Uma leitura da genealogia nietzschiana na obra de Foucault
Marcos Roberto Martinez1
Resumo
Com o objetivo de buscar uma reflexão geral sobre as aulas da disciplina Pensamento Contemporâneo, ministradas pelo Professor Dr. Ricardo Rossetti2, da Universidade Metodista de São Paulo, no curso de Pós Graduação em Filosofia Contemporânea e História, retiramos alguns assuntos relevantes, que ao que parece, permeiam o conteúdo principal do que foi discutido inicialmente, respeitando evidentemente a limitação natural que se apresenta diante da amplitude e complexidade dos temas apresentados, nos impulsionando a resumir nossa investigação apenas a uma ligação bastante evidente da influência nietzschiana na obra de Michael Foucault principalmente no que se refere à Genealogia.
Embora saibamos que a influência de Nietzsche nas obras de Foucault é assunto muito discutido e delongado por diversos autores, e que também a apropriação por Foucault da genealogia nietzschiana é também muito evidente e tema de diversos artigos, pretendemos aqui trazer uma despretensiosa abordagem para discorrer de forma simples, porém notória, em que essa reflexão se faça um ponto a mais de conhecimento aos olhos dos que se interessam pela ligação desses dois grandes ícones da Filosofia Contemporânea.
Permitimo-nos também buscar outros assuntos que se agreguem a esse texto, dentro da linha de pensamento discutida, como no caso da abordagem nietzschiana sobre a alma e o corpo, dentro da proposta de ruptura com a metafísica. Evidente que faremos isso procurando não desviar dos autores eleitos para compor a ideia principal do texto, tomando o cuidado de expor o pensamento desses filósofos, mesmo que, algumas vezes num viés de comentadores, apenas para embasar e relacionar melhor o tema proposto, e completar essa reflexão.
Para o enriquecimento, desse artigo, buscamos mostrar uma conjuntura de elementos discutidos em sala de aula e outros que não foram abordados, mas que, acima de tudo, fazem parte da reflexão específica e que possam satisfazer o interesse do leitor, sempre levantando questões voltadas para a crítica e o questionamento dos assuntos tratados, que no meu entender são fundamentais para engajar o universo da filosofia, no que se refere ao pensar a vida contemporânea.
Palavras chave: Filosofia, Genealogia, História.
1 Marcos Roberto Martinez – Pós Graduando em Filosofia Contemporânea e História - Universidade Metodista de São Paulo - Graduado em Ciências Sociais – Centro Universitário Fundação Santo André. Professor de Filosofia e Sociologia do Ensino Médio. e-mail: [email protected] Prof. Dr. Ricardo Rossetti, Docente da FAHUD e Coordenador do Curso de Pós-graduação Lato Sensu em Filosofia Contemporânea e História da UMESP. Editor da revista Páginas de Filosofia.
Já é sabido, e inclusive vem sendo discutido por diversos autores, a influência
nietzschiana na obra de Michel Foucault, principalmente no que diz respeito à
consonância com Nietzsche em muitos pontos específicos, porém, nos propomos a
refletir e discutir, de uma maneira mui sucinta, pois não caberia nesse artigo maiores
desdobramentos, nos detendo a justamente resumir nossa reflexão a discussão que
ele traz sobre a genealogia, onde observa-se que Foucault busca resgatar o método
genealógico nietzschiano, explorando diversas obras de Nietzsche, mas é
principalmente em Genealogia da Moral3 que encontramos uma discussão mais
profunda, que dá veracidade ao que nos propomos discutir.
Entretanto, verifica-se já em Microfísica do Poder4 a investigação de Foucault
dando uma definição do que ele compreende por genealogia. Se utilizando de
metáforas, em poucas palavras definindo-a como sendo cinza, meticulosa e
pacientemente documentária, aparentemente ela não se mostra branca, a cor que
reflete a luz, nem tão pouco negra, mas sim uma cor indefinida, e completa mais
precisamente nos termos:
A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de materiais acumulados, exige paciência. Ela deve construir seus monumentos ciclópicos‘ não a golpes de grandes erros benfazejos‘ mas de "pequenas verdades inaparentes estabelecidas por um método severo". Em suma, uma certa obstinação na erudição. A genealogia não se opõe história como a visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao desdobramento meta histórico das significações ideais e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da origem. (FOUCAULT, Michel. A microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1979, p. 12)
Como vemos a genealogia para ele não se opõe à história como a visão altiva
e profunda do filósofo ao olhar vacilante do cientista; ela se opõe, ao contrário, ao
desdobramento profundo sobre os fatos históricos numa perspectiva filosófica e
3 Genealogia da Moral, (no original em alemão: Zur Genealogie der Moral: Eine Streitschrift) obra do filósofo alemão Friedrich Nietzsche, publicada em 1887, que complementa e clarifica uma obra anterior, Para Além do Bem e do Mal. Esta obra tece uma crítica à moral vigente a partir do estudo da origem dos princípios morais que regem o Ocidente desde a era socrática.4 Na introdução de Microfísica do Poder, Roberto Machado procura demonstrar que a obra de Foucault, tinha como preocupação dois eixos: primeiro, as suas investigações sobre o nascimento de certos saberes, com a preocupação de demonstrar como eles apareciam e se transformavam. Depois, a partir dos anos 70, a questão anterior, de como os saberes surgiam e transformavam, deu lugar à questão do porquê dos saberes?, ou seja, uma preocupação com as investigações históricas acerca da questão do poder como instrumento de analise capaz de explicar a produção dos saberes; esse método, Foucault nomeou de Genealogia do Poder, as principais obras desse período são Vigiar e Punir (1975) e A Vontade de Saber (1976) - primeira parte da História da Sexualidade. Ref.: José Nicolao Julião, doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
explicativa das significações ideais e das indefinidas teleologias5. Concluindo que ela
se opõe então à pesquisa da origem.
Assim sendo, Foucault pretende operar uma distinção filológica estabelecida,
entre essa origem, e a proveniência. Segundo Foucault, essa é base que permite ao
"genealogista" Nietzsche colocar a questão da origem de forma adversa daquela da
grande tradição metafísica. Pois, para Nietzsche, a questão da fundamentação
moral, na Genealogia da Moral, não diz respeito à busca da essência, tal como se
estabeleceu na tradição metafísica, a busca da origem causal, mas a busca da
proveniência, do surgimento e da invenção dos nossos conceitos, juízos e
sentimentos morais.
Todavia, é de se destacar que Foucault também chama atenção para o fato
de Nietzsche, no prefácio da Genealogia da Moral, fazer uma distinção entre
Ursprung (entendido como origem) e Herkunft (entendido como proveniência), mas
depois, retorna a equivalência entre os dois termos. Isso torna-se relevante, devido
Foucault não estabelecer nenhum dogma, nem autoridade sobre o texto de
Nietzsche, ao que parece trata-se de uma questão de estratégia interpretativa.
Podemos compreender então que para Foucault, Nietzsche, como
genealogista, recusa a pesquisa da busca da origem compreendida como Ursprung,
porque esta é metafísica e tem como pretensão, recolher nela a essência exata das
coisas, a mais pura possível, a identidade em si, a forma imóvel e anterior a tudo
que é externo e sucessivo. Dessa forma, uma pesquisa da origem, à maneira
metafísica, implicaria em tentar reencontrar o que era imediatamente aquilo mesmo,
o Ser, ou seja, é querer tirar todas as máscaras para desvelar enfim uma identidade
primeira. Para Nietzsche então, o que se encontra no começo histórico das coisas
não é a identidade ainda preservada da origem, tal como pretendia a metafísica,
mas, senão a discórdia entre as coisas, a diferença, o disparate, enfim o acaso, o
devir. Por isso, como observa Foucault, Nietzsche genealogista prefere ouvir à
história que acreditar na metafísica.
5 Teleologia (Telos, finalidade + logos, estudo) estudo filosófico relativo às finalidades. Immanuel Kant falava em um "juízo teleológico" em sua Crítica do juízo. Toda a investigação ou especulação seja ela histórica ou filosófica, que tenha como eixo a busca pelo objetivo é considerada teleológica. Este termo foi criado por Wolff para indicar "a parte da filosofia natural que explica os fins das coisas" (I.og., 1728, Disc. prael., § 85). O mesmo que finalismo (v.). Ref.: ABBAGNANO, Nicola - Dicionário de Filosofia.
Por isso, inclusive, que observamos essa grande ruptura com a metafísica ao
decorrer das obras de Nietzsche isso fica explícito também quando trata da questão
da alma ou o Espírito.
Para ele O espírito é vida que purifica a própria vida, verificamos que nessa
frase de Nietzsche resume-se o que ele compreende por espírito. Em outras
palavras, significa a própria vida, a vida do aqui e do agora, a vida vivida na terra,
essa sim é o espírito, e também é tudo o que de mais precioso possuímos e que
podemos chamar então de espírito, ou que, talvez supostamente possuímos, uma
vez que, para Nietzsche, o mundo não é outra coisa que vontade de poder6
conforme desenvolvimento em seu livro Vontade de Potência, ou seja, o mundo para
ele é permeado e se completa com relações de força, como também pudemos
constatar no decorrer do estudo desta obra. Em outras palavras, que nós não somos
outra coisa que um centro de vontade de poder, de relações de força.
Para nos aprofundar um pouco mais nessa questão podemos buscar a
comparação que Nietzsche faz com o espírito na obra de Platão, onde fica nítida que
a compreensão que temos por espírito ou alma, uma vez que ele não faz distinção
entre os dois conceitos, o que é explicitado desde a introdução, para ele, vem de
uma tradição ligada à metafísica, à transcendência, ao além-mundo, como costuma
denominar o próprio Nietzsche. Ou seja, como se estivesse reportando ao próprio
cristianismo. E como, para ele, o cristianismo nada mais é que um platonismo para o
povo, conforme o prefácio de seu livro Para além de Bem e Mal, coloca, então, a
questão do espírito dentro da tradição filosófica platônica, uma vez que Platão faz
menção à imortalidade da alma e a contraposição entre corpo e alma, dando
prioridade para essa última. A alma, para Platão, habita um corpo e é por isso
mesmo que o corpo é o “cárcere da alma” conforme frase do próprio filósofo
ateniense.
Percebe-se que para Nietzsche, a perspectiva platônica não é a única, por
isso mesmo ele apresenta outra: a sua própria, na qual o espírito se põe em corpo, e
não há separação entre corpo e alma, não há dualismos de forma alguma. Então
podemos afirmar com veemência que Nietzsche é por excelência o filósofo anti
metafísica, e que em hipótese alguma denotaria uma visão transcendente de alma,
6 O conceito de Vontade de Potência foi criado por Nietzsche como base para o desenvolvimento de outras ideias. Trata-se de uma proposição cosmológica que sustenta toda sua teoria, inclusive sua genealogia da moral é retirada das relações entre a Vontade de Potência. A vontade de poder, portanto, é esta lei originária, sem exceção nem transgressão que em si anima e é a própria essência de toda a realidade.
como faz Platão, e como faz, por conseguinte, o cristianismo, o qual, não podia
deixar de ser, tornar-se, também alvo das críticas do filósofo, mas precisamente em
“O Anticristo”, e que se faça justiça aqui, que segundo meu entendimento Nietzsche
critica com bastante ênfase o cristianismo, porém não parece discordar com as
ideias do Cristo propriamente dita, mas esse seria assunto para outro artigo sob o
risco de delongarmos demasiadamente distorcendo o foco da reflexão.
Voltando a nossa linha de pensamento, para que fique claro aqui a ideia de
Foucault sobre como Nietzsche é contrário a metafísica, principalmente quando se
trata da questão da genealogia, preferindo evidentemente a história pela própria
história. Mostrando-se o filósofo da vida enquanto vontade de poder, que diz sim
para essa vida do modo como ela é, sem subterfúgios do além, que vê nessa vida
terrena a única vida que temos, segundo ele, o motivo pelo qual todos devemos
respeito a ela, isto é: a vida não precisa de nada que a justifique, até porque ela se
justifica por si própria.
Então ao que se refere ao valorizar-se como humano, pode se dizer que se
alguém quiser dar valor ao seu espírito, de acordo com Nietzsche, deve sim viver
com intensidade essa vida, e encontrar-se em si, ou seja, viver intensamente; que
para ele significa aproveitar cada momento dessa vida, respeitando seu próprio
corpo, porque o corpo é espírito e vice-versa. Nós é que privilegiamos um modo
diferente do pensamento nietzschiano, aquele que foi intitulado por ele mesmo de “a
pequena razão”, porque somos originários de uma história de razão que nos fez
pensar assim, somos naturalmente dotados de um certo racionalismo, o qual
Nietzsche também combate.
Para Nietzsche então a genealogia necessita da história para conjurar a
quimera da origem, é preciso saber reconhecer os acontecimentos da historia, seus
abalos, suas surpresas, sendo ela mesma o próprio corpo do devir. Isso significa
que para ele, os metafísicos têm necessidades de encontrar uma alma na identidade
longínqua da origem.
Por isso que, a pesquisa acerca da proveniência, diferente da pesquisa pela
origem (Ursprung), não busca um fundamento, pelo contrário, ela pretende agitar o
que se percebia imóvel. Enfim, a proveniência diz respeito, em última instância, ao
corpo que é o seu lugar, isto porque, ele é a superfície de inscrição dos
acontecimentos, lugar de dissociação do Eu, volume em perpétua pulverização.
Portanto, o genealogista, com a análise da proveniência, deve mostrar o corpo
inteiramente marcado pela historia, que arruinando o corpo rebento de erros, traz
consigo também e inversamente sua origem, ou seja, a proveniência. Por isso, para
Nietzsche, como assinala Foucault, a proveniência designa a qualidade de um
instinto, o seu grau ou o seu desfalecimento e a marca que ele deixa no corpo.
Entenda-se aqui o corpo que é alma integral que não se separa de modo algum,
buscando sua plenitude inequívoca no viver o aqui e o agora intensamente.
Seguindo nessa linha de raciocínio, Foucault conclui que a providência se
registra no corpo, porque é nele que se registra a história e traz junto de si a
aprovação do erro. Dissabores, perdas, mágoas, alegrias, acertos, erros, força,
doença saúde e etc., elementos que estão marcados no corpo. Então é nesse ponto
de articulação do corpo com a história que, de certa forma, se situa a genealogia.
Portanto, percebe-se com clareza que Foucault apresenta exemplos
nietzschianos, mostrando como se dá a emergência através da entrada de forças
em cena, sua interrupção, o salto pelo qual elas passam dos bastidores para o
teatro. Este jogo de forças manifesta-se através da dominação entre os povos, cada
uma é manifesta de forma especifica, nascendo a partir desse momento a diferença
de valores entre os homens, entrelaçados num jogo de regras criadas pelos
dominadores como uma tentativa de manter a sobrevivência ou a subserviência do
outro. Sendo assim, a humanidade instala cada uma de suas violências em um
sistema de regras e prossegue de dominação em dominação. Para tanto, o grande
jogo da historia será de quem se apoderar das regras e assim tomar o lugar de
quem as utiliza, voltando-se contra aqueles que as utilizavam como forma de
dominação e poder. Ou seja, ao que parece, o devir da humanidade é uma serie de
interpretações, e a genealogia deve ser a sua historia como emergência de
interpretações diferentes.
Para finalizar essa reflexão podemos afirmar então que o método genealógico
de investigar a história tanto para Nietzsche quanto para Foucault, não pretende em
nenhuma instância buscar, ou reencontrar as raízes de nossa identidade, e sim,
para eles ela pretende com muita lucidez, fazer aparecer todas as descontinuidades
que perpassam pela nossa existência. Em outras palavras, fica evidente que o
objetivo da genealogia, nessa discussão, é apresentar descontinuidades que nos
atravessam, segundo palavras do próprio Foucault. E ainda entende-a como uma
forma de História que procura dar conta da formação dos saberes.
Cabe lembrar que quando Foucault interpreta a história tradicional no
pensamento nietzschiano busca romper com o pensamento singular apresentando-
se como continuidade ideal como parte de um encadeamento natural alheio ao
tempo e ao espaço, ou seja, negando a singularidade em favor da sua
universalidade.
Finalizo esse artigo expondo que Foucault retoma a genealogia nietzschiana
num estudo diferenciado da história, em que as descontinuidades históricas e o jogo
de forças e poder que se encontram transforma-se em acontecimentos, onde o
conhecimento se faz mais evidente no sentido de transbordar vontade de saber
impulsionando o sujeito a efetuar práticas na direção da moral. Sem parecer
pretencioso ou receoso ao erro, pode-se afirmar que o trabalho de Foucault se
desdobrando na obra de Nietzsche no que se refere a genealogia permite
revolucionar o conceito de história.
REFERÊNCIAS
ABBAGNANO, Nicola, Dicionário de Filosofia, São Paulo, Martins Fonte, 2007.
FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: Microfísica do poder.
Tradução e organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1989.
_______________. Vigiar e punir. São Paulo: Editora Vozes, 1995, 23ªed.
NIETZSCHE, Friedrich. Acerca da verdade e da mentira no sentido extra-moral.
Tradução de Paulo Osório de Castro. Lisboa: Relógio D'agua, 1997.
________. Genealogia da moral. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
________. Humano demasiado humano. Tradução Paulo César de Souza. São
Paulo: companhia das Letras, 2000.
SOUSA, Mauro Araujo, Alma em Nietzsche. São Paulo: Leya, 2013