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Florianópolis, 2017,ISSN 2179-510X
AS MARCAS QUE CALAM E OS CORPOS QUE FALAM: UMA REFLEXÃO
SOBRE OS CORPOS JUVENIS DENTRO DOS SISTEMAS DE PRIVAÇÃO
DE LIBERDADE DO RIO DE JANEIRO
Autora: Aline da Fonseca Barros¹ 1
Resumo: O presente artigo pretende discutir a repercussão estabelecida em relação ao corpo dentro
das Instituições Socioeducativas no Rio de Janeiro. Ao indicar as potencialidades e os limites das
diferentes significações que este corpo pode ter, questiona-se como seria a convivência com os
demais, vivenciando as inúmeras diferenças existentes por parte dos sujeitos privados de liberdade.
Este estudo tem o objetivo de analisar como se dão as relações envolvendo a corporeidade no
ambiente das Instituições Socioeducativas, envolvendo os aspectos de gênero e sexualidade, e de
que forma a socioeducação pode promover uma melhor equidade social entre esses sujeitos
excluídos dentro do sistema. A pesquisa de cunho qualitativa se pautará em uma revisão
bibliográfica para traçar reflexões sobre corpo, gênero e sexualidade, além de utilizar como
instrumentos de coleta de dados, questionários semiestruturados e entrevistas com socioeducadores
e agentes socioeducativos. Este trabalho buscará identificar as práticas comportamentais e discursos
presentes na (re)construção do corpo, gênero e sexualidades dos adolescentes em conflito com a lei.
Palavras -chave: Corpo; Socioeducação; Gênero; Sexualidades
Introdução
Esse trabalho lança olhares as discussões estabelecidas em relação ao corpo e suas
significações dentro das Instituições Socieducativas do Rio de Janeiro, analisando as relações de
corporeidade, gênero e sexualidade visando identificar as práticas comportamentais e os discursos
presentes na vida destes adolescentes.
Para entendermos um pouco das Instituições Socioeducativas do Rio de Janeiro,
precisamos entender sua estrutura e sua transformação para unidades de implementação de medidas
socioeducativas. O Departamento Geral de Ações Socioeducativas – Novo Degase, vinculado a
Secretaria de Estado de Educação, é o órgão responsável por executar as medidas socioeducativas
no Estado do Rio de Janeiro, conforme preconiza o Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA,
Lei nº 12.594. Atualmente o Novo Degase é composto por vinte e cinco unidades para cumprimento
de medidas socioeducativas, sendo distribuídas da seguinte forma:
01 unidade de Triagem e Recepção para adolescentes do sexo masculino
02 unidades de Internação provisória para adolescentes do sexo masculino
05 unidades de Internação para adolescentes do sexo masculino
01 unidade de Triagem, Recepção e Internação Provisória para adolescentes do sexo
feminino
1UFRRJ, Rio de Janeiro, Brasil.
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16 unidades de Semiliberdades, denominados CRIAADs (Centro de Recursos Integrados
de Atendimento ao Adolescente.
As medidas socioeducativas são aplicadas aos adolescentes com idade entre doze e dezoito
anos incompletos de acordo com o ato infracional praticado. Conforme o Estatuto da Criança e do
Adolescente o ato infracional é “a conduta descrita como crime ou contravenção penal”. O ECA
constitui-se como um importante instrumento jurídico-legal no rol de proteção para crianças e
adolescentes, como um avanço histórico perto das leis antes existentes.
No que diz respeito à natureza pedagógica das medidas socioeducativas, o sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE, instituído pela Lei 12.594/2012, reafirma a
diretriz do ECA, tendo também com referências os acordos internacionais no campo dos Direitos
Humanos. A necessidade de se estabelecer um padrão para os procedimentos socioeducativos
evidencia a existência atual de vários modelos em funcionamento. A máquina de compreensão e
execução do trabalho socioeducativo só funciona acoplada a outras máquinas, pois é preciso que
Governo, políticas públicas, educação, segurança e tantos outros se conectem e trabalhem junto para
se tenha sucesso na socioeducação.
Adentramos ao cotidiano de uma unidade de internação masculina do Novo Degase,
buscando realizar análises a partir de dados emersos do próprio campo, de entrevistas com
funcionários e nas reflexões e indicações teóricas, buscando a releitura das observações, das
entrevistas, dos relatos e do próprio teor da literatura acerca do tema, trazem elementos daquele
contexto, seu ritmo, rituais, organização, discursos, situações, conflitos, transgressões. Nossa
reflexão leva em consideração as peculiaridades dessa realidade e sua conjuntura, concomitante ao
respeito pelas pessoas que vivem e trabalham naquele cotidiano.
As questões que dizem respeito à sexualidade humana e sua pluralidade de vivências têm
se feito sentir em todas as esferas da sociedade, inclusive dentro das Instituições de Privação de
Liberdade no Rio de Janeiro. Esta multiplicidade de expressões tem sido acompanhada de
preconceitos, estereótipos e intolerância, que por vezes dificultam o bom relacionamento entre os
envolvidos no dia a dia desta Instituição
Refletir sobre uma determinada realidade exige compreender melhor a vida cotidiana, o
real vivido, onde as questões pertinentes ao contexto social, econômico, político, ideológico,
filosófico, educativo e, ainda, as subjetividades e as relações dos jovens e trabalhadores ali
coabitantes. Justo nestas subjetividades, estão os objetos de nossa pesquisa, ou seja, o olhar dos
envolvidos, suas percepções sensoriais, suas afetividades, suas ações frente às questões de gênero e
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sexualidade, suas práticas ou anulações dos temas de contextualização corporal, a (re)construção do
corpo, gênero, sexualidade dos jovens internos destas instituições.
De forma geral, estas instituições são lugares que despertam sentimentos contraditórios na
sociedade, sejam de curiosidade, sejam de piedade, e/ou de rejeição. Essa conjuntura ajuda a
compor a série de fatores que envolvem o lócus desta pesquisa desenvolvida, os quais se desdobram
fortemente no modo de vida dos adolescentes e jovens desta instituição e sua relação com o próprio
corpo, sua sexualidade e suas ressignificações.
No caso das instituições socioeducativas para adolescentes, a questão da sexualidade, de
forma geral, apresenta-se como um assunto delicado, complexo e ultrapassa o moralismo e
constrangimento, beirando ao preconceito vigoroso de muitos envolvidos no processo. São
necessários esforços contínuos, estudo e abertura ao diálogo entre quem educa no sentido de lidar e
compreender a sexualidade ao invés de negá-la.
Vaz, salienta que:
Vivemos um paradoxo cotidiano quando nos expressamos em relação ao corpo e
suas expressões nos ambientes educacionais. O corpo é, por excelência, o órgão das
paixões, dos desejos, do cansaço, das dores, da preguiça, das fortes e fracas emoções, da
fome, da sede, das vontades fisiológicas, das muitas pulsões, enfim, em uma palavra, do
descontrole. Nesse sentido, faz parte do imaginário educacional a ideia de que o corpo deve
ser educado, disciplinado, que não devem poupar esforços no sentido de colocá-lo na linha,
na retidão dos bons costumes, do autocontrole. (VAZ, 2002, p.3)
A instituição pesquisada foi uma unidade socioeducativa provisória masculina, localizada
no Rio de Janeiro, em uma região de classe média, que recebe menores em privação de liberdade
temporária, ou seja, meninos que ainda estão aguardando seus julgamentos na justiça. Eles
permanecem nesta instituição por no máximo quarenta e cinco dias. Dentro deste período eles
aguardam suas audiências na unidade seguindo as regras locais. Os que após as audiências são
inocentados ou punidos com pena de trabalho comunitário, não retornam, e os que são penalizados
com a privação de liberdade são encaminhados para uma outra instituição para que cumpram suas
penas. Atende adolescentes e jovens do sexo masculino dos treze aos dezessete anos. Durante o
primeiro dia de visita a unidade, encontrava-se na unidade 230 (duzentos e trinta) internos e no
segundo dia 271 (duzentos e setenta e um ), lembrando que a capacidade máxima da unidade é de
203 (duzentos e três ), deixando visível o problema de superlotação.
Os dados da pesquisa se baseiam em entrevistas feitas com dois agentes educadores, um
professor de educação física, uma coordenadora pedagógica, um diretor adjunto da escola e uma
diretora da unidade, alguns responderam a questionários e outros apenas a entrevista. A coleta de
dados ocorreu em dois dias, em um período de um mês.
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A preocupação e o estudo sobre a relação do “corpo”, são decorrentes de minhas
experiências e vivências relacionadas à minha formação em Educação Física e também minha
atuação profissional na área da Educação. A identidade de uma pessoa é constituída ao longo do
tempo de forma processual, a partir de relações com o mundo em que vive e, principalmente, da
maneira que tais relações são estabelecidas, ou seja, por meio das vivências e experiências
individuais e sociais, sejam elas positivas ou negativas. Contudo, é indubitável a influência de
nossas relações com o mundo para o processo da constituição identitária, e o percurso que estes
meninos passam dentro destas instituições tem muito a contribuir para a formação do cidadão e da
pessoa que eles hão de se tornar na fase adulta.
Desenvolvimento
Pensando no corpo como primeiro modo de existir e o primeiro contato do indivíduo com o
meio e com as pessoas que o cercam, sabemos que é nele que se inscrevem as regras, as normas e os
valores de uma sociedade. Falar do corpo dentro de uma Instituição Socioeducativa de privação de
liberdade, nos remete aos controles e descontroles aos quais os corpos destes adolescentes são
submetidos, aprisionados e até mesmo obrigados a aceitarem. Reflexos corpóreos que vão aflorar
em gestos, comportamentos e até mesmo no silêncio, que dói aos ouvidos de quem consegue ver
além das expressões, além do que se diz ou do que se faz questão de mostrar.
Foucault (2007) percebe os mecanismos da vigilância e da disciplina como forma de poder
exercido sobre os corpos: corpo que se manipula, se modela, se treina; que obedece, responde, se
torna hábil ou cujas forças se multiplicam. É sobre o corpo que se impõem as obrigações, as
limitações e as proibições, tão frequentes nas instituições. Nestes locais onde a proposta é de uma
ressocialização dos indivíduos, podemos observar claramente que a submissão desses corpos
juvenis as regras, aos adultos envolvidos e a todo sistema é válvula principal para que se pense em
qualquer ação junto aos adolescentes, “corpos dóceis” são pensados a todo momento.
Se legitimam através das falas dos envolvidos, na padronização de qualquer deslocamento
dentro da unidade, na proibição de contato visual com os agentes, na permissão de trabalhos das
igrejas na unidade, na separação dos classificados como “diferentes” para que não haja conflitos
internos e em tantos outros pequenos detalhes que podemos observar no cotidiano.
A atuação sobre o corpo ocorre quase sempre legitimada pelo discurso da ordem e do bem,
ou seja, os meninos devem ser separados dos que se reconhecem como homossexuais porque pode
haver homicídio, pelo fato do grupo predominante ser extremamente machista e não aceitar os
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homossexuais entre eles. E assim se justifica o isolamento de um jovem que sinaliza sua
(homos)sexualidade dentro da unidade.
A separação por facções, também é justificada pelo fato de se reprimir conflitos dentro da
unidade, que inclusive anteriormente já resultaram em mortes. Os números que os meninos recebem
e se transformam lá dentro, são dados para que se faça uma melhor organização e controle dos que
estão ou passam por ali, eles deixam de responder pelo seu nome para que vivam como um número
até a sua saída na unidade.
Este conjunto de estratégias, funcionam de tal forma que habilidades, destrezas, normas,
regras e valores sejam internalizados pelos sujeitos (neste caso, pelos internos) sem que estes
percebam um outro aspecto possível da realidade humana e suas demonstrações de possibilidades.
Esse complexo ritual de controle e disciplinamento do corpo que se efetiva no cotidiano da
instituição é descrito por Foucault (2007) como um conjunto de técnicas, estratégias e dispositivos
que permitem, em seu conjunto, o controle minucioso das operações do corpo. No seu todo,
perpassando os corpos individuais e a organização das instituições, essas técnicas, estratégias e
dispositivos constituem o regime disciplinar de poder.
Garcia, reforça que:
silenciados por práticas autoritárias; corpos contidos em uniformes, presos em formas, em
carteiras, em horários e normas, impedidos de se movimentar na sala de aula, impedidos até
de ir ao banheiro quando sentem necessidade [...]; corpos que se insurgem contra as normas
[...], corpos impedidos de se tocar [...]; corpos tornados invisíveis [...]; corpos que falam,
que denunciam, que dizem tantas coisas incompreendidas por quem só sabe ler o instituído.
(GARCIA, 2002, p. 15)
Esses corpos doutrinados através das regras internas, trazem uma transformação do sujeito,
que supostamente está ali, justo pelo fato de ter infringido uma ou mais regras da sociedade.
Podemos observar um disciplinamento dos corpos a partir de algumas regras que regem o cotidiano
desses meninos, impondo-lhes horários, restringindo movimentos e regulando suas atividades.
Essa disciplinarização dos corpos é sempre justificada como algo necessário para
manutenção da ordem dentro daquele espaço, em nenhum momento isto foi retratado como
prejudicial. Os meninos sempre que se deslocam devem manter a postura de braços entrelaçados
nas costas (como se estivessem algemados) e o olhar direcionado para o chão. Ao aguardarem
algum tipo de conduta, sentam-se um atrás do outro, com os braços entrelaçados por cima dos
joelhos e a cabeça entre as pernas, mantendo o olhar em direção ao chão.
Além das regras institucionais os internos convivem com as próprias regras, entre elas a
mais clara e presente na unidade é a divisão de facções, eles não convivem com elementos de
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facções opostas, pois pode gerar brigas e até mortes entre eles. Nesse sentido percebo que não há ali
um distanciamento do mundo fora daquelas paredes, mas sim uma adequação ao que muitos já
vivem aqui fora. Uma adequação que por vezes causa desigualdades, como as que ocorrem na
escola da unidade por exemplo, onde nos foi relatado que meninos deixam de frequentar as aulas
por não se sentirem seguros em uma sala de aula com maioria de meninos da facção rival, para não
correm risco eles preferem não ir as aulas.
Outra separação que acontece é a dos meninos mais novos, que ficam no prédio chamado
de seguro para que não sejam ameaçados ou tenham que cumprir qualquer ordem dos mais velhos
mediante coerção ou ameaças. Também no prédio do seguro, ficam os meninos acusados de
estrupo, que nas leis internas é um crime sem perdão e os considerados ou assumidos como
homossexuais. Estes também possuem a separação norteada por leis dos internos. Segundo os
agentes e professores entrevistados, nenhum menino pode ter relações com homossexuais, ou se
quer fazer uso de algo em comum com eles. Qualquer situação que ponha em dúvida a
masculinidade de um interno, já se faz necessária a separação deste menino.
A maioria dos entrevistados afirma não haver relações sexuais entre os internos, alguns
acreditam que a separação dos homossexuais exclui esta possibilidade, outros acreditam que a regra
interna de rejeição aos que demonstrem quaisquer sinais de não heterossexualidade ajuda neste fator
de controle entre as relações sexuais entre os meninos. Portanto, alguns outros relatos verbalizam
que entre eles, até por questões de necessidade e aproximação devido à lotação, alguns episódios de
relação sexual ocorrem, mas são mantidos no mais alto sigilo para que não seja aplicada a sanção da
separação e também pelo fato de muitos não considerarem como homossexual o menino que tem o
ato ativo em uma relação.
Portanto apesar dos internos terem a percepção de que certas práticas e regras são
derivadas de um acordo entre eles, o que observamos é que estão relacionadas a uma imposição
subjetiva através de uma sensação constante do medo. Neste sentido podemos visualizar uma
relação de mistura entre respeito e medo que permeia a maioria destas relações, pois o que está em
jogo é a própria vida do interno.
A produção de verdades, supostamente neutras e absolutas, afirma que alguns modos de
vida são legítimos, enquanto outros devem ser aniquilados. Esse saber/poder atualiza-se também
sob os corpos, pois reprimem e constrangem aos que são diferentes dos considerados dentro da
heteronormatividade, na medida em que certas normas são instituídas, cristalizadas e capilarizadas
dentro do sistema, promove isolamento e silenciamento, afastando e precarizando as vidas que não
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se encaixam nos modelos por eles aceitos, gerando um grande reflexo do que vivenciamos na
sociedade em si, só que com uma potencialização desses transtornos gerados.
Quando não há o reconhecimento do outro na norma, a diferença é vista como uma ameaça
que precisa ser aniquilada (BUTLER, 2005). Ao ditarem ordens capazes de gerar o isolamento de
um grupo, ou até mesmo de um indivíduo por questões de segurança da vida, estes meninos dizem
de forma aberta e clara que não aceitam os diferentes, embora possamos observar que algumas
práticas entre eles são próximas ao que eles abominam ou recriminam.
A sexualidade, longe de fazer parte de um grupo de características individuais, que
definem os sujeitos a priori, é um processo político e social, em relação com o qual os sujeitos
constroem seus discursos (LOURO, 2013). Esse processo é contínuo, e necessita de reconhecimento
para que não sofram com as formas de poder e repressão advindas da representação dominante de
sexualidade heteronormativa.
O conhecimento pode proporcionar aberturas novas e novas experiências e narrativas para
os adolescentes e os funcionários das instituições socioeducativas, o que se mostra importante tanto
no processo de formação destes meninos, quanto para suas próprias vidas, pois o processo
formativo e as práticas da educação não afetam só os alunos, mas sim toda uma parcela da
sociedade que convive com esses sujeitos. A circulação do debate acerca das sexualidades e gêneros
nos processos formativos permite a articulação de novos debates que façam enfrentamento aos
discursos e práticas já postas e vivenciadas como únicas e soberanas em suas verdades.
Apresentação dos Resultados
Nas últimas décadas, houve um crescente aumento dos estudos envolvendo a temática de
corpo. O corpo é revisitado e analisado por meio de diferentes perspectivas e nesta pesquisa
buscamos através de entrevistas e questionários analisar como este corpo é visto e compreendido
dentro das unidades socioeducativas do Rio de Janeiro, abordando questões de gênero e
sexualidade. .
Dentro da unidade socioeducativa onde procedeu a pesquisa, dialogamos com agentes
educativos, professores, diretores da unidade e da escola, corpo médico, assistentes sociais e
psicólogos. Os entrevistados foram escolhidos aleatoriamente, de acordo com a disponibilidade
deles nos dias em que visitamos a unidade.
Quando o assunto é gênero e sexualidade em um sistema excludente e notoriamente
machista, logo se percebe estar em um ambiente bastante adverso à abertura de diálogos e debates
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envolvendo questões de sexualidade. A questão da diversidade não é bem recebida por muitos dos
agentes e socioeducadores entrevistados, e, por outros, até gera desconfiança sobre a pesquisa.
A recepção de uma das diretoras da unidade à pesquisa e a minha presença foi calorosa,
aos poucos ela apresentou toda estrutura da unidade, falou sobre as mudanças que ocorreram ali
com a sua chegada e da dificuldade em implantar suas ideias pelo fato de ser mulher em um
ambiente tão machista, porém não se aprofundou nestas questões, sempre deixando este relato para
uma outra hora.
Visitamos toda estrutura da unidade, como pátio, espaços de atendimento médico, social,
escola e enfermaria. Só não tivemos acesso à parte interna dos alojamentos. Em todos estes espaços
conversamos com diferentes pessoas, em diferentes funções dentro da unidade.
A escola tem espaço para um atendimento de 105 (cento e cinco) alunos por turno, porém
nos foi relatado que este quantitativo não é preenchido, não por falta de disponibilidade dos alunos,
que pedem para ir às aulas, mas por um motivo administrativo de falta de agentes para conduzir os
internos, pois é necessário que cada agente educador faça o deslocamento de cinco adolescentes e
na unidade não há efetivo para o transporte do total de vagas na escola. Segundo informações da
direção da escola, por dia eles atendem a 80 (oitenta) alunos em média.
Pensando na escola como local privilegiado para implantação de ações que permeiem a
preparação para uma vida democrática, com respeito mútuo e convívio com as diferenças, focamos
maior parte das entrevistas com os professores e gestores desse espaço. Procuramos compreender a
dinâmica pedagógica que acontece e o que ela contribui na vida desses meninos.
No primeiro momento observamos que a escola em nada se difere estruturalmente das
escolas públicas que temos fora dos muros da instituição, murais repletos de figuras e trabalhos
desenvolvidos pelos alunos, mas com uma especificidade, não há grampos. Os trabalhos são
sempre colados, para que os grampo não virem armas nas mãos dos meninos, explica a
coordenadora pedagógica.
É unânime entre os entrevistados, a fala de que os internos gostam de ir às aulas e
frequentar o espaço da escola. Os professores afirmam não ter problemas com o comportamento em
sala de aula e relatam que os adolescentes são participativos. Os agentes educativos ficam do lado
de fora da sala de aula, em sala permanecem somente os alunos e o professor, em caso de desordem
os professores chamam o agente para cuidar do aluno que está infringindo alguma organização da
sala de aula, mas relatos sobre essa necessidade são bem raros, segundo os entrevistados.
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Os professores dizem que os trabalhos em aula são baseados em projetos que se iniciam e
findam no mesmo dia, pois a rotatividade de alunos é grande e estender o projeto por mais de um
dia não atende a esta característica rotativa de alunos. Alguns relatam trabalhar no máximo em duas
aulas, mas citam os casos de alunos que não finalizam e outros que chegam sem saber o que foi
tratado na aula anterior.
Em sua maioria os professores utilizam temas bem relacionados a suas áreas específicas de
formação e ao questionarmos sobre abordagem sobre gênero e sexualidade na escola, quase todos
informaram que acontecia nas aulas de biologia quando se trabalhou o sistema reprodutor. Ao
questionarmos porque essa abordagem não acontecia de forma mais ampla, com a participação das
demais disciplinas, uma das respostas foi “não temos competência para falar sobre algo que não é
da nossa matéria, eu não tenho competência para falar sobre isso, tem que ser a professora de
biologia mesmo.”.
Estas falas nos levam ao questionamento sobre o que se compreende como gênero e
sexualidade, e principalmente sobre essas subdivisões tão fechadas em suas próprias disciplinas em
uma sociedade tão tecnologicamente moderna e interconectada, para que se seccione tanto o
conhecimento num local onde ele deveria ser global e indivisível.
Ao conversarmos com a coordenadora pedagógica, a informação de que somente a
professora de biologia aborda este tema. Segundo ela além desta professora, um outro professor
aborda com os alunos o tema homofobia, e que inclusive alunos já reclamaram deste professor
abordar este tema, dizendo que ele só falava disso e que era chato. O questionamento que fica, é se
esta abordagem realmente surte efeito de conscientização ou se vira só uma fala maçante e sem
conexão com os internos.
Entrevistando um dos professores de Educação Física da unidade, pudemos adentrar mais
no universo da corporeidade vivenciada e incorporada por esses meninos. A motricidade humana é
um conceito estrutural composto por um conjunto de significados e deve ser interpretada como um
conteúdo essencial da natureza humana e de domínio público, sobre o sentido mais puro do
movimento humano (CARMO JR., 2011).
É no corpo que o tempo e o espaço estruturam-se, os objetos se dimensionam e as
estruturas e sequências temporais se estabelecem. Por esse motivo, a percepção do próprio corpo e
de suas possibilidades se fazem importantes no processo de desenvolvimento do ser humano, sendo
assim a corporeidade e sua prática e conhecimento são necessário dentro da escola.
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Porém podemos observar uma realidade de corpos contidos e fiscalizados a todo momento,
quando por vezes só é permitido o movimento dos olhos, pouco tempo, pouco espaço sobra para se
vivenciar experiências concretas.
As aulas de Educação Física são ministradas em sala de aula, pois o Estado por meio de
decreto, oficializou que prática das atividades físicas só pode acontecer mediante a apresentação do
atestado médico, o que não é possível de se conseguir para estes adolescentes internos. Sendo assim
o professor nos colocou que sua prática pedagógica consiste em selecionar filmes que abordem
temas esportivos e que se aproximem da realidade dos meninos pra que posteriormente eles possam
debater sobre o que foi abordado na película.
De acordo com os professores, com relação às vivências motoras, estas estão suspensas
desde o início do ano de 2017. Anteriormente a essa época, o professor relata que o trabalho com
eles era feito no campo que tem dentro da unidade. Embora eles quisessem sempre jogar o futebol,
o professor diz que sempre conseguia trabalhar uma vivência corporal diferente para no fim da aula
liberar o jogo para eles. Questionado se algum interno assumido ou identificado pelos demais como
homossexual participava das vivências motoras proporcionadas nas aulas, o professor disse que não.
Ele recorda de apenas uma vez um interno com tais características ter frequentado sua aula, e que
neste dia o mesmo optou por não participar da prática, ficando de fora e só observando.
Quando questionado se em suas aulas o tema sexualidade e gênero já fora abordado, a
resposta do professor foi negativa, dizendo que não conhecia nenhum filme que tivesse esta
abordagem associada à prática esportiva. Disse que não tem muita propriedade sobre o tema, mas
que tem interesse em saber mais para poder utilizar em suas aulas, pois para ele a abordagem deste
tema pode fazer com que os meninos “venham a sentir pena daquele que é massacrado”.
O professor disse que tinha uma certa preocupação com o desenrolar desta abordagem em
sala, pois não tem noção da dimensão que este debate tomaria após a aula, falas poderiam ser
distorcidas e alguns meninos poderiam ser punidos pela repercussão que isso tomaria. Afinal dentro
das leis internas a homossexualidade é abominável e passível de punições violentas.
O professor vê a escola como um porto seguro, onde os meninos saem do tratamento
agressivo e limitador da unidade e podem partilhar de momentos em há mais participação e
liberdade de fala. Por isso eles gostam de ir às aulas e não causam transtornos na escola, conversam,
fazem atividades diferentes e convivem bem de um modo geral.
Conclusão
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A presente experiência nos traz grandes desafios no que diz respeito à ampliação da
discussão sobre diversidade de gênero e diversidade no sistema socioeducativo, como também a
tarefa de respeitar este corpo e suas necessidades corpóreas de expressão e vivência.
A postura de negar a sexualidade destes jovens pelo simples fato de eles estarem privados
de liberdade, não facilita nem um pouco a possibilidade de se debater o assunto de grande
necessidade e importância para o ser humano. Sendo assim, a banalização da exclusão do diferente,
a aceitação de “as coisas são assim”, só faz com que o preconceito cresça e que a minoria não tenha
visibilidade ou a possibilidade de qualquer vivência positiva dentro da unidade.
Segundo Schering e Marinho (2001), somente uma educação que respeite a diversidade
cultural, étnica e sexual, guardando as especificidades de cada ser humano, favorecerá o
desenvolvimento das capacidades individuais, de uma autoestima saudável, de oportunidades iguais
no trabalho e na vida social.
Penso que mesmo com o respaldo de tantas leis, os problemas são muitos neste universo de
privação de liberdade, o que prejudica e muito o caráter socioeducativo que a unidade deveria ter. A
superlotação, o ambiente visivelmente machista, as reproduções preconceituosas em grande escala
do que vivemos na sociedade, e tantos outros fatores que nos permitem intuir que muito pouco
mudou de uma época recente para cá e que a concepção de socioeducação prevalece mais como
uma nomenclatura do que como uma realidade.
Dentro deste contexto, a busca pelo respeito desses adolescentes e da diversidade existente,
deve ser considerada a própria problemática, pois é notório que os olhos se fecham quando o
assunto abordado é sexualidade, simplesmente por negar que ela exista. A educação para
diversidade não acontece, não há um debate mais profundo e todo o contexto de gênero e
sexualidade fica à margem do cotidiano da unidade, os excluídos, tornam-se ainda mais excluídos,
pois ali dentro são literalmente isolados de tudo e de todos, e não há se quer um debate sobre essa
condição imposta.
Segue a vida, segue o fluxo e o conceito de segregação torna-se ainda mais real e
esmagador do que fora daqueles muros.
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VAZ, A. “Aspectos, contradições e mal-entendidos da educaçãodo corpo e a infância”. Revista
Motrividência, ano XIII, n. 19, dez. 2002
The trouble marks and the bodies that speak: A reflection on the Juvenile bodies within the
Rio de Janeiro liberty deprivations systems
Astract: This article intends to discuss the repercussion established in relation to the body within
the Socio-educational Institutions in Rio de Janeiro. In pointing out the potentialities and limits of
the different meanings that this body can have, one questions how it would be to coexist with
others, experiencing the innumerable differences existing on the part of the subjects deprived of
freedom. This study aims to analyze how relationships involving corporeality in the environment of
the Socio-educational Institutions, involving the aspects of gender and sexuality, and how the
socioeducation can promote a better social equity between these excluded subjects within the
system. Qualitative research will be based on a bibliographical review to draw up reflections on
body, gender and sexuality, as well as to use as instruments of data collection, semi-structured
questionnaires and interviews with socioeducators and socio-educational agents. This work will
seek to identify the behavioral practices and discourses present in the (re) construction of the body,
gender and sexualities of adolescents in conflict with the law.
Keywords: Body; Socioeducation; Genre; Sexualities