Camargo Guarnieri O nacionalismo essencial presente no Estudo nº 7
Por
Marina Ferraz
Universidade de Brasília Departamento de Múscia Brasília
Julho/2016.
“É fácil tocar qualquer instrumento musical: tudo o que
você tem a fazer é tocar a tecla certa na hora certa e o instrumento
se tocará sozinho.” (J. S. Bach)
Palavraschaves: Nacionalismo essencial, Mário de Andrade, Camargo Guarnieri, Estudo nº 7.
RESUMO: Este trabalho de conclusão de curso, busca esclarecer o que é o nacionalismo essencial
brasileiro, tendo como foco o Estudo nº 7 , de Camargo Guarnieri, trazendo à luz como
compreender a forma composicional, para que o pianista tenha apoio de como entender e
interpretar esta composição de Camargo Guarnieri.
Keywords: Essential nationalism, Mário de Andrade, Camargo Guarnieri, Study n. 7.
ABSTRACT: This paper completion seeks to clarify what is the essential Brazilian nationalism,
overlooking the Study nº 7 , bringing light to understand the compositional form, so that the pianist
has support of how to understand and perform this composition by Camargo Guarnieri.
Sumário
Introdução 1
1 Mozart Camargo Guarnieri e sua obra 3
2 O pensamento nacionalista de Mário de Andrade 8
3 A obra pianística de Camargo Guarnieri e o Estudo n.7 15
3.1 Citando algumas obras 17
3.2 Análise do Estudo nº 7 20
4 Considerações finais 28
Referências Bibliográficas 30
Anexo: Partitura do Estudo nº 7, Sem pressa Para Carlos Vergueiro
Compositor Camargo Guarnieri. 31
1
Introdução
Há mais ou menos dois anos atrás, ganhei de aniversário da minha mãe dois livros:
Estudos 1 a 5 e Estudos 6 a 10 do compositor Camargo Guarnieri. Minha mãe sempre soube
da minha admiração a Guarnieri, e do meu encanto perante as composições deste professor,
pianista, compositor e maestro. Estes dois livros compreendem os dez primeiros estudos de um
total de vinte. Até aquele momento eu já havia ouvido falar dos estudos e suas dificuldades, e
também havia escutado alguns deles através de sites na internet que me faziam deleitar nas
maravilhas melódicas e harmônicas que eu escutava, mas não tinha acesso a tais partituras. Eu
tinha muita vontade de tocar algum, ou melhor, qualquer um dos Estudos que chegasse em
minhas mãos.
Fiquei motivada pela beleza melódica, e das peças como um todo e também do desafio
técnico pianístico e musical dos estudos que se encontravam em minhas mãos. Percebi, porém,
que não seria possível estudálos inicialmente, pois faziase necessário resolver problemas
técnicos, como relaxamento dos dedos e pulso, adquirir força muscular nos dedos 4 e 5,
principalmente da mão direita, dosagem do peso no dedo 1 da mão direita e da mão esquerda,
entre outros, para conseguir um êxito ao tocar o Estudo n.7, que escolhi como ponto de partida,
por ser um estudo de andamento mais lento, e com menos problemas técnicos para resolver, e de
tão grande beleza melódico/harmônico no meu gosto pessoal, para o início do aprendizado dos
estudos do Camargo Guarnieri.
Encontrei também a necessidade de entendêlo harmonicamente, pois a falta de um
centro tonal definido e bem delineado, me dificultou a memorização e a execução no fraseado. O
encadeamento das frases mesmo que perceptíveis visualmente, quando tocadas na polirritmia
confundem a respiração entre uma e outra frase . O fato de ser uma peça polirrítmica também me
dificultou o aprendizado, pois são três linhas rítmicas independentes e interligadas ao mesmo
tempo. Me vi no desafio de como sobressaltar a linha rítmicamelódica sem perder a pulsação do
tempo que se confunde com as linhas intermediárias. Ainda há a questão da polifonia, que
mesmo havendo uma voz melódica principal bem definida, não exime as outras duas vozes de
serem importantes e de dialogarem com a melodia principal. Precisei aprofundarme no
2
conhecimento dos conceitos desenvolvidos no movimento nacionalista brasileiro para obter
melhor compreensão e trazer à tona um guia de como compreender da obra de Camargo
Guarnieri, que fora influenciado esteticamente por Mário de Andrade.
Todas essas questões citadas acima, além do desafio de superar problemas técnicos
anteriores a este estudo, e a necessidade de compreensão do que é o conceito de nacionalismo
essencial, me inspirou a tratar neste trabalho sobre como tocar, interpretar e entender como
Camargo Guarnieri trabalha o nacionalismo essencial em sua obra.
Para obtenção do entendimento e aquisição da técnica e interpretação pianística sob todas
essas questões, adotei como metodologia pesquisar o mentor estilístico de Camargo Guarnieri,
Mario de Andrade, fazendo uma busca de quais são os elementos do nacionalismo essencial,
tendo como foco o Estudo nº 7, além de buscar informações junto a pianistas brasileiros e os
professores de piano que fizeram parte da minha formação, de como abordar, tocar e interpretar
as composições do compositor em estudo.
Fiz o levantamento biográfico de Camargo Guarnieri, busquei em teses, artigos, livros e
documentos diversos, temas voltados ao nacionalismo e interpretação pianística da obra de
Guarnieri. Busquei mapear através da análise do ritmo, da polifonia e da polirritmia presentes na
obra em foco, o nacionalismo essencial.
O objetivo deste trabalho é o de trazer à luz sobre o tocar, o interpretar e entender como
Guarnieri trabalha a questão da polifonia e a polirritmia no Estudo n.7 Sem pressa Para
Carlos Vergueiro , além de responder o que é o nacionalismo essencial brasileiro, buscando
auxiliar os pianistas que querem introduzir os estudos do Camargo Guarnieri em seu repertório,
através do levantamento bibliográfico do Camargo Guarnieri, Mário de Andrade e o
nacionalismo essencial e os elementos estudados.
3
1 – Mozart Camargo Guarnieri e sua obra
O repertório pianístico brasileiro apresenta para o mundo, uma extensa gama de obras
nacionalistas, durante os séculos XX e XXI com uma variada utilização de linguagem
composicional tradicional ou experimental, com muitas tendências estilísticas, grande parte das
vezes com o sotaque nacionalista dos ritmos e melodias brasileiras.
Mesmo o piano sendo tradicionalmente um instrumento europeu, onde dificilmente
conseguimos dissociar sua imagem desse continente, tanto por sua sonoridade quanto pelo seu
enorme repertório produzido, nos faz refletir sobre a influência de tal repertório para a produção
pianística em outros países fora da Europa.
Mário de Andrade (apud SANTOS, Paulo; SOARES, Leandro Garcia, 2001, p.2), afirma
que as manifestações características da nacionalidade brasileira são as manifestações folclóricas
como o ritmo, a melodia, a polifonia, a instrumentação e a forma, sujeitáveis de elaboração culta,
ou seja, são possíveis de serem moldadas dentro das regras composicionais eruditas.
Este trabalho faz uma busca desses aspectos defendidos e definidos por Mario de
Andrade, em uma obra de Camargo Guarnieri intitulada Estudo n.7 , na tentativa de identificar os
elementos nacionalistas nesta composição.
Antes de analisar o Estudo , apresentamos um breve resumo biográfico de Mozart
Camargo Guarnieri e sua importância para o cenário musical pianístico e nacionalista de sua
época.
Segundo a biografia levantada por Marion Verthaalen ( 2001, p.20 ) , Mozart Camargo
Guarnieri, nasceu no dia 1 de fevereiro de 1907, Tietê São Paulo, filho de músico, iniciou seus
estudos de teoria musical aos dez anos de idade com o professor Virgínio Dias. Em 1922
mudouse para São Paulo com a família. Em 1924, Guarnieri começou seu estudo de piano com
Sá Pereira, por sua vez, havia estudado na Alemanha, na França e na Suíça entre 1900 e 1917 , e
teve como professor de contraponto, fuga, harmonia, orquestração e composição o regente
4
italiano Lamberto Baldi. e, posteriormente, com Ernani Braga. Com o italiano Lamberto Baldi
estudou composição e direção de orquestra de 1926 a 1930.
Curiosamente, Camargo Guarnieri, diferentemente de seus antecessores e
contemporâneos, começou seu estudo pela música brasileira, e não pela europeia, mesmo
sendo grande apreciador de Brahms, Bach, por quem teve devoção, Mozart que muito
apreciava e respeitava, tanto que não aceitava que colocassem seu primeiro nome, Mozart
Camargo Guarnieri, em capas de discos, ou mesmo programas de recitais, por reverência ao
grande mestre Wolfgang Amadeus Mozart (Site OSUSP) .
Do ponto de vista de Joseph N. Straus (1990, p.1),
...compositores do século XX incorporam elementos tradicionais não por preguiça
composicional e falta de imaginação, nem porque esses elementos se encaixam tão bem em sua
sintaxe musical póstonal, mas sim como uma maneira de lidar com sua herança musical.
Ainda segundo VERTHAALEN (op. cit., p.2123), Camargo Guarnieri foi exímio
pianista e compositor nacionalista modernista apaixonado pelas características da música
folclórica brasileira como o ritmo, a ginga, a diversidade cultural e melódica. Uma
personalidade que fez parte da formação de Guarnieri foi Mario de Andrade. Líder do
Movimento Modernista e intelectual no Brasil, que praticamente assumiu a responsabilidade
de orientálo esteticamente e culturalmente, já apontava o talento de Guarnieri ao público,
como grande promessa para a música erudita brasileira, na defesa do nacionalismo brasileiro.
Verthaalen (ibidem) prossegue na sua narrativa biográfica que, antes mesmo de 1920,
Guarnieri já havia apresentado as composições Dança Brasileira, Canção Sertaneja , as
Lembranças do Losango Cáqui e a Sonatina para piano , sendo a Sonatina para piano , obra
analisada por Mario de Andrade no sétimo volume das suas Obras Completas . Guarnieri foi o
compositor brasileiro que mais se destacou pelo conjunto da obra no nacionalismo brasileiro,
do qual foi ardente defensor.
Verthaalen (ibidem) afirma que não há como falar de Guarnieri sem citar a Semana de
Arte Moderna, conhecida como a Semana de 22. A nova geração de intelectuais no país nas
5
décadas de 1910 e 1920 se encontrou na necessidade de desvencilharse dos antigos moldes
estilísticos do século XIX que ainda se encontrava em voga no Brasil. Corriam boatos sobre as
novas tendências europeias, ainda na incerteza do rumo que seria tomado. O principal foco,
estava na literatura, porém na mesma época, Anita Malfatti, pintora, retornou da Europa
propagando as novas influências do cubismo, expressionismo e futurismo, causando alvoroço
e duras críticas por parte do escritor Monteiro Lobato, sendo o estopim para que a Semana da
Arte Moderna fosse realizada.
Foi após a Semana de 22, que Guarnieri intensificou sua produção composicional sob a
influência de Mario de Andrade.
Em 1930, aconteceu a Revolução Constitucionalista, quando Getúlio Vargas tomou o
poder, como chefe do governo provisório. Guarnieri foi então servir na defesa civil durante a
Revolução, e foi dessa experiência que surgiram algumas de suas composições, que lembram o
atonalismo. Ainda em 1930, após participar de uma audição para concorrer a uma bolsa de
estudos nos Estados Unidos, e ficara em primeiro lugar na classificação, mas que infelizmente
não se concretizou devido aos acontecimentos políticos da época e com a extinção da banca
avaliadora da audição, Guarnieri buscou um estilo mais vigoroso e menos óbvio em suas
composições. Deste período podem ser observadas as composições Choro Torturado para
piano e Sonatas para violino piano e violoncelo e piano . O compositor fazia uso dos
elementos folclóricos, mas não de suas melodias, o que poderia, segundo Mario de Andrade,
ser uma "potencial limitação" ( VERTHAALEN, Marion, 2001, p.2829).
Em 1935, Guarnieri se apresentou ao público como compositor e se afirmou em plena
maturidade musical. Apesar de suas músicas serem tonais, sua composição se confundiu com
o atonalismo. Não pretendemos abordar essa discussão sobre tonalismo e atonalismo, pois não
julgamos necessário entrar nesta questão neste trabalho.
Ainda sobre este concerto em 1935, Mario de Andrade discorre que Guarnieri já não
era mais prioritariamente nacionalista, que era característica da obra de VillaLobos, por
exemplo, e dentre outros compositores da mesma geração, mas sim um "nacionalista em
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continuação", ou seja, Guarnieri não se apoiava prioritariamente do popular, mas tinha nele o
seu firmamento estilístico ( VERTHAALEN, Marion, 2001, p. 3031).
Mario de Andrade no artigo publicado no Diário de São Paulo, em 24 de abril de 1935,
intitulado "Uma Sonata de Camargo Guarnieri", discorre:
...sua obra é, por esse caráter, uma obra exclusivamente da arte erudita, não apenas
funcionalmente, mas fundamentalmente erudita. E o Brasil se reconhece nela, não mais com a
objetividade violenta de um corpo, mas com uma precisão instintiva de alma.
O Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo, contratou Camargo Guarnieri em
1937, na época dirigido por Mário de Andrade, que em período anterior havia se tornado seu
principal amigo. No ano seguinte, em 1938, Guarnieri recebeu uma viagem para Paris pelo
Conselho de Orientação Artística do Estado de São Paulo, onde estudou regência de
orquestra e de coros com François Rühlmann, maestro da Orquestra da Ópera de Paris na
época; estudou contraponto, fuga, composição e estética musical com Charles Koechlin e
realizou uma audição de suas obras na série Revue Musicale . Em 1939, em decorrência da
Segunda Guerra Mundial, Guarnieri retornou ao Brasil ( VERTHAALEN, Marion, 2001, p.34).
Guarnieri realizou sua primeira viagem aos Estados Unidos em 1942, e realizou, em
1943, dois concertos: o primeiro a convite de Sergey Koussevitzky, quando dirigiu a
Orquestra Sinfônica de Boston, e o segundo, com a Orquestra League of Composers of New
York ( VERTHAALEN, Marion, 2001, pg. 42).
Ainda segundo Marion Verthaalen ( idem, p. 48), Guarnieri f oi assessor de assuntos
musicais do Ministério da Educação e Cultura entre 1956 e 1960, período em que elaborou
um plano de ensino de música no Brasil.
Além de todas as atividades arroladas, Guarnieri foi criador e diretor do Coral
Paulistano e idealizou o 1º Festival de Campos do Jordão. Foi ainda diretor da Orquestra
Sinfônica Municipal de São Paulo, regente titular e diretor artístico da Orquestra Sinfônica
da USP desde a sua criação, em 1975, e membro fundador da Academia Brasileira de
Música, da qual foi presidente.
7
Segundo o site da OSUSP, regeu as mais importantes orquestras estrangeiras. Foi
membro do júri dos mais importantes concursos internacionais, além de ter sido agraciado
com inúmeros prêmios, condecorações e medalhas, somando mais de cem títulos, nacionais
e estrangeiros, e ainda premiado em mais de dez concursos nacionais e internacionais de
composição.
Em 13 de janeiro de 1993, na cidade de São Paulo, com 85 nos de idade, veio a
falecer, meses após receber o "Prêmio Gabriela Mistral”, com o título de “Maior Compositor
Contemporâneo das Três Américas”, concedido pela Organização dos Estados Americanos
(OEA) em Washington EUA ( VERTHAALEN, op. cit., p. 57).
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2 – O pensamento nacionalista de Mário de Andrade
Em meados do século XIX, surgiu uma nova forma de estética no meio musical europeu.
Rapidamente, da Europa Ocidental se espalhou para o resto do continente europeu como um
suspiro de liberdade expressiva, em resposta à ópera italiana e à música instrumental alemã,
vinda de uma nova visão da cultura popular, pungente no almejo de ser escrita e tocada pelos
músicos eruditos daquela época. Surgia então o espírito nacionalista na música romântica. O
nacionalismo surgiu como um ímpeto em promover uma interação entre o artista e o meio social
em que estava inserido, através da construção de uma identidade musical entre o erudito e o
popular.
Compositores de várias as regiões da Europa como espanhóis, poloneses, húngaros,
russos, tchecos, escandinavos, compunham incessantemente sobre temas folclóricos, com ritmos
e melodias de seus países, traduzindo em inúmeros gêneros musicais como valsas, mazurcas,
polonaises, entre outros.
O nacionalismo vem representado pela escrita musical com temas típicos, apresentados
pelas células rítmicas, canções folclóricas, que por vezes são apresentadas com variações do
tema, procurando sempre a valorização nacional da musica produzida por seus cidadãos.
(SUGIMOTO, Luiz, 2004)
No Brasil, o nacionalismo no século XIX teve alguns representantes como Alexandre
Levy (18641892), Alberto Nepomuceno (18641920), Francisco Braga (18681945) e Barroso
Neto (18811941).
No início do século XX, o movimento modernista hasteava a bandeira da liberdade de
expressão contra as academias e o tradicionalismo, defendendo a modernização das linguagens
artísticas. O ponto culminante desse movimento no Brasil se deu na Semana de Arte Moderna,
em fevereiro de 1922. Na música teve como representante Heitor VillaLobos. Mario de Andrade
defende a corrente nacionalista com veemência, quando diz:
...todo artista brasileiro que no momento atual fizer arte brasileira é um ser eficiente, com valor
humano. O que fizer arte internacional ou estrangeira, se não for gênio, é um inútil, um nulo. E é
uma reverendíssima besta. (ANDRADE, Mário apud, SANTOS, Paulo; SOARES, Leandro, p. 1)
9
Nesse período da Semana de Arte Moderna, o compositor Camargo Guarnieri, estava no
início de sua ascensão. Nesta mesma ocasião, seu mentor intelectual e estilístico, no que se refere
ao nacionalismo musical brasileiro, Mario de Andrade, já influenciava o compositor e seus
colegas, Oscar Lorenzo Fernandez (18971948), Francisco Mignone (18971986), ao
"nacionalismo puro e verdadeiramente brasileiro". (SUGIMOTO, Luiz: 2014)
“Todo este sangue de mil raças
Corre em minhas veias
Sou brasileiro
Mas do Brasil sem colarinho
Do Brasil negro
Do Brasil Indio”
(MILLIER, Sérgio; apud RIBEIRO, Marcus; ALENCAR, Chico; CECCON, Claudius p. 80)
Mário de Andrade ponderou que nossa cultura provem de uma pequena parte ameríndia,
uma segunda parte, não muito vasta, mas considerável da cultura africana, e de grande parte
portuguesa. Considera uma pequena proporção para a influência espanhola e europeia. Reflete
que os novos estilos como o jazz e o tango argentino, também tiveram uma considerável
participação no processo cultural musical brasileiro (ANDRADE, Mário, 1972, p.25).
“O que a gente deve mais é aproveitar todos os elementos que concorrem para formação
permanente da nossa musicalidade étnica. Os elementos ameríndios servem sim, porque existe no
brasileiro uma porcentagem forte de sangue guarani. E o documento ameríndio para propriedade
de nossa mancha agradavelmente de estranheza e de encanto soturno a música da gente. Os
elementos africanos servem francamente se colhidos no Brasil porque já estão afeiçoados à
entidade nacional. Os elementos onde a gente percebe uma tal ou qual influência portuguesa
servem da mesma forma.” (ANDRADE, Mário, 1972, p. 29)
Antes de abordarmos sobre as características defendidas por Mário de Andrade, o autor
apresenta os principais aspectos que constituem as manifestações folclóricas, mas aponta quatro
importantes momentos históricos no desenvolvimento da história da música brasileira:
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1 Através dos jesuítas, quando fomos introduzidos a uma música universalmente religiosa, que
cumpria o objetivo social imposto pela igreja.
2 Quando do processo da independência colonial, descobrimos uma técnica aprimorada carregada
pelo gosto da elite burguesa, com pretensões internacionais, pois até então, os nossos compositores
buscavam o simples imitar dos modelos oriundos europeus.
3 VillaLobos, Lorenzo Fernandez, Francisco Mignone, Camargo Guarnieri como os
compositores preocupados com a nacionalização da música.
4 A música deixa de ser nacionalista, e passa a ser simplesmente nacional. (SANTOS, Paulo;
SOARES, Leandro, 2008 , p. 4)
Mário de Andrade também pondera que a música nacionalista brasileira passou por três
fases para adquirirmos a nossa linguagem nacional. Seriam elas:
1 Tese nacional: os compositores foram impostos a artificialidade musical, focada
ideologicamente para o estudo e o reconhecimento dos fundamentos que caracterizam a
brasilidade.
2 Sentimento Nacional: quando o compositor atinge uma progressão pessoal como consequência
dos estudos anteriores, proporcionando liberdade criativa “abrasileirada" em seu trabalho.
3 Inconsciência nacional: estágio estético livre, quando o sentimento pessoal junto com o trabalho
nacionalizante convergem em uma única linguagem, integralmente qualificada e estabelecida,
possibilitando o compositor uma espontaneidade criativa. (SANTOS, Paulo; SOARES, Leandro
2008 , p.2)
Essas três fases explicam que, para que o processo da composição nacional se desse
plenamente, o compositor teria primeiramente que assimilar o folclore fundamental para
trabalhálo no íntimo do idioma próprio do compositor, em pequenas obras, para atingir, através
da prática, a naturalidade inconsciente de estilização típica nacionalista. Dáse, então, o
nacionalismo essencial.. Podemos citar como exemplos de nacionalismo não reconhecível, mas
recriado e assimilado, algumas obras de Villalobos, como a série dos 14 Choros, Prole do Bebê
e Bachiana nº 9 , segundo Mario de Andrade. (SANTOS, Paulo; SOARES, Leandro, 2008, p. 3).
Ainda em Ensaio sobre a música brasileira (SANTOS, Paulo; SOARES, Leandro, 2008,
p. 3), Mário de Andrade discorre sobre as manifestações folclóricas como o ritmo, melodia,
polifonia, instrumentação e a forma, passíveis de elaboração culta.
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Ao analisar o ritmo, Mario de Andrade discorre:
Um dos pontos que provam a riqueza do nosso populario ser maior do que a gente imagina é o ritmo. Seja porquê os compositores de maxixes e cantigas impressas não sabem grafar o que executam, seja porquê dão só a sintese essencial deixando as sutilezas prá a invenção do cantador, o certo é que uma obra executada difere ás vezes totalmente do que está escrito. (ANDRADE, Mário, idem, 1972, p.21)
A síncope é a mais forte e perceptiva célula rítmica impregnada como característica
rítmica brasileira. A definição de síncope é: som articulado na parte fraca de um compasso, de
um tempo, sendo que este se prolonga até a parte forte que se segue. Sobre o compositor que
souber aproveitar o emprego da sincope, Mário de Andrade (idem, 1972, p.37) afirmou que
"pode principalmente empregar movimentos melódicos aparentemente sincopados, porém
desprovidos de acento, respeitosos da prosódia, ou musicalmente fantasistas, livres de remeleixo
maxixeiro, movimentos enfim inteiramente para fora do compasso ou do ritmo em que a peça vai."
Quando trata da melodia, disserta que o compositor desde o início da polifonia, vem
labutando para tornar a música psicologicamente expressiva, e que essa busca pela expressão
deve ser cessada pelo artista brasileiro, para que o compositor seja capaz de produzir musica
verdadeiramente brasileira.
“Ou o compositor faz música nacional e falsifica ou abandona a fôrça expressiva que possui, ou
aceita esta e abandona a característica nacional." (ANDRADE, Mário, idem, 1972, p.39).
Mário de Andrade julgava a melodia, como música dentro de um todo, não simplesmente
melodia, expondo a música como estímulo fisiopsíquico intenso, que amolenta, regulariza ou
ainda incita o organismo, traduzindo a música sem um significado intelectual.
E como as dinamogenias dela não têm significado intelectual, são misteriosas, o poder sugestivo
da musica é formidável. (ANDRADE, Mario, idem, p. 41)
Destaca as principais características na melodia nacionalista: o emprego da sincope e a
sétima menor, o uso do modo hipofrígio. O corrente uso de escala hexacordal, sem o uso da
12
sensível. Ocorrência dos saltos de sétimas e oitavas e, menos corrente, saltos de nonas. Observa
que é corriqueiro o uso de escalas descendentes com sons duplicados, que são notas repetidas
uma seguida da outra. Também o uso dos saltos nos intervalos melódicos de terças e sons
repetidos. Frases descendentes, que utilizam escalas terminando na mediante (ANDRADE,
Mário, ibidem, 1972, p.45).
Na polifonia, Mário de Andrade afirma não haver uma harmonia precisamente nacional,
pois os processos que a harmonia deveria se sujeitar, ultrapassam a nacionalidade “A não ser que
a gente crie um sistema novo de harmonizar, abandonando por completo os processo já
existentes na Europa”. (ANDRADE, Mário, ibidem, 1972, p.49)
Segundo Mário de Andrade (ibidem, 1972, p.52), nos documentos musicais arquivados
sobre a nossa música popular, o que persiste é o tonalismo oriundo de Portugal, e a nossa
harmonização por consequência se sujeita rigorosamente ao uso das escalas temperadas. Aqui no
Brasil, segundo o autor, o que acontece é um novo processo individual na criação composicional,
que pode ser genérica, porém não pode assumir o caráter nacional. Esse novo processo individual
de criação composicional, é defendido quando há contracantos e variações temáticas superpostas,
quando há presença de baixos melódicos. Porém esses aspectos estão polifonicamente
interligados.
“E de fato já está sendo como a gente vê das "Melodias Populares" harmonizadas por Luciano
Gallet, das Serestas, Choros e Cirandas de VilaLobos. Numa Sonatina ainda inédita desse moço
de futuro Mozart Camargo Guarnieri, o Andante vem contrapondo com eficiência nacional e
magnificamente.”
Ao falar em instrumentação, Mário de Andrade (ibidem, 1972, p.5859) diz, que o que
diferencia a orquestra tradicional europeia da orquestra que seria nacionalista, é a maneira de
tratar a instrumentação, seja para o instrumento solista ou concertante, que dará a característica
nacionalista. Ele justifica que para transformar uma orquestra em nacionalista, o instrumentista
deve tocar o seu instrumento da forma como o músico popular, o que não tem instrução, utiliza
seu instrumento. Deve transportar essa forma do tocar popular para os instrumentos da orquestra
ou fazer essa forma tornarse viável em outros instrumentos. Afinal, o compositor que escrever
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para uma orquestra composta de um grande número de violonistas, violistas, naquela época, teria
dificuldade em encontrar um grupo numeroso de artistas eruditos para a execução e, a partir
dessa dificuldade, o instrumentista erudito teria que observar como o instrumentista popular
executaria seu instrumento.
O que Mário de Andrade retratou era a maneira de como o instrumentista popular
produzia o som, com galanteios, acentuações, a forma de execução que caracterizaria o popular,
e que o instrumentista erudito deveria observar com atenção essa forma de execução, para então
transportar para a orquestra esses trejeitos da música popular, deixando a música nacionalizada.
Mário de Andrade aponta ainda que Catulo Cearense traduzia que um conjunto
nacionalista teria como instrumentação a seguinte formação:
"Rabeca, frauta, pandêro, Crarineta, violão,
Um bandão de cavaquinho, Um ofiscreide, um gaitêro
Que era um cabra mesmo bão, Caxambú…" (ANDRADE, Mário, ibidem, 1972, p. 54)
O autor (Andrade, Mário p.55) cita também que nas orquestras fandangas, a formação
usual é: rabeca (violino), viola, pandeiro, adufe, machete. Faz lembrança da sanfona utilizada em
Minas Gerais e que no nordeste é acompanhada de triângulos.
No piano Mário de Andrade observa que é possível tratar o instrumento como
nacionalista pelo toque corretamente exercido pelo interprete, mas não explica como o seria,
apenas cita peças como do compositor Ernesto Nazaret, onde ele transporta os processos
flautisticos e a técnica do cavaquino para o piano, como feito na obra Canção do Violeiro,
fazendo uso, como ele mesmo disse de um “toquerasgado". (Andrade, Mário, ibidem, p.60).
A forma, descrita por Mário de Andrade, é sob os nossos ritmos brasileiros e da forma
livre e insistente do 2/4 ou do incansável 3/4. Formas simples e convencionais que o compositor
brasileiro insiste em trazer em suas composições.
"Imaginese por exemplo uma suite:
1 Ponteio (prelúdio em qualquer metrica ou movimento);
2 Cateretê (binario rapido);
3 Coco (binario lento), (polifonia coral), Substitutivo de sarabanda);
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4 Moda ou Modinha (em ternario ou quartenario), substitutivo de Aria antiga);
5 Cururú (pra utilização de motivo amerindio), (podese imaginar uma dança africana pra
Empregar motivo afrobrasileiro), (sem movimento predeterminado);
6 Dobrado (ou Samba, ou Maxixe), (binario rapido ou imponente final).
(ANDRADE, Mário, ibidem, 1972, p.6869)
Essa suíte sugerida por Mário de Andrade deixa claro que são os rítmicos brasileiros que
caracterizam a forma. Seria uma forma de se evitar as formas sonatas, tocatas, rondós, de
escrever e que nacionalizam a obra. (ANDRADE, Mário, ibidem, 1972, p.69)
Mário de Andrade (ibidem, 1972, p.70 ) salienta ainda que o nosso folclore musical não
tem sido apreciado como merece, seja pela dificuldade do estudo dos elementos populares, seja
pelo individualismo composicional ou mesmo pela falta de disponibilidade do compositor em
sair na busca do conhecimento do folclore brasileiro.
Aponta que a falta de cultura nacional, delimita o processo composicional nacionalista,
que nos transporta para a imitação do que já existe e nos sucumbe ao plágio. Mas pondera que a
população brasileira apesar de ainda leigo é um povo de admirável criatividade, sentimentalista e
saudosista, no geral alegre e hospedeiro. E conclui:
“O brasileiro é um povo esplendidamente musical. Nosso populario sonoro honra a
nacionalidade.” (ANDRADE, Mário, ibidem, 1972, p.72)
15
3 – A obra pianística de Camargo Guarnieri e o Estudo n.7
As considerações a seguir referem a obra pianística de Camargo Guarnieri como um todo.
São observações, mesmo que num panorama superficial, de toda a obra pianística do compositor
e que todo pianista deve ficar atento ao estudar/tocar qualquer de suas peças (SILVA, Flávio;
2001, p.402).
A obra pianística de Camargo Guarnieri, traz refinamento, conscientemente e elaborado,
sensível e homogêneo. Sua condução vem da emoção, do seu modo de sentir e pensar. Faz uso, a
princípio de uma harmonia dissonante, dentro de um senso tonal, com forte presença de
cromatismo, tornandoo um compositor que produz linguagem própria.
Nas peças pianísticas, estão presentes as características comuns de sua obra, o
nacionalismo, o respeito a forma e a linearidade, a polifonia e a polirritmia.
A sua obra pianística deveria ser estudada com a segurança de um caminho solido técnico
musical pianístico. Pode ser apresentado ao intérprete logo após o estudo das peças para teclado
de J. S. Bach, anexando o trato polifônico, já exaurido pelas peças de Bach, a elementos rítmicos
e melódicos novos. (Silva, Flávio; p. 401)
“...o que mais nos atrai na sua música é o seu calor e sua imaginação sempre tocada por
uma sensibilidade profundamente brasileira. Quando sua musica é bem executada, ela
representa a vigorosa expressão musical do continente latinoamericano”. (Copland,
Aaron; in Modern Music , apud: SILVA, Flávio; p. 401)
A leitura de suas peças são difíceis por sua visão horizontal, pela disposição na
superposição das diferentes linhas melódicas e pela variedade de combinações rítmicas. Após a
leitura, que por vezes demanda mais tempo que o normal, de forma geral em comparação a
outros compositores, o ato do estudo em si, tornase agradável e dinâmico, a medida que vão se
processando as descobertas, as surpresas de elementos subentendidos ou escondidos saltam aos
ouvidos e começam a ser realçados de forma tão simples e sublime ao mesmo tempo.(SILVA,
Flávio; 2001, p.401)
16
O tocar diário, produz um rápido aprimoramento da obra estudada, pois toda a sua obra é
muito pianística, ou seja, foi produzida para caber na mão do pianista, e que fornece ela própria,
a motivação do tocar, com a busca constante pela sonoridade, que pode se mostrar cheio de
energia e decisões, bemhumorado, irreal ou terno. (SILVA, Flávio; 2001, p.401)
Em suas peças mais intimistas, Guarnieri, deseja que o interprete tenha uma comunhão
interpreteinstrumento, muito individual, como se não existisse ouvinte, seria apenas o interprete,
a obra e o piano. Quem ouve, sentirá a melodia fluída suavemente, que não se perturba pela
harmônia ou qualquer outro elemento secundário.
Os andamentos, quando executados mais rápido que o desejado por Guarnieri, sacrificam
o desejo musical solicitado. O nacionalismo rítmico empregado na peça, base de sua produção
pianística, é mais precisa e autentica quando não é apresentada com muita agilidade e rapidez,
pois a velocidade impede que seja sentido o 'requebrado' característico da musica brasileira. Os
impulsos e repousos dos movimentos devem ser respeitados e valorizados. Os pontos
culminantes de cada frase devem ser atingidos em toda sua expressão e plenitude. Diversas vezes
Guarnieri emprega o arpejo, com execução rápida e firme, como uma ajuda para alcançar um
plano mais febril expressivo e sonoro. Não é aceitável o uso do rubato, a não ser quando
explicitado na obra musical. (Silva, Flávio; 2001, p. 401)
"Cada frase tem que ser sentida, curtida, saboreada, como se fosse uma fala cheia de
ternura, em tom de confidência.” ( MENDONÇA, Belkiss, In SILVA, Flavio, 2001,
p.402).
Quando Guarnieri, na mão esquerda, faz o uso dos acordes, tem por habito o fazêlo em
décimas, dificultando a execução dos pianista que tem a mão pequena, pois estes necessitam
arpejalos. O bordão grave deve ser, sempre, executado no tempo, sustentado pelo pedal, pois
normalmente encerra sua própria melodia. (In SILVA, Flávio; p.401)
Geralmente Guarnieri faz o uso do baixo em acordes para formar melodia intercalada
com notas pedais. Quando encontrase notas entrelaçadas, formam a melodia em contraponto,
desenhos rítmicos que vão contrário a sensação do pulso rítmico, ou ainda criando melodias
independentes. (In SILVA, Flávio; 2001, p.401)
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O uso da repetição do tema, em uma obra de Guarnieri, nunca vem da mesma forma,
sempre aparece transformada e enriquecida, exigindo a valorização dos novos elementos. A
construção rítmica é precisa e incisiva, e em grande parte da sua obra apresenta notas com
acentuação fora da métrica pra constituir uma melodia.
Utilizando as notas de adorno, faz o uso do legato, como forma de sobressair a forma
peculiar de entoar do nordestino, quando por meio da voz arrastada. E faz o uso desse recurso
para reforçar a interpretação e como a melodia deve ser sentida. Em melodias internas,
predominam oitavas ou acordes, que por vezes passam desapercebidas, e para se fazer perceber
essas linhas melódicas internas, devese a igualdade de ataque dos polegares. (In SILVA, Flávio;
2001, p.401)
3.1 Citando algumas obras:
Guarnieri foi um compositor produtivo e dentro da sua extensa obra pianística, podemos
citar algumas de suas obras mais conhecidas como a série dos Ponteios , que foi inicializada em
1931 e completada em 1959, contidos em cinco cadernos, sendo o primeiro caderno, no que
tange à dificuldade técnica pianística, o que apresenta maior dificuldade, mesmo apresentando
linhas melódicas livres, com características tristes e melancólicas. A indicação do caráter de cada
Ponteio , vem explícita ao lado da indicação metronômica, e este também lhe serve de título.
(SILVA, Flávio, 2001, p.402).
Citamos também, as oitos Sonatinas, todas escrita na forma clássica sonata, com três
movimentos, onde, o primeiro movimento obedece a forma sonata, o segundo movimento busca
o lírico, 'apaixonado', ou o etério, buscando a expressividade, e o terceiro e ultimo movimento,
surge ora como Scherzo, ou fuga, ou ainda como um rondó. (SILVA, Flávio, 2001, p.406)
Lembramos da Sonata , a única peça intitulada como sonata. Foi curiosamente composta
com muita agilidade, no que tange a questão tempo, de 16 a 25 de Dezembro de 1972. O
primeiro movimento é monotemático, intitulado como 'Tenso', inicíase com Anacruse. O
segundo movimento, intitulado 'Amargurado', apresenta dois temas, um com extrema 'solidão' e
'amargura', e o segundo com sentido 'vago' e 'misterioso', sofre diversas transformações,
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atingindo o ápice do segundo movimento apenas na segunda apresentação desse tema, e depois o
mesmo se apresenta mais duas vezes. O terceiro movimento vem em forma de fuga, intitulado
'Triunfante Enérgico Triunfante'. Inicíase com um prelúdio, seguido de fuga em três partes. O
tema principal se apresenta em sincopa. (SILVA, Flávio, 2001, p.412)
As danças, são apresentadas em três peças distintas e independentes, apesar de serem
consideradas, atualmente como um único conjunto de peças. São elas: Dança Brasileira(1928) ,
alegre e ritmada, construida na forma ABACBACoda , foi transcrita para orquestra pelo
próprio Camargo Guarnieri. A Dança Selvagem(1931) , foi inspirada na população indígena
brasileira e tem dois temas, o primeiro ritmado e 'ardente' e o segundo faz referencia à foma
ciranda. E a última, Dança Negra(1946) , tem duas transcrições pelo compositor para orquestra e
para dois pianos. Inspirada no ritmo de um ritual de terreiro de candomblé Terreiro de Gantois
na Bahia. Devese seguir cuidadosamente as indicações de dinâmica da partitura. (SILVA,
Flávio, 2001, p.416).
Temos os Improvisos . São dez obras, e dessas, apenas quatro são monotemáticas, sendo
eles os de números 1, 4, 5 e 6. Esse ciclo está estruturado na forma ABA .(SILVA, Flávio, 2001,
p.417).
Citamos também os Momentos , ciclo constituído de dez obras, que retratam melancolia e
lembranças de vivencias pessoais do compositor Camargo Guarnieri.(SILVA, Flávio, 2001,
p.417).
Nas obras avulsas, as mais conhecidas dentro de sua obra estão: a Canção
Sertaneja(1928) , que tem como característica o baixo independente da melodia; o Choro
Torturado (1930) , que tem como inspiração o estilo do 'choro carioca'; a Tocata(1935) ,
considerada uma peça tecnicamente difícil, é uma das poucas obras que visam o virtuosismo
pianístico.(SILVA, Flávio, 2001, p.419 420).
Guarnieri escreveu vinte Estudos para piano, com complexidades especificas para um
determinado problema técnico pianístico. Cada um dos estudos são coerentes com o título a que
são destinados, porém os estudos não se destinam somente a técnica aplicada, mas exige do
interprete seu melhor desempenho, tanto sonoro quanto de resistência. (SILVA, Flávio; p.414)
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“Os Estudos de Camargo Guarnieri, como os de Chopin, apresentam problemas de
dificuldade artisticamente transcendental; os de Guarnieri são a epítome pianostica de
suas obras. Não há nada mais complexo ou virtuoso que esses estudos no âmbito da
música brasileira. Eles deveriam ser gravados, tanto por sua beleza musical quanto por
seu valor pedagógico. (Maria Abreu, apud: VERHAALEN, Marion; p.119)
Cada um dos vinte Estudos, tem dificuldades técnicas diferentes e em sua maioria são
polifônicos e polirrítmicos, que trazem uma experiência única de independência das mãos que a
executam, nos trazendo a lembrança de J. S. Bach e suas composições polifônicas. São escritos
em modalidade livre, ou seja, não tem um centro tonal definido, mas terminam em um centro
tonal, que pode ser ouvido ou não durante a obra. (VERHAALEN, Marion; p. 119)
Essencialmente, estão configurados em acordes ou padrões que se repetem, ostinatos, que
exigem do pianista uma rápida contração e expansão das mãos. Frequentemente as duas mãos se
dirigem velozmente para direções opostas, com imensa independência rítmica e vitalidade. As
obras se mantém rígidas quanto a dificuldade técnica, exigindo e aumentando a resistência física
do pianista. (VERHALEN, Marion, p.119)
Sua sonoridade é complexa, onde o interprete tem por obrigação saber onde está a linha
melódica, para orientar seu ouvinte de forma excepcional na experiência rítmicamelódica
durante a audição. Melodia essa, que transita em meio à polirritmia, e que deve ser evidenciada
com um toque mais profundo e de ataques dos dedos com maior resistência muscular, para que o
som da melodia seja precisa e obtenha o devido destacamento do restante das notas que
caminham junto com a melodia.
Guarnieri trabalha muito com a figura de linguagem musical, usando a variação de vozes,
passando a voz principal de um timbre para o outro, do agudo para o grave, e viceversa. Sua
polirritmia transcende a capacidade técnica do pianista e exige conhecimento técnico prévio.
Por ser nacionalista, trabalha em cada Estudo uma célula rítmica típica brasileira, melodia
que traz a lembrança de uma determinada região do país, sonoridade e muitas vezes ostinatos
persistentes ao fundo da melodia.
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Alguns dos 20 Estudos traz uma forte lembrança do Nordeste, com a melodia arrastada
do sertanejo, como por exemplo os Estudos nº 3 e o nº 7 , com suas melodias do sertão, chorosas
e vagarosas.
A voz principal vem no legato, com muitas passagens de dedos, priorizando uma melodia
cantada ininterrupta.
3.2 Análise do Estudo nº 7
Após uma breve orientação de como estudar, tocar, ouvir e apreciar a obra pianística de
Guarnieri, nos ateamos ao Estudo nº 7 , com uma breve análise rítmica, melódica e técnica.
Durante todo o Estudo é persistente a polirritmia de duas notas contra três na mão direita,
além de três semínimas, na mão esquerda em compasso 2/4, causando uma constante polirritmia
de: 2/4 contra 6/8 e 3/4.
Predomina o piano expressivo como dinâmica, e o tempo ‘Sem pressa’ facilita o legato,
da melodia na mão direita.(Ver Figura 1).
A polirritmia está presente em dois planos: o primeiro, na parte A, quando a mão direita
executa duas notas contra três, onde a pressão dedos 3, 4 e 5 são responsáveis pela execução da
melodia e os dedos 1 e 2 em estado mais relaxado executam um desenho em quiálteras, enquanto
a mão esquerda executa três semínimas em quiálteras, apoiadas de duas em duas,
proporcionando a sensação de liberdade rítmica, (Ver Figura 1).
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Posteriormente a mão direita, na parte B, vem invertida, quando passa a executar duas
notas contra três, onde a pressão dedos 1 e 2 são responsáveis pela execução da melodia e os
dedos 3, 4 e 5 em estado mais relaxado executam um desenho em quiálteras, e a esquerda
continua a execução de três semínimas em quiálteras, apoiadas de duas em duas.(Ver Figura 2)
O Estudo nº 7, tem o andamento denominado: ‘Sem Pressa’. (Ver Figura 3)
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Tanto na parte A quanto na parte B, Guarnieri faz o uso de frases encadeadas, com
repetição do tema, utilizando ritmo cruzado. A base tonal é a de Mi Maior, sugestionada no
movimento cromático do interior das frases.
O Estudo se desenvolve em três camadas: (Ver Figura 4)
1 Tercinas na região central (acompanhamento em quiálteras de colcheia), na mão direita. (Ver
Figura 4)
2 Melodia em colcheias simples (compasso 2/4), na mão direita. (Ver Figura 4)
3 Baixo em décimas (acompanhamento em quiálteras de semínima), na mão esquerda. (Ver
Figura 4)
Análise por camadas:
1º ao 5º sistema : (Ver Figura 5)
O baixo (mão esquerda) se desenvolve por intervalos de décimas maiores e menores. (Ver
Figura 5)
As notas mais graves da mão esquerda caminham no modo frígio de mi (intervalo de segunda
menor mifa). A quinta diminuta da escala frígia de mi (si bemol) aparece no 4º sistema. (Ver
Figura 5)
A camada central de acompanhamento iniciase a melodia em intervalo de segunda maior
(doré) nos 5 primeiros compassos iniciais e depois se desenvolve na escala menor natural no 6º,
7º e 8º compassos. Segue alternando em intervalos de segunda maior e na escala de mi menor
natural. (Ver Figura 5)
A melodia na mão direita se desenvolve na escala mi dórico (sexta maior dó#). (Ver Figura 5)
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6º ao 10º sistema: ( Ver figura 6)
A partir do 6º sistema o baixo (nota mais grave) realiza saltos de terças, segundas e quintas
alternando em intervalos de décima e nona em relação a nota mais aguda da mão esquerda. ( Ver
Figura 6).
A partir do 8º sistema (compasso 26) a quinta diminuta (sib) é acrescentada ao baixo, ao
acompanhamento central e à melodia. ( Ver Figura 6).
No 9º sistema é acrescentado o mib e lab no baixo. Na melodia é acrescentado o réb e o mib.
( Ver Figura 6).
No 10º sistema o baixo caminha na escala de Mib menor. ( Ver Figura 6).
24
Na melodia o surgimento do dób no segundo compasso do 11º sistema reforça a escala de mib
menor. ( Ver Figura 6).
Obs: A bemolização das notas da escala de mi menor dórica é gradual a partir do 8º
sistema começando na seguinte ordem si, mi, ré, lá, sol, dó até se tornar uma escala de mib
menor. ( Ver Figura 6).
No 12º sistema o surgimento do mi dobrado bemol e si dobrado bemol já antecipa a volta
para a escala de mi menor dórica. (Ver Figura 7)
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No 13º sistema (1º compasso) o ré e o mi se tornam bequadros no acompanhamento de
tercinas ocorrendo a modulação para mi menor novamente (enarmonia). (Ver Figura 8).
A melodia volta à escala de mi menor somente na exposição da parte A no 14º sistema,
último compasso, a partir do segundo tempo do compasso. (Ver Figura 9).
Ocorre uma inversão rítmica na volta ao tema A: A melodia passa a ser executada na
camada central do Estudo e o acompanhamento em tercinas de colcheia passa para a camada
mais aguda correspondente à melodia (observado na Figura 9). A inversão rítmica só termina no
2º compasso do 20º sistema (Ver Figura 10).
A partir do 20º sistema até o fim, o Estudo mantém a mesma estrutura do início (primeira
parte). (Ver Figura 11)
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O trecho conclusivo do estudo (coda), a partir do 24º sistema, pode ser observado pela
mudança rítmica do baixo na mão esquerda nos dois últimos sistemas (quiálteras de semínima
para tercinas de colcheias) (Ver Figura 12).
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Nos dois últimos sistemas, o baixo se aproxima cromaticamente (mibfábfá natural) do
último acorde que finaliza o estudo (fá maior com a nona menor). (Ver Figura 12).
O resumo da análise:
Pode se dizer que o estudo inicia na escala de mi menor modulação para a escala de mib
menor no desenvolvimento e volta para a escala mi menor na reexposição da primeira parte
(quando ocorre a inversão rítmica). Acaba sendo um ABA. O uso de modos é o indício
nacionalista e podemos citar um dos maiores defensores da música nacionalista, o Osvaldo
Lacerda que usa muito os modos nas suas composições. Guarnieri usa muito os modos nos
ponteios, concertos etc. Principalmente o dórico e mixolídio. Bela Bátok, outro compositor
nacionalista, faz uso constantes desses dois modos também. Podemos citar as Seis Danças
Romenas. A 1ª peça está em lá dórico e a segunda em ré dórico.
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4 – Considerações finais Após a pesquisa do que é nacionalismo essencial brasileiro, verifiquei que no Brasil,
diferente de outras regiões do mundo, não há uma verdadeira música folclórica, transmitida oralmente de geração em geração, visto nos dias de hoje que muitas das nossas crianças não conhecem inúmeras das nossas cirandas, canções e temas folclóricos, da minha época de criança por exemplo, que me dá essa segurança em afirmar tal frase, me deixando num estado tanto quanto perturbador, de que nossa pouca herança musical está sendo esquecida. Todavia, se a memória popular não está sendo capaz de guardar nossas melodias folclóricas, esses motivos estão sendo conservados pelos compositores brasileiros, em normas que se mantem rígidas da composição nacionalista, no processo de cantar e tocar, arquivados nas composições consideradas nacionalistas, nos registros de motivos melódicos, rítmicos e harmônicos.
Concluí que o nacionalismo essencial brasileiro são os elementos que constitui o folclore brasileiro, seja na construção da melodia com fórmulas curtas, onde muitas vezes é a forma de falar que determina a métrica e os sons da melodia, e nesse sentido posso citar a forte presença de monodias do povo nordestino, com o jeito 'gingado' e 'escorregado' de tocar e cantar, ou na construção de grupos instrumentais tipicamentes brasileiros como citou Catulo Cearense no capitulo dois, que traduzia que um conjunto nacionalista teria como instrumentação a seguinte formação: " Rabeca, frauta, pandêro, Crarineta, violão, Um bandão de cavaquinho, Um ofiscreide, um gaitêro."
A forma de tocar do músico popular transportada para o músico erudito, faz toda a diferença na interpretação das músicas nacionalistas.
Todas essas características nacionalistas estão presente nas composições do Camargo Guarnieri, e após a identificação dessas características folclóricas, me facilitou a execussão do Estudo nº 7 , quando deixei de pensar ritmicamente e me concentrei na melodia nordestina presente no Estudo .
No caso específico de Guarnieri, de não trabalhar um centro tonal, deixa a melodia fluir livremente, dentro do acompanhamento que se desenvolve em quase um improviso sob a melodia.
Antes me empenhava em acertar a polirritmia presente na polifonia, após entender que a melodia, mesmo que não sendo uma melodia de ciranda, maxixi, ou mesmo uma melodia folclórica trabalhada no Estudo , uma vez que diferente de VillaLobos, Camargo Guarnieri, não necessariamente trabalha uma melodia conhecida, o Estudo nº 7 fluiu com mais liberdade na expressão melódica e rítmica.
O ritmo escrito em polirritmia, como vimos no capitulo três, se mostrou mais gingado e menos pretensioso ao ouvinte, depois que compreendi por onde anda harmonicamente a melodia.
A identificação nordestina da melodia me aproximou da realidade da composição, que se mostrou mais suave e melancólica.
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Nas questões técnicas, depois que entendi como o baixo caminha pela escala eclesiástica, ficou mais fácil executar os saltos, ajudando na execução das frases no ostinato e melodia da mão direita.
Entender o processo composicional, ajudou como um todo para modificar a minha forma de compreender, interpretar, tocar e sentir as obras do Camargo Guarnieri.
Compreender Mário de Andrade na influência sob Guarnieri me mostrou que a busca pelo o que é nacional não é só importante, mas providencial em nosso país, visto que se não são pelas heranças orais, serão pelas heranças composicionais escritas que conseguiremos manter viva nossas raízes negras e ameríndias.
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Referências Bibliográficas ANDRADE, Mário de. Ensaio sobre a música brasileira . 3ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Martins Editora S.A. em convênio com o Instituto Nacional do Livro/MEC, 1972. ORQUESTRA SINFÔNICA DA USP. OSUSP Orquestra Sinfônica da USP. Link visitado em 10 de março de 2016. http://www.usp.br/osusp/maestro_camargo.html RIBEIRO, Marcus Venicio; ALENCAR, Chico de; CECCON, Claudius. Brasil Vivo: uma nova história da nossa gente . V. 2 A república . Petrópolis: Editora Vozes, 1988. SANTOS, Paulo Sérgio Malheiros dos; SOARES, Leandro Garcia. Mário de Andrade e o nacionalismo musical brasileiro. Revista Modus, publicação semestral pela Escola de Música da UEMG , V. 4, N. 5, Outubro de 2008. SILVA, Flávio, organizador. Camargo Guarnieri: o tempo e a música . Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Imprensa Oficial de São Paulo, 2001. SUGIMOTO, Luiz Artigo: “Do aboio ao cururu” Jornal da Unicamp Campinas, 1 a 7 de setembro de 2014. http://www.unicamp.br/unicamp/ju/604/doaboioaocururu VERTHAALEN, Marion. Camargo Guarnieri: expressões de uma vida . São Paulo: Edusp, 2001.