Download - Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
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o BEIJO NO ASFALTO
Programa de estréia de O BEIJO NO ASFALTO
I
,
apresentada no Tea tro Ginástico, Rio de Janeiro,
em 7 de julho de 1961.
A SOCIEDADE TEATRO DOS SETE
apresenta
Uma tragéd ia carioca de Nelson Rodrigues
em 3 atos e 13 quadros
Elenco por ordem de entrada em cena:
UMA PROSTITUTA Marilena de Carvalho
o INVESTIGADOR ARUBA Renato Consorte
o REPÓRTER AMADO RIBEIRO Sérgio Britto
UM FOTÓGR..?O N.N.
O DELEGADOCUNHA ha o Rossi
APRÍGIO Mário Lago
SELMINHA Fernanda Montenegro
DÁLIA Suely Franco
COMISSÁRIO BARROS Labanca
ARANDIR Oswaldo Loureiro
D. MATILDE Zilka Salaberry
WERNECK Francisco Cuoco
PIMENTEL Ivan Ribeiro
D. JUDITH Suzy Arruda
A VIú', A Carrninha Brandão
O VIZINHO Henrique Femandes
AÇÃO Rio de Janeiro
Cenários de Gia.nni Ratto. Direção de Femando Torres
1. A inclusão da personag em uma prostírutc e a a ssimilação da s fa las ào personagem Sodré às
do s outros col eg as de traba lho foram artifícios usad os pelo d iretor na primeira montagem desta
peça. (N.E.)
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PERSONAGENS
o
INVESTIGADOR ARUBA /
O REPÓRTER AMADO RIBEIRO -'
<, UM FOTÓGRAFO
O DELEGADO CUNHA -
APRÍGIO ~
SELMINHA -
D.ÁL A ;-
'- COMISSÁRIO BARROS
ARANDIR .---
D. MATlLDE __
WERNECK ..-
SODRÉ ,-
PIMENTEL
D. JUDITH ./
A VIÚVA ./
O VIZINHO
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1
0
ATO
1
QUADRO
Delega ria -Saia
do
de leg ad o
Cunhn
2°
QUADRO Ca sa
de
Se lminha, no Grajaú
3° Q'UADRO Delegac ia - Sal a do com is sá rio B arros
4°
QUADRO Ca sa
de
Seunintia - me smo cenário
do 2°
qu adr o
1°
QUADRO Casa
de Se tminho, no Graiaú - mesmo
cenário
do 1°
at o
- quad r os 2° e 4°
2° QUADRO Es crit ório da firma onde tra balha Ara nd ir
3° QUADRO ras a de Selm inna - mesmo ce nário dtrI at o-quadros 2° e
4° - 2
0
at o - quadro
10
4°
QUADRO Ca sa
de
Selminha - Qu art o
de dormir
3; )
ATO
10
QUADRO Ca sa na Boc a do Mato
2
0
QUADRO Cas a de Seíminha - mesmo cenário do
10
ato -quad ros 2° e
4
0
- 2
0
at o - quadros 1° e 3
3°
QUADRO Quarto do repórt er Amad o Ri beiro , de
Última Hora
4° QUADRO C as a de Selm in na
-mesmo do
10 ato -quadros 2° e4°- 20
ato - quadros
10 e 3 - 3°
ato - qua dro 2
5°
QUADRO
Quarto de
hotel
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CUNHA (,em (l n'i-Io) - De mais a rnars, roce sabe, Amado. O
An :b.a também sabe ..Aqu ilo que você escreveu é mentira
AMADO -
O
Cunha, sossega O que
é
que há?
CUN
riA
(num cr escendo) - Mentira, sim, senhor mentira' Eu
não dei um chute na barriga da mulher Mentira sua+ É
mentira Dei um tapa Um tabefe Assim. O Aruba viu.
Não fOI em tapa?
ARUBA (grm'ememe) - Um tapa
CUNHA (triunfame) - Um tapa. Ela abortou, não sei por quê.
Azar. Agora ~ eu não admito. , Tãoadmito, Iice-sa-
~ Que eu seja esculachado, 9t'e receba um es cula =
cho por causa de um moleque, de um patife como você
~ti~ .
AMADO com
cr izm /a l
descoro) -
Eu
não me ofendo'
CU \ HA tdescsperad o com o cin ismo) - Pois se ofenda'.
AMADO - Acabou?
i:UNHA (nu m de rradeiro esp asmo) - Amado Ribeiro, escuta. Eu
tenho LIma filha. Noiva, Uma filha noiva. Agradeça à -
minha filha, eu não te dar um tiro na cara.
A.\1ADO
~>Yh r)J'i ci (ll 'e~
\'io len~n) - Deixa de ser burro. Cunha
(Cunha des moron a-se
em
cima.da cadeira.
P a s - a o
lenço
no
suor ao urui tmt«, Arqueja)
Ct;~';HA. (vf~:gü.lIu?,
qua se sc; n
1 0;: -
Suma
AMADO (subitamen te dono da situ açã o) - Quem vai 5;;';,
é
o Arub a
ARUBA (pulu iiJo ) -
Você é besta
UNHA (resm 11 l0 0and o)- Não admito ...
AMADO (para o Cunha ) - Manda ele cair fora (para o de tetive)
Vai, vai Desinfeta
ARUBA (para o cara ) - Quem é você, seu
CUNHA (in coe rente , berra ndo } - Desinfeta
ARUBA (desoriemado) - Mas doutor
CUNHA (histé rico ) - Fora, daqui (An /ba sai )
AMADO exultante, pu xand o a cadeira) - Vamos nós,
CUNHA - Não quero conver-a.
AMADO -- Senta ... (Cun ha obedece, sem co nscíé nc m da próp ria
docuuuuie)
AMADO (nn sua euforia profiSS i 11101) - Cunha, escuta. Vi um caso
agora, Ali, na Praça da Bandeira. ~
~. Esse caso pode ser; tua salvação
CUNHA (nu m lamento) - Estou mais sujo do que pau de zali-
nheiro b
AMADO (inc isivo e jocundo ) - Porque você é uma besta, Cunha.
Você é o delegado mais burro do Rio de Janeiro.
(C un ha
ergue-se)
-8:P.-i-~m:amedfddOl~-e-
si'ifiictHHf) -
1 ': l-o -pe nse que. Vo
não se ofende.rmas eu me ofendo.
~. I70
(joClmd o) - Senta
(C tmh a
obe dece
novnm en rc)
CUYPA (com um esgarde cllOro)-.Tedou
um
tiro
AMADO -
Você não é de nada. Então, dá. Dá Quedê?
cux HA - Qual é o caso?
AMADO -
Olha. Agorinha, na Praça da Bandeira. Um rapaz foi
atropelado. Estava juntinho de mim. ~P distância.
e-fato é -que·TaTu. Vinha um lotação raspando. Rente
ao meio- fio. Apanha o cara. Em cheio. joga longe. H 1 i -
aquele bafafá. Corre pra cá, pralá. O sujeito estava lá,
estendido, morrendo.
CUN I A (q ue pe rece beber' as pala vras do repórter) - E daí)
AMADO
(\J(llori~al1do o deito cutminctue} - De repente, um outro
cara aparece, ajoelha-se no asfalto, ajocl .a e. Apanha a
cabeça do atropelado e dá -lhe um beijo na boca.
CUNHA (confuso e 'nsatisfeiro) -
Que mais)
AMADO
(rin do) - Só.
CUNHA (de sorien tad o) - Quer dizer que. Um sujeito beija outro
na boca e. Nã o houve mais nada. Só isso? (Amad o er,gl/e-
se.
Allda
d e lllll lad o par a
outro .
iswca , alarga
U
pCIlO )
AMADO -
Só isso
CUNHA - Não entendo.
AMADO (aUt'indo os
braços pa ra
o
teto) -
SUjeito burro'
(pa ra
o
de-
l g G d o
ESCllt.1,
escuta:
'V ocê
não q~cr
se
limpar? Hein?
Não quer se limpar?
CUNHA - Quero
AMADO -
Pois esse caso.
Cl'~' I.\
I\4 tts ...
AMADO -
Não interrompe Ou você não p~rc~ber. Escuta, rapaz
-Esse
€a5-e
pode ser a tua reabilitação e olha: - eu vou
vender jornal pia burro
CUNHA - Mas como reabilitação?
AMADO -Manja. Quando eu vi o rapaz dar o beijo, Homem bei-
jando homem. (descritiw) No asfalto. Praça da Bandeira.
Gente assim. Me deu um troço, uma idéia genial.-&
l'€-pen-t-e.Cunha, vamos sacudir esta cidade Eu e você,'
nós dois Cunha.
CUI'HA
(de< ;/wnurado) - Nós dois? ( v '.a lO do
dá -Ih e-fi{f~ c osrcs
um
tape; tr'emfa . E começa a rir)
AMADO -
Nós dois' Olha: - o rapaz do beijo, sim o que beijou,
está aí embaixo, prestando declarações
(ri
ma is forte,
apomandu com o dedo pa ra ba ixo) - Embaixo' (pr imeiro.
ri
Ama do.
Em seguida,
Cunha
o
acompanha . Acab a a cena
com a fus ão de duas ga rgalhadas)
I
I
I:
60 TRAGEDIA, CARIOCAS II
61 o BEIJO NO ASFALTO
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(C as a de Selm inha no Grajaú. Presentes o pa i de Selm inh a, se u Aprígio, e a própria
moça . Esta é a ima ge m fina , frág il de um a mo ça, de um a in tensa feminilida de.)
APRÍGIO - Vim só te dar um recado do teu marido.
SELMINHA - Mas entra, papai, entra.
APRÍGIO -
Selminha, escuta. Minha '::Jha, o táxi está esperando.
SELMINHA - Despede o chofer
APRÍGIO -
Escuta
-S-&hM -NHA
fpa -r.fl -.de ntr o) - Dália Dália
(FU
o pa i) Eu fico zanga-
da
(pa ra de ntr o)
Dáha+
AP;;' GIO (an gustiado) - Outro dia ... Pron.eto, Outro dia.
-5-ELMINHA - Não senhor.
APRÍGIO
(qu erendo ven der rapidamente o seu peixe) - Teu marido.
Escuta. Eu estive com teu marido na Caixa Econômica.
Teu marido mandou avisar. (Dá lia entra . Adolesc ent e cuja
gra ça leve pa rece es conder uma alma profund a)
DÁLIA - Papai.
APRÍGIO - Coração (Dália lança-se nos braços do pai)
SELMINHA - Pensei que Arandir viesse com o senhor
APRÍGIO
(sem ouvi·la e diri gindo·se à caçula) - Pálida, minha filha?
DÁLIA - Lavei úrosto
SEL~•U~':HA -
Dália qüase não come.
Belisca.
APRÍGIO - :'1a5 tinha um apetite tão bom'
D .\LlA -
Estômago, sei JáI
APRÍGIO -
:-:ào abuse, minha filha, não abuse. Olha que a saúde'
E não te esqueças - o que resolve é a Flora Medicinal .
_DÁLIA -
Não tem perigo
APRÍGIO -Bem, mas. O que é mesmo que eu estava dizendo? Ah,
sim Teu marido.
SELMINHA - Mas o senhor janta com a gente.
D..\LlA -
janta, sim
APRÍGIO -
Selminha, ó minha filha Não faz confusão. Seu mari-
do mandou avisar que vem mais tarde, hoje. Mais tarde.
Teve que ir ao distrito.
SELME': A -
Distrito?
APRÍGIO - Calma
DÁLIA - Por quê?
APRÍGIO -
Pelo seguinte. Nada demais. Teu marido assistiu um
desastre. Quer dizer, assistimos. Eu também. Um de-
sastre horrível, na Praça da Bandeira. Vimos um lotação
passar por cima de um sujeito.
SELMINHA - Morreu?
APRÍGIO -
O cara?
D..\LI.-\ ~
Que coisa
chata
62 TP.AGÉD AS CAR QCAS 11
APRÍGIO -
Na hora. Morreu. Pau pra bu rro. Mas enfim É por
isso que eu ...
..oÁLIA -
Uns criminesos esses lotações. Andam qupl
APRÍGIO -
Teu marido fo i servir de testemunha.
SELMINHA - Mas papai, o lha. Hoje eu fiz, Escuta. Fiz aquele en-
sopadinho de abóbora. Deixa eu falar.-A criada está de .
folga e eu fuí-psa-coeínha, papai
APRÍGIO - Hoje, eu não estou me sentindo bem. Sério. Escuta,
Vamos fazer o seguinte.
SELMINHA - O senhor é amigo-da-onça.
Ai'-RÍGIO - Um cafezinho, aceito. Café, topo.
S.ELMINHA - Dália, faz unrfresquinho.
M'RÍGIO -
Mas depressa que o táxi está~
SELMINHA -
Depressa .
fMtM - Não demora. Um instantinho. (e entã o, so zinh o com
a filha ma is velha, Apríg iO and a de um la do p ra Olmo e va i
falando. Sente-se, em tud o o que c om eça a di zer, uma certa
perp lex idade e,mesm o, um a surda irri tação)
APRÍGIO -
Sabe que teu marido ficou tão. E teve um choque
Interessante. Ele correu na frente de ...
SELMINHA (in terromp end o com outra irritação) - Uma co isa , papai.
O senhor sabe que, desde o meu namoro, o senhor nun-
ca chamou Arandir pelo nome)
Sér.c
Duvido Papai
O senhor dizia seu namorado . Depois: - seu noivo.
Agora é seu marido ou, ~11tão, meu genro . Escuta,
papai
APRÍGIO (meio de scon certad o) - Ora, minha filha, or a
SELMINHA (e nfá tica) - Tenho observado
APRÍGIO - Você acha então que. Nunca, minha filha E por quê?
SELMINHA
(triunf ante) - Quer fazer uma aposta? Uma aposta?
Quero ver o senhor dizer Arandir Diz: - Arandir,
Diz, papai
APRÍGIO (realment e co nfuso) - Não tem cabimento e olha: - dei-
xa eu contar. Perdi o fio. Ah Teu marido correu na fren-
te de todo o mundo. Chegou antes dos outros. (com um a
tr isteza atônita) Chegou, ajoelhou-se e fez uma coisa que
até ago ra me impressionou pra burro.
SELMINHA -
Mas o que foi que ele-fez?
APRÍGIO (contido na sua có lera ) - Beijou. Beijou o rapaz que esta-
va agonizante. E morreu logo o rapaz.
SELMINHA (maravilhada) - O senhor viu?
APRÍGIO
(sem ou vi ·la e com ma is vivac idad e do qu e desejaria) - Você
não acha? Não acha que. Eu, por exemplo. Eu não far ia
isso. Não faria. Nem creio que outro qualquer. Ninguém
I
- 1
· 1
I
I
j
I
I
I
1
63 o BEIJO NO ASfALTO
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..
faria
is so .
Rezar. -es+á--be:n. está-certo, Mas o que me im-
pressiona. realmente me impressiona. É o beijo.
SELMINHA (cor' l'lgú sti a) - Mas eu até acho bonito (Dá lia entra)
-- a - M .- fA
O lI: a
'S-rI_M I N HA -
O
quê?
r>ÁUA -
Aeabee-o-eafé, O pó:
S-f:ioMINHA -r -
Mas tinha
APRÍGIO -
Não precisa
f>ÁtrA -
Eu me esqueci de.
SEl \lINHA - Pede na vizinha.
APRÍGIO -
Escuta.
IYÁUA - Chamei pelo muro, mas-rrãu tinha ninguém.
s-P- LMINHA -
Dá um puro:
APRÍGIO - Ouve elminha. Até é bom. Não estou berne o café.
3 E LMI-'NHA -(na SlIfr agonia de dona-d e-ca sa) - M as
tinha
pó .
papai.
(p~ra a inl1ã. nwd andode iam) Vê lá o fogo. O bolo que eu
ia fazer para o senhor.
(Ap rigio está de cos tas par a a }i iha e
de
freme para
a
pla réia. Dália saiu)
APRÍGIO (retomando no ponto int errompido) - Você acha bonito.
SELMINHA (com \'ivaci dade ) -.A ....h .
o senhor não conhece Arandir.
APRÍGIO (com mais viv acidade do que desejar ia) -
E você. Conhe-
ce? Diga: - conhece seu marido?
SELMTNHA
-Oh.
papai
APRÍGIO -
Conhece?
SELMTNHA -
Ou o senhor acha que.
APRÍGIO -
Responda. -
SELMINHA -
Evidente.
APRÍGIO -
Vem cá. Você tem de casada um ano. Um ano?
SELMINH,\ -
Mas conheço Arandir, desde garotinho
APRÍGIO ,(v ivam ente) -
Quero saber como marido
(mud a de tom)
De casada, tem um ano. nem isso. Menos. Pois é. Minha'
filha. é pouco. Isso não é nada. Para um casal. minha
fi-
lha. Pouquíssimo, um ano ou menos. Mas vamos lá. Você
tem mesmo certeza que conhece seu marido?
SELMINHA - Mas absolutal Eu conheço tanto o Arand ir, tanto que.
Nem ele me esconde -iada. Papai, olha. Confio mais em
Arandir que em mim -nesma. No duro E Q' fenhor fata.:
Engraçado Fala come se duvidasse, como se.
APRÍGIO (um po uc o va cilan te) -
Não
é
bem assim.
SELMiNHA - Papai. eu amo Arandir.
APRíGIO (in ce rto) -
Sei. Acredito. Mas digamos que seu marido.
Uma hipótese. Que seu marido não fosse. sim, exata-
mente, como você pensa. Você gosta de seu marido a
ponto de aceitá-Ia mesmo que.
(m ais incisivo )
Numa
palavra: -você é feliz?
SELMI '<HA - Ou o senhor duvida? Um momento. Quem vai res-
ponder.
(g rita p ar a d entr o)
Dália
Eu seu su~itil+-Mas-
Dália. (Pál ia a pu re ec)
Vem cá. Chega aqui:
-B~ LtA .~
Está quase bom,
ífiõi=M-I-;';HA (entre pa rcll f 'ses ) - Diminuiu o fogo)
DÁLIA - Diminui
SELMINHA (novamente cxciw Ía) -
Papai. hoje Responde. Eu sou
feliz?
DÁLIA (meio arônita) - Por quê?
SELMINHA (pam
o
pai)-fàla
Eo lha
Dália veio para cá
log o
depois
da lua-de-mel. Vive
COI11
a gente. Nâe sai daqui. Fala.
Sou feliz?
DÁLIA
(c0111pearnÍs)-Parece.
SEL \.tlNHA (atoni:a ) - Parece ou sou?
APRÍGIO (crurlmer,tc dive rtid o) - Tenho que ir.
SEU,UNHA
(vivamente) -
Papai, um momento.
APRÍGIO
-Olha o táxi.
SELM INHA (desesperada, pa ra
o
\:( Iho) -
Papai. faço questão.
(pa ra a
irmã )
Escuta. Você respondeu como se ...
DÁLIA (com evident e irritação) - Feliz. Fclicíssima. Pronto.
SEL.\\INHA
(com
C'J(:rgw . agGrmndo-a
pelo pul,;o) -
Vem cá. Diz aqui-
lo.
Aqui lo
que você me dis se. Naquele dia. Repete.
-9-ÁLIA - Nã o
aborrece
S-EL.\;\ NHA
-Aqudo,
dI z. .
DALI.-\
b :ltC l:d c CO~ ~
o
é num a Qfc :a~~(' t :~~ .~n~1 t: idcide )
Voc ê
é pau
SELMINHA (triun fant e)
-'Papai, a Dália disse que, se eu morresse.
-Nã-o-foi
3
Você disser
):rrIA - Mentira'
SELMIN HA
(.;;edianrc) -
Dis-se-que se eu morresse, ela se casaria com
o Arandir '
APRÍGIO -
Dália, escuta.
DÁLIA -
Foi brincadeira minha Eu estava brincando' Papai,
olha'
APRÍGIO (ent 'e divcrtuio c preo cupado) - Você. Escuta. Você é
criança. Nem deve d izer isso. Certas coisas. Sabe como
é o mundo,
DÁLIA
(com eça ndo
a
cho rar) -
Papai, é mentira de Selminha
APRÍGIO
(remo) -
E
nem chore'
DÁLIA
pasu
c
i
nr
à: -
Voce me paga'
(pam
o
pa i. cem
certo
fer o
ver
e mio
com
sofrimen;o) Papai, o q ue eu disse foi que eu
não me casaria nunca porque.
(com ma is veemência )
Não
quero. nem me interessa.
APRÍGIO -
E teu namorado?
D•\.LIA -
Brigamos.
64 TRAGÉD'~S CARIOCAS 11
65 O BEIJO NO ASFALTO
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SELMHHIA (f-GltJ-I-ld.(J-q.Ua~e-aol?-S-me -te tn -po) - Essa bobona agora
.chora por qualquer coisinha -v
APRÍGIO
(puxand o o relógio) - lh, já
é
tarde
SELMINHA (ag arrando-o) - Papai, eu sou a mulher mais feliz do
mundo
(Lu: sob re
Q
distrito po licial. Arandir acaba de ser in terr ogado. Uma figur a jovem, de
uma so fr ida simpatia que faz pensar num co ração a tom . entado e puro. AranJir er gue-se
no mome nto
em
qu e aparec em ,
TIO
sala
do
co m issár io,
c
Cunh a
e o
Amado Ribeiro.)
ARANDIR -Posso ir?
,-€eM+SSÁRIO BARROS - Pode:
A*ANDIR (recuando, com sof rida humildade) - Então, boa tarde,
boa tarde.
CUNHA -
Um minutinho.
ARANDIR (incerto) - Comigo?
CUNHA -
Um momento.
BARROS
-Já prestou declarações.
CUNHA (f'nt re di ve rtido e am eaçador) - Sei. Agora vai conversar
comigo.
;..R-\::JB.-'. (b ·~ ixo e veemente- par a Arun ci ir) - O delegado.
AMADO -
Senta.
ARANDIR (sentin do a press ão
de novo
am bient e) -
Mas
é
que eu
estou com um pouquinho de pressa. (Arondir co me ça a
rer
medo . El e próp rio não sob e de quê)
cu N HA (com o riso ofegante) - Rapaz, a polícia não tem pressa.
AMADO -
Mas senta. (Arandir olha em tomo, como um bic ho apa -
vo rado. Senta-se, finalment e)
ARANDIR (sem ter de qu ê) - Obrigado.
IU.R.R.O..5_ (ba i.xo e cvercnre, para o delega do) - Ele é apenas teste-
munha.
CUNHA - Não te mete. (Arandir erg ue-se, sô frego )
ARANDIR - Posso telefonar?
CUNHA -
Mais tarde.
(Amado cutu ca
(>
fo tógra fo)
Al• ..ADO -
Bate agora (flash estoura. Arandir toma um choque)
ARANDIR -
Retrato?
AMADO - Nervoso, rapaz? (Ara ndi r senra-se, une os joelhos)
A-RANDIR
-Absolutamente
CUNHA (lançan do a pergunta como uma chi cotad a) - Você é casa-
do, rapaz?
ARANDIR -
Não ouv i.
CUN HA
(num berro) - Tira a cera dos ouvidos
AMADO (inclina ndo- se pa ra o ra paz ) - Casado ou solteiro?
ARANDIR - Casado.
66 TRAGÉ D IAS CARIO CAS 11
CUNHA ---:
Casado. Muito bem. (vira -s e p a ra Am ad o, com segunda
intenção) O homem é casado. (para o co m issário Barros )
Casado.
BARROS : -
Eu sabia.
ARANDIR (co m sof ri da h umildade)
-O senhor deixa-dar um telefo-
nema rápido para minha mulher?
CUNHA (rápido e incisivo) - Gosta de sua mulher, rapaz? (Arall
dir -,per -um -momentD ,..acomp anhd o movim ent o do jú[t' ;afo
. qu e se prepara para bat er uma nova fo tografi a)
ARANDIR
-Naturalmente
CUNHA
(co m agressividade policial ) - E não usa nada no dedo,
por quê?
ARANDIR (atarantado ) -
Um dia, no banheiro, caiu. Caiu a alian-;
ça. No ralo do banheiro.
AMADO' - O que é que você estava fazendo na Praça da Ban-
deira?
ARANDIR -
Bem. Fui lá e ...
CUNHA (num berro) - Não gague ja, rapaz
ARANDIR (fal and o rápido)- Fui levar uma jóia.
CUNHA (al to) - Jóia
ARANDIR - Jóia. Aliás, empenhar uma jóia na Caixa Econômica.
(A mado
e
Cun ha
cru.::am
as perguntas para
confundir e
le-
var Ara ndi r ao des esp ero )
AMADO - Casado há quanto tempo?
ARANDIR -
Eu?
CUNHA -
Gosta de mulher, rapaz?
ARANDIR
(desesperad o) -Qu as e um ano
CUNHA (ma is fort e) - Gos ta de mulher?
ARANDIR (quas é 'choran do ) - Casado há um ano. (C un ha muda de
vo z, se m transição. Põe
a
mão
no
jo elho
do
rap az)
CUNHA (car ici oso e ignóbil ) - Escuta. 6--q-tie-s.ignifica para-a,
Si -m ;
o que significa para você uma mulher ?
ARANDIR
(len to e olhando em torno) - Mas eu estou preso?
CUNHA (sem ouvi -Ia e se mp re me lífluo) - R:apax;-escuta Uma-
-hip óte se . Se aparecesse, aqui, agora, uma mu lher, uma
boa . Nua: Completamente nua. Qua l se ria .
É
uma cu-
riosidade. Seria a tua reação? (Aro nd ir o lh a. ora o Cunha.
ora o
Amado,
silêncio) -
AMADO
-Com medo, rapaz?
CUNHA - Fala
AMADO -
Não fala? (Cunha
sC :; Jra
o
braç o
de Arandir)
CUNHA
(faland o macio) - Conta pra mim. G,eRt l. C@H$.o que
você fez na Praça da Bandeira.
ARANDIR (ainda
contido) - O lotação foi o culpado. (ClInha er-
gu e-se)
67 O BEIJO NO ASFALTO
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
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CtJ~HA -
u m
momento
AR..~NDíR -'- M-asdoutor Já estava aberto o sinal amarelo quando o
lotação.
CUNHA - Ó rapaz' O lotação não interessa. errmpre-em:ieu) Não
inteFessa. O que interessa é você.
lrA'ltl(os-'fconra
Siffl- ob tusa e gem 'TDsa ,falra detatcrj-= -
Quer
ver
o
depoimento do rapaz?
CUNHA (par a
o comissário) - Não dá palpite
(pa ra
Amnctir)
O que me põe besta
é
como você, um suje ito casado.
• Casado. Tem mulher em casa. Bonitinha talvez.
AMADO - Há quanto tempo você conhecia o cara?
ARANDlR - Que cara?
A:-'1.'\00 - O morto.
ARANDlR -- Não conhecia.
CUNHA - Que piada é essa?
AMADO
(para
o
delegado) -
Cunha, um momento. Um instante.
Ó rapaz
Olha
pra
mim
No local, eu lhe perguntei se
você era parente da vítima.
AR..4.N01R - Não sou.
AMADO - Vamos por panes. Não
é
parente: Amigo?
AR..4.NOlR - Nada.
I
: I ,
AMADO
ARANDrR
I1
I
\
CUNHA
AMADO
A
R..4.N
I R
*MAnO
ARANDlR
CUNHA
AMADO
ARANDIR
AMADO
A.RANDIR
AMADO
- Mas se conheciam de 'vista?
- Nem de vista.
( a o .>
óerru,) - Nem de vista?
- Você nunca. Presta atenção. Nunca, em sua vida, você
viu o morto?
- Juro Quer
qHe eH
jure? Dou-lhe a minha palavra
- Verrrcár
(desespera do) -
Doutor, eu preciso telefonar pra minha
casa
(exagerando ) -
Por essas e outras
é
que a polícia baixa o
pau. E - tem que baixar
- Cunha, espera Se você não era nada do cara.
-Nunca vi.
- Então explica. Como é que você, casado há um ano.
Um ano?
-Quase.
- Praticamente, em lua-de-mel. Em Itla
se mel
Você
larga a sua mulher. E vem beijar outro homem na boca,
rapaz
(atónito) - O senhor está pensando que ...
(exalradíssimo ) - E
você olha. Fazer isso em público
TInha gente pra burrer+é; Cinco horas da tarde. Praça
da Bandeira. Assim de pGVB. E você dá um show
Bm -a
cidade inteira
viu
68 TRAGÉDIAS CARIOCAS II
C
UN
HA
lUS berros ) -
Você não perdeu. Você jogou fora a aliança
AMADO (furioso) - Escuta Se um de nós, aqui, fosse atropelado.
Se o lotação passasse por cima de um de nós.
(Ama do
começa
Q
rir
com
feroc idad e) Um de nós. O delegado. Diz
pra mim? Você faria o mesmo? Você beijaria um de nós,
rapaz? (riso
abjeto.
Arandi r rem
W71 repel ão
5e l< 'Q 5e1l1 )
ARAl'DI R - Era alguém Alguém' Que morreu Que-eu vi morrer'
(Trems na
deleg acia. Lu z
na
casa de Se/min ha.
Em
cena,
as duas irmãs.)
SELMINHA - Você entende papai?
D..\LIA - Papai mudou.
SELMINHA - É outra pessoa
DÁLIA --€o1'l'Hl-mor-te de mamãe; desque mamãe morreu, mu-
dou tanto'
SELMINHA
(C0111 certo desespero) -
Mudou com o meu casamento.
'For o-meu casamento. Foi, sim, Dalia. Eom o meu casa-
mento.
-BÁ-hiA - Sei lá.
SEL:-.,\1HA - Te digo mais .. l ,s vezes,
e u - pe . r . l - S 0 .
Penso q 'e papai
sentiu mais o meu casamento que a morte de mamãe.
Ele não vem aqui, nem telefona. Soueu que telefono.Ou ..
f'n~ .
Evita Arandir.
DÁLIA - Não gosta de Arandir.
SELMTNHA
(fl.'hri l) - l0J.9
são as
cr+;as'
Veja você. Arandir
me.dís-
~oje~
''...Vouaproveitar o negócio da-Caixa Econômica
e passo no teu pai. Ele conhece lá.um cara. Vamos na
Caixa e eu convido teu pai pra jantar. Não adiantou.
Adiantou? Pois é. Papai não dá pelota p.1ra Arandir. Nem
bola
D.Á.LIA - Papai me assusta.
SELMINHA - Não gosta de Arandir-por quê?
DÜIA (raxariva) - Ciúmes.
SELMINHA. (virando-se
atônita) -
De mim?
DÁLIA - De ti.
(Selminha repete, lentamente . com espanto
e
um a
na sce nre angúst ia )
SELMINHA
-({ttitmc/ v
para
si
mesm a)--
Ciúmes de-mim')
DÁLIA - Ou você
é
cega?
SELM NHA
(co m frí~'ol o a rrebatamen to) -
Que bobagem, ciúmes de
mim (muda de tom e
no vam ente
angustiada) Você acha?
DÁLIA - Acho Acho
(Se lm inha, de f ren re para
a
plat éia . co stas
pa ra
a irmã e urna
infiexuu dI :
~lÍr,Ílü)
-SELMINHA--(meio
elad a) -
Ciúmes
de
mim.
(Dália vem
por trás
e fel la
por cima do
ombro da
irmã . qu e perma nece de
cosras
par ll
ela )
6
: .i
o 6EIJO NO ASFAlT.o
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
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DÁLIA
SELMINHA
D. \ LI A
SELMINHA
DÁLIA
SELMIl'HA
DÁLIA
'SELMI: HA
D.\LIA
SELMINHA
DÁLIA
-5ELMI:'\'HA
DÁLIA
SEL \1 ':HA
D.ÁLIA
SELMI:'\'HA
ARANDIR
SELMINHA
ARASDIR
.&ELMIl'HA
ARANDIR
oSELMINHA
ARANDIR
DÁLIA
·SELMINHA
SELMINHA
ARANDIR
SELMINHA
ARANDIR
D.ÁLIA
J\.RA·NDIR
ARANDIR
(repetindo) -
De ti. No teu casamento eu pensei tanto na
morte de mamãe. Mas no teu casamento quem morria
era papai. Na igreja, de braço contigo, papai ia morrendo.
Tive a sensação, te juro de que ...
(num ape lo, qua se sem voz) - Não fala assim
(co m
mais
vee mênc ia) -
E outra vez. Aquele dia
-Quando?
- No dia em que vim para cá. Vocês tinham chegado da
lua-de-mel. Eu me lembro. Papai me trouxe e até você
estava com aquele-qairnono, aquele, como é?-
-'O azul?'
- Não. Aquele que a vovó te deu. Papai me trouxe. Não
queria vir. Insisti. Veio. E chegou aqui, você sentou-se no
colo de Arandir. Se você visse a cara de papai ~
- Não me lembro.
- Cara de ódio Saiu imediatamente e ...
- Você está imag inando Isso é imaginação (com súb itQ
ternura)
Mas eu ainda tenho você e.
- Selminha, amanhã vou-me embora
- Você?
- Não fico mais aqui.
- Mas escuta. Por quê?
(sã frega ) - Olha Arandir (Arand ir aparece. Vem cansado
e febril.
Se/m inha IQnçQ- se no s seu s braços)
na
SUQ ternura ansios a) -
Demorou, meu bem
- A polícia, sabe como é. (Se/mi nha PQs sa a mão pelo
rosto
do marido)
(amorosa) - Pálido (Selm inha tire o lenço do marido e
eTLwgQ o ros to)
- Morto de sede '
(para Qinnci) - Água ,
- Polícia é uma gente que: Dália, meu anjo. Agua, sim?
(pQra a irmã) - Gelada.
(par a a cunhadQ ) - Gelada.
- Está suado.
- Mistura do filtro e gelada. (Dei/ia SQi)
- Tira o paletó.
(tirando o PQlrtó) - Calor.
-Gravata.
(t irando a grQvata ) - Duas horas lá. (Da/iQ entra com o
copo )
- Fresquinha. (Arand ir scgllra ( ) cnpo com QSduas mãos )
(antes de be ber)
-Água linda (Arandir
bebe,
de
um a vez
só . Devolvendo o copo)
- Você
é
um anjo
70 TRAGÉDIAS CARIOCAS 11
71 O BEIJO NO ASFALTO
-Outro?
(fa lQndo
ao
mesmo temp o) -
Não chama Dália de anjo,
que ela va i embora.
-Daqui?
(doce
e
firme) -
Amanhã.
(atõni to) - E vai corno? De vez?
- Diz que vai morar com vovó e que. Uma chata
(com surdo sofrimento) - Dália. você tem coragem?
- Um momento. Meu bem, voe vai comer alguma coisa.
-Sem fome:
- Uma boquinha você faz? -
- Nada. Mais t arde. Depois. Depois eu como. (ArQndir;
nu
SU Qvo/ub ilidQde febril,
co nrinuc )
- Mas isso é batata?
-Batata
- Dália, chega-aqui Por quê? De repente e sem motivo? .
Parece incrível que eu chegue da polícia e a primeira no-
-tícia que me dão. É que você vai embora? Escuta. Lá no
distrito. (Arandir
and a
de um
l ad o p ar a o ut ro) ,
- Meu filho, você está
cansado.,
- Na policia, ainda agora·. Eu me senti, de repente, tão
só. Foi uma sensação tremenda. Naquele momento, eu
tive assim uma vontade de gritar: - Selminha Dália
(com desespero estran gulando a voz)
Quase g rito, quase
(mudando de com) Cheguei aqui e sei que você vai. ..
(co m ce rta violência) - Você não precisa de mim
(o lha ndo ora a mu lher ore a cunha da ) - Quem sabe?
(C011 1 falsa e frívola naturalidade) - Precisa de Selminha.
(Arandir
agarra
Q
mu lhe r,
C0 11 1
violência)
(estran gu lQn do
a
voz) -
Responde. Haja o que houver.
Voe' nunca me deixará-? Nunca? Nào me abandone
nunca.
(angustiadQ) - Meu bem. Mas claro. Nunca. Ou você..
- Você viu o rapaz morrer?
(crispoâ o) -
Quem?
(sôfrega) -
Era rapaz?
- Meu anjinho, esse assunto. Não interessa. (com falsa
euiorio) - Falemos de outra coisa. Você vai amanhã? É
an~anhã ? Ótimo Magníficu Eu ajudo a fazer as malas
(muda de tum )
Só não quero que toquem nesse desastre
D.
\LIA -
Eu mesma arrumo as malas.
ARANDIR
(incoe ren te) - Escuta. Vi o rapaz morrer, sim. Da minha
idade, mais ou menos. Selminha, ele estava em cima
do meio-fio. Esperando que o sinal abr isse.
(re pet e)
Em
cima do meio-no. De repente, não sei como foi: - ele
>DÁLIA
SELMINHA
ARANDIR
DÁLIA
I
ARANDIR
SE-LMINHA
i
ARANDIR
SELMINHA
-MMNDIR
~1INHA
IrR-ANDIR
ARANDIR
DÁLIA
ARANDIR
I
i l
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 12/28
perdeu o eq uilíbrio . Caiu para frente e... Vinha um lo-
tação a toda velocidade. Bateu no rapaz, atirou numa
distância como daqui ali.
D.\LiA -
Gritou?
AP~4. 'i D I R -
O rapaz?
SELMINHA (que rendo apla cá·l u) - Meu bem: ..
ARANDTR - O atropelado não grita. Ou grita? Esse não gritou.
DÁLIA -
Era bonito?
ARANDIR
(se m respond er) - O lotação passou por cima. Mas moro
reu logo. Ainda viveu um minuto. talvez. eu
ffiefl85,
UIfl
~
SELMINHA -
E você que não pode ver sangue.
ARANDIR -
Eu corri. €heguei primeiro qUE osnutres. Me abaixei,
peguei a cabeça do rapaz. Gente assim. Peguei a cabeça
do rapaz c...
SELMINHA - Beijou. (Arandir voirc-se, com uma cerro ira )
ARANDIR (og res sivo ) - Você também sabe? .(de sespe rad o) Todo
mundo sabe
SELMINHA - Papai contou.
AR.t\.NDIR (fremenre) - Teu pai.
É
mesmo Estava comigo e viu.
(co m de se spero)
Teu pai disse que eu ...
(mud a de tom )
Antes de morrer. O rapaz ainda estava vivo. (incoe rente)
O interessante é que na polícia só me falaram n isso
SELM NHA - Meu bem, agora chega. Descansa um pouco.
ARANDIR (sem ouv i·IQ) -
Dália. a polícia pensa. Ainda está pen-
o sando. ElTão-se-etHWenee, Dália, Pensa que eu conhecia
o rapaz. Tomaram meu nome, endereço. Fui interrogado
-duas vezes. E vão me chamar outra-vez.
DÁLIA - Você conhecia?
ARANDIR - Oh, Dália
DÁLIA - Nem de vista?
ARANDIR (na sua cólera , apontando pa ra
a
cunh adQ) -
Era assim
que a polícia perguntava. Nem de vista, nem de nome?
Martelavam. Mas-olha O ·que foi. O rapaz estava moro
rendo. Morrendo junto ao meio-fio, Mas ainda teve voz
para pedir um beijo. Agonizava pedindo um beijo. Na po -.
lícia, o repórter disse que era hora de muito movimento,
Toda a cidade estava ali, espiando. E viu quando eu ...
TREVAS
FIM DO PRIMEIRO ATO
72 TRAGÉDIAS CARIOCAS II
SeGUNDO ATO
(Ca sa de Selmi nha.
A
peq uena .
de
cus tas, QP Qrl'CI '
e1H re tidl1 numa
ocupa çã o
ruscirc.
Da l,Q,
Ja
de saída, surge com WIIU Il Itlldtl. Va i
ckiXur a
c(j~tl.;
DALIA - Estou pronta.
SELMINHA
(com
espQ nco) -
Já vai?
~Ã (qlii: já
pousou
Q maia
no cizliu) -
Diz o numero do láxi:l-
(Sc /m inh a esrá
com
o quimono por cima
da
cami sola)
~LMIWHA - Escuta, Dália )
D.\LIA (ara .,i ll esl1 1n ) - 28-31... Como é. Selminha? 43?'
-SELMiNHA (li.:lilllldo) - Deixa de ser espírito de porco '
D.ÜIA (com uma n{etaçàn d,; illfanrilidade, ba rendo com o pé )
-,Meu Deus, como
é
o número?
SELMI;';H.. (pu xando-a pe lo br(lço) - Vem cá. Arandir me pediu. Es-
cuta, Dália.
DÁLIA -Mbom
SELMINHA \ --
Antes de sair me pediu e eu prometi.
DALIA _. Que coisa chata.
SELMINHA -
Ouve. Arandir me pediu pra te f.'llar. Dália, escuta. E
-rnandou dizer. Se e le chegar, logo I:lJ.iS, você não estiver
aqui, ouve: - ele corta relações contigo.
DA~I ;' (.:cn:~~;:;'~:::o;-Ch?...
'SELMINHA -
Escuta. Dália, escuta. Troca de mal contigo.
DÁLIA - Chama o táxi.'
SELMI;';HA - Você é-Í:eimosa
D.
\LIA -
Quer chamar o táxi? (mudQ
de
10m) SeI minha eu disse
que ia, vovó está me esperando
SELMINHA
(numa
explos ão ) -
Então que se dane e ...
(d. MQ cild e
entra com
um
iorna na mão )
D.MATILDE - Licença?
SELMINHA - Ah, entre d. Matilde. (d. Macilde entra e fa::. um cump ri-
men to ap ressad o}
D. MATILDE . - Bom dia Bom dia
-DÁLIA
(com
frívola desenvo lru ra) -
Estou de saída
I
D. MATlLDE (índi~ando ()j omal) - Já leu? ~
SELMINHA - O resultado das misses?
-l'>.,-~1ATILDE - Não leu?
'S~LMINHA
(já com umn cunosídcde nova e inquieta ) - Não vi
O
jornal . . .
D. MATILDE (radiQn te por ser po rtado ra
dQ
novidade) - O' retrato do
seu marido, d. Selminha
SELMINHA (QO mesmo temp o que QPQ nh a o jorna l) -·Onde?·
73
o
BEIJO NO ASFALTO
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
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'BÁLIA -
De Arandir?
D. MATILDE (ap oplética de sa tisfação) - Primeira página
s-&LMINHA (sô fr ega) -
É
mesmo (Dáli a olhando p or c ima do om bro
-da irmã)
_D.ÁLIA (no seu espanto) - Ú ltima Hora
D. MATILDE (eufórica) - O título'
SELMINHA (lent a e estupefata) - O beijo no asfalto (mu da de tom ) O
retrato do atropelado
E
aqui o Arandir na delegacia
D. MATI LDE
(melíflua
e
pé rfida) - Aí
diz uns troços que
- DÁLIA - Deixa eu ler
SELMII HA - Dália, não amola
-BÁLIA . - Então lê alto (Sc m inha começa a ler p ara si, d. Marilde
. eonrinuo na mesm a euf oria)
D. MATILDE (mexericando para Dál ia ) - Olha, escuta. Tem um repór-
ter na rua:
-DÁLIA .- Repórter
-D. MATILDE - Com fotógrafo Entrevistando' Ouviu, d. Selminha?
SELMIl HA (que continua lendo) - Um momento
-D-MATILDE , (vo ltando-sepa ra Dál ia) - Eo repórter está querendo sa-
.ber'se d. Selminha vive bem com seu Arandir. Eu disse:
- vive
~. itH:A
t~ ~n ~Q
exp l-es -ão}
--~,hi-n-cu Nunca
-DÁr,IA - Mas que é que diz) .
SELMfNHA (d esatinada) - Diz que. Olhe que ele diz. Onde é que-
.está? Aqui. mentira Tudo mentira .
~ DÁLIA (viva mente) -
Dá
aqui+
SELMINHA - Ainda não acabei (para d. A'fa tilde) Estou que. Tinin-
-de, d. Matilde, tiB-i-flàe Como é que um jornal
(p ara
Dál ia) Diz que o Arandir beijou o rapaz na boca'
• ~ MATILDE - Esse jornal é muito escandaloso
SELMINHA (fora de si) - Toma ~ (en trega o jornal a Dalia) Não
quero ler mais nada Estou até com nojo ~( Dália
come ça a ler o jo rnal)
-D. MATILDC' - Caso sério
...,' • S~U.1INHA -
Se meu marido, d. Matilde+ E na boca -Meu marido
nem conhecia' Era um desconhecido, d. Matilde
-D. MATI LDE (pérfid a) - Desconhecido?
·SELM1NHA - Desconhecido -
D. MATIl:DE (melíflua )-Te m certeza?
-5ELMINHA - Mas d. Matilde
D. MATILDE - Claro que Evidente Acredito na senhora, nem se
discute. Mas interessante, d. Selrninbe. Sabe que. Pela
fot~grafia do jornal, a fisionomia do rapaz não me parece
estranha -,(bruscament e e co m viva cidade) O morto não é
um que veio aqui, uma vez?
• •
74 TRAGEDIAS CARIOCAS
79 O BEIJO NO ASFALTO
SELMINHA - Na minha casa?
.....h-MATILDE - Na sua casa Aqui
SELMINT-\A (fr eme n(e) - A senhora está me chamando de menti-
rosa, d. Matilde?
D. MATILDE - Deus me livre A-senhora não
entendeu,
Eu não po-
nho em dúvida. Absolutamente. (repece) Em absoluto
-Não ponho. Mas há uma parte no jornal. A senhora leu
tudo?
SELMINHA - Tudo
-O.-MATILDE ~ Leu aquele pedaço no final ... ·
-SELMINHA -
Tudoê-
D. MATILDE - Essa parte acho que.a senhora não leu. I
~(fre.ment e) - Quer me fazer um favor?'
D.
MATILDE - J:ffi.-vf>tl-lerpar-a-a-s~ra-: Eu leio .
SELMINHA -=
PQr obséquio, d. Matilde,
IJ.MATILDE --Leio. (d . M atiide apanha
o
jo rnal de Dália )
~DÁLIA - Mas eu estou lendo -
D. MATILDE
(melíflu a) -
Dá licença.
-ElÁLIA (desabrida) - Ora, d. Matilde,
D; MATILDE - Um minutinho
-: S.ÚM r NHA (na sua-Qbsessà o) - Era um desconhecido Um desconhe-
-e-iEl · gl
D. MATILDE (irr edllt íve l) - É essa parte. Aqui. Acho que a senhora
- não leu ' )
-El,4;1:IA - Arandir vai lá na redação e quebra a cara do repórter'
SELMINHA (frenét ica) - Não leia nada Não quero' Não quero, d.
- Matilde. Não quero ouvi.'l ' Tcrcla-:-
D. MATILDE (impl acá vel, nítida, inc is iv a} - O jornal diz: (ergue a voz)
Não-foi o primeiro beijo (t riunfante ) Nem foi a primei-
ra vez
SELMINHA (at ônita) - Não foi o primeiro beijo Nem foi a primei-
rJ vez?
f
(Tr eva s s ob re a s três . Luz na fir4na , on de Arandir trabalha.
O
rap az acaba de ch egar.
É
cerca do pelos co legas.)
WERNECK (com um humor bestia l) - Mas então, seu Arandir O
senhor
SODRÉ -Você não diz nada pra gente?
ARANDIR (já inq uieto) - O que é que há?
WERNECK - Você fica viúvo e não avisa, Rãs ~af'tieipe:?
ARANDiR - Isola
PIMENTEL (ba te~ do-Ihe na s costas) - Nem me convidou
ARANDIR (a tôn ito e me.io acuado) -Que piada é essa?
WERNECK - Piada, uma oval Batata
7S
o
BEIJO NO ASFAlTÕ
I i
I
I
, r,
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 14/28
SODRÉ -
Viúvo; rapaz (\Verneck com as
du as mà os apanha
aperta
a
de
A.randir)
\\'êr::'~ECK - Meus para-choques
ARA:-:DIR - Mas qual é a graça? E isso não é brincadeira (o lhan-
do
as
cara s qu e o cercam )
Não faz as sim que eu não
gosto Werneck, pára, sim? Essas brincadeiras comigtr.-
(\\-e rnéck
romp e. com umtl boçalida de
fe ro:
L jOClll da)
W~RNECK - Rapaz' A tua viuvezestáaqui Em manchete (\\éneck
sa co de o jornal) 1m
mallchlt@. rapal
ARANDI R
(exasperado) -
Você t'ir:l ou não pára ?
WERNECK (triun fante ) -
Lê Lê Beijo no asfaltõt Está aqui Traz no
jor ai O título
é -
Beijo no asfalto
ARANDIR -Que jornal?
'WERNECK -
Aqui.
(Arandir
ilpanha
o iornal)
ARANDiR
(Ié lld o.
estup efato) -
Beijo no asfalto
\\'ERKECK .
(numa euio ri a brutal) ~ Teu retrato Teu e o do cara.
PIMENTEL (baixo) - Fala baixo
WERNECK (exuírcnre) - Viuvez. siml Perfeitamente, viuvez- (num
repetão fi1rioso co nt ra o compa nheiro)
Não chateia.
Pi -
rnentel (Arandir.
cstupefa
o.
lê a matér:a . Fala para
si
mesmo )
(co m
li1 :0 :: estrangulada ) - Mentira Mentira'
(ap or:ta.ndo ) -
Viúvo de atropelado
011
viúva Beijou
0
sujeito na boca.
O
sujeito morreu. É a viuvez. Batata'
(por«
si
mesmo. sem nada
ol lvir) - Não' Não. (Arandir lê
com exclamações abafad as)
(pa ra os ou tros. com uma certeza feroz) - E o morto vi.nha
aqui Veio aqui
(erguendo
a
ca beça)
-Quem vinha aqui?
- O morto O atropelado
(estupefato) -
Vinha aqui?
(exaltado) -
Falar contigo.
(co m tod a a fúria do seu pro testo ) - Nunca Eu não (0-
nhecia o cara
(rindo) - Não conhecia. seu vigarista (muda de tom )
Quer ver?
(prec ip ita -se. aos
berras) D. Iudith D. Judith
(para Arundír) Eu provo
- Era um desconhecido Desconhecido Eu. nunca
(d. ludith apa rece. Tipo
co nve nc ionc
,Ia cluri lógmfa. Inclu-
sive os óculos )
- Eu não-minto eu não minto .
(pa ra
os
outro s) -
Desconhecido
(sem pre esbra vejante) -
Quando digo uma coisa.
é
bata-
ta (pa ra a da tilóg ra fa ) Ah,d. Iudith
(um pouco intimidada) - Me chamou?
ARANDIR
',l.'ER 'JECK
ARA \'DIR
WERNECK
ARANDIR
WERNECK
.
ARANDIR
WERNECK
ARANDIR
WERNECK
ARANDIR
WERNECK
ARANDIR
WERNECK
D. JUDlTH
\\'ER;\,ECK
ARANDIR
ARANDIR
i'iMENTEL
WERl'ECK
t :
D. JUDITH
PI~1ENTEL
D.IUDITH
WERNECK
D. jUDITH
WERNECK
D. JUDITH
ARANDIR
D. jUDITH
ARANDIR
D. :t DITH
WERNECK
ARAND R
WERNECK
ARANDIR
WERNECK
P MENTEL
ARANDIR
WERNECK
ARA ·DiR
WERNECK
ARANDIR
WERNECK
-- Cheg a
aqui.
d. [udith ,
Vem
c á l
- D. Iudith, é verdade que.
fpa ra Ara ndir) -
Um momento' A senhora vai t irar aqui
uma dúvida
(sôfrego) - D. [udith ...
- Fala um de cada vez
_ D. [udith, e que foi que
.1
senhora me disse. Um mo-
mento' Quando a senhora viu o jornal. a senhora não
disse. Não disse que. Disse que unha visto o morto aqui.
Fala. d. [udith, pode falar'
(crispada de tim ide:) - O que eu disse foi. ..
- Não tenha medo
_ Realmente. pela fotografia. parece.
_ Continua. d. [udith Parece ou)
(em
bra sas ) - Parece um moço que esteve aqui. na se-
mana passada. Um moço. ,
_ Procurando por quem. d.
[udith,
procurando por quem?
. (de olhos baixos) '::'-
Seu Arandir
(desafinado) -
Procurando por mim? Por mim?
(depois de
um
olh ar fll\'il'SGan) - O
sen hor
não
estava
(dese spe rado , par a
os
ou tros) -
Mas
é
mentira' Mentira
Simplesmente. eu nunca vi esse rapaz' Nunca, na minha
vida Juro' Escuta.
d. [udith
_ Com licença' (cL }l1 clith nbandona a eoiO. meio espav o-
rida , num passinno rá pido e muito miüdo)
(insuliante) -
Viú';-o
_ Eu não admito. Sou casado e não admito
_ Há testemunha' Viram o rapaz aqui V-iram~
(desatinado) - Cala a boca
_ Quem
é você.
Voce pra me mandar calar a boca?
_ Vamos parar com isso (quer segurar Werneck)
- O u você ná ra ou eu ...
-'fira a mão
(pa ra
Aranc lir j
O
que
é
que você faz?
_ Te parto a cara
(os
outros querem
separar; \Vemeck
os
empurra)
=-Então,
parte
(pa ra P imente )
Nãe
te-mete
(par a
Arun-
dir) Parte a minha cara'
(es tr an çrulando
avo :: ) -
Não quero'
'
,
num berro) - Ou tu parte a minha cara ou eu parto a tua.
(Tr ev as. Luz sobre
a
c.:;sa d ;
Se/minha.
Aprígio
e
a f i lha.
O velho
es tá chegando.
Se/mi-
nha
junto
do
telefone)
SELMINHA (sôf reg a) -
Papai, t:tm mintltinhQ.,.
76
rRftG~D A~
CARIOCAS II
77 o BEIJO NO ASFALTO
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 15/28
(at ôni ta ) - O senhor quer dizer que -isso, isso que o
_jornal publicou. Esta nojeira O senhor quer dizer que é
verdade?
- Um momento
(fora
de si) - O senhor admite que.
- Selminha, olha O repórter, esse Amado Ribeiro;
escuta, Selminha. (incisivo) - O repórter estava lá Viu
tudo
(es tupefata) - Viu o quê?
- O que se passou .
- Então, o senhor vai me dizer. O senhor vai me dizer o
que foi que se pas sou. Quero saber Quero
(persua sivo) - Meu anjo, ontem eu não te contei?
(fu riosa ) - O senhor não me contou nada
\
(do ce, mas finn e) ~ Contei .
- Papai, pelo amor de Deus, escuta
-Selminha ...
- Tenho mais confiança em Arandir que em mim mes-
ma. Se tivesse acontecido o que o jornal diz Um mo-
mento, papai. (com mais violência) Arandir me contaria.
Arandir
não me esconde nada .
Arandir
me
conta
tu do l
-Nem tudo. '
SELMINHA
APRÍGIO
SELMINHA
APRÍGIO
APRÍGIO -
Eu espero
SELMINHA -
Estou falando com Arandir. Foram chamar.
APRÍGIO -
Fala, minha filha.
SELMINHA (desesperada ) - Estão passando trotes para cá (mu da de
tom) Alô Alô Arandir? Sou eu. O telefone está ruim
Ah, sim Você leu? Bem? 'leu Meu filho, olha: - fala
mais devagar. Não ouço nada. Vem pra cá? Vem, sim,
vem.
Papai chegou agora. Toma um táxi. Um beijinho
(Se lm inh a ab and ona
o
telefone. V em sôfrega, para
o
pa i)
APRÍGIO -
Escuta, Selminha.
..sE-LMINHA - Papai, oh, meu Deus Tenho-que deixar o telefone
desligado.
APRÍGIO -
Trote?
SELMINHA -'-
Trote. Nunca ouvi tanto palavrão na minha vida.
Su=
jeito telefonar, papai. E até mulher (voz de menina)
elefonar para dizer nome feio. Deve ser, aposto. Aposto,
papai. Gente da vizinhança É gente da vizinhança
Tenho certeza
APRÍGIO -
Não liga
SELMINHA (sófrega)-Comprou o jornal?
APRÍGIO -
Comprei. (Aprígio lira O jornal do bolso )
-SELMINHA -Leu?
APRÍGIO -Li.
SEL:\-IlNHA
(co meçando a cho rar) - Papai, olha.
APRÍGIO
-Chorando. por que?
_S.E.LMINHA - Tenho que chorar Estou chorando de raiva Eu e
Dália (mu da nd o de tom) Dália não vai mais, papai Não
• . I
vai mais,
APRÍGIO - Por quê?
SELMINHA -
Fica Leu esse pasquim Leu e resolveu ficar.
- APRÍGIO -
Onde está ela?
SEU.IlNHA (sem responder) - Como
é
que um jornal, papai' O se-
nho r que defendia tanto o Samuel Wainer E como é que
um jornal publica tanta mentira
(A prígio anda de um lado par a outr o. Luta consigo mesmo. Ao ouvir falar em mentira,
volta -se para a filh a com vi vacida de:)
APRÍGIO -
Não é mentira
SELMINHA
--Esse título Beijo no asfalto (reagindo for a do temp o)
O que foi que o senhor disse? (atôn ita) Não é mentira?
APRÍGIO -
Nem tudo'
SELMIKHA (repetindo) -
Não é mentira?
APRÍGIO - Selminha, escuta, scuta, m iaba {;jlh &+ Você está ner-
vosa'
78 r;;'AGÉO AS CAR OCAS II
SELMINHA -
Tudo
APRÍGIO --
Ontem, eu perguntei se você conhecia o seu marido.
SELMINHA
(exaltada) - Mas claro Ou o senhor se esquece que eu
sou a mulher. Que eu. Papai, Arandir, não pode nem me
trair. Porque viria me contar tudo, tudinho. Outro dia. A
fechadura do banheiro estava quebrada. Arandir empur-
ra a porta e vê Dália nua. Sem querer, naturalmente, e
_n~e-Ic podia imaginar qu~. Mas compreendeu? Pelada. -
Completamente Tinha acabado de tornar banho. Pois -
-AFaB4i-f. veio, imediatamente, He-ffiesmo minuto. No ..
mesmo minuto, papai. Dizer: - olha acaba de acontecer
isso, assim assim ... Eu nem disse nada a Dália, porque
ela ia ficar sem jeito. Mas a sinceridade de Arandir O
senhor sabe que eu adorei Adorei
APRÍGIO -
Posso falar?
SELMINHA (frenética) - E o jornal põe que o meu marido beijou
outro homem na boca'
APRÍGIO - É
verdade
SELMINHA
(atônita, qu ase sem voz) -Arandir me diria ...
APRÍGIO
(triunfante) - Beijou.
SELMINHA
(recuando) - O senhor não pode dizer isso Não tem
esse direito
SELMINHA
APRÍGIO
SELMINHA
APRÍGIO
SELMINHA
. APRÍGIO
SELMINHA
APRÍGIO
SELMINHA
APRÍGIO
79 o BEIJO NO ASFALTO
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 16/28
APRÍC O (( .{eg J,~rt~;- E u so u pai
SELMINHA (num esgarode choro) - Não. Não-
APRiGIO -
Eu vi e sou pai.~ Vi meu genro. O loiacão arrastou-o
..... ,
o sujeito.
SELMINHA (fero:)
-Fet-o rapaz que. Antes de morrer. O rapaz pe-
dia um bei jo,
APRiGIO (cxultãTl fc) --0 sujeito-caiu-Ele-·b~fen-te-ae·-me-iC7-
-furi)e bruços. Teu marido foi lá e virou o rapaz. E deu o
beijo. Na boca.
SELMINHA (fora de ;i)- Meu marido diria. E le não esconde nada'
(Aprígio
segura a
filha, pelos
dois
braços)
APRÍGIO
(com su bir e energia) - Vem-ci:-Responde' Você viu o
retrato do atropelado? (suplicQlICe e v rolento) Diz Vocé
-u-reeenheceu) Preciso saber. Olha Errtre as amizades do
-teu marido. (nw is forre) Entre as relações masculinas
do teu marido, tinha alguém parecido? Alguém-parecido-
cem-esse retrato) Olha bem
SELMIN HA
(atôni ta) - O senhor está insinuando que.
APRÍGIO (desesp crado)-O morto nunca veio aqui?
SEL;\\l:-;HA - Mas eles não se conheciam) Meu marido, nunca
nunca
APRÍGIO
(violemo) - Escuta Deixa eu falar , meui.,«: On~C '. eu
VilJ1 dyui , pessoalmente. Podia ter dado o recado, rele)
telefone. Mas vim pra te perguntar se. Selminha, eles se
conheciam?
SELMINHA
(espantaâ a e ofeg ante ) - Mentira
APRÍGIO (com violência tota l) - Não foi o primeiro beijo Não foi
a primeira vez
SELMINHA (na sua cólera) -
Dália tem razão
APRÍGIO (sem en tend er) - Por que Dália?
SELMINHA
-O senhor tem ciúmes de mim.
APRÍGIO (atan ito) -Eu?--
SELMINHA -
Odeia Arandir
APRÍGIO (desat i : 1 C : O ) -
Juro
SELMINHA -
O senhor foi contra meu casamento-Geeeee+
APRrGIO (v iolento e supli can te) - Eu sou pai. Pai. Preciso saber se
, eram amigos e que espécie de amizade
SELMINHA -
O senhor não gosta de ninguem
APRÍGIO - Sou um velho
SELMINHA
-Nem de mim. O senhor não sabe amar. Escuta, papai
APRÍGIO -
Você não me en tende.
SELMINHA - Papai, escuta, papai (num rompan re Imterico) Deixa
eu falar (com cruel eufo ria) O senhor já amou algum dia?
Amou alguém?
APRÍGiO
-Amei
SELMINHA
(num crescendo de fúria eX l/f ranre) - Mamãe morreu
h á
tanto tempo e o senhor continua só. NlrigUém pode vi--
-ver sem ninguém. Papai, uma pergunta.
APRÍGIO
-Adeus.
SELM;>.;HA
-\'emca,papai
l
APRÍGIO -Adeus. t
SEL~l I
l
HA _ -
Não, senhor O senhor já me ofendeu e tem que rne
escutar.
É 50
uma pergunta. Eu preciso saber. Está ou-
vindo? Preciso saber se meu pai é capaz de gostar. (supli -
canc e)
Neste momento, o senhor gosta
de
alguém? Ama
alguém, papai?
APRÍGIO - Quer mesmo saber?
SELMINHA
-Quero
APRÍGIO (com o
olhar
perdido) -
Querida, neste momento, eu ...
(esboça Un ia car ícia na caheça da filha ) eu amo alguém.
(Treva sobre a cena.
Ll12
no velór io do atr opelad o. Amado Ribei ro , Ar uba e a viúva.)
I
VI ÚVA -
Quer falar comigo)
AMADO RIBEIRO
-A senhora é que é a viúva?
VIÚVA (chorosa. amarro tan do o lenço ) _. O senhor é da polícia?
A~lAOO RIBEIRO (s intPricn e ina[lplável) -
Somos da polícia. Mandei cha-
mar a senhora porque é o seguinte.
\ ll;\-A (arar anrada) - Mas o enterro já vai sair
M1ADG-RfBEIRO-
=-Um jnínutinhol.
VIÚVA
(em ânsias. olha ndo para trás ) -r- Vão f echar o caixão
AMADO RIBEIRO (para a vilh·a) - Não afoba O Aruba vai lá (para o com-
panheiro) Arubâ, vai lá E diz para agüentar a mão.
-VIÚVA
(sa /i· er-:a) - Avisa, Seu como é mesmo)'
_-RUBA -Aruba.
VIÚVA -
Seu Aruba, avisa que eu não demoro. Mas pra não
deixar sair o enterro.
AMADO - Chispa
1'tt1'l'A - Um momento Seu Aruba, o senhor fala C01[1 um-se--
nhor alto, de espinhas. Um que tem espinhas, ~lto. Diz·
que.
É
meu cunhado. Diz pra não fechar o c.dxâo=Só -
com a minha pr~sença. (sai o An.bc.
assoando i g _
irnmen-
re) - Pronto.
AMADO RIBEIRO (sucinto e incisivo) - Minha senhora-Nãrrvamos-perder.
. tempo. Tomei informações, a seu respeito. -Sei, de fonte
+impa.
Um momento. Sei de fonte limpa
que
a senhora
tem um amante
VIÚVA
(sob o impacto brutal) - Eu?
, J
80 TRAGÉDIAS CARIOCAS II
81
o
BEijO NO ASFALTO
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 17/28
AMADO
VIÚVA
AMADO
VIÚVA
AMADO
VIÚVA
AMADO
VIÚVA
AMADO
VIt; VA
AMADO
VIUVA
ARUBA
AMADO
VIÚVA
AMADO
ARUBA
-- A~tADO
--ARUBA
\
AMADO
'ARUBA
AMADO
VIÚVA
VIZINHO
(im placáve l) - Tem um amante Cheio da gaita Não
faça comentários Nenhum
- O senhor está me ofendendo
- Ofendendo, os colarinhos
(entre a ind igna çã o e o pâni co) - Mas eu sou uma senhora
- Cala a boca Ea:ia a -be ea+ (m ud a de tom) Escuta. Você
tem um amante e com toda a razão. -Cem toda a razão.,
Conheço a sua vida, de fio a pavio. A senhora arranjou,
cala a boca. Arranjou um cara quando percebeu, er r=
tende? Ao perceber que seu marido mantinha relações
anormais com outro homem, a senhora. Não é fato?
(depois de olhar pa ra os lados e
já
inc erta) - O senhor está
falando alto
- Você leu o jornal? .
- O jornal? Li.
(tirando o jornal do bolso) - Muito bem. ~resta atenção.
(à Qu eim a-ro upa)
Olha bem esse retrato. E o sujeit o que
beijou o seu marido. A senhora, naturalmente, já viu
esse camarada, claro
(vacilante) - Não.
(ameaçador ) -
Madame. Nunca viu?
- Nunca (A rub a a parece)
- J á
falei lá.
(pa ra
a
viúva)-
Viu, sim Viu
em pânico ) -
Juro
- Você está mentindo mentindo
(interfe rind o) - Amado, olha. O cadáver.
- Não orrvir: .
(ba
íxo) -
O cadáver.
- Fala alto
- Devido ao calor, o cadáver. Já tem mau cheiro.
(fu rioso) - Que se dane. (pa ra a
viuvc)
Olha aqui. Ou a
senhora diz a verdade: Â-flGHcianão tem esse negócio
de mulher, não. Mulher apanha
também+ (muda de tom)
Sua burra' Põe na tua cabeça o seguinte. Você tem um
amante. E por quê, por que tem um amante? Porque seu _
.marido,
escuta, escuta', Seu marido mantinha relações
anormais. Relações anormais com um cara. Entendeu?
(me líf iu o)
Seu marido tinha um amigo chamado Arandir;
amigo esse que a senhora está reconhecendo pela foto-
grafia. '
(olhando
pa ra
os
lados ) -
O senhor fala mais baixo (a
viúvc olha
as
fotograf ias. Ap arec e
um
vizinho que es tá fa -
:end o ve lório)
- Com licença.
82 TRA.CÉOI.S CARIOCAS II
---_._-~ • . ..
ARUBA - Fala, meu chapa
VIZINHO (tímido) - É que.
AMADO - Desembucha.
VIZINHO - Pode fechar o caixão?
AMADO - Mas ohnossa amizade Agüenta a mão
VIZINHO (p ar a A ma do) - Doutor, o corpo está exalando (rnfáti·
-co)
Exalando -
AMADO
(furioso) -
Vamos fazer o seguinte. Olha
aqui, nossa +
amizade Manda fechar o caixão Manda fechar-Ordem
da polícia Fecha e toca o bonde Por minha conta
ARUBA (enx otand o o vizinho ecom total p ou co-coso) -Acaba com
isso Acaba com isso
VIÚVA
(co m no stalgia
e
perplex ida de )
-Mas é um morto
AMADO (com
riso
cu rto
e
ofegante) -
Morto e te tra ía não com
uma mulher, mas com um cara Na hora de morrer, ain-
da levou um chupão
ARUBA (alvar)-Legal
(Tr eva s. Lu z no quarto de Arandir e Selminha. Arandir acaba de chegar.)
,
SELMINHA
-Até que en~m
.A .P.·.ND R - ..
â
lJ ., querida A ra n di r a panh a ent re as su as
mêos
as d e
Selminha)
SELMINHA - Por onde você andou?
ARJ\='DIR - Mãos
frias+
SELMINHA - Febre
ARANDIR (febril tam bém) - Demorei, porque. Há uma hora que
eu rondo a casa. Passei três vezes pelo portão e não en-
trei, porque. (com um esg ar de medo) Tinha um cara na
esquina.
SELMINHA -Que cara?·'
ARAND.IR (encerrado no
seu medo, sem ouvi -Ia ) -
Olhando pra cá.
SELMINHA (sô freg a) - Você fala como se estivesse fugindo, meu
bem
(A rand ir es tac a. V olta-se vivamente)
ARANDIR (co m limofa lsa (lleg ria , u ma f alsíss im a n at ur alida de) - Fu-
gindo, eu? (riso de
angús tia )
a troco de quê? Eu não
fiz
nada. Não sou nenhum criminoso. Eu apenas. (sem tran-
siç ã o, já
em
tom
de
lam .ento )
Telefonei para cá. Sempre
ocupado
SELMINHA (querendo
ser natural ) -
O telefone, meu bem. Tive de
desligar, claro Ligavam pra cá e diziam horrores Ouvi
palavrões que eu não conhecia
ARANDIR - Escuta, Selminha, olha. Se me procurarem. Av isa à
_Dália e dá ordem à criada- Eu não estou pra ninguém.
Pra ninguém.
83 O BEIJO NO ASFALTO
I
I
I
I
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 18/28
SELMINHA (sem
ouvi-Ia) - Você leu?
ARANDIR (dese sperado
e suplicanre) - Pel o amor de Deus.Esetree-
Esse assunto, não
SELMINHA -
Uma pergunta só.
ARANDIR =-Não. Se/minha, não Eu nãoestouemestado,cempreen-
de? Eu não estou em estado de.
S ELMINHA doce-mas irredutíve/l - Arandir, olha pra mim, olha.
ARANDIR
(com sofrida d oeilidade) - Fala ,
SELMINHA -
8·que-e jornal-diz. É só isso-qtre-eu quero saber. Só
. isso, meu bem. O que o jornal diz é verdade?
ARANDIR
(dando -lh e as c,ostas) - Saí do emprego,
SELMINHA
+-Te despediram?
ARANDIR -
Eu me despedi. (andando de um lado ptu« outro, com
uma exciw çt' io progress iva) Hoje, cheguei no emprego.
-f:;ogo que cheguei, começaram com p iad inhas.
(mais
exa/rado ) - piadinhas. (subitamente?m pânico, pondo-se
à esc uta ) Parou um automóvel na porta' Não parou um
automóvel na porta? (crispando a mão no br aço da mu-
lher) Não está ouvindo)
SELMINHA -1 'ão é aqui'
AR.'\8DIR
(quase sem
l'O;:) -
Não é aqui?
SELMINHA (um p ou co c ontagiada pelo medo ) -
No 'Vizinho
(co m sú-
bi to des espero, agar rando
o
ma ndo)
Mas que piadinhas?
ARA,NDIR (de cos tas para a mu lher e com a voz nítid a e l'ibral1lf')-
Eles me chamaram de viúvo
SELMINHA -
De quê?
ARANDIR (com desesperado cin ismo ) -
Viúvo Do rapaz que mor-
reu Entende? Você acha que depois disso?
SED1L 'HA (atônita) -
E você?
ARANDIR -Eu?
\ SELMINHA
(for a de si) - Você reagiu?
ARANDIR -
Eu não podia Eu não
S ELMINHA (furiosa ) -
Você devia ihe ter quebrado a cara
ARANDIR
-Até o chefe. Falou comigo, e olhava para mim. Estava
espantado. Espantado. Eu tive a impressão. É um 00m
-sujeito. Um homem de bem. Não sei, mas tive a impres-
são de que tinha nojo de mim, como se-eu
SELMINHA (segumndo-o com ene rgia) - Arandir
ARANDIR -
Querida
SELMINHA - Como tua mulher, eu te peço. Você vai lá amanhã e
quebra, Quebra mesmo A cara do sujeito
ARANDIR - Eu acho, entende? Acl: 9,que, nunca mais, em empre-
-go
nenhum.
Acho que em todos os empregos, os caras
vão me olhar como se. As mesmas piadinhas, em toda a
parte.
SELMINHA (frenérical -Ao menos. responde
ARANDIR - Senta comigo.
SELMINHA -
É verdade quê?
ARAND R - Um beijo.
SELMINHA (com
surda
irritação) -
Primeiro, responde. Preciso s
ber, O jornal botou que você beijou.
ARANDIR -
Pensa em nós.
SELMINHA' ~ Com outra mulher. Eu sou tua mulher. Você beijou
na ...
ARANDIR
(sôf rego) -
Eu te contei. Propriamente. eu
nã o,
Escuta.
Quando eu me abaixei. O rapaz me pediu um beijo. Um
beijo. Quase sem voz. E passou a mão por trás da minha
cabeça, assim. E puxou.
E,
na agonia; ele me beijou,
SELMINHA
-Na boca?
ARANDIR - Já
respondi.
-SELMI~HA
trecuandoj-« E por que é que você, ontem.
ARAND R - Sclrnínha-
SELMINHA (chorando)-N ão
foi assim que você me contou: Discuti
com meu pai. Jurei que você não me escondia nada
ARANDIR -
Era alguém Escuta Alguém que estava morrendo.
Se lm inh a . Querida, olha'
(Arana r agarra tl mulher.
Pr ocura beijá-Ia. Se/minh a fog e com-o rosto)
Um beijo.
SELMiNHA
(debat endo-se) -
Não
(Se /m in ha d es pr ende-se com vio-
lência.
Instintivamente, sem
consciência
do própr io gesto,
j'iHSs aa s cos ias da mào
nos
láb ios,
como se
os limpasse)
; ARANDIR -
Você me nega um beijo?
SELMINFtA
-Na boca, não
ARANDI R
(sem se aproximar e estendendo as duas mã os cri spadas)-
Coração, olha. No emprego e aqui rua. Eu sei que aqui
na rua. Ninguém acredita em mim. E, hoje, quando eu
saí do emprego. Meu bem, escuta. Fiquei andando pela
.~ Tive a impressão de que todo mundo me olhava.
No lotação, em todo lugar, eu acho que me reconheciam
pelo retrato, Eu saltava de um lotação e apanhava outro,
A mesma coisa. Eu então pensei: - Sem: Mas eu tenho
S'elminha Escuta, Selminha-cescurak Eu quero ~
saber, entende Saberque você está comigo, a meu lado
Você é tudo que eu tenho (Selminha
,,,lá
cho rando com o
rosto coberto
por
um a das mão s)
SELMINHA
(sol uçando) - Oh, cala a boca
ARANDIR
(com súbit o pânico) - Barulho. Está ouvindo?
SUMI HA
-Nada.
ARANDIR
(recuando) -Abriram o portão, Alguém entrou.
SELMINHA (com surda irritação) - Não é ninguém. (Dá /ia apar ece)
ARANDIR -
Oh, Dália. .
'.
-~----
o
84 TRAG[OI.AS CARIOCAS II
85
o
BEiJO NO ASFALTO
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 19/28
DÁLIA (surpr esa pa ra a irmã) - Chorando por quê?
ARANDIR - Nervosa.
DÁLIA (pa ra Ar and ir)-Eu
não vou mais, Arandir.
(para
a
innã )
Sua boba ~at-é
nem-sei
Faz como eu. Glha Agora -
-mesme.veu
disse à d. Matilde. Ouviu, Arandir? Quando
~u vinha voltando-da-igreja, encontrei a d. Matilde. D.
Matilde, essa de.
Disse
a ela o que não se di z a um cachor-
ro. Quase que: Di~se:- Olha Limpe a boca, limpe a boca.
E fique sabendo que meu cunhado é muito mais, mas
muito mais homem que seu marido
(toc a
a
ca mpain ha)
ARANDIR
(sob
o
impacto)
-Agora estão batendo
SELMINHA (também em sob ressa lto) - Dália, vai atender, vai. Aran-
dir não está.
D.Ü1A -
Não está?
AR.4.ND R -Ninguém, pra ninguém
SELMINHA -Anda. (Dá li a a bandona a sa la)
ARAl'DlR (sôfreg o) - Diz que me ama
SELMI:-';hA (sat ur ada) - Você sabe.
ARANDIR - Mas eu queria que você repetisse. Me ama? Você não
.é capaz de repetir que me ama? (entra Dália)
DÁLIA - Polícia . ..
TREVAS
FINAL DO SEGUNDO ATO
/
/
86 TRACÉDIAS CARIOCAS II
TERCEIRO ATO
(O delegado Cunha e Amado
Ribeiro
estã o na casa
de um
amigo,
em
Bo ca
do
Mato .
Entram o inv estigad or Aruba e Selm inh a. (Esta vem assustadíss im a.) Só vê-Ia , o deleg a-
do Cunha, em mangas de cam isa , os suspensório s arr iad os, um vasto revó lver na cinta,
vem
ao
seu encontro. Exub eran te
e
só rd id a c ordial ida de
de
cafajeste.)
CUNHA -
Tenha a bondade, minha senhora Tenha a bondade '
SELMINHA (quase chorando) - O senhor que é o comissário?
CUNHA (numa mesu r a s ub se rviente) - Delegado
-ARUBA -O doutor
SELMINHA
(f remente) -
Eu fui ameaçada Ameaçada
CUNHA - Mas minha senhora
SELMINHA (apontando) -
Esse moço me ameaçou'
ARUBA (numa gest icu laçã o de cafajeste) - Ela quis botar banca
Não queria vir Resistiu, já sabe
SELMINHA
(o ra para um ,
ora
para
outro)-Mentira.
(pi/ra d elegado)
Doutor, eu apenas. olha. Apenas perguntei: - Pra onde
o senhor me leva?
CUNHA
(co m
um
des ca ro grand iloqü ente) -
Aruba Você maltra-
tou essa senhora, hem, Aruba?
ARUBA
-Não'
SELMINHA (cho rand o de hu milhação) ~ Disse que. Disse Que se eu
gritasse, que eu apanhava na boca Eme torceu o braço.
( pa ra i nvestiga do r) -
torceu
AMADO (int ervindo pela primeira vez) - Minha senhora, isso é
um cavalo Uma besta
ARUBA
(impu lsivam ent e)-
Besta
é
você'
AMADO - O cara não dá uma dentro
CUNHA (aos berras e espetand o o de do na ca ra do atcâliar) - Cala a
boca (muda de tom, par a Selminha) - Infelizmente, mi-
nha senhora, a polícia tem elementos que,
(pa ra
Arub o,
co m u ma fa lsa cólera ) Retire-se (pa ra Se/min ha. com hu-
<fl 1i lda de)-Peço-lhe, creia que (par a Arub«) - Saia. .
ARUBA - Mas doutor
CUNHA - E olha Vou lhe meter uma suspensão
ARUBA (numa confusão total ) - Cumpri ordens
CUNHA - Eu não admito, entende? Não admito' Cai fora
(Anlba sai. Cunha volro-se para Seim in n« . Fais iss un a }IU-
mildade. Selminha olha em tom o)
SELMINHA - Eu reclamei porque (ma is incisiva ) - Isso aqui não é
distrito
,
I
I
i
I
<:
87 o BE JO NO ASFALTO
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 20/28
- A~ A DO - D . Sc lrninha, com lice nç a]-
~iN-H-. '--( desorienUldaJ~
Não-é isso' O senhor não me enten deu.
Ne rvo sa
--é 'e:-';H A (rilldo aind a .'com cerra fe roridaci,,) - Diz pra ela . Amado.
Conta
(andando
de um luc iu pura ou tro l
Sl'lliprf
exageran·
do )
M edo de mim , qu al'
A :-1ADO
;ilic/,iro) - D. Selminha. aqui o
Cu .l'l-h a.
Ouviu J. SeI-
minh a? Está ouvind o? O Cunha não
é C{)n10
os
out rosj-
CU 'IHA (andando
de um lado pa ra ou tro, numa agiraç ão j':runa a)
- Fal a, Am ad o, fala
AM ADO - Posso falasporque. ~OO-mettdo--o-pau~nd polícia.'
M a~':o Cunha é u m dos
raros. I_m :los
ra=. en tend e?
(cín ico c enfático) -
Hu mano
(Cu nha vern senrcr-se, no-
va mente, comos dois)
CU t--lH A - M enin a, escuta. Pra mim voc ê é uma menina: M -iS
escuta.
S E L M INH A
(qu erendo desculpor-se) -
Em ab sol uto , eu
CU NHA .- E, d e mais a ma is, eu sou pai. Antes
de
tudo ,
Se/ti pai.
.é} Amade, sa - l3 e - .
Eu tenh o u ma f il ha . -ém ett:-
~ \~ IA DO - NO Í· '· :a .
CU NHA - Noiva . Vai se c as ar. E q ua n do eu o lho pra voc ê, penso
na mi nha filha. Nun ca se sa be e Eli -a -de amanhã, VaH -lO S
qu e
o
m eu gen ro .
Essas
c o isa s, sabe como
é.
Casamenro-
A.MADO - Calma,
d.
Se i min ha
SE LM INH A
(pró.\ima da histeria) -
I sso
é
uma c as a
CUN H A
(melífluo) -
Exa-o . exato .
Casa.
Não nego. Escu ta, m inha
sen hora.
SE U ,1 JNH A - M as dout or'
---;tMABO- ({/pa:: i~7' / lGdor) Urrrrnomermr'
CC XH A -
Pra evitar
esc ân dal o.
Escuta. Pra
evitar
escândalo
eu
pr eferi que fosse aqui.
SE LM INH A (ol han do em ramo) - Aqui onde?
CU NH A
(co m
um
prirlcí pio de
irritação
e
j t i
insill lwn do Ullll i urnec -
ça) -
Aqui,
d. Selrninha,
aqui Na de legac ia, -prop -ria-
mente, não se pode trabal ha r. Está assim de repórter , de
fo tógr afos Não há mistér io ,
d.
Selm inh a. 'Es;amos em
Sã o Jo ão de
Meriti,
Ess a c as a
é
de um am igo do Am ado
~bei ro . vouando-se pa ra ° rep órter) Amado Rib eir o , da
Ul tima Hora'
A M A DO (cínico) - Pra zer.
-S 'E1 .M I N HA (di spa rando, numa volubilidade febri l) - O se nhor é qu e é
Sa mu el Wainer?
AM ADO - Amad o Ri be iro .
SE L 1\ IIN HA
(deso rien toâo
por
Wií
de ra lhe imprevi sto) -Mas o Sam uel
Wainer não trabalha .. : C~lrirnaH ora?
A M A DO - Exato. -
SE L M INH A (co nfus a) - Ah , é. E o Ca rlos L acerda na Tribuna da Im-
~pFeR-Sa .
CUNHA
(d e
su per do e
chocado peÍ a su rpre sa) -
D. Selrninha, ond e
está seu ma rido?
SEL M I N HA
(cri spando·se) -
M eu ma rido?
CU NH A mudando de tom e com um a sati sfaçào gratuita, exag e-
rad a) -N ão re spon da já (sem transiçã o) Amado , es c uta.
(par a Selm inha)
Temos um barzin ho , ali. A se nho ra não
tom a nada? Por exempl o : - não que r tomar um .
SELM IN 'H A - Nada.
Jt1MDO Nem ag üí nh a> :
CUN Hl\-- -Ap anha lá, Am ado.
'Et-M-IN-tf:>r'
(vivament e) -
Não, não
(só jrega )
M uit o ob rigaêfã .
CU NH A
(p lH' a
Amado) - Não pr ec isa , Amado . (par a Srlm inha.
novam enr e m € l íf l l lO M ais c alma?
SEL MJNHA _. Sim.
CU NH A (c om um riso sur do) - O u tem medo ?
SEL M IN HA (rea lmente ap avorada) - Um pouce . (C unha jaz, ali, um
pe '1
uellO
e divertido escândalo. Estava sentad o, ergue·se)
CUNH A
(com
um riso
exagerad o
e
be sti al ) -
M edo de m im?
(ab rindo os br aços pa ra
o
repórter) -
Te m med o de m im ,
Amad o ' De mim '
.• . ,,1 -.
e Ot~ J., 1J.S eu, q u e o q ue voce, entencer
(P~~~-~ '.: :t'PQ~
rer j Vocé não ac ha, Amado:' (para Se/m inh a novcmeruez.,
Q uero que você me ve ja como um pai. Agora re sponda :
- ainda tem medo de mim?
SE LM IKHA - Nã o.
A~ iADO - Na tura l.
CU NHA (co m
um riso sur do e of ega llte) - Podemos
co nversar?
SE LM INH A
(com Lima do ei/idade de menina) -
Podemos.
A M A P O
(baixo e persuas ivo) -
Pode con fiar
no
Cunha.
CU NH A (docement e) -
É
um a perg unta. U ma pergu ntinha só. O
seguin te.
SE LM INH A (olhando ora um ora outro) - Po is nã o.
CU NH A
(de supetã o
e
c om
uma a.~ 'essiv ido de in esperada) -
O nd e
está
seu
ma rido?
(pausa. S+ninha olha um c depoi s curro)
SELM I '<HA (cri spada) - Não sei.
AM A DO (persuasivo) -Sabe . D.
Seln.inha,
CU NH A
( j á ameaçad or)
--A i o meu cacete
(m udand o de tom) Me-
ni na , eu lhe fa lo com o um pa i
-Eomo\:tm-pailE i~
vo cê
SELM INHA -- Ju ro (Cu nha vire-se par a Am ado. Agar ra-o pelos dois
bra ços )
l i
88 TR ;CÉD A<; CAR IOCAS li
89 o BEIJO NO ASFALTO
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 21/28
CUNHA - .Q.&-per--qne-é
qu e ~u tenho
urna filha É minha
Fi
-lha que-me impede de
(larga
o
repórter
e
vo lta-se para
SelminhaJ
Menina, pense bem antes de responder
SELMIl\;HA (numa
espécie
de },i~i~,.iu) - Eu não sei onde está meu
marido
CUl\;HA - Você está diante da polícia. E--olha Vai dizer a ver-
dade. A-verdade
(muda de tom , novamente
caricioso) Não
se engana a polícia
t
SELMINHA - Escuta, doutor Meu marido saiu de casa ...
CUNHA (furioso) - Seu mar ido fugiu
SELMINHA - Fugiu como?
CU~HA -
Fegiu.entende?
Está-fuginde+Fugindo da polícia
AMADO - NãQllie parece que a fuga ~el-miillra:;-escuta. A
.fug a
é a confissão. Confissão
SELMINHA -Mas meu marido Afinal de contas
CUNHA
(ap ertand o
a
cab eça en tre
as
mão s) -
Não é possível
SELMINHA
(e rgue ndo -se e
com exaltação) - o.
senhor está enga-
nado.
CUNHA
(num
ber ro) - Fugiu
--A~1P_~() {para o dc1 cgad o) -
Cunha, calma'
(p,.r<; S~ mil l ,(j)
Um
momento
(p am
CliTitlaj
Caima
SEL~iI~}ÍA -
Fugir por quê se ele não fez nada?
Nem
conhecia o
morto
CUNHA
(rápido
e
agress ivo ) -
Tem certeza? Note bem: - certe-
za? (e/t'l LJnâu (I l'O~) Tem ?
SELM I
N
HA
(af irma lil'a , embora desconcertad a) -
Tenho
(Cunha tem
um lance teatral )
CU/'.'EA
'(e .m ltaTHP) -
Amado, manda entrar a moça
(pa ra Se /-
m in ha)
Vali lhe pro\'ar que: Ri melhor quem ri por úl-
timo.
\ AMADO (J~lZum
,{ CSlO pa ra d entro) -
Pode vir Vem, vem
CJjNHA
(par a
a
moça
que
vem entrando ) -
Tenha a bondade. (a
vilíV fl do atrope iado é moça) - Aqui é a viúva do rapaz,_
atropelado.
A
viúva. a tal que seu marido beijou. a tal
AMADO -A senhora vai repetir aqui. (indica Selminha,
sem diz er-
lhe o nome) A
senhora conhece o Arandir?
VIÚVA -Conheço.
AMADO (pur a Sdminha) .....,.Connece~ (pu ra u viúvaj E conhece de
onde?
ViÚVA __- De minha casa.
AMADO - Freqüentava a sua casa. Muito bem.
(pa ra Se/m in ha)
~(pa ra
a viül'a) Agora conta aquilo. Aquilo que a se-
nhora me contou. Aquilo, sim -
C :-.
HA (para St'll1i nha) - Presta atenção.
VIÚVA - De fato. Uma vez, ele foi lá em casa.-Fei lá em casa e
os dois.
(pára ,
em
pânico, olhan do para
o
ael egad o,
ora o
repór te r,
ora
Selmi nha)
AMADO - as dois. Continue
VIÚVA
(sô freg a de um jat o) -
as dois tomaram banho juntos.
SELM INHA
(atônita) -
Meu marido?
AMADO
(já despedindo a viúv a) -
Madame, muito obrigado. Po-
de ir.
SELMINHA
(prec ipi tan do-se) -
Mas escuta. Ven: cá
(Cunha barra
a
pas sag em de Selminha )
CUNHA - Não, senhora. Quem inter roga somos nós -A--senhora <
não se mete
<
AMADO
(fe roz ~ eru ltante ) -
D. Selminha, o banho é um detalhe
mas que basta -Pra-mim basta. a resto a senhora pode
deduzir.
SELMINHA
(lenta e estupefat a) -
a senhor quer dizer que meu ma-
rido ...
AMADO
(forte) -
Exatamente
CUNHA
(tamb ém feroz) -
Seu marido, sim Seu marido Batata
(Se/m inha olha ,
ora
um ,
ora
ou tro. Está lívid a
de
espante)
AMADO
(o fegante ) -
Ou a senhora prefere que eu fale português
cla ro?
SELMINHA ((F ie
se
cri spa para um a cri se de hi steria) - Prefiro. Fale,
sim Fale português claro
<\
M-\DO - Bem. É o seguinte.-
CUNHA
(bestial) -
Escracha Escracha que eu já estou de saco
cheio
AMADO - A polícia sabe que havia. Havia entre seu marido e a
vitima uma relação íntima.
-&EtM-tN-HA :
no seu e sp an co) -
Relação íntima?
AMADO - {].r:na-intimic aoo,.compreendeu+ Um tipo de inti-
midade que não pode existir entre homens. Um instan-
_ te, Cunha. A viúza já desconfiava. a negócio do banhei-
ro, entende? E quando leu o beijo no asfalto, viu que
era batata. Basta dizer o seguinte: - ela. Sim, a viúva
(tri unfan te)
não foi ao cemitério
CUNHA,
(co m um a sa ti sf aç ã o b estial)
-Menina, olha-Está na cara
que seu marido não
é
_homem.
(Selmi nh a
vire-se
co m sú -
bita agressividade)
SELMINHA - Eu estou grávida
AMADO -Quel'l'l7'
SELMI~HA
(fc ro~ ) -
Eu
É homem: &.restou
grávida
(para um e
outro) E-etitra~. Agora vocês vão me 011\ Ír.Vão me
ouvir. a meu marido foi à Caixa Econômica. Um mo- .
mento Foi lá pôr uma
jÓid
no prego
i
I
i
i
I
J
- \
I
· 1
I
I
I
I
J
i
I
I
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91 o BEIJO NO ASFALTO
.,
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8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 22/28
CUNHA - Escuta-:-
--AM:.- 'l.-BG -(pa ra o delega do) -
Deixa da falar.--
SELMINHA -E fa lo . sim Foi pôr a jóia, s abe praqué? Porque ele
rr;e pediu
pra tirar,
Tirar o filho. Meu marido acha que
a gravidez estraga a lua-de-mell-Prejudica-
I E
como eu.
Eu nunca tive barriga. Seria uma pena que a gravidez.
-Be-el'\t-ão preferia que mais tar de e já não. Foi na Caixa
Econômica apanhar o dinheiro do aborto.
AMADO -
Mas e daí?
SELMINHA
(desesperada com a ironiQ ou incompreensão) - Ou o se-
nhor não entende quê? Eu conheço muitas que é uma
vez por semana,
dmts-- e,
até,
1 5
em
1 5
dias. Mas meu
marido todo o di a 'rode o dia Tecle dia- -(~ull1 berro sel -
vagem) Meu marido é homem Homem (Selminha esrá
numQ histeria medonha . Soluça. CllnhQ
Q
se gu ra pelos dois
braços e a dom ina, so l~dQ mellte )
CUNHA
(com
um riso
sórdido) . -
Você nunca ouviu falar em gile-
;.e? Em barca da cantareira?
SEL M1-NHA
(subitamen te hirta) -
O quê?
-Ct::-rHA (n :<1' 1
(ilmhlFHlIrrrfJrr:;-=- Cilete ' Bai-CJ da cantareira
(~;lmillha desprend e-se com violênciQ . Desfigur ada pela
Cútera, t :: sg a l l l ça vo ::
SEL?'.fr~~HÃ
S~..
r- ;' O 't ....io .• . I-T -...- • ~ e r /
-~ - \ I.Ã J • •• -iI.. CC[1l..cs . .1~uceetlt-cs.
;
VOCê. \.jjil .l.rcunJu lJ Jt::-
legad o)
Você que
é
pai Sua filha
é
noiva e olha Tomara
que o noivo de sua filha seja tão homem como o meu
ma~ido
(Cunha Qtira- se contra Selminha)
CUNHA - O sua Lhe quebro os cornos
AMADO
(im erpondo-se ) - Espera Calma (para Se tminh«, fero::.)
Tira a roupa Fica nua. Tira tudo -
APRÍGIO (agOlTando
a filha
e COII1 'Jn:Tõ:,ü.:i - Pra onde?
(Dáiw
repge
corno umc menina reclmenre rraumati :: adQ)
DÁLiA (num a exp losão ) - Sei lá Papai' Sei
lá'
APRÍGiO (noramt.ll,e furioso)'---l\lenina chata Pára de
chorar
{sem
rr (iT1$ ição (' des riando (i sua jlÍTlll) - E meu genro?
Onde é que está o meu genro?
D.\LlA -
Papai, quando
a
policia chegou
Ouviu.
papai~_
APRÍ G
10 (prag1/citl 1 1d o ~('tII sentido
j - O cúmulo
DÁLIA - Arandir escondeu-se no meu quarto
APRÍGIO - Escondeu-se?
DÁLIA -
Escuta , aqui. Ficou lá até qu@.
(incoereme
e
com
vee-
mênciQ) Ou o senhor queria que Arandir fosse preso?
APRÍGIO
(furi oso) -
Meu genro não pode ser preso, minha filha
pode
DÁLIA
(desori cnwda) - Papai. não é isso'
APRÍGIO (C lme~çando não se sabe o qtH (U (l 'l'/em) - Mas olha
Olha'
-DÁLIA
(egOlTando o ve lho) -':Papai, escuta' .
APRÍGIO
(urrQrMo) -
Onde está o canalha do meu genro?
D. LIA (rCCUQl( O com ' dion re rir '1Ono bl < l,jr n;a j) - O quê).
APRÍG O ,m. ,is (erre) - O canalha de meu genro
D.ÁLiA
(ressentida)-Arandir nãoé canalhà.
APRfG o nfçgrrl1t J <: nl rnm;-lPrnr,) - Vncê ainda
D,Á.LlA -
O senhor não Não pode chamar
APRÍG r6 (t ~ f u n f a n t c ) - Chamo Posso chamar Perfeitamente
Um canalha que. Se esconde e larga a mulher Dá o fora, a
mulher que se dane E tudo por quê) Porque esse pulha
D_-ÜIA
(quas e sem voe) --: Não, papai, não
APRÍGlO - Esse pulha. Na minha frente. Nem respeitou a minha
presença.
Na
minha frente, sim Na frente de toda a
cidade. Toda a cidade estava lá , vendo, espiando (exul-
runte e fero :) E ele beijou na boca um homem Po r isso,
Selrninha. Sei minha foi presa
1
DÁLIA' -
Papai, o se-nhor não entende
APRÍGlO (esireouctian c ..c) - Um genro que (Dália atraca-se com o
pa i)
D.Á.L1A
(desesperQda -
Ouve, papai . Arandi r explicou
APRÍGlO (I -iolenr o e cor:anr.:) - Mentira
D.Á.LlA -
Eonheço;-p;-, ó l-. F
A
rmdir, eIJ1a,...;;;e-fe isso-Papai, e -s.-
+cuta, Fez is so porque. Teve pena roi-a caridade, Arilfl4 .•
tem um coração, papai -
APRÍGIO
(co mo
se
desse cu sparada) -
Humilhou a mi nha filha.
DÁLIA -
Eo rJ.paz antes de morrer. Ele não podia recusar. Antes
de morrer, o rapaz pediu o beijo:
Arre es -de.m orres -
(Trevas . Cas a de Se/m inha . O pa i entra . Dá lia preci pitQ-se .)
I
DÁLIA
APRÍGIO
D.Á.UA
-.l\PRÍGIO
DÁUA
APRÍGIO
-Oh, papai
(sôfrego) -
Onde está tua irmã?
(soluça ndo ) -
Presa
-Quem? .
(num
com eço de hisleriQ) -
Presa
(e~ wp t:r ar( }J -
Prenderam?
(fur ioso)
Não chora tmu âa
de tom) Fala
-A
polícia esteve aqui
(repetind o) -Nã o chora A polícia?'
(repellildo) - Esteve aqui e perguntou, primeiro. Primei-
ro perguntou por Arandir.
(tomando respiração)
Eu dis-
se que Arandir não estava. En tão, levaram a SeIminha
DÁLIA
APRÍGIO
DÁLIA
9\2 TRAGÉDIAS CARIOCAS tI
93 o BEIJO NO ASFALTO
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 23/28
APRÍGIO (agarra a filha. Está sinistrameme-di·\I€#iJe) - Antes de
morrer?
D'\LIA - Pediu.
APRÍGIO (co m sú bita energia) - Agora você vai me ouvir.
DÁLIA - Papai, eu ('
APRÍGIO (dese.~pe rado ) - Cala a boca (m uda de tom e falando com
sú bita feroc idad e) Eu est ava junto de meu genro. Quando
ele se abaixou, eu e st ava ao lado . Juntinho, ao lado. E vi e
ouvi tudo. (baixo e violen to ) Oiha Ninguém pediu bei jo
. (ra diante ) O rapaz já estava morto
DÁLIA \ qu ase sem \ 0:: e nW I< espanro bnaal) - Morto?
APRÍGIO - Morto. Meu genro te contou que. Mentira O rapaz
não disse urna pal a:rra. Estava morto. De olhos abertos e
morto.
D.ÁLIA (ai nda sem
\:0;:) -
Não acredito.
APRÍGIO (, ,-mltante) - Meu genro mentiu pra ti e p ra Selminha.
D.ÁLIA (cara a ca ra com o pai ) - Arandi r não mente
APRÍGIO -
Beijou porque quis e não era um desconhecido. (agar-
ra a filha pe lo s dois bra ços . Fala cara com car a) Eram
amantes (pausa) .
D. \LIA
~5 ~;5s ~; rr ando)
-l\'ão Não
APRÍGIO
(rriunfa/) - Amantes' (D áli a
rl ,PTPnri ,-se rt l,.,~
i)~e~ p 'rada
violéncia )
DÁLIA
(com
súbita
fe roc idade) -
Papai, descobri o seu segredo.
APRÍGIO -(realm ent e em pâ nic o) - Que segredo ? (ráp ido, segu ra a
fi lh a pelo pu lso) .
DÁLIA - Descobri -,
APRÍGIO (des atinado) - Não tenho segredo nenhum (com um
es-
~ gur
Je
ch um) - Nem admito.
Ouviu? .
'em admito'
DÁLIA (cruel e lenra ) - Quer qlle eu diga?
APRÍGIO (n um berro) - Cala essa boca' (l1 :uda de tom . Quase sem
\:0::) Ou, então, diz, Pode dizer. Se você sabe, diz. (com
a \'0 ::: es trallgulada ) Qual é o meu segredo?
DÁLIA (lema
E
má) - O senhor não gosta de SeIminha como pai .
APRÍGIO (cssombrcdo) - Corno o quê?
DÁLIA (hina) - Gosta como. É amor. Amor de homem por
mulher. (dia nr e da afi rm ati~'a de Dália , o velho tem um a
rea ção que, de mo me nto, o especrador não vai comp reen der.
Essa reação é de um a eufo ria brusca. To ca I, sem nenhuma
motivação apa rente)
APRÍGIO (com eçando a rir) - Amor de homem por mulher? E é
esse o s egredo? (repe te. rec uando
(I
( pam o pcro a ;h ha)
Meu segredo é esse?
DÁ,LIA (e sga niçando a voz, num frenético deses pero in fantil) - Por
isso o senhor odeia Arandir
94 Tf\AGEOiAS CARIOCAS II
,
1
. ,
APRÍGIO (na sua eufor ia) - Pensei que. (abrindo o riso ) Mas quem
sabe? Talvez você tenha. (muda de tom , com uma serie-
d ad e d iv ertida) Realmente, quando uma filha se casa, o
pai é um pouco traído. Não deixa de ser traído. O sujeito
cria a filha para que um miserável venha e. (muda de
. tom , no va mente, com uma feroc ida de jocund a) Em certo
sen tido, Selminha cometeu um adultério contra mim
(numa gar galhada se lva gem e c an alha, que ninguém ent en -
de)
Boa boa
(termin a a cena com
as
gargalhadas
do
pai e
'os so luç os da fi lha )
(Tr evas. L uz n o q uarto de Amado Ribeiro. O repórter e stá s em paletó com a fralda da
cami sa para for a d as calças. Em p unh a u ma ga rrafa de ce rve ja. De ve z em quando bebe
pelo gargalo com uma sede f el iz. O repó rte r está , na me lho r das hip ó te se s , semibêbado.)
AMADO :.-. Quem? Quem? Fal ar comigo?--eHnr - Manda subir.
Sobe,
sobel. ..
(Aprígio entra)
AMADO (incerto) - O senhor é?
APRIGIO
(formal) - O sogro de.
AMADO
O
ogro, exatamente. Eu estava reconhecendo. Graças
a Deus, sou bom fdonomista.
APRÍGIO
(com uma grave amabilid ade) -
Boa noite.
(Ama do faz
um
ge5io circular, qu e ubr an ge lud u o uu urto}
_AMADO - Desculpe sculhambação. O quarto está uma ba--
gunça.
APRÍGIO =-Absolutamente.
AMADO -
Estou safado dav ida. Imagine que, a arrumadeira, uma
preta gorda. (baixo e sórdido) Ernprenhou. Ela faz aborto
em si mesma. Com talo de mamona. (com f in a m al ícia)
Não deixa de ser uma solução. (m llda de tom ) Mas parece
que, desta vez, houve perfuração. Perfuração. Est á moro
re, não morre. Vai morrer. (pig arr eando e
COIll
rer.o quê de
culpado) Mas olha cá: - eu não tenho nada com o p eixe.
O filho não
é
meu (m uda de tom, um puuco
peau roo do)
Vamos nós. Qual é o drama?
APRÍGIO -
Seu Amado, eu desejava, aliás.
AMADO -
É
sobre o bei jo do asfalto?
APRÍGIO (incerto) - Propriamente.
AMADO - Meu amigo, com licença. Um momento. O senhor
veio me cantar?
APRÍGIO (pertlJ rba do) -Ma s cavalheiro
AMADO - Veio me cantar. Um momento. Claro. Veio me cantar.
E eu não quero. Em absoluto. Meu amigo. eu sou batata,
entende? Enão me vendo
APRÍGIO - O senhor não me entendeu.
A~1ADO - Sou macaco velho
95 o Et..Ju NO A S F A t TO
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 24/28
APRÍGro
.< . 1 .h · f g o ) -
Queria apenas, 'entende Ter uma conversa,
Uma conversa, a propósito de ...
.-'''IADO - Escuta. nossa amizade. eSaHa+-Fala um de cada vez.
Essa conversa, é velha pra chuchu
\
Ias olha: --dinheiro-
não me compra.
APRÍGIO
(1IlCISl\'O) -
Nem eu, ora
AMADO - Com liG@cIl.(ja. senhor está aqui por causa de seu
genro e de sua filha. Batata Mas escuta A única coisa
que me compra
é
mulher
(fa:; ;
o
aden do rápido
e incisíro)
. E-magra'
APRÍGlO - Seu Arriado.
--,\.,\1ADO (u o se trdcs tw lb l(H1 Ien1 O
erÓ rlco) -
As magras Asrnagras-
(-reriJictlj Sem -alusão-â-sua f i lha. (com uma a1?labliidade-
obscena de béba do)
M agrinha,
sua filha.
(mu da de
tomi -
Võu lhe contar uma passagem:-Eu tive uma dona. urna
cara, nem sei que fim
levou,
(novam en te. cx u lton re)
O corpo de sVa filha; direitinho. Sem barriga nenhu-
ma. (co m um riso vi/j-Na cama, era bárbara' (r i) Subia _
pelas paredes assim como uma lagartixa profissional
1\lagrinha. ossuda'
APRÍC,O
(C01 l
surda irrÍfaçúo) -
O
senhor quer me ouvir?
~AM\rv) - Como é mesmo sua graça?
APRÍGIO -;--Aprígio.
AMADO ~ Aprigio, agora é tarde 'Tarde
APRÍGiO - Mas eu ainda não disse nada Eu
UULr;ü. ;u~;ail.CI.~C,
AMADO - O senhor vai dizer que
é
mentira'. Que é uma mi~
, ficação colossal, não sei o que lá. Não adianta. O jornal
está rodando, Rodando. Tem urna manchete do tamanho
de um bonde. Assim: - O beijo no asfalto foi crime'
Crime '
APRÍGIO (ap avorad o) - Crime)
AMADO - Crime E eu provo Quer dizer, sei lá se provo, nem
me interessa, Mas a manchete está lá, com todas as le-
tras: - CRLv E
APRÍGIO -- Mas eu não entendo
AMADO exuuante e feroz) - Aprígio, você não me compra-Pede
me cantar. Me canta Canta (rindo, rel i::) Eu não me ven-
-àe- -fHlllda de tom ) Eu botei que. Pr~sta atenção. O negó-.
-cio é bem bolado pra chuchu Botei que teu genro es-
barrou no rapaz. triunfame) Mas não esbarrou Aí
é
que
-está. Não esbarrou. (lento e ta:mtivo) Teu genro empur-
rou o rapaz, o amante, debaixo do lotação. Assassinato.
Ou não é? (marav ilhad o) Aprígio, a pederastia faz vender
jornal pra burro Tiramos, hoje, está rodando, trezentos
mil exemplares Crime, batata'
APRÍGiO -
Tem
ccrtcz ..
?
-, AMADO - Ou duvida?
APRÍGIO (mais incisivo) - Tem certeza?
AMADO (sJrdido) -
São
outros
qu inhentos
Sei lá Certeza, pro-
-priamente. A única coisa que sei é que estuu vendendo
jornal como água,
Pr a c hu chu.
APRÍGIO (satllradn
de
tanta mi séria) - Já vou.
AMADO (fa ::end o uma insinuação evid ent e de miserável) - Vem
cá. Escuta aqui. 'Sabe que. Sinceramente. Se eu fosse
você. Um pai. Se tivesse L\l11a filha e minha filha casasse
com um cara assim eorne o. Entende? Palavra de honra
Dava-lhe um tiro na cara
APRTGlO - Você 'iúêf
vender
mais jornal?
- AMADO (co m
(l 511f
setiedo âe de bêbado) -Fora de
brincadeira;
Não
é
piada. Sério. E olha. A absolvição seria a maio.
barbada. Nenhum juiz te condenaria, nenhum «(a-
rici'osoi Escuta. Aprígio. O Arandir não é homem pra.
lfão é homem pra tua filha. Ela é magra e tão sem. Sem
-barriga. Um certo histerismo na mulher.
E d.
Selminha.
(en fático) Esse cara não agüenta o repuxo com tua filha
APRÍGIO (, c esperado
de
ódiO) - Bêbado imundol'\Ap'igio
(iA,,·
dona o qu arto, como se ,<U gisse .Sempr i com a garrafa n.a
ilião, Amado avança camb aleante)
AMADO -
Ve m cá, seu
Vem
cá ( er ido
o
Di4trO
5lnnir)
Filho
da . (ri' d,. '. l< TJa) Seu bê bado . Bêbado e pau-de-arara.
(Ama do rem um súbito J'úmptinte trümj~ dj
AMADO num ben-o)-Mas parei a cidade 'Só se fala do Beijo no
asfalto ', Eles têm que respeitar Têm que respeitar Eu
não dou bola Não dou pelota (Amad o p arte o grito num
soluço)
(Trev as. Luz na c asa de Se/m inha. Dália vai en tran do. Sente-se em tudo o qu e Se/minha
diz ou faz , o trauma da políc ia. Ela, que está lendo um jom al, ergue-se ao ver Dália)
SELMINHA . (srmpre
em
tensã o) - Quem era?
DÁLIA (sutTe ga) - Arandir
SELM NHA
C ~
nética e
esganiçand o) -
E só telefona agora?
D \:UA (q
,tlendo,jcaimrr-ia:r--Selminha,-:,ocê está nervosa,
SELMINHA (anda
de
um la do para outro num a angústia de imana e na
sua o; lrra \ - Passa uma noite e um dia sem telefonar
- DÁLIA (gruanáo tam bém) - O telefone aqui está desligado
SELMINHA (mais co ntida) - Fala
D.\LIA =-Arandir telefonou.
SELMINH \ (varada de arrep ios) -Arandir.-
DÁLIA - Escuta. Está num hotel.
96 TRAGÉDIAS CA~IOCAS
97 o BEIJO NO ASFALTO
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 25/28
--SE.LMINHA
(repetindefla-Him mecanismo de angústia) - Hote l F
DÁLIA (sôfrega) - Mandou dizer que.
SELMINHA (com brusca
irritação)- Mas que hotel?
DALlA -
E te espera lá. Disse que.
SELMINHA -
Onde?
DÁLIA -
O endereço. Eu tornei -nota.
É
no. (sente-se,
p é :1(0
Q
~ma-mflneira
cad a-ve-z-mai s-nítida,..qu e
Se/minha
-Rãe-qtterirJ
_ SEU.IINHA
(pa ra
s+mesmn
wm--\le z sur da) -
E quer que eu vá lá.
DÁLIA --ArClft4i.r-pediu. Olha, Selminha, pediu que você fosse
imediatamente. Agora. Fosse agora. O endereço. Está
escondido num hotel. A rua é.
SELMINHA
(cortando) - Dália, escuta.
É
claro que eu. Mas todo o
mundo Thdo o mundo acha, tem certeza. Certeza Que
os dois eram amantes
DÁLIA (com despr ezo) - É uma gente que nem sei
_ SELMINHA
(na
sua
obsessão)-Amantes'
DÁLIA - M.as, D Arandir mandou dizer que o hotel. O hotel
é pertinho do' largo de São Francisco. Olha. Escolheu,
de propósito, está ouvindo, Selminha? SeIminha, ouve,
escolheu um hotel ordinário, porque dá menos na vista.
Agora vai, Selminha, vai.
SE ..~.1 :-:} i\ ~
Vou.
D.\LlA (sãf rega) -
Apanha um
tá xi. (Se/minh a nà o
se
mexe)
SELMINHA (com súbita revo lta) - E se a polícia me seguir?
DÁLIA (com in-iraçào) - Arandir está esperando
SELMINHA .
(com cfrta malignidade) - E daí?
D..LlA -
Você
é
a mulher
SELMINHA
(gritand o) - Mas se eu for presa. (d esatando a cho rar )
Você quer que eu seja presa. (com desespero) E que façam
outra vez aquilo comigo, outra vez?
-90ÜIA
( onciliatólia)- Selrninha
SELMINHA
(rrinulIldo us de mes) - Nunca pensei que. Me puseram
nua Fiqueil'lUa pra dois sujeitos
-BÁLlA -
Mas-eão vá contar isso.pra o ArandtF -
SELMINHA -
E o miserável, o cacR8ffo ainda me disse que me quei-
mava o seio com o cigarro (so lu ça nd o) J::> .Hatla (Dália
agarra a innã pelos dois bra ço s com súbita energia)
DÁLIA -
Você vai?
SELMINHA (of egan te e caindo em si) - Vou: Claro que vou. Eu disse-
que ia e vou. Mas olha. (muda dc tom) E se ele quiser me
beijar?
D.ÁLlA
(se m enrender) - Ora, Selminha
SELMINHA (co m
angústia) - Vai me beijar e eu (conrmuc
sem coe-
rência) Quando a viúva disse, cara a cara comigo, que
tinham tomado banho juntos.
98 TRAGÉDIAS CARIOCAS 11
DÁLIA
(com violência) - Nem se conheciam
SELMINHA
(sem ouvi-Ia e só escutando a próp ria voz interior) - Uma
-G0i·saque me dá vontade de morrer. Como é que um ho-
mem pode desejar outro homem. (ve ement e e vo ltando- se
para
a innã) Dália, você entende? Entende
eu ~
Sei que,
agora, quando um homem olhar para o meu marido.
Vou desconfiar de qualquer um, Dália
(co m um a bru sca
in itação ) Aliás, Arandir tem certas coisas. Certas delica-
dezas E outra que eu nunca disse a ninguém. Não disse
-por vergonha. (com ma is veemê ncia) Mas você sabe que a
primeira mulher que Arandir conheceu fui eu. AcI;o iss~
-tão Casou-se tão virgem como eu, Dália
DÁLIA -Arandir só tem vocêl
SELMINHA (num a explosão) - Se eu for, já sei. Ele vai querer bei jar .
--Na certa: Eu não quero um beijo sabendo que. (hir ta de
nojo)
O beijo do meu marido ainda tem a saliva de outro
homem
(Tr ev as. Qu arto de ho tel ordinário, ond e Ara ndir está hospedado. Jorn ais pe lo chã o.
Supõe-se qu e Dália acaba de
chegar.
Arandir seg wa a cunh ada pelos
dois
braços.)
j
ARA;-.;'DIR
(na
sua angú stia) -
Selminha não veio?
DÁLIA
(sem saber c om o d ar a.notíc ia) - Arandir, olha.
ARANDIR
(fora de si) - Não vem? \
-B.ÁUA
(meio arônira
e áiante
do
desespe ro
iminente) - Eu acho
que.
ARANDIR
(v io lentíssimo) - Minha mulher não vem? Não quer vir?
Fala
(mud a
de
tom )
Olhe-pee-rainn
(com vo z súp lice ,
en-
tre o des esp ero e a espe ran ça) Ela não vem? Diz pra mim?
Não vem?
DÁLIA (a medo ) - Espera.
ARANDIR
(com violência) - Dália, eu preciso de minha mulher.
Preciso. O jornal me chama de assassino. Assassino, Dália
(com um e sg ar de ch oro) Você acha que eu sou assassino?
D.ÁLlA -
Arandir, eu só acredito em você.
ARANDIR -
Mas eu preciso de Selminha Vai, Dália e diz à Selrni-.
nha. Pede. Traz Seiminha. Não tenho ninguém. Estou só.
D.ÁLlA -
E eu?
ARANDIR (br utal ) -
Ninguém Olha o que o jornal diz. Está aqui.
(Arandir apanha o jornal)
DÁLIA (exa sperada) -
Joga fora esse jornal (Arandir
atira f o m (l
jorna l)
ARANDIR -
Diz lá que eu empurrei o rapaz. Como se eu. E não
entendo a viúva. (falando para si mesmo) Será que esbar-
rei no rapaz? Sem querer, claro. Mas, nem isso. Tenho
r
I
I
I
r
í
99
o
BEIJO NO ASFALTO
(
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 26/28
ARANDIR
DÁLIA
ARAN'DlR
DÁLIA
ARANDIR
DÁLIA
ARANDIR
ARANDIR
DÁLIA
ARANDIR
DÁLIA
ARANDIR
DÁLIA
certeza, 'Dália. Não toque i no rapaz.. (memo rizar.do paru
s i m es mo) Uma senhora vinha em sentido contrário. O'
rapaz estava em cima do meio-fio. Aqui. Eu me desviei
da senhora. Mas não cheguei a tocar no rapaz. (num
repente) Dália, vai chamar Selrninha É minha mulher
Quero Selminha aqui
(1I11/1rÕ
oce; -
Não vem.
(c om
um
mínimo
de
vo:)-Quem?
=-Selmínha.
-Não\·em.
(mais incisiva) - Arandir, Selminha mandou dizer. Não
vem. (Arandir aga rra a cunhada pelos do is brnços)
(es tupefato) - Nunca mais?
(com pena e medo) -
Arandir, o lha ..
(v iolento e grirando) - Responde (est ranguumáo a
\ 0:)
Nunca mais? .
(ch orando ) - Nunca mais. (Calia despre nde-se. Afasra-se
ligeiramenre do cunh ado)
(repe rindo para si mesmo) --Nunca mais. Quer dizer
que. Me chamam de assassino c. (com ~LÍ bitú ira) Eu sei
o
que eles querem, esses cretinos (ba te
no
peito com
a mi in aberta) Querem que eu duvide de mim mesmo
Querem que eu duvide de um beijo que. (bai xo
f'
ató niro.
par a a
cu nhada)
Eu não dormi, Dália, não dormi. Passei
a noite em claro' Vi amanhecer. (com tu nr'o sentimento)
Só pensando no beijo do as fa lto' (co -m mais violencia)
Perguntei a mim mesmo, a
mira,
mil vezes: - se en-
trasse aqui, agora, um homem. Um homem. E. (numa
especie de uivo) Não Nunca Eu não beijaria na boca um
homem que.
(Arandi r pa ssa as c os ta s
da mào
na própr ia
boca , com um n ojo fero:) Eu não bei ja ria um homem que
não estivesse morrendo: Morrendo aos meus pés Beijei
porque Alguém morria Eles não percebem que al-
guém morri a?
(muiro doce e mu ito triste) - Eu vim para.
(sem om'i-Ia ) -
Mas eu acredito em mim
(br utal sem
transiçào) Por que Selminha não vem?
- Não gosta de você
(com uma
ce r
c:a cândida e fanática ) - Gosta Ama (sô-
frego e
ingênuo)
É
um amor de infância De infância. & Y .~
era menino, menino. E ela garotinha. Já gostava de mim.
E eu dela. D2Jia, você não entende. ninguém entende.
Selminha
só teve um namorado, que fui eu. Só,~Dália.
E eu nunca, nunca. Deus me cegue se. Nunca tive outra
namorada. Só gostei de Selminha.
DÁLIA - Selminha não quer mais ser tua mulher
ARANDIR
(sem entender) - Não quer?
-oi
LIA .- Arandir, esc}lta. Selrnirrhame disse. Ouve, meu bem.
ARANDIR (esrrangl llado) - Selminha
tem
que
DÁLIA
( iolenra)-Selminha disse que você e o rapaz eram aman-
tes. Amantes
ARANlJIR (nU/lIu
Úl ll(illa~ ão) - Dália,
faz
o seguinte.
Olha,
o
se
guinte: - diz a Selminha. (\'io ento) Diz que, em toda
minha vida, a ún ica coisa que se salva é o beijo no asfal-
to. Pela primeira YeZ. Dália, escura' Pe:.;. primeira vez,
na vida' Por um momento, eu me senti bom (furioso)
-Eu me :;:.'n:i quase, nem sei' Escuta, escuta' Quando
eu te vi no banheiro, eu não fui bom, entende? Desejei
você. Naquele momento, você devia ser a irmã nua, E
eu desejei. Saí logo. mas desejei a cunhada. Na Praça da
Bandeira. não. Lá. eu fui bom. É lindo É lind , eles não
entendem. Linda beijar quem está morrendo (grita ) Eu
não me arrependo Eu não me arrependo. ,
DÁLIA -
Selminha te odeia (Ar and ir vo lra para a cunhada, cam-
balcal lfL . Puss a
(l n ieh l na bocc
crlchcrcada)
ARANDI R
(com voz
est ran gulada) -
Odeia. (rTlllda de rom) Por isso
e que recusou. Recuso ••o meu beijo.
Eu
quis beijar e ela
negou. Negou a boca. Não qUIs o meu beijo.
D.\L.iA - Eu quero
ARANDIR (atónito) -
Você?
DÁLIA (sofrida) - SeIminha nào te bei ja. m~s eu.
ARANDIR (co ntido) - Você é uma criança. (Dál ia apena entre as
mdos o rosro de Arandir)
ARANDIR -
Dália. ( D á li a be ija-o ,
de
lcc-c, nos labias )
DÁLIA - Te beijei.
ARANDIR (maravil hado) - Menina
D. \LIA
(qu ase sem
1 '0 :) -
Agora me beija. Você. Beija.
AR..i\.NDIR . (desprende-se
com
vio lenc a) -
Eu amo Selminha
DÁLIA
( csesperada ) - Eu me ofereço €-_Sel.minha não veie--@-
e»
vim.c,
ARANDIR _.
Dália, eu mato tua irmã. Amo tanto que. (muda de tom)
_. Eu ia pedir. Peffirà Selminha para morrer comigo.
=--D.4.LIA --
~1orrer?-
ARANDIR (dese :,perado) - Eu e Serminha Mas ela não veio
DÁLIA (agalTa
o cunhado.
Qua se boca
com
boc a, sôp'ega) -
Eu
morreria.
AR..i\.NDIR -Comigo?
DÁLIA (se l\lagem)
-Contigo Nós dois OmtigoL Eu te amo
ARANDIR (num sopro) - Morrer.,
100
TRAGÉDIJ..S CAR:C~AS II
101 o BE'JO NO ASFALTO
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
http://slidepdf.com/reader/full/beijo-no-asfalto-o-nelson-rodrigues 27/28
DÁLIA
(feroz) - Eu não te julgaria nunca. -fu.w..~rdoaria sem-
_p.r~'-Acredito em ti. Só eu acredi to em ti.
ARANDIR
(vio lento) -
Oh, graças graças
DÁLIA
(macia, in sidi os a, com um a leve, muito lev e malignida de)
- Diz pra mim. Eu não te julgo. Não te condeno. Res-
ponde: - Você o amava?
ARANDIR
(atônito) - O quê?
DÁLIA
(num a espécie
de
hi steri a) -
Amava o rapaz? Pode dizer.
-Escuta.Você
era amante do rapaz?
ge-ak-0f>@lass?
ARANDIR
(recuando)-Amante?
DÁLIA -
Q :ieFido Pode dizer a
mim.
A mim, pode dizer.
~essar. Escuta, escuta Meu bem, eu não sou como
Selminha. Seiminha não compreende, nem aceita. Eu
aceito. Tudo Fala. Eu não mudo. Serei a mesma' Fala
(Dália quer abr açar -se
ao cunhado. Arandir
desprende-se
com
violência)
ARANDIR
(gritando) - Você é .como os outros- Igual aos outros.
Não acredita em mim. Pensa que eu. Saia daqui.
(ma is
forre nu m berro de louc o) - Saia (Apríg io entr a)
APRÍGIO - Saia, Dália
(Dália aba ndon a
o quur:»,
correndo,
em
desespero. Sog ro e genro, fac e a fa ce ) Vim aqui para.
ARANDIR
(p ara n
,n?,T0'
qua se ch orando ) -
Está satisfeito?
APRÍGIO -
Vimaqui.
AR.-\NDIR (na .lua cólem) -
Está satisfeito? O senhor é um dos
responsáveis. Eu acho que é o senhor. O senhor que está
.por trás ...
APRÍGIO -
Quem sabe?
ARANDIR -
Por trás desse repórter. O senhor teve a coragem,
a-
coragem de. Oupensa que eu não sei? Selminha me con-
tou. Contou-tudo O senhor fez insinuações. Insinuações
A meu respeito
APRÍGIO -
Você quer me.
ARANDIR
(sem ouvi -lo) - O senhor fez tudo Tudo pra me separar
de Seiminha
APRÍGIO -
Posso falar?
ARANDIR
(erguendo a voz ) - O senhor não queria o nosso casa-
mento'
APRÍGIO (vio lento ) -
Escuta Vim aqui saber ~ Você co-
nhecia esse rapaz?
~AL-\~DIR (de se sperado) -
Nunca vi.
_APRÍGIO -
Era um desconhecido?
AR.-\NDIR -
[urol Por tudo que há de mais Que nunca, nuncal
APRÍGIO -
Mentira
ARAN D 1R (desespe ra do ) -
Vi pela primeira vez
102 TRAGÉDIAS CARIOCAS
1 1
APRÍGIO -
Cínico
(mud a
de
tom , co m um a fero cidade)
Escuta
Você conhecia o rapaz. Conhecia' Eram amantes E vo-
cê matou. Empurrou o rapaz
ARANDIR
(violento)-Deus sabe
APRÍGIO -
Eu não acredito em você. Ninguém acredita. Os jor-
nais, as rádios Não há u ma pessoa, uma única, em toda
a cidade. Ninguém
ARANDIR
(co m a voz estrangulada) - Ninguém acredita, mas eu
Eu acredito, acredito em mim
--'\PRÍGIO -
Você, olha
ARANDIR -
Sélminha há de acreditar
APRÍGIO (fora
de si) - Cala a boca
(mu da
de
tom)
Eute perdoaria
tudo Eu perdoaria o casamento. ~Ainda agora,
eu estava na porta ouvindo. Otll Í ttl8S. Você tentando
seduzir a minha filha menor
ARANDIR -
Nunca
APRÍGIO -
Mas eu perdoaria, ainda. Eu perdoaria que você fosse
espiar o banho dacunhada. Você quis ver a cunhada nua.
ARANDIR
-Mentird' -
APRÍGIO (ofega nte ) -
Eu perdoaria tudo,
(mai s violento)
Só não
perdôo o beijo no asfalto. Só não perdôo o beijo quevocê
deu na boca de um homem
ARA~DIR
(pa ra
si
mes mo) -
Selrninha
APRÍGIO
(muda de tom, supl ica nte) - Pela última vez, diz Eu
•preciso saber Quero a verdade' A verdade' Vocês eram
amantes?
(se m esperar
a
resposta, fu rios o)
Mas não res-
ponda. Eu não acredito. Nunca, nunca, eu acreditarei.
(numa
espé cie
de
ui vo)
Ninguém acredita
AR.-\NDIR -
Vou buscar minha mulher.
(Apr ígi o re cua, pux ando
o
revólver)
APRÍGIO (apontand o) -
Não se mexa Fique onde está
ARANDI R
(atônito) - O senhor vai.
APRÍGIO -
Você era o único homem que não podia casar com a
minha filha' O único
AR.-\NDIR
(atônito
e qU G. e
sem voz) - O senhor me odeia porque.
Deseja a própria filha.
É
paixão. Carne. Tem ciúmes de
Selminha.
APRÍGIO
(nu m berro) - De você (c smm gu lan do a \'0::) Não de
minha filha. Ciúmes de você. Tenho Sempre. Desde o
teu namoro, que eu não digo o teu nome. Jurei a mim
mesmo que só diria teu nome a teu cadáver. Quero que
você morra sabendo. O meu ódio
e
amor. Por que beijas-
te um homem na boca? Mas eu direi o teu nome. Direi
teu nome a teu cadáver. (Apríg io a tira, a prim eir a vez.
Arandir
cai de
joelhos . N a qu eda . pu xa uma folha
de
jor-
I '
103 o BEIJO NO ASFALTO
/lal. qu e es ta va abena
nn
cama . Torcend o- se. ab re o j ornal,
. I
8/12/2019 Beijo No Asfalto, O - Nelson Rodrigues
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como uma es pécie de escudo ou de ban dei ra . A p rígio atira .
nova mente . va ra ndo o pa pel im pres so . N um esp asmo de
dor , A ra ndir rasga a folha.
E
tomb a. enr oland o-se 110 jorn al :
Ass im morre)
APRÍGIO - ~djr (mais
for te)
Arandir
(um úl timo canto)
Arandir
(Cai a luz. em res istência, sob re o cadáver de A r an di r. T rev os.y
FIM 00 TERCEIRO E ÚLTIMO ATO
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.
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104 TRAGÉDI~., CARIOCAS
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