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4 A aula como desafio
experincia da histria
Vaidei Lopes de Araujo
Introduo
No minha inteno discutir neste texto a natureza do presente em geral ou
de nosso presente em particular nem as possibilidades contemporneas de
uma histria do tempo presente mas a partir de um panorama de como se
transformou o valor epistemolgico do presente no comeo dos tempos mo-
dernos pensar os desafios pedaggicos para o enfrentamento em sala de aula
da temporalidade em geral. No farei isso como um especialista em prtica de
ensino de histria mas como um professor universitrio que na disciplina de
teoria da histria precisa planejar essas tarefas em sua atividade cotidiana.
Colocar o problema do presente nesses termos deve nos levar a questio-
namentos em duas direes. Primeiro o que isso que podemos chamar de
presente e como ele afeta de forma especfica nossa relao com a histria.
Em segundo lugar como certos traos de nossa contemporaneidade exigem
uma reformulao do modo como geralmente lidamos com o problema do
tempo em s
afie aula.
Para limar R. de Mattos que fez da aula vida.
Transformaes no valor epistemolgico do tempo presente
Nossa co-m reenscird temporalidade avanou de forma significativa a par-
tir da-fund mentao -do tempo na subjetividade transcendental proposta
por Husserl. Como base de toda experincia o tempo deriva da forma como
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Aaula como desafio experincia da histria
nossa conscincia est estruturada, permitindo que possamos distinguir
processos anteriores e posteriores, reteno e propenso, memria e expec-
tativa, passado e futuro.
O presente, como o tempo do agora, justamente esse ponto onde a ex-
perincia se torna possvel. A partir de motivaes mais ontolgicas, Heideg-
ger lanou as bases decisivas para uma descrio da temporalidade enquanto
condio humana. Na segunda parte de Ser e tempo 1996), o filsofo abre a
possibilidade para pensarmos o tempo histrico a partir de uma perspectiva
no meramente historicista. Afirma que a experincia cotidiana do agora, em
sua realidade quase que imediata, destacar-se-ia do ontem e do amanh, do
que j no e do que ainda no aconteceu. No entanto, nesse instante do ago-
ra, aparentemente autorreferido, o passado e o futuro vigorariam sob formas
variadas: lembrana e angstia, saudade e falta, medo e esperana, incerteza
e confiana, entre muitos outros efeitos e afetos que formam a trama do ago-
ra. O nascimento/passado/origem e a morte/destino/futuro devem ser ento
encarados como partes inseparveis do instante/agora. Por isso, para Heideg-
ger, toda compreenso da histria sempre a compreenso desse espao entre
nascimento e morte, passado e futuro, ou seja, da temporalidade.
Todo fato s possvel por encontrar uma situao neste entre. a partir
dessa experincia primria que a histria pode acontecer e tornar-se objeto
de uma historiografia, de uma escrita da histria. A disposio do homem
enquanto um ser entre nascimento e morte constitui seu carter temporal, e
s porque o homem temporal pode haver uma histria e uma historiogra-
fia. No a histria que constitui a temporalidade humana nem a historio-
grafia que constituiu os fatos ou a histria, mas a temporalidade, enquanto
condio estrutural do humano, que possibilita qualquer histria e essa con-
dio a base sobre a qual podemos nos relacionar com o passado e o futuro
de diferentes formas. Certamente, essa afirmao ainda no foi digerida por
grande parte da reflexo sobre a historiografia desenvolvida ao longo do s-
culo XX. Awiaior ? t e dosautores reduz a teoria da histria a uma simples
epistemologia. Dessa ajmadilha no escapam mesmo aqueles que, acredi-
tando produliwm discurso anticientfico, apenas ocupam seu oposto estru-
tural, ou seja, a celebrao de uma subjetividade hipertrofiada. A reduo do
problema da histria busca de equilbrio entre os poios da subjetividade e
da objetividade romente obscurece a dimenso mais fundamental das con-
dies ontolgiolo-existencNis-que fundamentam as diversas possibilidades
da histria, inclusive a da sociedade cientfico-tecnolgica que naturalizou
nossa compreenso do mundo no par metafsico sujeito/objeto.
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Da mesma forma dizer que toda histria uma histria do presente
uma espcie de projeo de nossos interesses sobre o passado dizer muito
pouco embora a popularidade da frmula seja um sintoma de nosso tempo.
Se admitirmos o carter temporalmente denso do presente ele deve ser visto
no como uma dimenso fechada em si mesma mas como o resultado da
prpria histria viva com a qual sempre nos relacionamos. Portanto se toda
histria uma histria do presente todo presente inclusive nos interesses
que pode articular o resultado de uma histria da qual no pode separar
seno apenas formalmente suas dimenses pretritas e futuras.
Essa pequena descrio pode nos servir de guia para entender as trans-
formaes na relao com o tempo presente. A ideia de uma universalidade
da natureza humana ou seja a crena de que o homem poderia ser definido
por algum trao no histrico como ser dotado de razo ou animal poltico
permitiu uma espcie de proximidade entre o ontem e o hoje. A distncia
poderia se dar apenas pelo arruinamento e decadncia dos povos logo o tra-
balho de reaproximao seria como o de uma restaurao uma redescoberta
de si mesmo. O presente igual a qualquer outro presente passado ou futuro
poderia ser o lugar a partir do qual nos relacionaramos com a verdade. Do
ponto de vista historiogrfico a melhor narrativa s poderia ser a histria
escrita no presente a histria testemunho. A passagem do tempo no afeta o
valor dessa histria a no ser que a comunidade para a qual ela fazia sentido
seja destruda perdendo-se assim o precioso fio da continuidade.
O valor de verdade desse relato dependeria da posio de autoridade de
quem o escreveu. Quando o problema da imparcialidade aparecia ele nunca
era resolvido pela distncia temporal. As respostas poderiam ser a de assu-
mir a posio de estrangeiro no envolvido ou a de levantar os diversos pon-
tos de vista sobre os acontecimentos na tentativa de reconstruir uma viso
total o oposto da viso parcial.
Nos tempos modernos a emergncia de um novo campo de experin-
cia da histria entendida como uma totalidade em formao acumulativa
no tempo exigiu uma mudana quase completa na forma de se relacionar
com o tempo presente. Por um lado ele valorizado como o tempo mais
evoludo como naimetsfora inicial da querela dos antigos e modernos: os
modernofodem vetnelhor no por serem superiores aos antigos mas por
contar-6n com -sua herana so anes em ombros de gigantes. Como con-
sequncia dessa premissa todo presente tornar-se- ultrapassado ou seja
ser superado por um presente-futuro superior e diferente. Surge a sensao
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A segunda concepo de presente passa a predominar com a emergncia
do conceito moderno de histria. O presente vivido como transio mas
ganha consistncia por estar enlaado em uma grande narrativa que parece
N I
produzir a certeza de que a histria ser redimida em uma espcie de rea-
lizao ou fim da histria. Isso no quer dizer que essa viso que tendeu a
hegemesnizar-se no encontrou as mais diversas formas de resistncia: seja
pela realer-convivncia com modelos antigos de experincia da histria
seja pela perda de confiana no sentido geral da histria ou mesmo nas ten-
tativas de liberar outras histrias possveis. Lembro apenas dois grandes
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nidade. Ela s pode ganhar sentido se estiver situada em relao s demais
pocas: moderna medieval antiga. E justamente esse consenso ou seja o
sentido da histria humana enquanto uma totalidade que no parece estar
mais disponvel. No significa dizer com isso que no somos mais capazes
de produzir sentido com os acontecimentos mas que essa produo parece
ter-se democratizado no interior das diferenas produzidas dentro e entre as
naes. Assim os diversos setores sociais segregam suas prprias narrativas
suas histrias-memrias fundadoras com maior ou menor grau de controle
erudito e cientfico i s s o no fundo no importa tanto para esses setores.
Porm no conseguimos vislumbrar mais uma meta-histria que possa con-
ciliar as inevitveis contradies entre essas mltiplas narrativas nem muito
menos a atividade acadmico-cientfica capaz de se constituir enquanto es-
pao monopolizador do discurso legtimo sobre o passado. O fato de esse fe-
nmeno no abalar a prpria legitimidade do conhecimento histrico talvez
seja apenas um sintoma de sua perda de relevncia em termos tradicionais.
Para resumir e de modo esquemtico o presente pode ento ser pensa-
do como:
1. presena: o instante para o qual constantemente convergem imagens do
passado e do futuro. Reteno e propenso. Experincia e expectativa.
Nessa acepo o presente o agora a simultaneidade das experincias
assimtricas de passado e futuro.
2. poca: um momento cujos sentido e identidade dependem de uma in-
terpretao coesa do passado e do futuro. Seja como poca moderna
seja como contempornea sempre pressupomos uma grande narrativa
da histria humana. Nessa dimenso o presente ganha sentido quando
pode ser referido histria como o lugar e o momento que fazem vin-
gar o passado no futuro como um projeto.
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autores nessa tradio: Niezstche e Walter Benjamin. No por acaso os dois
tornaram-se referncias constantes no debate atual que procura recolocar o
problema do tempo, da histria e do presente.
Na Segunda considerao intempestiva (2005), Nietzsche revoltava-
-se contra a confiana historicista no progresso constante para melhor; esse
excesso no condizia com a experincia de que ainda poderamos identifi-
car no passado momentos no superveis, modelos intemporais. Nietzsche
reintroduz, ento, o valor tico do anacronismo e, assim, outro tipo de rela-
o com o tempo, diferente da linearidade do historicismo tardio.
Como somos o resultado de geraes anteriores, somos tambm o resul-
tado de suas aberraes, paixes e erros, mesmo de seus crimes; no possvel
libertar-se totalmente dessa cadeia. Se condenamos aquelas aberraes e nos
consideramos desobrigados em relao a elas, o fato de provirmos dela no
afastado. O melhor que podemos fazer confrontar a natureza herdada e here-
ditria com o nosso conhecimento, combater, por meio de uma nova disciplina
rigorosa, o que foi trazido de muito longe e o que foi herdado, implantando um
novo hbito, um novo instinto, uma segunda natureza (Nietzsche, 2005).
Em suas teses sobre a histria, Benjamim propor a exploso desse con-
tinuum temporal produzido pela narrativa histrica que ele chama de histo-
ricista, sugerindo um uso do passado que pudesse nos liberar para o instante
capaz de reconstruir a histria e desvi-la do curso do desastre. Essas duas
reflexes antecipavam a crtica da modernidade e de sua ancoragem na ideia
de continuidade, processo, identidade e orientao. Ambos duvidavam no
s da capacidade da histria nos orientar, mas tambm da direo para a
qual essa histria estava apontando.
O trabalho de desvendamento terico-historiogrfico da modernidade
realizada por autores como Arendt, Koselleck, Habermas e Foucault, entre
outros, parece ter-nos conduzido a um momento que poderamos chamar
de poca clssica dos tempos modernos, ou seja, a rotinizao e democra-
tizao das formas modernas de produo de sentido e historicizao. No
que essa rotinizao seja satisfatria, mas assinala a transformao do pro-
blema moderno em uma tecnologia pronta a servir a qualquer interesse. Por
isso, talvez, vemos proliferar mais do que nunca, na cultura histrica atual,
narrativas histrico-identitrias. Quase todos os grupos, segmentos e insti-
tuies s o c i a D f i e l l te ticoberto a frmula para a produo de iden-
tidade, orientao e legitimao por meio de narrativas histricas. Um dos
problemas a ser destacado que esses mesmos autores, que revelaram os
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modos de formao de sentido e subjetividade, tambm nos alertaram para
as armadilhas dessas configuraes.
No cenrio contemporneo, vemos duas direes opostas e complemen-
tares. Por um lado, temos um controle social crescente das formas de pro-
duo de sentido histrico por meio das prticas de historicizao A funo
de orientao da histria mobilizada na legitimao dos mais diferentes
projetos e grupos, sem que sua legitimidade possa ser questionada, mas sem
que qualquer dessas orientaes consiga alcanar o grau de adeso e natu-
ralidade das grandes narrativas nacionais produzidas desde o sculo XIX.
Essa perda de orientao global tem produzido o que muitos autores, desde
o final da dcada de 1970, caracterizaram como um alargamento do tempo
presente em funo da perda de confiana em nossa capacidade de enfrentar
o futuro como um projeto, como um momento histrico integrado ao passa-
do e presente como o lugar de realizao.
Talvez, esse esgotamento por exausto e excesso da capacidade de ar-
ticular o passado e o futuro em uma narrativa explique o interesse crescen-
te por uma histria do tempo presente, um esforo por tornar transparente
algo que, para ns, j no tem o sentido estabelecido em uma cadeia que vai
do passado ao futuro. Ao deixar de ser uma poca, o tempo presente torna-se
um enigma ass im como o passado e o futuro.
Temos, ento, a sensao de que talvez o futuro no seja o lugar da soma,
da redeno do passado e do presente, mas apenas outro momento nessa
sucesso temporal que j no sabemos aonde nos leva. Essa situao torna
mais aguda a,percepo da finitude das coisas humanas, a perda da possibili-
dade de transcendermos, de sobrevivermos pois tambm j no acredita-
mos em uma estabilidade da natureza ou essncia humana. Nesse cenrio, a
viso do presente como uma poca cede lugar a sua percepo como instante
e presena. Essa perda da histria, dessa grande cadeia causal, nos desperta
uma vontade de viver no passado, de torn-lo fisicamente presente por meio
de abjetos, textosI7e7, oas, cidades e ambientes inteiros. Esse desejo um
dos m4orest10 que tem sido chamado hoje de historiografia de presena,
que tem em Gumbrecht um de seus principais tericos e praticantes.
No haveria espao aqui para expor mais detidamente os aspectos des-
sa historrafia, a bibliografia a seu respeito crescente e temos uma boa
amostra dela mesmo eelngua portuguesa. O que farei agora tentar,
n 11 1
1Refiro-me aqui a Pierre Nora, Hans Ulrich Gumbrecht e Franois Hartog, mas essa percepo parece
ter sido um fenmeno/sintoma geracional, mais do que uma descoberta intelectual.
Ver Gumbrecht (1998, 1999, 2009, 2010a, 2010b).
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muito provisoriamente, tirar algumas consequncias e possibilidades dessa
nova situao para a prtica em sala de aula.
A aula como narrativa e evento; como sentido e presena
A produo de sentido histrico por meio do recurso ao crculo hermenu-
tico em sua constante oscilao entre parte e todo responde a uma crescente
conscincia e mesmo, at certo ponto, uma vontade dos tempos modernos
de se distanciar de seu passado. Essa perda do passado resolvida pela ideia
de formao o que realmente importa conservado como uma identidade
em formao arquetipicamente, a nao ou a subjetividade e individua-
lidade burguesas.
O que temos de pensar hoje o sincronismo e anacronismo como pos-
sibilidades legtimas de relacionamento com o passado. Os alunos na uni-
versidade ou na escola vivem em um mundo em que a abundncia de re-
ferncias histricas em todos os campos da cultura exige novas formas de
experincia. Reduzir essas referncias a um plano meramente diacrMco ou
como pretexto para busca de sentido pode significar uma limitao brutal
da riqueza experiencial desses objetos. As tecnologias de historicizao por
produo de sentido e orientao devem conviver com outras formas de ex-
perincia histrica. Talvez, um sintoma desse fenmeno seja o modo como
temos acesso hoje ao legado da histria humana por meio da conjuno entre
a imensa capacidade de armazenamento de dados e os mecanismos de recu-
perao e seleo de informao. Vivemos a possibilidade de despragmatiza-
o de parte significativa de nossa experincia do passado.
A tarefa principal da historiografia como um ramo das humanidades,
cuja relevncia parece ser atualmente maior que em qualquer outro tempo,
continua sendo a desalienao do homem. Desalienao significa a escuta
daquilo que compartilha conosco a conjuntura do mundo. Confrontar-se
com essa integiidade, do ponto de vista de nossa condio temporal, signi-
fica explorar as u1.1-1-las possibilidades de escuta que esse estado permite: a
circunstncia do sentido que integra em projeto e a entrega ao imediatismo
das coisas, o intemporal que nos oferecido como reverso de nossos esforos
para dar sentido ao mund(Dito de outra forma, no podemos apenas ensi-
nar a nossos alunos cbmo dar sentido ao mundo ou como desvelar os sentidos
que o mundo comporta, mas tambm que eles devem estar preparados para
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enfrentar o reverso do sentido, a tragdia, a injustia, o horror como partes
integrantes de nossa condio. Assim, no bastam os apelos lembrana, ao
sentido, identidade e narrativa como forma de enfretamento da condio
traumtica de nosso tempo. Qualquer tentativa de excluir o trauma da his-
tria humana uma forma de alienao e, como tal, contm um perigo a
iluso de que podemos nos apropriar integralmente de nossa histria, talvez
a maior forma de alienao, pois ignora justamente o que torna a histria
possvel, nossa incompletude e carncia liberadora.
Dar sentido, historicizar, destraumatizar so formas de domesticar a his-
tria. Certamente, necessitamos dessa tecnologia para fazer histria como su-
jeitos, mas, como em toda tecnologia, h o risco do congelamento, da iluso
e esquecimento do carter construdo e insuficiente desses procedimentos.
Hoje, podemos ter contato com um presente repleto de experincia histrica,
podemos ter em nossos computadores e em nossas telas o legado humano da
msica, das artes plsticas, das literaturas em sentido amplo o que nos
promete, por exemplo, o Google Books e todas as outras ferramentas que se
multiplicam no universo digital e miditico. A orientao como produto da
experincia histrica sempre significou uma renncia, do tipo que produz a
identidade e a direo, que indica o carter necessariamente seletivo da his-
toriografia de sentido. Ao lado dessa historiografia, tambm podemos imagi-
nar novas formas de representao do passado, que, sem negar as funes de
orientao do trabalho do historiador, apontem para outras formas de desa-
lienao, de formao. Nenhuma identidade pode nos redimir ou esgotar; a
identidade e a orientao so necessidades do mundo da vida, mas no esgo-
tam nossas possibilidades de lidar com o passado.
Em sala de aula, o que pode significar tudo isso? Que, ao lado das prti-
cas de narrativizao, significao, orientao e formao de subjetividade,
devemos estar abertos para considerar formas de historicidade que so hoje
mais familiares a nossos alunos do que foram para ns e que, no cenrio
de nossa sociedade-arquivo, tornaram-se mais provveis. Ao lado de uma
abordagem diacrnica, pensar modos anacrnicos, ecolgicos ou simultne-
os de experimentar o legado da histria humana. Entre essas duas tecnolo-
gias, podemos situar formas hbridas de organizao dessa experincia, nas
quais as Tilrivnss de sintido e de presena possam ser exploradas.
R pont de kista relao antropolgica com o tempo, Gumbrecht
vem sempre se referindo ao desejo de eternidade que explicaria o esforo
por transcender o nascimento em direo ao passado e a morte em direo
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ao futuro. Se, em seus primeiros ensaios, esses dois caminhos pareciam no
completamente singularizados, pode-se observar a tendncia, em sua refle-
xo mais recente de destacar a questo da transcendncia do nascimento das
anlises fenomenolgicas tradicionais. Os resultados concretos dessa esco-
lha so profundamente distintos e capazes de operar a ciso estrutural entre
produo de sentido e produo de presena.
Heidegger formulou muito claramente a ligao entre a antecipao da
morte e a possibilidade do ser humano Dasein) lanar-se em projeto. O sen-
tido dado por esse prenncio permite a concentrao temporal de passado,
presente e futuro, que constitui a condio de possibilidade da ao e do sen-
timento de acelerao do tempo que caracteriza a modernidade. O que no
estava claro no Heidegger de Ser e tempo a possibilidade do contato com o
mundo se dar no por uma deciso pelo modo de vida autntico, mas, como
afirma Gumbrecht, pelo deixar-se levar, pela quietude e desacelerao que
caracterizam a transcendncia do nascimento em direo ao passado. Trata-
-se, em ambos os casos, de um processo de historicizao? No caso das nar-
rativas historiogrficas, os objetos do passado so, sem dvida, retirados de
suas funes pragmticas, mas reinseridos na realidade como ndices de dada
poca histrica. Remontar a essa poca por meio desse objeto requer do leitor
um esforo interpretativo. Trabalho totalmente diverso exige a relao com
o objeto enquanto fragmento no simblico do passado: nesse caso, no se
trata de produzir um sentido de distncia, mas, justamente, sua dissoluo
pela experincia da fora do objeto, evento ou fenmeno apresentado. Essa
constatao permitira pensar uma histria dos processos de historicizao que
no coincidem linear e triunfalmente no crontopo conscincia histrica.
O que garantiu o carter obrigatrio modernidade foi a promessa de
que a entrega ao projeto significaria a realizao dos desejos de eternidade,
seja pelas tecnologias produzidas pela cincia, seja pela identificao com
um movimento da prpria realidade histrica, cujos limites coincidiam com
a totalidade do real. Gum-brecht aponta, em Produo de presena, que no
se trata somente dite repudiar ou tentar superar a modernidade gesto afinal
to moderno , mas tambm que no se pode tomar a autoconscincia mo-
derna como uma descrio acurada de nossa situao. Se, para os modernos,
a histria do ocidente foi a da desmaterializao do mundo e da perda pro-
gressiva drresistncia de suas substncias pela ao de um sujeito solar, o
que o postulado da 3scilau.estrutural entre presena e sentido sugere que
essa linearidade no passa de uma autoimagem parcial. A histria moderna
no coincide com sua autoconscincia.
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A contrapartida da democratizao das tecnologias da subjetividade
tem sido a reduo de nossa experincia, um novo tipo de alienao. Para
produzir sujeitos reduzimos o mundo a abjetos e produtos nem mesmo
sabemos como garantir que o prprio sujeito no se torne uma engrenagem
de uma mquina social eficiente, confiante na sua capacidade de substituir o
mundo de coisas e pessoas por formas sofisticadas de representao e repro-
duo simblicas e virtuais.
Sem abdicar dessa tecnologia, nossa atuao em sala de aula no pode se
reduzir a ela. , em certo sentido, assustador e revelador verificarmos que
grande parte do discurso sobre a escola e a universidade tenha se impreg-
nado da lgica da eficincia, da velocidade, dos modos absolutos de me-
diatizao da relao com o mundo e com os seres humanos. A reduo do
humano ao sujeito permite que se possa acreditar na sua completa reduo
a um sistema de informao, a uma identidade que possa ser armazenada e
transmitida, da mesma forma que fazemos, sem nos questionar muito, com
o mundo transformado em objetos de cincia e produtos de consumo.
O que gostaria de deixar como contribuio ao debate a proposta de
pensarmos a aula enquanto momento de intensidade a contrapelo da norma-
lizao e das tecnologias do cotidiano. Em seu sentido latino, preservado em
muitas lnguas modernas, a palavra aula no significava apenas ou principal-
mente uma lio dada a um pupilo, mas o lugar ou situao onde uma lio
poderia acontecer. Assim, mesmo em portugus, a parte mais interior de um
santurio ainda pode ser chamada de aula. No apenas ou principalmente a
dimenso fsica de um espao para algo que est em jogo, mas o acontecer de
uma situao. No uma situao do dia a dia, mas uma situao interior, do
plano do religioso em seu sentido etimolgico, do refazer as ligaes entre os
humanos e o seu mundo. Por isso, acredito que hoje seja possvel investirmos
menos nas dimenses informativas, tecnolgicas e pragmticas da aula e mais
em suas potencialidades ta lvez uma das ltimas situaes em nosso mundo
em que selpossa produzir um efeito, sempre provisrio, de reintegrao.
Esses munentos de intensidade e reintegrao podem acontecer em sala
de aula, mav9 podem ser produzidos pelo professor ou pelo estudante; o
que ambos podemos fazer multiplicar as condies para que a sala de aula
se co r t a a u l a , ;;z1 evento formador no sentido pleno que a palavra
alem ldung (formaT) sugere. Uma das formas com que Gumbrecht nos
convida a promover essa situao apresentar, a nossos estudantes, obje-
tos de grande complexidade, em um ambiente de baixa presso temporal.
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No lugar de transformar nossos cursos em simples continentes abarrotados
de contedos informativos e pragmticos pr-formatados, convert-los em
uma abertura, uma clareira no tecido carregado e congelado de significa-
es, sujeitos e objetos produzidos em nosso cotidiano. Esses objetos de alta
complexidade, fenmenos, no vocabulrio de Heidegger, podem ser um
conceito, um evento histrico, um objeto de arte, um fenmeno da vida
diria. O mais fundamental que esse foco apresente a complexidade capaz
de produzir a situao de deslocamento e quietude que vivenciamos mais
frequentemente quando realizamos uma experincia esttica.
Por isso, preciso tornar nosso conceito de tempo complexo, mud-lo
de algo externo, que podemos mensurar, dividir e consumir, para algo que
nos constitui de modo fundamental. Esses momentos de experincia vivida
talvez possam apontar para aqum da subjetividade e da objetividade, con-
tribuindo para a construo no apenas de um mundo liberal habitado por
sujeitos produtores e consumidores, mas de novas ticas capazes de fazer
jus a uma definio do humano que no tenha que se produzir na alienao
e perda de si mesmo e do mundo.
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