ATENÇÃO!
Esta obra apresenta relatos e personagens fictícios.
Qualquer semelhança com casos ou pessoas reais é
mera coincidência.
Tenha uma boa leitura!
Primeiramente, antes de começarmos com a
entrevista, gostaria de deixá-los cientes de que
discordo de tudo o que espalham por aí pelos jornais
e televisão. Vocês, que deviam espalhar fatos
importantes do dia-a-dia para as pessoas, fazem
exatamente o contrário. Difamam a imagem de
alguém que foi tão humano quanto vocês e todo
mundo. Ninguém é perfeito, todos erram e sabem
que erram, mas não se importam. Eu reconheço, o
Dr. Isaac Kowaltowski fez coisas que a lei, a ciência, a
ética e o bom-senso repudiam, mas ele não foi
apenas um criminoso, um sequestrador ou o que
quer que digam. Parem de chamá-lo de pedófilo, por
favor. Esse adjetivo é nojento além de, também,
inválido. Ele nunca encostou um só dedo em mim.
Ele não tinha maldades em sua mente brilhante e
genial. Tinha amor. Aquele amor puro e sincero que
falta no mundo. Ele cuidou de mim, me deu proteção
e alegria, me ensinou valores, lutou por mim e por
seus sonhos que perdeu há tempos atrás... Ele e
Benjamin foram minha única companhia esse tempo
todo, quer ou não as pessoas acreditem nisso. Para
mim, ele foi bom e, se fosse possível, eu o perdoaria
entre lágrimas com um abraço apertado.
Espero que estejamos de acordo com isso. Sendo
assim, vamos começar...
Por Amor,
Isaac
Eduarda Mendonça Mattos
Capítulo 1:
“Em Busca De Um Lar”
Não posso dizer com clareza quando foi que
tudo começou. Quando tive um pouco de noção do
mundo ao meu redor, eu já estava viajando com ele.
Tudo antes disso são memórias embaçadas de
eventos aleatórios onde, de novo, nós estávamos em
um lugar e em outro. Sempre mudava. Nós nunca
paramos em canto algum. Minha lembrança mais
firme dessa época é a de quando deixamos o carro
para trás devido ao desgaste do mesmo. Parecia uma
lataria velha e sem mais chances de funcionar muito
bem. Seguimos a pé naquela noite fria e escura entre
uma vegetação que não parecia mais ter fim. Eu não
estava com medo pois o Dr. Isaac me acompanhou
de mãos dadas. Eu confiava nele, então, não tinha o
que temer. Lembro-me, também, de cantarolar
algumas músicas e cantigas só para nos distrairmos.
A minha idade? Eu diria que, talvez, uns quatro anos.
Eu era feliz e não enxergava a maldade e o perigo ao
meu redor.
- Rebeca, você poderia parar de cantar um pouco,
por favor? – Disse-me ele.
- Eu não canto bem? – Forcei uma expressão triste,
só para ele me deixar cantar mais. Eu estava bastante
empolgada!
- Canta sim. Sua voz é linda. Mas ficar cantando
durante meia hora... Você deve estar cansada, não?
- Eu tô com sede.
- Isso que dá ficar cantando o tempo todo. – Ele tirou
uma garrafa d’água de sua mochila e me ofereceu. –
Beba o suficiente. Nós só temos isso. – E também
tirou a minha cartela com comprimidos. – Aproveite
e tome seu remédio.
- Mas isso nem tem gosto! – Protestei.
- Eu sei. Mas se você não quiser adoecer, tem que
tomar toda noite.
- Mas eu nunca fiquei doente!
- Porque você toma o remédio. Capiche? – Ele abriu
um sorriso brincalhão. – Faça isso, por favor.
Eu realmente detesto esse remédio. Até hoje
o tomo, todas as noites, para não sofrer do mal que
ele tanto temia. Uma engolida forçada para evitar
algo pior mais à frente. Matei minha sede enquanto
tentava me livrar daquele comprimido descendo
goela abaixo. Às vezes, eu o escondia por baixo da
língua e depois cuspia quando ele não estava
olhando. O Dr. Isaac era engraçado quando ficava
com raiva por causa disso. Foi assim que ele passou a
pedir para que eu abrisse a boca a fim de certificar se
eu, de fato, engoli o bendito comprimido.
Ouvimos um estranho som de rastejar e bater
de plantas, quase como se alguém – ou alguma coisa
– estivesse entre a mata prestes a nos dar o bote. Eu
não liguei para isso no momento pois estava ocupada
engolindo meu remédio sem gosto. Lembro-me de
ver o Dr. Isaac preocupado conforme olhava para os
lados, tentando encontrar a origem daquele som
perturbador. Segurou firme em meu braço como
geralmente fazia quando estávamos prestes a correr
ou fugir. Eu estava tão concentrada em beber água
que acabei até me assustando com isso e gritei. Eu ri
depois enquanto ele sussurrou pedindo que eu me
aquietasse.
- Silêncio!
- Desculpa! – Continuei rindo. – É que você me
assustou!
- Pare de rir, sério! – Os sons de mata continuaram. –
Não está ouvindo isso?
O que saiu de dentro da vegetação não foi
uma pessoa, nem animal e, muito menos, um
monstro. Era uma esfera lisa e metálica, de 21,22
centímetros de diâmetro, que rolou sozinha para fora
das plantas até alcançar os pés do Dr. Isaac. Vocês
sabem, é esta esfera em meu colo, neste exato
momento, enquanto conto minha versão dos fatos
para vocês. E torno a dizer, só por desencargo de
consciência: Não importa o que digam, eu nunca a
entregarei para cientistas, pesquisadores ou
qualquer outra pessoa, não importa o quanto me
ofereçam para apanhá-la e estudá-la. Ela
permanecerá comigo até o fim. Não é só uma esfera
brilhante como pensam. Mas voltando ao que eu
estava dizendo...
- Benjamin! – Me abaixei para abraçá-lo como
costumava fazer. – Você voltou!
- Essa coisa ainda está nos seguindo? – O Dr. Isaac fez
desdém tanto no tom quanto na expressão facial.
- Não fale assim do Benjamin, papai. Ele também
gosta muito de você!
- Primeiro: Já disse que não sou seu pai. E segundo:
Pare de chamar isso de “Benjamin”. Não é o nome
dele!
- Claro que é. Ele me disse que é!
- E você entende os sons que ele faz?
- Não. Eu falei um monte de nomes e ele ficou
girando ao meu redor quando eu disse “Benjamin”.
Então, acho que ele gostou desse nome!
- Tá, tanto faz. – Ele revirou seus olhos. – Mas ainda
assim, não quer dizer nada. Então, pare de chamá-lo
por este nome.
Definitivamente, ele detestava a esfera. Mas
não importava, eu continuei chamando-o assim. Não
fazia isso para provocar o Dr. Isaac, ele realmente
atendia e ainda atende por esse nome além de,
também, para mim, ser um nome bastante bonito.
Hoje, eu entendo o porquê do Dr. Isaac ter tido tanta
repulsa de meu amigo esférico.
Ignorando-o, ele olhou preocupado ao nosso
redor com cara de paisagem. Penso eu que ele estava
tentando saber onde estávamos e para onde iríamos.
Se ele não sabia, eu, muito menos. Só o que sei é que
derramei um pouco da água da garrafa em Benjamin
no meu colo. Imaginei que estivesse com sede,
também, então, o fiz. É claro que o Dr. Isaac ficou
com raiva e tomou a garrafa de mim.
- Rebeca! Eu te disse para não desperdiçar água!
- Eu só achei que o Benjamin também tava com sede!
- Ele é um cérebro eletrônico. Não precisa de água!
- E acho que ele tá tentando nos dizer alguma coisa...
Ele produziu seus típicos sons maquinais que,
mesmo incógnitos, queriam dizer alguma coisa. Nem
mesmo o Dr. Isaac, que era adulto e cientista, não
compreendia suas manifestações sonoras. Quando
queria que eu o colocasse no chão, ele vibrava. Até
hoje faz isso. Larguei-o e ele rolou reto para uma
direção enquanto apitava. Estava nos chamando. Eu
sempre confiei em meu amigo e, então, o segui.
Como era de se esperar, o Dr. Isaac não dava tanto
crédito, mas também o seguiu.
Benjamin nos levou até uma estrada de terra
além daquela vegetação em que estávamos perdidos.
Já era alguma direção para tomarmos e nos
situarmos. Foi de tão grande ajuda que até o Dr.
Isaac ficou satisfeito com o resultado.
- Até que você é útil pra alguma coisa...
Eu estava tão inquieta e ansiosa para uma
aventura que, logo depois de Benjamin rolando
adiante, eu saltitava sem medo da noite e escuridão.
Eu não tinha medo de nada quando estava junto de
Benjamin e do Dr. Isaac, este, caminhando
cuidadosamente logo atrás de mim. Ele sempre
ficava atento a tudo ao nosso redor.
Não demorou muito para chegarmos em uma
pequena e bela vila de humildes e isoladas casas de
madeira. Plantas trepadeiras e suas flores enfeitavam
algumas construções e também havia um pequeno
mercado, aparentemente, o único dali. Pensei, por
um instante, tratar-se de uma vila abandonada, pois
não tinha visto ninguém exceto dois cavalos ao lado
de uma casa e um cachorro dormindo diante da
porta da mesma. Não tinham pessoas.
Na tentativa que o Dr. Isaac passou por ali sem
querer causar alarde, o cachorro despertou de seu
sono e não nos perdoou. Veio correndo na nossa
direção ameaçando mordidas! Lembro de ter gritado
e, nisso, o Dr. Isaac chutou o pobre Benjamin para
distrair o vira-lata. Querendo ou não, ele é uma bola.
Até hoje, cão de vizinho algum não pode vê-lo que
quer brincar.
- Não chuta ele! – Exclamei.
- Não grite, também! Ou isso, ou ele ia nos morder!
- Ele só quer brincar!
A mesma fera, que antes rosnou e nos
ameaçou, naquele momento, mais parecia um
animalzinho bobo brincando com Benjamin que dava
voltas e voltas enquanto tentava se afastar do cão
que, também, dava voltas atrás dele conforme latia.
E, por mais que o Dr. Isaac pedisse silêncio ao animal,
pouco a pouco, luzes acenderam-se de dentro das
casas e toda a vizinhança despertou assustada. Os
diálogos foram muitos entre os moradores: “O que
está acontecendo?”, “quem são eles?”, “são
bandidos!?”, “pare de latir, cachorro!”, etc.
Tudo o que o Dr. Isaac não quis, aconteceu. Eu
vi seu rosto de quem ficou envergonhado, sem saber
o que dizer ou fazer. Eis que um homem de meia-
-idade, gordinho e um pouco mais baixo que o Dr.
Isaac saiu de uma das casas. Ele veio eufórico e
raivoso segurando uma espingarda! Mirava-a no
cientista enquanto mandava seu cachorro se
aquietar.
- Quieto, Max! Quem são vocês!?
- Nã-não atire, por favor! – Imediatamente, o Dr.
Isaac levantou suas mãos enquanto pôs-se na minha
frente. – Nós só estamos perdidos. Só isso!
- E o que é aquela coisa??
“Aquela coisa” referia-se a Benjamin, que
fugia do animal até parar de rolar diante dos pés do
cientista. O fazendeiro, de até então, talvez, uns
quarenta ou cinquenta anos, ficou perplexo em como
ele se movia sozinho e até mesmo pela aparência do
objeto. Benjamin é uma esfera lisa que reflete
qualquer coisa através de seu material.
- Err, isso? Isso é... – Foi engraçado ver o Dr. Isaac
gaguejar enquanto tentava se explicar. – Rebeca,
quantas vezes eu tenho que te dizer para cuidar de
seus brinquedos?
- Do que você tá falando? – Naquela época, não
entendia desculpas esfarrapadas.
- Tome. – E ele entregou-me a esfera. – Segure essa
bola antes que perca, de novo!
Por um instante, pensei que ele estava louco
ou que eu estava desmemoriada. Só bem depois fui
entender o que eram mentiras em forma de
desculpas. Dr. Isaac me ensinou a não mentir e a
repudiar quem fizesse isso, mas em casos de
emergência e preservação da vida, se não houvesse
outro jeito, que fosse assim. Ora, estamos falando de
um homem nervoso e desconhecido mirando uma
arma para nós. Qualquer desculpa para nos
defendermos é válida, embora eu, na época, ainda
não entendesse muito bem como isso funcionava.
O fazendeiro logo riu do susto à toa que ele e
toda a vizinhança levaram por causa de um simples
“brinquedo de criança”. Algumas das pessoas, que
saíram de suas casas para saber o que acontecia,
também riram e, algumas poucas, se irritaram por
terem acordado assustadas por nada.
- Me desculpem, pensei que fossem bandidos ou algo
do tipo. – O fazendeiro abaixou sua arma. – Mas
vocês também nos assustaram!
- Desculpe por isso, também. – Dr. Isaac abriu um
sorriso sem graça. – É que estamos perdidos, então...
É, só isso, mesmo.
- Estão procurando um lugar para passarem essa
noite?
- Estamos.
- Vocês podem ficar na minha casa, se quiserem.
- Adoraríamos, mas não queremos causar nenhum
incômodo, também...
- Que nada. Adoramos pessoas de fora! Não é,
pessoal!
E, até como se fosse algo programado, as
pessoas nos deram as boas-vindas entre sorrisos e
expressões simpáticas. Dr. Isaac devolveu a gentileza
de todos com um pequeno sorriso tímido que ele
costumava dar quando, mesmo seguro, mantinha-se
atento, suspeitando de tudo e de todos em volta. E
enquanto eu acenava para as pessoas, tinha colocado
Benjamin embaixo do meu vestido, em minha
barriga, apenas para brincar. O fazendeiro armado
convidou-nos a acompanhá-lo até sua casa.
- Conseguimos um lugar por hoje. Vamos, Rebeca...
- Papai, olha! Eu vou ser mamãe e você vai ser vovô!
- Tire essa coisa da sua barriga!
Puxei Benjamin de volta por baixo do vestido e
o abracei meigamente.
- Nasceu! É um menino!
Ri da cara feia que ele fez para mim diante da
brincadeira. Lembrando-me de sua expressão agora,
volto a sorrir. Dr. Isaac tinha muitas caras e bocas e
eu decorei o significado de cada uma delas. Ele não
precisava dizer nada. Eu sabia quando estava feliz,
triste, com medo ou com raiva. Ele apenas segurou
em minha mão enquanto me levava para dentro da
casa onde dormimos por uma noite. O cachorro,
vendo que o dono nos tratou como amigos, também
tornou-se pacífico e adorava brincar com Benjamin.
Ele também passou a gostar de brincar com o cão
mesmo que, em todas as vezes, ele era perseguido e
babado. Eu o limpava com uma borda do meu
vestido.
Antes de dormirmos, o senhor dono da
morada nos ofereceu um lanche para não ficarmos
de estômago vazio até o dia seguinte. Nos
apresentou um quarto separado para visitas e
hóspedes. Não havia nada ali a não ser uma cama
com colchão e outro no chão, cada um com
cobertores gastos e um pouco rasgados, o suficiente
para termos uma boa noite de sono. Do jeito que eu
era, prontamente, subi na cama para ficar com ela e
levei Benjamin junto comigo. Dr. Isaac teve que ficar
com o colchão posto no chão. Abracei Benjamin e me
preparei para dormir.
Dr. Isaac realmente o detestava, mesmo ele
sendo um cérebro eletrônico cujo corpo se resume a
uma bola resistente a queimaduras, cortes,
marteladas e qualquer outra coisa que possa vir a
destruí-lo. E, apesar dele ter sido um cientista, ao
contrário do que muitos de vocês alegam, não foi ele
quem criou Benjamin. Na verdade, para ele, se
pudesse se livrar da máquina, faria isso de alguma
forma sem hesitar. Não o fez naquela época porque
eu não permitia e ele, claro, ficava com raiva por isso.
Só houve uma vez em que ele o puxou de meus
braços para livrar-se do mesmo e eu chorei tanto que
ele o deixou em paz e me pediu desculpas. Nunca
mais ousou ameaçar meu melhor amigo esférico...
Até porque, o Dr. Isaac também foi meu melhor
amigo durante todo aquele tempo.
Tivemos uma noite serena de sono. Não me
recordo muito bem com o que sonhei. A única coisa
que lembro era de uma presença estranha, abstrata
e sombria presente em meu sonho. Lembro de ter
sentido algo negativo, não sei bem explicar. De
qualquer forma, amanheceu e o dono da casa, com a
ajuda do Dr. Isaac, preparou a mesa para o café da
manhã. Enquanto isso, o que uma mera criança como
eu fazia? Claro, brincava com Benjamin e com o
cachorro do fazendeiro sem prestar muita atenção
no que os adultos conversavam. Só me recordo do
seguinte diálogo:
- Sabe se há alguma casa por aqui que esteja
desocupada? – Perguntou o Dr. Isaac enquanto
preparava um sanduíche que, de início, pensei que
fosse para ele.
- Até o momento, não. – Respondeu o fazendeiro. –
Está pensando em morar aqui?
- É que eu não tenho exatamente para onde ir... Na
verdade, eu estou procurando um lugar para morar.
- Sem problemas. Podemos dar um jeito de financiar
uma nova construção enquanto você vive aqui.
- Isso já seria abuso demais...
- Que nada. Você parece ser uma boa pessoa e essa
menina parece ser muito sapeca!
E como eu era! Gostava de correr, pular e falar
qualquer besteira como toda criança alegre faz.
Inventam que minha vida foi um inferno ao lado do
Dr. Isaac, mas estão enganados. Enquanto junto a
ele, foram os dias mais felizes e mágicos que alguém
já poderia ter tido. Imagine só: Você tem apenas
quatro anos de idade e já viaja para vários lugares?
Na sua cabeça, é como se estivesse dando a volta ao
mundo, descobrindo histórias antigas e desvendando
segredos enigmáticos que ninguém nunca conseguiu
antes.
Dr. Isaac pediu que eu me sentasse à mesa
para comer o sanduíche. Enquanto eu o saboreava
com fome e vontade, ele preparava outro para si. O
cachorro, que estava distraído com Benjamin, logo,
sentou-se no chão ao lado de minha cadeira
esperando que eu lhe desse comida. Dr. Isaac disse
para eu não fazer isso... Mas quem disse que eu
ouvi? Escondida e por debaixo da mesa, estendi
alguns pedaços de presunto ao animal ansioso.
Quando o Dr. Isaac viu, não me segurei e comecei a
rir da sua cara feia enquanto eu fingia
desentendimento. Ele me pediu para parar.
Algo chamou sua atenção. Sua cara brava logo
mudou para preocupada. Perguntei o que aconteceu,
mas não tive resposta. Imaginei que fosse por eu ter
dado comida ao cão e, por isso, pedi desculpas.
Novamente, ele não me deu atenção. Resolvi seguir a
direção de seus olhos para saber o que estava
encarando. O fazendeiro estava sossegado em sua
cadeira, sentado à mesa, enquanto lia um jornal. Na
época, não vi nada demais e nem também entendia o
que estava escrito. Hoje em dia, felizmente, graças a
internet, pude encontrar este mesmo conteúdo e
compreender o porquê dele ter-se preocupado
tanto...
DESAPARECIMENTO MISTERIOSO DE
BEBÊ COMPLETA QUATRO ANOS
Principal suspeito, Dr. Isaac Kowaltowski,
continua foragido.
Com um gesto, Dr. Isaac pediu que eu fizesse
silêncio. Calmamente, ele se levantou de sua cadeira
e me pegou em seu colo. Saímos de fininho e
Benjamin também rolou, sorrateiramente, atrás de
nós para o lado de fora da casa. Montamos em um
dos cavalos e o Dr. Isaac só não deixou Benjamin
para trás porque pedi que o apanhasse e o
entregasse em meus braços. Fiquei logo atrás,
segurando meu amigo esférico com um braço e, com
o outro, segurando-me na mochila do cientista.
Quando o fazendeiro, enfim, deu-se conta da notícia
e da foto do “meliante” estampada ali, nós já
tínhamos fugido. O cachorro não deu a mínima para
nós. Lembro-me de vê-lo comer o resto do meu
sanduíche que deixei em cima da mesa. O homem
logo montou em seu outro cavalo e veio atrás de nós
com sua espingarda.
- Eu não terminei de comer meu sanduíche! –
Exclamei. Não tive noção do perigo que corríamos
naquela hora.
- Você não estava com fome, mesmo. – Dr. Isaac
tentava apressar as cavalgadas do animal com
pequenos tapas na coxa. – Mais rápido!
- Papai, aquele moço tá atrás da gente! – Olhei para
trás e lá estava o fazendeiro armado, perseguindo-
-nos.
- Droga...! Me dê essa coisa!
Rapidamente, ele tomou Benjamin de minhas
mãos e o arremessou no chão para próximo das
patas do cavalo em que o fazendeiro estava
montado. O pobre animal tropeçou em meu amigo
até cair no chão entre as próprias cavalgadas
corridas. O homem também caiu. Tivemos tempo o
suficiente para distanciarmo-nos mais dali enquanto
Benjamin rolou, velozmente, sozinho atrás de nós.
Olhei por ele, não queria deixá-lo para trás. E ainda
olhando para trás, vi o fazendeiro se levantar com
seu cavalo e continuar a perseguição. Todos do
vilarejo permaneceram parados e assustados com a
confusão que começou repentinamente naquele
lugar tão calmo...
- Ainda está atrás de nós? – Perguntou o Dr. Isaac,
concentrado em manter o cavalo correndo.
- Tá sim! – Respondi.
- Ok, tenho um plano. Segure-se firme e confie em
mim!
Estávamos bem ao lado de uma ladeira de
terra e sem outra saída. Dr. Isaac soltou o animal,
abraçou-me e nos jogamos dali, ambos encolhidos.
Eu era muito pequena, então, pode-se dizer que ele,
tecnicamente, usou seu corpo como escudo para me
proteger durante a queda. Rolamos ladeira abaixo
até cairmos e nos misturarmos em meio a vegetação
pesada que cercava tal lugar. Tudo isso eu só pude
perceber depois. Durante a queda, permaneci de
olhos fechados sem saber no que aquilo daria. Foi
uma aventura dentro da minha cabeça! E, logo
depois, Benjamin também rolou ladeira abaixo para
se esconder conosco. Estávamos abaixados e
silenciosos em meio a mata. Assim como eu não
podia ver o fazendeiro dali de baixo, logo, ele
também não conseguia nos encontrar.
- Eu sei que você está aí, bandido! – Exclamou o
homem. Senti indignação em suas palavras. – Se
pensa que vai ficar impune, está muito enganado.
Vou te matar e levar essa criança de volta para sua
família! Está ouvindo!? EU VOU TE MATAR!
Após ouvirmos as cavalgadas se distanciarem,
começamos a nos mexer para sair dali. Ainda
permanecemos quietos e escondidos entre as folhas.
Nem eu, nem ele e nem Benjamin queríamos chamar
atenção. Até porque, depois de tais palavras ditas
pelo fazendeiro, eu senti algo estranho... “Eu tenho
outra família?”, pensei na hora. Até onde sabia, o Dr.
Isaac e Benjamin eram minha única família. Por mais
que ele negasse, eu enxergava o cientista como uma
figura paterna. Naquela época, eu também desejava
muito ter uma mãe, assim como as outras crianças
que encontrei pelo caminho... E o Dr. Isaac ficava
chateado quando eu tocava nesse assunto.
- Vamos logo sair daqui antes que ele volte. –
Sussurrou o Dr. Isaac para mim.
- Papai, o que ele quis dizer? – Perguntei, também
em volume baixo, enquanto segurava Benjamin em
meus braços. – Eu tenho outra família?
- Você não precisa levá-lo a sério. Precisa? Você tem
a mim, então... É isso. Eu sou a sua família.
- Uhum. E o Benjamin também é! Não é?
Se eu soubesse de tudo naquela época, não
faria isso com ele. Na verdade, mesmo que eu
soubesse, eu não entenderia. Tente explicar o
sentido da vida para uma criança de quatro ou cinco
anos, ela não vai compreender. Eu posso dizer isso
pois, muitas coisas que não entendia naquela época,
hoje, entendo. Coisas bobas, como: “Não confie em
estranhos”. Nunca uma criança irá entender o
porquê, mas obedece para não sofrer castigo ou ser
repreendida depois. Sabe-se lá quais as intenções de
um estranho e o que ele é capaz de fazer com ela?
Dr. Isaac não era estranho para mim. Como disse, ele
cuidou de mim e, querendo ou não, foi meu pai.
Mas por que digo isso? Por que digo que, caso
eu soubesse e entendesse tudo naquela época, assim
como sei e entendo agora, eu não diria coisas que
lembrassem de seu triste passado? Porque eu notei
seu rosto mudar. Era uma expressão de dor interna,
coração partido, de melancolia... O que eu poderia
fazer? Benjamin era da família, eu o considerava
assim. E, na verdade, ele sempre foi. Acredito eu que
meu fiel amigo esférico sempre foi o mesmo
Benjamin e o Dr. Isaac não associava. Sempre que eu
falava sobre a máquina, ele ficava triste... E eu não
entendia isso naquela época.
- Sim, Rebeca. – Ele me respondeu um pouco
cabisbaixo, tentando disfarçar o olhar triste. – Ele é...
- Viu? Eu sabia que você gostava dele! – Sorri
contente.
- Fique quieta agora, tudo bem? – Ele segurou em
minha mão e andou com cautela pela vegetação. –
Temos que sair logo daqui e sem fazer muito
barulho.
Eu imitei seus passos e movimentos enquanto
carregava Benjamin no colo. Ele podia rolar sozinho,
mas preferi carregá-lo mesmo assim. Eu imaginava
que, da mesma forma que gostava quando o Dr.
Isaac me carregava ternamente em seus braços, que
Benjamin também gostasse dessa sensação. Abraços
aconchegantes, quentes e protetores. Essa era a
minha visão das pessoas mais velhas para com as
mais novas. Não sabia a idade de Benjamin – até
porque, ele não tem –, mas por ele ser menor que
eu, enxergava-o como um irmão mais novo ou, até
mesmo, como um mascote. Se o Dr. Isaac não lhe
dava atenção, então, eu era a sua responsável e
guardiã.
- Papai...
- Não sou seu pai.
- Para onde estamos indo agora?
- Para qualquer lugar onde possamos ficar em paz...