívio inevitável, de qualquer maneira. 95 HESPANHA, A.M. XAVIER. A.B. A representação da sociedade e do poder. In:____. História de Portugal IV: o Antigo Regime. Dir. HESPANHA, A. M. Lisboa. 1993. p. 67 96 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989, p 75 97 ELIAS, N. A sociedade de corte. Rio de Janeiro, 2001.p. 69 98 Ibidem. p. 70
30
Apesar da proximidade e da intimidade das relações entre patrões e
criados, deve-se observar que havia um distanciamento rígido e irremediável,99
criado pela própria condição da sociedade. Se considerava que os criados
pertenciam à uma raça diferente daquela dos senhores, então ninguém
contestava a desigualdade. Na corte real, ironicamente, aqueles considerados
senhores assumiam papel de inferioridade, ou seja, de “criados”, diante do rei.
Este tipo de relacionamento pode dar uma pista sobre o tipo de interação que
se estabelecia entre duas classes sociais diferentes em sociedades do Antigo
Regime.
Sennett afirma que diante dos criados, a representação de papéis não
era tão crucial e os diálogos eram mais espontâneos, ou seja, as pessoas
falavam com mais liberdade com eles, até porque os criados não tinham
nenhuma importância, estando ali para servir.100
2.10 As estruturas da honra e da dádiva nas socieda des do Antigo
Regime.
Este estudo propôs o entendimento sobre o modo como eram
estabelecidas no Antigo Regime português duas características, a hierarquia, e
a dádiva, mas aqui é proposto a análise de uma terceira característica, a honra,
para entender alguns elementos atrelados às outras duas.
A hierarquia já foi discutida, ao se notar que a sociedade da época em
questão era dotada de hierarquizações em todas as suas expressões sociais, e
papel a ser desempenhado pelas classes sociais perante ao meio estabelecido,
bem como as implicações que a representação tinha neste meio.
A honra é uma característica peculiar às sociedades do Antigo Regime,
sobretudo em sociedades mediterrânicas, como Portugal, assim como definido
pelo antropólogo J. G. Peristiany, que afirma o conceito de honra nestas
sociedades transcendeu a própria existência do Antigo Regime. Segundo ele, a
noção de honra é algo mais do que uma forma de mostrar aprovação ou
99 ELIAS, N. A sociedade de corte. Rio de Janeiro, 2001.p. 71 100 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 102
31
reprovação. Ela possui uma estrutura geral que se revela nas instituições e
juízos de valor tradicionais de cada cultura.101
A honra seria um valor que uma pessoa tem aos seus próprios olhos
mas também aos olhos da sociedade. É a sua apreciação de quanto vale, da
sua pretensão a orgulho, mas é também o reconhecimento dessa pretensão, a
admissão pela sociedade da sua excelência, do seu direito a orgulho.102 A
honra seria então um nexo entre os ideais da sociedade e a reprodução destes
no indivíduo através da sua aspiração de os personificar. Para se obter honra,
é necessário construir uma reputação. Existe uma hierarquia da honra, e deste
modo quem se submete à precedência de outros acaba por reconhecer sua
posição social inferior, ficando, de certa forma desonrado.
No caso de afronta física, só há a desonra se há o reconhecimento de
que o insulto existiu. Mas para este ter efeito, para o tipo de sociedade em
questão, era necessário que o que insultava e o insultado estivessem em nível
social equivalente.103 Um inferior não tinha o direito de se sentir ofendido ao ser
insultado por um superior, e os insultos de um inferior não atingiam um
superior.
Junto à questão da honra há a questão do duelo. Ele significa que
quando se falhava em se resolver uma questão de desonra por meio judicial,
se recorria à violência física, havendo inclusive a obrigação de se recorrer à
ela, seguindo ou não um código de honra formal.104
Existia também a honra coletiva, de grupos, esta pertencia ao chefe do
grupo, sendo sustentada por juramentos de fidelidade por parte dos
pertencentes ao grupo.105
Em uma sociedade mediterrânica, onde, segundo Peristiany, houve
continuidade dos sistemas dos séculos anteriores,106 foi observado que a
reputação era não somente uma questão de orgulho, mas também de utilidade
prática.107 O “bom nome” era o mais valioso capital.
101 PITT-RIVERS, J. Honra e posição social. In: PERISTIANY, J. G. Honra e vergonha: valores das sociedades mediterrânicas Lisboa. 1971. p.13 102 Idem 103 Ibidem. p. 22 104 Ibidem. p. 20 105 Ibidem. p. 26 106 Quando ele fez a pesquisa, nas décadas de 1950 e 1960. 107 PITT-RIVERS, J. Honra e posição social. In: PERISTIANY, J. G. Honra e vergonha: valores das sociedades mediterrânicas Lisboa. 1971. p. 28
32
O conceito de honra é equiparado ao conceito de vergonha. Este
conceito significa aquilo que faz uma pessoa sensível à pressão exercida pela
opinião pública. Neste sentido é sinônimo de honra.108 Como base na
reputação os dois conceitos são sinônimos porque a falta de vergonha é
desonrosa, e uma pessoa com má reputação não tem nenhuma vergonha.
Deve ser observado que há diferenças entre o conceito de honra
feminina e o de honra masculina. De acordo com um diagrama feito por Pitt-
Rivers, vemos que a honra masculina é ligada as características de desejo de
precedência, prontidão na defesa da reputação, na recusa em se submeter à
humilhação, na autoridade sobre a família, ou seja na hombridade do indivíduo.
A honra feminina está ligada à pureza sexual, ao pudor, ao recato e à
discrição.109 A ambos os sexos se esperava honestidade, lealdade e
preocupação com a reputação. Nota-se que a honra masculina depende da
feminina, e por isso os homens eram, por excelência, os guardiões da honra
feminina, seja das suas esposas, suas filhas ou das suas irmãs. E no caso de
se manter a pureza sexual, havia o agravante de que apenas o “dono” da
mulher ficava com a honra comprometida. O que violava esta pureza mantinha
sua honra intacta, e é por isso que o homem desonrado procurava restaurar
sua honra por meio da violência física.
Outra característica ligada a honra é a sua hereditariedade, ela, ou a
falta dela, é passada aos descendentes, e até aos ascendentes, sendo que um
filho ou filha que não siga conduta decorosa acaba por desonrar seus pais, já
que se considerava que sua conduta refletia a deles.110
Semelhantes posições em relação à honra podem ser encontrados em
Lopes111 e Sennett.112
O conceito de dádiva113 está associado ao conceito de generosidade.
Um tipo de generosidade que obriga. Mais poderosa do que a força, fazendo
108PITT-RIVERS, J. Honra e posição social. In: PERISTIANY, J. G. Honra e vergonha: valores das sociedades mediterrânicas Lisboa. 1971. p. 30 109 Ibidem. p. 33 110 Ibidem. p. 39 111 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989, ps.174-178 112 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. ps. 131-137 113 Em Portugal este conceito é referido pelo termo “mercê”.
33
parte de um sistema de trocas.114 Em uma sociedade onde o sistema
capitalista ainda não estava plenamente estabelecido, a circulação de bens e
de serviços estava atrelada ao oferecimento de dádivas. Era a chamada
“economia da dádiva”, conceito cunhado por Marcel Mauss.
As dádivas eram, segundo Mauss,115 fenômenos sociais totais, que
mobilizavam ao mesmo tempo as esferas religiosa, política, jurídica, econômica
e moral, sendo cercadas de grande ritualização e estetização.116 Elas se
constituíam da cadeia de obrigações, “dar”, “receber”, “retribuir”.
A dádiva era, em uma sociedade do Antigo Regime, concedida de um
individuo de classe superior a um de classe inferior. Se nota uma relação de
reciprocidade: ao mesmo tempo que alguém concedia uma dádiva, ele
esperava ser correspondido, seja com serviços, seja com lealdade, que era o
que alguém de classe inferior poderia oferecer ao seu superior. Este, por sua
vez, esperava receber dádivas como gratificação.
Era atribuído um sentido religioso à dádiva, sendo ela considerada uma
expressão da vontade divina, e que o objetivo era estabelecer vínculos sociais
através da ajuda ao próximo. Na realidade não havia concessões de dádivas
genuinamente desinteressadas, pois mesmo que quem a concedesse não
esperasse, pelo menos à primeira vista, algo em troca, quem a recebia estava
automaticamente comprometido à gratidão e a retribuição. A ingratidão, falta de
sentimento com o recebimento de alguma vantagem, era inconcebível para a
mentalidade da época tratada.
Quanto mais elevada a classe social de alguém, maior era a pressão
para a concessão de dádivas, pois era desta maneira que se conseguia poder
neste tipo de sociedade, obrigando outros indivíduos através da gratidão com
sua generosidade.117 Textos da época exaltavam a característica da
generosidade, principalmente ao se tratar da do rei. Assim, entre as várias
114 GANDELMAN, L. As mercês são cadeias que não se rompem: liberdade e caridade nas relações de poder do Antigo Regime português. In: SOIHET, R; BICALHO, M. F. B.; GOUVÊA, M. F. S. orgs. Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história, Rio de Janeiro. 2005. p. 109 115 Marcel Mauss é um dos maiores teóricos sobre a questão da dádiva. 116 GANDELMAN, L. As mercês são cadeias que não se rompem: liberdade e caridade nas relações de poder do Antigo Regime português. In: SOIHET, R; BICALHO, M. F. B.; GOUVÊA, M. F. S. orgs. Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história, Rio de Janeiro. 2005. p. 110 117 Ibidem. p.115
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virtudes que se esperava de um nobre, uma das maiores, senão a maior, era a
generosidade, associada à bondade.
Luciana Gandelman, apesar de notar a importância da concessão de
dádivas para a sociedade portuguesa do Antigo Regime, fez uma ressalva de
que às vezes a generosidade teve custos altos demais tanto para doadores
como para receptores, e que por isso nem sempre ela teve mais poder do que
a força.118
A concessão de dádivas podia estar presente no ambiente doméstico,
ao se notar a relação entre patrões e criados. Os criados juravam total lealdade
aos seus amos mediante o recebimento de vantagens e presentes. A falha do
patrão em providenciar isto causava a quebra desta lealdade. Deste modo, a
dádiva era a única forma para se conseguir a vontade definitiva de alguém.
Na análise sobre o assunto feita por Fernanda Olival, ela comparou o
sistema de concessão de dádivas com o sistema medieval de vassalagem. Ela
também notou como o ato de se inserir no processo obrigações recíprocas não
era um ato desinteressado.119 A autora demonstrou a existência de dois tipos
de justiça. A justiça distributiva e a justiça comutativa. O tipo relevante para
esta análise é o primeiro tipo, que significa “dar a cada um o que é seu”,120 seja
o prêmio, seja o castigo. Estes dois conceitos eram a base da sustentação para
as relações de dominação no Antigo Regime.
Havia, segundo Olival, dois meios de se obter mercês, ou dádivas, por
meio da “graça” e por meio da justiça.121 O primeiro meio se constitui das
recompensas resultantes da pura liberalidade, sem intuitos remuneratórios. O
segundo meio era uma forma de se cobrar débitos. Os dois meios fazem parte
do círculo vicioso de reciprocidades que era a sociedade do Antigo Regime,
pois o primeiro obriga o receptor a retribuir, e o segundo já é uma retribuição
por um serviço prestado por si mesmo.
118 GANDELMAN, L. As mercês são cadeias que não se rompem: liberdade e caridade nas relações de poder do Antigo Regime português. In: SOIHET, R; BICALHO, M. F. B.; GOUVÊA, M. F. S. orgs. Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e ensino de história, Rio de Janeiro. 2005. p. 122 119 OLIVAL, F. Um rei e um reino que viviam da mercê. In:____. As ordens militares e o estado moderno; Honra mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa. Estar. 2001. p.18 120 Ibidem. p. 20 121 Ibidem. p. 22
35
A idéia de mercê remuneratória tinha fortes implicações jurídico sociais,
segundo nos conta Olival,122 pois tornava os serviços patrimonializáveis, como
se fossem bens, podendo ser testados, divididos, alienados, reclamados em
tribunais, entre outras possibilidades. Podiam se tornar até em uma forma de
investimento, se tornando um capital convertido em doações.
Além do valor econômico, as dádivas podiam ter fortes conotações
honoríficas, dependendo de quem era seu concessor. Esta particularidade era
essencial em uma sociedade organizada em função do privilégio e da honra, da
desigualdade de condições.123 Os grupos sociais podiam mudar, mas a
economia da dádiva permanecia, só perdendo importância após a instauração
do sistema econômico capitalista.124
A definição do que se constituía uma dádiva era bem ampla, de acordo
com Mauss.125 Podia ser desde uma retribuição financeira até uma noiva,
passando por títulos honoríficos. Ou seja, nem sempre estava ligada ao mundo
material. Além disso, a troca tinha um nível espiritual, pois ao aceitar algo, o
recebedor deixa de ser um “outro”, pois a dádiva aproximava as partes
momentaneamente, tornando-os semelhantes.126
Quem se obrigava mutuamente, segundo Mauss, eram coletividades e
não apenas indivíduos, mostrando que realmente não se tratava de um sistema
isolado, mas sim de um sistema agregado que fazia funcionar as sociedades
de Antigo Regime.
A dádiva e a hierarquia são as características as quais se pretende
analisar como se estabeleciam no teatro, como eram retratadas nas relações
interpessoais entre personagens teatrais.
122 OLIVAL, F. Um rei e um reino que viviam da mercê. In:____. As ordens militares e o estado moderno; Honra mercê e venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa. Estar. 2001. p. 24 123 Idem 124 Segundo Mauss, o sistema capitalista difere da economia da dádiva no ponto de que as relações ficam atreladas estritamente ao dinheiro, não havendo a necessidade de se estabelecer um vínculo entre as partes de uma determinada relação social. 125 LANNA, M. Nota sobre Marcel Mauss e o ensaio sobre a dádiva. In:____. Revista de Sociologia Política. No. 14. 2000. p. 175 126 Ibidem. p. 176
36
3 AS CARACTERÍSTICAS DO TEATRO PORTUGUÊS
3.1 A formação do conceito de teatro como elemento da sociedade do
Antigo Regime do século XVIII, em Portugal e na Eur opa
No século XVIII, o teatro era uma das principais atrações de
entretenimento e de encontros sociais que estava disponível à população,
tendo como equivalentes as missas, os bailes de máscaras e no caso da
península Ibérica, das touradas. Era um ambiente em que os indivíduos
buscavam constantemente a satisfação pessoal, frequentemente por meios
que reafirmassem seus modelos de representações.127.
Existia em Portugal, incentivada pelo impulso para civilizar o país
iniciada pelo marquês de Pombal, uma intenção de imitar a moda francesa, em
todas as suas características, do vestuário aos costumes.128 Assim, o teatro de
estilo francês foi implantado em Portugal. Seria um erro dizer que não existia
uma tradição teatral portuguesa antes do século XVIII. Albino Forjaz de
Sampaio, estudioso do teatro português e dono de uma vasta coleção de peças
de teatro portuguesas de vários períodos, conta que já havia uma tradição
teatral no país na Idade Média,129 embora fosse de cunho exclusivamente
religioso. No século XVI houve um grande avanço na representação teatral,
havendo um bom número de autores de peças de destaque, sendo o maior
deles Gil Vicente.130 Nesta época, Portugal estava no auge de seu poderio,
sendo o primeiro país europeu a descobrir a rota marítima para as Índias e
possuindo um vasto e rico império. O teatro desta época, segundo Sampaio,
tem como característica a exaltação dos elementos nacionais, tendo cunho
patriótico. No século XVII o teatro perdeu importância, sendo mínima a
produção teatral deste período.131
No século XVIII o teatro desenvolvido na França se espalhou pela
Europa. Os teóricos teatrais deste país cunharam um novo tipo de atuação e
representação, apoiados no sistema de relacionamentos da sociedade da 127 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 99 128 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989, p.69 129 SAMPAIO, A. F., As melhores páginas do teatro português, Lisboa. 1933. p. 23 130 Ibidem. p. 24 131 Ibidem. p. 25
37
época.132 Esta idéia causa uma oposição com aquilo que foi observado por
Sennett. Mas uma vez se faz a pergunta: era a vida que imitava o teatro, ou o
teatro que imitava a vida?
Considerando que o teatro era uma representação cultural de uma
sociedade, pode-se afirmar que quem está correta é a segunda idéia. O teatro
era um elemento da sociedade do Antigo Regime, mas seria um exagero
afirmar que ela se espelhou nele para basear seu comportamento. Se haviam
autores da época que afirmavam que “a rua virou um teatro”, eles estavam
denotando a similaridade entre as relações entre os indivíduos no meio público
e as dos atores no palco, mas não necessariamente afirmando que o meio
público estava imitando a representação teatral.
O teatro, segundo a análise de Gasset e Guinzburg, são muitas coisas
diferentes entre si que nascem e morrem, que variam, se transformam a ponto
de não se parecer, à primeira vista, uma forma em nada com a outra.133 Ele
não pode ser definido como gênero literário, pois sua definição vai muito além
das palavras. A respeito destas, no teatro elas têm função constituinte, mas
muito determinada, ou seja, são secundárias à “representação”.134 Ao contrário
do que acontece em um livro, onde as ações e os diálogos podem ser
retratados de forma escrita, no teatro há elementos que transcendem a
representação na forma de palavras, e que só podem ser passados ao público
de forma visual. Elementos que podem estar nas ações dos personagens, em
linguagem corporal ou até mesmo no figurino. A essência do teatro é a
presença e a potência da visão. Ele é um espetáculo, e para apreciá-lo deve-se
ir até ele, para vê-lo. Esta definição faz lembrar o conceito atribuído à
sociedade do Antigo Regime por Sennett, de que a ação e a representação
contam mais do que a palavra pura e simples.
O ator, para que fizesse sucesso, deveria possuir o dom da
“transparência”,135 ou seja, de fazer desaparecer o que é real, transformando-
se nos personagens. Inclusive, a representação teatral está sempre fazendo
um equilíbrio entre a realidade e a irrealidade, sempre correndo o risco de ficar
132 GUINZBURG, J; GASSET, J. O. y, A idéia do teatro, Madri, 1966. p. 72 133 Ibidem. p. 18 134 Ibidem. p. 32 135 Ibidem. p. 35
38
com apenas uma das duas coisas.136 Em suma, o ator está no palco para
representar uma farsa, um “mundo de mentirinha”, ao público. Eles fazem com
que o público tenha emoções (isto é, rir ou chorar), e contracenam de modo a
serem vistos pelo público.137 De fato, um dos maiores interesses (e desafios)
para o ator quando está no palco é chamar a atenção dos espectadores,
prender esta atenção, fazer com que reajam de forma intensa ao que acontece
no palco.
Gasset e Guinzburg também observaram que o homem tem
necessidade de, às vezes, escapar da realidade, da vida, e o teatro seria uma
das maneiras de se fazer isso.138 Ele necessita periodicamente de evasão da
cotidianidade em que se sente prisioneiro, de obrigações, regras e trabalhos.139
Os autores afirmam que a necessidade de escapar da realidade e construir
uma imagem fingida acompanha o homem há muito tempo.140 Explicando de
outra maneira, isto significa que o homem passa a vida querendo ser outro,
mas isso é impossível, a não ser pelo meio da metáfora. O teatro é uma das
vertentes desta metáfora.
Em relação ao que deveria ser apresentado na representação teatral,
Gasset e Guinzburg afirmam que o teatro deve apresentar um “ser em forma”,
ou seja, os personagens deveriam ser representados em sua glória, e não em
sua ruína. Seria este elemento, segundo eles, que diferenciaria o teatro da
realidade, pois as pessoas mostradas nele são imortalizadas,141 transcendendo
o aspecto passageiro da vida, sobrevivendo através do tempo. Assim, pessoas
de épocas passadas podem estar mortas há muito tempo, mas as
representações delas por parte de personagens sobrevivem até hoje. Esta
idéia mostra que o teatro pode ser uma boa fonte para estudar costumes e até
mesmo mentalidades, não se esquecendo que o que o teatro mostra não é o
real, mas sim a representação deste real, que, como será mostrado adiante,
podia ser idealizada. Apesar de os personagens geralmente serem
apresentados em sua glória, algumas vezes se opta por apresentá-los em sua
ruína, pois ela também pode ser fascinante. 136 GUINZBURG, J; GASSET, J. O. y, A idéia do teatro, Madri, 1966. p. 39 137 Ibidem. p. 30 138 Ibidem. p. 50 139 Ibidem. p. 70 140 Ibidem. p. 85 141 Ibidem. p. 20
39
Todas estas definições feitas por Gasset e Guinzburg sobre o teatro não
se focam em um único período da história. Eles tratam da construção dos
elementos que constituem o teatro ao longo da história, tendo uma visão geral.
No entanto, o que eles definiram sobre este meio de entretenimento é
extremamente coerente com o teatro do Antigo Regime, ao observar as idéias
desenvolvidas por todos os autores que trataram da questão.
Sennett confirma a idéia do jogo entre o real e o irreal no teatro. Por
exemplo, ele afirma que o público do teatro do século XVIII exigia uma
descontinuidade nítida entre os dois domínios quando os personagens no palco
pertenciam às camadas inferiores da sociedade. O público fazia vista grossa
para a cidade e queria permanecer cega também no teatro.142 Peças que
tratassem de épocas passadas eram retratadas como se os personagens
pertencessem à sociedade da época, pois segundo teóricos da época, a
exatidão histórica era impossível para a arte dramática.143 No teatro do Antigo
Regime não tinha idéia do que era uma representação histórica ou geográfica.
Isto significa que a idéia de aparência um personagem de uma peça com
enredo passado no século X, ou na Turquia estava fora de qualquer
imaginação teatral da época.
O teatro europeu do século XVIII era um lugar onde o público interagia
com a peça de uma forma que hoje seria impensável. A platéia reagia
fortemente com as situações passadas na representação do palco. Agia de
uma forma que na rua seria impossível. Ou seja, pessoas, com vidas
governadas por uma convenção abstrata e impessoal, conseguiam ser
espontâneas neste ambiente, livres para expressar o seu eu. Isto causa um
paradoxo com o modo como a sociedade se estabelecia. Gasset e Guinzburg
observaram que o homem busca conceitos fora da realidade, incluindo o teatro,
como uma válvula de escape das obrigações da sociedade, e que isto sempre
foi feito pelas sociedades ao longo da história. Sabendo disto, pode-se afirmar
que na sociedade do Antigo Regime a situação não foi diferente. Os indivíduos
buscavam no teatro um desligamento com a obrigatoriedade com as
representações no convívio social.
142 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 97 143 Idem
40
Jean Jacques Roubine definiu o teatro como sendo ao mesmo tempo
uma prática do ato da escrita e uma prática de representação. Ou seja, o teatro
é caracterizado por uma heterogeneidade.144 As teorias de teatro, segundo
Roubine, têm pretensões totalizantes, enunciando teorias que devem valer
para toda uma época e toda uma classe social.145 146 O uso deste conceito
facilita o estudo sobre as características da representação teatral de um
determinado período. No século XVIII, os autores de peças pareciam muito
interessados em saber o que agradava ao público em peças. Para isto, eles
frequentavam assiduamente salas de teatro, e analisavam minuciosamente a
sua própria reação como espectadores. A busca pela satisfação do público
norteava as produções teatrais. Além disso, os que elaboravam as peças de
teatro eram membros de uma casta de “intelectuais”,147 que eram quem definia
o que seria representado. Não eram membros típicos da sociedade que
elaboravam estas peças, mas sim observadores dela. Isto se deve ser levado
em conta ao perceber até que ponto o “real” das peças era mostrado.
Assim, no caso do Antigo Regime, Roubine disse que nos séculos XVII e
XVIII prevaleceu uma representação da “bela natureza”, estabelecida por
preceitos aristotélicos.148 Isto significa que as pessoas eram representadas no
teatro com virtudes superiores à pessoas reais. O objetivo era a provocação de
um prazer de natureza estética através da representação do real,149 para
causar o aprimoramento e o apaziguamento do coração, o que teóricos
modernos denominam de catarse.150
Para entender o que separa a realidade de sua representação, deve-se
levar em conta de que o teatro se baseia na verossimilhança para sua
144 ROUBINE, J. J. Introdução às grandes teorias do teatro, Rio de Janeiro, 2000. p. 9 145 Ibidem. p. 10 146 Para se compreender esta idéia deve-se levar em conta que as peças de teatro são produzidas para que um público as assista, e elas deveriam agradar-lhe. Assim, os dramaturgos deveriam obedecer as tendências de comportamento da sociedade em suas representações, mantendo uma sintonia com ela. O que constituiria uma boa peça de teatro mudaria junto com a sociedade. 147 ROUBINE, J. J. Introdução às grandes teorias do teatro, Rio de Janeiro, 2000. p. 138 148 Ibidem. p. 18 149 Não deve ser confundida com o real. Este conceito está de acordo com o que Gasset e Guinzburg disseram sobre a representação da “glória” dos personagens. 150 As emoções demonstradas pela platéia citadas por Sennett provavelmente são a manifestação deste conceito.
41
representação.151 a representação teatral do século XVIII era unido à uma
idealização, da qual só começaria a se separar no final do século.
Roubine definiu o trabalho do ator como sendo observar, abstrair e
amplificar.152 Ou seja, ele deveria observar para definir um modelo ideal de
personagem. Ele deveria, na sua interpretação deste personagem, realizar uma
atualização cênica do modelo de personagem ao sabor das exigências da
representação. Finalmente, ele deveria dar à representação uma amplitude que
não seria possível atingir na realidade. Era isto que causava a idealização do
personagem. Ao ampliar seu âmbito de vida, o personagem se tornava idílico,
irreal. Tomemos as idéias de Sennett para explicar porque isto ocorria no caso
do teatro do século XVIII.
Mas primeiro é necessário entender como era composto o público teatral
do período, e como se comportava em relação ao teatro da época.
3.2 O funcionamento do espaço teatral no Antigo Reg ime
Sennett fez uma pesquisa a respeito da composição da platéia dos
teatros no século XVIII. Mas o fez em Londres e em Paris. Em muitos casos, os
bilhetes custavam muito caro, então a presença de trabalhadores era
incomum.153 O público se constituía principalmente da média e alta burguesia.
Havia espaço para estudantes e intelectuais, que conseguiam seus ingressos
como presentes de senhores, geralmente nobres, os quais fossem seus
protegidos.154 A própria estrutura do teatro era definida de acordo com o status
social, definido por Elias como irremediavelmente desigual entre os indivíduos.
Elias definiu a separação do espaço em relação às residências privadas, mas é
possível ver aqui que ela chega até aos espaços públicos, incluindo o teatro.
Assim, Sennett disse que os lugares em que as classes mais baixas pudessem
eventualmente ocupar não possuíam cadeiras.155 A criação de teatros com
cadeiras para todos causou, segundo escritores de teatro da época, um certo
entorpecimento na platéia. Antes barulhenta, a platéia ficou silenciosa, o que
151 ROUBINE, J. J. Introdução às grandes teorias do teatro, Rio de Janeiro, 2000. p. 30 152 Ibidem. p. 81 153 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 100 154 Vemos aqui mais uma manifestação da dádiva nesta sociedade. 155 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 100
42
gerou uma diminuição na diversão em se ver uma peça. Esta mudança se deu
no final do século XVIII, sugerindo que o comportamento da platéia era muito
diferente do que se esperaria em um ambiente onde se era esperado que os
espectadores se concentrassem no que estava ocorrendo no palco. De
qualquer maneira o objetivo ao se construir um teatro é propiciar um ambiente
no qual se torna possível a apresentação de peças,156 e que maximize a
“ilusão” teatral.157
A platéia não estava no espaço teatral apenas para assistir a peça. Se ia
ao teatro para se ter interações sociais. Sennett observou um grande número
de jovens na platéia do teatro do século XVIII.158 Estes jovens não estavam no
teatro necessariamente para assistir a peça, mas para terem um convívio social
fora das obrigações de representação, tirando proveito da espontaneidade das
relações no ambiente teatral. Assim, esta espontaneidade não estava restrita à
representação fictícia no palco e nas reações da platéia em relação à ela, mas
também às relações entre membros da platéia. Em um fenômeno que foi
percebido também nos cafés, Sennett declarou que neste tipo de espaço
ocorria um fenômeno que livrava os indivíduos de suas obrigações de serem
representativos para seus iguais, bem como as próprias separações entre as
relações entre as classes sociais.159 Isto mesmo se considerando que a
separação do espaço continuava.
Sennett apontou a presença de lugares no próprio palco, onde membros
da platéia se misturavam aos atores, revelando que se tratava de um ambiente
único, ou seja, que não havia uma rígida separação entre palco e platéia. Tal
como na vida pública, o domínio da representação e o da realidade estavam
mesclados. A “fusão” entre os domínios acabava por gerar uma absorção dos
membros da platéia do enredo da peça de uma forma que seria embaraçosa
para quem não conhecesse o ambiente.160 Os teóricos de teatro do período
estavam acostumados com este tipo de reação por parte do público, e por isso,
quando foram construídos novos teatros que isolavam o domínio do palco do
156 GUINZBURG, J; GASSET, J. O. y, A idéia do teatro, Madri, 1966. p. 28 157 Conceito que define o que causa o espectador a ficar absorto na peça. 158 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 101 159 Ibidem. p. 108 160 Ibidem. p. 101
43
da platéia, resultando em um silêncio por parte desta, eles acharam que o
design do teatro estava errado.
De qualquer forma, a mistura de atores e platéia e as fortes expressões
de emoções por parte desta, não se tratavam, para Sennett, de liberações
dionísicas onde atores e platéia se tornavam uma única pessoa na observação
de um mesmo rito comum.161 As platéias estavam ao mesmo tempo envolvidas
na peça e sob controle. Elas criticavam atores que as induzissem ao choro e
estavam dispostas a interferir diretamente na ação dos atores, através de
sinais sonoros e de “enquadramentos”, que implicavam a percepção que a
platéia tinha sobre determinados atores. Se um ator esquecesse sua fala, por
exemplo, a platéia o “enquadrava” com uma característica, e aquele ator
sempre seria associado à ela. A espontaneidade da platéia era inclusive
custosa para os donos de teatros, já que as manifestações desta
espontaneidade podiam ser tão intensas que se refletiam em danos ao espaço.
O papel do ator, segundo o pensamento do público que ia ao teatro no
século XVIII, era de divertir. Ele existia para servir ao público. O ator, sendo de
classe social inferior ao do público que ia assistir sua representação, era
considerado um criado, estando sob o controle do público. Sabendo-se o que
foi definido sobre a condição do criado segundo Sennett e Elias, o ator estava
submetido às condições que lhe foram incumbidas pela sociedade. Esta idéia
talvez implique que havia uma condição que fazia com que o teatro fosse
considerado uma extensão do domínio privado, embora não o fosse realmente.
O ator era como se fosse um serviçal em que o público pudesse dar ordens, e
que assim o divertisse, pois implicava que os indivíduos estavam tratando com
um indivíduo de status inferior.
Mas Sennett observa que o status inferior do ator não é suficiente para
explicar a espontaneidade que sua representação causava no espaço teatral.
O ator era um “nômade”, viajando de corte em corte em busca de trabalho.162
Ele precisava ser trágico, cômico, cantor, dançarino, ou seja, de qualquer forma
que lhe fosse exigida em um trabalho. Ele se sujeitava a qualquer condição,
desde que lhe fosse providenciado um trabalho. Não lhe incomodava ser
humilhado pela platéia ou representar papéis controversos. Ele precisava de
161 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 101 162 Ibidem. p. 103
44
uma função. A ausência de companhias de teatro auto-suficientes fazia com
que houvesse poucas variações de localidade para localidade, já que todos os
grupos precisavam ficar se deslocando para conseguir trabalho.163
Como já foi afirmado por Roubine, o centro das atenções daqueles que
preparavam as peças era o comportamento do público. Ou melhor, um
segmento deste público, o qual o ator tinha que agradar, que envolvia os
cidadãos mais ricos e influentes. Como já foi dito, o próprio design do teatro
obedecia um padrão que privilegiava alguns indivíduos de classe superior aos
outros. Havia camarotes especiais que visavam uma melhor visão destes
indivíduos em relação ao que estava ocorrendo no palco, pois eram destes
indivíduos que se esperava ter reações a respeito das peças. O poder da
platéia como uma espécie de júri, a qual podia aprovar e desaprovar, norteava
a conduta das equipes de teatro, e estando ciente deste poder, a platéia se
sentia livre para manifestar sua opinião. A necessidade de obter a aprovação
dos membros ricos da sociedade era explicada pelo fato de que o teatro era
patrocinado por eles, sendo uma instituição. Se visava agradar somente aos
membros da classe que o patrocinava, o teatro servia ao menos como um
ponto de reunião para membros de classes mais baixas que por ventura iam
nele.
Ao longo do século XVIII, a profissão de ator foi se estabilizando, e se
tornou cada vez menos nômade.164 Tendo sua profissão regularizada, o ator
passou a ser quase como um trabalhador comum. Sua função era a de
produzir uma quantidade definida de emoções, em uma data marcada.
O comportamento da platéia dos teatros do século XVIII difere das do
século anterior porque naquela época, o público tinha que se curvar ao
comportamento dos membros da nobreza, pois eram seus convidados, tendo
eles patrocínio exclusivo do teatro do período. No século XVIII o teatro se
tornou mais acessível,165 e com o passar do tempo o foco do ator passou a
impressionar a totalidade do público, e não mais apenas uns poucos da platéia.
Roubine afirma que com a ascensão da burguesia, apareceu o teatro “para o
163 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 103 164 Ibidem. p. 104 165 Ibidem. p. 105
45
povo”, e que ele deixou de ter o objetivo de perpetuar os valores aristocráticos
e a ideologia monarquista.166
Mas mesmo assim, o público permanecia preso às tradições do século
XVII.167 Sennett observou este fenômeno afirmando que a platéia impunha ao
ator e ao dramaturgo uma restrição: eles não podiam nem tentar fazer algo que
já não tivesse sido feito antes.168 A platéia desaprovava, e até mesmo ficava
repugnada, quando isto acontecia. Principalmente se a inovação envolvesse
uma quebra com a idealização estabelecida nas peças da época.169 Isto porque
uma peça não apenas “simbolizava” a realidade, mas a criava através das
convenções da realidade. O problema é que o público não se chocava com a
realidade representada, mas ficava perturbado porque não poderia deixar de
crer nele.170 De fato, esta restrição fez com que pouco inovasse no século XVIII
em relação ao dinamismo do enredo.171
Outro ponto importante para o teatro do Antigo Regime era o papel da
fala. Segundo Sennett, não existia, no século XVIII, a conversão de sinais em
símbolos.172 A pressuposição de um significado por trás de uma expressão
pareceria estranha, para uma sociedade da época. O ato de falar era fazer uma
afirmação forte, efetiva, acima de tudo independente e emocional. A fala diante
de uma platéia, então, era um momento absoluto, uma suspensão completa de
movimentos, que acabava por causar emoções fortes no público porque este
gesto era absolutamente crível por seus próprios termos.173 A emoção não era
causada pela cena em que ocorre a fala, mas sim pela fala em si mesma, não
pelo que representava, mas pelo que se referia. Uma atitude similar, mas não
tão acentuada, se observa em relação à ação.
A tarefa de todo teatro é a criação de um padrão de credibilidade interno
e auto-suficiente.174 Nas sociedades européias do século XVIII, onde as
expressões eram tratadas como sinais e no como símbolos, esta tarefa fica
mais fácil. Nelas, a “ilusão teatral”, já explicada, não tinha conotação de
166 ROUBINE, J. J. Introdução às grandes teorias do teatro, Rio de Janeiro, 2000. p. 126 167 Ibidem. p. 73 168 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 106 169 Idem 170 Idem 171 GUINZBURG, J; GASSET, J. O. y, A idéia do teatro, Madri, 1966. p. 26 172 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 106 173 Idem 174 Ibidem. p. 107
46
irrealidade, e sua criação era apenas a realização de um poder de expressão
em uma obscura “vida real”.
Se a palavra era real e a fala, em qualquer momento, era crível mesmo
sem referência ao que estava acontecendo na peça, a espontaneidade
instantânea da platéia era libertada. As pessoas não tinham que estar atentas a
ponto de precisar promover a todo instante um processo de decodificação para
saberem o que realmente estava sendo dito, através dos gestos. A
espontaneidade era então produzida pela artificialidade,175 não tendo o ator
representar no palco de forma natural em relação ao personagem. Isto pode
estar relacionado com a maneira com que não havia preocupação em dar um
figurino ou uma representação adequada ao período temporal e espacial
tratados por uma peça, já que isto não era considerado relevante, nem sequer
cogitado por atores e dramaturgos da época do Antigo Regime.
3.3 As especificidades do teatro português
O teatro português do século XVIII foi importado da França, em uma
tentativa de tornar Portugal mais próximo das outras nações européias. De
fato, existia no país um certo isolamento que causava espanto à visitantes
estrangeiros que iam até lá, como era retratado nos registros da época.
O impulso não se restringia ao teatro. Havia uma política para adotar
certos costumes da França que se estendiam também à moda e aos costumes.
Com as relações sociais a situação era mais complicada, não sendo poucos
aqueles que acusavam os “costumes estrangeiros” de subversivos e ruinosos à
sociedade. O desejo de imitar o comportamento dos franceses fez com que
houvesse uma artificialização deste comportamento. Característica já definida
como artificial para os franceses (de acordo com o definido por Sennett), para
aqueles que procuravam imitá-lo parecia ainda mais artificial.
Segundo Lopes, o teatro se revelou um ótimo lugar para convívio social
desligado das obrigações de representação rigorosas. Então houve um grande
entusiasmo por este tipo de entretenimento por parte da população, tanto na
175 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988. p. 107
47
capital como na província.176 Estava na moda ir ao teatro, e em Portugal o nível
de patrocínio do entretenimento por parte da Coroa era mais intenso do que em
outros lugares da Europa, fazendo com que mais gente tivesse condições de ir
ao lugar. Lopes observou que até as mulheres, que geralmente ficavam
trancadas em casa, puderam ir ao teatro.
O ato de ir ao teatro tinha virado moda, mas de acordo com registros da
época, não era comum que se desse muita atenção ao que estava ocorrendo
no palco.177 Evidência de que o teatro tinha a mesma função social em Portugal
do que na França e na Inglaterra. Os indivíduos iam nele para verem e para
serem vistas, sendo este uma grande fonte de divertimento na época.
A resistência a enredos inovadores fez-se sentir fortemente em Portugal.
De fato, Sampaio observa que houve uma produção de peças de teatro muito
baixa no século XVIII.178 Note-se que no caso da análise de Portugal, “enredos
inovadores” se referem ao fato de peças que promovessem costumes alheios
aqueles estabelecidos como tradicionais na sociedade. De um modo geral,
Portugal, se considerando uma nação mais conservadora do que as demais,
sofria, no tocante à representação teatral, uma constante polarização entre
aquilo que pertencia à tradição, e aquilo que quebrava com esta tradição. Sinal
de que se havia um desejo pela modernização do país, por outro havia uma
grande desconfiança em relação à modernidade e um desejo de manter a
sociedade estável.
Textos estrangeiros tratavam de ser adaptados à realidade portuguesa
quando traduzidos.179 Passando pela Real Mesa Censitória, se tratava de
reprimir idéias modernas, quando não “subversivas”, e se inseria discursos
tradicionalistas no lugar. Lopes fez sua pesquisa baseada na condição feminina
em Portugal no século XVIII, e portanto também observou que os conceitos
acrescentados nas traduções envolviam misoginia.180
Até mesmo o modo como o ator poderia representar os personagens
estava sob controle de uma força maior. Podem-se encontrar autores de peças
176 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989, p.152 177 Idem 178 SAMPAIO, A. F., As melhores páginas do teatro português, Lisboa. 1933. p. 22 179 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989, p.166 180 Idem
48
portugueses do período que se opunham ao uso de máscaras e de
maquiagem, devido à liberdade de atuação que permitiam.
Não apenas de traduções era constituído o teatro português da época
selecionada. O teatro genuinamente nacional era baseado na literatura de
cordel. Isto tornava o diálogo com o público muito fácil, porque este tipo de
literatura já era fortemente ligado ao povo. Pois que este ramo do teatro
português desempenhou papel decisivo na resistência aos novos costumes e à
defesa da sociedade tradicional.181 Este tipo de teatro revela dois importantes
aspectos para o conhecimento da sociedade portuguesa, segundo Lopes.
Retratando e criticando a desenvoltura e a revolta feminina nos estratos sociais
baixos, por exemplo, revelou até que ponto tinha atingido a modernidade em
Portugal. O outro aspecto que é revelado é a opinião dominante do público. A
partir deste conceito pode-se perceber a importância de se usar o teatro para
que se possa ter pistas sobre a mentalidade de um determinado grupo de
indivíduos em um determinado período da história. Se a representação é uma
construção que se faz sobre o real, pode-se lembrar que o teatro é um tipo de
entretenimento feito para o público, e por isso responsivo ao que lhe agradava.
A isto entram outros aspectos como a abstração do real e da artificialidade da
representação, que devem ser levados em conta ao se pesquisar a influência
do teatro na formação da mentalidade de uma sociedade.
Há dois problemas que podem aparecer ao se fazer este tipo de
afirmação sobre o teatro. Primeiro, se tem a informação, irrefutável, de que
apesar da popularidade do teatro no período lidado, nem todos os membros da
sociedade iam ao teatro, mas sim um certo segmento desta sociedade.
Segundo, e este argumento está especialmente direcionado ao teatro
português, é o fato de que o que era apresentado no teatro era a visão de
mundo apresentada por um autor, que tinha como objetivo fazer a sociedade
funcionar de uma maneira considerada adequada. As idealizações típicas do
teatro deste período partem deste princípio, causando um divórcio definitivo da
representação com a realidade.
Na defesa do uso do teatro como fonte para estudo de mentalidades e
de estruturas em uma sociedade, podemos conceber o primeiro problema ao
181 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989, p.165
49
definir que, se nem toda a sociedade ia ao teatro, mas apenas um segmento
dela, este segmento que ia ao teatro era, de qualquer forma, parte integrante
da sociedade, sendo inclusive um segmento significativo, e seu papel na
sociedade não poderia deixar de ser visto como relevante. O segundo
problema pode ser contornado, pelo menos parcialmente, ao se observar de
que há evidências de que muitas vezes o comportamento do público era
influenciado pelo comportamento no teatro. Lopes observou isto, afirmando que
ao mesmo tempo o teatro fazia uma defesa dos costumes tradicionais da
sociedade, e divulgava os novos costumes.182 Esta era uma das maneiras com
qual a moda se espalhava.
O teatro português apresentava certos arquétipos que se revelam muito
comuns em peças da época. Um destes arquétipos é a figura do criado.
Segundo Lopes, o criado, na representação teatral, simboliza uma mentalidade
retrógrada, ilustrando o pensamento conservador, uma vez que provém do
meio rural ou estrato urbano muito baixo.183 Ele participava da peça como
cúmplice de seu patrão, a pessoa que agia nos bastidores para que a vontade
de seu patrão fosse conquistada. A relação entre criados e patrões incutia uma
relação de confiança entre as partes, onde havia uma troca de favores, um
serviço por uma recompensa. Apesar da relação de dominação entre patrões e
criados, os que eram retratados nas peças podiam muitas vezes se contrapor à
opinião de seus patrões.184 Os criados tinham uma certa liberdade de
representação nas peças, mas não a mulher.
Em peças de teatro que lidavam com situações domésticas, deve-se
fazer uma observação antes que se possa entender sua estruturação. Assim,
peças que lidam com este tipo de situação quase sempre entravam na
categoria de entremezes. O entremez é um termo que apareceu na Idade
Média, sendo originalmente a designação de breves divertimentos que
ocorriam entre os pratos servidos em banquetes de festas cortesãs. No século
XVI o termo passou a definir exclusivamente uma pequena representação de
caráter burlesco, composta por canto, dança, gesto, e um texto rudimentar em
prosa, que aparecia entre os diferentes atos de uma peça dramática mais
182 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989, p.177 183 Ibidem. p. 168 184 Ibidem. p. 176
50
longa. Destinava-se a combater o eventual desinteresse do público que
porventura se divertiria mais com o caráter episódico e cômico do entremez,
identificando-se melhor com estes personagens que punham em cena as
fraquezas mais comuns da sociedade humana. A dor e a maldade eram as
principais fontes de comicidade destas representações sem quaisquer fins
didáticos, que mostravam cenas caricaturais da vida cotidiana, como enganos
conjugais ou o escárnio pelo próximo.
O entremez, progressivamente, foi alcançando independência perante a
comédia e a tragédia, às quais andara associado na fase anterior. No início do
séc. XVII, conheceu um grande desenvolvimento em Espanha e Portugal,
tendo adotado o verso em alguns dos seus textos e tendo perdido o seu caráter
episódico em favor da criação de uma história linear que conduzia a um
desfecho lógico. No século XVIII, o entremez passou a designar peças curtas,
de apenas um ato, que eram exibidas para entreter o público entre os atos de
uma peça maior, e que tinha uma função didática, especialmente considerando
o público o qual eram dirigidos.
Nos lares representados em entremezes, o personagem que retrata o
homem da casa, ou seja, o marido, o pai, é sempre o líder absoluto das
decisões tomadas. E a representação era enfática em afirmar os valores da
autoridade masculina: quando em qualquer situação teatral o homem, como
chefe do lar, cedesse ao apelo de outro personagem, o resultado era
desastroso.185 As peças que tratavam de situações domésticas tinham enredo
e final muito previsíveis. A situação-problema apresentava neles geralmente
era de algum personagem subordinado à autoridade do chefe da casa (o pai ou
o marido), que desafiava a ordem estabelecida, entrando em conflito com a
posição do personagem dominante. No final o que desafiou a autoridade de
seu superior geralmente acabava pedindo desculpas e o enredo terminava com
uma lição de moral visando o bom comportamento dos indivíduos e o seu
respeito com a ordem hierárquica. A única exceção, segundo Lopes, era se
este personagem de posição superior seguisse uma conduta reprovável, ou
185 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989. p. 168
51
seja, que fosse o arquétipo que na época era definido como peralta.186 O
peralta era o tipo de personagem que representava o “mau exemplo”, aquele
que seguia uma conduta escandalosa e como já foi dito, reprovável. Ele
poderia ser o velho que queria casar com uma jovem para obter a fortuna de
seu pai, o mentiroso e trambiqueiro em busca do dinheiro fácil, o falso médico,
etc.
Enfim, a censura obrigava para que o personagem do peralta fosse
punido. Ele não poderia se safar das situações que causava. Neste caso as
relações de dominação que o personagem ficavam esquecidas. Sua mulher e
seus filhos não precisavam mais dever-lhe obediência, e seus criados não
precisavam mais ser leais a ele.
As mensagens que apareciam nas peças não eram direcionadas apenas
à uma determinada classe social. Havia mensagens para todas as classes,
para homens e mulheres, para que mantivessem a ordem estabelecida.187 O
entremez era o tipo de peça mais abrangente para a sociedade, pois era
baseada na literatura de cordel, a única leitura que as classes inferiores tinham
acesso.188 O papel do teatro como porta-voz da moda estrangeira se faz
evidente neste caso ao se notar que as classes inferiores, em sua vida
cotidiana, estavam isolados dela. Fora do teatro, ela aparecia somente em
círculos de classes mais elevadas, os quais eram inacessíveis para boa parte
das classes baixas.
O entremez é, talvez, o tipo mais importante de peça ao se tratar de usá-
las como fonte de informações para desvendar as estruturas que compunham
a sociedade portuguesa do Antigo Regime.189 Isto porque ele é um tipo de peça
que se foca na vida cotidiana, apresentando estruturas quê estavam presentes
nela. Não que fosse uma representação do real totalmente acurada, mas era
um tipo de representação mais natural do que a que ocorria em peças mais
longas.
Similarmente, pode-se definir o gênero teatral da comédia como sendo
mais importante do que a tragédia no caso do tipo de análise aqui proposta.
186 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989. p. 170 187 Ibidem. p. 174 188 Ibidem. p. 177 189 Ibidem. p. 183
52
Isto porque a comédia era um tipo de representação que mostrava certos
elementos da sociedade de forma caricata, além de expor certas noções ao
ridículo. Geralmente estas noções envolviam os costumes da modernidade. A
comédia visava a exposição de certos elementos da sociedade ao ridículo
tendo como objetivo a “regular” o comportamento dela.190
A moda era retratada na comédia de maneira geralmente negativa. Isto
pode refletir a posição da sociedade portuguesa do século XVIII em relação à
moda. Segundo estas peças, a moda era vista com certo desdém e
desconfiança, por parte da sociedade. A partir de algumas conjecturas, pode-
se concluir que a desconfiança em relação à nova moda talvez fosse reflexo
das classes sociais que não teriam condições de acompanhá-la. Ou seja, um
reflexo que negasse, de certa forma, a superioridade das classes superiores.
Em primeiro lugar deve-se lembrar que os que tinham acesso à nova moda
eram os membros destas classes superiores, sendo ela inacessível às classes
baixas. Em segundo lugar, se deve considerar para que classes era dirigido
este tipo de peça de teatro. Mas de qualquer forma, mesmo na representação
teatral, existiam personagens, que mesmo pertencentes a estratos baixos da
sociedade, ainda assim pareciam obcecados com a moda. Isto pode ser uma
manifestação do desejo pessoal de melhorar a sua própria representatividade
na sociedade, através da imitação do modo de vestir das classes mais altas por
parte de indivíduos pertencentes à classes mais baixas, como definido por
Sennett.191
A tragédia não é muito eficiente para delinear as características da
sociedade porque ela frequentemente tratava de situações clássicas, passadas
em outros espaços temporais. Mesmo ao lembrar que no teatro da época em
questão não havia noção de como os personagens deveriam se comportar
segundo onde se situava no plano espacial e no temporal, a tragédia tem
pouco a oferecer como material de pesquisa sobre as características de uma
sociedade, comparada com a comédia. O objetivo da tragédia era
simplesmente a catarse, comover o público, sem nenhuma preocupação com o
meio social. A tragédia carecia da espontaneidade que fazia com que a
190 LOPES, M. A. Mulheres, espaço e sociabilidade, Coleção Horizonte Histórico, livros Horizonte, Lisboa, 1989. p. 185-186 191 SENNETT, R. O declínio do homem público, as tiranias da intimidade, São Paulo, 1988, p. 96
53
comédia se estabelecesse como um meio mais útil para se fazer conjecturas
sobre sociedades do Antigo Regime.
3.4 As estruturas da dádiva e da hierarquia como re tratado na amostra
de entremezes e peças teatrais
Para que se torne possível analisar as estruturas propostas como se
estabeleciam nas peças, foi selecionado uma amostra de peças portuguesas
da segunda metade do século XVIII, bem como uma traduzida, de
principalmente entremezes. As peças foram selecionadas de forma aleatória,
que tratam de temas diversos, mas quase todas lidam com um ambiente
familiar, pois como já foi discutido, as relações de dominação eram baseadas
na estrutura familiar. Além disso este ambiente era onde o público tinha mais
familiaridade e por isso o enredo podia ser mais espontâneo, e portanto,
revelador das características da sociedade em questão.
Podemos perceber uma relação entre criado e patrão logo no início do
entremez Os amantes arrufados, de Antonio Gomes. Dois personagens,
Felisberto, o patrão, e Marotinho, seu criado,192 conversam sobre o interesse
amoroso de Felisberto em Dorina, uma lacaia.193 Esta ignora o assédio de seu
pretendente e vai se aconselhar com sua patroa, Nize, que o acusa de ser falso
e manda sua criada ignorá-lo. O criado de Felisberto tem participação ativa nas
ações de seu patrão, mas não exerce poder direto sobre ele, como se fosse
sua consciência, mas também é artífice da vontade de seu patrão, agindo nos
bastidores:
Felisb. Porque do meu amor não sente a seta? Mar. Porque Omnis variato dilecta. Felisb. E não dá para isso causa alguma? Mar. Não o quer acreditar? Não dá nenhuma. Felisb. Visto isso ficar posso sciente que nada quer comigo? Mar. Certamente. Fora, já são três vezes que repito que certamente disse; e tenho dito. Felisb. Esta ancia Marotinho, me devora. Mar. Não vomites aqui, vai alli fora. Felisb. Estou capaz.
192 Vemos aqui um caso comum no entremez, o personagem subalterno não possuía um nome, mas um “apelido”. 193 Lacaia era uma criada astuta. Isto levaria a pensar que as relações amorosas, como retratado nos entremezes, não eram restritas à mesmas classes sociais. Porém, ao se ler o desfecho destes entremezes, se nota uma realidade diferente.
54
Mar. De que? Falla depressa. Felisb. Pregar à tal senhora huma tal pessa. Mar. Bem que de artelharia a pessa seja, depois do variatio já sobeja. Mas que pessa lhe queres tu pregar? Felisb. Buscar a outra madame, a quem amar. Mar. Se ella já te deixou, pessa escuzada; Pois quem deixa, não o sente ser deixada. Felisb. Como te enganas, sempre o amor primeiro, deixa o coração hum formigueiro. Mar. Mas se do esquecimento chega o fogo, ao velho formigueiro mata o novo. E dizes a quem pertendes namorar? Felisb. Não conheces Madame Rebaltar? Mar. Essa he, se a idea não engana, aquela dançarina italiana bonitinha, magrinha, e hum tanto alta que affim debaixo para cima falta. Felisb. He essa mesma: vai-lhe tu fallar; E este bilhete faze por lhe dar.194
A “peça” que Felisberto e seu criado pregam em Dorina levam os dois a
terem uma briga e uma troca de acusações com ela e sua ama, e Marotinho
acaba se interessando por Dorina. O entremez termina com a união entre os
dois patrões e os dois criados. “Cazem-se os amos, cazem-se os criados”.195
Este entremez mostra claramente relações de hierarquia e de dádiva. O
primeiro conceito está relacionado a forma de que os personagens se
relacionam: criados sendo confidentes e ao mesmo tempo submissos aos seus
patrões e laços amorosos estando restritos à indivíduos de mesma classe
social, mesmo que no enredo houvesse, inicialmente, um desejo de não seguir
esta regra. A respeito da dádiva, esta está presente no “prêmio” recebido pelo
criado, por ter cumprido a vontade do patrão, o amor da criada. Em nenhum
momento, no entremez, o subalterno indica a seu superior o desejo de receber
recompensa, mas isto parece estar implícito nas relações sociais entre
indivíduos do Antigo Regime. O criado espera receber uma gratificação sem
que isto precise ser indicado pelo seu amo.
Se o criado não via nenhum ganho próprio em alguma ação solicitada
por seu patrão, ele se recusava a cumprir tarefas que lhe fossem designadas,
ou até se disponibilizava a ajudar alguém em que fosse possível o recebimento
de uma recompensa. Isto aparece nos entremezes Peraltice vaidosa, de
Antonio Gomes, e O castigo da ambição, de José da Silva Nazaré. Não é a
lealdade cega que motiva o criado, mas sim a possibilidade do recebimento de
194 GOMES, A. Os amantes arrufados. Lisboa. 17??. ps. 2-3 195 Ibidem. p. 16
55
uma dádiva. O criado não hesitava em mudar os seus atos e a quem apóia em
benefício próprio.
Em Chocalho dos anos de Dona Lesma, de Leonardo José Pimenta e
Antas, vemos um caso que demonstra a razão da subordinação dos filhos
diante do pai. No enredo deste entremez, temos Valentim, descrito como
“peralta”, que é filho de Severino. Desapontado com as “peraltices”, Severino
mostra sua determinação em punir o filho com o açoite para que ele “se
alinhasse”. Valentim, por sua vez, mostra-se arrependido, e promete ao pai que
vai se “endireitar”.
Sev. Não faltarei às leis da humanidade:foste insolente, castigar-te quero,cumprindo a obrigação de pai severo. Val. Eu prometo, meu pai, de me emendar. Sev. Olhe bem o que dizes. Val. Se eu faltar, use do seu rigor,mate-me agora.196
Outro entremez, Amor artífice, de Antonio Rodrigues Galhardo,
apresenta outro enredo típico: dois jovens amantes e seus respectivos criados,
sendo o obstáculo a ser superado, o personagem do tutor da jovem, que quer
casá-la com um “homem de bem”. Esta jovem não se conforma com a
situação.
Caz. Pérfido e cruel destino, baste já de ser tyranno, e o falso, que me despreza, muda-lhe o gênio de ingrato. Sempre vem por estas horas,falar a seu bem amado, que me rouba os seus affectos, e me expõem a tanto damno, quando experimento no exame, opprimida de mil sustos, e cercada de cuidados.197
Através de uma armação, Leandro e seu criado Pelaio conseguem ter a
aprovação de Geronte, o tutor, para casar-se com Cazimira. Mais uma vez, os
criados agem como subalternos confidentes, agindo nos bastidores, conforme
a vontade de seus patrões, e Pelaio consegue, como recompensa pelos seus
esforços, a união com a criada de Cazimira. Nota-se a autoridade incontestável
da figura do tutor (personagem raro, na maioria das vezes o personagem é o
pai da moça). Não importa se é injusto ou tirano, ele está em nível hierárquico
superior e é necessário que se obtenha sua aprovação para se faça algo que
196 ANTAS, L. J. P. Chocalho dos anos de Dona Lesma. Lisboa. 1783. ps. 13-14 197 GALHARDO, A.R. Amor artífice. Lisboa. 1782. p. 9
56
está sob seu controle. Contudo, é observado que os entremezes apresentam a
idéia de que é possível que o indivíduo hierarquicamente superior mude de
opinião, mesmo que seja através de artimanhas. Esta por sua vez, tão comum
nos entremezes, pode ser uma maneira encontrada pelos autores para driblar o
autoritarismo das relações sociais do Antigo Regime. Mesmo que algo seja
reconhecido como justo, não se é permitido desafiar abertamente alguém de
hierarquia superior que tenha opinião contrária, muito menos contrariar sua
vontade. O fato deste alguém hierarquicamente superior mudar de idéia visa
mostrar as vantagens de não quebrar a ordem social, pois se algo for
realmente justo, o superior certamente terá juízo para reconhecer este algo
como tal.
De fato, nesta amostra, há um único entremez onde a vontade de um
indivíduo de hierarquia superior tem sua vontade abertamente contrariada, O
velho louco de amor e a criada astuciosa, de Francisco Borges de Sousa. Isto
acontece porque o tal indivíduo é um idoso senil, e portanto, sem controle de
suas vontades, agindo de maneira reprovável para sua posição, pois é
avarento e deseja o amor de uma criada, não possuindo “vergonha”.
Em Casadinhos da moda, de Leonardo José Pimenta Antas e José
Gomes, há um choque de gerações. Há D. Tarella, André e Pandorga, seus
pais, e Zangado, o pai de André. Enquanto que este último demonstra repúdio
as novas modas e costumes, Tarella, da geração mais jovem, mostra-se
deslumbrada por eles, com a geração intermediária relutando a aceitá-las,
embora claramente deslumbrada. Apesar de André já estar casado e ter sua
própria família, ainda assim presta deferência à seu pai, revelando uma
subordinação eterna de um indivíduo à geração mais velha.
Outra característica notável deste entremez é a presença de dois níveis
de serviçais. Há o personagem da criada e o da “preta”, uma negra. Enquanto
que a criada apresenta seu papel rotineiro em entremezes, a “preta” tem um
papel ainda mais subalterno, estando abaixo até mesmo da criada. Com fala
errada (colocada intencionalmente pelos autores), a função da “preta”,no
entremez, se restringe ao trabalho de cozinheira e de lavadeira. Ela não
assume um papel ativo na trama, como a criada. Se poderia considerar a
hipótese de a “preta” ser uma escrava, embora o entremez não o mencione.
57
A situação teatral de dois amantes precisarem convencer o pai da moça
a aceitar o relacionamento dos dois, tendo que driblar a submissão das
relações hierárquicas através de artífices, está presente em vários entremezes
da amostra. Além dos já citados, esta situação aparece também em A noiva
fingida, de José de Aquino Bulhoens, O casamento gostoso, de Caetano
Ferreira da Costa, O bruxo por arte e o tutor desenganado, de Simão Tadeu
Ferreira. A astúcia das criadas, de Francisco Borges de Sousa, Casamento por
nova idéia, do mesmo autor, Os amantes desconfiados, de Francisco Sabino
dos Santos, e A astuciosa idéia do criado, de Felipe José de França e Liz.
Outro detalhe importante percebido nas peças são os artífices usados
pelos indivíduos hierarquicamente superiores fazer valer sua autoridade. Um
deles é a chantagem emocional, que pode ser percebido no entremez A
astuciosa idéia do criado, quando o personagem Flávio, estando zangado com
a desobediência de sua filha, diz “Ai que morro, ai que rebento ? O meu crédito
arrainado. Ah filha ingrata.”198 Este detalhe pode ser visto também nos
entremezes Casquilharia por força e A bulha do marido com a mulher por
cantar a ratazana, ambos de Domingos Gonçalves.
Em A bulha do marido com a mulher por cantar a ratazana vemos um
enredo (e um desfecho) que demonstra bem a intenção dos autores de
entremezes de demonstrar os bons costumes e a importância dos indivíduos
hierarquicamente superiores em zelar por eles. A história deste entremez
envolve uma mulher querendo cantar a “ratazana” que parece ser um tipo de
canto da moda da época. O personagem do marido,199 Pantalão, o ser
hierárquico superior, se opõe ao desejo de sua mulher, Peripatética. No
desfecho, a mulher “aprende a lição”, e jura nunca mais fazer algo semelhante.
Todos os personagens concordam sobre a sabedoria do marido e filosofam
sobre as vantagens de evitar as “desordens”. O desfecho se dá após uma
discussão entre o marido e sua mulher, pois ela reivindica uma liberdade maior
por ter instrução, e ele tenta fazer valer a sua autoridade sobre ela:
Pant. Que doutora, que baxarella, não senhora não me ofende mas não quero, posso mandallo e V. m. deve-me obedecer, para isso sou seu marido, e dono desta caza, tem-me entendido ?
198 LIZ, F. J. F. A astuciosa idéia do criado. Lisboa. 1790. p. 15 199 Descrito no entremez como “velho”. Quando aparecia alguém em uma peça com esta descrição, ele tendia a se opor ao moderno, como foi discutido por Maria Antónia Lopes.
58
Perip. Eu não sou sua escrava, quero divertir-me, quero cantar.200
Como se percebe neste entremez, o fato da personagem subordinada
ter instrução ou de reivindicar maior liberdade não significam nada, e no fim ela
acaba por ter de aceitar sua submissão. Os dois personagens criados deste
entremez simpatizam com a sua patroa, comentando que ela é uma “pobre
infeliz”, mas um dos criados demonstra maior interesse por recompensas, e por
isso denuncia ao velho marido o que sua esposa andava fazendo, em troca de
algumas regalias. Isto revela que, ao menos nas peças teatrais, o criado,
apesar de possuir consciência própria, não a demonstrava nas relações com
seu patrão, e o que o motivava a realizar a vontade deste, mesmo não
concordando com seu ponto de vista, era a possibilidade de receber
recompensa pelos seus serviços. Mais uma vez deve ser lembrado que as
relações interpessoais entre indivíduos de nível hierárquico diferente, em
sociedades do Antigo Regime, eram baseadas na troca de serviços e de
dádivas.
Se o indivíduo hierarquicamente superior devia ser estimado e
respeitado pelos outros, ele devia se mostrar digno de sua posição, não se
engajando em condutas comportamentais reprováveis, ou perderia a
deferência dos seus subordinados. Isto é o que mostra o entremez O velho
louco de amor e a criada astuciosa, de Francisco Borges de Sousa. Nele, o
personagem Octávio está apaixonado por sua criada Angélica, e quer casar
com ela. Este tipo de mistura entre duas classes sociais era reprovável na
sociedade portuguesa do Antigo Regime, e por isso os outros personagens
armam um esquema e contrariam abertamente a vontade de Octávio. Angélica,
ciente de sua posição social, não almeja casar-se com ele, mas sim com
Maturino, um criado como ela, mas finge aceitar a proposta do patrão, exigindo
algumas regalias, entre as quais ela aproveita para pedir que ele deixe as duas
filhas dele se casarem com os maridos que escolhessem (isto era a trama
secundária do entremez, mais um típico caso de um criado ajudando o filho de
seu patrão a driblar a vontade de seu pai). Octávio tenta fazer chantagem,
lembrando as coisas que deu à Angélica, mas por fim acaba reconhecendo seu
200 GONÇALVES, Domingos. A bulha do marido com a mulher por cantar a ratazana. Lisboa. 1785. ps. 11-12.
59
erro e aceita seu castigo, que é ter concedido dádivas sem receber nada em
troca. Temas similares a este podem ser vistos em O castigo da ambição, de
José da Silva Nazaré, e em O velho peralta, de Francisco Sabino dos Santos.
Em O velho peralta podemos ver uma relação hierárquica diferente das
tradicionais patrão-criado, marido-esposa e pai-filho. Neste entremez há um
personagem de um alcaide, e ele aparece para punir o velho indicado no título
do entremez, acusando-o de dar mau exemplo à suas filhas. O que se percebe
no entremez é que ao lidar com um personagem de um indivíduo tão
hierarquicamente superior, os outros personagens não falavam com ele a não
ser que requisitados, e o tratam com termos como “Senhor”. Personagens
ligados às autoridades, como este alcaide, eram raros em peças, pois a
censura da época exigia que se demonstrasse respeito por eles. Jamais
poderiam ser satirizados, e por isso quando apareciam tinham participações
breves, sem nome (provavelmente para que se não associasse o personagem
a alguma autoridade), e eram sempre apresentados como extremamente justos
e sem falhas de conduta, apareciam para julgar e corrigir algum personagem
de conduta reprovável.
Em contrapartida, personagens ligados à nobreza eram retratados de
forma menos idealizada nos entremezes. Em A casa de dança, de Domingos
Gonçalves, há um personagem de um barão, de um duque e de um conde.
Neste entremez, existe uma deferência prestada a eles pelos outros
personagens, mas são personagens ativos no enredo, não sendo idealizados.
Deve ser lembrado que na época retratada, final do século XVIII, a nobreza
tinha perdido importância, o poder estava concentrado nas mãos do rei. Por
causa disto, não havia tabu em retratá-los em peças como havia para
autoridades do governo.
Há entremezes que lidam com a relação de indivíduos de condição
hierárquica supostamente iguais, mas que mesmo assim disputam
superioridade entre si. No entremez O barbeiro pobre, outra peça de Francisco
Borges de Sousa, há uma situação destas. O enredo é ambientado em uma
barbearia, onde entram um marujo, um almocreve201 e uma velha, e todos
querem ser atendidos primeiro. O marujo e o almocreve discutem sobre quem
201 Carregador de mercadorias e/ou de animais de carga de uma região para outra.
60
tem o ofício mais importante e por isso teria prioridade no atendimento. Um
tenta denegrir a profissão do outro, através de argumentos como “um marujo
não acompanha gente de bem”.202 Aqui se vê a tendência de indivíduos ligados
ao povo de sempre hierarquizar suas relações. A velha, por sua vez, diz sofrer
uma terrível dor de dente,203 e apela aos “bons senhores” que façam um gesto
de caridade e a deixem ser atendida primeiro. O barbeiro simpatiza com ela e
pede para que os dois realizem o pedido dela. Porém, nenhum deles está
disposto a fazer isto. O fazem porque não tem nenhum vínculo com a velha e
por isso não tem nada a ganhar ao conceder esta dádiva a ela. A velha por fim
diz que conhece uma moça rica e que poderia ajudar um dos dois conflituosos
a casar-se com ela se eles a ajudarem, mas apenas o almocreve demonstra
interesse, e isto acaba piorando a situação, e o almocreve e o marujo partem
para a briga.
Para efeito de comparação sobre as características aqui discutidas, foi
selecionado algumas peças produzidas fora de Portugal, por exemplo da
França, cujas foram traduzidas e apresentadas naquele país.204 Então, temos
O amante jardineiro, de Florent Carton de Ancourt, traduzida por Francisco
Sabino dos Santos, O peão fidalgo e Tartufo, ambas de Jean Baptiste Molière,
sendo a primeira traduzida por Manuel Sousa e a segunda tradutor
desconhecido.
Na peça, O amante Jardineiro, temos um enredo típico, dois jovens
apaixonados, precisando da aprovação do pai da moça para se casarem. Mas
nesta peça, o rapaz em questão é um jardineiro, alguém de categoria social
inferior à da moça. Previsivelmente, a união entre os dois não se torna
possível, com o jardineiro sendo desmascarado como falsário interesseiro e a
moça pedindo perdão e se reconciliando com o pai. Não foi possível achar a
peça original para verificar se este desfecho existia também na versão original
ou se foi uma “adaptação” da peça aos costumes da sociedade portuguesa. De
qualquer forma, foi mantido o padrão seguido nas demais peças.
O peão fidalgo segue o padrão de enredo em que o criado ajuda a filha
do patrão a se unir com eu amante através de artifícios, ao se disfarçar de
202 SOUSA, F. B. O barbeiro pobre. Lisboa. 1792. p. 9 203 No passado, os barbeiros tinham a função de dentistas. 204 Deve-se lembrar que as peças eram “adaptadas” aos costumes portugueses.
61
fidalgo e propor o casamento da filha com um príncipe turco, que logicamente é
o amante disfarçado. Nota-se que o pai da moça, nesta peça, está disposto a
aceitar o casamento entre sua filha e o suposto príncipe. Percebe-se a
aspiração dos indivíduos em fazer suas famílias subirem na escala social. E
tudo para que este pai acreditasse que o amante era mesmo um príncipe foi a
aparência. Não julgou ser necessário exigir provas da nobreza do outro
indivíduo.
Na famosa peça Tartufo, vemos que para a ascensão social, escrúpulos
eram dispensáveis. Todos queriam acumular títulos e privilégios, mas Molière
não tratou da questão da dádiva na peça, não se podendo fazer uma análise
do sistema de troca de serviços e de recompensas, que movimentava o
sistema de relações em sociedades do Antigo Regime. A peça tem elementos
comuns às relações hierárquicas da época, como se pode ver, por exemplo, na
cena em que Damis é deserdado pelo seu pai Orgon, porque denunciou que
Tartufo estava tentando seduzir a mulher dele. Orgon não acreditou em seu
filho porque Tartufo era um indivíduo “respeitável”, hierarquicamente superior,
de grande reputação, e que por isso sua palavra tinha mais valor do que a de
Damis.
62
4 CONCLUSÃO
O estudo monográfico apresentado teve o propósito de demonstrar
como se construíam as relações sociais em Portugal na segunda metade do
século XVIII, com enfoque em duas das mais importantes características
destas relações, hierarquia e a dádiva, com base no que as peças teatrais do
período poderiam informar, além de evidenciar porque o teatro pode ser usado
como fonte histórica para entender estas características.
Assim sendo, é possível afirmar que as fontes utilizadas na pesquisa (as
peças) demonstram uma visão idealizada das relações sociais da sociedade da
época que retratam, mas ainda coerente com o que relatam as obras teóricas
que tratam do período.
A sociedade de Antigo Regime era uma estrutura que funcionava com
ênfase no conceito de representação, o que fazia com que a própria vida se
tornasse um “teatro”. Os indivíduos sempre “representavam um papel” ao estar
em público, sendo o seu próprio corpo um “manequim”, e construíam suas
relações sociais de forma artificial, nunca demonstrando o que era o seu
verdadeiro “eu” em público. Apenas no meio privado é que as pessoas
demonstravam maior liberdade.
O ambiente teatral era um ambiente onde, paradoxalmente, as pessoas
se permitiam maiores liberdades. Como Sennett evidenciou, as pessoas
reagiam espontaneamente neste ambiente, se identificando com os
personagens e sentindo suas emoções. Era como se o teatro funcionasse
como uma válvula de escape das obrigações da sociedade.
O entremez demonstrou ser o tipo mais relevante para coleta de dados à
pesquisa por ter uma abrangência de público maior, de setores mais diversos
da sociedade, e por retratar situações menos dramatizadas e mais ligadas à
realidade social.
A dádiva e a hierarquia ditavam as relações sociais da sociedade
portuguesa do Antigo Regime, principalmente ao se tratar de indivíduos de
diferentes classes sociais. A subordinação era clara e se levando em conta o
que revela a amostra de teatro, a possibilidade de ascensão social não era
comum, e nem desejada, pelo que a quantidade de enredos condenando esta
possibilidade leva a concluir.
63
Os autores que discorreram sobre as estruturas da sociedade do Antigo
Regime mencionaram a cumplicidade e a expectativa que se dava nas relações
entre patrões e criados, mas com os entremezes, onde estes tipos de relações
eram retratados com grande frequência, se tornou possível observar como elas
se desenrolavam na prática. Percebe-se que tudo o que o criado fazia
dependia da expectativa de recebimento de uma dádiva. Ele tinha
personalidade e consciência própria, mas agia conforme seu patrão
requisitava, em troca de uma gratificação.
Ao contrário do que Lopes afirmou, não se nota que o personagem do
criado apresentava um pensamento retrógrado nas peças. De fato, ele não
concordava com a mentalidade de seu patrão, caso fosse retrógrada, agiria de
qualquer forma, de acordo com a “modernidade” ou contra, desde que lhe
fosse garantida uma recompensa.
A questão da hierarquia e a dádiva estavam presentes em praticamente
todas as interações sociais da sociedade do Antigo Regime, segundo a
pesquisa demonstrou. Sendo uma “sociedade de representações”, tudo o que
envolvia um relacionamento entre indivíduos levava em conta a posição social,
o direito a privilégios e a expectativa de se estabelecer uma relação de troca.
Quando não havia uma superioridade social explícita de um indivíduo diante de
outro, mesmo assim gerava-se uma discussão sobre quem teria uma
prevalência na interação entre eles.
O fato de que a grande maioria das peças de teatro do período lida com
situações familiares confirmam que de fato, as relações de dominação da
sociedade do Antigo Regime tinham base no sistema de hierarquia familiar.
Estes tipos de relações eram entre pais-filhos e entre maridos-esposas, as
peças revelam que se esperava uma absoluta submissão por parte dos filhos e
esposas aos seus pais e maridos. Denota-se das peças o fato de como esta
estrutura hierárquica não era bem aceita e como era contestada, mas, tendo
conteúdo idealizado, as peças sempre apresentavam alguma contestação
desta estrutura como rebelde e nociva para o funcionamento do núcleo familiar,
e frequentemente mostravam em seus desfechos arrependimentos por parte
dos “rebeldes” e evidenciavam as vantagens de manter o sistema hierárquico
intacto. A subversão da estrutura hierárquica, como retratada na amostra de
peças, era considerada uma quebra do sistema de trocas entre
64
serviços/submissão e dádiva, sendo “ingrato” o insulto mais comum dirigido aos
subversores desta estrutura.
Os personagens recorrentes nos entremezes eram famílias compostas
de pais (ou tutores) e filhos (mais frequentemente uma filha), um ou mais
criados, e um personagem que era a causa do enredo (como o amante da
filha). Este era o ambiente com que o público estava mais familiarizado e por
isso era o espaço em que os autores de entremezes poderiam desenvolver
enredos com maior precisão.
Tanto as dissertações teóricas como as peças de teatro da amostra
analisada concordam com o fato do caráter hierárquico da sociedade
portuguesa do Antigo Regime ser rígido, pouco mutável, e caracterizado por
ser movimentado por relações de troca (economia da dádiva). Isto nos leva a
duas conclusões. Primeiro, de acordo com o discorrido acerca do
funcionamento da sociedade do Antigo Regime, o conceito de representação
de papéis e a busca pelo espaço próprio na sociedade pelos indivíduos
pertencentes a ela eram norteados pelo estabelecimento das relações
hierárquicas e pela troca entre serviços e dádivas, de acordo com a posição de
cada indivíduo nesta sociedade. Segundo, que de fato, pode-se utilizar o teatro
como fonte para que se possa pesquisar a maneira de como se construíam as
relações sociais entre indivíduos do tipo de sociedade em questão, sendo os
personagens reflexos dos indivíduos do mundo real correspondente a eles.
Apesar de ser idealizado, ainda assim o teatro era dirigido ao público e
revelava ao menos como as relações sociais deveriam ser. Mesmo que não
triunfassem no decorrer do enredo, o simples fato de haver personagens no
teatro que se rebelavam contra a ordem social estabelecida sinaliza que a
ordem não era bem aceita por todos. O teatro realmente revela a essência da
personalidade de uma sociedade que lhe dava grande importância, a
representação do real em uma sociedade de representação.
65
FONTES
www.gulbenkian.pt As peças de teatro foram retiradas deste site.
ANCOURT, Florent Carton de, O amante jardineiro. traduzida por SANTOS,
Francisco Sabino dos. Lisboa. 1778
ANTAS, Leonardo José Pimenta e. Chocalho dos anos de dona lesma. Lisboa.
1783
ANTAS, Leonardo José Pimenta e; GOMES, Antonio. Casadinhos da moda.
Lisboa. 178?
BULHOENS, José de Aquino. A noiva fingida. Lisboa. 1790
COSTA, Caetano Ferreira da. O casamento gostoso. Lisboa. 1777
FERREIRA, Simão Tadeu. O bruxo por arte e o tutor desenganado. Lisboa.
177?
GALHARDO, Antonio Rodrigues. Amor artífice. Lisboa. 1782
GOMES, Antonio. Os amantes arrufados. Lisboa. 17??
GOMES, Antonio. Peraltice vaidosa, Lisboa. 178?
GONÇALVES, Domingos. A bulha do marido com a mulher por cantar a
ratazana. Lisboa. 1785
GONÇALVES, Domingos. A casa de dança. Lisboa. 1788
GONÇALVES, Domingos. Casquilharia por força. Lisboa. 1781
LIZ, Felipe José de França e. A astuciosa idéia do criado. Lisboa. 1790
MOLIÈRE, Jean-Baptiste. O peão fidalgo. traduzida por SOUSA, Manuel.
Lisboa. 1769
MOLIÈRE, Jean-Baptiste. Tartufo. tradutor desconhecido. Sem data
NAZARÉ, José da Silva. O castigo da ambição. Lisboa. 1771
SANTOS. Francisco Sabino dos. Os amantes desconfiados. Lisboa. 1777
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SOUSA, Francisco Borges de. A astúcia das criadas. Lisboa. 1793
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SOUSA, Francisco Borges de. O barbeiro pobre. Lisboa. 1792
SOUSA, Francisco Borges de. O velho louco de amor e a criada astuciosa.
Lisboa. 179
66
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