ALEXANDRE DIEHL OTTMANN
A CONTRIBUIÇÃO DE SCHOPENHAUER PARA UMA PERSPECTIVASOBRE O SOFRER E O MORRER
CANOAS, 2007
ALEXANDRE DIEHL OTTMANN
A CONTRIBUIÇÃO DE SCHOPENHAUER PARA UMA PERSPECTIVA SOBRE O SOFRER E O MORRER
Trabalho de conclusão apresentado para a bancaexaminadora do curso de Filosofia do CentroUniversitário La Salle – Unilasalle, como exigênciaparcial para a obtenção do grau de Licenciado emFilosofia, sob orientação do Prof. Ms. RobertoRoque Lauxen.
CANOAS, 2007
Quem agüentaria fardos,Gemendo e suando numa vida servil,Senão porque o terror de alguma coisa após a morte –O país não descoberto, de cujos confinsJamais voltou nenhum viajante – nos confunde a vontade,Nos faz preferir e suportar os males que já temos,A fugirmos pra outros que desconhecemos?E assim a reflexão faz todos nós covardes.
William Shakespeare
O inferno do mundo excede o inferno de Dante, no pontoem que cada um é o diabo do seu vizinho; há também oarquidiabo superior a todos os outros, é o conquistadorque dispõe milhares de homens em frente uns dos outrose lhes brada: ‘sofrer, morrer, é o vosso destino; portantofuzilem-se, canhoeiem-se mutuamente!’ e eles assimprocedem.
Arthur Schopenhauer
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 4
2 O SUICÍDIO COMO AFIRMAÇÃO DA VONTADE DE VIDA ................................. 6
3 METAFÍSICA DA MORTE: A IMORTALIDADE DA ESPÉCIE ..............................16
4 VIVER É SOFRER ...................................................................................................32
3 CONCLUSÃO ......................................................................................................... 47
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 49
1 INTRODUÇÃO
Nesta monografia se buscará analisar e interpretar filosoficamente as principais
obras de Arthur Schopenhauer, visando à uma melhor compreensão sobre os
sofrimentos da vida, sobre o suicídio ou mesmo sobre a própria morte. A
contribuição deixada por este filósofo será aqui resgatada em uma tentativa de
elucidação desses temas radicais da Filosofia. Essa é a perspectiva a que se propõe
com a apresentação deste trabalho. E para entender melhor esses elementos, será
estudada e pesquisada, nas obras do filósofo alemão, uma perspectiva que
possibilite maior clareza no entendimento acerca do que seria a vida humana, qual
sua relação com a dor, com a morte, qual o sentido mesmo da existência e ainda
qual o papel do homem neste mundo. Necessariamente também se buscará
entendimento sobre o próprio mundo, para poder compreender seus elementos e
suas relações.
Será dedicada uma especial atenção à questão do suicídio e a forma como
esse tema se encaixa no todo da filosofia de Schopenhauer, a partir, sobretudo, do
que ele chama de “afirmação da vontade de vida”. E ao colocar de início o foco da
pesquisa nesse assunto, pretende-se ir diretamente ao extremo do conflito
existencial do homem consigo mesmo para compreender se ali está um ato de
coragem ou de covardia, de afirmação ou de negação do querer viver. Entende-se
que, uma vez elucidada essa questão, mais amplo estaria o horizonte de
compreensão sobre os tormentos da vida, possibilitando maior facilidade de
entendimento ao abordar, no capítulo seguinte, o tema da morte.
Intenciona-se compreender também se o suicídio está mais relacionado à
morte ou à vida, se estaria o suicida ávido por morrer ou viver. Em seguida, a partir
do resultado encontrado, as buscas se voltariam para um entendimento sobre a
morte, à luz da filosofia de Schopenhauer, que com muita propriedade escreveu
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sobre o assunto. A análise se daria então sobre vários aspectos, entre eles,
primordialmente, os tipos de abordagem sobre o morrer, a abordagem metafísica e a
empírica fenomênica. E ao direcionar a reflexão para essas abordagens em si,
adentrando-as em todas as suas possibilidades, certamente surgirão questões a
serem explicitadas sobre o ser e o não-ser, sobre nascimento e morte do indivíduo,
sobre a relação entre indivíduo e espécie, e sobre esta última com o querer viver em
si. O final dessa reflexão deverá mostrar mais claramente em que consiste o medo
da morte e em que esfera ontológica do ser ele está, se está na dimensão racional
ou irracional do ser, e ainda a quem se referem essas dimensões do ser, ao
indivíduo que nasce e morre ou ao homem enquanto idéia ou espécie.
Por derradeiro, após pesquisados e elucidados vários pontos da filosofia
schopenhauriana, como morte, suicídio, afirmação ou negação da vontade de vida, a
própria vontade de vida, o medo da morte e o sentimento de imortalidade do ser,
esta monografia abordará detalhadamente o principal princípio da filosofia de
Schopenhauer, de que viver é sofrer, e o explicitará em análise rica em exemplos
que facilmente remeterão às vivências contemporâneas, dada a relevância e a
atualidade da matéria em tela. A partir da perspectiva dolorosa da vida diária do
indivíduo, o cerne da questão passa a ser, não um consolo, mas uma crua
constatação da realidade do homem como ser desejante, eternamente em busca de
objetos. Também uma análise sobre a profunda dor entediante de ter os desejos
satisfeitos. Assim, mostrando a luta diária do homem pela existência, a pesquisa
mostrará seus resultados resgatando a riquíssima contribuição de Schopenhauer
para uma perspectiva sobre vida, morte e, sobretudo, sofrimento.
2 O SUICÍDIO COMO AFIRMAÇÃO DA VONTADE DE VIDA
Aquele que comete suicídio não quer acabar com a vontade de viver; ao
contrário, defende essa vontade tão intensamente que quer acabar com os
obstáculos que a prejudicam, mesmo que um desses obstáculos seja sua própria
individualidade, sua própria vida.
Como a causa maior dos sofrimentos humanos, bem como das alegrias, reside
não no presente real, mas em pensamentos abstratos, são estes que nos criam
freqüentemente tormentos insuportáveis, diminuindo, às vezes até quase a sua
totalidade, a sensibilidade para a dor física. Nesse grau de sofrimento espiritual, de
desespero e desânimo crônicos, o suicídio fica bastante fácil, embora se estivesse
em condição mais confortável esse homem tremeria diante da idéia de tirar sua
própria vida.
Nada é mais distante da negação da vontade de viver do que a supressão de
um de seus fenômenos individuais através do suicídio. Pois a vida, tratada por
Schopenhauer do ponto de vista metafísico, é pura Vontade de vida, ou seja, é um
princípio vital anterior ao intelecto, portanto irracional, próprio de todo ser que vive e
que a todo momento busca sua afirmação: a afirmação da vontade de vida da
espécie. Essa espécie que quer manter-se viva a todo instante, por isso sentimos
vontade de nos alimentar, vontade de fazer sexo, vontade de defecar e ainda
respiramos independentemente de nossa racionalidade.
Nesse sentido, Schopenhauer afirma:
O suicida quer a vida; porém está insatisfeito com as condições sob asquais a vive. Quando destrói o fenômeno individual, ele de maneira algumarenuncia à Vontade de vida, mas tão-somente à vida. Ele ainda quer a vida,quer a existência e a afirmação sem obstáculos do corpo, porém, como acombinação das circunstâncias não o permite, o resultado é um grandesofrimento. (2005, p. 504).
A vontade de viver, termo tão presente na obra de Schopenhauer, é o que
move o ser vivente, é o que o motiva em suas ações. É ela que aparece no ato do
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suicídio (morte auto-imposta), no prazer da auto-conservação e no desejo do ato
sexual, que é o ato da procriação, da geração de novos fenômenos, da tentativa
constante e irracional de perpetuação da espécie. Mas o suicida também quer
perpetuar a espécie, por isso ele nega e quer acabar somente com um determinado
indivíduo da espécie, no caso ele próprio, que está sofrendo e tendo dificuldades
para existir e viver. Nesse ponto reside o erro de sua ação: é impossível fugir ao
sofrimento da vida, pois a esta o sofrimento é essencial.
O que leva o indivíduo a suprimir seu corpo é justamente a enorme força de
seu apego à vida, juntamente com a sua extremada revolta contra a travação da
mesma, ou seja, contra o sofrimento. Por isso Schopenhauer (2005, p. 505) diz que
“Precisamente porque o suicida não pode cessar de querer, cessa de viver. A
Vontade se afirma aqui justamente pela supressão de seu fenômeno, pois não pode
mais afirmar-se de outro modo”.
Embora a pretensão aqui não seja discorrer longa e aprofundadamente sobre
a idéia de Vontade de vida em Schopenhauer, torna-se muito pertinente uma rápida
abordagem sobre tal termo, para fins de maior entendimento quando de seu
emprego no discurso schopenhauriano sobre os temas propostos nesta obra, quais
sejam: o suicídio, o sofrimento e a morte. Para tanto, é importante trazer as
seguintes considerações:
1º) a vontade de vida é a essência íntima do homem;
2º) em si essa vontade é cega e desprovida de conhecimento;
3º) o conhecimento é um princípio estranho à origem e é acrescido mais tarde
à vontade;
4º) há uma luta entre conhecimento e vontade, e Schopenhauer (2002, P. 26)
ressalta a supremacia que o conhecimento deve ter sobre a vontade, como afirma:
“O conhecimento, ao contrário, bem longe de ser a causa do apego à vida, atua em
sentido oposto; ele revela o pouco valor da vida, e combate, desse modo, o medo da
morte”.
Para Schopenhauer, faz parte do conceito de Vontade de vida a idéia de
similitude entre os homens e os animais nessa dimensão irracional do ser vivente à
medida que em cada animal, como em cada homem, há um reconhecimento da
espécie. Havendo esse reconhecimento, tem-se refletida a vida temporal, ou seja,
sucessiva e renovada, em cada novo indivíduo, idêntico aos de sua espécie, a
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despeito de milênios de decomposições e mortes que em nada afetam o novo ser
gerado, que, em termos de espécie, é sempre o mesmo e sempre no mesmo e único
tempo existente, ou seja, o presente.
Cada geração de indivíduos é uma renovação da espécie, ou melhor, uma
renovação da matéria da espécie. E quando se fala em geração, subentende-se o
desaparecimento, a aniquilação de fenômenos ou objetivações da Vontade de vida e
o nascimento de novos indivíduos que, em idéia, são idênticos aos que morreram.
Razão pela qual a morte, para a espécie, é ilusória e não parece ter outro fim que
não o de renovar a matéria orgânica que compõe os indivíduos, em um movimento
cíclico que eterniza a natureza.
Por esse motivo é que Schopenhauer expõe:
Cada idéia, isto é, cada espécie de ser vivente, persiste por completointocada pela sucessão contínua dos indivíduos que ela encerra. A idéia, oua espécie, é a raiz, o lugar onde se manifesta a vontade de vida: é o únicoelemento cuja duração importa verdadeiramente à vontade. (2002, p. 45).
Esse ciclo de nascimento, sofrimento e morte é eterno e imutável e inerente a
cada indivíduo que vive. O suicida, então, não deveria querer evitar o inevitável, ou
seja, evitar o sofrimento, pois este pode contribuir para a supressão, não de uma
vida individual, mas da raiz, ou seja, supressão da Vontade de vida, cujo fenômeno
é cheio de dor. Ao fazer isso, seria despertado no suicida o conhecimento da
essência verdadeira do mundo, e não mais se suicidaria, mas entenderia que o
sofrimento e a resignação diante dele é que daria elementos para compreender que
a vida como um todo é pura dor. Enxergando dessa maneira, ele aprenderia com a
própria vida, vivendo seu sofrimento até o fim de sua efêmera objetivação individual,
que a mesma vida não vale a pena ser vivida, nem por ele, nem por ninguém.
E é nesse dar-se conta de que a vida não vale a pena onde reside a negação
da Vontade, que é a possibilidade de libertação do sofrimento. Possibilidade essa
que o suicida rejeita ao destruir o fenômeno da Vontade, o corpo, de modo que a
Vontade mesma permanece, prosseguindo seu ciclo, criando gerações sucessivas
de sofredores. Esta é uma das razões, talvez a principal, por que, como diz
Schopenhauer (2005, p 505) “todas as éticas, tanto filosóficas quanto religiosas,
condenam o suicídio, embora elas mesmas nada possam fornecer senão estranhos
argumentos sofísticos”.
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Arthur Schopenhauer também analisa os casos em que o suicídio é estendido
às crianças, ou seja, o pai mata os filhos que tanto ama e depois se mata. E assim
ele interpreta inicialmente:
A vontade do indivíduo se reconhece imediatamente nas crianças, todavia,enredada na ilusão que envolve o fenômeno como se fosse a essência em sie, ademais, profundamente abalado pelo conhecimento da miséria de todavida, acredita que, ao suprimir o fenômeno, também suprime a essênciamesma; portanto, deseja resgatar-se e aos seus filhos, nos quais vêimediatamente a si viver, da existência e de suas penúrias. (2005, p. 506).
Evidentemente que, seguindo a linha de raciocínio até aqui adotada,
Schopenhauer não só discorda de tal modalidade de suicídio, como também rejeita
a prática do aborto e a imposição da morte voluntária e precoce ao recém-nascido
sob o pretexto de impedir “caridosamente” que o novo exemplar humano não sofra
as inevitáveis penúrias da existência. E apresenta para tanto o argumento de que a
Vontade de vida existe exclusivamente como metafísica e violência alguma pode
quebrá-la, mas tão-somente destruir seu fenômeno, em um espaço e em um tempo.
Só o conhecimento poderia garantir a libertação da Vontade.
O único caminho para a salvação é que a Vontade, aparecendo livremente,
conheça a sua essência. Somente em conseqüência deste conhecimento ela pode
suprimir a si mesma e, assim, também pôr fim ao sofrimento inseparável de seu
fenômeno. Isso, entretanto, não é possível por violência, como a destruição do
embrião, a morte do recém-nascido ou o suicídio.
Apenas um único tipo de suicídio seria aceito segundo a filosofia de
Schopenhauer. E não somente aceito, como também louvável, visto tratar-se da
morte por inanição voluntária. Esse tipo peculiar de suicídio pode ser decorrente da
negação da vontade por ela mesma, como exposto no parágrafo anterior, porém em
um grau tão elevado em que acabe por negar inclusive a vontade necessária para a
conservação básica da vida vegetativa do corpo pela ingestão de alimentos. É um
suicídio que se poderia traduzir literalmente por “morrer de fome”, mas com a
característica fundamental de que ele é fruto de uma postura voluntária.
Essa última espécie de morte auto imposta é a mais pura negação da vontade
de vida, ou da vida no sentido metafísico, pois a vida no sentido individual, efêmero
e fenomenológico, pouco importa àquele que se desapegou inclusive da própria
alimentação, encarando com ironia o clamor do corpo por manter-se vivo. Já o
suicida comum, aquele que quer viver e não encontra condições existenciais e
espirituais para que a vontade de vida se objetive plenamente em seu ser particular,
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esse suicida não ignora a vontade vida, não a deixa ir embora sozinha, não a deixa
desaparecer por si só. Ele tem tanta vontade de viver que o que ele mata na
verdade é a relação travada e infrutífera de sua individualidade com o mundo por ela
representado, porém não acabando com a vontade de vida, pois esta não se viu
sofrendo por muito tempo, e por isso não se reconheceu no sofrimento e, logo, não
desistiu de si mesma. E foi seguindo essa linha que Marie-José Pernin (1995, p.
137) afirmou que “o suicídio infringe o tabu da morte, oferece a expressão
paroxística da vontade de viver, no limite do autodilaceramento. Quem se mata não
deixou de querer viver, e, por isso, ainda obterá a vida.” O suicídio, por não
conseguir acabar com o querer viver, não oferece a possibilidade de extinguir o
sofrimento, próprio da vida e do viver; ao contrário, ele aposta que a vontade de
vida, cuja objetivação teve dificuldades em determinado indivíduo, retorne na
próxima geração revigorada, renovada, e em melhores condições de dar
continuidade ao eterno ciclo da natureza, de nascimento, doença e morte.
O autodilaceramento que é conseqüência da insuportabilidade dos
sofrimentos da vida apenas aumenta e coloca esse sofrimento no topo da escala da
agressão e da tortura para o homem que dessa forma procede. Tanto é assim que
não há a mínima possibilidade de um abrandamento da dor ao tirar-se a própria vida,
como se poderia pensar de forma ilusória, afinal, depois do fato consumado, não
haverá mais consciência para reconhecer ou perceber a suposta paz a que o ato
conduziria. Bem assim observou Pernin (1995, p. 171) quando disse que o suicídio é
“a ilusão mais temível, pois aquele que põe fim violentamente aos seus dias
confunde o fenômeno e a coisa em si. Longe de conquistar a serenidade, o homem
que se suicida leva a violência ao auge.”
Do exposto até aqui, já se pode dizer que há argumentos filosóficos contra o
suicídio. Argumentos dignos de respeito, pois colocam a questão no contexto da
racionalidade, da argumentação e, portanto, passíveis de serem colocados em
debate dessa ordem. Distanciam-se em muito de predicativos deselegantes e
desrespeitosos encontrados no âmbito religioso contra o suicídio. O que, mesmo na
esfera teológica, carece de sentido, pois nem o Antigo nem o Novo Testamento
desaprova expressamente quem decide tirar sua própria vida. Daí se depreende
que, não sendo as Escrituras fonte argumentativa contra a prática aqui em questão,
os argumentos advindos daquela área são construídos pelos próprios pregadores da
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fé, de acordo com o potencial reflexivo de cada um. Capacidade essa que, nesse
particular, parece fraca, porque não conseguem atacar o suicídio com sérios
argumentos, mas somente com insultos do tipo “loucura” ou “sandice”.
Schopenhauer parece querer ensinar como realmente se pode argumentar
com razões apropriadamente filosóficas contra o suicídio. Mas primeiro ele mostra
as bobagens que são ditas e aceitas sobre o tema:
Así nos toca oír decir que el suicidio sería la más grande vileza, que seríaposible sólo en un estado de locura, y otras sandeces de este género. Otambien la frase, privada de sentido, según la cual el suicidio sería injusto,mientras evidentemente nadie en el mundo tiene un derecho tanincontestable sobre nada como sobre su propia persona y sobre su propiavida. (1998, p. 144).
Uma demonstração simples de que o suicídio não está efetivamente
associado a esse horror todo pintado, não só por religiosos, mas também pela
grande maioria das pessoas, é a impressão que nos causa uma notícia de suicídio
de um conhecido nosso em comparação com uma notícia de que esse conhecido
cometeu um assassinato de uma criança após estuprá-la. Enquanto esta última nos
provoca indignação e desejo de que se lhe aplique uma forte punição, a primeira
notícia no comove com tristeza e compaixão, podendo às vezes até despertar certa
admiração pela sua coragem.
Como que mostrando aos Cristãos um argumento racional eficiente contra o
suicídio que pode ser utilizado a partir do ponto de vista religioso, Schopenhauer
(1998, p. 149) diz que “el cristianismo lleva en su interior la verdad según la cual el
sufrimiento (la cruz) es el verdadero objetivo de la vida, por esso rechaza el suicidio,
porque es contrario a este objetivo”. Simples e direto ao ponto. Esse argumento, sim,
é um argumento válido. Ora, ir contra o suicídio dizendo apenas que é uma loucura
renunciar à vida, sem estar apoiado nem pela Bíblia nem por uma argumentação
séria, indicaria um cego comprometimento religioso com algum tipo de otimismo
pragmático e infundado, apoiado em crenças como “a vida é bela” ou “Deus criou um
mundo maravilhoso”.
O suicídio, de outra parte, não pode ser entendido como uma porta de saída
da vida e seus sofrimentos. Em certo momento da obra El dolor del mundo y el
consuelo de la religión, em que Schopenhauer faz algumas considerações sobre o
suicídio, ele chega a referir-se à morte como uma “porta de saída”. Mas a porta de
saída a que ele se refere é unicamente a morte, não o suicídio, embora este último,
quando consumado, leva ao nada, ou seja, à morte.
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O suicídio não é a salvação, mas a morte sim. A morte como negação da
vontade de viver, não como evasão dos sofrimentos inerentes à própria condição
humana. Veja-se, por exemplo, a seguinte passagem:
Cuando el hombre llega a la conclusión de que los horrores de la vidasobrepasan a los horrores de la muerte, pone fin a su vida. La resistencia alos terrores de la muerte es, no obstante, notable: se encuentran, por asídecirlo, como guardias ante la puerta de salida (1998, p. 150).
O medo da morte é inato, animal e, portanto, irracional. Por mais que
pensemos nos horrores da vida, e no quanto ela não vale a pena ser vivida, ainda
assim nosso intelecto terá que superar “os guardas da porta de saída”, que é a
nossa resistência ao suposto terror da morte. Por exemplo, um asceta,
extremamente tolerante com os sofrimentos e as dores do mundo, por mais
desapegado que seja da vontade de viver, ainda assim essa pessoa, ao colocar sem
querer a mão em uma panela quente, puxará rapidamente o braço, pois o reflexo
corporal, físico, material, a sinapse de seus neurônios o motivará a agir e a
autoconservar-se antes mesmo que ela possa raciocinar sobre a dor e o quanto ela
pode ajudá-lo a negar seu querer viver.
O medo da aniquilação do corpo é o que provoca a resistência inconsciente
perante a morte. A vontade de viver, inerente a todo ser que vive, é o próprio corpo
vivente, que, no caso do homem, é condição sine qua non para o surgimento do
intelecto, da racionalidade. Dessa forma, entenda-se claramente que, antes da
razão, vem o corpo, o cérebro, a vontade de viver materializada ou objetivada, que
nos acompanha por toda nossa vida de indivíduos. E é essa vontade de vida que
teme a morte irracionalmente sempre que esta se aproxima. O homem, através do
intelecto, pode ampliar em muito esse sentimento de medo da morte, para uma
angústia resultante da pré-ocupação mental com o futuro, com o ausente e com o
desconhecido, com a morte. Por isso Schopenhauer diz que a musa da Filosofia é a
morte, porque esta aparente eliminação do ser nos dá toda a inquietação necessária
para uma conversão filosófica de pensamento.
Trazer em si a consciência de sua morte significa dizer que não há completo
distanciamento da idéia de morrer, implicando em uma relação próxima e ao mesmo
tempo obscura do homem com a morte humana. Essa relação pode se dar no
campo da razão (representação) ou do corpo (Vontade). No âmbito da razão, é
possível, e até com certa facilidade, compreender o quão ausente de sentido é o
medo angustiante da morte. Por outro lado, na esfera meramente física, não há
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outra maneira de convencer o corpo a desfazer-se desse medo, se não através do
próprio corpo, fazendo a vontade de viver enxergar a si mesma e ver a sua imagem
refletida no espelho da dor do mundo, ou seja, na vida sofrida. Mas isso não é fácil,
requer supremacia e domínio constante do intelecto sobre o corpo, conduzindo-o a
todo instante pelo caminho da carência e da insatisfação.
Aquele que inverte esse propósito, ou seja, deixa-se guiar pelos desejos, pelo
corpo, pela vontade de viver, pela satisfação sexual, pela satisfação da segurança,
do agasalho, do alimento, etc, esse que foge sempre da dor de desejar, pode um dia
não encontrar os meios necessários para satisfação de alguns desses desejos e
então, não agüentando mais a dor da insatisfação, da qual sempre fugiu, suicida-se.
Para esse homem, digno de compaixão, a dor física do mutilar-se tornou-se pequena
perante a dor espiritual, perante o desespero de viver em condições extremamente
contrárias e adversas à idéia de viver que ele tinha.
Ciente disso, Schopenhauer escreveu:
Si sufrimos mucho o continuamente en el cuerpo seremos indiferentes acualquier outro sufrimiento: lo que deseamos es, sobre todo, nuestracuración. Des mismo modo, fuerte sufrimientos espirituales nos vuelveninvensibles hacia los físicos: los despreciamos. Y si por casualidad nossobrevienen, pueden convertirse para nosotros hasta en una benéficadistracción, una pausa en el sufrimiento espiritual. Esto es lo que facilida elsuicidio, en cuanto que el dolor físico que comporta pierde toda importanciapara quienes están afligidos por gravísimos sufrimientos espirituales (1998,p. 150).
Não restam dúvidas, pois, de que é a vontade de viver manifestada no corpo
que, irracionalmente, teme a morte, pois, sendo ela cega, desprovida de intelecto,
abarca toda a espécie dentro do indivíduo em que se objetivou e cuja aniquilação,
consequentemente, seria como se fosse de toda a espécie. A razão pode dizer que
a morte de um indivíduo não é a morte da espécie. Mas a vontade de vida objetivada
no corpo não enxerga além de si mesma, não enxerga além de sua determinação
individual. Por isso, teme o fim de sua efêmera manifestação como se fosse o fim do
todo da espécie, como se fosse uma morte metafísica do ser.
Importante ressaltar que o temor do querer viver não é apenas perante um
caráter puramente negativo dessa morte metafísica, como se o ser simplesmente
passasse para o não-ser. O medo também é diante de um aspecto positivo da
morte, qual seja, o próprio ato de morrer, o ato em si da exterminação do fenômeno,
a ação positiva da decomposição orgânica, do apodrecimento da carne, enfim, o
medo diante do desfazer de uma obra que não mais existirá da mesma forma.
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Schopenhauer (1998, p. 50), a propósito desse aspecto positivo da morte assim
afirmou: “Pero hay en este final algo positivo: la destrucción del cuerpo. Esto es lo
que da miedo, precisamente porque el cuerpo es la manifestación de la voluntad de
vivir.” O medo da morte em seus aspectos negativos e positivos consiste, portanto,
em temer não ser mais o que se é e, por outro lado, temer ser destruído, desfeito,
aniquilado pela ação da morte.
O suicida não teme nenhum desses dois aspectos da morte: nem o positivo,
nem o negativo. A extremada dor espiritual ou física da qual ele foge é o empecilho
que lhe rouba as condições de vida que seu querer viver exige e em vista do qual
desespera por não estar conseguindo objetivar-se a contento. E chegando aos
limites de suas possibilidades de resistência, faz o caminho inverso, ou seja,
antecipa seu fim e pratica com suas próprias mãos aquela positividade naturalmente
reservada ao destino, justamente porque queria muito viver em condições favoráveis
e algo não o permitia. Morre querendo viver, eis o paradoxo do suicídio.
A experiência de morrer querendo viver é comparada por Arthur
Schopenhauer com o repentino despertar de um pesadelo:
Cuando en medio de pesadillas horribles la angustia llega a un gradoextremo, es justo ella la que nos hace despertar, com lo que desaparecentodos esos monstruos nocturnos. Lo mismo sucede en el sueño de la vida,cuando el grado extremo de angustia nos impulsa a despedazarla. (1998,p. 151)
Fugir do sofrimento através do suicídio é como acordar para acabar com um
sonho ruim. Nesse caso, o sonho ruim é a vida. O antídoto para a vida é a morte. E
o suicídio, somente em aparência, parece ser uma genuína vontade de morte. Mas,
de fato, como já vimos, não é outra coisa senão uma extremada vontade de viver.
Negar a vida, ou ter uma vontade de morte, é anular a vida e aceitar plenamente os
sofrimentos e as dores do mundo, que são a sua legítima negação. Ora, seguir
vivendo negando a vontade de viver, esse é um estágio em que o suicida está
prestes a chegar, praticamente a um passo disso, mas não o alcança. E não o
alcança porque não coloca sua vontade de satisfação maximamente insatisfeita a
serviço da razão. Se assim o fizesse, compreenderia racionalmente que viver é
desejar, portanto sofrer, e seu corpo se resignaria com esta filosofia após sentir
repetidamente em sua carne e nervos as penúrias da experiência vital, da mesma
forma que um animal selvagem se deixa domar após o fracasso de todas as suas
incontáveis investidas contra o domador.
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O suicídio claramente está mais vinculado à vida do que à morte. E esta
última não pode ser considerada um mal, nem um bem, justamente porque não há
como constatar isso, uma vez que ela torna ausente a consciência e esta, por sua
vez, quando existe, quem está ausente é a morte, como lembram os epicureus. No
entanto, o suicida, que potencialmente pode ser qualquer homem, não segue uma
vida regrada por esse tipo de máxima. Pelo contrário, guia seus passos buscando
equivocadamente a tranqüilidade da alma em algo fora dela, ou seja, no que há de
mais inquietante, desesperador e angustiante no ser humano: no desejo. Assim,
busca a satisfação como um desesperado e ao mesmo tempo foge dela e do caráter
entediante de sua conquista como se fugisse de uma praga mortal. Dessa forma,
pode-se dizer que, até o ato de se matar, caracteriza-se o suicídio pelo mais alto
grau de inquietude e combate inerente à formação do indivíduo entre o desejo e o
tédio de sua satisfação. Dito de outra forma, o suicida é aquele que buscou na morte
a continuidade de um movimento que deu o ritmo dos seus dias de vida e que em
algum momento parou, deixando o pêndulo parado apenas em um lado. Esse
movimento é a luta entre o sofrimento da insatisfação com o estado atual e o
sofrimento do tédio da satisfação no estado atual. Romper intencionalmente esse
movimento e agüentar até o fim suas conseqüências é a possibilidade de libertação
com a qual Schopenhauer nos acena, chamando-a de negação da vontade de viver.
3 METAFÍSICA DA MORTE: A IMORTALIDADE DA ESPÉCIE
A ocupação intelectual com a morte é sempre pré, ou seja, preocupação, dada
a impossibilidade de pensar na morte, ou simplesmente pensar, quando se está
morto. Essa é a origem da angústia diante da morte.
O animal tem medo da morte quando esta se aproxima e torna possível sua
captação pelos sentidos. Assim também é para o homem, em sua dimensão
primeira, que é animal, é corpo. A partir do corpo, vem a razão, que busca conhecer
ou pensar sobre as coisas. E o problema começa quando voltamos o pensamento
para a morte, que nunca é, pois quando ela é, não seremos mais, estaremos sem
consciência inclusive para nos percebermos mortos. A angústia humana indissolúvel
perante a idéia de morte faz surgir várias questões que dão origem a inúmeras
doutrinas filosóficas e religiosas.
Com relação à simplicidade da vida animal e à complexidade da vida humana,
pode-se dizer que há um abismo que as separa, uma vez que, como disse
Schopenhauer (2002, p. 23), “o animal vive sem ter conhecimento da morte: por isso
o indivíduo do gênero animal desfruta imediatamente de toda a imutabilidade da
espécie, visto que só tem consciência de si como infinito”. O indivíduo animal não
sabe que vai morrer, mas morre. O indivíduo da espécie humana igualmente se
desfaz, com a brutal diferença de que ele sabe previamente que isso vai acontecer.
A partir dessa consciência da própria morte desenvolve ou absorve idéias
metafísicas consoladoras para esse desfecho. Idéias como doutrinas religiosas ou
filosofias sobre vida e morte. Tudo dentro da dimensão da racionalidade, do
intelecto, dentro do mundo das idéias, do mundo da representação fenomênica.
Sem a razão, estaria tudo bem e tranqüilo, mas com ela, sempre ali junto
avisando que a morte para aquele corpo um dia chegará, surge a mais profunda
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inquietação, raiz originária da teologia, da filosofia e, na ausência de ambas as
concepções, podem surgir as perturbações mais aflitivas do espírito humano.
A angústia aparece de fato, então, quando um ser humano se percebe como
indivíduo, não como espécie. Pois a espécie não termina, o indivíduo sim. E
pensando assim individualmente, vê o seu fim com desespero e do qual foge porque
sua vontade de vida está presente e impregnada no seu corpo particular, fundindo-
se com ele e sendo ambos uma e a mesma coisa. O corpo, vontade cega de vida,
não enxerga além de si próprio e se quer eterno porque é todo querer, é todo
vontade de viver.
Reafirmando o acima dito acerca da origem da consolação filosófica metafísica
como antídoto à dor pela consciência da morte, assim se expressou Schopenhauer:
Entre os homens surgiu, com a razão, por uma conexão necessária, acerteza terrível da morte. Mas, como sempre na natureza a todo mal édado um remédio, ou pelo menos uma compensação, então essa mesmareflexão, que nasce da idéia da morte, também nos leva às concepçõesmetafísicas consoladoras, das quais a necessidade e possibilidade sãoigualmente desconhecidas ao animal (2002, p. 23).
Um alerta, no entanto, deve ser feito. E é no sentido de que não é qualquer
consolação metafísica que pode compensar adequadamente o sofrimento da
certeza de morrer. É preciso haver consistência na teoria, para que ela realmente
resista a todos os testes que a racionalidade pode lhe impor. Uma noção frágil e
inconsistente afastará o indivíduo, talvez para sempre, de uma compreensão mais
sólida e adequada a respeito da morte.
Ensinar ao homem muito cedo, quer dizer, ao homem de pouca idade, muito
jovem, noções metafísicas consoladoras à certeza de seu fim, é uma atitude, no
mínimo, temerosa, dados os efeitos trágicos que podem dela advir. Por ser muito
jovem, o aprendiz, ou melhor, o imberbe crente, talvez receba a dose do remédio
proporcional à sua idade: uma dosagem praticamente pediátrica, infantil. Algo que
certamente perderá seu efeito quando seu espírito estiver mais amadurecido e com
maior capacidade de reflexão. Quando chegar esse dia, a doutrina frágil e
inconsistente que ele trazia desde garoto virá à tona completamente desprovida de
sentido e, o que é pior, tendo já perdido o caráter consolador que até então ela tinha
como compensação da certeza da morte. Um exemplo de doutrina frágil e
inconsistente poderia ser, segundo Schopenhauer (2002, p. 24), ensinar ao indivíduo
do gênero humano “que apenas há instantes veio do nada, que portanto por toda
uma eternidade ele não era nada, e malgrado isso, no futuro deverá ser imortal, é
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como ensinar-lhe que, embora seja ele a obra de um outro, no entanto deve ser
responsável por seus atos e conduta por toda a eternidade”. Tal crença, observada
agora com nitidez reflexiva, revela-se, além de desprovida de sentido, também
sádica e cruel. Afinal, ninguém pediu para nascer e ser arrancado da paz do nada
para, a partir de sua criação, ser colocado em um mundo cheio de vivências
dolorosas, no qual se tem ainda que tomar decisões o tempo todo. E, para requintar
a crueldade, as decisões têm de ser acertadas e a conduta tem de ser
absolutamente ilibada para que se possa conquistar o paraíso, e lá entediar-se
eternamente. Ou, caso contrário, sofrer impiedosamente em um inferno repleto de
experiências piores do que as vivenciadas, como se pudesse existir um mundo pior
do que o em que vivemos.
Mas a necessidade dessas consolações surge justamente a partir do medo da
morte, que é anterior à intelectualidade humana. Um posicionamento intelectivo
diante da morte, em um primeiro momento, sem uma reflexão mais apurada, ou seja,
um simples direcionamento das faculdades mentais para a questão da morte
acarreta, no mínimo, uma sensação de desconforto ou inquietação por estar, o
indivíduo humano, colocando todo o seu aparelho cognoscente diante do
desconhecido, por querer estabelecer uma relação sujeito-objeto sem o objeto. Essa
relação não se realiza nunca para o indivíduo, pois quando existir o objeto em
questão, a morte, já o sujeito não existirá mais, pois morreu.
Como o medo da morte é anterior à razão, portanto irracional, daí segue,
então, que esse medo provém do corpo do indivíduo vivente e do princípio vital que
o mantém vivo e o move sempre para longe do que possa representar sua
aniquilação. O corpo, matéria que vive, não tem categorias racionais como unidade,
pluralidade, tempo, espaço, etc. Em função disso, ele é intelectivamente cego e não
percebe o outro como outro exemplar de sua espécie. A espécie humana, para
qualquer corpo individualmente, da perspectiva da animalidade, resume-se a um só
corpo: o seu. Daí decorre que a morte do corpo do indivíduo vivente seria como se
fosse a morte de toda a espécie. Nessa esfera animal, portanto, é que reside o medo
da morte. Exatamente dessa forma manifestou-se Schopenhauer:
De fato, o temor da morte é independente de todo conhecimento, pois oanimal o possui, ainda que não conheça a morte. Tudo o que nasce já otraz consigo. Esse temor da morte a priori é justamente o reverso davontade de vida, fundo comum de nosso ser. Em cada animal, junto com ocuidado inato com a conservação está também o medo inato daaniquilação absoluta: é este, portanto, e não o simples desejo de evitar a
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dor, o que se manifesta na preocupação inquieta do animal, o qual procuragarantir a si próprio, e mais ainda à sua prole contra todo o inimigo capazde lhes causar mal. (2002, p. 25).
A profundidade da citação acima é tamanha que poderia remeter a diversas
especulações, inclusive sobre o que comumente se denomina “amor materno”. No
caso, o amor materno não passaria de uma forma especial de zelo com a
conservação da espécie ou acentuado cuidado dos animais com seus filhotes para
fins de garantir a continuação de si próprios através dos rescém-nascidos,
afastando-lhes a morte que os rodeia permanentemente, dada sua fragilidade inicial.
E a morte próxima dos filhotes é morte próxima da mãe também, que sente em si
mesma o pavor da aniquilação quando esta tenta a todo momento roubar-lhe as
crias.
A prole vingando, sobrevivendo, significa ela mesma, a mãe, seguindo viva,
não como indivíduo, mas enquanto espécie. A Vontade de vida se objetiva e se
torna visível no fenômeno e pelo fenômeno. A espécie é a idéia que não acaba, que
não morre e que se eterniza sob o domínio da Vontade de vida. Assim, a mãe de
filhotes, sob o comando da Vontade de vida, quer preservar a si mesma e àquilo a
que representa, ou seja, a espécie, cuidando para que a próxima geração de
fenômenos se desenvolva para um dia fazer o mesmo, mudando os fenômenos, mas
mantendo a espécie intacta, sempre renovada.
Esse aspecto animal é o aspecto mais básico característico do ser humano,
que além dele, segue também, em um segundo momento, tentando construir outra
esfera ontológica, a da racionalidade, e que erroneamente acaba pensando que é
sua principal esfera, sobretudo quando coloca a racionalidade como sinônimo de
humanidade e às vezes até construindo filosofias a partir dessa frágil identidade,
afirmando que o homem é o único animal que precisa tornar-se homem.
Partindo, então, de que em primeiro lugar o homem é animal, é corpo, é
vontade, torna-se possível compreender mais claramente outras questões pouco
abordadas em outras filosofias e que em Schopenhauer podem nos dar a
possibilidade de uma aproximação maior com o que de fato elas representam. A
questão do apego à vida, por exemplo, fica bem melhor situada dentro dessa ótica,
pois ela reside, como já se viu, no querer viver, que é próprio do corpo que vive,
sendo, dessa forma, anterior à razão.
O apego à vida é irracional. O apego à vida, o querer viver, não está em nós,
mas nós somos o próprio querer viver em nossa dimensão existencial mais básica,
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no nosso corpo. Assim, o homem não possui uma vontade de viver, pois ele é, em
sua base constitutiva, o querer viver mesmo. A racionalidade, por outro lado, é
aquela que vem depois, em um segundo momento, pois surge a partir do cérebro,
pressupõe a matéria encefálica. E é ela que pode nos mostrar com clareza a
animalidade desse princípio vital que nos move, nos motiva e nos impulsiona a todo
momento para abraçar a vida e a fugir da morte. A compreensão racional pode não
só esclarecer-nos dessa nossa condição ontológica de primatas reflexivos, como
também pode mostrar-nos uma outra possibilidade de abordagem e de
posicionamento acerca da morte, que não propriamente a fuga.
O exposto acima apenas confirma a expressão de Schopenhauer na seguinte
passagem:
O conhecimento, ao contrário, bem longe de ser a causa do apego à vida,atua em sentido oposto; ele revela o pouco valor da vida, e combate, dessemodo, o medo da morte. Quando prevalece o conhecimento o homemavança ao encontro da morte com o coração firme e tranqüilo, e daíhonramos sua conduta como grandiosa e nobre; celebramos então o triunfodo conhecimento sobre a vontade de vida cega, sobre aquela vontade quenada mais é que o princípio da nossa própria existência. (2002, p. 26).
Quando se lança um olhar de discernimento sobre o mundo da matéria que
nos mantém, não há como não perceber as desvantagens de estar vivo. Pelo
nascimento, depreende-se a morte. Antes da morte, porém, a doença, as dores, as
visões dolorosas e torturantes de outros seres, de nossa espécie ou não, sofrendo
de fome, frio, angústias, tristezas, câncer, depressão e uma infinita sorte de penúrias
do primeiro dia de vida de um indivíduo até o seu último suspiro. O nascimento é
como uma dolorosa e sofrida largada para uma corrida cujo ponto de chegada é a
morte. Todos nós participamos dessa corrida, desse jogo mortal. A vida é uma
cruzada sádica, semelhante ao passeio de Dante e Virgílio pelos círculos do
Inferno1, embora o poema final seja um laudo de autópsia.
Deixar a vontade de viver manifestar-se livremente no corpo através dos
desejos pode ser terrivelmente cruel. Gerar um filho, por exemplo, decorre tanto do
desejo de satisfação e gozo do prazer do próprio ato em si, quanto do egoísmo de
querer ver a si mesmo vivo na próxima geração. Raramente se pensa nas
possibilidades trágicas de dor e sofrimento que o rebento enfrentará na sua
degenerativa trajetória individual. Sempre há a possibilidade de uma coqueluche, um
sarampo, um atropelamento, uma deformidade, envolvimento com drogas, uma bala
1 ALIGHIERI, Dante. A Divina Comédia. Trad. Fábio M. Alberti. Porto Alegre: L&PM, 2004
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perdida, ser arrastado pelo asfalto preso pelo cinto de segurança de um carro
roubado em fuga, um estupro, um soterramento em uma obra de metrô, enfim,
acometimentos quotidianos que variam “ad infinitum”. São riscos e possibilidades a
que sujeitamos um ser humano quando o geramos, crendo, a partir da fé e da
esperança, que jamais irão se realizar. No entanto, a crueza da análise nos mostra
que colocar uma pessoa no mundo, neste mundo, é fazê-la participar de uma
sanguinolenta roleta russa, fazendo dos genitores nada mais do que vampiros
apostadores torcendo fanaticamente para que seu apostado consiga sobreviver para
além deles mesmos com o mínimo de sofrimento possível e que, a seu tempo, o
apostado vire apostador.
O argumento acima quebra todos os encantos que ainda poderiam existir com
a suposta beleza de ser papai ou mamãe. Seria, a partir dessa ótica, muito mais
adequado não ter filhos, e amar tanto aquele que ainda não veio a ponto de protegê-
lo de cair neste mundo das oportunidades de morrer. Também Schopenhauer (2002,
p. 27) nos mostrou que a maioria das crenças religiosas de alguma forma também
exibe esse lado penoso da vida, quando afirmou ele que “também a esperança de
uma imortalidade da alma vem sempre ligada à de um mundo melhor, prova de que
o mundo presente não vale muita coisa.”
Por outro lado, torna-se necessário esclarecer que o pior não é a morte, mas
a vida, seus sofrimentos inerentes e suas infinitas possibilidades de dor. Não é
possível dizer que morrer é ruim e nem bom, pois não há como confirmar nenhuma
das hipóteses. O temor da morte, como já dito, não é racional, pois é a vontade de
viver que está no corpo que foge da morte temendo sua individual aniquilação por
ignorar que a espécie não está acabando com o seu fim particular. O corpo humano
vivo teme o seu aniquilamento como se fosse a morte de todos os corpos humanos
e o conseqüente fim da vontade de viver, ou do princípio vital que move todos os
corpos humanos vivos. Já sob a luz do conhecimento, não subsistiria fundamento
para o temor à morte.
O temor do corpo é o temor da vontade de viver que o impulsiona, como já se
viu, diante de um aparente fim de sua existência, como se o princípio vital que anima
os corpos deixasse de existir com o fim daquele corpo em particular que não
enxerga outro além de si mesmo. Mas do ponto de vista da razão, não há por que
ser assim. Racionalmente, esse temor se apresenta muito frágil e inconsistente. Ora,
22
se houvesse mesmo razões para sérias preocupações com o deixar de ser, com o
aniquilamento total após o fim de nossa vida individual, com o não-ser do pós-
morte, essas mesmas razões sérias deveriam preocupar-nos e inquietar-nos acerca
do nosso não-ser que precede o nascimento. Se é aflitivo pensar sobre a passagem
do ser da vida para o nada da morte, talvez mais aflitivo ainda seja pensar sobre a
incrível e natalina passagem do nada para o ser da vida. Mas não nos afligimos com
esta última passagem, razão porque também não devemos nos afligir com a
primeira, pois o não-ser depois da morte é o mesmo não-ser de antes do
nascimento. Por que devemos nos preocupar em morrer e em nos decompor, se
antes de nascermos já não éramos compostos? Por que nos preocuparmos com
nosso apodrecimento e a conseqüente diluição de nossa matéria na natureza, se
antes de sermos o que somos nossa própria matéria já se encontrava espalhada
pela natureza, em maçãs, batatas, vacas (churrasco, leite, queijo), no ar, na terra, e
mais recentemente nos corpos de nossos pais? Essa ilusória aflição com a morte foi
percebida por Schopenhauer, como o trecho abaixo mostra:
Toda uma infinidade de tempo fluiu quando ainda não éramos, mas issonão nos aflige de modo algum. Mas, ao contrário, o fato de que após ointermédio momentâneo de uma existência efêmera uma segundainfinidade de tempo deva se seguir, na qual não seremos mais, para nósparece uma dura e até mesmo intolerável condição. (2002, p. 27).
E Schopenhauer reconhece ainda, na seqüência da citação acima, que essa
supremacia do segundo não-ser sobre o primeiro não está restrita somente ao senso
comum:
Em discussões orais e em livros a questão sobre o nosso estado após amorte foi com certeza muito mais abordada do que a do nosso estadoantes do nascimento. Em teoria, contudo, o segundo é um problema tãonatural e legítimo quanto o primeiro.
A luta metafísica sobre ser e não-ser é resgatada do âmbito da vontade para
o intelectual. Posta dessa forma a questão, salta aos olhos que não procede a
agonia que dela decorre amiúde. Em um primeiro momento, Schopenhauer chama a
atenção para a improcedência de se pensar tanto sobre a morte e tão pouco sobre o
nascimento, que ele chama de “surgir do nada” em vários pontos de sua vasta obra.
Seu ponto de vista é metafísico, pois faz sempre um contraponto dialético entre ser e
não-ser e da impossibilidade lógica de um se transformar magicamente no outro.
Assim, ao trazer a questão para a discussão racional e metafísica, ele deixa
evidenciado muito claramente sua intenção de erguer templos à razão e cavar
masmorras ao desejo.
23
Cada indivíduo humano é um exemplar da espécie humana. O espécime
humano, esse ser essente e metafísico, é o único que importa para Schopenhauer e
é o único que deve ser considerado para a construção de uma filosofia realmente
consistente. Deve-se, portanto, compreender as diferenças individuais como
acidentes que de modo algum afetam a idéia de homem. Por isso, não faria sentido,
nesse contexto, uma abordagem histórica sobre as aparentes mudanças no mundo,
principalmente se baseada na não menos ilusória idéia de progresso. A história faria
parte já de uma espécie de conhecimento corrompido, que não nos daria suporte
para responder questões metafísicas, como uma que ele mesmo põe: se um tempo
infinito escoou antes do meu nascimento, o que era eu durante todo esse tempo? Já
a metafísica tranqüilamente poderia responder a esse questionamento, afirmando
que todos aqueles que viveram antes de mim era eu mesmo enquanto ser
metafísico. Todos daquele tempo se diziam “eu”, assim como se auto-denominarão
“eu” os que ainda virão, tornando todos os seres um único “eu”, independentemente
de sua suposta e ilusória localização histórica.
O tempo para o ser metafísico é um só: o presente. A partir daí, para
contestar o temor da morte não surgem grandes dificuldades, tendo em vista que eu
continuarei sendo eu após a minha morte, em outros indivíduos que se dirão “eu” e
que, na sua geração futura, serão exatamente o que sou, ou seja, um ser humano.
O presente, aliás, é um não-ser para quem nascerá futuramente e também um não-
ser para quem já foi no passado. Passado e futuro, então, são um não-ser, um nada
absoluto e sem tempo, portanto eterno. A vida, que aqui se confunde com o
presente, está inserida entre esses dois abismos do não-ser eterno. Em comparação
com essa eternidade e infinitude desses dois tipos de não-ser, que no fundo são um
só e o mesmo nada, fazem a vida parecer uma faísca, um grão de areia, ou, melhor
ainda, uma espécie de sonho efêmero. Esse discurso lógico e ontológico acerca do
ser e do tempo apenas quer mostrar, neste momento, a inconsistência racional do
temor à morte. Afinal, seria tão absurdo lamentar o tempo em que não mais
seremos, quanto lamentar o tempo em que ainda não éramos, pois não saberíamos
sequer dizer se entre o tempo em não éramos e o tempo em que somos existe uma
relação de passado ou de futuro.
Além do argumento acima para demonstrar a insustentabilidade de um temor
racional da morte, Schopenhauer (2002, p. 28) ainda constata que “é absurdo
24
considerar o não-ser como um mal; com efeito, todo mal, como todo bem, tem por
pressuposto a existência, e mesmo a consciência; mas essa consciência cessa com
a vida, como também no sono e no desmaio.” Considerar, portanto, a morte como
um mal, seja metafísico como para um indivíduo em particular, é algo que carece de
sentido. Metafisicamente, a morte não pode atingir a espécie humana como um todo,
mas apenas indivíduos, que se dissolvem na natureza dando vez para a próxima
geração. Os indivíduos, que assim se percebem pelas propriedades da consciência,
também não podem ser afetados com a morte, pois a ausência justamente dessas
propriedades conscientes do indivíduo morto é que não lhe permitem mais realizar
qualquer juízo de valor sobre a morte ou sobre qualquer outra questão, ou ainda,
como disse o próprio Schopenhauer (2002, p.29), “a perda de algo de que não
podemos constatar a ausência não é nenhum mal: quem o poderá negar? Assim, o
tornar-se não-ser não pode nos afetar, da mesma forma que no não-ter-sido.”
Quando se diz que a perda da consciência impede a percepção do mal ou do
bem, também se está referindo à consciência como conhecimento racional. E se é
verdade que, uma vez inativa a atividade cerebral consciente, não se pode constatar
o mal da morte, também é verdade que nesse estado, impossível se torna a
percepção de seu bem. Bem e mal da morte, vantagens ou desvantagens de se
estar morto, portanto, é uma deliberação inviável, pois não se pode conhecer sem
consciência, sendo esta aniquilada no exato momento da morte. Mas o certo é que
se costuma fugir da morte sem muitas ponderações sobre ela e, no entanto, com
uma aparente e ilusória obviedade de correção de atitude. Raramente encontramos
alguém que, sem algum “transtorno de humor”, tenha se perguntado, ao menos uma
vez na sua existência, se prefere continuar vivendo ou morrer. A resposta parece
óbvia, mas o fato é que, diante da impossibilidade de se verificar racional e
empiricamente as duas possibilidades, não é possível ter certeza sobre esse
posicionamento. Fora da razão, a inclinação sempre é para a afirmação da vida,
porque é o corpo que se expressa. E o corpo é a vida em matéria, é a vontade de
viver substanciada, objetivada.
Schopenhauer confirma a improcedência racional do temor da morte:
Do ponto de vista do conhecimento, o medo da morte parece carecer defundamento: ora, é no conhecimento que consiste a consciência; a mortepara a consciência, portanto, não é um mal. Assim, na verdade não é essaparte cognoscente de mim que teme a morte; é somente da vontade cega,que preenche todo ser vivente, que procede a fuga da morte. (2002, p. 29).
25
Até aqui, vinculamos o temor da morte ao desejo de vida inerente ao próprio
organismo vivo. A perda de vida desse organismo é o terror que se evita
inconscientemente. É preciso esclarecer ainda que o medo que o corpo tem não é
propriamente da morte em si, mas sim do que decorre dela em seu aspecto positivo,
ou seja, medo da deterioração e aniquilamento do organismo. O corpo está
preocupado, se é que se pode falar assim, com o próprio corpo. Seu receio de
perder a consciência é indireto, pois após a morte cerebral segue-se a
decomposição do corpo mesmo, do organismo. O medo do indivíduo vivo é não
apenas medo de deixar de estar vivo, mas de deixar de ser aquele indivíduo, medo
da sua aniquilação orgânica. Tanto é assim que é comum vermos entre os jovens,
cheios de saúde, não haver medo de morrer, e arriscam-se em aventuras perigosas
com muito pouca ou nenhuma preocupação. Lê-se nos jornais quase que
diariamente sobre mortes de adolescentes por reação a assaltos armados ou por
brigas e envolvimentos em circunstâncias violentas de toda ordem. Isso porque não
têm medo de morrer.
O medo da morte vai surgindo aos poucos, de acordo com o avanço da idade.
Quanto mais próximo da velhice, quanto mais o corpo vai dando sinais de
degeneração, mais em voga vai ficando a questão do falecimento. Então, o que
passa a ganhar mais força nas motivações do vivente não é tanto o receio de perder
a consciência ou suas atividades cerebrais, mas em maior proporção é o receio do
que vem na seqüência da morte cerebral, que é a aniquilação total daquele corpo
particular. Quando doentes também pensamos na possibilidade de morrer, porque o
corpo dá sinais de deterioração. O medo de morrer é, enfim, o temor que o
organismo vivo individual tem de desfazer-se integralmente.
Não foi em outro sentido que Arthur Schopenhauer escreveu:
O horror da morte não é tanto o fim da vida, pois isso não pode parecer aninguém como particularmente digno de pesar, mas antes a destruição doorganismo, uma vez que este é a própria vontade de vida que se manifestacomo corpo. Mas essa destruição nós a sentimos realmente só nos malesda doença ou da idade; ao contrário, a morte mesma, para o sujeito,consiste apenas no momento em que a consciência desaparece, e quecessa a atividade cerebral. A extensão ulterior dessa parada a todas asoutras partes do organismo já é propriamente um fenômeno posterior àmorte. A morte, de um ponto de vista subjetivo, concerne pois somente àconsciência. (2002, p. 29).
Apesar de se falar que a morte esteja relacionada ao fim da consciência e da
atividade cerebral, isso não significa que perda de consciência e morte são
sinônimos. A perda da consciência ocorre com a morte, mas nem sempre ocorre a
26
morte após a perda da consciência. Dormir, por exemplo, implica em não estar
consciente. O mesmo vale para um desmaio. O que desaparece definitivamente
quando se morre é o princípio vital que anima os corpos. Esse princípio vital é a
própria Vontade de Vida objetivada em um determinado indivíduo. Quando isso
acontece, o primeiro elemento ontológico individual que desaparece é a consciência,
ou atividade cerebral, ou, ainda, a razão. Depois é a vez daquela formação material
orgânica peculiaríssima se desfazer.
Veja-se a explanação de Schopenhauer acerca da cessação do princípio vital
regente dos organismos vivos racionais:
O exame de um cadáver mostra-me que a sensibilidade, a irritabilidade, acirculação do sangue, a reprodução, etc., cessaram. O princípio ativo quepresidia suas funções, algo que sempre foi desconhecido para mim, cessoude agir sobre seu corpo e se afastou. Irei eu acrescentar que esse princípioteria sido justamente o que eu conheci como simples consciência, portantocomo inteligência (alma)? Esta seria uma conclusão injusta: não somenteilegítima, como de uma falsidade evidente. Com efeito, a consciênciasempre se revelou para mim não como causa, mas como produto eresultado da vida orgânica, aumentando e diminuindo, em seguimento aesta, nas diferentes idades da existência, no estado de saúde e no dedoença, no sono, no desmaio, no acordar, etc.; ela é sempre efeito e nuncacausa da vida orgânica, sempre se manifestando como uma coisa quesurge e desaparece, para reaparecer em seguida, enquanto existirem ascondições necessárias para sua existência, mas não fora dessascondições. (2002, p. 31).
Percebe-se claramente o posicionamento de Schopenhauer sobre a origem
da consciência. Ela surge depois do corpo, pois o pressupõe. A substância orgânica
viva é condição necessária para o surgimento da consciência. E para a substância
orgânica individual estar viva, é preciso que esteja ativo nela um princípio vital, uma
Vontade de vida que se faz organismo vivo e a partir do qual pode, então, surgir a
consciência. Além disso, vale destacar que esse princípio ativo que anima os corpos
vivos não deixa de existir, ele apenas deixa de atuar em determinado corpo. Isso
porque aquela matéria orgânica já não atende mais às exigências dessa força ativa
chamada Vontade, que busca sempre as melhores condições para sua existência
física. A Vontade troca de corpo como quem troca de camisa. Ela renova a si mesma
sempre que necessário, da mesma forma que os corpos individuais também
renovam constantemente sua matéria através dos processos de alimentação e
evacuação. Por isso, não há razão para concluir que essa força universal, fonte de
cada fenômeno isolado e atuante em milhares de fenômenos idênticos, tenha se
tornado nada simplesmente por ter cessada uma determinada vida orgânica. A força
27
se manterá ativa em outro corpo novo e revitalizado, gerado pelo desejo de si
mesma através do processo de procriação.
A Vontade de vida é o elemento constitutivo primeiro de todo organismo vivo,
sendo inclusive a razão de ele estar vivo. É uma espécie de Arké da ontologia
orgânica. Como já dito, esse princípio ativo nunca cessa. O que se degenera é o
corpo em que ele atua, que segue uma dolorosa trajetória rumo à degradação total
desde o momento de seu nascimento. A força ativa animadora dos organismos
individuais é imortal. Já a formação orgânica individual que vivia se desfaz
plenamente, embora sua matéria também não deixe de existir na natureza. Isso
seria inconcebível, algo substancial na natureza passar do ser para o não-ser.
Do exposto, infere-se já uma extraordinária possibilidade de mudança na
mentalidade daquele que teme a morte, pois, nas palavras de Schopenhauer (2002,
p. 32), “o homem que teme a morte como sua aniquilação absoluta não pode
desprezar a plena certeza de que o princípio mais íntimo de sua vida permanece
intocado por ela”. E mais: além do princípio vital, da Vontade de vida, permanecer
intacta apesar das infinitas mortes de seus fenômenos, há ainda outra imortalidade
evidente, a da matéria que formou aquele indivíduo e que estará, com sua morte,
disponível para outra formação na próxima geração. Dessa forma, resta refutada por
absoluto qualquer idéia que pretenda afirmar que o nascimento seja a partir do nada
e que a morte seja o fim total do ser.
Não foi diferente do expresso acima que afirmou Schopenhauer:
Sustentar que o nascimento de um animal é um aparecimento a partir donada, e que a sua morte, por conseqüência, é sua aniquilação absoluta, eacrescentar que o homem, também provindo do nada, tem, porém, umacontinuidade individual e indefinida com consciência, ao passo que o cão, omacaco, o elefante, seriam reduzidos a nada pela morte, é emitir umahipótese contra a qual o bom senso se revolta e tem de declarar comoabsurda. (2002, p. 39).
A metafísica platônica de Schopenhauer, no que concerne ao tratado até
aqui, faz uma distinção muito clara entre a idéia de homem e o homem individual. De
sua obra, depreende-se que por indivíduo é compreendido o exemplar de uma
espécie. A espécie sempre apresentará exemplares, eternizando-se na geração
constante de novos indivíduos, a medida que outros desaparecem. A espécie, então,
não é o conjunto dos indivíduos, pois não é a partir dos indivíduos que se chega à
espécie, mas o contrário. A espécie é a fonte originária das criaturas individuais. A
espécie é metafísica, é a idéia do ser que se objetiva nos fenômenos. Os indivíduos
representam a espécie. Daí também o peculiar entendimento de Schopenhauer
28
acerca do conceito de representação: os indivíduos como representação de sua
espécie. O indivíduo, então, é uma efêmera manifestação visível e material da
espécie.
A Vontade de vida se objetiva e se materializa no indivíduo da espécie, que
se torna visível no seu fenômeno particular. Por conceber o mundo dentro dessa
perspectiva, ou seja, a partir da ótica de que, no reino animal, a seqüência de
surgimento dos fenômenos é Vontade-Espécie-Fenômeno, foi que Schopenhauer
afirmou:
Cada idéia, isto é, cada espécie de ser vivente, persiste por completointocada pela sucessão contínua dos indivíduos que ela encerra. A idéia,ou a espécie, é a raiz, o lugar onde se manifesta a vontade de vida: é oúnico elemento cuja duração importa verdadeiramente à vontade. (2002, p.45).
O princípio ativo de Vontade de vida atuante na espécie representada pelos
inúmeros indivíduos é o que faz com que cada criatura humana tenha medo
irracional de morrer. Esse é o sentimento mais radical do homem, do qual derivam
outros tantos sentimentos e que dá definitivamente à felicidade, por exemplo, um
caráter negativo, a medida que as satisfações se dão através de tudo que possa
representar a negação de um sofrimento potencialmente mortal. Essa radicalidade
do temor à morte também foi percebida por Pernin (1995, p. 103) que assim se
expressou: “No homem, particularmente, essa vontade se torna horror à morte, com
o cortejo das emoções que o acompanham: revolta, alegria de escapar do perigo,
pavor glacial diante do cadáver...”. Como já dito, esse temor da morte também pode
impulsionar o surgimento tanto de teologias consoladoras como de filosofias
otimistas eternamente fracassadas, pois jamais conseguirão levar a humanidade a
se evadir de sua condição essencial, que é o nascimento para a dor e a morte.
A espécie humana objetivada em indivíduos obedece aos desejos da Vontade
de vida. O indivíduo como último elemento desse processo, traz consigo também os
desejos da Vontade e todas as qualificações da espécie. Nenhum homem nasce
raciocinando, mas nasce querendo viver. E vai crescendo com esse querer viver de
forma tão habitual que essa herança desejante de vida se lhe torna comumente fora
de discussão e por vezes até revestida de uma obviedade inquestionável. Mas o fato
é que, nas palavras de Lefranc:
O apego à vida não é de per si nem racional nem fruto de raciocínio: surgedo mais profundo do nosso ser, animado por um querer cego. Noutraspalavras, é a parte imortal do nosso ser que faz a morte temível; e é a partemortal que, na verdade, não a teme. (2005, p. 140).
29
Da mesma forma com que o temor da morte acompanha o ser humano desde
o berço, também outro enraizado sentimento lhe faz companhia em sua trajetória
existencial: o sentimento de indestrutibilidade. Ambos estão fora da razão, ou
melhor, já eram antes mesmo da própria racionalidade manifestar-se,
secundariamente, no corpo objetivado. E por serem anteriores à razão é que eles só
se tornam visíveis naquilo que morre, que é o fenômeno da vontade. A vontade só
vê a si mesma, portanto, enquanto sentimento na efemeridade fenomênica, onde
reside também a cognoscência humana.
O princípio metafísico da imortalidade do ser humano, que o querer-viver
imprime ao indivíduo como sentimento, também foi percebido por Lefranc:
A racionalidade filosófica não apreende o querer-viver, a não ser na formavisível do indivíduo mortal. Noutros termos, a eternidade da vontade só semanifesta ao sujeito cognoscente pelo e neste mesmo sujeito cognoscente,e este último deve exprimir ao mesmo tempo o horror da morte e osentimento de indestrutibilidade. (2005, p. 140).
A indestrutibilidade do ser enquanto espécie, além de sentida pelo indivíduo
também é percebida pelo mesmo indivíduo enquanto sujeito cognoscente, através
da reflexão filosófica metafísica. E apesar de o indivíduo cognoscente ver a si
mesmo como espécie, isso não quer dizer que esse seria um ponto de vista a partir
do qual a individualidade de cada homem ficaria diluída no coletivo. Não se trata de
diluição no coletivo, pois a espécie, como já foi afirmado, não é uma coleção de
indivíduos. Trata-se, em primeiro lugar, de uma relação do indivíduo com ele mesmo
e depois com os outros exemplares da sua espécie. O indivíduo reconhece em si os
sentimentos de eternidade e horror à morte, característicos da espécie.
Sem o sentimento de eternidade, o sentimento de horror à morte seria
contínuo. Mas não é assim, o terror à morte se apresenta quando esta também se
apresenta, seja em algum velório, em alguma visão de acidente com vítima fatal, ou
ainda percebendo a si mesmo em estado de doença ou degeneração, como um
moribundo que se aflige mais porque sabe que está chegando sua hora de morrer
do que pela doença que o está vitimando. No dia-a-dia do indivíduo, o sentimento de
medo da morte não é constante, pois uma certa tranqüilidade sobre esse assunto
sempre acompanha essa criatura humana nos seus afazeres do cotidiano, a ponto
de poder vivenciar um dia inteiro sem sequer lembrar que a morte lhe espera. O que
possibilita esse relaxamento e relativo esquecimento da morte, e conseqüentemente
o medo dela, é o sentimento de eternidade ou imortalidade.
30
O sentimento de eternidade está relacionado a um especial entendimento
acerca do tempo. E Schopenhauer nesse ponto explica o tempo novamente a partir
da Vontade, que não está em outro tempo senão em um eterno presente. Embora
também a consciência do sujeito cognoscente também se preste para isso, uma vez
que ela também está sempre no presente. A vontade de vida se objetiva no
fenômeno e não conhece outro tempo senão o presente. Suas objetivações estão
sempre no presente, assim como sempre estiveram e sempre estarão. Da mesma
forma a consciência individual, que está sempre entre o passado e o futuro, bem no
meio. Ela é capaz de pensar sobre o além e o aquém do presente, mas a referência
inicial, que de fato é a única que existe, é o presente. Pensar além do presente é o
mesmo que pensar no ausente, pois o passado não existe e o futuro também não. E
não existindo passado nem futuro, resta a eternidade do presente, no qual se vê a
Vontade de vida a todo momento criando e eliminando fenômenos, inspirando e
expirando, alimentando e evacuando, enfim, renovando sua matéria. Portanto, como
diz Lefranc (2005, p. 141): “não se deve esperar nenhuma sobrevida, dado que já
somos eternos”.
A vontade de vida conhece a si mesma na visibilidade do seu fenômeno, que
é conseqüência, nunca causa, daquela. Isso equivale a dizer que enquanto houver
vontade de vida haverá também a própria vida, que é seu reflexo no mundo. Além
disso, a visão da morte ou o temor pela perda da existência não aflige o indivíduo
enquanto este estiver preenchido da vontade de vida. Esse sentimento negativo em
relação à aflição sobre a morte é a herança que o indivíduo recebe da espécie no
momento de sua objetivação. Uma vez objetivada a vontade de vida da espécie, seu
fenômeno passa a percorrer sozinho e sem proteção alguma da natureza a sua
trajetória individual que a qualquer momento pode acabar, como uma bolha de
sabão que a qualquer momento pode estourar e desfazer-se. O cuidado que a
natureza tem é única e exclusivamente com a espécie, à qual ela dispensa
incontáveis esforços para sua conservação. Um exemplo bem claro disso é a
quantidade enorme de sêmen excedente no homem frente ao grande poder de
fecundação da mulher. O que importa para a natureza é manter a espécie gerando
novos indivíduos e se desfazendo de outros, com todos os cuidados e precauções
possíveis. E a espécie, como já dito, vive no presente e é representada pelos
31
indivíduos no presente. Cada ser humano vivo, portanto, é a espécie vivendo no
presente, onde sempre permanecerá.
Schopenhauer, a propósito desse entendimento acerca da natureza e do
indivíduo, afirmou:
Ora, como o homem é a natureza mesma, e decerto no grau mais elevadode sua autoconsciência, e por seu turno a natureza é apenas a Vontade devida objetivada; o homem que apreendeu e permaneceu neste ponto devista pode certamente, e com justeza, consolar a si mesmo em face de suamorte e da de seus amigos, quando olha retrospectivamente a vida imortalda natureza, pois sabe que esta é ele mesmo. (2005, p. 359).
O medo da morte, apesar de insustentável racionalmente, não é um medo em
morte, pois em morte o ser não é. Assim, o medo humano da morte e outras
lamúrias desesperadoras apenas existem em vida. Se há algo a temer neste mundo,
certamente não é em morte, mas em vida, pois a única positividade da morte é a
aniquilação orgânica que dela decorre. A partir, então, do medo da morte e do
sentimento de indestrutibilidade, enraizados na constituição do indivíduo, decorrem
outros sentimentos e outras perturbações físicas e espirituais que acompanharão a
espécie humana em todas as suas existências individuais. Pode-se citar, como
exemplo de motivações oriundas da Vontade de vida para o comportamento
humano, as dores decorrentes tanto da necessidade de satisfação dos desejos
incessantes, como da tentativa constante de fugir do tédio de não ter o que desejar.
É na vida, portanto, que estão o desejo e o tédio, sendo ambos causa de dor. A
conclusão necessária que se faz agora não poderia ser outra senão a de que viver
é, de fato, sofrer.
4 VIVER É SOFRER
A existência humana oscila entre tédio e dor. Quando o homem se livra de
um, sofre pelo outro. A dor é o que é realmente na vida humana, é o que de fato se
percebe. A dor é a positividade da vida, pois é o que verdadeiramente se impõe ao
indivíduo. E acabar com uma dor é o mesmo que negá-la, tendo, portanto, qualquer
alívio ou a satisfação, por outro lado, um caráter negativo. A busca pela satisfação é
a busca da negatividade da vida com a meta de obter o objeto desejado. Como o
homem é um ser desejante por natureza, dada que sua natureza é Vontade de vida,
também sofrerá ele com a falta de um objeto a que possa desejar, acarretando um
sofrimento ainda maior denominado tédio.
Nesse pêndulo de tédio e desejo é que se move o ser humano. Estando em
um lado, o homem quer ir para o outro, de onde, lá chegando, prontamente quer
voltar, em um movimento contínuo. Essa constatação de Schopenhauer foi que
levou Pernin a afirmar que “agora, no coração da existência, sofrimento e tédio
impõem ao homem inimagináveis contorções para evitar a ambos simultaneamente“
(1995, p. 147). A fuga constante desses dois pólos da existência é a motivação
principal para os atos da vida humana. Logo, o que impulsiona o homem para suas
ações do quotidiano é o sofrimento, do qual não é possível escapar plenamente,
mas apenas de uma de suas duas faces.
Ao comentar o pensamento de Schopenhauer acerca do sofrimento, Pernin
escreveu:
Quando o filósofo escreve que o sofrimento é o fundo de toda vida, nãopretende opor sofrimento e tédio. São duas flores do mesmo mal, um malmetafísico, ao qual se deve chegar para compreender a contradiçãoenvolvida pela fórmula ‘vida feliz’, e a cruel desilusão infligida à inteligênciaque alimenta o erro inato de crer que existimos para sermos felizes. (1995,p. 147).
Pernin compreendeu muito bem as idéias de Schopenhauer nessa questão
do sofrimento. Tanto que chamou de contradição a expressão vida feliz. De fato,
vida é bem diferente de felicidade em suas características essenciais. A principal
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discrepância entre elas é que a primeira é positiva; e a segunda, negativa, a medida
que tenta negar os sofrimentos da primeira, satisfazendo os desejos do querer viver.
A felicidade, de certa forma, opõe-se à própria vida, tendo em vista que tenta anular
a positividade desta. Buscar a felicidade, neste contexto, é obedecer aos anseios da
Vontade de vida envidando todos os esforços para acabar com o sofrimento. Uma
vida feliz não seria plena de positividade; ao contrário, teria o máximo de
negatividade possível, pois um viver feliz não é um viver repleto de alegrias e
contentamentos, mas viver com o mínimo de sofrimento possível.
A Vontade de vida nos leva irracionalmente a querer viver. E querer viver é
querer ser na vida, é querer existir. Essa vontade de existir, para manter-se, faz com
que a espécie, e conseqüentemente os indivíduos que a representam, carreguem
em si o desejo de conservação, que na vida do indivíduo converte-se em um amplo
e inquietante desejo de vida, sem um objeto específico. O indivíduo deseja por
desejar, mas, não compreendendo isso, empenha-se em inutilmente tentar
direcionar seu ilimitado desejar para uma quantidade limitada de objetos, que ele
passa a chamar de objetos do desejo. Uma vez alcançados esses objetos, de curto
período é a sua satisfação, porque o desejo ilimitado que provém da Vontade de
vida irá impeli-lo a uma nova busca de objetos, a fim de fugir do sofrimento do tédio,
que é essência da Vontade. Não foi diferente a compreensão de Pernin (1995, p.
147) ao afirmar: “Já observamos a avidez insaciável da vontade, que é
compreendida pelo filósofo como um desejo ilimitado e sem objeto. Daí se segue
que esse desejo não tem nenhuma finalidade. Eis o fundamento do tédio.”
O tédio é um sofrimento vital que se opõe ao sofrimento do desejo, mesmo
sendo ambos, tédio e desejo, dois lados da dor da existência humana. Essa dor
entediante surge no período prolongado que sucede à consecução de todos os
objetos desejados pelo indivíduo, inalterada a força sub-reptícia do desejo em si que
motiva tal fenômeno. Quanto maior o distanciamento daquele momento de
satisfação do desejo, maior é a proximidade do tédio. Além disso, a proximidade
daquela feliz ocasião passada em que o indivíduo se deu por satisfeito eleva o
sentimento de satisfação ou felicidade. Por outro lado, quanto mais distante do
evento da passagem da dor do desejo para a realização da felicidade, mais o
indivíduo terá que se valer de sua memória para lembrar daquele passado de dor
positiva e assim ainda sentir algum prazer com sua negatividade alcançada. Mas ele
34
não consegue viver do passado por muito tempo, diminuindo a cada minuto a
sensação prazerosa de sua realização. Logo, então, surge a inquietação que o
desejo em si lhe provoca e lhe incita à mudança de seu estado atual. Corrobora
esse entendimento o comentário de Pernin (1995, p. 148), sobretudo quando este
afirmou que “o hábito diminui o prazer. E todos os paraísos são paraísos perdidos.
Para gozar dos bens presentes, temos que recorrer ao expediente que consiste em
reavivar a lembrança das infelicidades superadas por nós.”
O redirecionamento do desejo em si para objetos alcançáveis é um
movimento incessante e na maioria das vezes material, por envolver condições de
favorecimento à existência. Esse movimento se dá em sua origem a partir da
necessidade de fuga do tédio. O desejo em si, como já visto, é a pura Vontade de
vida sedenta de si mesma, querendo conservar sua espécie objetivada no
fenômeno. E dizer que o grande propósito do desejo é se evadir do tédio significa
dizer que a Vontade de vida, que foge da morte, torna idênticos para si o tédio e a
morte. Dessa forma, compreendendo que se entediar é o mesmo que se mortificar,
torna-se plausível a dedução de que a contínua busca de satisfação dos desejos é
ao mesmo tempo a fuga da vida em seu constante desejar doloroso e também uma
infindável busca do seu contrário, ou seja, da morte. Realizar-se é mortificar-se em
vida, tornando a existência uma morbidez.
O indivíduo, na sua mais profunda intimidade, é desejo e tédio. E afirmar que
a vida oscila entre esses dois pólos não é fazer uma referência a algo externo ao
indivíduo. Pelo contrário, a vida, as vivências e os cenários por onde transitam os
indivíduos, esses são também desejáveis e entediantes, pois são assim percebidos
de acordo com as motivações internas dos homens. O homem, constituído a partir
do desejo e do tédio, busca incessantemente nas suas circunstâncias e contextos os
seus objetos de desejo, que passam a configurar, em um segundo momento, objetos
de tédio. Dessa forma, não é o exterior que excita ou atrai o indivíduo, igualmente
como não é o exterior que o entedia ou o aborrece; ao contrário, atração ou
excitação e aborrecimento ou tédio são elementos ontológicos inerentes a todos
indivíduos humanos, que representam com essa estrutura a Vontade de vida.
Citando Pernin:
Certamente, saber que a dor e a alegria vêm do fundo de nós e não dosacontecimentos exteriores, que servem apenas de ocasiões ou dereveladores, nos cura das loucas excitações, em um sentido ou outro.Perdemos progressivamente a ilusão de que o mundo exterior possa nos
35
trazer algo de importante. O refúgio na superstição ou no recurso aosídolos não pode mais tentar o nosso estado de abandono em busca deassistência ou o nosso tédio corrosivo. (1995, p. 151).
Certamente o aforismo délfico “conhece-te a ti mesmo” se encaixa
perfeitamente neste contexto. As apaixonantes vivências de um indivíduo, por
exemplo, são realizações de seu próprio desejar interno incontinente em si mesmo,
transbordando ou transcendendo para a relação com o outro. Da mesma forma um
passeio pelo parque ou uma visita a um amigo apenas para conversar
amigavelmente seria uma maneira de tentar escapar ao tédio que o corrói em meio
ao seu vazio interior inquietante consigo mesmo e com seu estado atual. Já um
passeio pelo Schopping teria as duas motivações ao mesmo tempo, ou seja, uma
fuga do tédio ao matar o tempo com um passeio e, paralelamente, um cercar-se de
objetos para o seu infinito desejar. São inúmeras as atividades do quotidiano
humano que são motivadas pela Vontade de vida e que, longe de saciá-la em seu
querer ilimitado, acabam por ampliar ainda mais o sofrimento existencial, elevando o
desejo e o tédio a patamares tão altos que fazem com que o indivíduo acabe se
voltando quase que completamente para seu exterior, deixando dentro de si uma
enorme sensação de vazio, com mínimas forças ou ínfima capacidade de se
conhecer ou se identificar.
Todo nascimento é um nascimento para a vida e só acontece para os
fenômenos, assim como a morte. O recém-nascido é um indivíduo recém chegado a
este mundo e que de certa forma ainda está nascendo, pois a cada dia ele cresce e
se desenvolve, o que quer dizer que a cada momento a natureza lhe acrescenta
matéria viva, orgânica. Esse processo de crescimento e desenvolvimento atinge a
infância e a adolescência, estagnando no início da fase adulta e logo em seguida,
lentamente, inicia-se o processo de desconstrução individual. Assim, na parte
ascendente da trajetória fenomênica, a Vontade de vida atua no indivíduo por ela
mesma, ou seja, sedenta de si mesma ela o impulsiona de forma desenfreada à vida
e aos seus prazeres, curando-o rapidamente de doenças e cuidando para que esteja
o mais saudável possível por ocasião da procriação. Passado o auge do apetite
sexual, em que deveria o indivíduo ter dado continuação à espécie, não mais a
Vontade de vida lhe dedica tamanho cuidado e aos poucos vai lhe abandonando. Os
sonhos, os planos e as aventuras do jovem transformam-se em receios, precauções
e toda sorte de procedimentos retardatários da morte.
Não foi diferente que afirmou Schopenhauer:
36
Enquanto a primeira metade da vida é apenas uma infatigável aspiraçãode felicidade, a segunda metade, pelo contrário, é dominada por umsentimento doloroso de receio, porque se acaba então por perceber maisou menos claramente que toda a felicidade não passa de quimera, que sóo sofrimento é real. Por isso os espíritos sensatos visam menos aosprazeres do que a uma ausência de desgostos, a um estado de algummodo invulnerável. (1958, p. 15).
O sonho da juventude é o sonho da vida, a ilusão de uma felicidade que não
existe e que não existirá. A criança projeta um futuro de adulto a partir de seu mundo
infanto-juvenil, cheio de vida, cheio de sonhos. Curiosamente, o período em que o
querer viver mais está forte no indivíduo, também é o período em que mais se pensa
em um período além dele, em uma época ausente, futura. Passada a juventude, o
indivíduo se olha no espelho, olha para o mundo cheio de fome, miséria e dor, vê as
doenças nos outros e as sente fortemente em si mesmo, percebe que não tardará a
chegar o seu fim e certamente alguma doença fatal, uma falência de um ou mais
órgãos ou mesmo um acidente qualquer lhe arrebatará a vida.
O tempo é uma da formas de entendimento, como causalidade e espaço. A
racionalidade humana se vale do tempo para compreender os eventos da existência.
E não é diferente para compreender a própria existência do fenômeno representante
da Vontade de vida. Toda vida humana individual é efêmera e tem um início e um
fim. É por isso que se pode encontrar nas palavras de Schopenhauer (1958, p. 17)
afirmações como: “Não há nada fixo na vida fugitiva: nem dor infinita, nem alegria
eterna, nem impressão permanente, nem entusiasmo duradouro, nem resolução
elevada que possa durar toda a vida! Tudo se dissolve na torrente dos anos”.
Quando o filósofo afirmou que tudo se dissolve na torrente dos anos, ele está se
referindo a tudo que existe, a tudo que é dissolúvel. A espécie, enquanto idéia de ser
comandada pela Vontade de vida, não morre e não nasce. O sofrimento é próprio,
portanto, do indivíduo, que é o único capaz de sentir a dor da existência, na sempre
reincidente objetivação da Vontade.
Se tudo o que existe se desfaz, para fazer-se novamente na próxima geração
com outra forma em um outro indivíduo, não pode ser outra a finalidade do homem
senão o de ser para a morte. Morrer é desfazer-se, devolvendo à natureza a matéria
que foi vida orgânica. “Nada se toma a sério na vida humana; o pó não vale esse
trabalho.”, disse Schopenhauer (1958, p. 17), evidenciando que desejo algum tem
satisfação permanente, muito menos existe felicidade duradoura. Ganância,
promiscuidade, ambição e egoísmo, além de não eliminar definitivamente dor
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alguma, ainda ampliam o vício desejante inato ao homem, além de não conseguir
alterar em nada o destino final do indivíduo com tais características.
O pó referido por Schopenhauer é a matéria existente na natureza, sendo
portanto a própria natureza, da qual, por inúmeros tipos de processos de formação
de fenômenos, de acordo com cada espécie, todos os seres ganham existência.
Uma vez existente um fenômeno, está objetivada nele a Vontade de vida. E nesse
momento surgiu mais um sofredor no mundo das dores. Um sofredor é um existente,
que quanto mais desenvolvido, mais sofredor é, a exemplo dos vegetais, dos
animais e dos homens. Estes últimos, em especial, além de sofrer as dores do
corpo, oriundas do desejo, do tédio e do medo da morte, têm seus tormentos
aumentados em muito em função de sua racionalidade. O homem sofre e sabe que
sofre, padecendo duplamente.
A cada alívio de uma dor, o homem chama de felicidade, chamando assim
também do alimentar-se esperançosamente de uma suposta satisfação futura.
Nessa ótica já é possível perceber que a felicidade não existe, pois nunca está no
presente. Ainda melhor, ela nunca é, visto que ela é um não-ser que se atribui ao
verdadeiro ser, que é a dor. Um desejo é uma necessidade, uma carência; logo, uma
dor. Satisfazer um desejo é jogar contra ele o seu não-ser, a sua negação, como
uma espécie de antídoto contra um veneno. Veneno esse que sempre retomará sua
positividade cruel para infernizar qualquer ser que viva. E por ter a satisfação um
caráter essencialmente negativo foi que Schopenhauer (1958, p. 17) fez questão de
deixar bem claro, através de várias repetições em sua vasta produção filosófica, que
“a felicidade, portanto, está sempre no futuro ou no passado, e o presente é como
uma pequena nuvem sombria que o vento impele sobre a planície cheia de sol;
diante dela, atrás dela, tudo é luminoso, só ela projeta sempre uma sombra.”.
Dessas considerações sobre o presente, o passado e o futuro extrai-se uma
certeza, que é a de que somente o presente existe e que a felicidade não existe,
posto que se situa no aquém e no além do presente, ou seja, no ausente. Daí
decorre que muitas preocupações humanas poderiam ser evitadas apenas não
desperdiçando energia pensando no que não existe. Certamente muito mais
suportável seria a existência humana sem os fantasmas do passado e sem as
fantasias do futuro. Afinal, tudo o que vive, vive no presente, e o homem não é
exceção. Seu passado é um presente que se foi, que morreu. Toda vida vivida é
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uma vida morta, seja da sua infância, de dois anos atrás, ou o último minuto, tudo
morreu. O futuro, por sua parte, sequer nasceu e só pode ser fruto da imaginação
humana. A rigor, então, pouca diferença deveria fazer na vida humana os prazeres
ou as tristezas do passado, que só existe na sua cabeça.
Fugindo incessantemente o presente, que é o único tempo real e única
concepção segura de tempo, para o passado, que também é morte, significa dizer
que a todo instante o homem está fugindo da morte, para não se tornar ele mesmo,
enquanto indivíduo, um passado que só existiria na memória dos que ainda vivem.
Fugir da morte é a luta permanente do fenômeno e, nas palavras de Schopenhauer
(1958, p. 18), “assim como sob o ponto de vista físico o andar não é mais do que
uma queda sempre evitada, da mesma maneira a vida do corpo é a morte sempre
suspensa, uma morte adiada, e a atividade do nosso espírito um tédio sempre
combatido.”
A fuga constante do passado, querendo ficar sempre no presente da
existência, é a rotina do homem. Esse esforço individual para permanecer vivo
cansa, apesar de prescindir de dedicação racional, até à exaustão completa, quando
os órgãos do corpo falham e anunciam o retorno do indivíduo à natureza. Sendo o
presente fugidio, então tudo o que é está sempre em transição para o não-ser, a
partir da perspectiva do fenômeno, portanto da razão. Se o presente existente está
sempre sendo empurrado para a morte, para o passado, exigindo do indivíduo lutar
contra seu fim, tendo ele como único aliado o seu querer viver essencial, então isso
significa que a idéia de homem, isto é, a espécie, não se contentou com o exemplar
gerado, que já está com seus dias contados e que deve procriar para que a espécie
se veja em outro tipo, que, por ser descendente daquele que já nasceu errado,
também ele e todas as gerações que lhe sucederem nascerão falhas de destinadas
à morte.
O homem nasceu para morrer e não se conforma com esta idéia de ser para
a morte. O desejo ilimitado que está no mais íntimo do seu ser é um desejo de vida,
que se move na existência alimentando-se de si mesmo, buscando se satisfazer nos
desejos do indivíduo. O que o indivíduo é para a espécie, os desejos múltiplos do
indivíduo são para o querer viver, que é o desejo em si. A espécie humana é a idéia
de homem em si, perfeita e nunca reproduzida identicamente ao ideal de homem. O
ser perfeito não existe; se existisse, encerraria-se o ciclo de nascimentos e óbitos.
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Satisfazendo os desejos individuais, surge outra dor ainda mais forte que é a da
insatisfação do desejar em si, que quer desejar e o indivíduo não lhe dá vazão. Toda
essa dor move o homem, ou a dos desejos individuais ou dor do tédio.
Por mais que um indivíduo se esforce para satisfazer suas necessidades em
sua busca pela paz, o máximo que conseguirá será fazer com que sua aflição mude
de figura. As primeiras buscas de satisfação dos desejos, desde a infância, são
buscas materiais, que não raras vezes configuram-se em esforços de quase toda
uma vida. Supondo-se que após hercúleos empenhos o indivíduo atingiu satisfação
material, ainda assim a dor permanecerá em sua existência, quiçá ainda mais forte
em outros aspectos para os quais o vivente até então não havia se preparado para
vivenciar, como instinto sexual, amor apaixonado, ciúme, inveja, ódio, ambição,
medo, avareza, doença, etc.
Como a lava de um vulcão em erupção, a dor essente do homem sempre
encontrará maneiras de atormentá-lo. Caso o indivíduo tenha resolvido todas as
suas inquietações existenciais, mais angustiado ainda se tornará por ter colocado
sua vida no sombrio, triste e agonizante terreno do tédio. A partir daí sofrerá a mais
profunda e dilacerante dor de uma existência desejante sem ter o que desejar. E
para sair desse tédio mórbido e fúnebre, volta a desejar empiricamente e reinicia o
ciclo dos desejos, criando seus próprios objetos desejados em si mesmo ou nos
outros. Se ele já tem suas necessidades e desejos satisfeitos, para fugir do tédio
passa a satisfazer-se fora de si, alegrando-se e se realizando contentemente
comparando sua realizada existência com os sofrimentos alheios. Ainda, se não
encontra sofrimentos à sua volta para lhe dar satisfação, então provoca-os
deliberadamente para dar sentido à sua existência e encontrar a felicidade às custas
da infelicidade de outros.
Do exposto até aqui, é possível já um olhar menos opaco sobre a realidade,
compreendendo um pouco melhor as motivações humanas. De início, a ação
humana configura-se como uma atividade contínua ocupada com a necessidade de
assegurar sua própria existência, mantendo-se vivo. Uma vez assegurada a
existência e alcançados na batalha de cada dia os requisitos fundamentais para o
vivente assim continuar a ser, nada mais o indivíduo sabe o que fazer na vida, além
de manter-se vivo. Em vista disso, o esforço seguinte é aliviar os sofrimentos da
existência, empenhando-se na busca do alívio de suas dores e do abrandamento de
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suas carências. Isso quer dizer que sua ocupação principal passa a ser tornar a vida
insensível, quase que imperceptível, matando o tempo e fugindo de tudo que
perturbe. Uma vida com transcurso tranqüilo é o desejo nesse segundo momento,
em que cada ano passado sem muitas turbulências existenciais, portanto pouco
sentido sensorial e abstratamente, é um ano comemorado, felizmente superado e
ultrapassado sem muito esforço, o qual curiosamente é desejado, a cada
aniversário, que se repita muitas e muitas vezes.
Essa mesma linha de pensamento encontramos na seguinte passagem da
obra de Schopenhauer:
Vemo-los, logo que se livram de toda a miséria material e moral, logo quesacudiram dos ombros todos os fardos, tomarem sobre eles mesmos opeso da existência, e considerarem como um ganho toda a hora que têmconseguido passar, ainda que no fundo ela seja tirada dessa existência,que se esforçam por prolongar com tanto zelo. (1958, p. 19).
É possível perceber nitidamente as dores da existência na sociedade em
geral. A miséria, a fome e a falta de condições materiais que assegurem a
manutenção da existência em vida de um homem são traduzidas para a radicalidade
filosófica como desejo em si, ou querer viver. O desejo em si converte-se no
indivíduo miserável em uma multiplicidade de desejos, como o desejo de satisfação
da fome e o de proteção contra o frio, buscados quase que diariamente. Já em
homens plenamente servidos em suas condições materiais de existência, os ricos, a
dor que subjaz em seu ser traduz-se como tédio, ou em desejar sem objeto de
desejo. No quotidiano de tais indivíduos é comum encontrar, por um lado, cenas de
profunda tristeza e desorientação por não mais perceber algum sentido na vida, e,
por outro, uma busca da felicidade observando, e por vezes até gerando, os
sofrimentos alheios, para comparar com sua própria vida e assim poder lhe dar
algum sentido que seja conveniente. Viver é desejar e entediar-se continuamente.
Dor e tédio são os dois últimos elementos da vida. Eles são encontrados a
qualquer momento nos fenômenos da vontade. E na vida empírica é onde se tornam
visíveis essas duas afecções do indivíduo. Das espécies existentes, apenas o ser
humano conseguiu constatar e expressar, mesmo que poeticamente, esses dois
elementos, denominando-os de céu e inferno. Assim, o inferno seria o lugar de todas
as dores e tormentos, onde desejo, doença, nascimento e morte teriam sua morada.
Para o céu, nada mais restaria senão o tédio. Eis mais uma razão para a
desconstrução da crença no paraíso, ou seja, a monotonia seria tamanha e a falta
da necessidade de desejar, a ausência de qualquer carência levaria os primeiros
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homens que para lá fossem a transformar o local naquilo que lhes dá felicidade. Dito
de outra forma, em poucos dias o paraíso viraria um inferno pela ação do homem.
A luta diária pela existência, com suas necessidades sempre renovadas, seja
a cada alimentação ou mesmo a cada respiração, toma para si as rédeas da vida
humana. E ao mesmo tempo em que as motivações e movimentos humanos são no
intuito de manter o corpo vivo, também outro impulso afeta e atormenta o homem. É
o instinto que ele tem de perpetuar a espécie. A espécie quer manter-se viva às
custas do indivíduo, que é utilizado para tal fim como uma marionete, na maioria das
vezes sem sequer desconfiar, acreditando piamente que de fato ama a quem
pretende conjugar-se sexualmente. O homem, ludibriado pela natureza e pela
vontade de vida, pensa que ama de fato aquela em quem pretende depositar seu
sêmen; a mulher, por seu turno, iludida se torna com tal gesto, o qual chama de
“fazer amor”, e têm-se por feliz por receber, como terreno fértil que é, a sementinha
da próxima geração. Por compreender a vivência humana dessa maneira foi que
Schopenhauer (1958, p.20) afirmou que “através das exigências imperiosas, todos
os dias renovadas, o cuidado da existência preenche a vida humana. Ao mesmo
tempo atormenta-o um segundo instinto, o de perpetuar a sua raça.”
O homem, que é fenômeno do querer viver, portanto também é querer viver,
torna-se, por isso mesmo, um fugitivo da dor, da morte, da inanição e de todo tipo de
sofrimentos próprios da existência que quer se afirmar continuamente. E para
escapar das dores inerentes à sua condição existencial de ser para a dor, ele se
utiliza de enorme prudência e muitos cuidados. No entanto, não conseguirá com isso
escapar do inevitável e glacial beijo da morte. O grande final virá ao seu encontro,
queira ou não, com o total naufrágio daquilo que o constituía enquanto indivíduo.
A dor é o aspecto positivo da vida. O que nega a dor constitui o aspecto
negativo. O homem sente e se move a partir da dor. Como disse Schopenhauer
(1958, p. 21), “sentimos a dor, mas não a ausência da dor; sentimos a inquietação,
mas não a ausência da inquietação; o temor, mas não a segurança. Sentimos o
desejo e o anelo, como sentimos a forme e a sede; mas apenas satisfeitos, tudo
acaba.” Essa positividade dolorosa que caracteriza a vida humana clarifica a idéia de
que o que move o homem à vida é a infelicidade e só ela é percebida. Como
exemplo, pode-se observar que o homem, enquanto possui saúde, liberdade e
juventude, não os percebe. Dar-lhes-á importância depois de perdê-los, porque são
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eles bens investidos de um caráter eminentemente negativo. Um momento feliz da
vida só é notado quando dá lugar a um período de lamúria. A vivência da não-
felicidade é que de fato toca o homem. O abrandamento da dor torna então a vida
mais insensível, sendo uma vida feliz aquela com o mínimo de sofrimento possível.
A legitimidade ativa da dor na vida humana resta perfeitamente justificada. E
mesmo que ainda se resgate a dúvida acerca de que viver é sofrer, basta perceber
que a atividade humana, portanto a própria vida, é menos sentida à medida que
menos dor ela tem. A percepção da vida é inversamente proporcional ao sofrimento.
Assim é, por exemplo, quando dizemos que as horas passam rapidamente, pois isso
acontece quando o transcurso do período em questão não é sentido, portanto foi
agradável. As horas passam rápido em momentos agradáveis. Já em momentos de
crueza da vida, sem abrandamentos ou confortos forjados para amenizar a realidade
sofrida da vida como ela de fato é, nesses momentos as horas parecem se arrastar.
E é aí que a vida é verdadeiramente sentida, na dor.
Até aqui ficou claro que vida e dor são quase sinônimos e que sentir as
penúrias da existência é viver a vida como ela é. Além disso, toda realização de
desejos, satisfação de carências, amenização da condição miserável ou ainda a
mudança de hábito para fugir do tédio, tudo isso indica que querer viver é
movimentar-se continuamente para evitar a dor. Ora, se é precisamente a dor que
possibilita percebermos o tempo, também é exato afirmar que o entretenimento
bloqueia a noção temporal humana, que só é reativada no final da distração. Resulta
daí que toda a existência humana se torna tanto mais feliz quanto menos a
sentimos, evidenciando mais uma vez que a vida não vale a pena e que muito
melhor seria livrar-se dela.
Na página 19 foi feita uma referência ao passeio de Dante e seu guia Virgílio
sobre os círculos do inferno expressos magnífica e poeticamente em “A divina
comédia”. Oportuna aqui mais uma referência, no sentido de que nessa belíssima
obra da literatura universal é possível encontrar mais uma forte expressão do tédio e
da dor, os dois elementos fundantes da vida ali representados por céu e inferno.
Desnecessário lembrar qual significa o tédio. É imensa a falta de clareza e notório o
descomunal esforço de imaginação na descrição do céu, sobretudo no momento em
que o personagem principal encontra o senhor paraíso, que mais se assemelha ao
rei da monotonia. Certamente a dor do leitor é maior diante da entediante frustrada
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tentativa de descrever um paraíso do que de acompanhar a narrativa infernal da
primeira parte, que possui inúmeros eventos análogos às vivências mundanas. O
poeta descreve o inferno a partir de experiências humanas ampliadas ao eterno e o
céu a partir da sua capacidade de fantasiar acerca do maçante. Também
Schopenhauer constatou tal singularidade na expressão do poeta:
Onde iria Dante procurar o modelo e o assunto do seu inferno senão nonosso mundo real? E contudo é um perfeito inferno que ele nos pinta. Aocontrário, quando ele tratou de descobrir o céu e os seus gozos,encontrou-se em frente de uma dificuldade invencível, justamente porqueo nosso mundo nada oferece de análogo. (1958, p. 23).
Ao dizer que a vida neste mundo é um inferno, está-se atribuindo qualidades
da vida a seu correlato imaginário chamado inferno. Há quem consiga realizar
proezas mentais para observar as coisas de um ponto de vista otimista. Isso não
pode ser levado a sério, pois o otimismo não passa de uma manobra sarcástica do
espírito de zombeteiros maliciosos. Certamente são pessoas frias que sequer olham
para os miseráveis famintos dormindo sob a proteção de folhas de papelão embaixo
de pontes, viadutos ou marquises; pessoas que talvez não saibam que jamais houve
na história da humanidade um período de paz no mundo, ou quando houve foi
apenas uma breve pausa para o começo de uma nova guerra; indivíduos que não
conhecem uma carceragem nem sua população de suplicantes, assim como são os
moribundos das alas de oncologia dos hospitais; enfim, os otimistas riem
debochadamente de um mundo repleto de doenças, corrupção, prostituição infantil,
acidentes fatais ou incapacitantes, envelhecimento inevitável e cheio ainda de uma
cruel e infinita variedade de formas dolorosas de morrer.
Crêem os otimistas no progresso. Ora, que progresso há no crescente
distanciamento de si e de seus pares a que o homem contemporâneo está
acometido, através do domínio da tecnologia e da virtualização das relações
humanas? O homem, cada vez mais se desconhece, chegando por vezes até a
estranhar e a não compreender os mais diversos impulsos do querer viver que nele
se manifestam. Não entende, por exemplo, por que sente tristeza, abatimento e
desânimo tendo tudo o que uma pessoa poderia querer em termos de bens
materiais e de família. Não é raro o sentimento de solidão e depressão em pessoas
com boa realização financeira e com boa relação familiar, cercada de afeto por
parentes e amigos. Não compreendem elas que, tendo tudo o que desejam, sofre
seu desejar infinito por carência de objeto. Nem a fartura ou uma harmoniosa
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constituição familiar pode servir, portanto, de argumento aos otimistas, que desviam
seus olhares corrompidos das infindáveis chagas do mundo.
O ordenamento do universo, que impede os planetas de se chocarem ou que
mantém mar e terra separados sem se confundirem, o movimento harmônico de sol
e lua e os ciclos das estações, tudo isso seria fundamento para um pensar otimista
teleológico, não fosse o lado negro da questão que uma análise mais apurada é
capaz de mostrar. Percebe-se na natureza que quanto mais tende um ser à
inteligência, maior é sua dor no mundo. Quanto mais sensível se torna a espécie,
mais essa sensibilidade é receptível ao sofrimento. De nenhuma maneira procede a
idéia de que se pode vislumbrar um propósito para o ser no mundo. A vida humana
é desprovida de sentido, a não ser que se entenda por sentido o movimento
motivacional ontológico de dor e tédio.
Foi por isso que Schopenhauer escreveu:
Chequemos agora aos resultados dessa obra tão exaltada, consideremosos atores que se movem nesta cena tão solidamente formada: vemos ador aparecer ao mesmo tempo que a sensibilidade, e aumentar à medidaque esta se torna inteligente, vemos o desejo e o sofrimento caminhandopar a par, desenvolver-se sem limites, até que por fim a vida humanaapenas oferece assunto de tragédias ou de comédias. Posto isto, sehouver sinceridade, ter-se-á pouca disposição para entoar a Aleluia dosotimistas. (1958, p. 25).
Depois do espanto da constatação de tanto desastre, de quão podre é o
mundo da vida, ainda resta mais uma frustração: a de achar um culpado para uma
existência tão carregada de defeitos. E é aí que o Deus judaico-cristão é lembrado,
em uma tentativa humana de tirar de si a própria culpa por ter que caminhar
inadiavelmente para a morte pela pior estrada possível. É risível essa hipótese,
considerando o já exposto. Em primeiro lugar, porque, se um Deus fez este mundo,
faltariam-lhe fiéis que lhe rendessem louvores sem que se lhes pese na consciência
o escárnio maldoso de tal tributo. Em segundo lugar, por que certamente não seria
adequado chamar de Deus ao criador da imperfeição; mais justo e apropriado seria
chamá-lo de demônio criador. Tendo por demônio esse grande arquiteto do
universo, mais justificação teria um diálogo entre suas criaturas e ele, ao menos para
questioná-lo sobre as razões de tamanha crueldade, como sugeriu Schopenhauer
(1958, p. 25): “Imaginando-se um demônio criador, ter-se-ia portanto o direito de lhe
gritar mostrando-lhe a sua obra: ‘Como ousaste interromper o repouso sagrado do
nada, para fazer surgir uma tal massa de desgraça e de angústias?’”.
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O nada tem o seu valor e a sua importância para a filosofia. Afinal, uma
formação orgânica humana individual veio do nada e voltará ao nada. Por isso a
necessidade de se pensar a partir da metafísica, pois a racionalidade jamais
conseguirá compreender o ser e o nada pelo princípio de individuação. É preciso
pensar o homem enquanto idéia ou espécie e o nada como o não-ser empiricamente
impossível de ser verificado. Quando Schopenhauer sugere o questionamento ao
suposto demônio criador do mundo, ele está falando do nada como não-ser do todo,
que é pura dor. Já da perspectiva fenomênica, o nada significa não-ter-sido ou não-
ser-mais. Assim, o fenômeno da Vontade também poderia colocar em dúvida o
próprio infortúnio de existir, cogitando inclusive uma provável preferência pelo
continuar não-sendo. Por isso, nas palavras de Schopenhauer (1958, p. 26):
Considerando a vida sob o aspecto do seu valor objetivo, é pelo menos duvidoso
que ela seja preferível ao nada; e eu diria até que se a experiência e a reflexão se
pudessem fazer elevariam a voz em favor do nada.”
Perfeitamente compreensível colocar a existência em xeque, pois se querer é
essencialmente sofrer, e como viver é querer, então toda a existência é
essencialmente dor. Para o homem é ainda pior, visto que ele é o ser mais
desenvolvido da natureza e que quanto mais elevado é o ser, mais ele sofre. O
homem é o sofredor mor do mundo. Todos os indivíduos dessa espécie deveriam,
logo ao amanhecer de cada triste dia, olhar para seu irmão de dor e render-lhe
condolências. Afinal, a infeliz vida do homem se resume a uma luta diária pela
existência, carregando nas costas um enorme e torturante peso, que é a certeza de
que será vencido.
Se há algum sentido na vida, este é o sofrimento, cuja base motivacional para
o homem é a busca de saúde, alimentação, proteção do frio e da umidade e
satisfação sexual. E mesmo que consiga tais bens, o homem não é como os animais
que se satisfazem muito mais com a simples existência. O homem se aflige por
essas carências e ainda por antecipar o futuro através da esperança e por reproduzir
o passado através da memória, sem contar as inúmeras preocupações humanas
sobre o ausente, coisa que os animais não fazem. Com essas características está o
homem condenado à vida, vivendo cada dia sabendo que o amanhã será ainda pior,
e assim gradualmente até chegar a morte. Por isso que, racionalmente, seria digno
de louvor suportar as dores deste mundo até o final evitando a procriação, a fim de
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poupar a próxima geração do fardo da existência. Seria, no mínimo, questionável
colocar outro ser neste mundo, que mais parece um local de penitência. Este
mundo, aliás, e também o próprio homem, são algo que não deveria ser, pois são
um erro. Conseqüentemente, as ações e motivações humanas são plenas de falhas,
razão pela qual é dever de cada indivíduo ser tolerante com seu irmão de infortúnio,
pois seus erros são erros da humanidade, na qual todos se irmanam. O ciclo de
desventura é o que realmente é e que será até algum final de tudo, até, quem sabe,
um nada absoluto, como sugere Schopenhauer (1958, p. 26): “Querer sem motivo,
sofrer sempre, lutar sempre, depois morrer e assim sucessivamente pelos séculos
dos séculos, até que o nosso planeta se faça em bocados.” A linguagem humana,
então, não é de alegria, mas de pesar.
5 CONCLUSÃO
Ante todo o arrazoado apresentado na análise filosófica da perspectiva de
Arthur Schopenhauer acerca do suicídio, da morte e do sofrimento da vida, algumas
considerações finais restam indubitáveis. Em primeiro lugar, ficou devidamente
elucidado que o impulso suicida não é racional, ainda que a vida não valha a pena.
Afinal, o pó de onde vem o indivíduo e para onde voltará não merece qualquer
esforço para o autoaniquilamento. Além disso, o suicida não quer realmente morrer;
ao contrário, ele tem tanta vontade de viver e essa vontade encontrou tantos
entraves para sua objetivação que acabou conduzindo seu fenômeno para a morte,
a fim de possibilitar sua renovação na natureza. Enfim, aquele que comete suicídio
não quer acabar com a vontade de viver; ao contrário, defende essa vontade tão
intensamente que quer acabar com os obstáculos que a prejudicam, mesmo que um
desses obstáculos seja sua própria individualidade, sua própria vida.
Não ficou definitivamente esgotada a questão do suicídio, mas sem dúvida
alguma a mensagem de Schopenhauer muito ajudou para lançar uma luz mais
racional sobre um tema tão envolto em preconceitos em todas as camadas da
sociedade e ao mesmo tempo tão pouco debatido filosoficamente. Não foi menor a
contribuição do filósofo para clarear a questão da morte, que também ou é pouco
refletida ou é enfrentada na maioria das vezes a partir de pré-juízos muito próximos
da superstição. A morte é o fim do fenômeno objetivado da vontade de vida ou
espécie. Por isso, quem morre é sempre a criatura efêmera e individual, jamais o
próprio desejo de vida em si. A espécie, portanto, não nasce e não morre, deixando
esse ciclo de nascimento, doenças, envelhecimento e óbito como exclusividade do
indivíduo. Um dos importantes resultados encontrados a partir dessa constatação da
relação espécie-indivíduo é que o medo da morte pertence à espécie, ainda que
quem morra seja a individualidade onde habita a razão. O homem sempre estará
vivo, portanto, na espécie, pois mesmo que desapareçam os atributos que lhe digam
como “eu”, outros “eus” virão nas próximas gerações formados exatamente da
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mesma matéria que constituía o “eu” do passado e que voltou ao seio da natureza
para lhe servir de insumo na objetivação de um novo fenômeno.
Finalmente, foram apresentados vários argumentos de inspiração
Schopenhauriana ressaltando o quanto a vida é desprezível. Isso por que viver é
querer. E querer é sofrer. Logo, viver é sofrer. Além disso, o querer viver é o grande
desejo que motiva as ações humanas e que ao mesmo tempo leva o homem a
buscar compulsivamente objetos para realização parcial de sua vontade de vida. O
desejo nunca se esgota, mesmo que algumas carências encontrem satisfação. Em
vista disso, após todas as carências satisfeitas, ainda resta insatisfeita a grande
carência humana, que é o seu desejar em si. Nessa situação, em que não há mais
desejos individuais, assume o comando da dor o tédio, que é o desejar sem ter o
que desejar. A vida, portanto, é um duplo sofrer, o que equivale a dizer que é um
sofrer por desejar alguma satisfação e um sofrer pelo tédio, ou seja, em virtude de o
desejo em si, que habita no íntimo de cada ser humano, desejar sem que o indivíduo
necessite de objetos de satisfação ou não conseguir encontrar mais nada neste
mundo que ele, indivíduo, possa desejar, tornando a sua vida insuportavelmente
sem sentido, como de fato sempre foi.
Assim, ao final desta monografia restou esclarecida a tamanha zombaria que
é a perspectiva otimista sobre este mundo imundo. A própria felicidade, que tantas
páginas recebe na atualidade por autores defensores de uma boa vida, não passa
de negação de uma carência ou insatisfação. Além disso, a vida em si é constituída
em primeiro plano pela dor, que é o que move o homem em sua trajetória
existencial, sendo a dor o pólo positivo de toda realidade vital. Em contrapartida,
tudo o que vem suprir necessidades pertence ao pólo negativo. A radicalidade
dessas questões trazidas à lume poderiam fornecer material para incontáveis
estudos e desenvolvimentos futuros, sobretudo no estudo da moral e da ética. Afinal,
o exposto aqui serviu para o primeiro passo da investigação filosófica, que é o
espanto. Não há algo mais espantoso do que a constatação de que a vida humana é
um erro amargo e doloroso que quer se prolongar eternamente através da
procriação. Depois desse espanto, aqui apresentado, seria interessante um
prolongamento dos estudos e das pesquisas objetivando uma reflexão sobre a
postura humana a ser adotada diante de uma existência tão cruel. O primeiro passo,
certamente, foi dado.
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REFERÊNCIAS
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LEFRANC, Jean. Compreender Schopenhauer. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
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