Anais eletrônicos do
III Encontro do Grupo de Estudo e Trabalho em História e Linguagem:
Política das narrativas políticas
FAFICH – UFMG 08, 09 e 10 de abril de 2014
Anais eletrônicos do
III Encontro do Grupo de Estudo e Trabalho em História e Linguagem:
Política das narrativas políticas
Márcio dos Santos Rodrigues Renata Moreira
(organizadores)
ISBN: 978-85-62707-64-3
FAFICH – UFMG 2015
198
BERLIN ALEXANDERPLATZ E A NARRATIVA DAS UTOPIAS
Maria Edith Maroca de Avelar Rivelli de Oliveira1
“Política é dar vida a todos!”
(Hilda Hilst)
Introdução
Este trabalho se propõe a uma leitura do romance Berlin
Alexanderplatz (1929) de Alfred Döblin, como reflexão critica sobre a
realidade em que se insere, enfatizando-se sua análise sociopolítica da
trajetória do povo alemão no período compreendido entre as duas
guerras mundiais (1818-1839). Pretendemos aqui destacar a narrativa
döbliniana como um espaço privilegiado de representação do processo
de trânsito das camadas populares pelas ideologias de seu tempo,
apresentada de maneira “fabulosa” pelas desventuras do protagonista
Franz Biberkopf. Nossa análise busca desvelar certo caráter fabuloso em
Berlin Alexanderplatz cujo princípio pedagógico seria alertar para o
aspecto nocivo das ideologias, apresentadas como aliciadoras das
massas e falaciosas quanto a realizar efetivamente a felicidade humana
que propõem. Ao final destacar-se-á a relevância deste romance como
testemunho e reflexão sobre a trajetória ideológica do povo alemão do
período entre guerras.
De início há que desligar-se da ideia de ficção como obra
especular: o texto não será nunca “arquivo morto” da realidade sua
contemporânea. Será também descartada a possibilidade de uma
natureza autorreferencial do texto, concluindo-se pela permeabilidade
da literatura em relação a seu contexto. A partir daí passamos a analisar
a ficção como uma possibilidade de representação em que a política
(entre outros) pode exercer funções de pedagogia, laboratório,
1 Mestre em história e história da literatura (UFOP). Doutoranda em história pelo PPGHIS
– UFOP. E-mail: [email protected].
199
publicidade, e desvelamento, graças à maleabilidade do material
ficcional. E, considerando-se além dessa plasticidade ficcional o seu
desejo de idealidade, parece plausível estender a caracterização de
utópica a toda literatura: afinal não há esforço literário que não produza
uma “realidade paralela” em que a lógica do nosso mundo se
reconstrua numa busca ideal.
Na reflexão que se segue buscaremos sublinhar os indícios de
uma nova utopia em Berlin Alexanderplatz (1995) de Alfred Döblin,
proposta alternativa à fragmentação das grandes utopias políticas,
cotidiana experiência alemã do período entre guerras (1819-38).
Queremos perceber na narrativa döbliniana a proposta de uma
pedagogia política que se formula à partir da fábula expressionista
sobre a Alemanha pós I Grande Guerra através da trajetória de
Biberkopf: a aventura tragicômica de um entre tantos soldados alemães
que, ao voltar do front em 1918, percebem não haver nada para o que
retornar.2
A obra constrói um relato da cotidiana experiência de
fragmentação do cidadão alemão do período, vivenciando o
desmoronamento de tudo em volta, seja na política, no plano físico,
mental e moral; a imagem de ruína é o cenário em que a narrativa
döbliniana emula o laboratório das grandes utopias políticas do século
XX em que se tornara a Alemanha do entre guerras; e, nesse sentido, a
trajetória de Franz Biberkopf se demonstra icônica do caminho
percorrido pela sociedade alemã do período, oscilando entre a
perplexidade frente ao ineditismo e dimensões traumáticas do primeiro
conflito, e a inexorabilidade da Segunda Grande Guerra.
A tragicômica perambulação de Biberkopf pelo entorno da
Alexanderplatz (que se apresenta quase como um mundo à parte,
2 Nossa reflexão se ampara principalmente em autores como Irwing Howe, que em A política e o romance (1998) no alerta para a importância da literatura como espaço de representação das ideias políticas; Benedito Nunes que em “Narrativa histórica e narrativa ficcional” (1998) destaca as proximidades destas duas narrativas e Walter Benjamin, cujos Documentos de cultura, documentos de barbárie (1986) nos incentivam a expandir a percepção sobre narrativa histórica. Já quanto ao contexto referido pela obra, nos amparamos principalmente em Élcio Cornelsen (2001) Eric Hobsbawn (1995) e Peter Gay (1978).
200
povoado pelos desclassificados da sociedade alemã) ilustra e
argumenta sobre a desilusão da perda das esperanças políticas, que se
diluem em atitudes estéreis e/ou superficiais; salta as olhos o contraste
entre a aridez cotidiana da realidade do pós-guerra e o multicolorido
falacioso discurso das ideologias que se propõem salvacionistas
enquanto arrastam os personagens para abismos mais profundos: a
exemplo do que ocorre com Franz e seus amigos. Como pano de fundo
ainda se destaca a solidão da comunidade da Alexanderplatz, seu
abandono pelo “Mundo” onde estão as elites e os dirigentes.
E, após o “banquete de amargura” apresentado por este retrato
desesperançado disposto a desmascarar as falsas esperanças contidas
nas grandes utopias, inesperadamente a obra nos propõe uma nova:
enxuta, pragmática e absolutamente humanista. Assim, a ficção
döbliniana se apresenta como uma fábula de desconstrução das
grandes utopias, que se digladiam pelo controle das massas alemãs no
período, propondo a construção de um novo projeto a ser construído
sobre as ruínas da desilusão alemã pós I Guerra Mundial.
Ficção e política, ficção política
O que restou aos órfãos do marxismo foi o
humor. (Leandro konder)
Toda literatura pode ser vista como utópica, se consideramos que
sua elaboração está atrelada ao imperativo da pararealidade. Narrar é
reescrever a realidade, em busca do sublime – o lugar que não existe e
que o escritor “projeta”. E considerando-se que o escritor está sempre em
busca de um mundo melhor, talvez possamos afirmar que toda ficção é,
ou pode ser, política – onde política é a busca do bem comum. Ficção
política, portanto, será aquela que narra a busca deste bem: e Berlin
Alexanderplatz não tem outro desejo.
Nessa obra o protagonista Franz Biberkopf representa um
denominador comum da experiência do povo alemão no período entre
guerras: principalmente as camadas urbanas despossuídas, maiores
201
vítimas da I Grande guerra, aqui representados pelos frequentadores da
Alexanderplatz em Berlin. Figura icônica dessa comunidade, Franz
Biberkopf (cujo protagonismo só seria possível nessa “tragédia do
homem comum”) representa-se como um tipo ideal: minuciosamente
ordinário, vagando pela terra, sendo jogado de um lado a outro pelas
ideias alheias: ele é a vítima perfeitas das “ficções políticas”,
representadas pelas grandes utopias.
O percurso de Franz servirá como ilustração da trajetória de boa
parte da população alemã de seu tempo: após a I Grande Guerra
essas camadas urbanas se encontram desterritorializadas em seu
espaço natal, e a falta de perspectivas amplia o apelo que tem para
elas o canto da sereia representado pelas utopias. Franz (e com ele o
povo alemão) circula por entre as ideologias que se lhe apresentam,
fracassando em cada tentativa de felicidade guiada por uma das
grandes teorias políticas, seja o marxismo, o nazismo, ou liberalismo; e
seus recorrentes insucessos apontam para a inutilidade, as falácias de
cada uma delas.
Todas as tentativas de Franz de salvar-se pela adesão a um grupo
ideológico resultam em acidentes ou fracassos. Ele transita por todas,
sempre em percurso descendente, até chegar ao fundo do poço, onde
consegue transformar sua desilusão numa nova e própria utopia. Um
novo Biberkopf emerge ao final da narrativa, portador de uma nova
ficção – própria, criada a partir de sua experiência de vida: uma utopia
metafísica baseada na busca da solidariedade humana, no
pragmatismo e na descrença em qualquer ideologia.
Curiosamente esse movimento final está proposto desde o inicio
da narrativa, em uma cena onde ocorre um inusitado encontro entre
esse alemão comum e a comunidade judaica. A cena se inicia por
Biberkopf sendo vitima de violência de seus iguais, e socorrido por
humildes judeus (a ironia da situação dispensa comentários), momento
em que ele se surpreende pela solidariedade inesperada. Esse
momento de encontro reticente com a alteridade do povo “maldito”,
que se torna seu salvador, será lembrado por ele mais tarde, como uma
202
espécie de “zona de conforto” a que recorre mentalmente nos
momentos mais difíceis.
Mas a proposta implícita nesse episódio com os judeus só será
compreendida pela simplicidade mental de Biberkopf após toda a sua
experiência entre grupos e ideologias pelas quais transita ao longo da
narrativa. O pequeno espaço da Alexanderplatz torna-se um universo
extenso para as experiências de Franz. Seu calvário tem por estações a
adesão às diversas teorias políticas de seu tempo, em que busca
misticamente a felicidade. E suas desventuras se repetem tragicamente
ao longo da narrativa, sempre em decorrência de sua ingênua
confiança nas ideias políticas que lhe são ensinadas pelos vários grupos
aos quais se associa sucessivamente. O que seduz Biberkopf por todo o
romance são ideologias, que o arrastam sempre e cada vez mais fundo
até que consiga finalmente desvencilhar-se pela morte simbólica e um
renascer de olhos bem abertos.
A construção ficcional se torna quase alegórica, ao representar a
credulidade de Franz, a sedução manipuladora dos grupos ideológicos
que o cooptam e a real esterilidade de todos esses discursos, uma vez
que a felicidade prometida por eles nunca se. A experiência pessoal de
Franz concretiza as propostas ideais de felicidade de todas as grandes
utopias, sendo que em todas elas ao final de sua experiência o
protagonista perceberá que nenhuma utopia resiste à materialização de
suas propostas em vida cotidiana. A miséria e desesperança, o desejo
de um pouco mais da vida vai guiando o ingênuo Biberkopf por todas
as possibilidades de utopia, sem que nenhuma delas possa realmente
salvá-lo. Franz transitará, portanto entre as possibilidades de organização
sociopolítica, desde o liberalismo – representado por sua curta iniciativa
de comercio ambulante de gravatas, que fracassando decai para o
proxenetismo e finalmente o guiará para os braços do nazismo e,
finalmente para o comunismo.
Estas experiências apenas conseguem agudizar a situação de
Franz e levá-lo ainda mais profundamente à criminalidade e ao
desespero. O clímax de suas desventuras se dá por uma prisão injusta,
203
decorrente da atuação de seu suposto melhor amigo Reinhold que, não
satisfeito em envolve-lo em um acidente no qual perde um braço,
decide-se por assassinar a namorada de Franz, Mieze – e finalmente
manipula a situação de maneira a incriminá-lo. Esse momento é o
grande clímax do calvário de Biberkopf: a prisão injusta, a traição de
Reinhold, a perda de Mieze, fazem com que mergulhe no abismo de
sua vida, de maneira totalmente desesperançada. No entanto, dessa
quase morte vem um “renascimento” que é quase uma conversão
religiosa.
Após seguir a tudo e todos sem questionamentos, Franz decide-se
por olhar o mundo com os olhos muito abertos contra as ideologias e
qualquer um que queira levá-lo: “se devo marchar, depois irei pagar
com a cabeça aquilo que os outros pensaram” (DÖBLIN, 1995, 425). É a
descoberta de que ele deve pensar por si, afinal “o homem recebeu o
juízo, em vez disso os bois formam manada” (DÖBLIN, 1995, 425). E essa
conversão final de Biberkopf se transforma numa importante proposta de
negação das grandes teorias e sua substituição por uma nova utopia,
proposta por Biberkopf (e Döblin): os olhos abertos, o pragmatismo
político e a solidariedade humana. A crítica contida na obra de Döblin
não restringe a validade da política: o homem não se salvará sozinho.
Sua crítica é contra as ideologias: essas sim, as grandes opressoras. E
Berlin Alexanderplatz assim se demonstra como uma fábula (e assim,
uma narrativa com fundo pedagógico e exemplar) sobre um homem
que acreditava nas ideologias.
Uma pedagogia fabulosa
Assistir a isso valerá a pena para muitos que, como Franz Biberkopf, habitam uma pele humana e com os quais acontece o mesmo que a Franz Biberkopf, isto é, querer mais da vida do que pão com manteiga.
(Berlin Alexanderplatz Alfred Döblin).
A advertência inicial de Döblin nos dá noção da dimensão
“didática” desta obra. Dedicada a todos que “habitem uma pele
humana”, principalmente aos que “desejem um pouco mais que pão e
204
manteiga”. As características que se destacam em Franz são sua
humanidade e sua ambição de uma “vida melhor”. O desejo de
conforto material e ascensão social e sua esperança depositadas nas
utopias fazem dele uma vitima das vontades políticas alheias. A trajetória
de Franz demonstra-se assim como uma advertência dos perigos a que
se expõe o ser humano que não faz uso de senso crítico ao ser
apresentado às ideologias e propostas coletivas de felicidade. A
alienação de Franz (seu maior pecado) se representa desde a forma
como vivencia sua participação na I Guerra (da qual desconhece as
razões), até o momento em que segue Reinhold cegamente, negando-
se a perceber que ele não quer seu bem.3 Sua cegueira, seu desejo de
uma fantasia redentora fazem dele um alvo fácil de quaisquer discursos
de sucesso. Sua incapacidade de ver além das palavras, sua
credulidade ambiciosa, são os grandes responsáveis pela Via Crucis que
se representa na narrativa de Berlin Alexanderplatz.
A primeira estação do calvário de Biberkopf será a ajuda vinda da
classe mais desconsiderada entre todas; Biberkopf é salvo por judeus. E
mais – além de ajuda, eles lhe dão um conselho: Franz precisa aprender
a ver a realidade. Um deles lhe conta uma história sobre um rapaz
muito esperto (Zannowich) que se dá muito bem na vida, graças à sua
inteligência. É a encenação da ideologia liberal, que Franz conhece e
admira, apesar de não saber o nome.
Há neste trecho, um “mise-en-abyme” para o desenrolar da obra:
a separação entre a fabula que o judeu narra (o que é dito, a f icção) e o
seu comportamento (o que se vive, a realidade). Esse homem sabe
diferenciar aquilo que se diz, daquilo que se vive, histórias e realidade.
Portanto, mais que a ajuda que prestam a Franz em um momento de
necessidade, os judeus lhe dão um conselho que será a chave de saída
para o labirinto que é sua vida: “o principal no ser humano são seus
olhos e pés. É necessário ver o mundo, e caminhar até ele” (DÖBLIN, 1995,
18). Este paralelismo está sempre presente na trajetória vivida por Franz:
há que escolher entre a f icção representada por uma ideologia que
3 Franz é alienado porque acredita nas ideologias que lhe são propostas, sem questionamento.
205
acena com promessas vãs e a realidade de algo que realmente lhe
seria benéfico. Mas durante quase toda a obra Biberkopf é incapaz de
reconhecer a diferença entre eles.
A segunda estação de seu calvário será representada por sua
adesão ao liberalismo. Com seu amigo Meck, começa a frequentar as
reuniões de comerciantes, em que recebe uma carteirinha e lhe
prometem um grande destino. Saindo dali como possível futuro grande
comerciante, Inicia a carreira de vendedor de gravatas ambulante, que
cedo se demonstra pouco rentável. As gravatas serão substituídas pela
cafetinagem que também não resulta. Mesmo assim, Franz acredita no
sucesso do modelo liberal ainda que perceba a política como algo
distante: “o que um homem como nós tem a ver com a justiça, polícia e
política?” (DÖBLIN,1995, 58)
Após curta temporada no modelo liberal entre os negócios de
gravatas e de sexo, Franz vê fracassar sua fé no livre comércio e
individualismo e abraçará o nazismo. O episódio é curto e se revela pela
narrativa de reuniões e o uso da braçadeira. Também não será melhor
esse período da sua vida e, por f im, ele se envolve com o comunismo,
que acarretará experiências de perseguição e violência política. Franz
passa por todas as ideologias de sua época sem grandes avanços. A
subclasse a que pertence Franz, e seu mundo representado pela
Alexanderplatz, dão a perceber o horizonte daqueles personagens que
vivem de maneira especular com o “grand monde”.
Indicial dessa situação é o fato de que as notícias oficiais
permeiam a história com a fatuidade da ficção. O isolamento ideológico
dos habitantes da Alexanderplatz tornam-nos indiferentes aos
acontecimentos da superestrutura, por quem são igualmente ignorados.
Noticias sobre o dirigível de Hindenburg, sucessos tecnológicos e políticos
realizados pelos pactos internacionais, a mobilização sutil para a
próxima Guerra, nada disso interfere no dia-a-dia pantanoso dos
berlinenses da Alexanderplatz. A realidade reside nas coisas que Franz
escuta, nas histórias que lhe contam. A obra é uma fabula sobre um
homem que acreditava naquilo que lhe diziam. Franz será vitimado por
206
sua boa vontade, até chegar ao paroxismo da dúvida. Daí renascerá
para a solidariedade.
“Enfim, é mais agradável e melhor estar com os outros”
Não se deve dar tanta importância a si mesmo. É preciso escutar os outros. Quem lhe diz que o senhor é tão importante? Deus não deixa ninguém cair de Sua mão, mas há outras pessoas no mundo.
(Berlin Alexanderplatz Alfred Döblin)
Após atravessar todas as possibilidades ideológicas propostas por seu
tempo – enquanto ilustra as flutuações do povo alemão do entre guerras
por entre elas – Franz visualiza outro caminho: a solidariedade, que lhe foi
proposta no inicio da narrativa pelo gesto bondoso do “judeu ruivo”. A fábula
se encerra quando Biberkopf a reconhece como válida e como única saída
possível (DÖBLIN: 1995, 425)
Muita desgraça vem do fato de se andar sozinho. Quando
há muitos, a coisa é diferente. A gente precisa acostumar-se
a escutar os outros, pois o que os outros dizem também me
diz respeito. Aí percebo quem eu sou e o que posso me
propor. Ao meu redor e por toda parte se luta a minha luta,
preciso prestar atenção, antes que note, chegou a minha
vez.
Nesse momento Biberkopf vivencia uma revelação, em que percebe como
saída, não o projeto imposto em sentido vertical, mas a caminhada
construída a partir da experiência cotidiana e o diálogo entre as pessoas,
que se deve construir na prática diária. Só então ele consegue perceber o
valor das práticas solidárias ocorridas ao longo da narrativa, justamente os
momentos mais belos, sempre personificados por personagens de quem
Franz recebe comiseração e ajuda e a quem pouco valoriza: primeiro o
judeu. Depois Meck, Eva, e Herbert. Por fim Mina: são os momentos em que a
narrativa da vida de Franz se colore. Mas ele não consegue perceber isso, e
apenas segue as más influencias de Willi e Reinhold, que lhe parecem mais
sedutores, justamente porque lhe dizem aquilo que ele quer ouvir.
Prometem-lhe a glória que ele acredita ser seu destino e direito. E, no
207
entanto, após seguir as ficções, políticas ou não, que lhe seduzem ele vai
despertar para a última grande ficção, que Döblin chama de “revelação”69.
Franz Biberkopf morre para a vida que levava e renasce mais crítico. Tem
agora olhos e pés, como lhe propusera o “judeu ruivo”, e pretende usá-los. A
hora da batalha pode se aproximar a qualquer momento e ele estará
preparado – junto com os outros. Diferentemente da postura das grandes
ideologias, o marxismo e o nazismo, que levarão à cegueira e à guerra,
Franz crê agora que é preciso permanecer junto, porém crítico. Franz
adivinha que uma guerra se aproxima. E percebe que é preciso estar
preparado: mas não como gado. Para Franz, os soldados que perderam a
vida e/ou partes do corpo, na Primeira Guerra, se assemelhavam a bois indo
para o matadouro: não sabiam porque lutavam. Estavam fascinados pela
vaidade de defender a pátria. Mas Franz percebe que a luta (a Segunda
Guerra) se aproxima e que todos são responsáveis: “Se houver guerra e me
convocarem e eu não souber porque, e a guerra também existir sem mim,
serei culpado e será bem feito para mim” (DÖBLIN: 1995, 425).
Há algo de existencialismo neste ideário döbliniano, aproximando-se de
Albert Camus na crença sobre a responsabilidade que o ser humano tem
em relação aos seus semelhantes, como também pela proposição de uma
utopia redentora em que o humanismo se afirma como valor. Ele chega
admitir que há uma “linha filosófica, até mesmo metafísica” em sua obra
(DÖBLIN: 1995, 429). Isto se revelará durante e, principalmente ao final da
obra. Temas como a questão sacrificial pelo bem comum, a noção da vida
humana como o vale de lágrimas são marcas de uma a metafísica religiosa
subjacente a toda a obra, proposta como caminho alternativo às grandes
ficções políticas. Descrente de todas as utopias, Döblin só considera possível
uma ressurreição através do amor universal entre os homens, algo como um
anarquismo cristão.
Conclusão
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
69 A escolha desse termo é bem clara, uma vez que o conceito de revelação remete a uma experiência religiosa.
208
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
(Mãos dadas – Carlos Drummond de Andrade)
A sofisticação da narrativa e a crítica às utopias políticas, aliada à crueza da
representação da realidade, presentes à obra Döbliniana, seriam
justificativas suficientes para a relativa frieza da recepção dos leitores de sua
época. O realismo explicito da surrealidade cotidiana da miséria alemã do
entre-guerras, as insinuações sobre uma possível guerra próxima; a
revelação da incontornável hostilidade entre nazismo e comunismo; a
desmistificação das ideologias como supostas libertadoras e a denúncia de
sua verdadeira face como formas de controle, eram proféticos demais para
serem compreendidos – e não foram.
Sabemos hoje da triste veracidade de todas as “previsões” de Döblin. Isto só
confirma nossa afirmação da “parabolicidade” do autor em relação às
questões, por vezes impalpáveis, de sua época. E mais: é interessante
perceber que Döblin tem ainda muito a nos dizer. Isto porque as ideologias
totalitárias, não só nunca deixaram de dominar o cenário político, como hoje
vivem perigoso recrudescimento: mais especificamente o nazismo (na
Europa), o “socialismo real” na Rússia entre tantos “ismos”, aliados a uma
super nova alienação “internética” expressa pelo “autismo narcisista” das
redes sociais, cujos efeitos ainda estão por se conhecer e que não apenas
reproduzem como amplificam a cegueira biberkopfiana.
Não temos tanto direito, porém à justificativa da ingenuidade de Franz
Biberkopf. Tanto quanto o protagonista de Berlin Alexanderplatz, temos hoje
até mais conhecimento e experiência do uso perverso dessas utopias, a
ponto de podermos afirmar com ele que: “Sabemos o que sabemos, e
pagamos caro por isso” (DÖBLIN, 1995,426). O século XXI possui a experiência
da geração de Franz e ainda mais, embora pareça caminhar de olhos
nada abertos ... Nesse ponto vale recuperar essa experiência e aprender
com a fábula döbliniana que “As palavras rolam ao nosso encontro, temos
de nos prevenir para não sermos atropelados. ... Não aposto em nada desse
mundo. Pátria amada, descanse, tenho os olhos abertos e não caio mais
nessa.”(DÖBLIN, 1995,426)
209
REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. Documentos de cultura, documentos de barbárie. Escritos escolhidos, sel. e org. por Willi Bolle. São Paulo: Cultrix/Edusp,1986. CORNELSEN, Élcio. O Conceito de ‘Kinostil’ e o princípio de montagem no romance BERLIN Alexanderplatz, de Alfred Döblin”. In: Aletria. Revista de estudos de literatura, Belo Horizonte/ UFMG-FALE, n 8: “Literatura & Cinema”, Dezembro de 2001, p165-171. DÖBLIN, Alfred. Berlin Alexanderplatz. A história de Franz Biberkopf. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. GAY, Peter. A cultura de Weimar. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1978. HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos – O breve século XX. São Paulo: Cia das Letras, 1995. HOWE, Irwing. A Política e o romance. São Paulo, Perspectiva, 1998. NUNES, Benedito. “Narrativa histórica e narrativa ficcional”. In. RIEDEL, Dirce Côrtes (Org.). Narrativa: ficção e história. Rio de Janeiro: Imago, 1998.