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Associação Cultural Corrente Libertadora: capoeira e atuação político-cultural em Tempos de Ditadura (1976-1989).
(Regiane L. Lopes, Mestre em História Social pela PUC-SP)
Este trabalho pretende discutir um dos campos de atuação da Associação
Cultural Corrente Libertadora na cidade de São Paulo entre os anos de 1976 a 1989.
Fundada a partir da iniciativa de quatro irmãos – Maurício, Eufraudísio, Eufrásio e
Magnólia – e do fazer cultural da capoeira, a Associação trilhou caminhos diversos,
experenciando e dialogando com a realidade sócio-cultural na qual estava inserida.
Aqui, nos debruçaremos nas relações que a Associação estabeleceu com os
movimentos sociais do final dos anos 1970 e como essas relações incidiram na sua
própria constituição.
Em uma conjuntura em que se discuti a importância da memória para a
construção/reconstrução da história recente do Brasil, as experiências dos
movimentos sociais e culturais que enfrentaram a vigência do Estado de exceção
decorrente da Ditadura Militar (1964-1989), muito têm a nos dizer. Em particular, a
Corrente Libertadora nos propõe reflexões relevantes a este respeito por sua
atuação política, bem como, pela capoeira, que se mantêm e se resignifica através
de um movimento contínuo da memória: memória inscrita pela oralidade e gesto
desenhado pelo corpo do capoerista.
A formação da Corrente Libertadora conviveu com os limites de vivenciar uma
manifestação cultural, de matriz afro-brasileira, escrava, carregada de estereótipos
criminalizantes e encabeçada por migrantes baianos, em uma realidade política
regida pelo sistema ditatorial. Moradores da periferia da cidade de São Paulo, os
fundadores da Associação sofriam duplamente a desconfiança e vigilância policiais:
por um lado, devido à situação sócio-econômica frágil e, por outro, pelos indícios de
mobilização social que já se ensaiavam no início da década (SINGER, 1980, p.13).
O envolvimento e militância da Corrente Libertadora com lutas político-sociais
se deram na segunda metade dos anos 1970, acompanhando o discreto e gradual
processo de abertura política. A cidade se deparava com a efervescência de
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movimentos populares, em uma demonstração de insatisfação e disposição para a
luta política de setores da sociedade civil marginalizados e silenciados pelos anos de
repressão.
É pertinente observar que, contrariando o movimento de difusão da capoeira
na década de 1970 em São Paulo que se fazia conhecida a partir do centro da
cidade, a Corrente Libertadora se desenvolveu desde seu princípio na periferia.
Entre a década de 1960 e 1970 os baianos perfaziam um total de 10% da
população de São Paulo (PRANDI, 1990: p.51), dentre os quais, estava o que
Letícia Vidor identificou como primeira e segunda geração de capoeiristas baianos
na cidade paulistana.1 Ms. Suassuna e Ms. Brasília da primeira geração de
capoeiristas baianos na cidade fundou em 1967 no bairro de Santa Cecília a
academia Cordão de Ouro, que juntamente com a Roda de Capoeira da República -
ativa desde anos cinqüenta - eram locais privilegiados de encontros de capoeiristas
das duas modalidades de capoeira: Angola e Regional. Em 1969, Ms. Pinatte e Ms.
Limão fundaram a São Bento Pequeno na Av. Brigadeiro Luiz Antônio.
A atuação desses grupos na região central da cidade favoreceu o contato
desses capoeiristas com um público mais diversificado em relação ao público
residente nas periferias da cidade, um público significativo de parcelas da classe
média interessado em cultura popular: artistas, estudantes, professores e militantes
políticos que interagiram e influenciaram nos caminhos trilhados por esses grupos.
O fato da Corrente Libertadora ter iniciado e depois, permanecido o
desenvolvimento de seu trabalho na periferia da cidade é, em parte, recorrência da
situação sócio-econômica da família Modesto, mas também, uma opção política.
A migração forçada do Sul da Bahia para São Paulo impunha limites à
integração na cidade. Apesar das políticas sociais propostas pelos governos
militares e as políticas voltadas para habitação como a reestruturação do Banco
Nacional de Habitação – BNH e a Lei Lehman (WANDERLEY, 1992, p.23)
1 REIS, Letícia Vidor de Souza. Negros e Brancos no Jogo de Capoeira: A Reinvenção da Tradição. Dissertação
de Mestrado: USP, 1993, pp. 126 e 129.
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compreendemos que estas, funcionavam como um mecanismo de legitimação ao
regime, que paralelamente tinha uma política econômica pautada no arrocho
salarial, precarização das condições de trabalho e na concentração de capitais
nacionais e estrangeiros.
Estamos pontuando essa particularidade por duas razões: a primeira diz
respeito à prática da capoeira como manifestação cultural, mas que dialoga com o
processo de esportização da capoeira na cidade e, a segunda, remete ao processo
de gradual politização de suas ações ao se reestruturar enquanto Associação em
1977.
eu percebia que o grupo de moradores, esse grupo de trabalhadores, que o Maurício e o Zé Santos formava, era um grupo de pessoas muito simples, pessoas de boa índole, pessoas que tinham boa intenção, então, por isso, precisavam ter uma orientação mais cultural pra poder pegar essa linguagem da capoeira e transformar isso em uma matéria educacional, uma matéria de formação. Foi daí que eu coloquei para o Maurício, que era importante ter um nome, ter uma fama, mas isso precisava ser construído junto com todo mundo... Que se ele escolheu... Corrente Libertadora, que fosse Corrente Libertadora!O nome dele viria junto... mas a Corrente Libertadora revelava um conjunto de idéias e ai, foi a partir daí que ele conseguiu compreender... ele percebeu que a melhor coisa era o conjunto mesmo, eram os alunos e a gente foi crescendo a partir daí. (Eufraudísio Modesto Filho – Ms. Eufraudísio, 09.10.09).
É sintomático que influenciado pela experiência no Movimento Popular, que
atuava junto a Igreja Católica do bairro, Ms. Eufraudísio preocupou-se em defender
o caráter coletivo do nome do grupo, através de argumentos fortemente politizados,
deslocando o sentido individualizante de academia do Ms. Maurício, para o sentido
comunitário de associação.
Há, pois, uma preocupação em não romper com a trajetória cultural do grupo
vivenciada até aquele momento - através da manutenção de seu nome de origem
Corrente Libertadora -, mas por outro lado, tenta pontuar a mudança de atitude
político ao utilizar a terminologia Associação.
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Com a participação efetiva dos quatro irmãos Modestos – Maurício,
Eufraudísio, Eufrásio e Magnólia – o grupo assume o nome Associação de Capoeira
Corrente Libertadora e posteriormente, Associação Cultural Corrente Libertadora,
como é registrada até o momento.
A palavra associação tem aí um caráter político, no sentido de dar visibilidade
ao trabalho de um conjunto de pessoas e não de um mestre e também indica o
diálogo com as formas de organizações comunitárias existentes e em atividade na
periferia de então, como as Sociedades de Amigos de Bairro - SABs .
A principal função das SABs até meados da década de 1960 era de articular
as demandas locais (requerimentos de melhoria de serviços urbanos) e apresentá-
las as autoridades municipais. Embora essas associações tenham perdido seu vigor
devido às novas atribuições e as relações políticas que estabeleceram, elas
continuaram a atuar nas periferias da cidade com reconhecimento das comunidades
(SINGER, 1980, p.88).
Podemos entrever que a familiaridade entre a idéia inicial da atuação das
SABs com as novas abordagens de intervenção social estimuladas pelas
Comunidades Eclesiais de Base – CEBs nas periferias, que a proposta de
associação se colocou como preeminente na visão defendida por Ms Eufraudísio e
aceita pelos demais irmãos. Ela nos dá indícios do caráter comunitário da
Associação começando pela figura do mestre de capoeira e do diálogo que
estabeleceu com a conjuntura política.
A relação com a capoeira que iniciou-se com José Maurício – Ms. Maurício –
paulatinamente foi partilhada com os demais irmãos, ocorrendo que com a formação
destes, na prática da capoeira, a Associação Cultural Corrente Libertadora se
compôs por três mestres: Ms. Maurício, Ms. Eufraudísio e Ms. Tigrão.
A figura do mestre de capoeira estrutura as relações sociais da prática da
capoeira. O mestre é o quem carrega consigo o conhecimento ancestral da
capoeira. Conhece a musicalidade, a técnica, a história e a malícia dessa arte
popular; conhecimento que transmite aos seus alunos através do exemplo, do jogo,
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do olhar e da tradição oral. Pela complexidade desse conhecimento, o mestre é a
figura central da hierarquia da capoeira.
O que pretendemos evidenciar com esse aparte são as particularidades da
Corrente Libertadora; a figura do mestre no grupo não é apenas partilhada, mas é
partilhada entre irmãos e os seus alunos, que depois de formados desenham seu
caminho tendo a Corrente Libertadora como referencial e não atrelados a ela.
Particularidade que também desejamos aqui pontuar é o perfil dos alunos da
Corrente Libertadora na Vila São José. Como nos descreve Ms. Eufraudísio tratava-
se basicamente de trabalhadores, moradores do bairro, sujeitos às dificuldades e
precariedades do viver na periferia de São Paulo naqueles anos de expansão e de
luta popular por ver seu espaço reconhecido e assistido pelo poder público.
Compreendemos que foi a partir do encontro entre as demandas sociais
trazidas pelos alunos e a experiência cultural e política dos irmãos que coordenavam
a Associação, que a Corrente Libertadora, a capoeira por eles praticada, extrapolou
o seu universo de prática esportiva e cultural para ser compreendida como
instrumento de intervenção política.
Esses alunos, trabalhadores de diversas áreas, donas de casa (muitos deles
sobrevivendo com as restrições financeiras advindas de uma formação profissional
precária ou desqualificada no espaço urbano) encontraram no fazer cultural da
capoeira um sentido social de compartilhar idéias, experiências e prática política. O
espaço da academia de capoeira deu lugar à Associação, isto é, um espaço de
encontro, de construção de sociabilidades e de formação política.
A participação nos Movimentos Populares – principalmente no Movimento de
Moradia, Custo de Vida e Comissão de Fábricas – obedecia a um diálogo constante
entre a prática interna da Associação e as ações dos Movimentos. O componente
político das atividades da Associação, pois, não correspondia a uma vertente
político-ideológica em um movimento de fora para dentro, mas antes, a prática
cotidiana da Associação a aproximou dos Movimentos Populares que encarnavam
as angústias e reivindicações de seus alunos e mestres.
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Sempre que havia um movimento de resistência social, a Corrente era chamada, porque era a capoeira que falava a língua da resistência popular. Então assim, nunca a gente se apresentava, em nenhum momento, em nenhum desses momentos sem colocar o nosso propósito... dentro da Corrente, como Associação Cultural nós tínhamos o Cine Clube, tínhamos um grupo de dança, dança folclórica e a gente tinha uma reunião por semana pra discutir os assuntos sociais com os alunos e ai, os trabalhadores, a família... vinham pra esse debate. Às vezes assistiam um curta metragem de um tema específico e a gente discutia as questões sociais ali. Com isso a Corrente tinha uma inserção das pessoas dentro dessa questão do Movimento Popular. (Eufraudísio Modesto Filho – Ms. Eufraudísio, 09.10.09.).
As atividades culturais e as de conotação política se intercalavam com as
aulas de capoeira. A capoeira era a porta de entrada pela qual os alunos iniciavam o
contato com expressões da cultura popular – samba de roda, maculelê, puxada de
rede, etc - que não conheciam ou que reviviam naquele espaço de sociabilidades.
Nesse sentido, não podemos deixar de pontuar as profundas diferenças na
postura dos atores da Associação em relação às políticas culturais de âmbito federal
nos anos 1970. Para a discussão que fazemos aqui, nos toca diretamente o
lançamento da Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro e a aprovação da
Política Nacional de Cultura em 1975. Em ambas, as tradições e costumes das
classes populares foram definidos como folclore, pertencentes ao patrimônio
histórico e artístico do país, cuja salvaguarda e preservação estavam sob a tutela do
Estado e das Fundações a ele atreladas (MICELI, 1984, p.67).
Essa concepção acerca das manifestações populares, que se pretendia
harmoniosa, homogênea e unificadora ia à contramão das atividades da Associação,
para quem, vivenciar as manifestações culturais era marcar as diferenças e enfatizar
os processos econômico-culturais que desencadearam desigualdades sociais.
Distante de uma visão estática e de subalternização, como contempla a concepção
de folclore,2 as manifestações culturais, a capoeira, eram o que dava vida, cor e
ânimo as ações políticas da Associação.
2 Para uma discussão sobre patrimônio e folclore, ver: CANCLINI, Nestor García. O Povir do Passado. In:
Culturas Hibridas.São Paulo: Edusp, 2008.
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A atuação da Associação caminhou no sentido de driblar qualquer
possibilidade de catalogalização do fazer cultural. Nas brechas do cotidiano sob a
égide da Ditadura Militar, as manifestações culturais vivenciadas pelos alunos e
mestres da Associação estavam alinhadas a uma postura de resistência político-
cultural, que não vislumbrava qualquer tipo de parceria com o Estado naquele
período.
Por isso, entendemos que havia na prática da Corrente Libertadora uma
forma de acolher através da capoeira, utilizando os elementos que lhe são próprios:
a música, a dança, a roda, o jogo. Esses elementos da capoeira, compostos pelo
traço da ludicidade, potencializam a característica de ser a capoeira uma atividade
coletiva.
Cientes desse potencial agregador inerente à capoeira, os coordenadores da
Corrente Libertadora vão atrelar a ela, outras atividades culturais e políticas, em um
movimento contínuo entre as novas perguntas e demandas geradas no espaço
urbano e as tentativas de elaboração de respostas por parte sociedade civil a elas.
Nesse caso, a elaboração de estratégias de ação de grupos populares tinha como
um dos pontos de articulação e mobilização social uma manifestação de cultura
popular: a capoeira.
Em 1977 a Associação de Capoeira Corrente Libertadora passou a atuar na
região estabelecendo relações com várias forças populares: foi uma das
responsáveis pela articulação do Movimento de Moradia nos bairros do Grajaú, Pq.
Residencial Cocaia e IV Centenário, logrando êxito nas ações de ocupação de
terrenos e de construção de loteamentos populares, assim como na posterior
legalização de posse dos terrenos (GOHN, 1991).
O Movimento de Moradia se configurou como um dos mais articulados e de
postura reivindicatória dentro das lutas sociais liderados pelos setores populares da
cidade de São Paulo nesse período, tendo a zona sul e principalmente, regiões de
Santo Amaro, Capela do Socorro e Parelheiros centros de mobilização (SINGER,
1980, pp.94-6).
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Os fundadores da Corrente Libertadora conheciam de perto a realidade social
dessa região e a necessidade da construção de uma rede de serviços - como
creches e postos de saúde na região - que atendesse as demandas das famílias de
trabalhadores, carentes desses equipamentos públicos. Esses objetivos
aproximaram as lideranças locais do recém criado Partido dos Trabalhadores (PT)
da Corrente Libertadora, tendo na Sede provisória da Associação um dos primeiros
espaços de encontros para discussões e organização do partido na região.
O depoimento de Arselino Tatto, hoje vereador do Partido dos Trabalhadores
da cidade de São Paulo (2015) nos traz elementos para pensarmos a atuação
político-cultural da Corrente Libertadora:
Eu iniciei a minha vida, digamos assim, política, o início da minha conscientização foi através da Corrente Libertadora. Através do companheiro Maurício, Eufraudísio, Tigrão e Magnólia e, outros companheiros dessa academia. Não era apenas uma academia que ensinava a jogar capoeira, absolutamente. Era uma academia que tinha uma finalidade principal: conscientizar os seus alunos e não só os alunos. Mesmo as outras pessoas que procuravam a academia, sempre tinham espaço na Corrente Libertadora pra discutir os problemas da região, problemas da cidade, os problemas do país e, a academia funcionou muitas vezes, a sede da academia, para reuniões do Partido dos Trabalhadores, para reuniões do Grupo de Cultura da Região de Interlagos, para dos Movimentos Populares. A academia sempre assessorou e contribuiu inclusive na época da ditadura, com as greves, apoiando as greves, se solidarizando com as greves, arrecadando alimentos, arrecadando fundos para que o sucesso da greve fosse atingido. Então, uma das coisas mais importantes que aconteceram nessa região foi a Corrente Libertadora.3
Arselino Tatto, líder do Movimento de Moradia de Parelheiros nesse período,
pontua algumas das atividades que a Corrente Libertadora assumiu junto aos
Movimentos Populares, nesse sentido, a Sede da Associação acabou por se
constituir em um espaço público, espaço no qual as pessoas da comunidade se
colocaram, se fizeram sujeitos políticos.
3 Depoimento Arselino Tatto. In: QUILOMBO da Memória. Direção de Saloma Salomão. São Paulo:
Fantasma Vídeo, 1993.
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É sempre relevante enfatizar que a segunda metade da década de 1970 é o
momento de reestruturação e organização dos Movimentos Populares em São
Paulo, visto que os espaços tradicionais de representatividade da classe
trabalhadora (sindicatos, partidos políticos, associações, etc.) viviam sob a
repressão, vigilância e medo imposta pela experiência do autoritarismo (TELLES,
1984).
Nessas circunstâncias, o espaço político proporcionado pela sede da
Corrente Libertadora configurou-se em um canal de reconhecimento do outro,
possibilitando a emergência de conflitos, identificação de problemas comuns à
comunidade e a busca por resoluções dos mesmos, mediante a ação direta dos
sujeitos políticos que protagonizaram essas ações.
O espaço da capoeira, que também era o espaço do samba de roda, das
músicas e danças populares, do teatro, do cinema, era também o espaço de
formação política, concebida como processo de conscientização e construção da
autonomia do indivíduo. Essa formação era norteada pelo senso comunitário,
objetivando a garantia de direitos que beneficiasse o coletivo e que propiciasse a
construção de espaços públicos alternativos, não institucionalizados.
As discussões entre os participantes do grupo diziam respeito principalmente
ao acesso a serviços públicos – saneamento básico, pavimentação, escola, creche,
coleta de lixo, higiene, transporte, moradia – mas também, era perpassada por
questões trabalhistas – condição de trabalho, salário, formação profissional –
entretanto, o que torna particular a trajetória da Associação Cultural Corrente
Libertadora é que, o que mobilizava e articulava o encontro desse grupo de pessoas
era a capoeira, a capoeira enquanto manifestação cultural.
Compreendemos, pois, a capoeira desenvolvida pela Corrente Libertadora
como cultura popular porque ela está intimamente relacionada ao universo dos seus
fundadores, com as preocupações culturais e sociais que permeiam sua prática e
com o público que pretendia atender. É considerando o lugar de onde falam esses
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atores sociais e a natureza dos interesses por eles defendidos, que se define o
caráter popular de sua experiência cultural e política.4
As atividades culturais e a capoeira como expressões culturais nutriam o
desenvolvimento da Associação e convergiam com os Movimentos Populares no
mínimo em duas direções: no processo de formação político-cultural dos alunos e
como elemento de mobilização popular.
A formação político-cultural ocorria desde o processo de aprendizagem da
capoeira e das demais manifestações culturais na vivencia das aulas, como nos
ciclos de discussões, na experiência como espectadores ativos no Cine Clube
Corrente Libertadora5 e na participação em apresentações públicas da Associação.
O aluno formado, Marcelo Pinheiro de Menezes, 44 anos, empresário e
secretário da SOBEVEL – Sociedade Beneficente Veleiros compartilha conosco as
impressões do menino de 10 anos que vivenciou essa formação junto à Corrente
Libertadora:
Mulheres, homens, adultos e crianças, a capoeira era para todo, independente de raça ou cor ou idade. Todos os alunos que se destacavam eram convidados para as exibições. Partíamos de peruas, carros, etc, para apresentações em diversos locais... Durante a viagem íamos tocando e cantando, todos muito animados.O movimento tinha participação política ...eram montados palanques onde fazíamos nossas apresentações defendendo a classe dos trabalhadores ...tínhamos aulas de música, cinema 8mm, aprendíamos a montar berimbau e a tocá-lo. Assistíamos filmes antigos sobre a história da capoeira, tudo em 8mm aqueles rolos de fita que hoje deve estar todos no museu, era uma atração a parte sempre que tinha estas sessões a academia ficava lotada (MENEZES, 2010).
As apresentações da Corrente Libertadora em parceria com os Movimentos
Populares funcionavam como elemento de mobilização popular, para alcançar o
maior número de pessoas possível e colaborar para a visibilidade das reivindicações
4 Ver. HALL, Stuart. Notas Sobre a Desconstrução do “Popular”. In: Da Diáspora Africana: identidades e
mediações culturais. Belo Horizonte: Humanitas, 2003. 5 O Cine Clube Corrente Libertadora consistia na exibição de filmes, curta metragens e documentários, de temas
diversos. Essas produções, a maioria em filmes super- oito eram exibidos na Sede da Associação projetados na
parede, depois da exibição ocorria um debate envolvendo os alunos, mestres e convidados sobre o tema.
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que se manifestavam e tiveram como desdobramentos imediatos, a proximidade
cada vez maior da Associação com núcleos de trabalhadores e da sociedade civil
organizada.
Em 1979 a Corrente Libertadora ministrava aulas de capoeira dentro da
Associação de Trabalhadores da Mooca, na Associação dos Trabalhadores do
Tatuapé, Sociedade Amigos de Bairro do Pq. Santa Madalena, Sindicato dos
Químicos Tamandaré e Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernado no ABC
Paulista.6
Compreendemos que o diálogo entre a Corrente Libertadora e os Movimentos
Populares contribuiu para o fortalecimento de ambos, influenciando-se mutuamente.
Contribuiu decisivamente para a formação política e na definição de caminhos de
atuação sócio-cultural dos membros da Associação. A capoeira enquanto cultura de
caráter popular aproximou-os dos Movimentos Populares, do fazer político, das
questões sociais e essas passaram a compor o cotidiano da capoeira.
A experiência de Ms. Eufraudísio como uma liderança comunitária trouxe
para dentro da prática cultural da capoeira o conhecimento apreendido nas lutas
sociais e levou para o Movimento Popular a festa da capoeira, como manifestação
de resistência popular que dança, canta e luta.
Com o olhar do presente, considerando os significados desses movimentos
para o processo de redemocratização do país e da sociedade civil como
protagonista na defesa do Estado Direito, a experiência da Corrente Libertadora se
fez presente nesse processo; seus membros, sujeitos políticos.
O aspecto político das atividades da Corrente Libertadora não foi uma
experiência isolada entre os grupos de capoeira na cidade de São Paulo no período.
Nessa linha de atuação político-cultural temos a experiência do grupo Capitães
d’Areia idealizado pelo Ms Almir das Areias em parceria com formados de Ms.
Suassuna. Em 1971, os Capitães d’Areia fundaram sua primeira sede no bairro do
6 Documento : Histórico: Associação Cultural Corrente Libertadora, 2000.
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Brás, tendo na capoeira expressão do oprimido, luta de libertação da classe
trabalhadora.
Os papéis desempenhados por esses grupos de capoeira foram
historicamente relevantes para o desenvolvimento da capoeira em São Paulo e seus
desdobramentos no Brasil, mas entendemos que seu posicionamento político foi
estruturado inicialmente pelas questões que permeavam o universo da capoeiragem.
A necessidade de se oporem política e culturalmente à proposta defendida pela
Federação Paulista de Capoeira desencadeou o processo de construção de
identidade desses grupos, que buscaram elementos que marcassem sua diferença.
A experiência da Corrente Libertadora se deu na margem dessas discussões.
Sua trajetória, aspectos apresentados aqui corroboram para o fato de que sua
atuação se deu no cerne da comunidade na qual estava inserida. O fato de serem
moradores do bairro em que fundaram a Associação estreitou os laços entre as
atividades que desenvolviam e as demandas sociais da comunidade.
Ocorreu assim, uma circularidade intensa de informações culturais e políticas
que convergiam para a prática da capoeira como elemento de formação,
intimamente relacionada à construção da cidadania dos sujeitos históricos que
conviviam nessa comunidade. A parceria com os Movimentos Populares e a
participação ativa em atividades culturais, exigiu que a Associação fizesse escolhas
dos caminhos a serem trilhados por ela.
Os caminhos trilhados pela Associação nesse período (1976-1989)
correspondem a opção política de contribuir para a transformação social da
realidade da comunidade – e indiretamente, da realidade política em que vivia o
Brasil -, através da linguagem cultural da capoeira, que por si só, nos remete a uma
historicidade marcada pela resistência. Entretanto, essa opção, afastou a
Associação das pelejas do universo da capoeiragem.
A Corrente Libertadora não foi filiada a Federação Paulista de Capoeira, no
entanto, não se alinhou diretamente a nenhuma vertente de oposição a mesma –
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como os Capitães d’Areia ou o Cativeiro -, caminhou selecionando o que parecia
pertinente ao desenvolvimento de seu trabalho.
A visibilidade de seu trabalho e da própria capoeira que praticavam se deram,
nesse período, atrelada as ações dos Movimentos Populares (com uma forte
presença da Igreja Católica) e dos Movimentos Culturais, sendo a relação com
outros grupos de capoeira e com a Federação, ocasional e fragmentária.
No início da década de 1980 a Corrente Libertadora participou de eventos e
movimentos culturais que não estavam necessariamente ligados à capoeira. Em
1980 participou do evento 20 de Novembro com presença de D. Paulo Evaristo Arns
na Praça da Sé. No mesmo ano fez a abertura do Projeto Evolução da Música
Popular Brasileira em parceria com a Universidade de São Paulo, no qual a música
Ô Bahia de autoria de Ms. Eufraudísio sofreu a primeira censura, sendo em 1981,
quando da gravação do disco Corrente Libertadora e Brasil Folclórico, excluída do
repertório pela Censura Federal ainda vigente.
Em 1982, em parceria com lideranças da região de Capela do Socorro criou o
Grupo de Cultura Interlagos, organizando e coordenando atividades culturais e
populares no Largo do São José (1982-1986), em uma atitude marcadamente
política no sentido de dar visibilidade à ausência de espaços públicos destinados à
cultura e ao lazer na região. Em 1987, em parceria com o Centro de Recursos de
Interlagos organizou e coordenou o I Festival de Música Popular da Cultura Negra
da Região.
A descrição dessas atividades nos permite visualizar, em certa medida, as
frentes de atuação da Associação, que se direcionaram para o campo mais amplo,
abrangendo outras manifestações culturais, imbuídas de vontade política e
centradas não essencialmente na prática da capoeira.
É relevante citar que em 1987 a Associação iniciou o trabalho sócio-educativo
da capoeira na Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor - FEBEM. Esse trabalho
com crianças e adolescentes em conflito com a lei e em situação de risco social é
significativo para entendermos o processo de reestruturação da Associação Cultural
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Corrente Libertadora frente ao fim do Regime Militar e as conquistas da sociedade
civil organizada, amparadas na Carta Constitucional de 1988.
A Corrente Libertadora enfrentando as mudanças políticas, as crises
financeiras e o paulatino afastamento de Ms. Maurício e Ms. Eufraudísio encontrou
em sua experiência político-cultural e na percepção das novas demandas sociais, o
caminho para continuidade de seu trabalho.
Essa experiência nos permite pensar os caminhos e os limites de atuação dos
grupos sociais nos diversos territórios da cidade. Território no sentido de espaço de
vivências, que supõe conflitos, contradições e negociações entre seus habitantes e,
entre os habitantes e o poder público na busca de um viver urbano amparado pela
garantia de direitos: políticos, civis e sociais.
Entre os setores populares, a cultura - a capoeira no caso específico da
Associação – pôde funcionar como instrumento na construção de vínculos entre a
comunidade; viabilizou laços de solidariedade entre seus participantes e possibilitou
o desenvolvimento de estratégias políticas em prol dessa comunidade. As memórias
desses setores sociais esperam, em certa medida, o comprometimento de
pesquisadores que a tragam a tona, em um movimento em que a metodologia da
História Oral se faz imprescindível.
Os significados atribuídos à capoeira e aos processos sociais vivenciados na
experiência da formação e desenvolvimento da Associação Cultural Corrente
Libertadora pelos irmãos nos remetem a concepção de memória como prática
política (KHOURY, 2004, p.118) como campo de disputa em torno da construção da
memória. Considerando que a construção da memória parte do presente para o
passado entendemos que a relação que esses sujeitos têm hoje com a capoeira foi
determinante para os significados que atribuem à capoeira e a sua prática social no
passado.
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