ARTE, PERCEPÇÃO E CRÍTICA: RELAÇÕES DO FILME ‘QUE HORAS ELA VOLTA?’ COM O PENSAMENTO DE
BOURDIEU E A PEÇA ‘SENHOR PUNTILA E SEU CRIADO MATTI’.PORTO, Philippe; MARTINS, Luana; CAETANO, Isabel.
Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4
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ARTE, PERCEPÇÃO E CRÍTICA: RELAÇÕES DO FILME ‘QUE HORAS
ELA VOLTA?’ COM O PENSAMENTO DE BOURDIEU E A PEÇA
‘SENHOR PUNTILA E SEU CRIADO MATTI’.
PORTO, Philippe
Mestrando do Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense-PPGSD/UFF Bolsista
CAPES
MARTINS, Luana
Mestranda do Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Direito da Universidade Federal
Fluminense- PPGSD/ UFF [email protected]
CAETANO, Isabel
Mestranda do Programa de Pós-Graduação de Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense- PPGSD/ UFF
Bolsista CAPES
RESUMO O presente trabalho se propõe a entrelaçar discussões entre arte, literatura, cinema e as ciências sociais.
Buscamos estabelecer uma relação entre o filme brasileiro “Que horas ela volta?”, a peça “Senhor Puntila e seu criado Matti” do alemão Berthold Brecht, e mobilizar, como maior referência teórica, o
pensamento do francês Pierre Bourdieu e seus conceitos fundamentais. A partir da temática da relação
patrão-empregada, buscamos compreender de que forma a criação artística se posiciona frente a um cenário que gera reflexões para as ciências sociais. Propomos, para tanto, uma composição
multifacetada, em que pensamos a construção artística juntamente com a chamada científica.
Palavras-chave: Literatura; Ciências Sociais; Cinema.
ABSTRACT This study aims to intertwine discussions between art, literature, film and social sciences. We search to
establish a relationship between the Brazilian film "What time she returns?", the play " Mr. Puntila and
his servant Matti", written by the german Berthold Brecht, and mobilize, as most theoretical reference, the thought of the french Pierre Bourdieu and its fundamental concepts. From the issue of employer -
employee relationship, we search to understand how artistic creation is related to a scenario that
generates reflections for the social sciences. We propose, therefore, a multifaceted composition, that we think the artistic construction along with the scientific. Key-words: Literature; Social Sciences; Cinema.
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INTRODUÇÃO
“Que horas ela volta?”, lançado em 2015, é um longa-metragem brasileiro escrito e
dirigido por Anna Muylaert. O filme tem como pano de fundo as relações patronais dentro dos
ambientes particulares burgueses no qual trabalham empregados domésticos e se desenrola em
cima dos conflitos que advém da chegada da filha da empregada à residência de seus patrões.
A peça “Senhor Puntila e seu criado Matti” trata de um rico proprietário de terra
finlandês que, quando sóbrio, se mostra austero e cruel – e que, no entanto, é generoso,
divertido e um bom companheiro quando está bêbado. Seu servo não só está sujeito a aturar o
temperamento instável de seu patrão, mas também deve ficar sempre pronto para lhe prestar
auxílio.
Por meio da intercessão das leituras críticas acerca dessas duas obras, uma
cinematográfica, e a outra literária, buscaremos refletir sobre as formas pelas quais essas duas
composições artísticas constroem e estruturam um pensamento crítico que encontra respaldo
nas discussões das ciências sociais. A partir da rápida exposição tanto do filme, quanto da peça,
e também de propostas de leituras sobre ambas, pretendemos estabelecer conexões entre as
duas criações, e estabelecer um diálogo entre ambos e as contribuições teóricas de Pierre
Bourdieu.
1. O FILME “QUE HORAS ELA VOLTA?”.
1.1. Apresentação do filme.
O filme “Que horas ela volta?” apresenta dinâmicas das relações sociais no espaço
doméstico das famílias brasileiras, distintas em suas estruturas sociais. A partir do cenário
domiciliar de uma família paulistana abastarda, o drama escrito e dirigido por Anna Muylaert,
mobiliza algumas reflexões críticas sobre as desigualdades sociais presentes nas situações da
vida cotidiana de uma casa e de seu ambiente privado.
A trama gira em torno da história de Val (Regina Casé), uma mulher, com poucos
estudos, que pertence à classe popular do interior de Pernambuco e migra1 para São Paulo em
busca de melhores condições de trabalho. Ao chegar à capital econômica do país, Val encontra
trabalho e domicílio com o casal Carlos (Lourenço Mutarelli) e Bárbara (Karine Telles) para ser
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babá do seu único filho, Fabinho (Michel Joelsas). A indagação que dá o título ao filme se
evidencia desde a primeira cena, quando Fabinho está na piscina sob supervisão da babá e, se
referindo à mãe em terceira pessoa, pergunta a Val “Que horas ela volta?”.
Coincidentemente Val tem uma filha da mesma idade que Fabinho – Jéssica (Camila
Márdila). Ela é deixada sob os cuidados de sua família no Nordeste, para que Val possa
trabalhar em São Paulo e pagar os estudos da menina. Em um diálogo entre Val e Jéssica, no
final do filme, a filha relata à mãe que sempre perguntava aos seus responsáveis “Que horas ela
volta?”, referindo-se a sua própria mãe (que, aliás, era sempre chamada por Jéssica de “Val”, e
nunca de “mãe”). Com a volta dessa pergunta, a estrutura narrativa principal é evidenciada,
demonstrando o fio condutor do filme.
Embora sejam de espaços sociais distintos, tanto Val quanto Bárbara, possuem algumas
intercessões, principalmente no que Anna Muylaert sensivelmente retrata em diferentes cenas:
o distanciamento físico e afetivo na relação mãe e filho(a), o investimento de tempo e a
preocupação com a educação dos filhos. Val, com sua pequena renda como empregada
doméstica prioriza enviar a maior parte de seus recursos financeiros para suprir as necessidades
da filha, principalmente no que consiste ao âmbito escolar, enquanto Bárbara escolhe as
melhores instituições escolares do país para o seu filho, que também tem acesso às exposições
de artes e viagens.
A presente relação de planejamento e investimento de tempo e dinheiro objetiva dar as
melhores condições educacionais para os filhos. Essas ações têm como objetivo fazê-los obter
ascensão social. A lógica da educação como um investimento econômico está presente em
ambos os casos. No entanto, o acesso e as formas são distintas nas diferentes relações sociais.
Mesmo tendo acesso aos estudos e a uma educação de qualidade no nordeste brasileiro, existem
diferenças entre o acesso de relacionamento entre ela e Fabinho.
1.2 A chegada de Jéssica, a filha da empregada.
A trama do filme se passa em época de vestibular, tanto Fabinho quanto Jessica se
preparam para prestar o exame de admissão no mesmo ano. Jéssica almeja ingressar na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na Universidade de São Paulo – FAU/ USP, considerada
a melhor do país e como sua mãe mora em São Paulo, ela decide ficar em sua residência até a
1 A migração nordestina para o Sudeste do país, em especial para São Paulo, foi um fenômeno demográfico
bastante relevante, principalmente a partir da década de 1930 (durante a Era Vargas), quando o número de
migrantes nacionais superou o de imigrantes vindos de outros países, tornando essa migração muito intensa.
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realização da prova. Val, que mora no pequeno quarto dos fundos da casa, onde só há uma
janela que dá para o corredor da casa, em que trabalha há treze anos, questiona a sua “patroa”
sobre a possibilidade de receber sua filha lá. Bárbara, a principio muito solícita, aceita a
proposta de Val e diz que a casa está aberta para chegada de Jéssica – ela insiste em afirmar que
a casa deles era como se também fosse a casa de Val. Contudo, essa abertura do espaço privado
da casa mudará completamente a relação de Val com o trabalho e com os patrões.
Jéssica chega de avião em São Paulo. Ela se apresenta como uma jovem questionadora e
curiosa, revelando um aceso à educação incomum, que acaba por chamar a atenção de Carlos –
patrão de Val. A casa da família paulistana possui grande diversidade de livros de artes,
arquitetura e designer, que logo encantam a menina. Ela pega os livros e discursa sobre eles
para o dono da casa, Carlos. Além disso, a jovem também discursa sobre o estilo da casa e conta
que aprendeu a desenhar casas com os pedreiros perto de onde ela mora, revelando um saber
empírico e bastante harmonizado com seus planos de estudar arquitetura.
Diante do seu interesse pela arquitetura do imóvel, Carlos mostra a planta da residência
e convida Jéssica para jantar na mesa da sala, e não na cozinha, como Val está habituada. Ao
aceitar, a Jéssica gera um incomodo em Val pela ruptura de um comportamento que ela acredita
que deva ser o esperado. Aos poucos a jovem vai percebendo que a mãe não usufrui de
determinados espaços da casa, existem limites invisíveis de acesso. A intimidade do uso da casa
não lhe pertence, mesmo que os patrões sempre digam para ela que ela é como se fosse “parte
da família”.
Em uma das cenas do filme, Jessica, ao ver as fotos de Val vestida de branco com
Fabinho no colo, quando bebê, pergunta: “por que ela se vestia assim? Parece empregada de
filme.” A partir desses questionamentos, Jéssica começa a apresentar as desigualdades na casa,
sobre as quais Val nunca tinha refletido. Ela questiona o porquê de Val nunca ter lhe contado
que morava na casa dessa família e o fato de que ela lhe mandava presentes ótimos,
acompanhados de fotos suas que transmitiam felicidade.
1.3 “Ninguém precisa explicar, a pessoa já nasce sabendo o que pode e o que não pode”
Com pouco tempo para a chegada da data da prova, Jéssica precisa de um lugar para
estudar na casa, e o quarto da mãe é muito pequeno e sem espaço para os estudos. Então, ela
pede a Carlos, para poder ficar no quarto de hóspedes que lhe foi apresentado no primeiro dia da
sua chegada a casa: um espaço arejado com janelas que mostravam o exterior e uma mesa, local
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perfeito para os seus estudos. Carlos não só a concedeu o acesso como a autorizou a dormir no
quarto. Com a decisão do patrão, Val mais uma vez censura Jessica e a proíbe de aceitar ou
pedir qualquer coisa a mais dos seus patrões.
Em outra situação de conflito apresentadas no filme, a personagem de Casé aparece
limpando a piscina e contando para Jessica que nunca entrou ali. A filha se surpreende e
questiona o fato, pergunta se os patrões a proibiram ou nunca a chamaram. Val argumenta que
os patrões a convidam por educação, porque sabem que nunca vai aceitar e enfatiza para que
Jessica não entre na piscina, nem se eles a convidarem. A jovem diz que isso não tem sentido e
questiona o porquê de não poder, então, Val diz: “Ninguém precisa explicar, a pessoa já nasce
sabendo o que pode e o que não pode.”
Jessica não enxerga essa justificativa como algo aceitável, mas respeita a fala de Val.
No entanto, Fabinho chega com uns amigos da escola e ficam brincando na piscina, Jéssica se
aproxima e eles começam a jogar água em cima dela e a jogam na piscina. Além de Val,
Barbara ao ver esta cena, também se sente incomodada com as liberdades da filha da empregada
na sua casa, que logo mais manda esvaziar a piscina para dedetização, alegando que tinham
ratos invadindo o local.
Além dos limites do acesso ao espaço interno da casa, a trama apresenta outras
distinções, como por exemplo, a cena que mostra a qualidade dos alimentos diferenciados para
o patrão e o empregado. Quando Jessica é convidada para comer com a família na mesa, ela
experimenta um delicioso sorvete de chocolate com amêndoas de uma marca cara do mercado,
a que nunca antes teve acesso. Jéssica, ao chegar à cozinha – espaço em que Val permanece
quando não está arrumando a casa – pede para sua mãe esse sorvete novamente, que nega seu
pedido, já que o sorvete pertencia a Fabinho.
Jéssica desobedece à restrição de Val, pegando o sorvete justamente na hora que
Bárbara, a patroa, aparece na cozinha e se depara com a sua ação, gerando uma tensão. Bárbara
pede para Val dizer para a sua filha ficar somente da porta da cozinha para trás, pois não
gostaria de vê-la nos outros espaços, e que ela respeitasse os limites da casa.
1.4. Espacialidades, o público e o privado.
Nesse ponto específico, buscamos compreender as espacialidades exploradas pelo
filme, sobretudo em seu movimento de público e privado, interno e externo. A trama de
Muylaert se desenvolve, em sua maior parte, dentro do espaço privado da casa. Aqui
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compreendemos a importância da noção de privacidade, que se tornou um aspecto central da
vida burguesa, sobretudo a partir da Revolução Industrial e, posteriormente, da Revolução
Francesa e da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, embasada na perspectiva de
um Estado Liberal, que garante o direito à propriedade, e, consequentemente, à privacidade.
Como já observamos, são traçadas limitações espaciais dentro do ambiente da própria
casa. Val, considerada “da família”, não entra na piscina, não se senta à mesa de jantar da sala,
e passa boa parte do tempo em que não está limpando a casa, na cozinha – é somente ali que ela
faz suas refeições. Seu quarto é marcado pela clausura: é apertado, não é arejado, e, apesar de
ter uma janela, ela não tem acesso ao exterior da casa. A vista é a do próprio corredor dos
fundos da casa. Assim, os conflitos entre patrão-empregado são desenvolvidos dentro da casa,
onde os olhares dos demais não podem alcançar. Em confronto, temos um quarto de hóspedes,
quase nunca ocupado, grande, claro, com uma janela que possui vista para o exterior da casa.
As delimitações espaciais são transgredidas por Jéssica, que curiosamente quer estudar
arquitetura, em que o principal ofício é exatamente a criação de espacialidades. A ruptura que
ela gera é, sobretudo, no aspecto estrutural da casa: ela entra na piscina, senta à mesa de jantar,
entra no atelier de Carlos, e dorme no quarto de hóspedes. Logo, as aparências de uma “boa
patroa” não se sustentam quando o conflito se insere a partir da presença da filha de Val, e a
coerência interna da casa parece desabar, demonstrando a fragilidade de todas as relações
presentes. Esse conflito espacial logo é sentido por Bárbara, que busca o reestabelecimento das
delimitações traçadas. Há uma íntima conexão entre as relações dos personagens entre si, e dos
personagens com a casa.
Para além da discussão das espacialidades internas, acreditamos que a importância
dessa reflexão é observar a sensibilidade da diretora em trazer a responsabilidade da
perpetuação da desigualdade social para o ambiente privado, para a casa, para a realidade dos
que assistem ao filme. Cria, assim, um duplo movimento de interiorização de um conflito que é
externo, na medida em que decide retratar este conflito dentro da casa; e a exteriorização de um
problema que se configura internamente, gerando reflexões que não se restringem ao ambiente
privado, mas que são reveladas com maior clareza nesses espaços.2
2 Acrescentamos que conflitos gerados a partir da privacidade da vida burguesa são muito retratados no movimento literário denominado Romantismo, como, por exemplo, em “Primo Basílio” de Eça de Queirós, ou em
“Senhora” de José de Alencar. Os conflitos são gerados a partir da casa, e das suas limitações espaciais. Esse estilo
de vida se distancia dos espaços populares, como aquele, por exemplo, retratado em “O Cortiço” de Aluísio de
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1.5. Estética - as diferenciações dos gostos.
Chega o aniversário de Bárbara e Val compra um conjunto de xícaras acompanhadas
com uma jarra de café, para presentear a sua patroa. Ao receber, Bárbara demonstra que gostou
do que recebeu e agradece pelo presente. No entanto, as xícaras preto e branca, que para Val
pareciam lindas, não faziam parte da linha estética da patroa e ela logo pede para que fique
guardado para um ocasião especial.
Na noite de comemoração do aniversário de Bárbara, Val resolve servir café nas xícaras
para os convidados. Quando está quase na saída da cozinha, é duramente repreendida por
Bárbara dizendo que ela não poderá servir naquele conjunto, mas sim em uma louça sofisticada,
clássica, comprada em uma viagem ao exterior.
As classes sociais e seus respectivos gostos são entendidos com referência à cultura
considerada legítima. Assim o estilo de vida das classes populares, caracterizado não pelo
consumo de luxo, mas por substitutos de segunda linha, é, para Bourdieu (1983), uma
adaptação à posição que ocupa na estrutura social face aos valores dominantes.
2. A HISTÓRIA DA PEÇA "SENHOR PUNTILA E SEU CRIADO MATTI"
A peça “Senhor Puntila e seu criado Matti”, que data de 1940, está dentro do contexto
do teatro épico, do qual Brecht é considerado o maior expoente e que busca trazer a crítica
social para dentro do teatro. O intuito é o de provocar a reflexão e despertar uma visão crítica do
que se passa a partir do estranhamento, sem levar ao desfecho dramático natural.
Bertold Brecht elaborou a obra em seu exílio na Finlândia em 1940, ou seja, durante a
Segunda Guerra Mundial. Parte de sua inspiração veio através do contato com a autora
finlandesa Hella Wuolijoki, com quem desenvolveu uma estreita amizade durante seus treze
meses de exílio (PEIXOTO, 1979). Wuolijoki apresentou a Brecht seu conto
Sahanpuruprinsessa (“A princesa de serragem”), que trata de uma figura com personalidade
dividida. A partir dessa obra, Brecht se propôs a elaborar uma peça a fim de participar de um
concurso da federação de dramaturgia finlandesa.
Azevedo. Nesta obra, a privacidade ganha outros contornos, havendo uma fusão entre o público e o privado. O
ambiente “interno” se confunde com o “externo”.
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Ele modificou a peça, adicionando prólogo e epílogo e ressaltando a relação patronal
sem lhe tirar o viés poético e cômico. Brecht manteve a narrativa descritiva de sua anfitriã (e,
ressalte-se, companheira no socialismo), de forma que a paisagem, a natureza e a história
finlandesa se mantivessem como fundo para a história do patrão e do criado. A primeira versão
da obra foi publicada em finlandês sob o título “O proprietário Iso-Heikkilä e seu criado Kalle”.
Em 5 de junho de 1948, ocorreu finalmente a primeira apresentação da peça, em Zurique
(PEIXOTO, 1979).
Desde sua estreia a peça esteve sujeita a críticas; no próprio contexto da Alemanha
Oriental (DDR), a encenação da obra era polêmica: argumentava-se que o tema estaria
defasado, visto que no país o latifúndio fora extinto (LANG, 2006). Mesmo assim, a peça
obteve grande sucesso, e é apresentada em sua versão original e em diversas adaptações até
hoje. Inclusive, a própria elaboração do filme “Que horas ela volta?” foi influenciada pela peça
“Senhor Puntila e seu criado Matti”, visto que uma de suas principais fontes de inspiração
provém do espetáculo “O patrão cordial”, encenado em São Paulo pelo grupo teatral
Companhia Do Latão3, que se baseia no ensaio “Raízes do Brasil”, de Sergio Buarque de
Holanda, e na referida peça de Brecht.
2.1. A História de Puntila e Matti
A peça de Brecht trata de um rico proprietário de terra finlandês de nome Puntila que,
quando sóbrio, se mostra austero e cruel – e que, no entanto, é generoso, divertido e um bom
companheiro quando está bêbado. Em estado ébrio, é tão compassivo com toda e qualquer
forma de vida que chega a carregar insetos de uma calçada até a outra para que atravessem a rua
com segurança - o consumo intenso de álcool impacta positivamente sua capacidade de
socialização e generosidade. Mas quando volta a estar sóbrio, seu humor se torna praticamente
insuportável.
Após uma bebedeira de dois dias inteiros, Puntila passa a enxergar em seu motorista
Matti uma pessoa confiável e inicia uma relação de amizade. Nesse momento, ele se encontrava
preocupado por conta de um conflito interno: o iminente noivado de sua filha Eva com um
adido (um militar das Forças Armadas), o que lhe custará um lote de terra considerável, a não
3http://www.funarte.gov.br/teatro/cia-do-latao-faz-curta-temporada-de-%E2%80%9Co-patrao-cordial%E2%80%
9D-no-arena-sp
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ser que ele próprio se utilize de um jogo de sedução para se aproximar da tia do adido – que
notoriamente está envolvida por esse jogo. Ademais, ele está prestes a ter um de seus “ataques
de sobriedade total e sem sentido”. Para evitá-lo, decide seguir se embriagando.
Ao chegar em casa embriagado, Puntila conversa com sua filha Eva e sugere que ela se
case com seu fiel amigo Matti, o que ela recusa. Como sua filha lhe nega mais álcool, o
latifundiário decide ir até o povoado mais próximo. Lá, vai visitar o veterinário (atrás de uma
receita de álcool forte suficiente para suas noventa vacas), passeia pelo povoado e pede em
noivado três moças - uma atrás da outra -, além de convidar a todos para a festa de
comemoração de noivado de sua filha.
No dia que se segue ao narrado, Matti e Puntila vão juntos em busca de novos criados a
um ponto de encontro onde pessoas costumam se oferecer como mão de obra. Como ainda não
está totalmente sóbrio, Puntila contrata diversos homens para trabalharem como criados. A
tentativa de Matti de impedi-lo e assim preservar os futuros servos da sobriedade de seu patrão
não surte efeito, pois não é aceita nem por Puntila, nem pelos trabalhadores. Antes de
retornarem à propriedade de Puntila, ele ainda se envolve numa briga com um homem
barrigudo que estava maltratando seu cavalo.
Chegando ao pátio de sua casa, ele volta ao seu estado de sobriedade, manda embora os
criados recém-contratados e logo depois as esposas que tinham acabado de chegar à
propriedade após uma longa caminhada. Ademais, ignora o desejo de sua filha de não casar
com o adido. Eva, então, tenta induzir o noivo a desistir do casamento, inclusive forjando um
suposto flagrante dela saindo com Matti da casa de banho existente na propriedade.
É só durante a festa de noivado, quando Puntila se embebeda mais uma vez, que o
latifundiário passa a apoiar sua filha. Ele expulsa o adido de sua propriedade a pedradas (o que
não incomoda sua filha, muito pelo contrário) e sugere mais uma vez o casamento de Eva e
Matti. Este, porém, chega à conclusão de que o casamento não daria certo, visto que Eva não
saberia ser uma boa esposa para seus padrões; haveria diferenças insuperáveis entre ambos,
decorrentes do abismo social existente entre a rica e o pobre. Por ironia, Puntila, no auge de sua
ebriedade e altamente compreensivo, chega a afirmar que no fundo é um entusiasta do
comunismo.
Quando volta ao estado sóbrio, Puntila manda embora o “vermelho” Surkkala (um
trabalhador de ideologia notoriamente socialista), por pressão do juiz e do reitor - é bastante
simbólico que sejam dois representantes de papéis normatizantes na sociedade. Em seguida,
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chega a ameaçar o próprio Matti, seu fiel escudeiro durante as bebedeiras, de demissão. Por fim,
decide abandonar o alcoolismo definitivamente, acabando com suas últimas garrafas de aquavit
(bebida alcoólica destilada de sua predileção, a base de cominho e típica dos países nórdicos
europeus), o que não ocorre.
Bêbado mais uma vez, demanda que Matti construa uma maquete de uma montanha da
região com alguns de seus móveis antigos, para que ambos possam “explorá-la”, fantasiando
sobre sua terra e cantarolando melodias exaltando as belezas do lugar.
Na última cena da peça, no dia seguinte, Matti decide se demitir e abandonar a
propriedade cedo pela manhã, ainda antes que o latifundiário acorde - a fim de evitar mais um
encontro com a versão sóbria, fria e mesquinha de Puntila.
3. A DROGA E A SOCIALIZAÇÃO
Para analisar a função desempenhada pelas drogas na peça e na película analisadas, cabe
pontuar alguns aspectos referentes ao consumo de entorpecentes no contexto de construção das
relações sociais. O consumo de substâncias psicotrópicas é uma realidade que acompanha o
percurso da humanidade. A história das drogas remonta a antecedentes civilizatórios e alerta
para o fato de que o passar dos anos alterou não só a oferta, a qualidade e a inserção dessas
substâncias em diversas culturas, mas, sobretudo, o papel que estas desempenham: de práticas
sagradas, passaram a ser vistas como uma epidemia social4. Dessa forma, o uso de substâncias
psicoativas como um todo pode ser entendido como patologia5 e como um sintoma social das
particularidades da sociedade moderna ocidental, conceito este que remonta ao estudo
desenvolvido por Freud, em “Mal-estar na Civilização”.
Nesse trabalho, o psicanalista explica que a evolução por que passou a cultura social
implicou em renúncia de diversos fatores da subjetividade humana, sendo esta a causa
originária da maioria dos sofrimentos pelos quais o homem passa. O excesso de ordem,
4 Não buscamos aqui expor como se dá esse processo, sobretudo se levarmos em conta as particularidades de cada
“droga” e de cada contexto histórico-social, entretanto, sugerimos um interessante trabalho para a melhor
compreensão desse processo: SCHEERER, Sebastian. (1993). “Comentários de Sebastian Scheerer”;
“Estabelecendo o controle sobre a cocaína (1910-1920)”, in: BASTOS, Francisco I., GONÇALVES, Odair D.
(org.). Drogas é legal? Rio de Janeiro: Imago/Instituto Goethe, p.169-90. 5 Isso ocorre ao menos nos discursos oficiais normativos do paradigma médico-jurídico, o que pode não ocorrer nos idiomas experienciais daqueles que são usuários de substâncias psicoativas. Nesse sentido, indicamos a
seguinte leitura: POLICARPO, Frederico. (2010), “Os discursos acerca das drogas e os idiomas experienciais de
consumidores na cidade do Rio de Janeiro: apontamentos sobre a continuidade e descontinuidade no consumo de
drogas”. In: Cuadernos de Antropología Social, nº 31 – 145-168.
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produzido por uma civilização que escolheu limitar a liberdade em nome da segurança, produz
um sentimento de culpa, intitulado “mal-estar” do desejo, que apenas poderia ser suportado por
meio de medidas paliativas de que seriam exemplos as drogas (FREUD, 1996).
Os narcóticos, portanto, seriam um meio pelo qual o indivíduo buscaria a restituição de
uma parcela da satisfação renunciada pela vida em sociedade. Ademais, o sujeito analisado por
Freud está imerso em uma sociedade capitalista de consumo e cujos pressupostos lógicos são o
merecimento e o direito ao prazer. Mas não é só: quando, apesar de possuir os meios de acesso
aos bens de consumo, o indivíduo, simplesmente, não se sente mais completo em razão de seu
poder aquisitivo, isso rompe por completo a lógica daquilo o que esta sociedade de consumo
oferece como garantia de felicidade.
Puntila é um ébrio habitual, e, nesse contexto, homem generoso. Contudo, sofre com um
problema: como o próprio Puntila confessa ao motorista, de vez em quando tem "ataques de
sobriedade", transformando-se num homem autoritário e calculista. Quando bêbado, Puntila
percebe que durante seus “surtos de sobriedade” é uma pessoa de má índole, e procura fazer de
tudo para evitar estar sóbrio.
Assim que deixa o estado ébrio, esquece o ser compassivo e generoso que estivera
sendo nas horas anteriores. Assim, ora sai à noite pelas estradas finlandesas à procura de álcool
e de mulheres, ora ameaça os seus criados com supostas demissões. Ora promete a mão de Eva
a Matti, ora organiza a festa do noivado da sua filha com o adido. Pelo meio, jogos de sedução e
muitos embaraços, e claro, uma festa de noivado explosiva. Percebe-se que a relação entre
Puntila e Matti é profundamente ambígua, e tem no álcool um elemento central. A droga
funciona como meio de socialização entre ambos.
Também em “Que horas ela volta?”, a droga cumpre um papel simbólico relacionado às
interações sociais de seus usuários. Carlos, o pai da família, oferece o quarto de hóspedes à filha
da empregada, lhe presenteia com um quadro e a leva para conhecer a futura faculdade e o
edifício Copan no centro de São Paulo. Além disso, no momento em que lhe apresenta seu
ateliê, o patrão ocioso e que faz uso de remédios, confessa que o fato de ter parado de pintar
seus quadros está relacionado ao ter parado de fumar6.
6 Interessante observar que há certas drogas associadas à produção artística e intelectual, que diferem das drogas associadas ao ambiente da produtividade “não-criativa”. Nesse sentido, o fumo, mesmo que de tabaco, está ligado
à produção artística de Carlos, que cessa juntamente com o ato de fumar. Sobre esse tema, indicamos a leitura de
VARGAS, Eduardo V. (2008), “Fármacos e outros objetos sócio-técnicos: notas para uma genealogia das drogas.”
In: LABATE, Beatriz Caiuby et al (Org.). Drogas e Cultura: novas perspectivas. Salvador: EDUFBA. 41-64.
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Por outro lado, Fabinho, o filho dos patrões, se junta a Jéssica, filha da empregada, na
piscina de sua casa, e pergunta se a moça gostaria de compartilhar um cigarro de maconha com
ele, o que ela aceita. Essa socialização, no sentido de quebrar em parte e por alguns momentos a
barreira que separa ambos, se dá então também pelo uso da droga.
Pode-se perceber que da mesma forma que em “Senhor Puntila e seu criado Matti”, no
longa-metragem o uso das drogas é feito pelos patrões. Ademais, tanto no filme quanto na peça,
o motorista/a empregada doméstica são confidentes de seus patrões. Matti acompanha
fielmente Puntila em suas bebedeiras. Em estado ébrio, o proprietário de terras assemelha-se à
figura do Dom Quixote, por assim dizer (por estar sempre acompanhado de Matti, equivalente a
seu fiel Sancho Pança). Seu servo não só está sujeito a aturar o temperamento instável de seu
patrão, mas também deve ficar sempre pronto para lhe prestar auxílio.
Paralelamente, apesar de aparentemente ingênua, Val sabe de diversos segredos dos
moradores da casa - dentre eles, o cigarro de Carlos e a maconha de Fabinho. A ocultação de
alguns fatos talvez esteja ligada ao destaque a espaços nos quais as ações principais não
acontecem – como o corredor próximo aos quartos –, mas que trazem informações, e que
conferem à empregada doméstica certo status relacionado à confiança depositada por Carlos e,
principalmente, por Fabinho.
4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
4.1. Pierre Bourdieu: as diferenças sociais e a sua reprodução
Ao mostrar o cotidiano de uma empregada doméstica representada por Val, submetida a
proibições – não tomava o melhor sorvete, morava num quartinho pequeno ou não podia por os
pés na piscina da casa –, o filme expõe uma sociedade segregacionista, subdivida em camadas,
hierarquizada, que existe no Brasil e em todo mundo. Enquanto que Val não tinha consciência
da sua submissão a esta família abastarda, Jessica a fez abrir os olhos ao mostrá-la o regime
castrador e limitador em que ela vivia.
Através desses recortes de conflitos no ambiente domiciliar/familiar, buscamos
mobilizar a perspectiva de Pierre Bourdieu, em seu trabalho sobre a reprodução das diferenças
sociais, para articulá-la com o presente filme, cujo material audiovisual retrata a atual
conjuntura política social das famílias brasileiras.
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De acordo com Bourdieu, as trajetórias de vida podem ser interpretadas à luz de um
determinado olhar sociológico, pelo qual as experiências subjetivas são consideradas como
resultado das condições do espaço social em que os indivíduos se inserem. Inclusive as escolhas
individuais, preferências e os gostos não são dados pela natureza dos indivíduos, habilidades
não são dons naturais e limitações não são defeitos inatos. Essas características individuais,
cultivadas em cada um, o senso comum julga como algo derivado do divino ou da genética.
Como por exemplo, ouvir que os filhos “herdaram” a personalidade dos pais.
Essas concepções deixam de considerar os processos de socialização – educação –
carregados de componentes sociais como algo constituinte da experiência individual. De
acordo com as reflexões teóricas de Pierre Boudieu, a sociedade é uma referência para os
indivíduos que respondem aos seus constrangimentos.7
Em algumas cenas do filme, Val diz que Jessica “não tem noção das coisas”, pelo fato
de ela romper com as expectativas comportamentais que são atribuídas a ela. Ela não respeita as
limitações hierárquicas estabelecidas na relação patrão e empregado. Jessica tem acesso aos
bens culturais (como leitura, cinema, teatro, museus e exposições, por exemplo) cuja educação
foi diferenciada de sua mãe. Tanto que nos é revelado, através de suas falas, os seus gostos e
preferências, que se surpreendem com o seu capital cultural, valor imaterial e fator de distinção
social, os patrões de Val (BOURDIEU, 1996) . Tais preferências são capazes de nos dar pistas
sobre a qual grupo social o indivíduo está vinculado, e não exclusivamente pelas suas
características econômicas.
4.2. De onde vem a educação de Jessica?
Jessica não estudou em uma escola particular como Fabinho, mas passou com uma nota
de alto nível para uma das universidades mais concorridas do país. Em uma das cenas do filme,
Jessica conta que a escola que frequentou não era de qualidade, mas teve um professor de
história muito bom. Ele a estimulou a pensar criticamente sobre as coisas, refletir sobre a
realidade social e também inseriu o teatro nas suas atividades.
Sob a ótica sociológica proposta por Bourdieu, as trajetórias individuais podem ser
compreendidas levando em consideração a forma com que tanto o capital econômico quanto o
7 Nesse sentido, acrescentamos que não acreditamos que isso anula a individualidade de cada um, apenas
destacamos os aspectos da construção social dos indivíduos.
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capital cultural estão distribuídos. Nesse viés, ressaltamos a compreensão do autor da noção de
classe social de maneira diferente do entendimento puramente econômico.
O autor insere uma dimensão simbólica em sua análise, destacando não apenas as trocas
materiais que ocorrem no espaço social, mas também as trocas simbólicas. Ou seja, as camadas
sociais são, para o autor, construções teóricas baseadas nas noções de capital econômico e
cultural. Por exemplo, uma abordagem puramente economicista avalia aspectos como renda,
ocupação, número de eletrodomésticos que o uma família possui para categoriza-la em alguma
classe social; a abordagem proposta por Bourdieu insere componentes simbólicos na análise,
como a rede de relações estabelecidas pela família, porte e desenvoltura perante bens culturais,
e graus obtidos (diplomas, por exemplo).
Contudo, de acordo com essa concepção, capital econômico e capital cultural não estão
inteiramente desvinculados. Quanto mais capital cultural uma família ou individuo porta, mais
tempo livre possui para acumular mais capital cultural. Bourdieu cita, por exemplo, que não é
tão necessário o jovem filho de uma família abastarda trabalhar para obter condições de
apropriação simbólica dos bens culturais portados pela família. Esta apropriação simbólica
poderia ser entendida como um fator facilitador frente aos códigos de linguagens presentes no
campo da literatura, da comunicação, das artes e da etiqueta. Neste sentido, para Bourdieu, as
classes dominantes, possuem vantagens iniciais (posse de capital econômico e cultural) que
facilitam a manutenção de seus status. Essa apropriação simbólica envolve todo um processo de
socialização construído ao longo das trajetórias individuais (BOURDIEU, 1983).
Identificamos no filme que, apesar de Fabinho ter estudado nos melhores colégios e ter
morado numa grande cidade com acesso a diversas opções culturais, ele acabou não passando
no vestibular. A aquisição da cultura via família, empreendida desde a infância, é diferente da
aquisição por via pedagógica e tardia, pois a primeira proporciona um maior desembaraço
frente aos itens da cultura através do aprendizado espontâneo e se vincula à legitimidade
cultural. Segundo Bourdieu, “a pintura não são os museus, de repente descobertos no
prolongamento de um aprendizado escolar, mas o cenário do universo familiar” (BOURDIEU,
1983,p.97). De toda maneira o sistema escolar pode ser também considerado uma via para
aqueles que não tiveram o acesso por meio da família, substituindo a experiência direta,
“oferece atalhos ao longo encaminhamento da familiarização” (BOURDIEU, 1983, p. 99).
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4.3 Habitus distintos em cada “Classe social”
Bourdieu pensa a mediação entre indivíduo e sociedade através da noção de habitus,
que será exposta adiante, com o objetivo de esclarecer mais esta análise. Antes de inserirmos o
conceito de habitus trabalhado por Bourdieu, consideramos importante introduzir uma
aproximação à forma com que o sociólogo desenvolve categorias como classe social e capital,
que se distinguem dos usos empreendidos pelas ciências econômicas e a sociologia clássica.
Bourdieu (1996) defende e prefere o termo ‘espaço social’ à terminologia ‘classe
social’. Segundo o autor, as classes sociais somente existem no papel, são recortes produzidos
pelos pesquisadores, que ao introduzirem a noção de espaços sociais podem construir e apontar
os princípios de diferenciação do espaço social analisado. Os princípios de diferenciação
variam conforme o tempo e o espaço, sendo que todas as sociedades (exceto as simples e as
“menos diferenciadas”) são estruturas que só podem ser compreendidas através da construção
dos princípios que norteiam a distribuição de poder.
Bourdieu entende este espaço social como um campo, conceito que viabiliza a análise
da maneira com que o poder se distribui. O espaço social global é um campo de forças e um
campo de lutas no interior do qual os indivíduos se posicionam e agem conforme suas posições
na estrutura, proporcionando desta forma a sua conservação ou a sua transformação. O campo
de poder para Bourdieu não é entendido como um campo político, mas como um espaço em que
os tipos de capital ou os seus portadores estão em luta pela dominação do campo
correspondente. A dominação, portanto, não é compreendida pelo autor como resultado da ação
coercitiva de uma classe dominante sobre outra dominada, mas sim resultado de ações
complexas de grupos em relação, em disputa pela manutenção ou transformação das estruturas
do campo (BOURDIEU, 1996).
Segundo Wacquant (2007a) a teoria do habitus de Bourdieu se constrói com base em
dois princípios – sociação e individuação. Sociação, pois os juízos, preferências e bases de
ações se pautam na sociedade e são partilhados por todos os indivíduos expostos a condições
sociais semelhantes. Individuação, pois cada indivíduo possui uma trajetória de vida que é
única, internalizando e combinando de forma particular os esquemas sociais. É importante
ressaltar o caráter não necessariamente intencional das estratégias relativas ao habitus.
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5. RESULTADOS ALCANÇADOS
5.1. As relações patronais na peça e no filme.
A peça, assim como o filme analisado, é construída em cima de uma evidente dualidade.
E o principal dualismo, o eixo em torno do qual tudo o mais gira, se refere à relação entre patrão
e empregado. São opostos, de um lado, o motorista Matti e a empregada Val, despachados e
trabalhadores e, de outro, o latifundiário Puntila e os patrões Carlos e Bárbara, ricos e de certa
forma, fúteis. Dois polos opostos, estereótipos reforçados para a construção de outro dualismo:
os ricos, com uma vida confortável, certamente, mas fantasiosa e irreal (na peça)/vazia e
deprimente (no filme), em oposição aos pobres, sem conforto, sem dinheiro, mas de alma
nobre.
A tentativa de quebrar o dualismo no filme se mostra ao mesmo tempo uma maneira de
reforçá-lo - a patroa é incapaz de uma relação afetiva sincera com o filho Fabinho, pois está
sempre fora, trabalhando. A afetividade do garoto vai para a empregada, que também se afastou
da própria filha, Jéssica, para trabalhar. O desconforto tanto de Jéssica como de sua mãe é
evidenciado quando, durante uma briga, a filha afirma que Val não seria verdadeiramente sua
mãe, ao que esta retruca que Sandra, a pessoa que passara os anos cuidando de Jéssica, teria
ficado "com a parte boa": a de criar a menina com o dinheiro que Val mandava todo mês para
pagar escola, dentista etc. Como já referido, isso revela intercessões entre as mães, ambas
distanciadas afetivamente de seus filhos.
O rompimento efetivo com a relação de subserviência também é um elemento
interessante e comum às obras de Brecht e Muylaert. Em ambos os casos, o subordinado é quem
toma a iniciativa. Na peça de Brecht, nas cômicas e fantasiosas desventuras que ocorrem
enquanto o proprietário Puntila está alcoolizado e Matti presente para lhe dar suporte, os dois se
aproximam por conta da ponte estabelecida pela bebida.
Enquanto isso, no mundo real e concreto, as relações de dominação patronal estão
explicitas e se mostram uma barreira intransponível entre os dois sujeitos opostos. Isso
evidencia a influência da crítica do pensamento socialista em Brecht, no sentido de que a
transformação emancipatória para os subalternizados não advém somente das ideias, um campo
composto por diversos mecanismos de dominações simbólicos, e sim, basicamente, de ações
concretas do mundo fático.
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O filme de Muylaert concentra boa parte de seu esforço nas notações simbólicas, na
radiografia social. É um longa-metragem dotado, no que se refere a esse aspecto, de um forte
otimismo. Em seu final, quando a personagem principal pede demissão para "cuidar de sua
filha", ao mesmo tempo em que resolve a questão familiar, reconciliando mãe e filha,
simbolicamente Val se liberta de suas amarras de classe.
Algumas críticas a este aspecto do roteiro foram feitas, no sentido de que no fundo o
diálogo final com a patroa, em que tudo é negado, todas as explicações recusadas, em que
“dinheiro não é a questão”, como uma lição de que Val não precisaria da subserviência de
classe – bastaria ter a coragem de jogar tudo para o alto (NOGUEIRA, 2015).
CONSIDERAÇÔES FINAIS
Foi possível perceber diversos aspectos em comum entre os trabalhos sobre os quais se
buscou refletir. Sabemos que a própria elaboração do filme “Que horas ela volta?” foi
influenciada pela peça “Senhor Puntila e seu criado Matti”, como já abordamos anteriormente.
Assim, procuramos entrelaçar a obra teatral e o filme, com amparo nas contribuições teóricas de
Bourdieu para compreender de que maneira a arte reflete as críticas sociais.
REFERÊNCIAS
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São Paulo: Ática. Coleção Grandes Cientistas Sociais, vol. 39.
__________.(1996). O novo capital. in: Razões Práticas Sobre a Teoria da
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Civilização Brasileira, 1966.
FERRARI, Monica. A Migração Nordestina para São Paulo no segundo Governo Vargas
(1951-1954) – Seca E Desigualdades Regionais. Disponível em
www.ufscar.br/~ppgcso/resumos%20disserta/monia%20ferrari.doc. Acessado em 28 de
novembro de 2015.
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psicológicas completas de Sigmund Freud. (Jayme Salomão, trad., Vol. 21, pp. 81-148). Rio de
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Foz do Iguaçu PR: UNIOESTE, 8 a 11 de dezembro de 2015, ISSN 2316-266X, n.4
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Janeiro: Imago. (Texto originalmente publicado em 1930).
GULLANE, Fabiano; GULLANE, Caio; IVANOV, Débora; LACERDA. (2015) Que Horas
Ela Volta? Dirigido por MUYLAERT, Anna. Roteiro Anna Muylaert e Regina Casé. Elenco
principal: Regina Casé, Camila Mardilá, Karine Teles, Lourenço Mutarelli . Brasil, PANDORA
FILMES.
LANG, Joachim. Episches Theater als Film: Bühnenstücke Bertolt Brechts in den
audiovisuellen Medien. Würzburg: Königshausen und Neumann, 2006.
NOGUEIRA, Calac. Que horas ela volta? (2015), de Anna Maylaert - O país que deu certo
(crítica). Disponível em http://www.revistainterludio.com.br/?p=8724. Acesso em 20/10/2015.
PEIXOTO, Fernando. Brecht, vida e obra. São Paulo: Paz e Terra, 1979.
WACQUANT, Loïc (2007a). Lendo o “capital de Bourdieu”. In: Educação & Linguagem,
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__________.(2007b). Esclarecer o habitus. In:Educação & Linguagem, 16, jul-dez. 2007,
p63-71.