SÔNIA MARIA RIBEIRO JACONI
A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO:
Revelação do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos
Universidade Metodista de São Paulo
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
São Bernardo do Campo-SP, 2012
SÔNIA MARIA RIBEIRO JACONI
A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO:
Revelação do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos
Universidade Metodista de São Paulo
Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social
São Bernardo do Campo-SP, 2012
Tese apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, para obtenção do grau de Doutor. Orientador: Prof. Dr. José Marques de Melo
FICHA CATALOGRÁFICA
J159g
Jaconi, Sônia Maria Ribeiro A transgressão sertaneja do gênero relatório: Revelação do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos / Sônia Maria Ribeiro Jaconi. 2012. 190 f. Tese (doutorado em Comunicação Social) --Faculdade de Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2012. Orientação : José Marques de Melo 1. Ramos, Graciliano, 1892-1953 - Gênero relatório 2. Processos comunicacionais 3. Figuras de linguagem 4. Transgressão I. Título.
CDD 302.2
SÔNIA MARIA RIBEIRO JACONI
A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO:
Revelação do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos
Resultado:
Data da Aprovação: ___/___/___
Banca Examinadora:
Prof. Dr. José Marques de Melo _______________________ Orientador Universidade Metodista de São Paulo
Profa. Dra. Elizabeth Moraes Gonçalves ______________________ Examinadora Interna Universidade Metodista de São Paulo Prof. Dr. Luiz Roberto Alves _______________________ Examinador Interno Universidade Metodista de São Paulo Profa. Dra. Sandra Reimão _______________________ Examinadora Externa Universidade de São Paulo - USP Profa. Dra. Rossana Gaia _______________________ Examinadora Externa Instituto Federal de Alagoas - IFAL
Tese apresentada em cumprimento parcial às exigências do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo - UMESP, para obtenção do grau de Doutor. Orientador: Prof. Dr. José Marques de Melo
FOLHA DE APROVAÇÃO
A tese A transgressão sertaneja do gênero relatório: Revelação
do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos, elaborada por
Sônia Maria Ribeiro Jaconi, foi defendida no dia 17 de abril ,
tendo sido:
( ) Reprovada
( ) Aprovada, mas deve incorporar nos exemplares definitivos modificações
sugeridas pela banca examinadora, até 60 (sessenta) dias a contar da data da
defesa.
( ) Aprovada
( ) aprovada com louvor
Banca Examinadora:
_______________________________________________________
_______________________________________________________
_______________________________________________________
_______________________________________________________
_______________________________________________________
Área de concentração: Processos Comunicacionais
Linha de Pesquisa:________________________________________
Projeto Temático:_________________________________________
DEDICATÓRIA
Ao meu esposo e filho, companheiros e amigos, por terem compreendido
minhas muitas horas de leitura, pesquisa e ausência. Amo vocês!!!
AGRADECIMENTOS
A Deus, por iluminar sempre meus caminhos na busca do conhecimento e do
aperfeiçoamento pessoal e profissional.
A realização deste trabalho só foi possível graças à orientação do professor Dr.
José Marques de Melo, a quem serei eternamente grata pelo estímulo e
confiança depositada em mim, desde o nosso primeiro encontro. Conduziu a
orientação com muita paciência, atenção e com dicas precisas e fundamentais
para o desenvolvimento e conclusão desta tese. Muito obrigada!
Agradeço a todos os professores do programa PósCom pela contribuição na
minha formação e concretização deste trabalho. Os debates teóricos durante
as aulas ajudaram na minha formação e na elaboração deste estudo.
Às professoras Dra. Elizabeth Moraes Gonçalves e Dra. Sandra Reimão pelas
valiosas sugestões e observações dispensadas à organização desta pesquisa.
Sou muito grata, mais uma vez, a minha família, esposo e filho, pelo apoio e
compreensão, sem os quais não seria possível o envolvimento e finalização
desta tese.
Também aos meus amigos, Ieda Borges, Raul Arriagada e Juliana Belmonte,
que ajudaram nas traduções e no debate de ideias fundamentais para o
trabalho.
Aos meus colegas de classe por compartilharem os momentos de muita leitura,
estudo e elaboração de artigos. Todos, além de ricos e produtivos, foram
divertidos e importantes no processo desta pesquisa.
Agradeço ao amigo João Tenório, funcionário da Casa Museu Graciliano
Ramos, em Palmeira dos Índios, pela acolhida carinhosa e prestativa nos dias
em que visitei a cidade. Ajudou-me com informações preciosas sobre o Prefeito
Graciliano Ramos e na coleta de materiais para a pesquisa.
Agradeço ao coordenador do programa, Prof. Laan, pela condução do curso e
pela preocupação com a qualidade dos trabalhos dos alunos e cumprimento de
suas etapas.
Ao FUNDAC (Fundo de Incentivo Acadêmico-Cientifico), da Universidade
Metodista, pelo financiamento desta tese.
Meus agradecimentos são para todos os que, de alguma forma, contribuíram
no processo de minha formação e realização deste trabalho.
EPÍGRAFE
Na imensa maioria dos gêneros discursivos (exceto nos artístico-literários), o
estilo individual não faz parte do plano do enunciado, não serve como um
objetivo seu mas é, por assim dizer, um epifenômeno do enunciado, seu
produto complementar. Em diferentes gêneros podem revelar-se diferentes
camadas e aspectos de uma personalidade individual, o estilo individual pode
encontrar-se em diversas relações de reciprocidade com a língua nacional. A
própria questão da língua nacional na linguagem individual é, em seus
fundamentos, o problema do enunciado (porque só nele, no enunciado, a
língua nacional se materializa na forma individual). (BAKHTIN, 2010).
A TRANSGRESSÃO SERTANEJA DO GÊNERO RELATÓRIO:
Revelação do escritor no texto do prefeito Graciliano Ramos
Resumo Esta tese se propõe a investigar o gênero relatório, a fim de conhecer seus traços constitutivos, seu contexto situacional e a função sócio comunicativa que exerce em sua comunidade discursiva. Forma o objeto desta pesquisa os relatórios públicos escritos pelo prefeito Graciliano Ramos, nos anos de 1929 e 1930, e enviados ao governador do estado de Alagoas. Estes documentos alcançaram grande repercussão na época, devido ao tom irônico e ousado presente em seus textos que indicam uma transgressão da escritura do gênero relatório. Foram definidas para a unidade de análise as figuras de linguagem, na perspectiva de Quintiliano de Calahorra e sua incidência nestes textos prestando atenção nas transgressões praticadas pelo escritor gestor. Para alcançar os objetivos, a metodologia adotada foi o da análise da padronização de texto e textualização proposto por Bhatia, que compartilha com o da análise da expressão, de Lawrence Bardin. Palavras-chave: Graciliano Ramos, gênero relatório, processos comunicacionais, figuras de linguagem, transgressão.
The transgression of gender backland report: revelation of the writer in the text of the mayor Graciliano Ramos
Abstract This thesis aims to investigate the genre report, in order to know its constituent characteristics, situational context and the socio-communicative role that it plays among its speech community. The object of this research are the public reports written by the mayor Gracialiano Ramos, in the years 1929 and 1930, and sent to the governor of Alagoas State. These documents have achieved great impact at the time, due to the ironic and daring tone present in the texts, indicating a violation of the genre of report writing. For the analysis, it were defined the figures of rhetoric according to Quintiliano de Calahorra, and their incidence in these texts, paying attention to the transgressions committed by the manager-writer. To achieve our goals, the methodology used was the analysis of standardized text and textualization, proposed by Bhatia, with the analysis of expression, as proposed by Laurence Bardin. Key-words: Graciliano Ramos, genre report, communication processes, figures
of rhetoric, transgression
La transgresión del género reporte sertaneja: revelación del escritor en el texto del alcalde Graciliano Ramos
Resumen Esta tesis se propone a investigar el género informe, con el fin de reconocer sus rasgos constitutivos, su contexto situacional y la función socio comunicativa que ejerce en su comunidad discursiva. Se hace objeto de esta investigación los informes públicos escritos por el alcalde Graciliano Ramos en los años 1929 y 1930, y enviados al gobernador del estado de Alagoas (Brasil). Estos documentos alcanzaron grande repercusión en su época debido a su tono irónico y osado presente en sus textos que indican una transgresión de la escrita del género informe. Fueron definidas para la unidad de análisis las figuras de retórica bajo la perspectiva de Quintiliano de Calahorra y su incidencia en estos textos, prestando atención en las transgresiones practicadas por el escritor gestor. Para alcanzar los objetivos, la metodología adoptada fue el del análisis de la expresión, de Lawrence Bardin. Palabras clava: Graciliano Ramos, género informe, procesos comunicacionales, figuras de retórica, transgresión.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 - Fac-símile do num. 1 do Jornal “O Dilúculo”, editado por Graciliano Ramos,
aos 12 anos de idade....................................................................................................62
Figura 2 - Fac-símile do texto “Pequeno Pedinte”, publicado no Jornal “O Dilúculo”.........................................................................................................................64 Figura 3 - Jornal O Estado, 28/01/1934 – O Romancista Graciliano
Ramos...........................................................................................................................70
Figura 4 - Jornal O Estado, 23/01/34 – De um Relatório a um
Romance.......................................................................................................................72
Figura 5 - Jornal A tarde, 1969 – Dispersos de Graciliano
Ramos...........................................................................................................................74
Figura 6 - Periódico “Conversa do Dia”, 1953 .............................................................75
Figura 7 - Jornal Correio da Manhã, ano 1952 – O Relato do Sr.
Prefeito.........................................................................................................................76
Figura 8 - Igreja do Rosário em Palmeira dos Índios, onde atualmente abriga o Museu
dos Xucurus.................................................................................................................118
Figura 9 - Atual fachada de uma loja que, no passado, foi a Loja Sincera, de
Graciliano Ramos........................................................................................................119
Figura 10 - Fachada do prédio da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios (2010),
cenário da gestão de Graciliano Ramos nos anos de 1928 a 1930............................120
Figura 11 - Fachada da Casa Museu Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios
(2010)..........................................................................................................................120
LISTA DE QUADROS
Quadro 1 – Gênero, Auditório, Intenção, Valores..................................80
Quadro 2 – Figuras de Linguagem.......................................................127
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 - Perfil dos Relatórios de Graciliano Ramos por Incidência das
Figuras de Linguagem.....................................................................................146
Gráfico 2 - Figuras de Linguagem: incidências nos relatórios de Graciliano
Ramos..............................................................................................................147
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ............................................................................................................. 18 1.1 Transgressão Sertaneja ......................................................................................... 18 1.2 Justificativa da Pesquisa ........................................................................................ 20 1.3 Objetivos e Indagações .......................................................................................... 22 1.4 Roteiro da Tese ..................................................................................................... 23 1.5 Caracterização da Pesquisa .................................................................................. 25 1.6 Metodologia da Análise .......................................................................................... 25 1.7 Unidade de Análise dos Relatórios: Figuras de Linguagem ................................... 28
2 REVISÃO DE LITERATURA ....................................................................................... 30
2.1 Um Sertanejo de Letras ......................................................................................... 30 2.2 Sobre os Relatórios Públicos de Graciliano Ramos ............................................... 37
3 AS MULTIFACES DE GRACILIANO RAMOS ............................................................. 40
3.1 O Menino Graciliano: Letra, Leitura e Palmatória ................................................... 40 3.2 Comerciante à Frente de Seu Tempo .................................................................... 42 3.3 Um Professor Matuto ............................................................................................. 45 3.4 O Prefeito Graciliano: Coragem e Desafios numa Terra Sem Lei ........................... 52 3.5 O Perfil Jornalístico e Literário de Graciliano Ramos ............................................. 59 3.6 Difusão de um Estilo Irônico e Sincero ................................................................... 67
4 CONCEPÇÃO DOS GÊNEROS DISCURSIVOS E TEXTUAIS: CARACTERIZAÇÃO SÓCIO-RETÓRICA ......................................................................................................... 76
4.1 Gênero do Discurso: Concepção e Evolução ........................................................ 77 4.2 Escolha e Aplicação de um Gênero Discursivo e Textual: Habilidades Prática e Teórica ......................................................................................................................... 87
5 O GÊNERO RELATÓRIO PÚBLICO: ASPECTOS SÓCIO COMUNITICATIVOS ........ 90
5.1 Apresentação ......................................................................................................... 90 5.2 Sobre os Gêneros Textuais na Comunidade Discursiva Institucional ..................... 91 5.3 Marcas do Discurso Institucional ............................................................................ 94 5.4 Gênero Relatório Público: Contexto Situacional ..................................................... 97 5.5 A Padronização Textual dos Relatórios Públicos: Conceitos e Estrutura ............... 99 5.6 Organização do Gênero Relatório Público: Características Constitutivas ............. 105
6 OS RELATÓRIOS DO GESTOR PÚBLICO GRACILIANO RAMOS: TRANSGRESSÃO REVELADORA DO ESCRITOR ..................................................... 113
6.1 Palmeira dos Índios Xucurus e do Prefeito Graciliano Ramos: uma Apreciação de suas Características Sociais Remotas e Atuais .................................................... 113 6.2 Informação e Literatura nas Gavetas da Prefeitura de Palmeira dos Índios: Conjunturas de Criação ............................................................................................. 119 6.3 Figuras de Linguagens: um Viés para a Transgressão do Gênero Relatório ........ 121 6.4 Identificação das Figuras de Linguagem no Estudo de Quintiliano ....................... 122 6.5 Figuras de Linguagem no Relatório I (ano 1.929) ................................................ 126 6.6 Figuras de Linguagem no Relatório II (ano 1930) ................................................ 133
CONCLUSÃO................................................................................................................ 143 REFERÊNCIAS ............................................................................................................. 147 ANEXOS ....................................................................................................................... 154
Relatório I - Fac-símile I, publicado no Diário Oficial, em 24 de janeiro de 1929 ........ 154 Relatório II - Fac-símile, publicado no Diário Oficial, em 16 de janeiro de 1930 ......... 156 Relatório II – Edição comemorativa ao centenário de nascimento do escritor Graciliano Ramos (1892 – 1853) ............................................................................... 158
18
1 INTRODUÇÃO
1.1 Transgressão Sertaneja
As práticas comunicativas dos indivíduos acontecem através de gêneros
discursivos (orais ou escritos) que predominam em seus espaços coletivos.
Esses gêneros se formam e se estabelecem nas diferentes esferas sociais a
fim de atender às necessidades e às carências de comunicação dos grupos
que compartilham realidades culturais semelhantes. Sendo assim, os gêneros
discursivos contribuem para a organização do ato comunicativo dessas
sociedades.
Tanto no campo da oralidade quanto no da escrita, o reconhecimento e
o domínio dos gêneros possibilitam a realização mais efetiva das intenções
discursivas de seus atores (emissor/receptor). São estas conquistas que
conferem liberdade à transgressão de determinado gênero, a fim de o
enunciador alcançar qualidade estética, expressividade e ampliação do seu
discurso.
Um exemplo insigne desta liberdade transgressora pode ser observado
nos textos dos relatórios oficiais de Graciliano Ramos, que causaram
estranhamento na mídia da época, devido à contravenção da linguagem oficial
do gênero relatório.
A repercussão da infração da escritura de um gênero, quando
amplamente divulgada na mídia, como aconteceu com os relatórios citados,
merece observação atenta quanto à recepção estética e social apreendida pelo
público leitor da época, bem como os reflexos dessa ruptura na mídia
contemporânea.
Os gêneros textuais apresentam regularidades recorrentes quanto ao
seu formato, seus termos de construção retórica, tipos e formas de organização
19
da sua mensagem, que possibilitam não só a identificação entre os demais
gêneros que circulam nas diferentes esferas sociais, mas também a orientação
quanto a sua utilização apropriada pelos sujeitos envolvidos na ação
discursiva.
Sobre a necessidade desta orientação didática nos cursos de
comunicação social, recorro às palavras do professor Melo (2010, p. 23):
[...] os jovens diplomados encontram resistências para ingresso no mercado de trabalho, desconhecedores que são, em grande maioria, das especificidades do relato jornalístico e de sua aderência a um sistema que os diferencia por gêneros, formatos e tipos, determinados pelos antigos e novíssimos suportes.
Não só no âmbito das instituições, públicas ou privadas, e da mídia
oficial, mas também no acadêmico, o gênero relatório circula intensamente
entre os indivíduos, desempenhando ações comunicativas que extrapolam a
função informativa, uma vez que também contribuem para a participação
efetivas dos indivíduos na administração destas instituições.
Assim como acontecem em outros gêneros textuais, são suas
características constitutivas que lhe definem como gênero relatório e que
permitem o seu reconhecimento e a sua reprodução em sua comunidade
discursiva. A natureza do relatório “um documento público e/ou publicizável”
(LIMA, 1994, p.109), obedece a regras redacionais que valorizam a
impessoalidade, a norma culta da língua e o uso de termos técnicos e rígidos.
Pode-se dizer que esse tipo de texto tem um estilo geral estabelecido, ou seja,
não se admite um estilo individual (BAKHTIN, 2010, p. 265-2661).
A divulgação administrativa, especificamente a que acontece através
dos documentos oficiais, frequentemente, fica à margem dos estudos sobre os
processos comunicacionais, talvez, pela sua essência mais restrita de
circulação.
1 Os gêneros do discurso. In Estética da Criação Verbal.
20
No entanto, a difusão das ações administrativas, principalmente a
pública, segundo o autor Ney (1954, p. 10), “é uma tarefa que requer mais do
que os administradores ocasionais, mesmo quando eficientes – isto é, requer
verdadeiros especialistas em divulgar ideias”.
Assim foi Graciliano Ramos quando escreveu os relatórios públicos
sobre a sua administração pública na cidade de Palmeira dos Índios – um
especialista transgressor do gênero relatório que, através de sua intimidade
com a linguagem artística, conferiu sabor e encanto aos textos destes
documentos.
Examinar o gênero relatório na perspectiva da escritura dos textos
oficiais de Graciliano Ramos é, certamente, uma rica oportunidade para
examinar e divulgar o lado do gestor escritor de Palmeira dos Índios, e de
ampliar os estudos no campo dos gêneros textuais que se manifestam na
antiga e atual mídia.
1.2 Justificativa da Pesquisa
Percebe-se uma ausência de estudos aprofundados dos relatórios de
Graciliano Ramos e que, se tais pesquisas houvesse, ajudaria a recompor de
maneira mais completa o perfil do gestor público e da sua produção não
ficcional.
No caso de específico da escrita de Graciliano Ramos, ainda que ele
não tenha se posicionado como destaque no jornalismo, já que sua maior
atuação foi no campo como revisor, é possível afirma-lo como tradutor de
narrativa jornalística inerente à sua literatura. O texto do namorado, do prefeito
ou do escritor vai ser elemento exaustivamente revisado, ou na sua própria
metáfora: lavado e enxugado.
À luz desse estudo, também está a necessidade de investigar as
características e natureza da escritura do gênero “relatório”, pois existe
semelhante escassez de pesquisa nessa área. O estudioso Thayer (1972, p.
309), naquela época, apontou que a “necessidade de pesquisas sobre os
relatórios é claramente indicada pela natureza e magnitude dos problemas
21
típicos do manejo de informações necessárias à tomada de decisões
administrativas”. Especificamente nas esferas das instituições públicas, os
relatórios têm em sua essência a obrigação de informar bem ao público para
que, desta forma, gere conhecimento à sociedade e, consequentemente,
reação e transformação efetivas.
Sobre este desafio – o de informar bem ao público - está a exigência dos
órgãos responsáveis pela transmissão da informação em dominar os gêneros
textuais de suas comunidades discursivas, pois assim, estes emissores
conseguirão elaborar e transmitir informação que gere conhecimento.
Os gêneros discursivos e textuais estão inseridos em todas as situações
da vida humana e, portanto, interferem nas ações comunicativas das pessoas
em seus espaços coletivos. Dessa forma, ressaltar a importância da pesquisa
dos gêneros e do seu reconhecimento pelas comunidades discursivas
possibilita a melhora significativa destas ações e atribui liberdade no ato
discursivo dos indivíduos. Segundo Bakthin (2010), são os gêneros discursivos
e textuais que organizam a comunicação humana.
Os estudos sobre os gêneros midiacêntricos ganharam, gradativamente,
após o início do século XXI, destaque na academia, nos cursos de
comunicação social do país, a partir da observação da necessidade dos
estudantes reconhecerem e produzirem adequadamente os gêneros textuais
no campo da comunicação.
O pioneiro deste estudo, no cenário nacional, foi Luiz Beltrão que
compôs uma trilogia sobre os gêneros jornalísticos: A imprensa informativa
(1969), Jornalismo interpretativo (1976), Jornalismo opinativo (1980).
Analisar os gêneros e suas comunidades discursivas possibilita domínio
e, consequentemente, melhor escrituração destes textos. No caso dos gêneros
que circulam nas esferas institucionais, as análises que existem são tímidas o
que estimulou esta tese a propor um estudo aprofundado do gênero relatório.
22
O estudo do gênero relatório converge com a linha de pesquisa
Processos Comunicacionais Midiáticos por ser um gênero que, por um lado, se
aproxima dos gêneros jornalísticos interpretativo e utilitário e, por outro, se
distancia da hegemonia dos gêneros informativo e opinativo. Essa linha de
pesquisa vem avançando no país, através da proposta do professor José
Marques de Melo em dar prosseguimento aos estudos pioneiros de Luiz
Beltrão, sobre a prática dos gêneros na mídia nacional. Sendo assim, investigar
o gênero relatório é uma forma de reforçar estas pesquisas e de apresentar
contribuições para a formação do panorama do pensamento comunicacional
brasileiro.
A publicação destes escritos, nas edições de 24 de janeiro de 1929 e 16
de janeiro de 1930, demonstra uma defesa do jornalismo utilitário, pois prestou
um papel orientador ao público leitor, uma vez que proporcionou conhecimento
de informações sobre as atividades da gestão do prefeito de Palmeira dos
Índios, Graciliano Ramos.
Na comparação do gênero relatório com o gênero interpretativo observa-
se afinidade, pois os textos destes documentos trazem aprofundamento,
explicitação e orientação, que ultrapassam a mera prestação de contas da
administração municipal, além de recursos estilísticos literário como a ironia “no
cemitério enterrei”, conforme p. 28 desta tese.
Propomos uma contribuição, que se pretende relevante, para a difusão
das pesquisas no campo dos gêneros discursivos e textuais, especificamente,
do gênero relatório.
1.3 Objetivos e Indagações
Inquietações sobre a transgressão reveladora do escritor Graciliano
Ramos estimularam esta tese que tem por objetivo geral promover a reflexão
sobre o gênero relatório, a partir da revisão do conceito, do formato e da função
sócio comunicativa que exerce, tomando como ponto de partida o exame da
23
transgressão deste gênero, observada nos relatórios públicos de Graciliano
Ramos. Com isso, simultaneamente, intenciona-se contribuir com a divulgação
e leitura dos textos não ficcionais do autor e, desta forma, também promover o
lado do gestor público do autor.
Quanto aos objetivos específicos, a tese se propõe: 1) apresentar as
multifaces de Graciliano Ramos para que, desse modo, se viabilize a
ampliação da trajetória deste personagem; 2) expor os gêneros discursivos e
textuais e sua caracterização sócio retórica, a partir das concepções de autores
que pensam o assunto, como Bakthin, Todorov, Jonh Swales, Matoso Silveira,
Charles Miller; 3) investigar o gênero relatório público através de suas
características constitutivas e da configuração de sua comunidade discursiva,
além do seu contexto situacional; 4) levantar e examinar a incidência das
figuras de linguagem, a partir da obra de Quintiliano, nos textos dos relatórios,
prestando atenção nas transgressões praticadas pelo escritor gestor, quando
comparados com o gênero relatório.
No processo da problematização do objeto, algumas indagações foram
formuladas para provocar o desenvolvimento da tese. No campo da
comunidade discursiva institucional, como o gênero relatório público aparece e
exerce sua função sócio comunicativa? Como os relatórios públicos do gestor
Graciliano Ramos foram lidos e comunicados na mídia local e nacional da
época? E como os são na mídia contemporaneidade? Quais foram os recursos
linguísticos utilizados por Graciliano Ramos que contribuíram para a
transgressão do gênero relatório? De que forma os relatórios públicos de
Graciliano Ramos são responsáveis pela divulgação e reconhecimento do autor
na literatura ficcional?
1.4 Roteiro da Tese
Para cumprir seus objetivos, esta tese se apresenta em cinco capítulos
que abordam temas que ajudam a compor a análise do seu objeto de estudo –
os relatórios públicos escritos por Graciliano Ramos e publicados no Diário
Oficial de Alagoas, nos anos de 1929 e 1930.
24
Na primeira parte do trabalho, após a introdução, se atentou para a
atualização da revisão de literatura sobre o autor e de seus dois relatórios, a
fim de percorrer os estudos que exploraram o tema dos relatórios do prefeito
Graciliano Ramos.
No capítulo III, foram descritas as multifaces do escritor a fim de
reconhecer suas atuações em diferentes momentos; como comerciante,
professor, prefeito e jornalista. Além de apresentar o menino Graciliano,
através das lembranças doloridas do homem Graciliano Ramos. Esta
composição visa reunir, mesmo que sumariamente, a formação e a trajetória de
um personagem que tem importante destaque no campo da literatura nacional.
No capítulo IV, são discutidos, primeiramente, a partir da concepção de
gênero discursivo e textual dos autores Bakhtin, Todorov, Jonh Swales e Maria
Inez Matoso Silveira, o conceito de gênero relatório, evolução, características e
a função sócio comunicativa que este gênero exerce na comunidade discursiva
que se manifesta. Depois, a questão dos gêneros textuais e de suas
comunidades discursivas são apresentadas como uma habilidade prática e
teórica dos sujeitos da comunicação.
Após essa exposição, o capítulo V volta-se para o gênero relatório
público com o propósito de apontar seus aspectos constitutivos, seu contexto
situacional, como se organizam quanto ao formato e linguagem, para que, mais
adiante, seja possível traçar um estudo comparativo entre a forma padrão do
gênero relatório com a forma corrompida dos textos dos relatórios de Graciliano
Ramos. As marcas do discurso institucional também são reveladas nesta parte
da tese.
Finalmente, no capítulo VI, apresenta-se uma análise dos dois relatórios
públicos de Graciliano Ramos observando a transgressão do gênero a partir
das incidências das figuras de linguagem, presentes nestes textos, e que foram
apontadas no estudo de Quintiliano de Calahorra.
25
1.5 Caracterização da Pesquisa
Este estudo se caracteriza como sendo, primeiramente, uma pesquisa
exploratória, pois busca-se o aprofundamento sobre os gêneros discursivos e
textuais para que, posteriormente, fosse possível traçar o perfil do gênero
relatório. Também é uma pesquisa descritiva visto que se realiza uma análise
dos relatórios a partir da identificação das figuras de linguagens para
compreender e comprovar a transgressão do gênero relatório, presente nos
textos de Graciliano Ramos.
Quanto aos procedimentos escolhidos foram: o bibliográfico, objetivando
coletar informações e conhecimentos existentes sobre os relatórios escritos por
Graciliano Ramos, sua difusão e recepção na comunidade discursiva
institucional e em outras esferas, e de absorver fundamentação teórica acerca
dos gêneros discursivos e textuais. Para isso, vários autores foram lidos a fim
de conhecer, confrontar e fundamentar as afirmações apresentadas na
pesquisa; e o documental a fim de examinar os originais das escrituras oficiais
do prefeito Graciliano Ramos. O acesso a vários documentos, inclusive parte
dos originais dos relatórios, foi através de visitas à cidade de Palmeira dos
Índios, Maceió e Rio de Janeiro.
.
Quanto à abordagem, utilizou-se a pesquisa qualitativa para apresentar
e refletir sobre os conceitos, as características e as definições de autores sobre
os gêneros discursivos e textuais, além de apresentar informações sobre o
perfil do gestor público Graciliano Ramos. Outra parte da tese recorreu à
pesquisa quantitativa, pois se adotou as figuras de linguagem como unidade de
análise dos relatórios para verificar a transgressão do gênero por este viés.
1.6 Metodologia da Análise
Através de vários aspectos, os relatórios escritos por Graciliano Ramos
podem ser analisados. Para este estudo, o percurso metodológico adotado foi
o da análise da padronização de texto e textualização, proposto por Bhatia
(1993, p.22-36) apud Silveira (2005, p. 106):
26
Esse aspecto da análise linguística realça o aspecto tático do uso convencional da língua, especificando a forma que os membros de uma determinada comunidade adota os valores restritos a vários aspectos do uso da língua (que podem ser traços do léxico, da sintaxe e mesmo do discurso) quando opera um determinado gênero.
De acordo com esta proposta, a análise pode ser realizada a partir da
observação de um ou de mais elementos do texto (uso de adjetivos, de frases
nominais, emprego dos verbos, figuras de linguagem, etc.) com a finalidade de
investigar o efeito de sentido que tal elemento cria no texto.
Mais adiante, a autora revela (BHATIA, apud SILVEIRA, 2005, p. 106):
Outros estudos citados cuidam, por exemplo, da função do adjetivo em grupos nominais nos escritos sobre a pesquisa científica e nos documentos jurídicos. Finalmente, o autor reconhece que a análise da padronização textual acrescenta uma explanação interessante à análise léxico-gramatical de um gênero.
A proposta de análise exposta por Bhatia (1993 apud Silveira)
compartilha com o método da análise da expressão, apresentado por Laurence
Bardin (2009), que é um método que trata da “ordem formal (plano dos
significantes e da sua organização)”. (BARDIN, 2009, p. 245).
Diz esta autora:
A hipótese implícita que subentende geralmente este tipo de técnica com base na inferência formal é a de que existe uma correspondência entre o tipo do discurso e as características do seu locutor ou do seu meio. “Os traços pessoais mais ou menos permanentes, o estado do locutor ou a sua reação a uma situação, modificam o discurso tanto na sua “forma” como no conteúdo”. (BARDIN, 2009, p. 245).
27
Sobre os setores mais indicados para a utilização desta técnica, Bardin
(2009, p. 245) declara:
Os setores normalmente mais propícios à aplicação de técnicas de análise de expressão são os seguintes: a investigação da autenticidade de um documento (literatura, história), a psicologia clínica (psicoterapia, psiquiatria), os discursos políticos ou os que são susceptíveis de veicular uma ideologia (retórica).
Para Bardin (2009, p. 245), este tipo de análise pode ser realizado
através do levantamento das características formais e de linguagem de um
discurso, como “os indicadores lexicais, as análises do discurso ou da narrativa
(encadeamento lógico, arranjo de sequência, estrutura narrativa, estruturas
formais de base)”.
Adotou-se, portanto, estes métodos para a análise dos relatórios escritos
por Graciliano Ramos, por entender que estes são adequados a proposta desta
tese; a de examinar as incidências das figuras de linguagem nos textos dos
relatórios, prestando atenção nas transgressões praticadas pelo escritor gestor.
O autor de Vidas Secas escreveu outros documentos oficiais, inclusive
outro relatório2. Porém, optou-se pelos dois relatórios que foram publicados no
Diário Oficial de Maceió e, portanto, que tiveram presença na mídia oficial da
época.
Critérios de escolha destes relatórios:
1) Por terem sidos publicados na mídia oficial da época (Diário Oficial de
Maceió),
2 Leituras apontam que Graciliano Ramos escreveu outro relatório, antes destes publicados no
Diário Oficial, datado do mês de março de 1928, apresentando-se como prefeito ao Conselho Municipal de Palmeira. Uma transcrição deste relatório pode ser encontrada no livro “Relatórios” (1994), organizado por Mário Hélio Gomes de Lima. Para esta análise, este não foi contemplado, pois deu-se preferência pelos que foram publicados no Diário Oficial e que, portanto, projetaram o estilo literário e ousado de escrever de Graciliano Ramos.
28
2) Dos documentos oficiais escritos por Graciliano Ramos, os relatórios são
os que mais representam a transgressão de linguagem e de formato do
gênero relatório,
3) São os mais famosos do escritor e, constantemente, são citados na mídia
contemporânea,
4) Existem poucas análises aprofundadas destes documentos.
O processo da análise se apresenta da seguinte forma:
1) Apresentação das conjunturas de criação dos 02 relatórios escritos por
Graciliano Ramos.
2) Levantamento de características que identificam o gênero relatório
(formato e linguagem) e de elementos textuais da criação literária
(figuras de linguagem, ironia, conotação, etc.), presentes nos relatórios
públicos escritos por Graciliano Ramos.
3) Análise dos resultados, através da verificação das transgressões que
estes documentos exibem, em relação ao gênero textual em que se
enquadram.
1.7 Unidade de Análise dos Relatórios: Figuras de Linguagem
A unidade de análise escolhida para o exame dos relatórios públicos de
Graciliano Ramos foi o das figuras de linguagem. Para tanto, foram definidas
as unidades de análises e sua incidência nos textos dos relatórios, prestando
atenção nas transgressões praticadas pelo escritor gestor.
Adotou-se as figuras de linguagem como parâmetro de análise, por
entender que estas expressões atribuem características de efeito estético e
expressivo ao texto, devendo, portanto, serem evitadas nos gêneros oficiais.
Esta tese adotou a padronização textual do gênero relatório, ou seja, o
seu conceito e as suas características de linguagem e de formato, apresentada
por autores que contribuem para a fundamentação desta pesquisa (Lee
29
Thayer, Othon Garcia, João Luiz Ney (DASP), Maria Inez Matoso Silveira,
Sérgio Roberto Costa), como elemento comparativo para a análise dos
relatórios selecionados.
30
2 REVISÃO DE LITERATURA
2.1 Um Sertanejo de Letras
Graciliano Ramos geralmente é apresentado e conhecido apenas como
o grande escritor literário da segunda geração do modernismo brasileiro. Sem
dúvida, os romances do autor são obras primas da literatura nacional como
Vidas Secas, Caetés, Angústia, São Bernardo. Ler seus textos é deparar-se
com um estilo linguístico enxuto, pouco sentimental, objetivo, essencial e
artístico. Era um escritor de poucas palavras. (CANDIDO, 2006, p.21-22).
No entanto, é pouco conhecida a face do executivo Graciliano Ramos
que, bem antes de tornar-se um escritor de romances, redigiu relatórios
públicos que causaram estranhamento no público leitor da época. Tais escritos
apresentam um estilo que rompe com a estrutura tradicional do gênero
relatório, pois é possível encontrar nas palavras, além da exatidão gramatical,
as figuras de linguagem que conferem a estes documentos tom de ironia e
humor, além de revelar características do caráter firme e ético de um sertanejo
íntimo das letras e das leituras. (MORAES, 1996).
Os estudos sobre o perfil do gestor Graciliano Ramos são escassos. O
que se observa são breves citações sobre estes escritos oficiais, mas sem
aprofundamento.
Uma destas alusões foi a produção do documentário “Relatos da
Sequidão – o poder e quase vida de Graciliano Ramos”, pelo Tela Brasil, para
lembrar os cinquentas anos de seu falecimento.
Sua Vida e Obra já foram vasculhadas e registradas por autores
interessados em contribuir com a perpetuação e multiplicação do conhecimento
sobre a produção artística de Graciliano Ramos.
São várias as críticas literárias, ensaios e teses acadêmicas que existem
sobre os livros do autor. Ora apresentando e analisando o estilo estético da
31
escrita de Graciliano Ramos, ora sobre seus personagens e o ambiente onde
desenrolam as histórias, ora sobre seu perfil.
No panorama da literatura ficcional brasileira, Graciliano Ramos se
enquadra nos escritores da geração de 303 que, de maneira breve, foram
aqueles que valorizaram o romance regionalista, ou seja, os protagonistas
dessas histórias são as tensões das relações sociais do povo brasileiro e seus
dramas com o meio em que vivem. (BOSI, 1994).
A obra Vidas Secas, publicada originalmente em 1938, atingiu sua 100ª.
edição, número raro entre os escritores brasileiros. No ano de 2008 a obra
completou 70 anos, desde sua primeira publicação, e ganhou edição
comemorativa além de grande destaque na mídia.
Estes números mostram, mesmo que sumariamente, não somente a
dimensão da importância desse autor na literatura ficcional brasileira, mas
também revelam seu poder de impacto em outros campos da comunicação
social como no mercado editorial, no cinema e na televisão. Arrisco a dizer que,
muito provavelmente, o mesmo acontecerá com seus outros romances São
Bernardo e Angústia.
Nas telas do cinema nacional, as obras Vidas Secas e São Bernardo
foram exibidas e ambas ganharam importantes prêmios da crítica.
O lançamento de Vidas Secas aconteceu em 1963, foi premiado em
Cannes (1964) e aparece na lista do British Film Institute4 como uma das 360
obras fundamentais em uma cinemateca, única entre as produções brasileiras.
3 Alfredo Bosi, importante crítico literário brasileiro, na obra História Concisa da Literatura
Brasileira (1994, p. 402), define a geração dos escritores de romances ficcionais de 1930 e 1940 como “romancistas de uma visão crítica das relações sociais [...]” e sobre o realismo de Graciliano Ramos o autor escreve “não é orgânico nem espontâneo. É crítico. O “herói” é sempre um problema: não aceita o mundo, nem os outros, nem a si mesmo. Sofrendo pelas distâncias que o separam da placenta familiar ou grupal, introjeta o conflito numa conduta de extrema dureza que é a sua única máscara possível.” 4 O BFI (British Film Institute) é um instituto que promove a compreensão e apreciação do
cinema e da televisão do patrimônio e da cultura. Fundado em 1933 ( http://www.bfi.org.uk/).
32
A adaptação para o cinema do romance São Bernardo, feita por Leon
Hirszman, aconteceu em 1972 e também foi considerado pela crítica como uma
das melhores produções fílmicas na década de 70.
No contexto mundial, as obras de Graciliano Ramos foram traduzidas
para o espanhol, o francês, o inglês, o italiano, o alemão, o russo, o húngaro, o
tcheco, o polonês, o finlandês, etc. (BOSI, 1994, p. 401).
Seus livros são tão poliglotas quanto ele próprio, pois o menino que
nasceu longe da capital era um autodidata, aprendeu vários idiomas e, ainda
adolescente, leu grandes clássicos como Émile Zola, Karl Marx, Balzac, Eça de
Queiroz, etc., sempre nos originais.
Graciliano Ramos nasceu escondido no sertão de Alagoas,
Quebrangulo, terra de gente acostumada a conviver com as lutas entre as
famílias inimigas da cidade e com o sol quente do Nordeste. Tinha tudo para se
tornar um Fabiano.
Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros que quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos – exclamações, onomatopeias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas. (RAMOS, 2006, p. 20).
Porém, o sertão, lugar que castiga a matéria e a alma de tudo que nasce
e vive nesse lugar, não conseguiu secar a genialidade de Graciliano Ramos.
Ainda na infância, mesmo acostumado com a violência da seca e com
as pancadas do pai (MORAES, 1996, p.10), Graciliano Ramos demonstrou
interesse pelas letras e intimidade com as palavras.
33
Aos 12 anos de idade num jornalzinho do Internato Alagoano, publicou
seu primeiro conto “Pequeno Pedinte”. “O Diluculo5” era o nome do jornal que,
segundo nota explicativa sobre a escolha do título, “nos veiu, apenas, da ideia,
de tomarmos a luz como a imagem da vida”6.
O menino Graciliano sentiu o frescor das matas e das águas no romance
de José de Alencar, Guarani, foi parceiro das aventuras de Robison Crosué
(Defoe), de D. Quixote (Cervantes) e de Guliver (Swift).
A primeira obra que li foi O Guarani de José de Alencar. Tinha eu dez anos de idade, quando comecei a admirar bonitas descrições, a linguagem atraente do autor de Iracema, os lances de fidelidade e de amor platônico de um índio, sentimentos impossíveis entre os nossos selvagens, homens desconfiados e lúbricos, segundo a opinião de Southey, Lerry. No entanto, talvez porque eu fosse demasiado ingênuo, aquele enredo intrincado e belo parecia-me a coisa mais real possível.7
Dessa forma, rompendo com o destino duramente traçado para o
sertanejo que vive por aquelas bandas, Graciliano Ramos tornou-se um
sertanejo instruído.
Sentou-se com doutores, governantes, jornalistas e escritores, mesmo
muitas vezes sendo incompreendido. Em alguns casos fez inimizades, pois era
duro e direto nas palavras.
O autor Francisco de Assis Barbosa, apud Moacir Medeiros de
Sant´Ana, na obra Graciliano Ramos (1973, p.13) compara o autor como
sendo um “Machado de Assis Sertanejo, áspero, amargo, pessimista, sendo
trágico e irônico ao mesmo tempo”.
5 Mais adiante, na parte do perfil jornalístico do autor, foram acrescidas algumas informações
sobre esse jornal. 6 Jornal “O Diluculo”, Num. 1, Anno 1, 24 de agosto de 1904.
7 Trecho extraído do Jornal de Alagoas. Maceió, 18 de set. 1910, apud SANT´ANA, Moacir
Medeiros de. Inquérito literário realizado pelo Jornal de Alagoas em 24 de maio de 1959.
34
As circunstâncias da caatinga forjaram um “animal frio”8 que pouco se
entusiasmava, mas também esculpiram uma alma sábia e sensível que soube
enxergar e expressar em cada página dos seus romances as fragilidades do
homem diante da natureza, suas relações com o poder e suas angústias.
Como apontado no início desta revisão, existem muitos estudos (alguns
mais completos e detalhados que outros) sobre a vida de Graciliano Ramos e
seus romances.
Alguns desses estudos são resultados de teses de doutorado e
apareceram poucos anos após a morte do escritor, como foi o caso da obra
Graciliano Ramos: autor e ator (1962), de Rolando Morel Pinto, que
apresentou sua tese em 1961, na Faculdade de Filosofia de Literatura
Brasileira da Universidade de São Paulo, sobre o vocabulário e as estruturas
frásicas das obras de Graciliano Ramos, além do conteúdo e da personalidade
poética do escritor. (PINTO, 1962, p. 15-16).
Outros importantes pesquisadores apareceram com valiosas
contribuições sobre a trajetória de Graciliano Ramos, como é o caso de
Valdemar de Souza Lima9 e Moacir Medeiros de Sant´Ana, referências na
literatura de Alagoas, sendo o primeiro mais restrito à Palmeira dos Índios e o
segundo ao Estado de Alagoas. Moacir Medeiros de Sant´Ana foi um grande
pesquisador da vida e obra de Graciliano Ramos e, no percurso de seus
estudos, reuniu muitos documentos e textos sobre o autor.
Muitos destes registros foram doados a Casa Museu Graciliano Ramos,
em Palmeira dos Índios, outros estão no Instituto Histórico de Alagoas. Porém,
8 Expressão que o próprio Graciliano Ramos lhe atribuiu em carta enviada em 24 de março de
1934 a Aldaberon Cavalcante Lins, seu amigo e também considerado importante escritor do estado de Alagoas, agradecendo as felicitações que este lhe havia feito sobre a nomeação de Graciliano Ramos ao cargo de diretor da Instrução Pública do Estado de Alagoas, no ano de 1933. 9 Nasceu no povoado de Salomé, atualmente nomeado São Sebastião, em 20 de fevereiro de
1902 e morreu em Brasília em 17 de julho de 1987. Possuía estreita amizade com Graciliano Ramos que o incentivou ao mundo da literatura. Escreveu apenas dois livros “Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios” (1971) e "O Cangaceiro Lampião e o IV Mandamento” (1979).
35
segundo informações concebidas por funcionários da Casa Museu e do
Instituto, é provável que existam documentos ainda inéditos em poder do
pesquisador Moacir Medeiros, atualmente com a saúde bastante debilitada.
Medeiros escreveu a obra “Graciliano Ramos” (1973), onde apresenta, além
de informações biográficas, alguns registros administrativos que Graciliano
Ramos escreveu, enquanto prefeito de Palmeira dos Índios.
Lima (1971) publicou a obra “Graciliano Ramos em Palmeira dos
Índios” onde é possível observar um resgate da saga da família Ramos e das
várias fases da vida de Graciliano Ramos - da infância reprimida à juventude
cheia de dúvidas e anseios, do homem-comum do sertão ao ilustre Graciliano.
Nesta obra, o autor desenha o espaço onde Graciliano Ramos atuou
como comerciante, político e cidadão, além de apresentar a projeção do
escritor na literatura nacional, após sua morte.
Outro personagem que se debruçou sobre a vida e obra de Graciliano
Ramos foi José Augusto Guerra10. Na obra Caminhos e Descaminhos da
Crítica (GUERRA, 1980) fez uma análise sobre algumas obras e autores
brasileiros consagrados como; Mário de Andrade, Olavo Bilac, Ledo Ivo, etc., e,
entre estes, incluiu Graciliano Ramos na qual apresentou o perfil jornalístico do
escritor alagoano.
No capítulo “O Jornalista Graciliano Ramos” Augusto Guerra traçou
algumas características de Graciliano Ramos no campo do jornalismo, fazendo
uma analogia com alguns personagens criados pelo escritor; Paulo Honório,
Luís da Silva e João Valério que, na trama do romance, exercem de alguma
forma o ofício da redação.
10
Natural de Maceió (1926), foi professor de Redação e Jornalismo da Universidade de Brasília, escreveu vários trabalhos e, com a monografia “A técnica da Comunicação na Redação Oficial”, em que sugere à necessidade de alteração do processo que era vigente na época de expressão dos documentos oficiais, de modo a tornar mais objetiva a linguagem, foi premiado pelo DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público).
36
Ainda na intenção de apresentar a região de inspiração do escritor
alagoano, em 2003 (ano que marcou os cinquenta anos da morte de Graciliano
Ramos), foi realizada uma grande exposição no SESC Pompéia de São Paulo
para divulgar “O Chão de Graciliano”, extensão do livro-reportagem do
jornalista Audálio Dantas e do fotógrafo Thiago Santana.
Nos aniversários de morte do “Velho Graça”, título carinhoso e criativo
da obra de Dênis Moraes11 (1996) sobre a biografia do escritor, é comum
aparecer nas estantes das livrarias edições comemorativas contando e
recontando a vida de Graciliano Ramos.
Foi o que aconteceu com os ensaios escritos por Antonio Candido sobre
o ilustre alagoano. Esses textos, quatro no total, foram escritos em períodos
diferentes e, só mais tarde, apareceram reunidos no livro Ficção e Confissão
(2006), mesmo título de um dos ensaios que compõem a obra e que foi
publicado a primeira vez em 1955. Os temas dos ensaios são sobre as
criações Caetés, Infância, Angústia e Memórias do Cárcere, onde o crítico
Antonio Candido expõe o estilo literário de Graciliano Ramos, sua perseguição
pela expressão correta e enxuta e sua personalidade, muitas vezes estampada
nas ações dos personagens. (CANDIDO, 2006, p. 17-21).
Em 1992, no Centenário de Graciliano Ramos, o curso de Pós-
Graduação em Letras e Linguística da Universidade Federal de Alagoas
(PPGLL/UFAL) e o Governo do Estado organizaram evento no qual o professor
Dênis trouxe reflexões importantes acerca da escrita de Graciliano Ramos.
11
Atualmente é professor associado do Departamento de Estudos Culturais e Mídia e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, na qual ingressou, por concurso público, em 1992. Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação Ford e da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ). Suas áreas de especialização são economia política da comunicação, políticas de comunicação e tecnologias. Seus mais recentes livros são "A batalha da mídia: governos progressistas e políticas de comunicação na América Latina e outros ensaios" (2009) e "Mutações do visível: da comunicação de massa à comunicação em rede", (org. 2010).
37
Apesar da ampla discussão em torno do homem e artista Graciliano,
esquadrinhar suas várias fases e faces não deixa de ser desafiador, pois as
possibilidades de releituras são muitas.
2.2 Sobre os Relatórios Públicos de Graciliano Ramos
Certamente há muitos estudos sobre a criação de Graciliano Ramos,
porém percebe-se uma ausência de estudos mais aprofundados sobre seus
relatórios.
Apesar de terem sido apenas dois publicados na mídia oficial de Maceió,
um para cada ano de sua gestão, suspeita-se de que foram essenciais para a
iniciação e projeção do escritor no país. Frequentemente, o que se observa são
reedições dos famosos relatórios, na mídia contemporânea.
Mário Hélio Gomes de Lima12 organizou o livro Relatórios (1994) onde
expõe breves comentários sobre estes documentos escritos, talvez um dos
mais extensos até o momento. Compõe este livro o capítulo “Comentários de
um Sociólogo, dois Jornalistas, um Escritor e um Ator de Cinema de Hoje aos
Relatórios de Graciliano Ramos” que é a soma de curtos artigos que exploram
a escritura dos relatórios. Apesar da pouca extensão, são textos bem
construídos e que trazem reflexões sobre estes registros de Graciliano Ramos.
De tempos em tempos aparecem na mídia comentários sobre os
relatórios e o jeito de administrar de Graciliano Ramos, mas frequentemente
são leituras de trechos que exemplificam o perfil irônico e sincero do autor. Não
se observa nestes comentários um exame mais profundo e fundamentado.
A Revista da História da Biblioteca Nacional, que conta com o apoio do
Ministério da Cultura, publicou a matéria Manual do Bom Político (2008),
escrita por Lorenzo Aldé, na qual se registra que “os documentos têm o frescor
de uma fotografia digital” (p. 30).
12
Atualmente, é professor da Universidade Federal de Santa Maria atuando na área de Comunicação.
38
Para alegria da autora desta tese, o jornal Folha de S. Paulo publicou
no dia 12 de setembro de 2010, uma extensa matéria sobre os relatórios
públicos de Graciliano Ramos e um trecho de uma carta ainda inédita que este
autor escreveu ao então presidente Getúlio Vargas, fundamentada nesta
pesquisa.
Na mesma data, também saiu uma matéria na Gazeta de Alagoas
sobre os relatórios escritos pelo ilustre alagoano, intitulada Política de Graça e
escrita pelo repórter Fernando Coelho. A matéria da Gazeta, além de
transcrever trechos dos relatórios e apontar brevemente como foi o estilo de
governar de Graciliano Ramos, apresenta alguns depoimentos de
pesquisadores contemporâneos que estão estudando os relatórios.
O estudioso Ivan Barros13, filho de Palmeira dos Índios, autor de vários
livros, entre eles Graciliano era assim (1974) e Palmeira dos Índios – terra &
gente (1969), declarou a Gazeta que brevemente lançará o livro Graciliano, o
prefeito que virou Best-Seller. Sobre os relatórios Barros diz “Eu vejo os
relatórios como uma lição para esses políticos fichas-sujas, ficha limpa e os
que estão denunciados por improbidade ou irregularidade” (Gazeta de Alagoas,
caderno B, setembro de 2010).
A pesquisadora Ana Florinda Dantas 14 (2010, Caderno B) fez os
seguintes comentários sobre o perfil administrativo do escritor e sobre os
documentos:
Um exemplo de probidade administrativa e respeito aos seus administrados, pois levou a democracia representativa ao mais alto patamar, quando se sentia efetivamente um representante do seu eleitor, a quem prestava contas e dava satisfações dos seus atos de administração. Mais que isso, tinha um comportamento pessoal compatível com a austeridade do
13
Jornalista, advogado e escritor, ex-repórter da extinta revista Manchete, promotor de justiça aposentado, autor de vários livros, entre eles Graciliano Ramos era assim, lançado em 1974 pela editora Sergasa, atual Imprensa Oficial Graciliano Ramos http://imprensaal.wordpress.com/ Uma das suas principais publicações é a Revista Graciliano Ramos cujo objetivo é retratar Alagoas através de ensaios, entrevistas, artigos fotográficos etc. 14
Professora da Faculdade de Direito do Centro Universitário Cesmac (AL), juíza membro do Pleno do Tribunal Regional Eleitoral de Alagoas.
39
governante que sabia ser, mesmo involuntariamente, um modelo para os administrados. (GAZETA DE ALAGOAS, CADERNO B, 12/SET/2010).
No desenvolvimento da reportagem, aparecem outros depoimentos
sobre a obra ficcional de Graciliano Ramos como Memórias do Cárcere,
Caetés e Vidas Secas.
Como se pode perceber, existem referências e alguns estudos iniciais
sobre os registros da gestão do mais ilustre prefeito de Palmeira dos Índios,
alguns remotos e outros mais recentes.
A carência de estudos dirigidos aos escritos não ficcionais de Graciliano
Ramos, especificamente de seus relatórios, justifica esta pesquisa que busca
ampliar os estudos sobre esses documentos e mostrar como foram lidos e
comunicados ao país.
Para melhor compreensão desses textos, faz-se necessário um estudo
dos gêneros discursivos e textuais, à luz das concepções de Bakhtin, Todorov
e de outros autores.
40
3 AS MULTIFACES DE GRACILIANO RAMOS
3.1 O Menino Graciliano: Letra, Leitura e Palmatória
O menino Graciliano Ramos nasceu no ano de 1892, filho de Sebastião
Ramos e Maria Amélia, na cidade de Quebrangulo, no estado de Alagoas.
Nesta época, o Brasil passava por importantes mudanças políticas e
econômicas que deixavam no ar um vestígio de incertezas. A República ainda
era uma criança e as querelas do Regime Militar ainda se faziam presentes
(FURTADO, 1995).
Sebastião Ramos sentiu as consequências da falência dos negócios do
avô paterno de Graciliano Ramos, Tertuliano Ramos, homem que teve
propriedades e capangas, mas que amargou com os dissabores da caída
social e econômica do país. (LIMA, 1971, p. 12-13). Sobre o cenário econômico
da época, Furtado (1995, p. 170), aponta:
Dessa forma, a depressão externa (redução dos preços das exportações) transformava-se internamente em um processo inflacionário. No último decênio do século, desequilíbrios internos desse tipo agravados pela política monetária que seguiu o governo provisório instalado após a proclamação do regime republicano. A política monetária do governo imperial nos anos oitenta, traumatizada pela miragem da “conversibilidade”, por um lado conduzia a um grande aumento da dívida externa e por outro mantivera o sistema econômico em regime de permanente escassez de meios de pagamento. Entre 1880 e 1889, a quantidade de papel-moeda em circulação diminuiu de 216 para 197 mil contos, enquanto o valor do comércio exterior (importações + exportações) crescia de 414 para 477 contos.
O casal Ramos seguia pelejando por uma vida sem dívidas e sem
muitas complicações financeiras. Para isso, mudaram para Buíque (PE) e
montaram um pequeno comércio, onde adotaram estrategicamente a venda à
vista, evitando o máximo possível o fiado, prática tão comum naquele período.
Fazer economia era uma lei para o jovem casal, guardavam o que podiam. A
41
outra estratégia que adotaram para conservar o bom ir e vir na cidade foi o
cultivo da boca fechada e da discrição. (LIMA, p. 18-19). Nesse período,
Graciliano era ainda uma criança tenra, tinha apenas dois anos.
Com administração séria, regrada e devidamente anotada, Sebastião
Ramos de Oliveira e sua mulher, aos poucos, consolidaram-se na sociedade
como comerciantes bem sucedidos. Enquanto isso, o menino Graciliano
crescia longe da miséria, mas debaixo de palavras severas e de pancadas do
pai “meu pai era terrivelmente poderoso, e essencialmente poderoso (...) não
economizava pancadas e repressão. Éramos repreendidos e batidos15”
(RAMOS, 2003, p. 27).
As constantes mudanças de cidade acompanharam a família Ramos.
Passaram por Quebrangulo, Buíque, Viçosa, Palmeira dos Índios. Em Viçosa,
já com sete anos, o menino Graciliano ingressou no Internato Alagoano, onde
começou a manifestar seu interesse pela literatura.
Enquanto a educação formal consumia o menino Graciliano no Internato,
em Palmeira dos Índios a Loja Sincera demonstrava solidez e prosperidade.
Recentemente, para conhecer mais de perto o ambiente do ilustre
personagem, estive na cidade de Palmeira dos Índios e desejei passar na rua
onde outrora ficava a loja da família Graciliano. Constatei que a estrutura física
da loja continua de pé e, atualmente, funciona como loja de variedades. A
maioria dos clientes entra e sai do estabelecimento sem saber que um dia
aquele espaço pertenceu a um dos personagens mais importantes da literatura
brasileira, pois não há nenhuma referência informando que ali foi a Loja
Sincera de Graciliano Ramos.
O jovem Graciliano, após alguns anos frequentando a escola e muita
leitura solitária, deteve um conhecimento sólido. Envolveu-se cada vez mais
nos negócios do pai, não por gosto, mas por obrigação. A leitura era sua
15
Trecho retirado da obra Infância.
42
prioridade, mesmo sabendo que o interesse pelas letras o distanciava das
obrigações de jovem comerciante, atitude que deixava o velho Sebastião
Ramos arredio.
Assim, entre leituras solitárias, letras conhecidas e desenhadas sob a
vigia rigorosa da palmatória, o menino Graciliano foi sendo esculpido
culturalmente.
3.2 Comerciante à Frente de Seu Tempo
Mesmo sem satisfação, Graciliano Ramos trabalhou muitos anos na loja
Sincera que inicialmente era do seu pai. Entre fazendas, miudezas, ferragens e
tintas, passou muitos dias de sua juventude envolvido com as ações de compra
e venda de mercadorias. Raramente se distanciava do balcão e, por isso, suas
leituras foram comprometidas (LIMA, 1971).
Graciliano Ramos, na obra Infância (2003), sobre a fatalidade do destino
das pessoas, inclusive do seu próprio, escreveu: “Ainda hoje suponho que os
meus poucos acertos e numerosos escorregos são obra de um destino irônico
e safado, fértil em astúcias desconcertantes” (RAMOS, 2003, p. 93).
Diante desse destino supostamente marcado, o comerciante não
mostrou rebeldia, ao contrário, fez mudanças criativas na loja e cuidou com
esmero das contas, dos clientes e dos empregados. O perfil do comerciante
Graciliano nos revela características modernas para o período, o que
demonstra um homem com visão a frente do seu tempo.
Naquele período, preocupado em formar uma equipe preparada para
atender os clientes e concretizar bons negócios, Graciliano Ramos aplicava
testes tanto para escolher os melhores candidatos para trabalhar na loja quanto
para treinar os já atuantes, dessa forma, a equipe era reduzida, mas eficiente.
(LIMA, 1971, p. 56).
43
Os registros das negociações, certamente das vendas, entradas e
saídas de mercadorias, cadastro dos clientes, livro caixa, eram feitos com rigor
e exatidão, característica que vai se repetir no Livro de Registro de Contas da
Prefeitura de Palmeira dos Índios, quando foi prefeito da cidade. Fazia questão
de anotar tudo a próprio punho, com letra miúda e firme. Ainda nos relatos de
LIMA (1971), Graciliano Ramos prezava pelo bom atendimento aos clientes,
gostava de prosear, mesmo que o freguês não tinha intenção de comprar nem
botão.
O comerciante de Palmeira dos Índios mostrava-se meio arredio a
tecnologia. A máquina de datilografia era raridade em cidades como Palmeira
dos Índios, aliás, consta que na época, apenas um morador dessa região
possuía tal novidade. Apesar de causar espanto e admiração, Graciliano
Ramos resistiu em adotar a máquina.
O proprietário da Loja Sincera mostrou que entendia da importância do
marketing, mesmo em uma época que não se conhecia tal termo no país.
Publicou um anúncio da Loja Sincera no Jornal O Índio, semanário católico,
(mais adiante citarei a atuação de Graciliano Ramos nesse veículo), com a
intenção de projetar seu estabelecimento. (LIMA, p. 57). Para conquistar e
fidelizar o cliente mantinha a loja sortida de produtos e novidades, com a
fachada atrativa, para chamar a atenção dos fregueses e fixou o preço único
para cada artigo. Não dava desconto e nem tirava os poucos centavos para
arredondar o preço. Essa atitude inflexível do comerciante confrontava com os
costumes das pessoas da cidade, pois era muito comum um acerto pessoal do
preço da mercadoria, diretamente no balcão.
Praxe original, sem dúvida, essa do tal preço fixo inarredável, mas que não sintonizava com o espírito da clientela, principalmente a da roça, via de regra danada para rezingar. Estupidez fechar as portas a quem desejava adquirir qualquer coisa, batendo-se sempre por uma “diferençazinha”. O freguês preferia transacionar com quem admitia o jogo das palavras, no curso do qual tinha liberdade para expor os seus argumentos e defender-se. Aquele estranho figurino era inaceitável, parecia confundir-se com a letra fria dos decretos,
44
debulhados em artigos e parágrafos, impondo rigorosa observância. Quem já vira? Ora bolas! Marchar em lorota de negociantes, com a sua notória inclinação o logro... Engraçado! (LIMA, 1971, p. 59).
Embora a conduta do jovem comerciante para gerir seu negócio
causasse espanto na população e, talvez para os outros comerciantes da
cidade fossem atitudes inapropriadas, o resultado foi positivo, pois a imagem
de loja que inspirava confiança e sinceridade cristalizou-se na redondeza.
O negociante Graciliano Ramos reconhecia a dinâmica do mercado e,
de tempos em tempos, tornava-se flexível para realizar a venda a prazo, porém
sempre muito precavido com as anotações. Preferia o diálogo com o devedor,
se este não cumpria com os prazos de pagamento, a recorrer aos cartórios da
cidade.
Há nos arquivos da Casa Museu Graciliano Ramos em Palmeira dos
Índios, registros de memorandos escritos por Graciliano Ramos aos seus
devedores. O exemplo abaixo ilustra um destes registros:
Palmeira dos Índios, de 4 de fevereiro de 1926. Amigo Manoel Pereira. Recebi sua carta de 30 p. Tenho como o amigo deve compreender, numa crise como esta que atravessamos, grande necessidade de dinheiro. Assim, se lhe fosse possível dar baixa na hipoteca este ano, eu lhe ficaria agradecido. Caso não possa, peço-lhe ao menos, já que tenho absoluta necessidade, que faça um esforço para trazer pelo menos a metade da importância16.
Muito agradecido ficará seu amigo certo Graciliano Ramos
16
Carta exposta no Arquivo Público da Casa Museu Graciliano Ramos.
45
Graciliano Ramos era o tipo de negociante que não apreciava a
desgraça do outro e nem julgava as ações que o levaram a ruína. Apesar de
sua postura séria e muito rigorosa, demonstrava compaixão com o sofrimento
das pessoas. (LIMA, 1971).
Os negócios da Loja Sincera iam bem até que veio a crise de 1929. A
economia do sertão ficou à deriva e muitos comerciantes nordestinos,
pequenos e grandes, não suportaram a situação. A desvalorização do preço
dos frutos da terra, a escassez do mercado e a ausência da moeda na praça
denunciaram a vitória da crise. O poder aquisitivo do povo caiu, as mercadorias
se amontoaram nas prateleiras e as dívidas aumentavam mês a mês. Foi
nesse contexto de dificuldade que o experiente comerciante Graciliano Ramos
resolveu dar cabo na Loja Sincera.
3.3 Um Professor Matuto
No tempo em que a educação escolar, principalmente em cidades como
Palmeira dos Índios que ficavam longe das capitais, era precária e contava com
professores que, muitas vezes, não havia frequentado os bancos escolares e
nem concluído curso algum para exercer tão nobre função, quem possuía
educação bancária17 era rei.
Graciliano Ramos iniciou seus estudos formais no Internato Alagoano,
após ter aprendido aos cinco anos as primeiras letras com o mais severo
professor que teve, Sebastião Ramos: “Aprendi a carta do ABC em casa,
aguentando pancada” (RAMOS, apud, Moraes, 1996, 10).
Com o passar dos anos, naturalmente foi demonstrando sua
característica autodidata e foi visto pelos moradores de Palmeira dos Índios
17
Expressão apresentada por Paulo Freire para expor o modelo tradicional de prática pedagógica que imperou por muitos anos no país, entendia que esse tipo de educação visava à mera transmissão passiva de conteúdos pelo professor, sem considerar a realidade do aluno no processo de ensino/aprendizagem.
46
como um homem letrado e, se desejasse, poderia ajudar na educação da
cidade.
Para ilustrar a educação paterna de Graciliano Ramos, um trecho da
obra Infância:
Mas, arengando com Joaquim, na areia do beco, ou admirando o rostinho de anjo de Teresa, assaltava-me às vezes um desassossego, aterrorizava-me a lembrança do exercício penoso. Vozes impacientes subiam, transformavam-se em gritos, furavam-me os ouvidos; as minhas mãos suadas se encolhiam, experimentando nas palmas o rigor das pancadas; uma corda me apertava a garganta, suprimia a fala; e as duas consoantes inimigas dançavam: d, t. Esforçava-me por esquecê-las revolvendo a terra, construindo montes, abrindo rios e açudes. (RAMOS, 2003, p. 115 – 116).
São vários os exemplos da educação violenta e inútil que Graciliano
Ramos recebeu durante sua formação. Em trecho da obra Infância (2003. p.
16) o autor fez a seguinte declaração: “Medo. Foi o medo que me orientou nos
primeiros anos. Pavor.”
Embora traumática, a vida escolar do menino mal compreendido não foi
reproduzida quando este teve a oportunidade de ensinar, ao contrário,
mostrou-se exigente nas lições, mas incapaz de um ato violento que pudesse
deixar marcas negativas em seus alunos. Quando precisava chamar a atenção,
era sempre com palavras, muitas vezes carregadas de ironia.
Voltando ao cenário educativo de Palmeira dos Índios, estava longe de
ser considerado adequado, pois além de contar com a falta de professores,
também não possuía instalação e mobília para acomodar os aspirantes ao
estudo. A Diretoria da Instrução, órgão responsável pela educação do povo
palmeirense, recorria à ajuda dos pais dos alunos para conseguir realizar suas
funções de escola.
47
De mais a mais, essas abnegadas mulheres não dispunham de local apropriado nem de instalações convenientes para exercer o seu sagrado mister. Os pais de família, então se dispunham a cooperar com a Diretoria da Instrução, em permanente estado de bancarrota, mandando os filhos para a escola, munidos de seu respectivo caixão de querosene, adquirido nas mercearias do lugar. (LIMA, 2003, p. 36).
De férias do Internato no ano de 1910, Graciliano ouviu comentários dos
moradores da cidade sobre sua boa instrução, não só na gramática da língua
materna, mas também no francês, italiano, inglês e nas contas. Seus colegas
de praça passaram a indagá-lo a fim de saber se nele havia alguma intenção
em ajudá-los na transmissão de seus conhecimentos. Mas o perfil de homem
avesso ao exibicionismo não se gabava com os comentários elogiosos a sua
pessoa, pelo contrário, fazia questão de cortar esse tipo de conversa quando
estava por perto.
As indagações tornaram-se frequentes, até que Graciliano Ramos, em
plenas férias, decidiu abrir um curso particular noturno da cidade, do qual foi
mestre. Não fez tal empreendimento por vocação, mas talvez pelo anseio em
ajudar, de alguma forma, seus conterrâneos e também pela oportunidade de
mexer com a faculdade da leitura e do conhecimento, que tanto lhe agradava.
Os moradores da cidade logo ficaram sabendo do curso e os filhos de
pais com recursos, jovens políticos e interessados em uma instrução mais
apurada matricularam-se no curso do jovem professor Graciliano Ramos.
(LIMA, 1971).
O perfil de bom estrategista esteve presente na administração das aulas
e na escolha dos alunos, pois taxou o curso com mensalidades relativamente
altas. O preço tinha um objetivo, atrair para o curso somente aqueles
interessados nas palavras do mestre Graça e, dessa forma, afastar os curiosos
e brincalhões. Essa atitude foi experimental, apenas seletiva e, após a
formação e consolidação da turma, as mensalidades não eram mais cobradas.
(LIMA, 1971)
48
Diante das novidades do esperanto, proposta de língua universal,
Palmeira dos Índios contou com o dedicado professor Graciliano Ramos, que
se empenhou para aprender e ensinar o idioma aos interessados. Também
ministrou aulas de francês no Colégio Sagrado Coração e era constantemente
procurado para esclarecer dúvidas de alunos, crianças e adultos, matriculados
nas poucas escolas da região. (LIMA, 1971).
Entre seus alunos, suas irmãs Marili e Clélia estavam presentes que
receberam a mesma orientação rigorosa que os outros colegas de turma. Em
declaração feita ao escritor Denis de Moraes (1996), Clélia recordou “Ele
conseguia despertar o nosso interesse, ninguém faltava às aulas. Eu aprendi
noções de francês e italiano numa época em que nem sabia direito o
português”! (MORAES, 1996, p. 41).
Nos quatro anos de funcionamento do curso, adultos e crianças
passaram pela nova escola que apresentava uma proposta pedagógica
diferenciada para a época. A palmatória por ali não era aplicada, porém exigia
dedicação e frequência dos alunos.
A escola funcionou apenas por quatro anos, pois com a partida de
Graciliano Ramos para o Rio de Janeiro em 1914, o “curso noturno” foi
fechado. Provavelmente não o confiava em outras mãos.
Alguns textos apontam que Graciliano Ramos foi empreendedor de uma
escola de idiomas em Palmeira dos Índios. (LIMA, p. 113) Teria sido uma
escola tanto para ensinar a Língua Portuguesa à nova gente que por lá
chegava, quanto para ensinar o italiano aos palmeirenses interessados.
Graciliano Ramos foi o único professor. Porém, essa informação precisa ser
melhor investigada para constatar a sua veracidade. Existe um trecho na obra
Viventes das Alagoas (RAMOS, 1967, p. 154) que pode ser um indício
verdadeiro dessa narração:
49
Por motivo de ordem econômica, resolvi um dia, a exemplo de toda gente, ministrar aos outros alguns conhecimentos proveitosos de mim. Não me arrisquei a preparar oleiros sapateiros pois ninguém tomaria a sério sapato ou panela que eu fizesse. Procurei matéria exótica, de verificação difícil. Imaginando, sem grande esforço que na Itália existia uma língua, pedi catálogos ao Garnier e dispus-me resolutamente a estropiar o italiano com a ajuda de Deus. Anunciei: - Italiano rápido e barato a cinco mil réis por cabeça, mensalmente. Aproveitem. Lições em todos os dias úteis. Tempo é dinheiro como diz o gringo. Isso deve ser fácil, pensei. É só arrumar no fim das palavras une ou ine. De estrangeiro cá na terra ninguém entende. E se aparecer por aí um carcamano, adoeço e perco a fala. Pois, senhores, não me dei mal. Matricularam-se cerca de trinta idiotas. Comecei a trabalhar com energia e confiança. Ainda estaria trabalhando, se dois alunos, finda a primeira quinzena, não entrassem em concorrência comigo, deslealmente, fundando escolas que italianizaram toda a localidade.
Mais uma vez, pode-se notar o espírito de homem de negócio que o
escritor possuía. Como qualquer outro jovem de sua idade, Graciliano
desejava conhecer novas terras, buscar aventuras intelectuais, sociais e
econômicas. Esse espírito desbravador fortaleceu-se e o jovem sertanejo
decidiu partir para o Rio de Janeiro, mesmo deixando para trás sua futura
esposa, Maria Augusta.
Na cidade grande, trabalhou com revisor suplente no Correio da Manhã,
depois em O Século, para reforçar os ganhos, logo após como revisor do jornal
A Tarde, escreveu crônicas para o Jornal de Alagoas e colaborou com o
semanário Paraíba do Sul, na cidade fluminense. Desde a sua chegada no Rio
de Janeiro, teve uma vida intensa como escritor e seus textos foram elogiados
por leitores, jornalistas e escritores da época.
O jovem professor cumpriu bem com a sua missão de instrutor, pois
ensinou com rigor e dedicação todos os que lhe procuravam interessados em
aprender com o mestre matuto e sábio do sertão.
50
Anos mais tarde, o perfil de homem intelectual e de educador exemplar
rendeu a Graciliano Ramos os cargos de Diretor da Instrução Pública de
Alagoas, esse era o ano de 1933.
A postura destemida, justa, inflexível e que não se dobrava a corrupção
e a privilégios para obter favorecimento próprio, foi observada tanto no
exercício da prefeitura de Palmeira dos Índios quanto na ocupação do cargo de
Diretor da Instrução Pública do Estado. (SANT´ANA, 1992, p. 54). Tal postura
despertava descontentamento nos rostos daqueles que se viram direta ou
indiretamente atingidos.
Como Diretor da Instrução baixou medidas polêmicas e desafiadoras,
passou a exigir diplomas e formação específica para os que desejassem
ministrar aulas nas escolas públicas do estado, demitiu as professoras
interinas, entre as quais sua própria irmã, criou as Juntas Escolares que tinham
a função de propagar e fiscalizar as escolas estaduais, municipais e
particulares, instaurou os estudos estatísticos sobre a educação no estado.
(SANT´ANA, 1992, p. 54).
Em trecho da obra Memórias do Cárcere (2008), Graciliano Ramos fez o
seguinte relato sobre sua gestão no cargo de Diretor da Instrução:
Pelo meu cargo haviam passado em dois anos oito sujeitos. Eu conseguiria aguentar-me ali mais de três anos, e isto era espantoso. Ocasionara descontentamentos, decerto cometera numerosos erros, não tivera a habilidade necessária de prestar serviços a figurões, havia suprimido nas escolas o hino de Alagoas, uma estupidez com solecismos, e isto se considerava impatriótico. (RAMOS, 2008, p. 17).
Em sua gestão escolar, o número de matrículas aumentou bastante em
relação aos anos anteriores a sua administração, como podemos observar nos
dados apresentados pelo pesquisador Sant´Ana, (1992, p. 53) “[...] os números
51
da matrícula geral dos alunos nas escolas de Alagoas, a começar de 1932, ano
anterior ao seu ingresso na Diretoria em questão, até 1934: 21.478 alunos em
1932: 32.912 em 1933 e finalmente 40.239, em 1934, representando o
significativo aumento de 87,3% no período”18.
Quando Graciliano Ramos assumiu o cargo na Pasta da Educação do
Estado, a situação do ensino encontrava-se precária e muito distante de
oferecer uma educação de qualidade a crianças e adultos.
No ano de 1935, Graciliano Ramos escreveu um relato sobre a realidade
da educação do Estado de Alagoas, que foi divulgado na revista A Escola no
mesmo ano (SANT´ANA, 1992, p. 51). Diz o relato:
O quadro que nos apresentava, há poucos anos, a instrução pública em Alagoas era este: dezena e meia de grupos escolares, ordinariamente localizados em edifícios impróprios, e várias escolas isoladas na capital e no interior, livres de fiscalização, providos de material bastante primitivo e quase desertas. As professoras novas ingressavam comumente nos grupos; as velhas ficavam nas escolas isoladas, longe do mundo, ensinando coisas absurdas. Salas acanhadas palmatórias, mobília de caixões, santos nas paredes, em vez de mapas.
O jovem professor cumpriu bem e com rigor sua missão de instrutor.
Passou por vários níveis da educação formal; professor da roça, dono de
escola de idiomas e Diretor da Instrução Pública do Estado de Alagoas. A
postura ética e corajosa o acompanhou em todos os momentos e o mestre
matuto e sábio do sertão deixou uma lição de cidadania, justiça e
comprometimento com o próximo para o povo do seu estado e para o país.
18
Esses dados aparecem divulgados no livro do pesquisador Moacir Medeiros de Sant´Ana “Graciliano Ramos: vida e obra, e foram retirados do Jornal de Alagoas de 13 de dezembro de 1935, do editorial Trabalhando em Silêncio.
52
3.4 O Prefeito Graciliano: Coragem e Desafios numa Terra Sem Lei
Palmeira dos Índios além de haver contado com o mestre Graça
ministrando aulas de gramática, francês, italiano, esperanto, leitura e contas,
teve o privilégio de ser governada por Graciliano Ramos.
A história de curta permanência atuando como professor da região se
repetiu no cargo da prefeitura da cidade. Este último com um tempo ainda
menor, dois anos.
O jornalista Álvaro Paes, em visita eleitoral à cidade de Palmeira dos
Índios, na época era candidato a governador do Estado de Alagoas, foi bem
recebido pelos colegas de profissão, os jornalistas, pelos curiosos e por
aqueles que tinham esperança em obter algum favor do ilustre visitante.
Na metade da segunda década do século XX, mais precisamente no ano
de 1926, Palmeira dos Índios viveu uma história de violência na arena política.
O prefeito Lauro de Almeida Lima foi assassinado, em plena luz do dia, pelo
cobrador de tributos da região João Ferreira de Gusmão e Melo. O ocorrido se
deu por motivo de desentendimento entre os envolvidos na tragédia por
questões de cobrança de tributos. (LIMA, 1971).
O vice-prefeito, Manuel Sampaio Luz, assumiu a posição que lhe era de
direito e governou a cidade até o final do mandato. Era período de nova eleição
e a “princesa do sertão” precisava apontar um nome para concorrer ao cargo
da sua prefeitura. Nessa época, a fama de Graciliano Ramos na cidade de
homem instruído, justo, sério e de bom administrador corria solta. Não
demoraria muito para o convite bater-lhe a porta.
As conversas entre o governador do Estado e os famosos irmãos
Francisco e Otávio Cavalcanti, que comandaram a política da cidade por mais
de quatro décadas, chegaram ao nome de Graciliano Ramos. Esse era o
candidato ideal para concorrer ao cargo da prefeitura de Palmeira dos Índios.
Porém, restava saber se o indicado se interessaria pelo pleito.
53
Selado o acordo, faltava armar a arapuca para o candidato. No terraço da mansão dos Cavalcanti, Graciliano sentiria as pernas tremerem ao ouvir Otávio lançá-lo prefeito. Refeito do susto, responderia, sem morder a isca: - Só se Palmeira dos Índios estivesse com urucubaca... (MORAES, 1996, p. 52).
Como nota-se, Graciliano Ramos prontamente recusou o convite. Mas
os homens da política não desarmaram suas arapucas. Nessa mesma
época o livro Caetés estava sendo escrito pelo escritor, que lhe tomava boas
horas de sono. Se entrasse para a política, seria obrigado a encostar o
romance. Foi o que aconteceu.
Depois de muita insistência dos amigos e de uma provocação dos
adversários espalhando que ele estava amedrontado e, por isso, fugiu da briga,
Graciliano voltou atrás. “Apareça o filho da puta que disse que eu não sabia
montar em burro bravo!” (MORAES, 1996, p. 53), foram as palavras escritas no
bilhete que o candidato Graciliano Ramos escreveu a Francisco Cavalcanti.
No dia 07 de outubro de 1927 Palmeira dos Índios elegeu seu novo
prefeito, Graciliano Ramos de Oliveira, com 433 votos. Após a morte de sua
primeira esposa, Maria Augusta, fato que ocorreu em 1920, o jovem prefeito
buscou conforto nos filhos, nos negócios da Loja Sincera e na literatura. Agora,
envolvido com a política, teria mais uma obrigação. Raros foram os momentos
de lazer com alguns poucos amigos. O luto se arrastou por aproximadamente
sete anos.
No ano em que foi eleito, fato importante em sua vida, aconteceu outra
inusitada surpresa, Heloísa. Foi um amor à primeira vista para Graciliano,
como descreveu em uma das inúmeras cartas que enviou à amada:
Heloísa: mandei-te uma carta pelo último correio, e já a necessidade me aparece de falar novamente contigo. Se pudesse, empregaria todo o tempo em escrever-te, só para ter o prazer de receber respostas. Tenho tanto que te dizer... Nem sei por onde começar, fico indeciso, com a pena suspensa, vendo interiormente esses olhos que me endoideceram
54
quando os vi pela primeira vez. Muitas coisas para dizer-te, mas coisas que só se dizem em silêncio e que talvez compreendas, se houver afinidade entre nós. (RAMOS, 1980, p. 86-87).
Atormentado entre os desafios da política e da paixão, Graciliano Ramos
assumiu legalmente a prefeitura no dia 07 de janeiro de 1928, pouco tempo
depois, Heloisa era oficialmente primeira-dama de Palmeira dos Índios.
Como prefeito, Graciliano Ramos inovou o perfil da administração
pública da cidade. Logo nos primeiros dias de sua gestão, observou que os
desafios eram muitos e que, certamente, mexeria em feridas que poderiam lhe
render infortúnios e inimizades. Em outro trecho de carta enviada à noiva
Heloisa, ele desabafa:
Para os cargos de administração municipal escolhem de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer dia renuncio. Por tua culpa, meu amor, toco num assunto desagradável e idiota. Isso não vale nada. (RAMOS, 1980, p. 97).
Quem chega a Palmeira dos Índios, depara-se com um enorme busto
do mais ilustre prefeito que a cidade já teve. A homenagem, certamente, não é
apenas para simbolizar a fama de Graciliano Ramos como escritor, mas
também para lembrar do gestor público exemplar que ele foi.
Na qualidade de prefeito, não poupou esforços para administrar de
maneira justa e competente. Assumiu um município praticamente falido. Seu
antecessor deixou o caixa magro, dívidas atrasadas, tanto a pagar quanto a
receber. Precisava fazer milagre para colocar a casa em ordem. (LIMA, 1971).
Administrou a cidade com mãos de ferro. Reduziu as despesas, cobrou
com rigor os impostos e não perdoou os devedores. Demitiu funcionários
55
desnecessários ao serviço público e que apareciam por ali somente nos dias
dos vencimentos. Graciliano tinha mania de limpeza e primava muito pela
higiene pessoal, dessa forma, transferiu seu asseio para a cidade.
No dia 22 de agosto de 1928, instituiu o Código Municipal de Conduta19,
que foi publicado na Gazeta de Notícias de Maceió do mesmo ano. Mandou
limpar todas as ruas e matar os bichos que faziam das ruas públicas seus
quintais. Os donos dos animais que não queriam ver seu bichinho morto
correram para colocá-los dentro de suas casas. Nas ruas da cidade, era
comum a livre circulação de cachorros e porcos. Tal medida causou alvoroço
nos moradores, mas nem o pai do próprio prefeito foi poupado da nova ordem.
A seguir20, algumas resoluções do polêmico Código que ajudam a
retratar o zelo e o interesse em instaurar a ordem na cidade, escritas e
cumpridas à risca por Graciliano Ramos:
CAPITÚLO I – Comércio
Art. 1 - Ninguém poderá estabelecer negócio de qualquer
natureza sem previamente haver obtido a necessária
licença da Prefeitura. Multa igual à importância do imposto
aos contraventores.
Art. 2 - O indivíduo que for encontrado negociando sem
licença terá fechada a sua casa comercial.
19
O Novo Código de Conduta substituiu um antigo, escrito na época do Império no ano de 1865. Sobre a existência do caduco relatório, Graciliano Ramos fez o seguinte comentário quando escreveu o segundo Relatório ao governador do Estado de Alagoas: “Em janeiro do ano passado não achei no Município nada que se parecesse com lei, fora as que havia na tradição oral, anacrônicas, do tempo das candeias de azeite. Contava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo, convenci-me que o código era uma espécie de lobisomem. Afinal, em fevereiro, o secretário descobriu-o entre papéis do Império. Era um delgado volume impresso em 1865, encardido e dilacerado, de folhas soltas, com aparência de primeiro livro de leitura de Abílio Borges. Um furo. Encontrei no folheto algumas leis, aliás bem redigidas, e muito sebo. Com elas e com outras que nos dá a Divina Providência consegui aguentar-me até que o Conselho, em agosto, votou o código atual”. 20
Essas informações foram retiradas de uma cópia do próprio Código Municipal de Conduta, escrito por Graciliano Ramos, adquirida na Casa Museu Graciliano Ramos em Palmeira dos Índios.
56
Art. 5 - Os objetos que se empregarem no serviço das
vendas e tavernas devem estar sempre limpos. Multa de
$5000,000.
Art. 11 - As mercadorias avariadas, aprendidas por um
fiscal, serão inutilizadas depois de reconhecido o seu mau
estado por dois peritos nomeados pelo prefeito. De tudo
será lavrado um termo, que o fiscal, peritos e duas
testemunhas assinarão. Os donos, além da multa, pagarão
as despesas necessárias ao exame das mercadorias.
CAPÍTULO II – Higiene
Art. 23 – É proibido aos habitantes da cidade e dos
povoados:
1. Ter monturos ou depósitos de lixo em seus pátios ou
quintais;
2. Conservar sujas as frontarias de suas casas;
3. Ter porcos em liberdade ou em chiqueiros sem
segurança;
Art. 24 – Os animais encontrados mortos na rua serão
enterrados por seus donos, que terão, depois de intimados,
quatro horas para fazei-o. Os transgressores incorrerão na
multa de 2o$ooo. Se os donos não forem conhecidos, os
animais serão enterrados à custa da Prefeitura.
Art. 31 – É proibido:
1) Deitar substâncias orgânicas ou imundícies em rios,
riachos, açudes, tanques, lagoas e quaisquer fontes de
abastecimento público.
57
CAPÍTULO III – Moralidade, tranquilidade, segurança
pública
Art. 43 – É proibido:
1) Ter cães soltos sem mordaça.
Art. 50 – É proibido mendigar.
Os moradores de Palmeira dos Índios viveram uma nova fase na cidade.
Para alguns, boa, para outros aceitável e para os acostumados a privilégios e a
fazer suas próprias leis, praticamente um cenário de guerra.
Durante sua permanência a frente da Prefeitura de Palmeira dos Índios,
Graciliano Ramos escreveu dois relatórios prestando contas de sua gestão do
governador do Estado de Alagoas, Álvaro Paes. Estes relatórios, além de
apontar o perfil de um funcionário público verdadeiramente comprometido com
a gestão correta do cargo, exibem também um estilo de redação inovador, pois
prima pela correção gramatical, pessoalidade e traços literários.
Na conclusão do segundo relatório, o Prefeito Graciliano Ramos
escreveu:
Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis. Evitei emaranhar-me em teias de aranha. Certos indivíduos, não sei por que, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos. Não me entendi com esses. Há quem ache ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como assunto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro pessoal; há até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos. Fechei os ouvidos, deixei gritarem, arrecadei 1:325$500 de multas. Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os
58
meus erros, porém, foram da inteligência, que é fraca. Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizerem falta. Há descontentamento. Se a minha estada na Prefeitura por estes dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. (LIMA, 1994, p. 45-46).
A forma como Graciliano Ramos redigiu os relatórios causou espanto e
admiração nos leitores. Destinados a Álvaro Paes, os documentos logo foram
publicados nos jornais do Rio de Janeiro e os escritores e editores da época
tomaram conhecimento do estilo ousado e da veia artística de um jovem
prefeito do sertão.
Os relatórios públicos de Graciliano Ramos romperam com o estilo dos
documentos oficiais, escritos de maneira formal, técnica e impessoal. A
repercussão de tais relatórios foi intensa na imprensa local e nacional, mesmo
após ter passando alguns anos da primeira publicação.
Abaixo, alguns trechos retirados de jornais21 que circulavam no período,
sobre os documentos:
Assim por 1929, mais ou menos, não houve em Alagoas quem não conhecesse Graciliano Ramos. Pessoalmente não. Que ele vivia metido com os chucurus de Palmeira dos Índios. Por causa de um relatório. Um relatório tão sincero e de uma sinceridade tão forte, que se os governantes brasileiros a utilizassem sempre, haverá muito maior probabilidade de salvar o Brasil que servindo-se do finado “espírito revolucionário. (DIÉGUES JUNIOR, O ESTADO, 1934).
Sobre os relatórios, José Lins do Rego (apud REBELO, 1953)
escreveu:
O homem que sabia mitologia, também entendia de Balzac, de Zola, de Flaubert, de literatura, como se vivesse disto. Soube que era comerciante, que era ateu, que estivera no Rio, que fizera sonetos, que sabia inglês, francês, que falava italiano.
21
A cópia dos originais destes jornais foi adquirida parte na Casa Museu de Graciliano Ramos (Palmeira dos Índios), parte na Imprensa Oficial de Maceió e parte no Arquivo Público Estadual de Maceió.
59
Conheci assim o mestre Graciliano Ramos. Depois o comerciante fechou as portas pagando integralmente todos os credores e seria o prefeito de sua cidade, faria relatórios ao conselho municipal, em língua e humor de grande escritor. (JORNAL A MANHÃ, 29/01/1942). Chico Peixoto, acostumado aos relatórios em puro estilo Bias Fortes ou José Bonifácio, abria a boca, arregalava os olhos, nem podia acreditar naquela prestação de contas municipais do Prefeito de uma aldeola alagoana: Caramba, seu Marques, trata-se de um grande escritor! Na realidade cada parágrafo era uma joia de estilo, precisão, simplicidade, coerência, verdade, decência, enfim, de todas as qualidades que fazem um grande escritor. (REBELO, 1953).
No mesmo jornal, na coluna Crônica, publicada em 28 de março de
1953, Marques Rebelo escreveu:
Os singelos relatórios de prefeito de Palmeira dos Índios foram para aquela magra estante das obras que não me abandonam nunca, que estou sempre folheando e pesquisando para suportar com menos tédio ou menos nojo os balanços do mundo, que me socorrem quando preciso de coragem e exemplo para empreender qualquer tarefa difícil e
responsável. (REBELO, 1953).
Muito tem para ser falar sobre os relatórios que Graciliano Ramos
escreveu como gestor público, mas uma apresentação e análise mais apuradas
serão apresentadas em capítulo destinado a tal propósito. Interessa aqui,
somente a exposição da fase do administrador Graciliano Ramos.
3.5 O Perfil Jornalístico e Literário de Graciliano Ramos
A presença de escritores da literatura ficcional foi sempre uma realidade
do jornalismo brasileiro. Seja na parte da produção jornalística, na colaboração
com o envio de fragmentos de suas obras ou na escritura de textos opinativos
ou interpretativos. Dentre eles podemos citar Machado de Assis, Olavo Bilac,
Raquel de Queirós, Carlos Drummond de Andrade, etc.
60
Graciliano Ramos também foi um destes escritores jornalistas que
contribuiu com os jornais da época, escrevendo crônicas regularmente e textos
reflexivos sobre a situação política e social do país.
Seu perfil jornalístico era o de um escritor preocupado em dizer muito
além das palavras visíveis no papel. Em cada texto publicado nos jornais por
onde passou, nota-se a despreocupação com a correria das redações para a
entrega das reportagens, pois sua escrita era um misto de literatura e realidade
que transbordava a mera objetividade da informação.
A escritura jornalista de Graciliano Ramos aparece em suas crônicas,
organizadas e publicadas postumamente em quatro obras: Viagem (1954),
Linhas Tortas, Viventes das Alagoas e Alexandre e outros heróis (1962).
Originalmente, estes textos eram publicados em jornais de Alagoas e Rio de
Janeiro.
As crônicas reunidas em Viventes das Alagoas e em Linhas Tortas
tratam de conflitos sociais e políticos da região do nordeste, mas que podem
ser histórias representantes de outros cantos do país e do mundo. A discussão
sobre o autor Graciliano Ramos ser genuinamente regionalista ganha espaço
entre os críticos da literatura brasileira. Seus romances apresentam temas
sociais, políticos e culturais que extrapolam o limite do sertão.
Os textos da obra Viagem traz o relato do jornalista que andou pela
União Soviética no início da década de 50, pouco antes de sua morte, e viu
nestas andanças “lugares medonhos situados além da cortina de ferro exposta
com vigor pela civilização cristã e ocidental”. (RAMOS, 1992, p. 11).
A inclinação para escritor e jornalista de Graciliano Ramos apareceu na
infância, quando em 1904, organizou, juntamente com Cícero de Vasconcellos,
o jornalzinho “O Dilúculo”, publicado pelo Órgão do Internato Alagoano.
No primeiro número do jornal, aparecem escritos do menino Graciliano
explicando a origem do nome do veículo e também sua primeira criação
61
literária publicada Pequeno pedinte. A seguir cópias do original do jornal “O
Dilúculo”:
Figura 1 - Fac-símile do nº 1 do Jornal “O Dilúculo”, editado por Graciliano Ramos aos 12 anos de idade. Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira dos Índios Foto: Sônia Jaconi
62
Figura 2 - Fac-símile do texto “Pequeno Pedinte”, publicado no nº. 1 do Jornal “O Dilúculo”. Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira dos Índios Foto:
Sônia Jaconi
63
Quando Graciliano Ramos saiu de Palmeira dos Índios, no ano de 1914,
em direção ao Rio de Janeiro, iniciou uma vida intensa nos jornais desta
capital. Trabalhou como revisor suplente no Correio da Manhã, depois em O
Século, para reforçar os ganhos, logo após como revisor do jornal A Tarde,
escreveu crônicas para o Jornal de Alagoas e colaborou com o semanário
Paraíba do Sul e o Jornal de Alagoas, na cidade fluminense. Seus textos
foram elogiados por leitores, jornalistas e escritores respeitados da época.
Graciliano Ramos, nas funções que ocupou nos referidos jornais,
demonstrou comportamento de um verdadeiro jornalista. (GUERRA, 1980).
Escrevia bem, com franqueza e opinião. Em suas crônicas é possível perceber
o tom intimo com que trata de temas polêmicos e variados. O autor José
Augusto Guerra, no livro Caminhos e Descaminhos da Crítica (1980), escreveu
sobre o perfil jornalístico de Graciliano Ramos:
Era um colaborador. Um colaborador que, à maneira de cronista, discreteava sobre assuntos os mais diversos pulava de um a outro tema, enleava-se no cotidiano falava bem, falava mal, e sempre colocava em primeiro plano o que, em termos já um tanto remotos, era condição essencial: o jornalista, profissional que opinava. (GUERRA, 1980, p. 191).
A atuação de Graciliano Ramos nos jornais, ora como revisor ora como
cronista colaborador, não tem muitos registros. Os artigos que escreveu no ano
de 1915, um total de dezesseis, revelam que Graciliano Ramos produziu com
velocidade nos periódicos provincianos, porém não se sabe se além de
prestigio social esse trabalho lhe atribuiu prestigio financeiro e prazer.
(GUERRA, 1980, p. 192). “Escrevi há tempos em dois jornais hebdomadários
que publicavam por aí além. Eu trabalhava por necessidade”. (Jornal Paraíba
do Sul, apud Guerra, 1980, p. 192).
O perfil de homem duro nos dizeres e ásperos na escrita já era
conhecido pelo povo que, de uma maneira ou de outra ouvira falar de
64
Graciliano Ramos. O ato de escrever, para Graciliano Ramos, era um oficio
que exigia muito esforço físico e intelectual de quem se metia com tal tarefa.
Sobre esse exercício escreveu:
Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laja ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia a fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer. (RAMOS, 2008, p. 278).
Em suas crônicas, o povo de Alagoas, mais especificamente os
“figurões”, os problemas da terra, as angústias do homem sertanejo, as
mazelas da política, eram atacados com frequência. (GUERRA, 1980, p. 194).
O escritor Augusto Guerra, em obra anteriormente citada, fez
interessante comparação entre alguns personagens ficcionais de Graciliano
Ramos e sua atuação enquanto cronista. Em Angústia, da experiência no
jornalismo carioca, como revisor, encontra-se esse registro: “Em seguida vinha
à banca de revisão: seis horas de trabalho por noite, os olhos queimando junto
a um foco de 100 velas, cinco mil réis de salário, multas, suspensões”.
(RAMOS, 1936, apud GUERRA, 1980, p. 193).
No ano de 1921, após volta forçada à Palmeira dos Índios, colaborou
com o semanário, sempre aos domingos, O Índio, com os pseudônimos de J.
Calisto, Anastácio Anacleto e Lamba. A primeira edição deste jornal data de 30
de janeiro de 1921 e a última de 22 de maio do mesmo ano. No periódico,
Graciliano Ramos escrevia poemas, crônicas e anúncios.
O mundo da leitura e da escrita sempre foram íntimos a Graciliano
Ramos. Nunca escondeu, nem mesmo do arredio Coronel Sebastião, que o
65
seu desejo era exercitar a intelectualidade através da apreciação dos romances
que chegavam, sob encomenda, nos lombos dos burros, guiados por um velho
mercador. Também era ler as notícias da capital e do mundo que chegavam já
vencidas em Palmeira dos Índios. (LIMA, 1971).
Naquele tempo e naquelas terras, o transporte dependia do tempo. O sol
forte do sertão era impiedoso, a chuva, quando vinha, descarregava sua fúria
enchendo as estradas com lama e buracos. Aventurar-se semanalmente da
capital às cidades do interior era um desafio real de vida ou morte, até para os
mais experientes mercadores.
Graciliano Ramos não era o único na cidade que ficava esperando a
carga de livros e jornais chegar à Praça do Coqueiro (LIMA, 1971.p. 10).
Porém, provavelmente, o que mais entendia dos assuntos que os periódicos
traziam. Mais tarde, comerciantes locais, políticos e cidadãos comuns o
procurariam para receber suas explicações e conhecer o seu ponto de vista
sobre as notícias, tanto ligadas ao contexto alagoano e nacional quanto às
voltadas ao contexto mundial. Quando a 1ª Guerra Mundial estourou e as
notícias começaram a alcançar o mundo, Graciliano Ramos empenhou-se para
compreender a situação e transmiti-las ao povo. Tornou-se uma espécie de
“comentarista oficial” do movimento não só em Palmeira dos Índios, mas
também no Estado (LIMA, 1971, p. 109). Era Graciliano Ramos um importante
formador de opinião e transmissor de conhecimento e cultura para o povo de
Palmeira dos Índios? Indagação que inquieta e merece investigação apurada.
Os jornais que circulavam na época eram o Diário de Pernambuco e
Província, que davam conta das notícias da região, e o Correio da Manhã,
vindo diretamente do Rio de Janeiro, com atraso de quase um mês. “Através
de longa jornada – vinte dias e até mais – chegava-nos também o “Correio da
Manhã”, que, antes que aparecesse “A Noite” para com ele fazer uma perna,
era, e fato, o jornal do Rio de Janeiro que mandava por aqui” (LIMA, 1971, p.
107).
66
Como exposto anteriormente, as leituras de Graciliano Ramos eram
intensas e variadas. O jovem Graciliano se inteirava profundamente com os
movimentos literários que ocorriam na época. Apreciava os romancistas
brasileiros, José de Alencar, Aloísio Azevedo, Castro Alves, Casimiro de Abreu,
Gonçalves Dias, Olavo Bilac, Euclides da Cunha, e os novos romances
realistas que vinham da Europa. Eça de Queirós caiu na graça do jovem
literário que tratou de adquirir a coleção dos romances do escritor português.
Outros clássicos da literatura portuguesa contribuíram para a formação literária
de Graciliano Ramos: Alexandre Herculano, Camilo Castelo Branco, Antero de
Quental, etc.
Ler o que os outros escreviam, sem dúvida, trazia muito prazer e
formação a Graciliano Ramos, porém a veia de escritor nele era latente. O
autor de Caetés estava prestes a surgir.
O conhecimento que Graciliano possuía atribuía-lhe credibilidade e
respeito. Suas palavras, sempre poucas e exatas, eram ouvidas com atenção e
admiração por aqueles que ficavam a sua volta.
Diante do exposto, pode-se dizer que Graciliano Ramos praticou com
êxito tanto o jornalismo oral, lendo, interpretando e transmitindo ao povo de
Palmeira dos Índios as notícias que chegavam da capital quanto também o
jornalismo circunstancial, através da crônica. Sobre este último, Guerra (1980,
p. 196) escreveu:
Jornalismo circunstancial o de Graciliano Ramos, que surpreende em confronto com a ficção. Mas, esse jornalismo, com que se iniciou na literatura, nos revela outro Graciliano, vinculado a uma realidade externa que não a interior de seus infelizes personagens. Um Graciliano que se preocupava com os problemas da terra, os livros dos amigos, os personagens vivos e mortos, nem sempre atormentados. Até na arte do descritivo – raro em sua obra de ficção – jornalista se demora numa crônica inteira: Habitação, em que descreve, da porta da rua ao fundo do quintal, uma casa sertaneja. Um jornalista que não desconhecia os limites e a expressão do gênero, em que certamente aprendeu a tornar enxuta a prosa de ficção, escrita na primeira pessoa por três colaboradores de jornal de província: João Valério, Paulo Honório e Luís da Silva.
67
Na empreitada do jornalismo, Graciliano Ramos atuou oficialmente por
pouco tempo, mas o suficiente para deixar sua marca de escritor que sabia o
que dizer e como dizer, causando admiração ao invés de dúvidas em cada
frase que concluía. Torcia e retorcia o texto a fim de aparar todas as arestas e,
para ele, o ofício de escrever era uma tarefa que exigia, além de intimidade
com a gramática, dedicação e compromisso com o leitor.
3.6 Difusão de um Estilo Irônico e Sincero
A partir da publicação dos relatórios de Graciliano Ramos no Diário
Oficial de Alagoas, em 24 de janeiro de 1929 e 16 de janeiro de 1930, a reação
de espanto e admiração nos leitores não parou de acontecer. A fama desses
documentos não foi passageira e restrita à época. Mesmo após a estreia
pública, continuaram sendo citados e comentados nos jornais do país.
Quando possível Graciliano Ramos fazia questão de recortar e guardar
todas as notícias que saiam sobre os seus escritos. A título de ilustração,
alguns recortes de jornal que mencionaram os relatórios são expostos nesta
parte da pesquisa.
No seguinte recorte, José Lins do Rego revela sobre a sua dúvida inicial
em relação aos escritos de Graciliano Ramos e cita a admiração exagerada de
Schimidt quando conhece os relatórios. Depois, no final do texto, Lins do Rego
se rende a superioridade literária de Graciliano Ramos e se torna um dos
melhores amigos do autor.
68
Figura 3 - Jornal O Estado, 28/01/1934 – O Romancista Graciliano Ramos
Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira dos Índios
Eu faço bem em falar em olhos de Raio X com relação a Graciliano Ramos porque ninguém como ele para só ver das cousas a sua nudez. Ele vai as entranhas e a gente sente o ringir de ossos do seu processo de escrever. Mas é um grande escritor porque o grande escritor será sempre o que sabe ver com profundidade. (REGO, 1934).
69
No mesmo periódico, no mês seguinte do mesmo ano, outro autor faz
referência sobre os relatórios. O texto intitulado “De um relatório a um
romance” de Diegues Junior fez discurso laudatório sobre os relatórios do
romancista e afirmou que foram estes documentos os responsáveis pela
divulgação de Graciliano Ramos.
Assim por 1929, mais ou menos, não houve em Alagoas quem não conhecesse Graciliano Ramos. Pessoalmente não. Que ele vivia metido com os chucurus de Palmeira dos Índios. Por causa de um relatório. Um relatório tão sincero e de uma sinceridade tão forte, que se os governantes brasileiros a utilizassem sempre, haveria muito maior probabilidade de salvar o Brasil que servindo-se do finado “espirito revolucionário”. (...) Foi por esse relatório que Graciliano Ramos se fez conhecido na capital. (DIÉGUES JUNIOR, 1934).
O reconhecimento do caráter híbrido dos relatórios de Graciliano Ramos
denota a sua relevância para os estudiosos dos campos interdisciplinares,
sobretudo da comunicação social, da linguística e da literatura.
70
Figura 4 - Jornal O Estado, 23/01/34 – De um Relatório a um Romance Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira dos Índios
71
Mesmo após a morte do autor, muitos jornais continuaram estampando
em suas páginas informações sobre os relatórios, frequentemente, destacando
tanto a qualidade estética destes documentos quanto a do seu autor. O redator
Hélio Simões (1969), do jornal “A tarde”, escreveu sobre os relatórios:
Evidentemente não se pode comparar estes acervo de crônicas, perfis, estórias, comentários e até relatórios do prefeito de Palmeira dos Índios, preciosos documentos, aliás, em que o nosso homem, como tal, surge de corpo inteiro, seco, cáustico,
indomável. (...).
Identifica-se nesses relatos a metáfora do texto como personificação do
próprio Graciliano Ramos. A escolha lexical do prefeito escritor denotava não
apenas uma estratégia estilística, mas uma forma de perceber o mundo; uma
coerência pessoal que se confirmaria ao longo da sua existência, inclusive
pelas suas opções políticas.
72
Figura 5 - Jornal A tarde, 1969 – Dispersos de Graciliano Ramos. Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira
dos Índios
73
No recorte seguinte, o redator escreve sobre a sua admiração quando
leu os relatórios e chega a comparar o estilo de Graciliano Ramos ao de
Machado de Assis e de Manual Antonio de Almeida.
Figura 6 - Periódico “Conversa do Dia”, ano 1953
Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira
dos Índios
74
No jornal Correia da Manhã (1952) trechos dos relatórios são
apresentados ao leitor destacando o estilo criativo e artístico de Graciliano
Ramos criar o seus textos.
Figura 7 - Jornal Correio da Manhã, ano 1952 – O Relato do Sr. Prefeito
Fonte: Arquivo Casa Museu Graciliano Ramos – Palmeira dos Índios
75
Outros veículos de comunicação de todo o país escreveram sobre os
relatórios, frequentemente realçando o estilo irônico, humorístico e artístico
presente em seus trechos. Diante desta divulgação, pode-se concluir que foram
os relatórios que tiraram do anonimato e da pequena cidade de Palmeira dos
Índios o prefeito escritor Graciliano Ramos.
Outros documentos e registros raros e caros a memória do grande
escritor alagoano, que enaltece o estado e a cidade de Palmeira dos Índios,
estão reunidos na Casa Museu Graciliano Ramos que, infelizmente, vivencia
uma completa ausência de aporte financeiro que possa garantir a preservação
física desses itens, por longo tempo.
76
4 CONCEPÇÃO DOS GÊNEROS DISCURSIVOS E TEXTUAIS:
CARACTERIZAÇÃO SÓCIO-RETÓRICA
São três os desafios deste capítulo: primeiro é o de apresentar as
concepções teóricas de alguns estudiosos sobre os gêneros textuais e
discursivos a fim de conhecer o processo histórico e conceitual deste campo.
O passo seguinte é o de expor sumariamente as modalidades e as
funções sócio comunicativas dos gêneros discursivos nos espaços onde se
manifestam.
Finalmente, evidenciar e discutir o gênero relatório a partir da sua
organização e função sócio comunicativa, com o objetivo de verificar as
correlações existentes entre a prática dos escritos não ficcionais de Graciliano
Ramos e a teoria.
Segundo Bakhtin (2010, p. 264) :
O estudo da natureza do enunciado e da diversidade de formas de gênero dos enunciados nos diversos campos da atividade humana é de enorme importância para quase todos os campos da linguística e da filologia. Porque todo trabalho de investigação de um material linguístico concreto – seja de história da língua, de gramática normativa, de confecção de toda espécie de dicionários ou de estilística da língua, etc. – opera inevitavelmente com enunciados concretos (escritos ou orais) relacionados a diferentes campos da atividade humana e da comunicação – anais, tratados, textos de leis, documentos de escritórios e outros, diversos gêneros literários, científicos, publicísticos, cartas oficiais e comuns, réplicas de diálogos do cotidiano (em todas as suas diversas modalidades), etc. de onde os pesquisadores haurem os fatos linguísticos de que necessitam.
Ao indicar os documentos oficiais como parte inerente da
comunicabilidade humana, Bakhtin (2010) destaca a relevância de um gênero
normalmente ignorado em seu valor linguístico (por integrar parte das nossas
77
ações ordinárias do cotidiano), ainda que fartamente usado como corpus em
estudos de campo.
Os relatórios de Graciliano Ramos, conforme já se verificou, causou
estranheza por não se ajustar a uma única forma.
4.1 Gênero do Discurso: Concepção e Evolução
Espera-se dos estudos que se propõem a refletir sobre determinado
gênero textual uma apresentação prévia da exegese gêneros do discurso para
que, a partir do entendimento da exegese do termo, se avance para as
modalidades textuais. Este resgate conceitual e histórico torna-se necessário
em razão da complexidade e da heterogeneidade que envolve o conceito de
gêneros discursivos e textuais.
Sabe-se que o estudo sobre gênero não é uma atividade dos tempos
atuais e que, desde os precursores muitas teorias e análises surgiram sobre o
tema. Na atualidade, a obra de Bakhtin, mais precisamente a partir dos anos 70
do século XX, sobre a teoria e a função sócio comunicativa dos gêneros é
considerada, além de revolucionária, essencial para o entendimento da
linguagem humana em seus espaços enunciativos.
Porém, os primeiros avanços sistematizados aconteceram ainda na
Grécia Clássica com a obra de Aristóteles (Ars Rethorica), até hoje
considerada precursora da ação discursiva da comunicação humana.
Nesta obra Aristóteles evidenciou a fala (discurso) como “forma de ação”
persuasiva entre o orador e o ouvinte, ou seja, no ato enunciativo está presente
“uma relação de ação verbal orientada” e não apenas uma “informação
transmitida” (SILVEIRA, 2005, p. 49). O filósofo fez uma exposição dos passos
que o orador deve seguir para preparar um discurso, levando-se em conta as
suas intenções (a do orador) e o seu auditório, além de apresentar os três
gêneros oratórios: jurídico, deliberativo e epidictico.
78
Sobre esta quantidade, Reboul (2000, p. 45), com base em Aristóteles,
escreveu que há distintas espécies de auditório, o que requer:
a necessidade de adaptar-se a eles que confere traços específicos a cada gênero: conforme as pessoas a quem nos dirigimos, não falaremos da mesma maneira. O discurso judiciário tem como auditório o tribunal,; o deliberativo, a Assembleia (Senado); o epidíctico, espectadores, todos os que assistem a discursos de aparato, como panegíricos, orações fúnebres ou outras.
De acordo com a divisão aristotélica sobre as intenções deste discurso,
temos:
Quadro 1 - Gênero, Auditório, Intenção, Valores
Gênero Auditório Intenção Valores
Judiciário Juízes Defender/acusar O
justo/injusto
Deliberativo Assembleia Aconselhar/Desaconselhar O
útil/nocivo
Epidíctico Espectador Louvar/Censurar O nobre/o
vil
Fonte: Silveira22, 2005, p. 50.
Esta divisão proposta por Aristóteles (2011) partiu não somente das
marcas linguísticas e dos formatos que os textos exibiam, mas também de
outros elementos que são recorrentes nestes enunciados e que, normalmente,
não são explicitados na escrita como; o auditório (receptor) a intenção e os
valores que tais textos desejam alcançar.
No campo da literatura, a noção de gênero apareceu primeiro na obra
República, de Platão, na qual foi retratada a divisão tripartite da literatura: o
teatro (tragédia e comédia), a poesia lírica e a épica.
22
Adaptação de quadro apresentado em Reboul, 1998, p. 47, de Silveira.
79
Mais tarde, na Idade Média, apesar dos intensos conflitos religiosos
vividos neste período, novos gêneros literários surgiram como o romance de
cavalaria, e outros se expandiram, como foi o caso da criação de novos
gêneros teatrais. (SILVEIRA, 2005, p.51).
Passando para o período renascentista, a literatura voltou a valorizar a
expressão artística que era cultuada na antiga Grécia Clássica, mas que foi
neutralizada pela doutrina religiosa da Idade Média. Nestes períodos citados
“os gêneros eram entendidos como fórmulas e formas fixas, sustentadas por
doutrinas expressas em regras diante das quais só restava aos escritores um
caminho: aceita-las e praticá-las”. (MOISÉS, 1970, p. 26 apud SILVEIRA, 2005,
p. 51). A quebra desta rigidez teve início a partir do Romantismo, período em
que os escritores ousaram misturar os gêneros em seus romances e, desta
forma, abriu-se uma ampla janela para a criação de novos gêneros.
O autor Fiorin23 (2002, p. 11), na apresentação da obra As astúcias da
Enunciação24, fez uso de uma passagem mítica da bíblia para apresentar a
origem da linguagem humana e da sua necessidade para a organização do
mundo: “No Gênesis, vê-se que a linguagem é um atributo da divindade, pois o
Criador dela se vale quando realiza sua obra. Há dois relatos da criação. No
primeiro Deus cria o mundo falando. No início, não havia nada. Depois há o
caos”.
Fiorin (2002, p. 11) destaca a linguagem como sendo a grande
responsável pela organização do caos do universo e que garante a formação
de sentidos.
A passagem do caos à ordem (= cosmo) faz-se por meio de um ato de linguagem. É esta que dá sentido ao mundo. O poder
23
Professor livre-docente do Departamento de Línguística da Universidade de São Paulo, autor de vários livros sobre linguística e gêneros discursivos. 24
Nesta obra, Fiorin apresenta as três categorias da enunciação: o tempo, o espaço e a pessoa, tanto na forma como são empregados na gramática da Língua Portuguesa, quanto no plano discursivo.
80
criador da divindade é exercido pela linguagem, que tem, no mito, um poder ilocucional, já que nela e por ela se ordena o mundo.
Através desta ilustração, o autor cita a língua adâmica (advinda de
Adão) como sendo uma “faculdade divina dada ao homem, para que ele,
denominando cada uma das coisas criadas, apreenda o Universo” (FIORIN,
2002, p. 12). Portanto, é somente a partir da nomeação das coisas que estas
passam a existir.
Disse também o Senhor: “Não é bom que o homem esteja só, façamos-lhe um auxílio semelhante a ele”. Tendo formado o Senhor Deus do barro todos os animais da terra e todas as aves do céu, levou-os para Adão, para que visse como os chamaria; cada um deveria portar o nome que Adão lhe tivesse dado. E chamou Adão por seus nomes todos os animais, e todas as aves do céu, e todas as feras da terra. (GENESIS, 18-20, apud FIORIN, p. 12).
A leitura desta passagem possibilita a reflexão quanto ao uso da língua
como instrumento que organiza as atividades humanas, em seus diversos
campos de atuação. É a partir do uso da língua que os indivíduos vão criando a
sua linguagem individual e de suas relações sociais. Destas, começam a surgir
os gêneros discursivos.
Outro autor que também relaciona a origem dos gêneros com os atos de
fala do cotidiano é Todorov (1980)25 “Como qualquer instituição, os gêneros
evidenciam os aspectos constitutivos da sociedade a que pertencem” (p. 50).
Continuando nas palavras do autor:
[...] uma sociedade escolhe e codifica os atos que correspondem com maior proximidade à sua ideologia; eis porque a existência de certos gêneros numa sociedade, sua ausência em outra, são reveladoras dessa ideologia e nos permitem estabelecê-la com maior ou menor certeza.
(TODOROV, 1980, p. 50).
25
Citação retirada da parte I da obra “Os gêneros do discurso”, onde o autor faz uma discussão teórica sobre as definições e noções de gênero e de literatura.
81
Se são das relações humanas que os gêneros discursivos aparecem,
esta tese chega a algumas conclusões:
a) São dinâmicos e acompanham as mudanças sociais e culturais da
época de seus interlocutores, assim como a fala dos indivíduos.
b) Surgem e se firmam das relações sociais cotidianas, sem regras ou
formatos pré-estabelecidos.
No entanto, mesmo não sendo construídos a partir de normas fixas,
estes discursos apresentam marcas linguísticas (termos, entonação, frases)
que são incorporadas e reproduzidas espontaneamente no ato de fala dos
indivíduos e que, mais tarde, “tornam-se enunciados relativamente estáveis”
(BAKHTIN, 2010, p. 282).
A língua materna – sua composição vocabular e sua estrutura gramatical – não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gramáticas, mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam. (BAKHTIN, 2010, p. 283).
Retomando a concepção de Tzvetan Todorov (1980) sobre a origem dos
gêneros discursivos, percebe-se que estes acompanham os interesses
individuais e coletivos das pessoas, levando-se sempre em conta o contexto
histórico, social e político em que estão inseridas. Portanto, são dinâmicos e se
transformam para atender as necessidades de determinado público.
Bakhtin (2010), no capítulo Os Gêneros do Discurso, 26 apresenta
reflexões a respeito do uso da linguagem e das suas inúmeras possibilidades
de manifestação, tanto oral quanto escrita, pois esta (a linguagem) está
intrinsecamente ligada aos campos da atividade humana, que é variado e
amplo.
26
Texto que compõe o livro Estética da Criação Verbal, tradução de Paulo Bezerra.
82
Partindo da formulação deste autor, pode-se dizer que para cada campo
de atuação dos sujeitos há uma exibição linguística carregada de expressões,
signos, e entonação que marcam e identificam determinado discurso.
Estas manifestações linguísticas surgem de maneira espontânea devido
à necessidade natural do ser humano interagir e de se comunicar. Então, para
estas, não há uma estruturação sistemática e complexa, uma vez que nascem
dos diálogos do cotidiano.
No entanto, a partir da espontaneidade discursiva, aos poucos e de
maneira natural, estas interações vão adquirindo formas e características
particulares que a identificam e, consequentemente, orientam o diálogo. São
estas manifestações variadas e aleatórias (porém organizadas) que Bakhtin
(2010) chama de “gêneros discursivos primários”.
Ainda segundo o filósofo russo, existem também as declarações
estruturadas e complexas, aquelas que adotam formatos e padrões linguísticos
para caracterizar determinado discurso, os “gêneros discursivos secundários”.
São os documentos oficiais, textos de leis, anais, tratados, romances, etc.
(BAKHTIN, 2010, p. 264). Neste caso, predominam os escritos.
Refletindo sobre as teorias dos dois professores, Todorov e Bakhtin,
percebe-se que os raciocínios destes convergem com daqueles autores citados
no início deste capítulo, sobre a origem dos gêneros, ou seja: é do ato de fala
dos seus interlocutores e do contexto social e histórico em que estão inseridos
que os gêneros emergem; a reprodução de características de determinado
enunciado vai, gradativamente, se estabilizando nas trocas sociais e, desta
forma, se consolidando como gênero do discurso.
Recentemente, os professores Carolyn Miller e Charles Bazerman27,
questionados sobre o conceito de gênero, apresentaram o seguinte argumento:
27
Carolyn Miller é professora da Universidade do Estado da Carolina do Norte (EUA) e o professor Charles Bazerman é da Universidade da Califórnia, de Santa Barbara (EUA). Ambos
83
“Gênero é uma ação retórica tipificada baseada numa situação recorrente. [...]
essa definição tende a se concentrar mais na produção, na pessoa que
desenvolve a ação do que na recepção” (MILLER, 2011).
A resposta do professor Charles foi uma complementação do que disse
a professora, pois declarou que concordava e usava a definição de Carolyn
Miller, mas que desejaria apontar duas características desta definição:
a) Que o gênero não se localiza no texto ou no artefato, no objeto em si, mas na percepção do criador e do receptor, como eles percebem o que está acontecendo. Isso faz do gênero uma categoria de reconhecimento psicológico, mas os gêneros também emergem historicamente e são praticados socialmente e também precisam ser socialmente distribuídos, de modo que haja certo alinhamento entre as pessoas ao longo do tempo. Portanto, o gênero também é uma categoria de reconhecimento social. b) O gênero encerra a noção de uma afirmação ou sentido criado por alguém. Os gêneros são coleções percebidas de enunciados. Os enunciados são delimitados, têm começo e fim, ocupam lugar definido no tempo e no espaço e são percebidos como portadores de algum sentido. Portanto, duas características que eu enfatizo nos gêneros é que eles são categorias de reconhecimento psicossocial e categorias de enunciados. (BAZERMAN, 2011).
A partir destes argumentos de Bazerman, percebe-se que os gêneros
são categorias geradoras de sentido porque legitimam emoções, indicam
valores, destacam desigualdades, etc.
Para este professor, os gêneros “precisam ser socialmente distribuídos,
de modo que haja certo alinhamento entre as pessoas ao longo do tempo”
(BAZERMAN, 2011). Esta declaração possibilita algumas reflexões sobre os
gêneros:
estiveram recentemente, julho de 2011, na Universidade Federal de Pernambuco, a convite do NIG (Núcleo de Investigação sobre gêneros textuais) desta mesma universidade, para falar sobre os gêneros textuais. UFPE. Série Bate-Papo Acadêmico. Gêneros Textuais (Genres). Pergunta 1: Como você define o conceito de gênero? How do you define the concept of genre? Disponível em: http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/serie-bate-papo-academico-vol-1-generos-textuais/.
84
Se praticados por todos, facilitam a inclusão em suas práticas
sociais;
Exercem função social importante, pois contribuem para o
conhecimento e aproximação dos processos comunicacionais de
diferentes gerações.
Graciliano Ramos cumpre essa tarefa psicossocial em sua narrativa
como prefeito que soube ler, como poucos, a emoção das pessoas com as
quais conviveu, entendeu suas dificuldades (materiais, cognitivas, emocionais,
etc...), mas também as dificuldades impostas ao seu povo pela própria política.
Os indivíduos de uma sociedade que reconhecem os gêneros dos
discursos e os utilizam adequadamente em suas relações sociais, certamente,
circulam por diferentes espaços coletivos e, desta forma, incluem-se
ativamente nas práticas sociais daquele espaço. Retomando o pensamento de
Bakhtin (2010, p. 284):
Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livre projeto de discurso. (BAKHTIN, 2010, p. 284).
Cabe ressaltar que, mesmo com a devida apropriação dos gêneros
discursivos pelo sujeito do enunciado, geralmente, este também não o faz de
maneira tranquila e segura, isto é, também passa pelas incertezas da
construção adequada de determinado gênero discursivo. É muito provável que
isto ocorra pelo fato de que aquele sujeito sinta-se cobrado pelos seus próprios
conhecimentos, a obedecer regras e padrões do gênero que ele (o sujeito)
escolheu para proferir o seu discurso.
85
No entanto, mesmo sob esta fiscalização, apropriar-se das teorias sobre
os gêneros discursivos (orais ou escritos) é a maneira mais segura para utilizá-
los corretamente a seu propósito.
Sobre este controle, feito apenas por aqueles que dominam os traços
gerais e específicos dos discursos, sejam eles orais ou escritos, Foucault28
(1970) argumenta:
Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (FOCAULT, 2001, p. 8).
Sobre a inclusão social referida pelo professor Bazerman, para que esta
se concretize de maneira democrática e real os indivíduos precisam dominar
não somente os gêneros primários, mas também os secundários, de acordo
com a categorização de autor. “Muitas pessoas que dominam magnificamente
uma língua sentem amiúde total impotência em alguns campos da
comunicação precisamente porque não dominam na prática as formas de
gênero de dadas esferas.” (BAKHTIN, 2010, p. 284).
Silveira (2005)29 recorre, entre outros, aos pensamento de John
Swales30 na expectativa de apresentar concepções sócio retóricas sobre
gêneros.
Essa autora cita a obra Genre Analysis – English in Academic and
Researech Settings, de John Swales (1990) como uma importante contribuição
ao campo dos estudos sobre a análise de gêneros. Swales (1990, p. 9 apud
28
Michel Focault proferiu em aula inaugural, ao assumir a cátedra no Collége de France no ano de 1970, um discurso sobre a relação entre as “práticas discursivas e os poderes que as permeiam”. O título do texto é A ordem do discurso. Para esta pesquisa, foi consultada a 7ª edição do discurso, publicada em 2001. 29
Análise de Gênero Textual – Concepção Sócio-Retórica, obra publicada pela Edufal, em 2005. 30
John Malcolm Swales nasceu em 1938 no Reino Unido, é um linguista reconhecido por seu trabalho na análise de gênero, destacando nos campos da retórica e análise do discurso.
86
SILVERIA, p. 86) expõe, além do conceito de gênero, a ideia inovadora de
comunidade de discurso:
Comunidade de discurso são redes sócio retóricas que se formam a fim de atuarem em prol de conjuntos de objetivos comuns. Uma das características que os membros estabelecidos dessas comunidades de discurso possuem é a familiaridade com determinados gêneros que são usados no favorecimento desses conjuntos de objetivos. Em consequência disso, os gêneros são propriedades das comunidades de discurso; ou seja, os gêneros pertencem às comunidades de discurso e não aos indivíduos, a outros tipos de agrupamentos ou a comunidades de fala mais amplas. (SWALES, 1990, p. 9 apud SILVEIRA, 2005, p. 86).
A partir da ideia de Swales, pode-se concluir que os grupos sociais de
certa maneira são reconhecidos também pelos gêneros que circulam entre eles
e que estes discursos passam a ser familiares e, consequentemente
reproduzidos pelos indivíduos que fazem parte destes grupos. Sendo assim,
também é possível dizer que determinado gênero pode ser mais valorizado por
um grupo do que em outro e que, até mesmo, alguns gêneros não circulam em
algumas comunidades.
Mais adiante o autor, exibe de maneira bastante detalhada, o seu
conceito sobre gênero:
O gênero é uma classe de eventos comunicativos – em que se devem considerar não apenas o discurso em si mesmo e seus participantes, mas também o papel desse discurso e os entornos de sua produção e recepção, inclusive os aspectos culturais e históricos. O principal traço criterial que transforma uma coleção de eventos comunicativos num gênero é algum conjunto compartilhado de propósitos comunicativos”. (SWALES, 1990, p. 45-55, apud, SILVEIRA, p.89).
87
Com as apresentações destes autores sobre a origem e os conceitos
dos gêneros do discurso, é possível dizer que, qualquer estudo que se propõe
a investigar os processos comunicacionais de determinado enunciado, seja ele
escrito ou falado, precisa primeiro reconhecer o gênero discursivo deste
enunciado (suas características formais, linguísticas e suas marcas textuais) e
suas origens. Se não for assim, a investigação corre o risco de se tornar “uma
abstração exagerada, deformam a historicidade da investigação, debilitam as
relações da língua com a vida”. (idem, p. 284).
4.2 Escolha e Aplicação de um Gênero Discursivo e Textual: Habilidades
Prática e Teórica
Antes do ato da fala, o indivíduo faz uma escolha geralmente sem ter
consciência desta ação, de certo gênero discursivo estável (oral ou escrito)
(BAKHTIN, 2010).
O gênero torna-se estável porque apresenta características semânticas,
temáticas, de formato e tipo que são reconhecidas mutuamente pelos sujeitos
da comunicação (receptor e emissor).
Geralmente nos enunciados orais e espontâneos a escolha e aplicação
de determinado gênero estável ocorre de maneira habilidosa e natural, pois há
uma recorrência habitual daquela prática discursiva no diálogo cotidiano das
pessoas.
À medida que o indivíduo amplia seu percurso social,
concomitantemente aumenta o seu repertório de gênero discursivo. Assim
como acontece de maneira natural e progressiva com o aprendizado da língua
materna, a apreensão dos gêneros discursivos dá-se de maneira involuntária
na vida dos indivíduos. “Falamos apenas através de determinados gêneros do
discurso, isso é, todos os nossos enunciados possuem formas relativamente
estáveis e típicas de construção do todo” (BAKHTIN, 2010, p. 282).
88
A formulação de Bakhtin pode nos levar à seguinte interpretação: o
gênero discursivo (escrito ou oral) escolhido antecipa as intenções de diálogo e
cria expectativas entre os sujeitos da mensagem, isto é, tanto o emissor quanto
o receptor moldam seus discursos às características do gênero eleito e
esperam reações.
Os gêneros do discurso organizam o nosso discurso quase da mesma forma que o organizam as formas gramaticais (sintáticas). Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em formas de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, advínhamos um determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo da fala. Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez cada enunciado, a comunicação discursiva seria impossível. (BAKHTIN, 2010, p. 283).
Por outro lado, a habilidade discursiva das pessoas, quando requer
conhecimentos teóricos sobre determinado gênero, seja para o discurso oral ou
escrito, muitas vezes torna-se comprometida devido ao desconhecimento da
existência do conceito de gênero e de suas modalidades. “Em termos
práticos, nós os empregamos de forma segura e habilidosa, mas em termos
teóricos, podemos desconhecer inteiramente sua existência.” (BAKHTIN, p.
282). Desta forma, isto é, quando ele (o falante) transgride o formato e as
marcas linguísticas de determinado gênero esvazia a organização da
mensagem e dos meios pela quais são propagadas.
Reconhecer as modalidades dos gêneros discursivos contribui para a
escolha e aplicação adequadas do gênero, nos diversos campos da atividade
humana.
89
No campo do jornalismo, estudiosos da área alertam para a necessidade
da utilização correta dos gêneros jornalísticos, para que se possa garantir a
prática adequada do “fazer jornalismo” e, desta forma, evitar o caos.
Por esta e outras lacunas é que os jovens diplomados encontram resistências para ingresso no mercado de trabalho, desconhecedores que são, em grande maioria, das especificidades do relato jornalístico e de sua aderência a um sistema que os diferencia por gêneros, formatos e tipos, determinados pelos antigos e novíssimos suportes. (MELO, p. 23, 2010).
Sobre a possibilidade de caos neste campo, (ALBERTOS, 1988 apud
MELO, 2010, p. 24) declarou: “a comunicação jornalística, como fenômeno
social próprio das sociedades industriais, pode desaparecer totalmente nos
próximos 20 ou 30 anos”. Para o professor Melo, este “argumento ancorava-se
no fluxo migratório de muitos jornalistas para os territórios limítrofes da
propaganda e das relações públicas. Produzindo mensagens persuasivas,
mimetizam os formatos usuais do jornalismo”.
A exemplo do campo jornalístico, estudar e aplicar corretamente os
gêneros discursivos, manifestados oral e graficamente, é uma maneira de
garantir que a mensagem seja transmitida de forma adequada, além de
possibilitar às gerações futuras o acompanhamento do processo discursivo
daquele gênero.
No caso específico do objetivo central desta tese, seu mérito, conforme
anunciado já no título, está em registrar a transgressão da norma, mas ao
mesmo tempo indicar a garantia de uma estrutura interna própria. O que atrai
nos relatórios de Graciliano Ramos é a simbiose entre gêneros aparentemente
díspares: texto oficial, texto jornalístico, texto literário – transformando-se em
discurso original cuja validade e atualidade permanecem.
90
5 O GÊNERO RELATÓRIO PÚBLICO: ASPECTOS SÓCIO
COMUNITICATIVOS
5.1 Apresentação
Para que seja possível fazer uma análise mais profunda dos relatórios
públicos, especialmente os escritos por Graciliano Ramos, optou-se em,
primeiro, apresentar o contexto de sua produção e recepção para esclarecer os
processos de exigência e motivo deste gênero textual e discursivo.
Também esboçar-se, mesmo que sumariamente, o uso da linguagem
dentro das organizações e como ela se materializa no discurso escrito, pois é
através da manifestação da escrita que eles (os relatórios) se concretizam.
Evidente que existem outros conceitos sobre relatórios administrativos,
além dos expostos aqui, porém optou-se por apresentar os elaborados pelos
autores Charles Miller, Lee Thayer e Othon Garcia, além das reflexões de
Bakhtin e Maria Inez Matoso Silveira, por serem constantemente consultados e
citados nos estudos sobre gêneros oficiais.
Vale ressaltar que há poucos estudos específicos e aprofundados sobre
o gênero relatório administrativo, tanto sobre suas características como sobre a
sua função sócio comunicativa no espaço onde se manifestam. Os que
existem, geralmente, são manuais didáticos exibindo modelos a serem
seguidos.
Visando ampliar as fontes de consultas sobre o tema, também foram
investigados alguns manuais que se propõem a apresentar modelos de
relatórios administrativos, quanto ao formato e à linguagem.
Não é objetivo deste tópico do trabalho realizar uma apresentação da
evolução do gênero relatório nos diferentes contextos de gestão, nem mesmo o
de apresentar as possíveis transformações que o seu conceito sofreu com o
passar dos anos. O objetivo principal é o de expor além dos conceitos e do seu
91
contexto de produção suas características mais marcantes e comuns, as de
linguagem e de estrutura, que permitem identificá-lo nos contextos por onde
circula para que, na sequência seja possível estabelecer uma comparação dos
relatórios escritos por Graciliano Ramos com as características peculiares
deste gênero e, desta forma, analisar as rupturas presentes nos relatórios
administrativos que este famoso escritor alagoano escreveu.
5.2 Sobre os Gêneros Textuais na Comunidade Discursiva Institucional
Atualmente, com as infinitas e eficientes possibilidades que a internet
proporciona à sociedade, os meios de comunicação social impressos estão
migrando para as telas dos computadores que, cada vez mais, estão
acessíveis à população.
Revistas, jornais, livros e outros tipos de impressos, agora são
“folheados” virtualmente, e apresentam recursos atraentes aos leitores, que
vão da possibilidade de interagir com o autor à sua mudança, acréscimo ou
comentário do texto.
No entanto, apesar desta aparente ameaça os impressos massivos
continuam preenchendo as prateleiras de bancas de jornal e das livrarias.
Compreender a resistência dos gêneros impressos, aos demais veículos de
comunicação como o rádio, a TV e a Internet é, além de desafiador, um
estímulo à pesquisa e a divulgação desses gêneros. Talvez, a garantia de sua
permanência esteja, justamente, na obediência às suas modalidades.
Muitos estudos discutem a possibilidade de extinção de determinado
veículo de comunicação massiva impresso, após o surgimento da tecnologia
com suas possibilidades inovadoras como suporte de comunicação. Porém, o
que se observa, desde a invenção da imprensa, é a evolução e o aumento de
todos os tipos de impressos.
92
Sobre os gêneros impressos, pode-se dizer que estes fazem parte dos
gêneros discursivos secundários, pois sua formulação é mais complexa que a
dos primários. Para Bakhtin (2010, p. 262):
Os gêneros discursivos secundários (complexos – romances, dramas, pesquisas científicas de toda espécie, os grandes gêneros publicísticos, etc.) surgem nas condições de um convívio cultural mais completo e relativamente muito desenvolvido e organizado (predominantemente o escrito) – artístico, científico, sociopolítico, etc.
A complexidade dos gêneros secundários está, justamente, na
necessidade de obediência às regras estabelecidas a determinado gênero.
Reconhecer e aplicar adequadamente as particularidades do gênero impresso
eleito para apoiar o discurso, requer ao escritor conhecimentos teóricos (de
estrutura da língua, das marcas linguísticas e do formato) e práticos
(observação do contexto social e cultural) para a sua construção organizada.
Frequentemente, no espaço das organizações, pública ou privada, os
gêneros impressos continuam circulando ativamente entre seus interlocutores
e, consequentemente, sendo suportes de organização e materialização do
discurso administrativo.
Neste contexto, a mensagem escrita se torna uma ferramenta
reguladora do convívio entre as pessoas, principalmente nas hierarquias, e
assegura a ordem e o exercício das normas técnicas e operacionais, que
regem os processos necessários nestes espaços.
Sobre as relações sociais através da linguagem escrita, no ambiente das
organizações, escreveu Silveira:
No contexto da organização empresarial e burocrática, as relações sociais dão especial relevo às conveniências que preservam a integridade organizacional, cabendo à linguagem o papel de instrumento de trabalho necessário para o cumprimento de tarefas e a manutenção da ordem institucional. Numa perspectiva sócio retórica, os atos de
93
linguagem (especificamente os enunciados escritos) que se realizam nesse contexto devem ser vistos como atos responsivos a situações ou problemas no continuum das atividades, instaurando uma dinâmica enunciativa (ou pragmática, se quer), em que os gêneros desempenham seus papéis de respostas a situações tipificadas. (SILVEIRA, 2005, p. 113, 114).
Percebe-se, portanto, que é através do ato da linguagem escrita que as
empresas se organizam e se manifestam e que a esta ação enunciativa é
atribuída a responsabilidade da resposta desejada à determinada situação
apresentada pelo emissor da mensagem.
Os gêneros textuais que circulam nas organizações obedecem a regras
e padrões linguísticos que precisam ser dominados por todos que precisam
conviver com estes discursos institucionais. Se isto não existir, o ato
comunicativo pode ser prejudicado e, consequentemente, todas as tarefas
comprometidas.
Por Thayer31 (1972, p. 34): “Quando se organiza uma empresa coletiva
de qualquer tipo (companhias, nações, etc.). o que se organiza de fato é o fluxo
de informações relacionadas com a empresa e, em decorrência, as relações
estratégicas entre as suas partes funcionais”.
Percebe-se, portanto, que em uma organização formal, é pouco
provável, para não dizer impossível, que a burocracia escrita seja excluída. É
ela, verdadeiramente, quem sistematiza e organiza este organismo vivo e
dinâmico que é o discurso administrativo.
Os gêneros textuais no ambiente organizacional são variados e muitos:
relatórios, ofícios, atas, boletins, requerimentos, cartas, memorandos,
documentos oficiais, avisos, etc..
31
Publicou vários livros sobre a comunicação administrativa, dentre eles Princípios de Comunicação Administrativa, que influenciaram os pensamentos de outros estudiosos da área.
94
Na atualidade, todos estes gêneros adotaram também o suporte virtual,
mas não deixaram de circular ativamente no suporte impresso, entre os
departamentos das organizações.
5.3 Marcas do Discurso Institucional
As formações discursivas presentes no contexto das relações sociais
ajudam seus usuários na organização de seus discursos, de maneira mais
efetiva, aos seus propósitos comunicativos. Em todas elas há marcas de
construção do enunciado e da enunciação32 que as caracterizam e a definem
como determinado gênero.
Para o autor Swales (1990) apud Biasi-Rodrigues, Araújo e Sousa
(2009, p. 20):
[...] a ideia de que cada gênero adquire determinadas
características em função da sociedade e dos seus usuários e apresenta certas combinações das três variáveis de registro com determinados traços linguísticos. Isso quer dizer, na interpretação de Swales, que linguagem realiza o registro, e o registro realiza o gênero. Além disso, ele endossa o pensamento de Martin (1985) de que gêneros realizam propósitos sociais e observa que a realização de um gênero se faz através do discurso, razão pela qual a análise de estruturas discursivas se integra aos estudos de gênero.
Diante desta declaração, pode se aferir que são das necessidades do
contexto das relações humanas que os gêneros emergem, se adaptam e se
transformam.
Existem diversos gêneros discursivos, mas para cumprir o objetivo desta
fase do trabalho, será privilegiado o discurso institucional. Suas características
discursivas serão destacadas na tentativa de ampliar o referencial teórico sobre
32
Segundo a autora Discini (2005), a enunciação é composta por “um enunciador, o sujeito „que fala‟ (eu/nós), e um enunciatário, o sujeito „que escuta‟ (tu/você/vocês). Em outras palavras, a enunciação compreende o sujeito do dizer, que se biparte entre enunciador, projeção do autor, e enunciatário, projeção do leitor”.
95
este gênero. Muito se tem para apresentar e discutir sobre este tipo de gênero
discursivo, da sua estruturação e linguagem até a sua função sócia
comunicativa que ele se propõe.
Levantamos algumas características do discurso institucional, com o
objetivo de contextualizar suas intenções discursivas. Para a fundamentação
teórica deste tipo de discurso, recorreu-se à alguns estudiosos deste campo, o
do gênero institucional.
Na formulação do professor Dilson Ferreira da Cruz33 (2008), o discurso
institucional apresenta as seguintes características:
A enunciação não pode se projetar no enunciado como um eu.
O autor da enunciação deve obrigatoriamente ser identificado
no texto e figurativizado como uma figura do mundo capaz de
produzir o discurso em questão.
Deve ser utilizada a norma culta padrão.
Deve ser criado um efeito de sentido de verdade; ou seja, o
texto produzido deve parecer verdadeiro, independentemente
de sê-lo ou não.
O discurso deve tratar do ser e / ou do fazer do ator da
enunciação e por isso haverá um sincretismo entre ator da
enunciação e o do enunciador.
Partindo desta formulação, este tipo de discurso prioriza o
distanciamento do eu, da linguagem impessoal e da verossimilhança.
Já o autor Thayer (1972) fala que o que caracteriza o discurso
institucional são as funções instrutivas e de mando presentes no ato
comunicativo de seus interlocutores.
33
Doutor e mestre em Semiótica e Linguística Geral pela USP. Citação do artigo “Subsídios para uma caracterização do discurso institucional”, publicado na periódico Organicon, ano 5, número 9.
96
Para o autor, as relações humanas são marcadas hierarquicamente e
seus interlocutores utilizam a comunicação não apenas para transmitir uma
informação, mas, frequentemente, com o objetivo de ordenar uma tarefa, ou
seja, com a finalidade de mandar fazer algo. Por Thayer (1972, p. 226):
“Quando as regras a respeito de quem pode ordenar a quem a fazer que coisas
são adequadamente entendidas, nem o superior nem o subordinado esperam
empenhar-se num diálogo.”
De acordo com a proposta de Thayer, sobre as funções instrutivas e de
mando, pode-se concluir que o contexto das organizações é caracterizado pela
ação comunicativa que privilegia o comando e a obediência e que, portanto,
valoriza as relações interpessoais de hierarquias.
Partindo da formulação de Miller, pode-se concluir que o surgimento dos
gêneros discursivos, orais ou escritos, principalmente estes últimos, resulta das
imposições do cotidiano social e que, portanto, passam (os gêneros
discursivos) a existir para cumprir uma necessidade comunicativa de
determinado grupo. Tais necessidades e imposições aparecem tanto nas
organizações formais quanto nas informais.
O processo de organização e decisão das organizações é realizado
através da ação comunicativa dos indivíduos que interagem nestes espaços.
Estas ações enunciativas acontecem de diversas maneiras, porém é na
manifestação escrita que elas se materializam e ganham status de validade e
permanência.
O cenário das organizações deve ser visto como um espaço social
tipificado onde os indivíduos desenvolvem uma linguagem apropriada para este
local. Neste meio, seus interlocutores adotam um comportamento linguístico
que valoriza as “marcas de controle, formalismo, impessoalidade,
racionalização e profissionalismo” (SILVEIRA, p. 113).
Desenvolvendo a ideia da autora, pode-se dizer que as marcas de
controle estão presentes nas mensagens de mando que “visam a coagir a
97
liberdade do subordinado de exercitar seu próprio julgamento a respeito dos
parâmetros de sua tarefa especificados por essas mensagens”. (THAYER,
1972, p. 227).
Além destas marcas, o discurso nas organizações também é marcado
pelas “restrições e relações de força que ali se realizam; daí serem a
linguagem e os gêneros administrativos tão regrados e padronizados, tendo a
sua escrituração regulada através de normas, manuais oficiais e guias
específicos”. (idem)
As manifestações discursivas, tanto na forma escrita quanto na
oralidade, que ocorrem nos espaços das organizações valorizam temas ligados
aos interesses que preservam e melhoram a ordem e a integridade das
instituições e, portanto, é natural que o enunciado seja controlado pelas
normas que regem estes ambientes.
5.4 Gênero Relatório Público: Contexto Situacional
O relatório, sem dúvida, é um gênero textual que circula intensamente
nas organizações privadas e públicas, de diferentes segmentos e tamanhos.
Sempre está nas mesas, nos arquivos ou nas mãos de quem atua na
comunidade discursiva empresarial. Fica difícil de imaginar este grupo sem a
presença dos relatórios, uma vez que a ação comunicativa dos seus atores
frequentemente acontece através deste tipo de texto.
O domínio discursivo34 que privilegia a produção e a recepção deste
gênero textual é o empresarial, porém em outras esferas da atividade humana
ele também se manifesta como; o jurídico, o esportivo, o comercial, etc.
34 Domínio Discursivo, segundo o Dicionário de gêneros textuais (2009, p. 26), de Sérgio Roberto Costa, é a “esfera/instância de atividade humana que produz textos com algumas características comuns, isto é, o lugar onde os textos ocorrem/circulam (lugar de produção e recepção).
98
Assim como existem vários gêneros textuais para atender às
necessidades das diversas formações discursivas (religioso, jornalístico,
acadêmico, literário, cotidiano, publicitário, eletrônico/digital), também existem
vários gêneros textuais e subgêneros que circulam nas organizações públicas
e privadas.
Nas organizações formais, ou seja, aquelas onde as estruturas são
formadas a partir de regras políticas, de missão, valores e de divisões
hierárquicas, a ação de produção e de recepção de relatórios torna-se
necessária não apenas para registrar e transmitir informações de comando e
execução, mas também, para organizar e preservar estes espaços em seus
processos de tarefas e de relacionamentos sociais.
Os estudos de Miller (1984, p. 30) fazem referência aos processos de
exigência e motivo para a escolha de determinado gênero discursivo: “a
exigência deve ser vista não como uma causa da situação retórica, nem como
intenção, mas como um motivo social. Compreender uma exigência é ter um
motivo”. Sendo assim, pode-se dizer que o motivo da produção do gênero
relatório público está em atender, além da ação de relatar “experiências
vividas”, às necessidades discursivas da esfera administrativa.
Outra característica que contribui para identificar o contexto situacional
de circulação do gênero relatório é que este se configura num domínio
discursivo marcado pela ação comunicativa que privilegia o mando, a execução
e o controle35, neste caso, nos espaços empresariais.
Por Thayer (1972, p. 227):
Ordens, diretivas, pedidos, procedimentos, mesmo apreciações de desempenho – tudo isto funciona como mensagem de mando (ou controle). Visam a coagir a liberdade do subordinado de exercitar seu próprio julgamento a respeito dos parâmetros de sua tarefa específica por essas mensagens.
35
Reflexões sobre esta ideia são apresentadas por Lee Thayer (1972, p. 226) no capítulo Funções instrutivas e de mando, da obra Princípios de Comunicação Administrativa.
99
Se estas funções contribuem para identificar o contexto de produção e
recepção do gênero textual relatório público, o canal que o transmite também
passa a ser outro elemento caracterizador deste cenário. Assim, o código
escrito se destaca como suporte para a transmissão dos diversos gêneros
textuais que circulam nas organizações. Segundo Lee Thayer (p. 279) “O meio
de comunicação por escrito possibilitou a manutenção de relações de grande
distância”.
5.5 A Padronização Textual dos Relatórios Públicos: Conceitos e
Estrutura
O relatório público, assim como outros documentos, tem formato e
marcas textuais que o diferenciam dos demais. Porém, antes de exibir algumas
de suas características constitutivas, serão expostos primeiro os conceitos de
relatório público, traçados por autores que se propõem ou se propuseram a
discutir o assunto. Também é pertinente fazer, mesmo que sumariamente, a
distinção entre relatório administrativo e público, pois apesar de próximos,
apresentam diferenças essências.
O autor João Luiz Ney (1954) publicou um texto nos Cadernos de
Administração pública (DASP), no qual apresentou a diferença entre o relatório
público e administrativo.
Segundo Ney (1954, p. 6):
Os relatórios oficiais compreendem três tipos distintos: 1) o que é apresentado ao superior pelo funcionário em serviço fora da sede; 2) o que é apresentado pelos departamentos. Divisões ou seções ao respectivo órgão subordinante; e, finalmente, 3) a mensagem presidencial ao Congresso.
Nesta divisão, o autor apresenta duas grandes classes dos relatórios
oficiais; uma que se dirige ao público e a outra à própria administração. São os
100
primeiros os relatórios públicos e este os relatórios administrativos. Aponta Ney
(1954, p. 7):
Apesar de ambos exercerem a função de informar, o relatório administrativo é mais um registro das ocorrências, destinado a apoiar e esclarecer a ação administrativa, desempenhando o papel de documentação viva – ao passo que o relatório público se destina, originalmente, à ação política. Com base no relatório público, o eleitorado pode ou não reeleger determinada autoridade e a opinião pública pode aumentar-lhe ou retirar-lhe seu apoio.
Feita esta diferenciação, entre o relatório público e o administrativo, o
autor em seu estudo apresenta os propósitos principais dos relatórios públicos,
a partir de suas observações no Municipal Administration Service de New York
(1931), que vale a pena elencar nesta parte do trabalho:
1) Registrar e divulgar as realizações da administração pública;
2) Analisar problemas públicos correntes;
3) Descrever o governo como uma instituição compreensível
relacionada com a vida dos cidadãos;
4) Esboçar programas de ação para tratamento de futuros
problemas gerais;
5) Facilitar e encorajar, nos funcionários, o hábito de autocrítica;
6) Fornecer dados ao público para que este possa julgar da ação
de seus servidores;
7) Fornecer material jornalístico para divulgação através da
imprensa e do rádio.
Através destes propósitos, pode-se dizer que os relatórios públicos
proporcionam conhecimento e ativam mudanças no público, pois sua função
vai além do mero ato da informação.
O Dicionário de gêneros textuais (2009), do autor Sérgio Roberto Costa,
adotou a nomenclatura Relato ou Relato de Caso, levando-se em conta a
capacidade linguística de Relatar.
101
Para este autor, o Relato de Caso abriga outros textos que apresentam
funções específicas de comunicação, mas que em cada um deles aparecem
marcas comuns do Relato de Caso. Portanto, diante desta formulação, pode-se
dizer que o relatório administrativo é um subgênero do gênero relato de caso.
Por Costa (2009, p. 177): “A composição do texto final varia de acordo com o
tipo de relatório: administrativo, policial, de viagem, de estágio, de visita, de
projeto, de investigação, etc.”.
Segundo Costa (2009, p. 24), os gêneros textuais que satisfazem esta
capacidade de linguagem são: a anedota, o caso, o curriculum vitae, o diário
íntimo, a notícia, o relato de experiência, o policial, o histórico, etc., pode
acrescentar a estes o empresarial, o acadêmico, etc.
A formulação sobre relatório, de Roberto Costa (2009, p. 177):
Relato de Caso (v. artigo, artigo científico, dissertação, exposição, exposição oral, memorial, monografia, relato, relatório, tese): documento (v) em que se expõem os resultados, as conclusões às quais chegaram os membros de uma comissão (ou uma pessoa) encarregada de efetuar uma pesquisa, ou de estudar um problema particular ou um projeto qualquer.
A partir desta elaboração, pode-se dizer que o relatório é o registro de
um fato real (caso) que foi observado ou vivido por um grupo ou por um
indivíduo e que a intenção é a da apresentação de determinada vivência.
Também é possível depreender que neste tipo de texto pode estar contida a
visão subjetiva das particularidades do fato relatado, mesmo que a linguagem
privilegiada neste espaço seja mais formal, objetiva e impessoal.
Outro autor que também apresentou um conceito para relatório
administrativo foi Thayer (1972, p. 306):
102
Relatórios administrativos são todos aqueles produzidos pelos membros de uma organização, desde que requeridos ou utilizados pelos administradores. Em outras palavras, um relatório administrativo é qualquer relatório produzido ou recebido através da autoridade de um administrador, ou desempenho de sua função dentro de uma organização. Os bons relatórios administrativos são entradas primordiais para um administrador, no desempenho de sua função, e representam produções secundárias ou colaterais efetivas para proprietários, diretores, empregados, clientes e fornecedores.
Para Thayer, o conceito de relatório está na sua utilidade final e não em
suas características formais e estilísticas. Sendo assim, o que identifica o
relatório administrativo, na visão de Thayer, é a intenção discursiva do
enunciado ou a vontade discursiva do falante.
Estes termos, intenção discursiva e vontade discursiva do falante,
aparecem na obra de Bakhtin (2010, p. 284), quando o filósofo discorre sobre o
tom dos gêneros:
A diversidade desses gêneros é determinada pelo fato de que eles são diferentes em função da situação, da posição social e das relações pessoais de reciprocidade entre os participantes da comunicação: há formas elevadas, rigorosamente oficiais e respeitosas desses gêneros, paralelamente a formas familiares, e além disso, de diversos graus de familiaridade, e formas íntimas. Esses gêneros requerem ainda um certo tom, isto é, incluem em sua estrutura uma determinada entonação expressiva. Esses gêneros, particularmente os elevados, oficiais, possuem um alto grau de estabilidade de coação. Aí, a vontade discursiva costuma limitar-se à escolha de um determinado gênero, e só leves matizes de uma entonação expressiva (pode-se assumir um tom mais seco ou mais respeitoso, mais frio ou mais caloroso, introduzir uma entonação de alegria, etc) podem refletir a individualidade do falante (a sua ideia discursivo-emocional).
Lee Thayer também conceituou os relatórios através de seus objetivos e
finalidades. Ele elencou alguns destes critérios, porém, fez questão de ressaltar
que outros podem ser incorporados, mas que estes servem para exemplificar a
sua afirmação.
103
Quanto aos objetivos, declarou:
1) Informar a respeito da situação de todos os planos, projetos e
operações.
2) Dar todas as informações de que o administrador necessita, todas as
fontes para tomar decisões adequadas.
3) Informar a respeito de problemas potenciais ou áreas problemáticas.
Sobre as finalidades:
1) Mantê-los informados quanto aos planos, a longo e a curto prazo, da
companhia, e quanto a quaisquer mudanças requeridas para sua
implementação.
2) Informar os empregados da situação dos atuais planos, operações e
problemas.
3) Dar aos empregados todas as informações atuais de que poderão
precisar para o desempenho adequado de suas próprias funções.
Na tentativa de explorar, mesmo que sumariamente, a concepção de
relatório apresentada em manuais que valorizam o padrão de construção do
relatório administrativo e o de outros documentos oficiais, foi investigado o
Prontuário de Redação Oficial36 (1972, p. 221) escrito por João Luiz Ney e
editada pelo DASP (Departamento Administrativo do Serviço Público). Este
prontuário assim conceitua o relatório administrativo:
Exposição circunstanciada sobre atividade administrativa, ou, em outras palavras, o relato mais ou menos minudente que alguém faz por escrito, por ordem de autoridade superior ou no desempenho das suas funções do cargo que exerce. O relatório é geralmente feito para expor: situações de serviços públicos, resultado de exame laboratorial ou de quaisquer pesquisas científicas, condições de ordem de determinadas zonas do País, investigações policiais, prestações de contas ao término de um exercício, etc.
36
A consulta foi realizada na 7ª edição do prontuário.
104
Pode-se depreender desta formulação que o surgimento do relatório
administrativo frequentemente parte da solicitação de alguém que está em
posição hierárquica superior a quem vai elaborá-lo, mais especificamente no
âmbito das relações organizacionais.
Outro autor que também apresentou um conceito sobre os relatórios
administrativos foi Othon M. Garcia37 (2006, p. 401):
O relatório é um dos tipos mais comuns de redação técnica, dada a variedade de feições que assume: muitos artigos publicados em revistas científicas, muitos papéis que circulam em repartições públicas ou empresas privadas, contendo informações sobre a execução de determinada tarefa ou explanação circunstanciada de fatos ou ocorrências, pesquisas científicas, inquéritos e sindicâncias, nada mais são do que relatórios.
Assim como Lee Thayer, Othon conceitua o relatório administrativo
através da ação comunicativa presente em seu enunciado que, neste caso, é o
de informar sobre a atividade de um quefazer ou mesmo sobre o
esclarecimento de “fatos e ou ocorrências”.
Ainda sobre o conceito de relatório, fez-se consulta no Manual de
Redação de Correspondência e Atos Oficiais38 para conhecer, além do padrão
de relatório que a Federação adota, o entendimento que seus gestores têm
sobre este tipo de gênero comunicativo.
Diz o Manual (2006, p. 63-65):
Documento em que se expõem ou se relatam atos e fatos sobre determinado assunto para a descrição de atividades
37
Professor, filólogo e crítico literário, publicou várias obras sobre Comunicação, Linguística e Literatura, dentre elas “Comunicação em Prova moderna” em 1967, que já alcançou a 26ª edição pela editora FGV. Faleceu no ano de 2002, no Rio de Janeiro. 38
BRASIL. FUNASA. Manual de Orientações Técnicas (2ª. Ed.). Brasília: Núcleo de Editoração e Mídias de Redes/ASCOM/Presi/Funasa/MS: Fundação Nacional da Saúde. Ano 2006. Disponível em: http://www.funasa.gov.br/internet/arquivos/biblioteca/adm_redOficial.pdf
105
concernentes a serviços específicos ou inerentes ao exercício do cargo. O relatório deve ser conciso, claro e objetivo e com descrição das medidas adotadas.
Sem se diferenciar dos outros manuais este, o Manual de Redação de
Correspondência e Atos Oficiais, se limita a apresentar a estrutura do relatório
e, para garantir a sua fiel reprodução, exibe um modelo detalhado do
documento.
5.6 Organização do Gênero Relatório Público: Características
Constitutivas
O propósito deste tópico é o de levantar e expor as principais
características que constituem o gênero relatório público para que, a partir
desta evidenciação, seja possível reconhecer, além de suas regularidades
linguísticas, de formato e os seus aspectos estilísticos, sua função sócio
comunicativa nos espaços onde se manifesta; nas atividades administrativas
das empresas públicas e privadas.
Bakhtin (2010), em sua teoria sobre os gêneros do discurso, revela que
são nos espaços sociais, formais ou informais, que emergem os gêneros
discursivos com as suas características formais e linguísticas, próprias para
atender às necessidades comunicativas de cada campo. É no momento da fala
e/ou da escrita que acontece a escolha e a reprodução do gênero que irá
transmitir o discurso do enunciador.
Por Bakhtin (2010, p. 282):
A vontade discursiva do falante se realiza antes de tudo na escolha de um certo gênero de discurso. Essa escolha é determinada pela especificidade de um dado campo da comunicação discursiva, por considerações semântico-objetais (temáticas), pela situação concreta da comunicação discursiva, pela composição pessoal dos seus participantes.
106
Sendo assim, é possível inferir que, para existir a escolha adequada de
determinado gênero textual, falado ou escrito, torna-se necessário ao
enunciador o conhecimento e o domínio das “formas relativamente estáveis e
típicas de construção do todo”. (BAKHTIN, 2010, p. 282).
Também é possível deduzir que no momento da produção de
determinado enunciado há a reprodução das marcas textuais e do formato que
possibilitam a sua identificação dentre os demais gêneros que circulam neste
espaço. Estas marcas, além de individualizar e caracterizar os discursos,
também servem para garantir a permanência da circulação destes gêneros.
Sobre a questão de características determinantes de cada gênero, é
relevante a seguinte citação:
Jonh Swales reforça a ideia de que cada gênero adquire determinadas características em função da sociedade e dos usuários e apresenta certas combinações das três variáveis de registro39 com determinados traços linguísticos. Isso quer dizer, na interpretação de Swales (1990), que a linguagem realiza o registro, e o registro realiza o gênero. (SWALLES, 1990, apud BIASI- RODRIGUES, ARAUJO, SOUZA, 2009, p. 21).
Certamente que, com o passar do tempo ou, de acordo com a intenção
do enunciador, determinado gênero discursivo pode sofrer alguma
transformação, pois sua estrutura, apesar de estável, é flexível e adota
características socioculturais da época em que está sedo reproduzido. Porém,
suas marcas essenciais (de finalidade, de espaço de circulação, de seus
interlocutores, de intenção, etc.) permanecem.
Sobre esta flexibilidade dos gêneros, apresentou Bakhtin (2010, p. 284):
Mas também é possível uma reacentuação dos gêneros, característica da comunicação discursiva em geral; assim, por exemplo, pode-se transferir a forma de gênero da saudação do campo oficial para o campo da comunicação familiar; isto é,
39
As três variáveis de registro são: campo, relação e modo.
107
empregá-la como uma reacentuação irônico-paródica; com fins análogos pode-se misturar deliberadamente os gêneros das diferentes esferas.
Fazer uso desta reacentuação, de certa forma, é apresentar um tom
criativo para determinado gênero e, sobre isso, o filósofo ressalta que esta
ação “livre e criadora” só se torna possível através do amplo domínio que o
enunciador tem sobre os gêneros que circulam em seu meio e que, portanto, “é
preciso dominar bem os gêneros para empregá-los livremente”. (Bakhtin, 2010,
p. 284).
Para Bakhtin (2010, p. 284-285), o domínio dos gêneros discursivos
possibilita uma movimentação muito mais ampla e livre ao indivíduo que possui
esta aquisição.
Muitas pessoas que dominam magnificamente uma língua sentem amiúde total impotência em alguns campos da comunicação precisamente porque não dominam na prática as formas de gênero de dadas esferas. Frequentemente, a pessoa que domina magnificamente o discurso em diferentes esferas da comunicação cultural, sabe ler o relatório, desenvolver uma discussão científica, fala magnificamente sobre questões sociais.
Mais adiante o autor revela (2010, p. 285):
Quanto melhor dominamos os gêneros tanto mais livremente os empregamos, tanto mais plena e nitidamente descobrimos neles a nossa individualidade (onde isso é possível e necessário), refletimos de modo mais flexível e sutil a situação singular da comunicação; em suma, realizamos de modo mais acabado o nosso livro projeto de discurso.
No caso específico do gênero relatório administrativo, conhecer e
dominar suas características, assim como de outros gêneros que circulam nas
organizações, contribui para uma escrituração mais adequada e,
principalmente, para uma ação comunicativa mais eficiente.
108
O gênero relatório administrativo apresenta algumas características
formais que permitem seu reconhecimento e reprodução toda vez que alguém
pretende utilizá-lo em seus propósitos comunicativos.
Para o autor Garcia (2006, p. 401):
O relatório, seja técnico ou administrativo, engloba variedades menores de redação técnica propriamente dita: descrição de objeto, de mecanismo, de processo, narrativa minuciosa de fatos ou ocorrências, explanação didática, sumário, e até mesmo a argumentação, que, entretanto, não é um gênero menor.
O autor acrescenta outros traços formais da estrutura física do relatório
(GARCIA, 2006, P. 401):
É verdade que só recebem essa designação aqueles documentos que apresentam certas características formais e estilísticas próprias: título, “abertura” (origem, data, vocativo, etc.) e “fecho” (saudações protocolares e assinatura). Algumas vezes, consiste numa exposição rápida e informal de caráter pessoal; outras, assume formas mais complexas e volumosas, como os relatórios de gestão, quer do serviço público quer de empresas privadas.
Vale ressaltar que, assim como acontece com outros gêneros, os
relatórios também apresentam suas variedades de construção. O autor Odacir
Beltrão [s.d], apud Garcia (2002, p. 401) listou algumas:
[...] de gestão (relatórios empresariais periódicos), de inquérito (administrativo, policial e outros), parcial, de rotina, de cadastro, de inspeção (ou de viagens), de pesquisa (ou científico), de tomada de contas, de processo, contábil, e o relatório-roteiro (elaborado com base em modelo ou formulário impresso).
109
Para o professor Costa (2002, p. 177), sobre a organização dos
relatórios administrativos e suas diversidades, são evidentes os seguintes
aspectos:
Os dados devem ser apresentados de forma muito organizada para que se possa lê-lo em diferentes níveis. Pode se apresentar como um documento final ou parcial de resultados que, periódica e parceladamente, vão se somando até o final, dado seu caráter funcional e informativo. Como resultado de pesquisa (v) que é, exige planejamento, coleta e seleção de material e dados que serão analisados e relatados. Nesse sentido, assim se estrutura: introdução (justificativas, diretrizes, delimitação e explicação necessárias, corpo ou texto principal (descrição (v.) detalhada do objeto do relatório, análise e resultados) e conclusões e recomendações finais (resultados práticos, sugestões de atividade ou medidas a serem tomadas, a partir do que foi apresentado e analisado antes). A composição do texto final varia de acordo com o tipo de relatório: administrativo, policial, de viagem, de estágio, de visita, de projeto, de investigação, etc.
No entanto, apesar de existirem várias espécies de relatórios, cada uma
delas apresenta características comuns que são reproduzidas no ato de sua
produção e que são reconhecidas entre as pessoas envolvidas neste contexto
de comunicação.
A inclusão de alguns elementos no processo de construção dos
relatórios é essencial, pois contribui para a sua caracterização enquanto
gênero relatório e possibilita a sua construção e difusão de maneira mais
apropriada aos seus propósitos comunicativos.
Para Garcia (2002, p. 402) os relatórios públicos devem apresentar,
além da “abertura e “fecho”, as seguintes partes:
1. Introdução: indicação do fato investigado, do ato ou da
autoridade que determinou a investigação e da pessoa ou
funcionário disso incumbido. Enuncia, portanto, o propósito do
relatório.
2. Desenvolvimento (texto, núcleo ou corpo do relatório): relato
minudente dos fatos apurados, indicando-se: a data, o local, o
110
processo ou método adotado na apuração, discussão
(apuração e julgamento dos fatos).
3. Conclusão e recomendação de providências ou medidas
cabíveis.
De acordo com a formulação do autor, para preencher a estrutura do
relatório administrativo é necessário que o redator domine as técnicas do
relato, ou seja, que se tenha a capacidade linguística de contar “experiências
vividas situadas no tempo (relatos de experiência vivida, notícias, diários, etc.)”
(COSTA, 2009, p. 24).
Outro elemento importante que deve ser ressaltado na construção do
relatório público é o da linguagem. Em todos os gêneros textuais a forma como
a linguagem é utilizada contribui para dar identidade para determinado gênero
textual. No caso do relatório público, segundo a formulação de vários autores,
ela deve ser formal, objetiva, correta, impessoal e concisa.
Para Ney (1972, p. 13) a linguagem presente nas comunicações oficiais
deve ser: “A simplicidade na estrutura da frase e no vocabulário, a objetividade
e a clareza são requisitos que se impõem no intercâmbio dessas comunicações
específicas”. O autor ressalta ainda que na comunicação oficial não cabe à
utilização de recursos linguísticos literários, pois estes são próprios da literatura
artística e não da utilitária.
No entanto, apesar deste autor concordar com as características formais
do texto oficial, ele faz a seguinte ressalva: “As esporádicas elegâncias
literárias, em correspondências oficiais, devem-se apenas às eventuais
qualidades de formação, de alguns redatores” (NEY, 1972, p. 14). Quando isto
acontece, diz-se que houve uma transgressão/ruptura no estilo padrão de
determinado gênero textual. Isso não quer dizer que surgiu um novo gênero
textual, mas que apenas o autor deixou sua marca de formação/seu estilo no
texto. Sobre isto, mais adiante, serão analisados os relatórios administrativos
escritos por Graciliano Ramos, objetivo deste estudo.
111
Sobre a impessoalidade da comunicação oficial, vale repetir as palavras
de Ney (1972, p. 14): “Na linguagem administrativa, se sobreleva a
impessoalidade das regras e dos princípios, e não, o caráter ou as
particularidades psicológicas ou literárias de quem escreve.” Por
impessoalidade entende-se, neste caso, o fato do ocultamento da autoria do
enunciado, seja escrito ou falado, e de todas as marcas discursivas que
evidencie esta pessoa.
Para caracterizar a linguagem do discurso institucional é necessário
evidenciar que a sua prática acontece especificamente nas esferas
burocráticas e que, portanto, “seu uso é regulado e normatizado” (SILVEIRA,
2005, p. 187).
Sendo assim, pode-se dizer que os usuários da linguagem administrativa
ou burocrática como preferem alguns autores, precisam aprender as marcas
formais deste discurso para que, a partir desta apreensão de sentido e forma,
possam exercer com competência seus desejos comunicativos.
Por Mendonça (1987, p. 22) apud Silveira (2005, p. 187):
Os regulamentos e as normas devem ser obedecidos, havendo sanções para os que não o fazem. As regras são determinadas pelo sistema burocrático sem consulta prévia àqueles que deverão obedecer a elas. Os que não fazem parte das instituições públicas e privadas, quando têm de negociar com as mesmas, devem fazê-lo dentro de termos estabelecidos pelas instituições. Isso cria um sistema de comunicação fechado, que é reflexo de um sistema administrativo também fechado, hierarquizado, impessoal, autoritário, com usos estranhos.
A linguagem burocrática tem um traço muito forte das regras que
estabelecem a ideia de comando e obediência presentes nas instituições
públicas e privadas, ou seja, seus usuários têm pouca liberdade para a criação
de uma linguagem mais individual e particularizada. Existe um modelo
instituído e, portanto, deve ser seguido por todos que transitam nos espaços
burocráticos.
112
Ainda sobre a concepção da linguagem administrativa, foi consultado o
Manual de Redação da Presidência da República (2002), com a pretensão de
conhecer sua formulação sobre esta questão. Diz o manual:
O mesmo ocorre com os textos oficiais: por seu caráter impessoal, por sua finalidade de informar com o máximo de clareza e concisão, eles requerem o uso do padrão culto da língua. Há consenso de que o padrão culto é aquele em que a) se observam as regras da gramática formal, e b) se emprega um vocabulário comum ao conjunto dos usuários do idioma. É importante ressaltar que a obrigatoriedade do uso do padrão culto na redação oficial decorre do fato de que ele está acima das diferenças lexicais, morfológicas ou sintáticas regionais, dos modismos vocabulares, das idiossincrasias linguísticas, permitindo, por essa razão, que se atinja a pretendida compreensão por todos os cidadãos. Pode-se concluir, então, que não existe propriamente um "padrão oficial de linguagem"; o que há é o uso do padrão culto nos atos e comunicações oficiais. É claro que haverá preferência pelo uso de determinadas expressões, ou será obedecida certa tradição no emprego das formas sintáticas, mas isso não implica, necessariamente, que se consagre a utilização de uma forma de linguagem burocrática. O jargão burocrático, como todo jargão, deve ser evitado, pois terá sempre sua compreensão limitada.40
Este manual reproduz o que dizem os outros autores sobre a linguagem
administrativa, no entanto, tem um ponto que o diferencia dos demais; a não
consagração de “uma forma de linguagem burocrática” nos textos oficiais,
apesar de concordar que nestas manifestações linguísticas haja a recorrência
de determinadas expressões características das esferas institucionais.
Outras características periféricas contribuem para formar e identificar a
linguagem administrativa, porém o objetivo deste tópico foi o de ressaltar as
marcas textuais e de formato que mais se reproduzem no momento de sua
materialização.
40
BRASIL. Manual de Redação da Presidência da República. Brasília: 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_3/manual/index.htm
113
6 OS RELATÓRIOS DO GESTOR PÚBLICO GRACILIANO RAMOS:
TRANSGRESSÃO REVELADORA DO ESCRITOR
Para apresentar um estudo sobre os relatórios do prefeito escritor, viu-se
necessário exibir antes, mesmo que sumariamente, a geografia e a cultura da
cidade que fora o ambiente da administração pública de Graciliano Ramos, nos
últimos anos da segunda década do século XX.
Evidente que o cenário atual de Palmeira dos Índios destoa daquele
descrito em Caetés, mas não totalmente, pois a Princesa do Sertão ainda
preserva características, mesmo que remotas, que lembram a cidade do
prefeito Graciliano Ramos.
6.1 Palmeira dos Índios Xucurus41 e do Prefeito Graciliano Ramos: uma
Apreciação de suas Características Sociais Remotas e Atuais
Suas ruas agitadas com a atividade do comércio enganam os que
acham que vão encontrar ali uma cidade lenta e de pouco movimento, como a
descrita na obra Caetés.
A quantidade de obras públicas, no centro da cidade, cria a impressão
de que ela toda está em construção. As calçadas das lojas e das residências
são divididas para o passeio de pessoas e cães. Destes, percebe-se que
alguns têm donos e que outros são os donos das ruas. Fosse à época do
prefeito Graciliano Ramos, estariam os donos dos animais sob “[...] lamúrias,
reclamações e ameaças porque mandei matar algumas centenas de cães
vagabundos (...)” (RAMOS, 1967, p. 187). Construções modernas contrastam
com as casinhas de janelas miúdas e paredes desbotadas.
41
Consta que os índios Xucurus foram os primeiros habitantes da região, no século XVII.
114
Até a capital (Maceió) são aproximadamente 135 quilômetros, mas
parece que a distância é bem maior. O sol do sertão de Alagoas parece querer
mostrar toda a sua força e brilho aos seus visitantes, como sinal de boas
vindas! Sobre esta quentura de Palmeira dos Índios, um diálogo entre
personagens da obra Caetés (RAMOS, 2009, p. 123, 124):
Um domingo à tarde, como o calor na cidade era grande, entrei no Pinga-Fogo, com a intenção de dar uma volta pelos arredores. À porta da casa de Vitorino encontrei Luísa, d. Josefa e Clementina. – Para onde vai o senhor por esta zona? Gritou-me a Teixeira. - Por aqui, sem rumo. Boa tarde. Girando, em busca de um canto onde possa morrer sem ser queimado. As senhoras vão sair? - Vamos. Estávamos procurando um homem, e como o primeiro que passou foi o senhor, venha conosco, que tenho medo dos cachorros do Massa-Fina. Por quem esperam vocês? Clementina sorriu, vexada com a desenvoltura da outra, e chamou d. Engrácia, que se meteu debaixo do guarda-chuva e marchou na frente. Abrindo a sombrinha, a Teixeira disse em voz baixa: - Que vem fazer esta velha? Estragou o passeio. Como a viúva pisava rijo e estava suada, inquiri, julgando ser agradável: - Essa roupa preta não incomoda, com semelhante quentura, d. Engrácia?
Hoje, o município de Palmeira dos Índios tem uma população de
aproximadamente 70.000 mil habitantes que se espalham pelos seus quase
470 km2 de extensão. É um território de vida rural e urbana.
Para quem chega à cidade, principalmente pela primeira vez, todos os
detalhes são observados: o povo andando nas ruas, o sotaque da região, as
lojas com os seus utensílios, a feira, o que é vendido na feira, o busto de
Graciliano Ramos na entrada da cidade. Sobre este, tem-se a impressão de
que é uma espécie de guardião do lugar, devendo a todos pedir-lhe
autorização para passagem. Basta um passeio curto para conhecer seus
lugares e ter uma noção dos seus costumes. A pequena Igreja do Rosário,
construída pelos escravos no início do século XIX e que, atualmente, abriga o
115
Museu dos Xucurus, se destaca em um ponto elevado da cidade. O seu interior
não é suficiente para acolher tantas peças histórias da região, e tem de tudo;
recortes de jornal, roupas e peças dos índios que um dia foram donos daquelas
terras, armas de tortura, fotos, fósseis, quadros, imagens, sinos, peças de
barro, de ferro, de palha, etc.
Figura 8 - Igreja do Rosário em Palmeira dos Índios, onde atualmente abriga o Museu dos Xucurus Fonte: Acervo da autora, Jul. 2010
A Prefeitura Municipal ainda exibe sua fachada original do início do
século XX e é famosa por ter sido cenário da administração pública de
Graciliano Ramos, nos anos de 1928 a 1930. É comum encontrar algum
munícipe escorado em sua porta principal ou nos batentes de suas amplas
janelas. Costume que se repete nas portas das residências, mesmo das que
estão nas ruas mais movimentadas. Uma cena pré-anunciada na obra Caetés:
“Uma noite de lua cheia, no banco do jardim, Vitorino me acirrou a paciência
com a exposição arrastada e nasal dos méritos da filha, que deixara o Coração
de Jesus, onde ensinava pintura. Estive a escutá-lo uma hora” (RAMOS, 2009,
p. 50).
Algumas lojas da cidade estão instaladas em construções antigas. Em
uma destas construções, no passado, funcionou a loja Sincera, de Graciliano
Ramos, e que, atualmente, é um atacadão de importados. Além da placa
116
exibindo o nome do estabelecimento “Atacadão dos Importados” e de cartazes
de seus produtos, nenhum indício sobre o seu famoso proprietário do passado.
Figura 9 - Atual fachada de uma loja que, no
passado, foi a Loja Sincera, de Graciliano Ramos
Fonte: Acervo da autora, Jul. 2010
Em uma das ruas centrais, tem uma casa de fachada pequena e
descolorida que, se não for apresentada por algum morador conhecedor da
história da cidade, fica difícil identificar que no seu interior abriga um importante
acervo literário e histórico – o de Graciliano Ramos. O espaço recebeu o nome
de Casa Museu Graciliano Ramos e, lá, é possível encontrar inúmeros
documentos, livros e objetos do famoso escritor. Não é construção recente,
pois no passado, foi a residência do mais famoso romancista da cidade. Para
este estudo, a visita42 à ilustre humilde casa foi essencial, pois muitos
documentos e informações, lá, foram adquiridos. Lamentável que a sua
conservação depende mais da boa vontade e do orgulho de sua história de
quem ali trabalha do que de quem tem o poder para a liberação de verbas
necessárias à conservação do rico acervo.
42
Em julho/2010, foram quatro dias de visita à cidade de Palmeira dos Índios com o objetivo de conhecer e de observar a cultura local. Na ocasião, foram realizadas visitas monitoradas a diversos pontos turísticos da cidade, além de passeios nas ruas, igrejas e praças. À Casa Museu Graciliano Ramos foi dedicado um tempo maior, onde várias informações, documentos e imagens foram coletados.
117
Parece que a desvalorização do espaço Casa Museu Graciliano Ramos
está vinculada não somente aos interesses políticos, mas também na lógica
interiorana de Alagoas, imbricada aos desinteresses quanto à formação de
uma cidadania ativamente cultural, conectada às picuinhas pessoais dos
gestores que por ali passam.
Figura 10 - Fachada do prédio da Prefeitura Municipal de Palmeira dos Índios (2010), cenário da gestão de Graciliano Ramos nos anos de 1928 a 1930 Fonte: Acervo da autora. Jul. 2010
Figura 11 - Fachada da Casa Museu Graciliano Ramos, em Palmeira dos Índios (2010) Fonte: Acervo da autora, Jul. 2010.
118
Sobre a política da região, observa-se nas conversas de rua, que ainda há uma
disputa pelo poder entre as famílias tradicionais da região e que alguns
conflitos desta área ainda são resolvidos à moda antiga, na derrama de
sangue. Comportamento que, segundo divulgação da mídia local, é frequente
não só na cidade de Palmeira dos Índios, mas em todo estado de Alagoas.
Aliás, muito se conhece através deste tipo de conversa. Este cenário atual
reproduz características similares àquelas das primeiras décadas do século
XX, onde o regime das oligarquias exercia forte influência sobre as decisões
políticas do país, principalmente, nos pequenos municípios dos estados do
Nordeste. Alguns sobrenomes tradicionais estão no poder há décadas, assim
como as brigas entre família rivais da região.
O território de Palmeira dos Índios assistiu, ao longo de sua evolução,
muitas desavenças políticas que deixaram em seu solo, além das marcas de
injustiças, um rastro de sangue. Uma destas foi o assassinato do prefeito Lauro
de Almeida Lima, no ano de 1926. Fato que, contribuiu para a entrada de
Graciliano Ramos na vida política da cidade.
Os moradores de Palmeira dos Índios parecem que se conhecem todos,
pois os cumprimentos e paradas para breves conversas são constantes.
Apesar do avanço, a cidade ainda preserva características como estas; do
tempo para a conversa na calçada, do cumprimento nominal, do interesse em
saber se fulano de tal já melhorou, se a mulher de ciclano já pariu, se os
preparativos para a festa da igreja já estão prontos, etc. Também reconhecem
quem é filho daquela terra e quem veio de outras paisagens. Ações que podem
remeter à vida social da segunda década do século XX e que foi reproduzida
na ficção Caetés.
Estalaram foguetes na rua, à passagem da procissão. Soltei o livro, agarrei o chapéu e cheguei à calçada no momento em que desfilavam dois renques de velhos tristes, de opas, conduzindo tocheiros sem velas. - Vai acompanhar, Pascoal? Você sabe o que há na igreja? - Sermão. Sermão e tedéu. Sim, acompanho. Vinham devagar, em filas, as crianças do catecismo, com fitinhas amarelo-verdes. Depois, duas alas de mulheres, e entre as alas uma cambulhada de anjos, rubicundos, frisados, com asas de arame e gaze. Em seguida, o estandarte das
119
filhas de Maria, dos cordões de aspirantes e veteranas. Atrás, o andor do Coração de Jesus, beatas de beiço mole, caducas, d. Engrácia, a Teixeira velha, Casimira, outras criaturas hediondas e sem sexo, de roupas pretas e escapulários como nódoas de sangue. E três figuras simbólicas, as virtudes excelentes. (RAMOS, 2009, p. 112).
O primeiro romance publicado de Graciliano Ramos, Caetés, descreve a
rotina da vida social de Palmeira dos Índios, principalmente a que representa a
“classe média”. São farmacêuticos, tabeliões, médicos, padres, comerciantes,
beatas, os índios, caixeiros, etc., que frequentam as ruas e vendas da cidade,
além dos jantares e chás oferecidos nas casas de alguns.
Às quintas e aos domingos ia aos chás de Adrião. Ficávamos tempo estirado cavaqueando – e era para mim verdadeiro prazer tomar parte em duas conversações cruzadas sobre moda e câmbio. Algumas vezes Luísa falava de contos, versos, novelas. O marido ferrava no sono. Ou então, com enormes bocejos, lá se ia claudicando, a lamentar que a enxaqueca não lhe permitisse saborear um enredo tão filosófico. Ele entendia bem de comércio; o resto era filosofia. Quando vinha o advogado Barroca, sério, cortês, bem aprumado, a sala se animava. Também aparecia com frequência o tabelião Miranda, Miranda Nazaré, jogador de xadrez, com a filha, a Clementina. E o vigário, o dr. Liberato, Isidoro Pinheiro, jornalista, pequeno proprietário, coletor federal, tipo excelente. Luísa, ao piano, divagava por trechos de operetas; Evaristo Barroca, com os olhos no livro de músicas, tocava flauta. (RAMOS, 2009, p. 8-9).
Da terra dos Índios Xucurus e Cariris existem poucos habitantes
remanescentes que , no passado, dominaram Palmeira dos Índios. Apenas
algumas mulheres índias e curumins que ficam na praça tentando vender
poucas peças de seu artesanato e tentando conversar com algum turista.
Hoje, as Palmeiras daquelas terras não são dos Índios, mas de muitos
que, pacificamente ou não, passaram a ocupar este pedaço do sertão de
Alagoas.
6.2 Informação e Literatura nas Gavetas da Prefeitura de Palmeira dos
Índios: Conjunturas de Criação
120
Os dois relatórios administrativos escritos por Graciliano Ramos, um no
ano de 1929 e o outro em 1930 prestando contas de sua gestão ao então
governador de Alagoas, Álvaro Paes, foram publicados pela primeira vez no
Diário Oficial do Estado de Alagoas, precisamente no dia 24 de janeiro, o
primeiro, e 16 de janeiro o segundo.
Desde a primeira divulgação, estes documentos causaram espanto e
admiração nos leitores da época, mesmo naqueles que conheciam o perfil
duro, justo e enxuto de Graciliano Ramos, quando fazia uso da palavra.
Foi um destes leitores espantados com o estilo artístico dos relatórios,
que desconfiou da alta qualidade literária do seu autor. Esse leitor era o poeta
e proprietário da Editora Schimidt43, Augusto Frederico Schimidt que, com seu
faro apurado para farejar escritores de alto nível, apontou que, muito
provavelmente, o autor daqueles documentos escondia um precioso romance
em suas gavetas. Acertou. Augusto Schimidt revelou para o mundo o autor de
Caetés, publicando a obra no ano de 1933.
Sobre esta cena, Graciliano Ramos escreveu:
.... Nunca passei disso. Em fim de 1915, embrenhei-me de novo em Palmeira dos Índios. Fiz-me negociante, casei-me, ganhei algum dinheiro, que depois perdi, enviuvei, tornei a casar, enchi-me de filhos, fui eleito Prefeito e enviei dois relatórios ao governador. Lendo um desses relatórios, Schimidt imaginou que eu tinha algum romance inédito e quis lança-lo. Realmente, o romance existia, um desastre. Foi arranjado em 1926 e apareceu em 1933. Em princípio de 1930 larguei a Prefeitura e dias depois fui convidado para diretor da Imprensa Oficial. Demiti-me em 1931. (RAMOS, 1980, p. 103).
A leitura dos dois relatórios revela que Graciliano Ramos ignorou o tom
oficial da linguagem predominante nestes documentos. Porém, em nenhum
momento, encontram-se vestígios de um escritor que não dominava as regras
da língua materna e nem as do gênero relatório, pelo contrário, indica um
escrevente com rigor técnico e apurado, capaz de dizer muito com poucas
43
Fundada em 1930 no Rio de Janeiro, foi a primeira editora a publicar a obra Caetés, de Graciliano Ramos.
121
palavras e consciente da transgressão linguística que cometia. Nesta violação,
a qualidade estética de Graciliano Ramos salta aos olhos de quem lê seus
relatórios, bem como o estilo objetivo e preciso quando o autor usa as palavras.
Nenhum substantivo ou verbo era jogado no papel sem o cuidado que merecia.
Os adjetivos sempre foram regrados. Todas as palavras passavam pelo crivo
de quem as conheciam muito bem e sabia manejá-las com criatividade e rigor
que, na construção pronta, encantavam todos que as liam.
6.3 Figuras de Linguagens: um caminho para a transgressão do gênero
Relatório
Os relatórios de Graciliano Ramos se tornaram famosos devido à
qualidade estética que se apresenta em sua escritura. O tom irônico, artístico e
sincero conferiu aos relatórios de Graciliano Ramos um status de proclamador
do talento do autor – Graciliano Ramos.
Percebe-se na leitura destes documentos fartura de expressões irônicas,
carregadas de humor e metáforas que, certamente, contribuíram na criação de
um texto artístico e transgressor.
Sabe-se que as figuras de linguagens são frequentemente utilizadas no
campo da literatura artística e que estas expressões conferem a estes textos
poesia e encantamento.
Por outro lado, orienta-se que essas figuras fiquem distantes dos textos
oficiais, didáticos, informativos, etc., ou seja, daqueles que valorizam o fato real
e a objetividade.
Para escrever seus relatórios, Graciliano Ramos ignorou as regras do
gênero para seguir o seu tino literário e o seu estilo individual de escrita. Não
fez esta ruptura por ignorância das características textuais e de formato que
definem o gênero relatório, pois em carta a sua amada Heloisa, Graciliano
Ramos mostrou-se conhecedor das regras da escritura dos textos oficiais:
122
“Tanta gravidade, tanta medida, só vejo em documentos oficiais. Até sinto
desejo de começar esta carta assim: “Exma. Sra.: tenho a honra de comunicar
a v. exa., etc.” (RAMOS, 1980, p. 85).
Ora, mas o que seriam essas figuras de linguagens? Convém determos,
sumariamente, para conceituar ditas figuras antes de dar prosseguimento a
análise, para que esta mesma se torne mais clara no que diz respeito a estas
expressões de linguagem.
6.4 Identificação das Figuras de Linguagem no Estudo de Quintiliano
Preside a análise desta tese as figuras de linguagem apresentadas na
obra de Quintiliano de Calahorra. Optou-se pelas concepções deste autor, por
este ter sido um dos primeiros estudiosos do antigo Império Romano a
apresentar uma obra completa sobre as figuras de linguagem. Até hoje, a obra
deste pensador é uma fonte de pesquisa para os estudos contemporâneos que
envolvem o campo das figuras de linguagem.
Segundo Quintiliano de Calahorra44, a definição de figura de linguagem
se confunde com o significado dos tropos45.
Tropos más frecuentes por razón de su significado: metáfora, sinécdoque, metonimia, antonomasia, onomatopeya, catacresis. – Los tropos utilizados en virtud de adorno: epíteto, alegoría, enigma, ironía, perífrasis, hipérbaton, hipérbole. (QUINTILIANO, 2001, p. 243).
Sobre esta semelhança entre tropo e figuras o autor esclarece que
ambas aparecem, frequentemente, juntas no mesmo discurso, pois “la
expresión se puede transformar en uma figura tanto com palavras utilizadas em
sentido metafórico como próprio”. (p. 281).
44
Quintiliano de Calahorra ( Calahorra, 30 – 96 a. C), conceituado retórico e professor do Império Romano. 45
Tropo é um truque artístico - cum virtute – de significado próprio de uma palavra ou de uma expressão a outro significado. (CALAHORRA, 2001, p. 243). Tradução do autor.
123
Aponta, ainda, Quintilino que o significado de figuras vem do grego
“schémata” que remete à atitude. Esta relação de significado faz sentido devido
à ideia de transformação do texto, causada pela utilização destas figuras -
“transforman el lenguaje” (CALAHORRA, 2001, p. 277). Também, diz
Quintiliano: “es uma configuración del linguaje, que se aparta del modo común
de hablar y em primer lugar se presenta”. (2001, p. 279).
Foram levantadas as figuras de linguagem presentes na obra de
Quintiliano para que, no momento seguinte, seja possível confrontar as
incidências destas figuras nos relatórios públicos de Graciliano Ramos.
Destaca-se deste conjunto a metáfora, muito valorizada por Graciliano
Ramos em seus relatórios, e que encontramos em Quintiliano um grande
amante deste recurso:
[El tropo] más frecuente y, por otra, el más hermoso entre todos, quiero decir la translatio – traslación del significado -, que en griego se llama metaphorá. Ella es ciertamente de tal modo, tanto por la misma naturaleza a nosotros dispensada, que hasta las personas incultas y sin advertirlo la usan, como tan agradable y resplandeciente, que aunque aparezca en un discurso, por brillante que éste sea, sin embargo, ella refulge con luz propia […]. (CALAHORRA, 2001, p. 245-247).
A ironia apontada por Quintiliano:
[…] en la figura de la ironía se trata del fingimiento de toda la intención, que se trasluce más que se manifiesta, de suerte que allí – en el tropo – las palabras son contrarias unas a otras, mientras aquí – en la ironía como figura - se contrapone el sentido a la expresión completa y a su tono, y a veces la configuración entera de un caso, hasta una vida entera parece tener en sí ironía, cual pareció tener la de Sócrates (pues por eso se le llamó eíron, - „El Irónico‟ – porque se hacía el ignorante y admirador de los otros como si fueran sabios). (CALAHORRA,2001, p. 315-317).
124
Uma vez definidas as figuras de linguagem a partir das definições
encontradas em Quintiliano, esta tese segue adiante na análise dos relatórios
de Graciliano Ramos.
Quadro 2 – Figuras de Linguagem
Figuras de linguagem (Qintiliano) Sentido de Expressão, nas palavras de
Quintiliano (tradução da autora)
Onomatopeia É a formação nova de um nome: por
conseguinte, também se apresenta em vez
de outra palavra.
Hipérbato Consiste na troca da ordem das palavras.
Prosopopeia Dá admirável variedade ao discurso, como
também incitante viveza. Por meio delas
fazemos aparecer, por um lado, os
pensamentos de nossos adversários, como
se estivéssemos falando consigo mesmo.
Somente quando fingimos personificamos.
Ironia (mofa) Trata-se do fingimento de toda a intenção,
que se revela mais do que se manifesta.
Os romanos a chamavam de inlusio, mofa.
Alegoria sarcástica, Mykterismos
(Disfemismo*)
A este grupo se soma “o torcer de nariz”
uma espécie de mofa dissimulada.
Metáfora Aumenta a plenitude e a expressão, por
truque ou empréstimo do significado, que
uma coisa não tem ou lhe falta, ou que é
inclusive mais difícil, empresta a língua o
benefício de que nenhuma coisa pareça
precisar de um nome.
Sinédoque Pode dar variedade ao discurso, de sorte
que em uma coisa podemos pensar em
muitas, na parte a totalidade, na espécie o
gênero, no antecedente o seguinte, ou
também todas estas ao contrário com uma
liberdade maior para os poetas do que para
os oradores.
Metonímia Consiste em colocar um nome por outro
125
nome. Esta designa as coisas inventadas
pelo inventor delas e as coisas possuídas
por seu possuidor.
Antonomásia Põe algo em lugar de um nome, é em suas
duas formas muito frequente nos poetas,
tanto por meio de um epíteto, que ao
desaparecer o nome, para quem se
antepôs, significa o mesmo que o nome
dito.
Perífrase (Eufemismo) Uma espécie de rodeio no modo de falar,
que se sente obrigado a fazer, sempre que
encobre coisas que causam vergonha dizer.
Pois tudo o que pode dar-se a entender
com mais brevidade e se põe ante os olhos
mais desenvolvidos, com expressões de
enfeite é uma perífrase.
Hipérbole É uma virtude de estilo, quanto ao próprio
objeto, do que se faz falar, faz ultrapassar a
medida natural. Pois é permitido falar
exagerado, porque não se pode cabalmente
dizer qual é a exata medida das coisas.
Catacrese
Quando falta nome para a coisa e há o uso
abusivo de um termo metafórico.
Epíteto Efetivamente serve de adorno o epíteto
(adição), que em direta equivalência
chamamos adpositum e alguns sequens (o
seguinte). Os poetas o usam com mais
frequência e com mais liberdade. Porque
para eles é suficiente esta adição
apropriada à palavra que vem em primeiro
lugar, e por esta razão não censuramos
neles o dizer brancos dentes e úmidos
vinhos. No orador é supérfluo, se não
produzir.
Fonte: Elaborado pela autora, a partir do texto de Quintiliano.
126
*Na obra de Quintilinano não foi identificada uma figura de linguagem definida para a
“palavra de mau agouro, blasfêmia (...), contundentes, irritadas, violentas,
pertencentes à linguagem popular, ao calão e às gírias” (MOISÉS, 2004, p. 127). A
alegoria sarcástica foi identificada como sendo a mais próxima desta figura de
linguagem.
6.5 Figuras de Linguagem no Relatório I (ano 1.929)
Na apresentação do primeiro relatório, a formalidade ao se dirigir ao
superior é preservada, bem como a exposição direta do objetivo do documento.
Ao Governador do Estado de Alagoas Exmo. Sr. Governador: Trago a V. Excia. um resumo dos trabalhos realizados pela Prefeitura de Palmeira dos Índios em 1928. Não foram muitos, que os nossos recursos são exíguos. Assim minguados, entretanto, quase insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o Município se achava, muito me custaram.
Nota-se, nestas linhas iniciais o lampejo dos primeiros vestígios de uma
escrita rigorosa e artística.
A utilização de verbos na primeira pessoa, tanto do singular quanto do
plural, revela sentimentos de um prefeito insatisfeito com os resultados do seu
trabalho, pois “os recursos são exíguos”, e de um homem indignado com as
mazelas de sua gente, invisível ao mundo. “Assim minguado, entretanto, quase
insensíveis ao observador afastado, que desconheça as condições em que o
Município se achava, muito me custaram.”
Percebe-se uma recorrência da ironia e das metáforas no
desenvolvimento dos relatórios, o que sugere uma intenção de dizer muito
além do que se vê no enunciado, além de revelar o ponto de vista do autor em
relação a uma situação, fato ou pessoas.
127
Na abertura do Relatório I, intitulado de “Começos”, o tom irônico,
manifestada através da ironia, a metáfora e a hipérbole surgem com vigor,
pode-se dizer que todo o enunciado é marcado por estas figuras:
Ironia / metáfora / hipérbole
O Principal, o que sem demora iniciei, o de que dependiam todos os outros, segundo creio, foi estabelecer alguma ordem na administração. Havia em Palmeira dos Índios, inúmeros prefeitos (hipérbole): os cobradores de impostos, o comandante do destacamento, os soldados, outros que desejassem administrar (metáfora). Cada pedaço do Município tinha a sua administração particular, com prefeitos e coronéis e prefeitos inspetores de quarteirões (ironia). Os fiscais, esses resolviam questões de politica e advogava (ironia).
Na expressão “alguma ordem” está implícita a leitura de uma
cidade acostumada a conviver com a desordem administrativa e social e que,
se a intenção for arrumar a casa, terá de realizar um trabalho audacioso e
arriscado.
A hipérbole aparece quando o autor se refere aos inúmeros prefeitos da
cidade. A expressão revela, além do exagero, também a intenção sarcástica de
retratar a realidade, o que indica fusão de duas figuras, característica que
demarca o estilo de Graciliano Ramos como híbrido e que transita em
fronteiras dos estilos jornalismo / documento / literatura.
No seguinte trecho, é possível depreender e comprovar,
simultaneamente, o jeito bruto e suave de escrever de Graciliano Ramos,
valendo-se do recurso da metáfora e do eufemismo:
128
Metáfora / ironia / Disfemismo
Para que semelhante anomalia desaparecesse lutei com tenacidade e encontrei obstáculos dentro da Prefeitura e fora dela dentro, uma resistência mole, suave, de algodão em rama (metáfora); fora, uma campanha sorna, obliqua, carregada de bílis (disfemismo). Pensavam uns que tudo ia bem nas mãos de Nosso Senhor (ironia), que administra melhor do que todos nós: outros me davam três meses para levar um tiro.
O texto dos relatórios causa espanto no leitor não somente pela beleza
estética que apresenta, mas porque a todo instante a informação é exposta de
maneira muito franca e abrupta, ou seja, sem manobra. Neste caso, enquanto
a ironia pode ser apreendida em todo o percurso do texto, a metáfora aparece
poeticamente na expressão “uma resistência mole, suave, de algodão em
rama”.
Em outro trecho observa, além da ironia , a figura da perífrase:
Dos funcionários que encontrei em janeiro do ano passado restam poucos: saíram os que faziam politica e os que não faziam coisa nenhuma (ironia). Os atuais não se metem onde não são necessários, cumprem as suas obrigações e, sobretudo, não se enganam em contas. Devo muito a eles. Não sei se a administração do Município é boa ou ruim. Talvez pudesse ser pior. (Perífrase).
Marcas da linguagem coloquial também marcam o tom dos relatórios.
Neste trecho a expressão “não se metem onde não são necessários” comprova
a afirmação.
A utilização da figura de linguagem da perífrase é bem recorrente no
desenvolvimento dos dois relatórios, pois ao longo dos documentos percebe-se
o abrandamento de expressões que suavizam o texto.
Nos seguintes trechos observam-se estas figuras:
129
Perífrase
A receita, orçada em 50:000$000, subiu, apesar de o ano ter sido péssimo, a 71:649$290, que não foram sempre bem aplicados por dois motivos: porque não me gabo de empregar dinheiro com inteligência (perífrase) e porque fiz despesas que não faria se elas não estivessem determinadas no orçamento.
Ironia
A iluminação da cidade custou 8:921$800. Se é muito, a culpa não é minha: é de quem fez o contrato com a empresa fornecedora de luz. (ironia).
Ironia
Houve 1:069$700 de despesas eventuais: feitio e concerto de medidas, materiais para aferição, placas. 724$000 foram-se para uniformizar as medidas pertencentes ao Município. Os litros aqui tinham mil e quatrocentos gramas. Em algumas aldeias subia, em outras descia (ironia). Os negociantes de cal usavam caixões de querosene e caixões de sabão, a que arrancavam taboas, para enganar o comprador. Fui descaradamente roubado em compras de cal para os trabalhos públicos.
É possível notar o uso da metáfora reforçando o tom irônico do autor:
No cemitério enterrei (metáfora) 189$000 pagamento ao coveiro e conservação. Os escrivães do júri, do cível e da policia, o delegado e os oficiais de justiça levaram (metáfora).1:843$314.
Nestes casos, percebe-se que Graciliano Ramos utilizou os verbos
“enterrei” e “levaram” com a intenção de dizer algo além do que o enunciado se
propõe que, num primeiro momento, é o de informar as despesas com estas
instâncias. No primeiro caso, cria-se um efeito de sentido combinatório com o
130
contexto do cemitério que é o de enterrar pessoas, além de ser possível a
interpretação de jogar o dinheiro fora. Já no segundo exemplo, pode ser dizer
que o autor sugere um ambiente de corrupção onde trabalham estes oficiais.
No parágrafo que trata das despesas com a Administração, predominam
as seguintes figuras:
Disfemismo / Ironia / Polissíndeto
Porque se derrubou a Bastilha um telegrama; porque se deitou uma pedra na rua um telegrama; porque o deputado F. esticou a canela (disfemismo) um telegrama. Dispêndio inútil. Toda a gente sabe que isto por aqui vai bem, que o deputado morreu, que nós chorámos e que em 1559 D. Pero Sardinha foi comido pelos Caetés. (ironia).
A utilização da expressão “esticou a canela”, além de ser um exemplo
de alegoria sarcástica, é de uso popular e, portanto, predominante no campo
da oralidade. A repetição do conectivo “porque” também caracteriza a figura do
polissíndeto que, neste caso, reforça a ideia de tédio e desdém por atividades
inúteis que são realizadas na prefeitura.
Mais adiante, no tópico “Arrecadação” do Relatório I, o disfemismo foi
empregado para depreciar o perfil dos vendedores da cidade.
As despesas com a cobrança dos impostos montaram a 5:602$244. Foram altas porque os devedores são cabeçudos (disfemismo).
No item “Limpeza Pública Estradas”, percebe-se o uso da enumeração
crescente de palavras para criar um efeito cumulativo no texto. A figura
utilizada para se conseguir este efeito é a gradação:
131
Gradação
(...) Cuidei bastante da limpeza pública. As ruas estão varridas: retirei da cidade o lixo acumulado pelas gerações que por aqui passaram: incinerei monturos imensos que a Prefeitura não tinha suficientes recursos para remover. Houve lamurias e reclamações por se haver mexido no cisco preciosamente guardado em fundos de quintais; lamurias, reclamações e ameaças por que mandei matar algumas centenas de cães vagabundos; lamurias, reclamações, ameaças, guinchos, berros e coices dos fazendeiros que criavam bichos nas praças.
Quando o prefeito escreve o Posto de Higiene, pode-se dizer que fez
uso de um metônimo (uma instância da metonímia), ao utilizar a palavra
“prophylaxia” para se referir à limpeza do munícipio.
Em falta de verba especial, inseri entre os dispêndios realizados com a limpeza pública os relativos à prophylaxia (metonímia) do Município.
No trecho seguinte “Terrapleno da Lagoa” a metáfora e a hipérbole
foram utilizadas para falar das constantes reclamações que o prefeito ouvia dos
munícipes:
Durante meses mataram-me o bicho do ouvido (metáfora)
com reclamações de toda a ordem contra o abandono em que se deixava a melhor entrada para a cidade. Chegaram lá pedreiros outras reclamações surgiram, porque as obras irão custar um horror de conto de réis (hipérbole), dizem.
Custarão alguns, provavelmente. Não tanto quanto as
pirâmides do Egito (hipérbole), contudo, o que a Prefeitura arrecada basta para que nos resignemos ás modestas tarefas de varrer as ruas e matar cachorros. (ironia).
Na conclusão deste trecho, a perífrase e a ironia também aparecem
para dar a expressividade desejada pelo prefeito-escritor:
132
Convenho em que o dinheiro do povo poderia ser mais útil se estivesse nas mãos, ou nos bolsos, de outro menos incompetente do que eu (perífrase): em todo caso, transformando-o em pedra, cal, cimento, etc, sempre procedo melhor que se o distribuísse com os meus parentes, que necessitam, coitados (ironia).
Na conclusão do primeiro relatório, expressões como “do tempo das
candeias de azeite”, “recorrer ao espiritismo” “convenci-me de que o código era
uma espécie de lobisomem”, conferem ao texto uma forte dose de ironia que,
neste caso, a expressividade foi adquirida através da hipérbole e da metáfora.
Constava a existência de um código municipal, coisa inatingível e obscura. Procurei, rebusquei, esquadrinhei, estive quase a recorrer ao espiritismo (hipérbole), convenci-me de que o código era uma espécie de lobisomem (metáfora).
Finalmente, na conclusão do primeiro relatório o autor faz uso de várias
figuras de linguagens que conferem ao texto uma qualidade estética admirável
e um distanciamento do gênero relatório. Nota-se a presença da perífrase, da
ironia, da metáfora, da antítese, do Oximoro. Para ilustrar este jogo de
figuras de linguagem, na integra o desfecho do documento:
Procurei sempre os caminhos mais curtos. Nas estradas que se abriram só há curvas onde as retas foram inteiramente impossíveis (Antítese). Evitei emaranhar-me em teias de aranha (Metáfora). Certos indivíduos, não sei porque, imaginam que devem ser consultados; outros se julgam com autoridade bastante para dizer aos contribuintes que não paguem impostos (ironia). Não me entendi com esses. Há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha (Oximoro), a abençoada canalhice (Oximoro), preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como assumpto invariável; há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento da ideia de lucro pessoal; ha até quem pretenda embaraçar-me em coisa tão simples como mandar quebrar as pedras dos caminhos. Fechei os ouvidos (??) , deixei gritarem arrecadei 1:325$500 de multas. Não favoreci ninguém. Devo ter cometido numerosos disparates. Todos os meus erros, porem foram erros da inteligência que é fraca. (perífrase) Perdi vários amigos, ou indivíduos que possam ter semelhante nome. Não me fizeram falta. Há descontentamento. Se a
133
minha estada na Prefeitura por esses dois anos dependesse de um plebiscito, talvez eu não obtivesse dez votos. Paz e prosperidade. Palmeira dos Índios, 10 de janeiro de 1929.
6.6 Figuras de Linguagem no Relatório II (ano 1930)
No segundo relatório, o prefeito Graciliano Ramos deu continuidade ao
seu estilo de redigir estes documentos oficiais. A presença das figuras de
linguagem está presente por todo o texto, assim como a qualidade estética.
Como acontece no primeiro relatório, observa-se neste a predominância
das figuras da ironia, da metáfora, da perífrase e da ironia sarcástica, porém
o autor acrescenta a hipérbole, a personificação e a metonímia, em alguns
trechos.
Na apresentação deste relatório, Graciliano Ramos de dirige ao
Governador de maneira muito direta e demonstrando pouca paciência:
Sr. Governador: - Esta exposição é talvez desnecessária. O balanço que remeto a V. Excia. mostra bem de que modo foi gasto em 1929 o dinheiro da Prefeitura Municipal de Palmeira dos índios. E nas contas regularmente publicadas há pormenores abundantes, minudencias que excitaram o espanto benévolo da imprensa.
Além desta aparente urgência do autor, há indício do reconhecimento da
repercussão positiva do primeiro relatório na imprensa: “E nas contas
regularmente publicadas há pormenores abundantes, minudencias que
excitaram o espanto benévolo da imprensa”.
Logo após a abertura do relatório, a parte seguinte apresenta como a
receita atual da prefeitura e como esse valor foi administrado.
Em alguns trechos do relatório, Graciliano Ramos economiza tantas
palavras e é tão objetivo que a informação é transmitida através de um único
134
período simples, como se vê no item “Gratificações”: “Estão reduzidas”. Pode-
se dizer que esta expressão, apesar de curta, foi pensada esteticamente, pois
alcança uma expressividade que combina com a ideia pretendida pelo autor, ou
seja, se vale da economia de sentenças para reforçar a ideia de economia das
gratificações.
Personificação
A presença desta figura de linguagem traz ao relatório um tom sarcástico
que reforça e evidencia o caráter irônico destes documentos. A parte intitulada
“Cemitério” diz:
Pensei em construir um novo cemitério, pois o que temos dentro em pouco será insuficiente, mas os trabalhos a que me aventurei, necessários aos vivos, não me permitiram a execução de uma obra, embora útil, prorrogável. Os mortos esperarão mais algum tempo (personificação). São os munícipes que não reclamam.
Antítese, Ironia e Onomatopeia
A prefeitura foi intrujada quando, em 1920, aqui se firmou um contrato para o fornecimento de luz. Apesar se ser negócio referente à claridade, julgo que assinaram aquilo às escuras (antítese). E um bluff (onomatopeia). Pagamos até a luz que a lua nos dá. (ironia).
O trecho seguinte traz às contas das despesas gastas com higiene,
além da ironia em toda a construção, a personificação dos animais
incomodados com a limpeza das ruas. Parece que eles tomaram uma decisão
– a de que naquela cidade o espaço não era mais apropriado para suas vidas.
No item que refere à instrução, é possível depreender tédio e descrença
nas ações praticadas dentro das escolas de Palmeira dos Índios. O prefeito
revela uma realidade impregnada pelo ensino de baixa qualidade e pela
ignorância transmitida por gerações.
135
Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros.
Ao relatar sobre os gastos com viação e obras públicas o tom irônico é
reforçado com o uso da metáfora e da metonímia:
Possuímos uma teia de aranha de veredas muito pitorescas (metáfora), que se torcem em curvas caprichosas, sobem montes e descem vales de maneira incrível. O caminho que vai a Quebrangulo, por exemplo, original produto de engenharia tupi tem lugares que só podem ser transitados por automóvel Ford (metonímia) e por lagartixa. Sempre me pareceu lamentável desperdício consertar semelhante porcaria (disfemismo).
As metáforas, as ironias, os eufemismos e as hipérboles continuam
presentes por todo o percurso do relatório, como se pode observar:
Metáfora
A população minguada, ou emigrava para o sul do País ou se fixava nos municípios vizinhos, nos povoados que nasciam perto das fronteiras e que eram para nós umas sanguessugas (metáfora).
Este trecho se encontra no parágrafo “Produção” e algo interessante
pode ser observado nele, além da figura de linguagem. Sua leitura remete ao
cenário da obra Vidas Secas que é marcado pela ação nômade de Fabiano e
de sua família. A vida deles, além de minguada, é marcada pela mudança sem
rumo. “Suspirou. Que havia de fazer? Fugir de novo, aboletar-se noutro lugar,
recomeçar a vida”. (RAMOS, 2006, p. 111).
136
Metáfora e alegoria sarcástica (disfemismo)
E o palmeirense afirmava, convicto, que isto era a princesa do sertão (metáfora). Uma princesa, vá lá, mas princesa muito nua, muito madraça, muito suja e muito escavacada (disfemismo).
Disfemismo
Cannafistula era um chiqueiro (disfemismo). Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com gente. Nunca vi tanto porco (disfemismo).
Perífrase e ironia
Não pretendo levar ao público a ideia de que os meus empreendimentos tenham vulto. Sei perfeitamente que são miuçalhas (perífrase). Mas afinal existem. E comparados a outros ainda menores, demonstram que aqui pelo interior podem tentar-se coisas um pouco diferentes dessas invisíveis sem grande esforço de imaginação ou microscópio (ironia).
Disfemismo
Sei bem que antigamente os agentes munícipes eram zarolhos (disfemismo). Quando um infeliz se cansava de mendigar o que lhe pertencia, tomava uma resolução heroica: encomendava-se a Deus e ia à capital. E os prefeitos achavam razoável que os contraventores fossem punidos pelo Sr. Secretário do Interior, por intermédio da polícia.
Metáfora
O esforço empregado para dar ao Município o necessário é vivamente combatido por alguns pregoeiros de métodos
137
administrativo originais. Em conformidade com eles, deveríamos proceder sempre com a máxima condescendência, não onerar os camaradas, ser rigorosos apenas com os pobres diabos sem proteção (metáfora), diminuir a receita, reduzir a despesa aos vencimentos dos funcionários, que ninguém vive sem comer, deixar êsse luxo de obras públicas à Federação, ao Estado ou, em falta destes, à Divina Providência (Antonomásia).
Na finalização deste segundo relatório, no item “Projetos” a metonímia,
o tom irônico e a hipérbole, o epíteto são responsáveis pelo tom divertido do
artístico do trecho:
Iniciarei, se houver recursos, trabalhos urbanos. Há pouco tempo, com a iluminação que temos, pérfida, dissimulavam-se nas ruas sérias ameaças à integridade das canelas imprudentes (metonímia) que por ali transitassem em noites de escuro (epíteto). Já uma rapariga aqui morreu afogada no enxurro. Uma senhora e uma criança, arrastadas por um dos rios que se formavam no centro da cidade, andaram rolando de cachoeira em cachoeira e danificaram na viagem braços, pernas, costelas e outros órgãos apreciáveis. (ironia).
Perífrase / Metáfora
Ficarei, porém, satisfeito se levar ao fim as obras que aceitei. É uma pretensão moderada, realizável. Se não realizar, o prejuízo não será grande. O Município, que esperou dois anos, espera mais um. Mete na Prefeitura um sujeito hábil (perífrase) e vinga-se dizendo de mim cobras e lagartos (metáfora).
A partir do levantamento e das incidências das figuras de linguagem nos
relatórios de Graciliano Ramos, pode-se chegar a algumas conclusões sobre o
perfil destes textos e, desta forma, avançar na análise comparativa com o
gênero relatório.
Observou-se que o tom irônico é instaurado nos relatórios não somente
pelo uso da figura da ironia, mas pela soma desta com outras figuras que, no
138
conjunto, compõe um texto de qualidade estética que valoriza o tom jocoso,
metafórico e o poético.
A metáfora e a ironia predominam nos dois relatórios reforçando, assim,
o perfil conotativo dos relatórios. Dessa forma, estes textos se afastam do tom
oficial pertinente ao gênero relatório, caracterizando uma ruptura da
comunidade discursiva dos gabinetes e das instituições.
No primeiro, de acordo com o levantamento, o autor atribuiu ao texto um
tom mais irônico em relação ao segundo que, sobre aquele, valorizou mais o
disfemismo, ou seja, o tom sarcástico e difamador.
O tom irônico no primeiro e o mais irritado no segundo conferem aos
relatórios um perfil textual subjetivo, pois não só a visão, mas também a
emoção do escritor sobre um contexto se revela nos parágrafos, através da
expressividade conferida pelo uso das figuras.
A incidência destas figuras tem o poder, não só de transfigurar o sentido
e o estilo do texto, mas também o de revelar o sentimento e o ponto de vista do
autor, no momento da escrituração.
Nesse sentido, elas (as figuras) são reveladoras do cansaço do prefeito
escritor em relação à impessoalidade de garantir transformações sociais. Tanto
o é, que a carta de amor que escreve à Dona Heloísa traz um sentimento de
culpa por tocar no assunto política e sua insatisfação com o cargo.
São nos gêneros ficcionais que as figuras de linguagem desempenham
a essência de sua função – a de transformar a realidade e a de conferir
qualidade estética e de encantamento ao enunciado. Para o professor
Massaúd Moisés (2004, p. 188) são as figuras de linguagem “recursos
linguísticos que alteram a disposição normal dos membros da frase, com vistas
a criar um efeito imprevisto, não necessariamente de índole artística ou
erudita.”
139
Diferentes destes gêneros estão os que circulam na esfera das
organizações. A linguagem dos textos oficiais deve se aproximar o mais
possível da realidade, ou seja, o uso denotativo das palavras deve ser
valorizado para que, dessa forma, o texto incorpore o tom da objetividade e do
distanciamento dos sentimentos do autor e da mensagem.
Nos textos dos relatórios, a presença das figuras de linguagem
contribuiu para expressar os sentimentos do prefeito Graciliano Ramos sobre a
situação política e social do povo de Palmeira dos Índios, além de revelar o
potencial literário do escritor. São através delas, das figuras, que se torna
possível traçar o perfil homem, do gestor e do escritor Graciliano Ramos.
A presença das figuras que caracterizam a ironia e o disfemismo confere
aos relatórios públicos de Graciliano Ramos tom irônico e explosivo e retratam
o perfil de um gestor inconformado com a injustiça e com o abandono social,
recorrentes em Palmeira dos Índios.
Também é através das figuras que se conhece a retidão de caráter, a
firmeza e a conduta ética do prefeito que não via no setor público a chance de
enriquecimento fácil e nem a oportunidade para ganhar status e prestígio
social. Ao contrário, via no trabalho público o desgaste físico e mental, além do
fardo pessoal que as atividades municipais lhe conferiam.
Sobre isso, escreveu Graciliano, em uma das cartas de amor enviadas à
Heloísa:
A prefeitura? Sim, foi ela que interrompeu a viagem que eu tinha certa para amanhã. A propósito: que história é essa de posição elevada? Enganaram-te, minha filha. Para os cargos de administração municipal escolhem de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer dia renuncio. Por tua culpa, meu amor, toco num assunto desagradável e idiota. Isto não vale nada. (RAMOS, 1980, p. 97).
140
Ao elencar a palavra “renuncio” em sua carta, Graciliano Ramos já se
posiciona descontente com a realidade que vivia. Nos textos dos relatórios,
observa-se que as figuras de linguagem desempenharam tripla função.
Primeiro, são elas que conferem a estes relatórios qualidade estética e de
expressividade, proporcionando aos seus textos o tom e o sabor da arte
literária.
Também são elas as responsáveis pela transfiguração e transgressão
do gênero relatório, uma vez que rompem com o padrão da linguagem dos
textos oficiais, para atribuir ao texto um perfil conotativo e, portanto, passivo de
interpretações aguçadas pela imaginação do leitor.
Por último, o perfil e os sentimentos do gestor Graciliano Ramos podem
ser apreendidos através destas figuras. Está nelas a expressão de tédio, do
desgosto pela realidade política e social do município, da consciência crítica do
abandono e da violência vividas pelo povo do sertão. Mas, também está a
manifestação do caráter incorruptível e da seriedade do homem político, que
tratava com zelo e responsabilidade não só a sua administração, mas as
palavras que traduziam para ele o mundo e as vivências.
Para visualizar a presença das figuras de linguagem nos relatórios
públicos de Graciliano Ramos, dois gráficos foram elaborados para evidenciar
o perfil destes documentos através de suas incidências.
No primeiro gráfico, o objetivo foi representar e comparar os dois
relatórios através das recorrências das figuras de linguagem para que, desta
forma, seja possível verificar qual a figura que mais contribui para a
transgressão destes documentos.
No gráfico seguinte, a intenção foi a de evidenciar as figuras que mais
predominam nos dois relatórios, assim, facilitando a percepção do leitor sobre
as que mais foram utilizadas pelo autor.
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Gráfico 1 - Perfil dos Relatórios de Graciliano Ramos por Incidência das
Figuras de Linguagem
Fonte: elaborado pela autora a partir do levantamento das figuras de linguagem
presentes nos dois relatórios públicos de Graciliano Ramos.
142
Gráfico 2 - Figuras de Linguagem: incidências nos relatórios de
Graciliano Ramos
Fonte: elaborado pela autora a partir do levantamento das figuras de linguagem
presentes nos dois relatórios públicos de Graciliano Ramos.
143
CONCLUSÃO
O estudo dos relatórios públicos de Graciliano Ramos, na perspectiva da
transgressão do gênero relatório, foi uma forma de contribuir com o avanço das
informações sobre os gêneros discursivos e textuais, que circulam nas
comunidades discursivas da sociedade, por diferentes mídias, e de possibilitar
a divulgação de um expoente da literatura nacional como gestor municipal que
deixou marcas profundas de transparência e ética, na administração da cidade
de Palmeira dos Índios, através das ações e da linguagem.
No desenvolvimento da tese, buscou-se cumprir com o objetivo geral e
específicos propostos no inicio do seu estudo e apresentar respostas para as
indagações formuladas, que impulsionaram a pesquisa.
Informações sobre o gênero relatório, desde a formulação de seu
conceito, de suas características constitutivas à comunidade discursiva que o
adota, foram apresentadas a partir das concepções de autores que discutem o
tema. Verificou-se que o gênero relatório está muito presente na comunidade
discursiva institucional e, portanto, incorpora a linguagem e o tom oficial,
instituídos neste espaço. Constatou-se também, que é um gênero textual que
apresenta características discursivas secundárias, pois sua formulação exige
“condições de um convívio cultural mais completo e relativamente muito
desenvolvido e organizado” (BAKTHIN, 2010, p. 262).
O domínio discursivo dos textos oficiais, ou seja, o lugar de sua
produção e recepção, é o da instância organizacional, pública ou privada e,
como gênero, suas formas textuais são homogêneas, e sócio discursivo-
enunciativo.
Entende-se que esta tese ativou o estudo sobre a transgressão dos
gêneros, a partir da análise das incidências das figuras de linguagem nos
relatórios de Graciliano Ramos. Foi através da utilização destas figuras que o
escritor infringiu o gênero relatório e, desta forma, conferiu uma qualidade
estética e de expressividade nestes documentos oficiais.
144
Finalmente, para cumprir com o objetivo geral, o perfil do gestor público
e a promoção dos textos não ficcionais de Graciliano Ramos foram
apresentados no desenvolvimento desta tese. Como gestor público, observou-
se que Graciliano Ramos era além de criterioso, ético e responsável com as
atividades da prefeitura, suas contas eram detalhadas e registradas com
esmero. No texto dos relatórios, nota-se um homem que sabia o que dizer e
como dizer – não gostava de fazer rodeios. Sua escrita era enxuta e criativa,
seca, mas suave e, como conduzia a sua vida, era rigoroso com as palavras.
Foram os relatórios que revelaram o grande romancista ao País, e quem
os conhece e também suas obras, percebe que a qualidade estética e a
expressividade presentes nestes documentos foram replicadas em seus
romances futuros, o que possibilita um diálogo entre gêneros discursivos e
textuais.
A transgressão do gênero relatório, uma proposta dos objetivos
específicos, foi demonstrada através do levantamento e das incidências das
figuras de linguagem nos relatórios de Graciliano Ramos. O tom irônico e
muitas vezes satírico e pitoresco, presente nestes textos, foi alcançado através
do uso das figuras de linguagem.
No capítulo que se propôs a analisar os relatórios, observou-se o perfil
dos dois textos a partir das figuras de linguagem e constatou-se que no
primeiro o tom irônico e metafórico foi bem mais acentuado que no segundo.
No entanto, a expressividade mais jocosa e explosiva ganha destaque no
segundo. Neste, o autor demonstra sentimentos mais carregados de cólera e
desgosto, em relação ao primeiro.
Para conseguir este efeito de sentido, fez uso do disfemismo que é a
figura de linguagem que valoriza “o emprego de palavras contundentes,
irritadas, violentas, pertencentes à linguagem popular, ao calão e às gírias”.
(MOISÉS, 2004, p. 127). Construções textuais como “Cannafístula era um
chiqueiro. Encontrei lá o ano passado mais de cem porcos misturados com
145
gente. Nunca vi tanto porco [...], ou ainda “Uma princesa, vá lá, mas
princesa muito nua, muito madraça, muito suja e muito escavacada [...].”,
ambas presentes no relatório II comprovam o tom direto, desagradável e
carregado de bílis do prefeito escritor.
No desenvolvimento da tese examinou-se e identificou-se que os
gêneros discursivos e textuais preservam características retóricas e sócios
discursivas que contribuem para o seu reconhecimento e reprodução na
comunidade discursiva que se instauram.
No entanto, sabe-se que, frequentemente, a transgressão é um fato que,
na área da literatura, contribui para a evolução dos gêneros deste campo e é
mais recorrente.
Sobre isso:
No campo de estudos literários, onde se formalizou mais claramente a definição de gêneros textuais, o destaque é para a sua instabilidade, ao contrário dos folcloristas, que dão importância à estabilidade da forma. O que se evidencia é justamente a transgressão das normas para imprimir originalidade à obra. E Swales (1990) chama a atenção para a contribuição dessa área em relação à evolução dos gêneros, às variações nos exemplares do mesmo gênero e ao papel do autor e da sociedade, que determinam as mudanças. (BIASI-RODRIGUES, ARAUJO e HEMAIS, 2009, p. 20).
Por outro lado, o dos gêneros oficiais, a violação de determinado gênero
textual é menos recorrente, pois nas esferas institucionais as convenções do
discurso oral ou escrito são mais regradas e estáveis.
Diz a estudiosa e literária alagoana Vera Romariz (2008, p. 19):
As regras da redação oficial mudam muito lentamente, porque seu objetivo cristalizado é a informação clara, objetiva, precisa, que não dá margem à leitura mais transversal e oblíqua, terreno dos criadores; mas o discurso literário é algodão em rama, bicho manhoso. Nela há sempre frestas onde se pode entrar até a arca dourada de uma multiplicidade de sentidos, o que fez o prefeito Graciliano Ramos utilizar, como escritor, a
146
liberdade compositiva do avanço do gênero, para fincar um conteúdo social com forma híbrida.
A transgressão presente nos relatórios de Graciliano Ramos confere um
desvio do gênero relatório, no entanto, esta tese aponta que a contravenção
não foi realizada pelo autor por ignorância às normas constitutivas do gênero
dos textos oficiais, mas pela sua intenção em ampliar a mensagem e, desta
forma, dizer muito além das palavras escritas e lidas. Assim, conclui-se que
estes relatórios cruzam suas características com os gêneros jornalísticos
interpretativo e utilitário. As informações divulgadas na mídia oficial da época
cumpriram a função comunicativa na transmissão da gestão pública, de
maneira figurada, mas útil e compreensível ao seu público.
O prefeito escritor utilizou as figuras de linguagem como meio para
atingir o seu objetivo estético e discursivo, através dos relatórios.
O prefeito de Palmeira dos Índios revelou-se para o público através de
seus relatórios oficiais, artísticos, irônicos, poéticos, secos, mas suaves como
algodão em rama.
Somente um escritor com o perfil de Graciliano Ramos para conseguir o
texto híbrido misturando os gêneros da literatura artística com os da literatura
oficial e que resiste ao longo dos anos com vívido interesse para estudos
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147
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