BEZERRA DA SILVA: COTIDIANO E CRIMINALIZAÇÃO DOS MORROS
CARIOCAS NAS DÉCADAS DE 1980 e 1990.
EDER APARECIDO FERREIRA SEDANO1
O presente trabalho, que se concretizará em dissertação de mestrado, tem o
intuito de pesquisar o cotidiano dos morros cariocas, nas décadas de 1980 e 1990,
através da problematização da produção musical do cantor e compositor Bezerra da
Silva. Entre outras questões, sua obra expõe a representação do cotidiano de sujeitos
históricos - os moradores dos morros cariocas - que até então, eram praticamente
ignorados pela historiografia.
O resgate da história dos chamados “excluídos da história”, através da pesquisa
de seu cotidiano, se faz necessário para recuperar as memórias, os questionamentos e as
identidades dos setores sociais marginalizados. Cumpre lembrar, que até recentemente o
campo de estudos históricos, seus temas e objetos de estudo eram monopolizados pelos
setores economicamente hegemônicos, algo que vem sendo superado, desde a chamada
“crise dos paradigmas”, que ocorreu ao final da década de 1960 e possibilitou o
processo de descentralização dos sujeitos históricos:
[...] Tiveram como preocupação abrir trilhas renovadoras, desimpedidas de
cadeias sistêmicas e de explicações causais, criar possibilidades de
articulação e inter-relação, recuperar diferentes verdades e sensações,
promover a descentralização dos sujeitos históricos e a descoberta das
histórias de gente “sem história”, procurando articular experiências e
aspirações de agentes aos quais se negou lugar e voz dentro do discurso
histórico convencional. Nessa perspectiva, os estudos do cotidiano passaram
a atrair os historiadores desejosos de ampliar os limites de sua disciplina, de
abrir novas áreas de pesquisa e acima de tudo de explorar as experiências
históricas de homens e mulheres cuja identidade foi tão frequentemente
ignorada ou mencionada apenas de passagem. (MATOS, 2014: 24)
*1 Mestrando do Programa de Pós- Graduação em História Social da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, bolsista do programa CAPES. Orientadora: Maria Izilda Santos de Matos.
2
Nas décadas de 1980 e 1990, a população brasileira vivenciou grandes
problemas econômicos e sociais, em especial a população de baixa renda, (onde se
incluem os moradores dos morros cariocas, objeto de estudo da presente pesquisa). Essa
população foi atingida por problemas derivados do contexto político, social e
econômico mencionado, entre eles podemos citar as altas taxas de desemprego e
inflação, a falta de serviços públicos básicos e de assistência social. (MARTUSCELLI,
2005:21-22)
Contemporâneo ao período citado, temos como destaque a figura de Bezerra da
Silva, um artista que não foi “nem herói e muito menos santo”. O músico José Bezerra
da Silva nasceu em 1927 na cidade de Recife (PE), onde passou sua infância e parte da
juventude. Desde cedo se interessou por música, mesmo repreendido por sua mãe e por
sua família, que não queriam que ele aprendesse a tocar nenhum instrumento. Devido a
sua teimosia, aprendeu a tocar trompete (o primeiro instrumento) escondido da família,
que queria que ele seguisse carreira na marinha. (VIANNA, 1999: 14)
Seguindo o conselho dos familiares, Bezerra da Silva conseguiu ser
selecionado para fazer parte da marinha mercante, mas após um desentendimento com
um oficial, que lhe assediou sexualmente, teve a carreira militar finalizada
prematuramente. Consequentemente, foi criticado por seus familiares. Aborrecido
decidiu embarcar clandestinamente em um navio com destino à cidade do Rio de
Janeiro, em busca do pai, que também era da marinha mercante e o havia abandonado
junto de sua mãe, durante a infância.
Bezerra encontrou seu pai, mas não foi bem recebido e, depois de entrarem em
atrito, resolveu viver sozinho na cidade. Para sobreviver, arrumou trabalho na
construção civil e esporadicamente fazia participações na Rádio Clube do Brasil, como
instrumentista. Durante alguns anos enfrentou uma vida de privações, morando nas
obras em que trabalhava. (Ibidem, p.16)
3
Iniciou a criação de suas músicas em 1959, compondo cocos2, em parcerias
com outros artistas, não atingindo o esperado sucesso de vendagem e repercussão
midiática nos primeiros discos. Só com o lançamento da série “Partido Alto Nota 10”, a
partir de 1977, começou a encontrar o seu público, curiosamente, nesse momento, o
repertório dos seus discos passou a ser abastecido por autores anônimos oriundos dos
morros cariocas e da baixada fluminense (alguns usando codinomes para preservar a
clandestinidade).
A partir de então, Bezerra da Silva assumiu um personagem, uma espécie de
persona3 – de “bom malandro”, “embaixador das favelas” – e, para formar o seu
repertório, passou a percorrer os morros cariocas e a baixada fluminense, com um
gravador de fita K7, procurando compositores e sambas que lhe interessassem, nas
biroscas, botequins e rodas de samba. Sambistas que eram conscientes de que Bezerra
da Silva não passava nenhum compositor para trás, ao contrário, tinha o prazer de
destacar a autoria e o valor dos compositores, além de pagar corretamente os seus
direitos autorais. (Ibidem, p. 30-40)
Depois de recolher esses sambas, Bezerra da Silva fazia alterações, arranjos
(cabendo lembrar que era músico profissional) e uma seleção dos sambas que iria
gravar. Bezerra rejeitava os sambas com temas românticos e amorosos, privilegiando os
temas críticos e de protesto, como a representação do cotidiano dos morros cariocas, da
baixada fluminense e do cárcere. Incluindo temáticas como o racismo, a malandragem e
a ascensão do narcotráfico, sempre ligados ao contexto citado. Coletadas de
compositores oriundos das camadas populares da sociedade, as músicas interpretadas
por Bezerra da Silva compunham uma espécie de sociologia de um Brasil urbano.
(Ibidem, p. 154-155)
2 Dança de roda, geralmente com passo binário, ritmada por música cantada em coro que responde ao
cantor, denominado coqueiro, e acompanhada por instrumentos de percussão. (LOPES, 1992: 34) 3 “O conceito de persona tem origem na literatura, delimitando quem está falando numa obra de ficção.
Essa visão sugere que o poeta sempre assume um papel- a persona poética- mesmo quando está falando
de si mesmo. Eduard T. Cone (apud. 1974:5) transpôs o conceito de persona para a música” [...]
[...] “Cone então identifica o cantor com a persona vocal, ou protagonista numa canção, e é quem carrega
o conteúdo poético, ou seja, a voz do poeta”. (Org. MATOS; TRAVASSOS; MEDEIROS, 2008:134)
4
Em sua carreira artística, Bezerra da Silva foi duramente atacado por parte da
imprensa e dos críticos musicais. Sendo chamado de “cantor de bandidos”, acusado de
que suas músicas os “defendiam”, mas contrário disso, como o próprio artista afirma,
elas tinham o intuito de conscientizar as pessoas para não virarem criminosas,
destacando que o “verdadeiro malandro é trabalhador” e o verdadeiro bandido faz parte
da elite, sendo representado pelos políticos corruptos, ao quais Bezerra denominava de
“ladrões de gravata”.
“Então, como eles dizem a realidade, que dói, então eles dizem que eu sou
cantor de bandido, por que os autores que escrevem pra mim são favelados,
são não sei o que. O Bezerra é cantor de bandido, idolatrando marginal, é
do lado, é defensor de bandido. Eu digo, quem defende bandido é advogado,
juiz né”? 4
Ao final de sua carreira, antes de falecer (em 2005, aos 77 anos), Bezerra da
Silva obteve o reconhecimento do seu talento, alcançando uma grande vendagem de
discos e vendo músicas do seu repertório cantadas e regravadas por diferentes artistas,
como “Jorge Ben Jor” “Marcelo D2” e as bandas “O Rappa” e “Barão Vermelho”.
Algumas de suas músicas tornaram-se trilhas sonoras de novelas e programas de TV e
após sua morte, dada a atualidade dos temas por ele cantados, sua obra ainda manteve
grande representatividade na sociedade brasileira.
A obra de Bezerra da Silva se inseria no contexto citado, como uma forma de
protesto, como denúncia contra a precariedade vivida. Mais do que isso, expressava a
visão de mundo, os anseios, os descontentamentos, o cotidiano e a resistência dos
moradores e dos próprios morros. Suas canções caracterizavam-se como uma das
“paisagens sonoras” da cidade do Rio de Janeiro.
4 Entrevista de Bezerra da Silva - Documentário “Onde a Coruja Dorme”, Márcia Derraik e Simplício
Neto, Antenna & TV Zero, Rio de Janeiro, Brasil, 2006.
5
“As cidades não são só caracterizadas e identificadas pelos seus ícones;
possuem marcos de outras memórias peculiares, diferenciadas e
multifacetadas, como múltiplos sons, diferentes vozes, idiomas, sotaques e
canções que se constituem enquanto “paisagens sonoras”.
Estas sonoridades, e em particular as canções, apresentam-se como um
desafio de pesquisa instigante, já que por muito tempo constituiu um dos
poucos documentos sobre memórias relegadas ao silêncio, manifestações de
aspectos da vivencia cotidiana, urbana e particularmente das experiências
afetivas de seus produtores e ouvintes”. (MATOS, 2007: 164)
Bezerra da Silva assumiu o papel de “cronista do povo sofredor”, “porta-voz da
favela e dos favelados”, vanguardista de uma população excluída, marginalizada, que
sempre sofreu calada e encontrou em Bezerra da Silva um canal para se expressar.
Bezerra tinha conhecimento musical, um pensamento crítico e, junto a isso, possuía
contatos com gravadoras, empresários e músicos, que lhe abriram as portas para o
mercado musical brasileiro.
“Na mídia, nos sambas biográficos e no relato de história de vida, Bezerra
constrói uma identidade de “bom malandro” e delineia um personagem – uma espécie
de herói sofredor, mas vencedor, em uma sociedade injusta, e se autoproclama o
“embaixador da favela” – porta-voz dos excluídos e marginalizados”. (VIANNA,
1999:15)
Mesmo possuindo autorias diversificadas, foi possível constatar que alguns
temas se repetem nos sambas cantados por Bezerra da Silva, conclui-se que esses temas
são representações do cotidiano de vida dos moradores dos morros cariocas e da
baixada fluminense. O tema que possui maior repetição em sua obra é o da
criminalização, como nos mostra a letra do samba “Vitimas da Sociedade de 1985”:
Se vocês estão a fim de prender o ladrão
Podem voltar pelo mesmo caminho
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho
O ladrão está escondido lá embaixo
Atrás da gravata e do colarinho
Só porque moro no morro
A minha miséria a vocês despertou
A verdade é que vivo com fome
Nunca roubei ninguém, sou um trabalhador
6
Se há um assalto a banco
Como não podem prender o poderoso chefão
Aí os jornais vêm logo dizendo que aqui no morro só mora ladrão [...] 5
Na letra desta música discute-se a criminalização dos moradores dos morros e
favelas, que no Brasil - ao contrário das pessoas de maior poder aquisitivo - são presos
por pequenos delitos, muitas vezes injustamente. A criminalização dessa população é
um exercício de controle autoritário, que discrimina as populações afrodescendentes e
as camadas pobres da sociedade brasileira.
O cotidiano de repressão e criminalização nos morros e favelas é decorrente do
processo histórico brasileiro. O ranço racista e escravocrata originário de quase quatro
séculos de escravidão, se mantém até os nossos dias. Um ideário excludente foi
assimilado ideologicamente por parte da população brasileira, sobretudo pelas elites e
pelo aparato policial. Esse ideário é pautado em um discurso jurídico-científico,
legitimado por um “consenso social”, que possibilita “a hegemonia burguesa”, em
detrimento das classes subalternas do nosso país. “O crescimento da população
carcerária, por conseguinte, seria um indicativo da ampliação de categorias
criminalizadas sempre em nome da manutenção da ordem pública, um demonstrativo de
que agora a repressão se volta para os pequenos delitos, em sua maioria, voltados contra
o patrimônio”. (NEDER, 1995: 17-18)
Outra questão relacionada à criminalização das populações de baixa renda é a
seletividade do sistema penal brasileiro, ou “extermínio ideológico”, um discurso
justificador de práticas racistas e xenofóbicas de “limpeza social”, que no Brasil volta-
se para as populações negras, pobres e nordestinas, em sua grande maioria, moradores
de favelas e jovens do gênero masculino. Essas políticas penais excludentes
contribuíram para o aumento da população carcerária brasileira nas últimas décadas
(outros dois temas recorrentes na obra de Bezerra da Silva), formando as chamadas
5 Crioulo Doido e Bezerra da Silva (Comp.). Vítimas da Sociedade. LP “Malandro rife”. Lado 2, faixa 2.
São Paulo: RCA, 1985.
7
“sociedades disciplinares”, visto que o sistema penal serve como um mecanismo de
controle social sobre “a massa indisciplinada”. (FOUCAULT, 1987: 54)
Mesmo sendo vitimas do controle social, os moradores dos morros não
aceitavam a dominação de forma passiva, ao contrário disso, resistiam à ordem social
estabelecida, ou se revoltando contra as leis e o poder dominante ou astuciosamente,
utilizando-se de táticas para burlar a ordem repressora da polícia e do Estado.
Personagem marcante na obra de Bezerra da Silva, a figura do malandro é apresentada
de forma diversa ao malandro típico da década de 1930 - alguém que era alheio ao
trabalho (MATOS, 1982) - ele é apresentado como um trabalhador de baixa renda, que
consegue resistir ao descaso do Estado, à opressão dos policiais e dos traficantes, sem
sucumbir ou virar bandido”. (SOUSA, 2009: 82)
O malandro descrito na obra de Bezerra da Silva representa uma parcela dos
moradores dos morros cariocas e da Baixada Fluminense, pessoas que lutam
diariamente para sobreviver, enfrentando dificuldades como a criminalização, o
desemprego, a miséria e a falta de assistência do Estado. A música “Malandragem dá
um tempo”, apresenta a tensão existente entre a repressão do Estado e a resistência
diária do cotidiano:
Refrão:
Vou apertar
Mas não vou acender agora
Vou apertar
Mas não vou acender agora
Eh! Se segura malandro
Prá fazer a cabeça tem hora
Se segura malandro
Prá fazer a cabeça tem hora...
Eh, você não está vendo
Que a boca tá assim de corujão
Tem dedo de seta adoidado
Todos eles afim
De entregar os irmãos
Malandragem dá um tempo
Deixa essa pá de sujeira ir embora
É por isso que eu vou apertar
Mas não vou acender agora... ihhhhh!
Refrão:
8
É que o 281 foi afastado
O 16 e o 12 no lugar ficou
E uma muvuca de espertos demais
Deu mole e o bicho pegou
Quando os home da lei grampeia
O coro come a toda hora
É por isso que eu vou apertar
Mas não vou acender agora...ihhhhh
Refrão:
É que o 281 foi afastado
O 16 e o 12 no lugar ficou
E uma muvuca de espertos demais
Deu mole e o bicho pegou
Quando os home da lei grampeia
O Coro come a toda hora
É por isso que eu vou apertar
Mas não vou acender agora...ihhhhh!6
A interpretação desta composição permite perceber a tensão existente, entre o
malandro do morro que quer fazer uso da canabis sativa, - droga ilícita mais comumente
chamada de “maconha” (fazer a cabeça)- e a repressão do Estado, representado pela
polícia (os homens da lei) e pelos delatores (corujão, essa pá de sujeira) que moram no
morro e de alguma forma se identificam com os ideais e a repressão do Estado. A
repressão apresentada contrasta com as táticas e formas de resistência usadas pelos
moradores dos morros, que na música se fazem perceber pela perspicácia e pela
comunicação gestual entre os malandros, que “necessitam esperar” o momento certo
para fazer uso da droga.
A letra ressalta a ideia de que “para fazer a cabeça tem hora”, e a hora que seria
apropriada para consumir a maconha seria aquela em que não têm policiais e delatores
por perto. Essa forma de agir é também uma forma de resistir, algo essencial para a
proteção e para a sobrevivência dos malandros e dos demais usuários de maconha nos
morros. Essa forma de resistência, aparece na música com uma das poucas formas de
se defender contra uma polícia violenta e agressiva, (quando os homem da lei grampeia,
o coro come toda hora), e contra uma legislação criada para preservar o domínio
6 Popular P, Adezonilton e Moacir Bombeiro (Comp.) Malandragem dá um tempo. LP “Alô
Malandragem, Maloca o Flagrante”. Lado 1, faixa 1. São Paulo: RCA, 1986.
9
econômico e politico das elites (É que o 281 foi afastado, o 16 e o 12 no lugar ficou, e
uma muvuca de esperto demais, deu mole e o bicho pegou).7
A partir do que a composição acima apresenta, pode-se concluir que existe uma
“tática de resistência cotidiana” dos moradores dos morros cariocas. Táticas que se
aproximam da concepção de “táticas e estratégias”, muito trabalhada nas ciências
humanas. Segundo essa concepção, os sujeitos ordinários (pessoas comuns) se movem
no campo das estratégias hegemônicas (campo do inimigo), e com as “astúcias” e o
“olhar panóptico” (observação de oportunidades) podem resistir à dominação imposta
pelos setores dominantes e hegemônicos, nas praticas cotidianas, chamadas de
“maneiras de fazer”:
“Chamo de “estratégia”, o calculo das relações de forças que se torna
possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável
de um “ambiente”. Ela postula um lugar capaz de ser circunscrito como um
próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestação de suas relações
com uma exterioridade distinta. A nacionalidade política, econômica ou
cientifica foi construída segundo esse modelo estratégico”.
“Ao contrário, pelo fato do seu não lugar, a tática depende do tempo,
vigiando para “captar no voo” possibilidades de ganho. O que ela ganha,
não o guarda. Tem constantemente que jogar com os acontecimentos para
transformar em “ocasiões”. Sem cessar o fraco deve tirar partido de forças
que lhe são estranhas. Ele o consegue em momentos oportunos onde combina
elementos heterogêneos .[...]
[...] mas a sua síntese intelectual tem por forma não um discurso, mas a
própria decisão, ato e maneira de aproveitar a “ocasião”.
Muitas praticas cotidianas (falar, ler, circular, fazer compras ou preparar
refeições etc.) são do tipo tática. E também, de modo mais geral, uma grande
7 Segundo a declaração do compositor Adezonilton, no documentário “Onde a Coruja Dorme” esse
trecho da música faz uma crítica a modificação do código penal 281 para os códigos penais 16 e 12 na
Constituição brasileira. O código 281 punia da mesma forma o usuário e o traficante de drogas, enquanto
o código 12 pune com prisão o traficante “que em sua maioria são membros das classes menos
favorecidas” e o código 16, privilegia os usuários, não os penalizando com a prisão - lembrando que uma
parcela dos usuários de drogas faz parte da elite, possuindo relações de amizade e poder aquisitivo para
pagar bons advogados que lhes possibilitam se livrar inclusive do registro policial, e ao contrário disso os
usuários das classes menos favorecidas são vitimas de torturas e agressões por parte das autoridades-
Documentário “Onde a Coruja Dorme”, Márcia Derraik e Simplício Neto, Antenna & TV Zero, Rio de
Janeiro, Brasil, 2006.
10
parte das “maneiras de fazer”: vitórias do “fraco” sobre o mais “forte” (os
poderosos, a doença, a violência das coisas ou de uma ordem etc.), pequenos
sucessos, artes de dar golpes, astúcias de caçadores, mobilidades de mão de
obra, simulações polimorfas, achados que provocam euforia, tanto poéticos
quanto bélicos”. (CERTEAU, 1994: 45)
As táticas se fazem nas práticas cotidianas, “no dia-dia” e também no campo
cultural, dos setores dominados. Essa abordagem é fundamental para a problematização
da resistência e do combate que era exercido nos morros cariocas, local onde os
moradores, sem possuir meios para expor suas queixas e problemas, os expunham, entre
outras formas, através dos sambas de protesto interpretados por artistas como Bezerra
da Silva.
As táticas de resistência cotidiana também eram visualizadas nos códigos
internos de convivência dos morros, constando em muitas músicas do repertório de
Bezerra da Silva. Esses códigos regulavam as formas de agir e a convivência entre os
moradores dos morros, contando entre eles os trabalhadores e mesmo os criminosos.
Parte dessas normas era imposta pelos criminosos, mas a maior parte foi construída
historicamente, através da experiência de vida dos habitantes dos morros, que
precisavam se autorregular e evitar a repressão e a violência impostas pela policia,
representante do Estado. Os códigos e normas de conduta dos morros aparecem no
repertório de Bezerra da Silva, geralmente na condenação da delação (caguetagem) e na
condenação dos delatores, como podemos observar na música “Língua de Tamanduá”:
Todo cagueta é safado e também tem
instinto de traíra, aí que ele arrumou
pro nosso irmãozinho, deu de bandeja
um bom malandro
Veja bem o que você fez
seu língua de tamanduá
tem gente pagando pelo que não fez
só porque o seu dedo não soube apontar
agora a malandragem já está sabendo
que você cagueta e vai lhe ripar
Você sabe bem
a lei que se aplica em qualquer caguete
11
quando seu dedo entra numa anzol
ele leva rajada ou entra no cacete
É e você já sentiu que a rapaziada
não está lhe aceitando
porque sua língua nervosa
tudo o que vê sai falando
E agora canalha a barra para você pesou
o seu nome já entrou na lista
dos condenados e a hora chegou, olha aí
vai levar eco pra deixar de ser delator
Eu falei!
vai levar eco pra deixar de ser delator[...] 8
Podemos verificar nesta letra, que a prática da delação era internamente
condenável dentro dos morros e favelas, ela ameaçava a regulação interna dos morros,
expondo a sua população à repressão e à condenação das autoridades. Por isso a delação
(caguetagem) era combatida, com castigos severos por parte dos líderes das
organizações criminosas que se alojavam nos morros, mas também faziam parte do
inconsciente coletivo, que se perpetuou de geração para geração entre os moradores.
Bezerra da Silva se auto intitulava “porta-voz” dos oprimidos e marginalizados,
narrando em suas músicas os anseios e as experiências de uma parcela da sociedade
carioca, que se viam representados pelos compositores musicais que encontravam no
trabalho artístico de Bezerra da Silva a única forma de se expressar. Pode-se entender a
obra de Bezerra da Silva agindo de forma a reforçar a identidade comum dos moradores
dos morros cariocas e atuando como um elo que fazia o intercambio entre a população
dos morros e o restante da sociedade, como podemos ver nesta entrevista de Bezerra da
Silva no documentário “ Onde a Coruja Dorme”:
“O Morro não tem voz, ele é somente atacado, mas não se defende. Como o
morro não tem direito a defesa, só tem direito de ouvir: marginal, malandro,
safado, acabou. Como é que ele vai falar”?
8 Valmir e Tião Miranda (Comp.) Língua de Tamanduá. LP “Alô Malandragem, Maloca o Flagrante”.
Lado 2, faixa 2. São Paulo: RCA Vik, 1986.
12
“Então o que é que faz os autores do Morro? Ele diz cantando, aquilo que
ele queria dizer falando, e eu sou o porta-voz.
E é o pessoal do Morro que escreve ou o pessoal da Baixada Fluminense.
Aquele que pega o trem quatro horas da manhã, cinco horas, aquele que
acorda três horas da manhã para trabalhar e ai bota um bocado de arroz e
feijão na marmita, aí vem e quando passa o lobisomem e toma” (...) 9
Conclui-se que a obra de Bezerra da Silva se insere historicamente, como uma
forma de representação do cotidiano vivenciado pelos moradores dos morros cariocas e
da Baixada Fluminense, nas décadas de 1980 e 1990. Sua obra age como uma forma de
crítica, denunciando os percalços e as dificuldades enfrentadas diariamente por essa
parcela da população. Entre esses percalços, algo que aparece latente em sua obra é a
criminalização de personagens – representações de cidadãos comuns - que muitas vezes
eram condenados injustamente ou arbitrariamente por um aparato policial e jurídico
voltado a consolidar a hegemonia das elites nacionais e marginalizar as camadas
populares da sociedade.
Contrariando a lógica hegemônica, as camadas populares não aceitaram a
criminalização de forma passiva, ao contrário disso, resistiram da forma que puderam.
Uma das formas possíveis de resistência para essa camada da população foi a arte e
dentro das artes mais difundidas nos morros cariocas nesse contexto, pode-se encontrar
a arte musical, com o samba ocupando um lugar privilegiado nas décadas pesquisadas.
Nas interpretações de sambistas como Bezerra da Silva, diversos compositores
encontraram um canal para expor suas representações do cotidiano, suas criticas e suas
formas de resistência, também encontradas nas táticas exercidas cotidianamente, nos
pequenos gestos, nas maneiras de fazer.
Referências Bibliográficas.
Livros:
9 Entrevista de Bezerra da Silva- Documentário “Onde a Coruja Dorme”, Márcia Derraik e Simplício Neto, Antenna & TV Zero, Rio de Janeiro, Brasil, 2006.
13
CERTEAU, Michael de. A Invenção do Cotidiano: 1 - Artes de fazer. Petrópolis, RJ:
Vozes, 1994.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.
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calango, chula e outras cantorias. Rio de Janeiro: Pallas, 1992.
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NEDER, Gizlene. Discurso Jurídico e ordem burguesa no Brasil. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995.
VIANNA, Letícia C. R. Bezerra da Silva: produto do morro. Trajetória e obra de um
sambista que não é santo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
Teses e Dissertações:
MARTUSCELLI, Danilo Enrico. A crise do Governo Collor e a tática do PT.
Dissertação (Mestrado em Ciência Política), IFCH/ UNICAMP, Campinas, SP, 2005.
14
SOUSA, Rainer Gonçalves. Bezerra da Silva e o cenário musical de sua época: entre
as tradições do samba e a indústria cultural (1970-2005). Dissertação (Mestrado em
História), FH/UFG, Goiânia, GO, 2009.
Documentário: DERRAIK, Márcia; SIMPLÍCIO NETO (Direção). Onde a Coruja
Dorme. Documentário. Rio e Janeiro: Antenna & TV Zero, 2006.