CHICO
REI Poema dramático de Walmir Ayala
CENÁRIO ÚNICO
Plano do intemporal. Sugestões da arquitetura colonial
de Ouro Preto. Um portal da Igreja de Santa Ifigênia.
No primeiro plano o trono de Chico Rei.
PERSONAGENS
CHICO REI
RAINHA GINGA
PRINCESA
VILA RICA
A MORTE
OBSERVAÇÃO
A Rainha, a Princesa, Vila Rica e a Morte podem ser
feitas pela mesma atriz.
CENA I
RAINHA (Saindo do portal da igreja. Cautelosa) -
Chico... (Som de atabaques que se
distanciam. Chico, em silêncio, até o
segundo apelo da Rainha, já bem perto
dele) Chico...
CHICO REI (Sem se voltar) - E as negras?
RAINHA - Desempoaram.
CHICO REI - Tu queres dizer que já lavaram as
carapinhas empoadas de ouro nas pias do
adro?
RAINHA - Todas. Era de ver.
CHICO REI - E ficou ouro bastante?
RAINHA - Bastante, Chico. (Dolorosa) Mas que importa
o ouro, sempre o ouro?
CHICO REI - Que pergunta, mulher! Ouro é tudo!
RAINHA - Amor é tudo, Chico.
CHICO REI - Uma vez era. Mas desde que se fez o
escravo, ouro é tudo. Ouro é o que mata o
escravo, ouro é o que compra o escravo, e
até o que liberta o escravo. Não achas,
mulher?
RAINHA - Acho tudo, Chico. Eu te amo.
CHICO REI (Fuzilante de cobiça) - Que as negras não
poupem o ouro nas festas do reisado,
entendeu? Diga a elas. Diga! Quero as pias
cheias de pó cintilante... Com isso
compraremos novas liberdades, e teremos
um exército. Com isto temos ordem e Deus.
E eles nos temem, os que aqui nos
trouxeram nos temem.
RAINHA - Como te iludes, Chico Rei! Que força
significamos? Que armas nos cabem contra
os donos do mundo?
CHICO REI - Falas ainda como uma escrava.
RAINHA - Eu tenho medo... Dizem que se organiza um
movimento contra nós.
CHICO REI - Porque nos temem.
RAINHA - Dizem que somos um Estado dentro do
Estado e que El Rei português não vê isso
com bons olhos.
CHICO REI - Que não veja. Aqui estamos, e resistiremos.
RAINHA - Não temos armas bastante.
CHICO REI - Temos o sangue e a nossa vida. É o
suficiente.
RAINHA - Mas isto acaba.
CHICO REI - Tudo acaba.
RAINHA - Eu não quero morrer e não quero que tu
morras, Chico Rei.
CHICO REI - És fraca e mesquinha, mulher. (Outro tom)
Morrer é destino humano, entendes?
RAINHA - Destino humano...
CHICO REI - Lembras quando em terras de África
andávamos livres como Deus queria?
RAINHA (Memória de exaltada alegria) - Lembro.
(Outro tom) E tu nunca olhavas para mim,
Chico Rei.
CHICO REI - Eu tinha a minha rainha, e um rei tem seus
deveres.
RAINHA - Mas eu te amava.
CHICO REI - E eras uma menina, uma cabrita selvagem.
RAINHA - Mas eu te amava.
CHICO REI - Eu sei, hoje eu sei. Mas isso não importa.
Estávamos falando em liberdade.
RAINHA - Eu quero falar do meu amor.
CHICO REI - Amor de escravo é humilhação. Quero falar
de liberdade.
RAINHA - Fala, Chico Rei.
CHICO REI - Eu jamais pensei que algo pudesse mudar
tão completamente, porque a gente não
pensa no outro lado do destino. Nascido
príncipe, educado para rei, eu era rei, como
a água é água.
RAINHA - Eu via o teu ardor, a tua fúria, a tua
juventude.
CHICO REI - Bem cedo me adestraram na luta contra os
javalis. Agora eu me exercito.
RAINHA - Hoje és um infeliz.
CHICO REI - Que tudo passa...
RAINHA - Eu vi o teu amadurecimento. Era como se o
mundo terminasse ali.
CHICO REI - E terminava mesmo. Eu não sabia que os
invasores rondavam, e por razões de
ambição. A liberdade é um direito tão
animal, minha rainha. Mas os invasores
rondavam não para usurpar terras e
implantar poderio, não para provar força
e conquistar sua fêmea. Mas para
escravizar e seqüestrar. Luta inglória,
minha rainha.
RAINHA - Desde o princípio, Chico Rei.
CHICO REI - Lembro da obediência amorosa do meu
povo. Lembro da liberdade e da justiça
correndo lado a lado. Lembras?
RAINHA - Como lembro!
CHICO REI - Lembras também da minha rainha?
RAINHA - Eu a invejava. Era a pessoa sobre a qual
mais repousava a minha atenção. Não sei o
que era maior, se o meu espanto, porque ela
existia e era dona do teu coração, ou se o
meu amor por ti.
CHICO REI - Ela era frágil como o bambu silvestre. Eu
sempre dizia para ela: "cuidado, estás
ligada a um tronco invencível e és uma
corça... Não sei até quando te poderei
guardar". E ela recolhia-se em mim, com tal
graça, que era como se fosse a flama do
meu coração.
RAINHA - A flama do teu coração... (Ansiosa) Serei eu
um dia?
CHICO REI - Não te prometo. Não posso me separar do
que era a glória da minha vida.
RAINHA - Ela está morta.
CHICO REI - E o que é a morte, contra a recordação?
RAINHA - Eu aceito assim... eu espero.
CHICO REI - Eu te amo porque respeitas isso.
RAINHA - Respeito o teu amor, Chico Rei.
CHICO REI (Beijando-a na fronte) - Graças...
RAINHA - Na viagem eu não te vi.
CHICO REI (Transfigurado de dor) - O navio... todos
atados com correntes, a sede devorando as
nossas entranhas, nossos filhos morrendo,
minha rainha morrendo.
RAINHA - Eu não te via, Chico Rei.
CHICO REI - Até na escravidão me davam honras de rei,
honras que no caso eram humilhações. Eu
era escravo à parte. Separado de meu povo,
ele nas galés mais duras. Mas eu ouvia o
seu lamento, ouvia o chicote estalar. E não
entendia muito bem porquê. Por quê?
RAINHA - Eu chorava, Chico Rei.
CHICO REI (Com melancolia) - És fraca.
RAINHA (Altiva) - Sou.
CHICO REI - Eu vi as coisas mais dolorosas para o meu
coração, e não chorei. Vi o definhamento
da minha rainha, seu gemido durante a
noite, abracei sua febre contra o meu peito.
Chegou a haver súplica nos seus olhos, mas
os verdugos não viam nada... éramos
objetos. Vi meus filhos revezarem nas galés
e voltarem marcados de chicote e
ignomínia. Durante a noite eu não dormia.
Ouvia o baque de corpos ao mar e ficava
pensando quem seria. E eram tantos
quanto o marulho das águas. O nosso mar,
ali, sendo infame sepultura.
RAINHA - Não fales mais, Chico Rei.
CHICO REI - Que adianta não falar?
RAINHA - Ainda estamos ameaçados.
CHICO REI - Agora? Duvido. Temos a Igreja da Santa
Ifigênia, temos a Mina do Palácio Velho,
temos o Reisado e a Festa do Divino, temos
a hierarquia e a ordem, rainha.
RAINHA - Eles têm mais ambição e força.
CHICO REI - Ainda que fosse assim, não deverias
pronunciar tais palavras. Estás do meu
lado?
RAINHA - Sempre.
CHICO REI - Pois fica sabendo que Chico Rei não
reconhece outro poder que o da graça de
sua administração. E que não se mata a
verdadeira vida!
RAINHA - Mas se morre.
CHICO REI - Tudo se acaba, mas a morte é o instante.
Aqui está Chico Rei, vivo ou morto, mas
imortal.
RAINHA - Estás transfigurado, Chico Rei.
CHICO REI - É que eu sei que vim para cumprir
promessas.
RAINHA - Feitas por quem?
CHICO REI - Nem eu sei, mas não esmoreço. (A Rainha
sai. Ouve-se um tam-tam longínquo).
CENA II
CHICO REI (Tam-tam surdo prossegue, entremeado de
coro lamentoso) - As festas... mas não
esmoreço. Não esmoreço. A selva está aqui,
no meu coração. E não esmoreço. Eu,
coroado, não deixo que meu ânimo se
abata. Eu sou eterno porque vim em nome
da liberdade. Chico Rei era rei. Chico Rei
foi feito escravo. Ele, mais a rainha e os
príncipes, seus filhos e as princesas esposas
de seus filhos. E mais o povo que andava
em seu coro. De Chico Rei sobrou apenas o
ramo mais vigoroso, e um filho, pois o resto
o mar tragou. E aqui veio, aqui chegou
Chico Rei. Para as terras do Brasil, como
um danado. Na alma, frio como o ferro frio
por fora. Aqui chegou para padecer e não
pensar noutra coisa que em seu destino e
sua recuperação. (Pausa. Coro distante do
Reisado ou Lundu) Chico Rei colheu o
mínimo do mínimo que lhe era dado em
troca do dia e da noite no fundão das
minas, cavando ouro para El Rei
português. Chico Rei não sorriu nunca
mais, não sorriu. Mas o suor brilhava no
seu pretume como as estrelas na noite. E do
mínimo que lhe davam em troca da sua
vida, dos seus nervos gastos, da sua
exaustão, deste mínimo formou o tanto que
libertou o filho, o único que sobrou da
viagem. Meu filho. (Neste momento entra a
nora de Chico Rei. Silêncio. A Princesa,
pode ser a mesma atriz da primeira cena,
agora com máscara de adolescente e bela).
CENA III
A Princesa surge no momento em que Chico Rei
pronuncia "meu filho", e liga sua fala a dele.
PRINCESA - Teu filho, Chico Rei.
CHICO REI - Teu marido. Falava nele.
PRINCESA - Ele não se alegra, Chico Rei.
CHICO REI - O Reisado está aí.
PRINCESA - Ele não se alegra.
CHICO REI - E tu? Não és sua mulher?
PRINCESA - Ele dorme no meu seio como um menino.
Mas treme como um pássaro no frio.
CHICO REI - Ele tem medo.
PRINCESA - Ele quer viver...
CHICO REI - Ele te ama, não?
PRINCESA - Parece, meu senhor.
CHICO REI - Ele te amava. Lembro que ele foi o primeiro
a ser libertado e logo me pediu por ti. Já te
via naquele tempo.
PRINCESA - Já me via em terras de África.
CHICO REI - Pediu que te libertasse logo. Eu não podia.
Tu ficarias para depois. Primeiro os
homens... com os homens se formam
exércitos.
PRINCESA - Com as mulheres se fazem homens para os
exércitos.
CHICO REI - Eu não podia esperar.
PRINCESA (Tom irônico) - Exércitos em Vila Rica.
Contra quem? Contra quem, meu senhor?
Aqui temos apenas licença de viver.
CHICO REI - Cala-te!
PRINCESA - Eu sou a sensatez.
CHICO REI - És mulher. E odeias Vila Rica. Foste feita
para o fogão e a senzala, jamais para um
principado.
PRINCESA - Odeio este degredo onde o meu homem
definha.
CHICO REI - Ele é um fraco. Meu filho é um fraco.
PRINCESA - Não. Apenas não percebe aonde queres
chegar.
CHICO REI - Era um fraco desde o princípio. Só pensava
em ti.
PRINCESA - Porque me amava.
CHICO REI - Precisávamos de homens para o exército e
ele pensava em ti.
PRINCESA - Com mulheres se constroem famílias que
reproduzem soldados.
CHICO REI - Naquele tempo reproduziam escravos.
PRINCESA - Mas nada disso importa agora. Salva teu
filho!
CHICO REI - Salvá-lo de quê?
PRINCESA - Hoje é seis de janeiro.
CHICO REI - Dia de Reisado.
PRINCESA - Faz de teu filho chefe da Irmandade de
Santa Ifigênia.
CHICO REI - Ele é um fraco.
PRINCESA - Não repitas isso. Não te martirizes.
CHICO REI - Nas reuniões fica mudo quando falamos em
guerra.
PRINCESA - Guerra! Guerra! Estás louco, Chico Rei!
Guerrear como? Contra quem? Contra as
forças portuguesas? Te esmagariam antes
que pudesses dar a primeira ordem, Chico
Rei. De que vale um ideal nas mãos de um
incauto? Cuidado... olha o código negro.
CHICO REI - É contra ele que aqui estou. Que animal
somos nós? Ordenaram que a todo o negro
fugido se corte a perna direita, e coloque
em seu lugar uma perna de pau, para que o
mesmo aleijado não escape a seu senhor e
sirva para alguma coisa.
PRINCESA - E pelo negro relapso, castigado assim, o
Estado indeniza o proprietário.
CHICO REI - Como se a gente fosse coisa.
PRINCESA - Ou animal.
CHICO REI - Que animal somos nós?
PRINCESA - Nós temos dinheiro, Chico Rei, e
compramos a liberdade dos nossos.
CHICO REI - E quais são os nossos?
PRINCESA - Os da nossa família, os da nossa tribo.
CHICO REI - Mulher, a nossa tribo é a raça.
PRINCESA - Chico Rei, enlouqueceste! Que não te ouçam!
CHICO REI - Não durmo enquanto não vir a liberdade
inteira, aqui.
PRINCESA - Então não dormiremos nunca, Chico Rei.
CHICO REI - Não dormirei mesmo, se vierem mulheres
fracas como tu me azucrinando os ouvidos.
PRINCESA - Eu queria ser feliz.
CHICO REI - Felicidade é coisa de menos neste momento.
Que felicidade pode ter quem não é
respeitado?
PRINCESA - Eu queria paz.
CHICO REI - A paz do submisso? Como mulher podes tê-
la.
PRINCESA - Mas eu não quero filhos.
CHICO REI - Infeliz.
PRINCESA - Não quero filhos do teu filho. E tu és o
responsável. A que mundo nos condenas?
CHICO REI - Não há outra saída.
PRINCESA - Faz de teu filho chefe da Irmandade.
CHICO REI - Seria desrespeito aos fortes.
PRINCESA - Ele é teu filho e tu és o rei. O que te
mantém feliz nesta loucura é o teu posto, o
teu poder. Teu filho ainda é um homem
comum, e quer viver como um homem
comum. Dá-lhe um motivo de sacrifício e
ele morrerá por ti.
CHICO REI - Deve morrer pelo povo, pela liberdade.
PRINCESA (Súplice) - Faz de teu filho chefe da
Irmandade.
CHICO REI - Tenho medo, tenho medo. Os outros não o
olham com bons olhos. Logo que o libertei,
assim que chegamos aqui, o primeiro
pensamento dele foi libertar-te.
PRINCESA - Ele era jovem e me amava.
CHICO REI - Era um egoísta. (Outro tom) Eu o convenci
de que era preciso trabalhar pelos homens
da comunidade, para ter uma força. Ele
aceitou. Libertamos um terceiro,
comprando com o nosso trabalho a alforria.
Com este, e pelo mesmo processo, libertamos
um quarto, um quinto.
PRINCESA - Hoje somos um Estado e eu fiquei para as
compras finais.
CHICO REI - Estavas longe na minha lembrança, como a
que hoje é minha rainha.
PRINCESA - Mas isto passou. Hoje somos uma corte, e
temos a nossa mina e compramos toda a
tribo.
CHICO REI - O que sobrou.
PRINCESA - Querias comprar também os mortos? Estes
estão no mar. Esvazia o mar e ressuscita-os!
És um desvairado, Chico Rei.
CHICO REI - Quem me dera.
PRINCESA - Ninguém é imortal, Chico Rei.
CHICO REI - Será?
PRINCESA - Ninguém.
CHICO REI (Outro tom) - Mas meu filho não tem fibra
para reger a comunidade.
PRINCESA - É a tua última palavra?
CHICO REI - A última.
PRINCESA - Vila Rica que te valha em tua loucura.
CHICO REI - Valerá. (A Princesa sai. Ouve-se, vindo de
longe e crescendo, a zoada do lundu, o
ponteio do reisado. De repente o ritmo
simples e dos instrumentos).
CENA IV
Entra Vila Rica, personagem alegórico. Mascarado.
Traz a capa do Reisado e a coroa de falso ouro na mão.
VILA RICA - Tu me chamaste em teu coração.
CHICO REI - Vila Rica, eu disse o teu nome aos quatro
ventos.
VILA RICA - Fizeste mal.
CHICO REI - Que sei lá do certo ou do errado. Eu te
maldizia.
VILA RICA - Eu sou tua cidade. Toma (estende a coroa).
CHICO REI - A coroa de ouro falso.
VILA RICA - E o manto da falsa púrpura. Que querias
mais? Em tua África andavas nu.
CHICO REI - Mas reinava sobre a liberdade.
VILA RICA - Eu te dei uma chance. És livre.
CHICO REI - Como numa ilha de exílio. Que representa o
meu Estado, senão a concessão ardilosa de
um Estado muito mais poderoso, e que me
vigia?
VILA RICA - Que querias mais, Chico Rei? Os outros
padecem.
CHICO REI - É por isso que eu não posso viver em paz... é
por isso que enlouqueço.
VILA RICA - Só voltando às Áfricas.
CHICO REI (Esperançoso) - Deixa-me voltar.
VILA RICA - Lá já não existe nada mais do que era teu.
Só verás devastação.
CHICO REI - Começarei tudo de novo.
VILA RICA - Como um animal...
CHICO REI - Como um animal livre.
VILA RICA (Deposita a coroa no banco que servia de
trono a Chico Rei) - Não creio que isto seja
justo e bom para ti.
CHICO REI (Com rancor) - Cidade cruel!
VILA RICA - Eu te amo. Tu me deste o teu sangue e o
sangue dos teus, é disso que se constroem as
nações. Eu sou uma ilha, como disseste, mas
uma ilha de flama neste Brasil, e ninguém
me tocará para destruir. Eu sou Vila Rica
e vou permanecer como um pássaro
empalhado para consolo dos que não viram
a glória.
CHICO REI - Triste glória a tua, Vila Rica. A deste ouro
maldito.
VILA RICA - É a glória que me cabe, Chico Rei.
Compartilho-a contigo.
CHICO REI - Não quero. Deixa-me viver, ou mata-me
agora! (Estende o punhal para Vila Rica
que não se move. Volta o punhal contra o
próprio peito. Faz um esforço por cravar-
se, o braço não obedece) O que está se
passando?
VILA RICA - Ainda não é a hora.
CHICO REI - Acaba com esta tirania.
VILA RICA - É inútil, Chico Rei. O destino existe e
estamos na metade do caminho.
CHICO REI - Estou perdendo minha rainha, meu
príncipe filho e minha princesa nora.
(Música do batuque ao longe).
VILA RICA - Escuta, é por ti.
CHICO REI - Ah, que farsa... e que rei mais triste.
VILA RICA - Mas não te perco. És das coisas melhores
que este tempo de paixão me trouxe.
CHICO REI - Maldita!
VILA RICA - Podes me insultar. Eu conheço o amor dos
selvagens... Mil noites cavalgaram através
de meus caminhos. Mil cavalos de aço
gastaram peitos e crinas contra os
espinhos. Mil olhos se dissolveram em
carniça depois das emboscadas. Eu sei o que
é preciso para se ser eterno.
CHICO REI - Deixa-me morrer agora!
VILA RICA - Nunca!
CHICO REI - Tu vais gastar até o fim a minha pobre
alma, cidade do demônio!
VILA RICA - Em troca terás a minha atmosfera azul, os
meus rios e minhas praças terríveis. Eu já
te dei minhas minas e minha Igreja de
Santa Ifigênia. Eu te soprei ao ouvido toda
a inspiração, para que sonhes.
CHICO REI - Eu já não sonho, eu já não durmo. Eu
espero a morte... Já não espero nem respiro
o ar da esperança. A minha vassalagem
treme diante das forças imperiais que
acobertas. Os capitães bárbaros nos
espreitam fuzilantes, e suas mãos
acariciam chicotes que logo serão nosso
prêmio. Esta pausa não me satisfaz.
VILA RICA - Que mais posso fazer?
CHICO REI (Incendiado) - Faz tremer a terra.
VILA RICA - Não!
CHICO REI - Faz tremer a terra e engole as raças todas
com a mesma graça do Juízo Final.
Absorve esta arquitetura e estes sinos que
anunciam tão freqüentemente a morte.
Acaba com esta arena.
VILA RICA - Nunca! Eu permanecerei.
CHICO REI - Revolta-te contra esta trama subterrânea.
Destrói os espelhos do teu salão de perjúrio.
Incinera as tuas concubinas. Despoja os
bastardos que sujam tuas noites com as
errâncias venenosas. Esmaga os sensuais, os
ciúmes ferozes de todo o dia. E esta Santa
Igreja, cuja bandeira ostentas.
VILA RICA (Benze-se) - Por Deus!
CHICO REI - Não por Deus, não é por Ele, mas pelos que
em seu santo nome chafurdam no pior dos
teus piores espasmos. Esmaga-os como
piolhos nocivos, a esses sombrios padres que
vendem e trocam almas por dobrões de teu
ouro infeliz.
VILA RICA - Estás indo longe demais.
CHICO REI - Mata-me, então.
VILA RICA - Nunca!
CHICO REI - Então ouve. É pelo ouro que isto tudo
acontece. Se fosses pobre...
VILA RICA - Sou Vila Rica.
CHICO REI - Nome infeliz.
VILA RICA (Rindo) - Despeitado! Rei carvoeiro!
CHICO REI - Mata-me, se me desprezas!
VILA RICA - Isto não!
CHICO REI - És a mãe da justiça por interesse.
VILA RICA - Pouco vejo, mas meu diadema cintila.
CHICO REI - Alto demais é teu trono. Que sabes tu da
liberdade?
VILA RICA - Sou livre.
CHICO REI - Livre? (Ri) A liberdade é outra coisa, a
liberdade arma-se também no teu seio, mas
vai explodir noutras fontes, mais futuras.
Não é em ti que se dará o milagre. Teu
diadema está fossilizado e um dia cairão as
paredes das tuas igrejas, e estarás
infinitamente inerte em tuas lágrimas de
coração vencido.
VILA RICA - Sou livre! Livre!
CHICO REI - Livres serão os filhos dos teus filhos. Eles
aprenderão sobre os pecados dos pais. Mas
o teu seio estará gasto de tanto dar
alimento a estas lobas espinhosas.
VILA RICA - Que sabes tu de mim e do tempo, Chico Rei?
CHICO REI - Dá-me a morte, e eu calarei!...
VILA RICA - Não insistas.
CHICO REI - Com toda a tua soberba estás pendente das
cartas de sua majestade portuguesa. É isto
o que te satisfaz? Eu sou mais livre do que
tu.
VILA RICA - É o que pensas... As majestades
portuguesas apenas se saciam de me
perder. E tu estás nas minhas mãos. Eu
resolvo tudo o que te convém. Nem da tua
morte és dono.
CHICO REI - Cidade cruel.
VILA RICA - Das cartas de sua majestade bastou-me
aquela que ordenava a Arthur de Sá a não
permitir a entrada de mais gente para as
Minas. Mas eu sou dona da noite, e os
caminhos que invento não há capitão-do-
mato que descubra. Eu guio os ambiciosos
como cegos pela mão. Todos chegam até
aqui. Já não se trata de mim, mas de
semear a intranqüilidade em além-mar. E
ninguém dominará os filhos da cobiça. Eu
sou seu escudo.
CHICO REI - Ferruginoso escudo.
VILA RICA - E tu és o rei que escolhi.
CHICO REI - Como?
VILA RICA - Para desafiar o rei português. Tu és meu
rei.
CHICO REI - O que dizes?
VILA RICA - O que ouviste.
CHICO REI - Brincas comigo.
VILA RICA - Talvez.
CHICO REI - Deixa-me em paz.
VILA RICA - Aqui se esquece a paz.
CHICO REI (Rendido) - Então eu sou teu rei.
VILA RICA - O que querias mais? De escravo eu te
permiti a realeza.
CHICO REI - Conquistei-a eu, com meu trabalho.
VILA RICA - E quem afrouxou a lei para que te pudesses
alforriar e alforriar os teus? Quem? Quem
concedeu noites de grande luar para que
sonhasses com a liberdade? Quem permitiu
que fosses como a encarnação do espírito de
Deus pairando sobre as águas?
CHICO REI - Era assim que eu me sentia.
VILA RICA - Ah, te agradam as altas comparações!
(Outro tom) Eu te acalentava e tu vias
tudo. Se não fosse eu, ainda hoje estarias
sem memória e sem angústia, sob o grilhão
de teu amo, já esquecido de tua realeza e do
teu passado. Eu te dei a terra.
CHICO REI - Mas de que valeu tudo isto?
VILA RICA - Agora te dás conta. Se a liberdade não vale
alguma coisa, o que é que vale para os
homens?
CHICO REI - Mas a minha liberdade é pequena e falsa
como o ouro dessa coroa.
VILA RICA - É uma noção de liberdade que ficará. O que
mais queres?
CHICO REI - Viver.
VILA RICA - Também tu. Há pouco me pedias a morte.
CHICO REI - Porque eras obstinada e tirânica. Mas se
me dás a verdadeira vida...
VILA RICA - É preciso tempo, e nós já não temos tempo.
Mas tu tens que te oferecer mais, em nome
do que se prepara. Olha a coroa e a capa, é
hoje o Reisado.
CHICO REI - Já sei, já sei. Pobre rei que sou, incapaz de
devorar todos os súditos, como uma gata
devoraria a ninhada defeituosa. Não há
beleza no meu reino, não há esperança no
meu reino.
VILA RICA - Não te escuto mais, nem te respondo. Teu
sofrimento é uma gota d'água em meu mar
de lágrimas. Não serei para ti uma cidade
suicida, embora as víboras que alimento me
conduzam à torre do egoísmo. (Afasta-se).
CHICO REI - Já te vais?
VILA RICA - Que mais queres de mim? Já nos dissemos
tudo.
CHICO REI - Quando poderei baixar o punhal sobre o
meu coração?
VILA RICA - Isto nunca!
CHICO REI - A víbora és tu!
VILA RICA - Não renunciarei ao teu reinado. Vai,
Santa Ifigênia te espera.
CHICO REI (Apanhando a capa) - Esta capa é falsa.
(Apanhando a coroa) Esta coroa é falsa.
VILA RICA - Muita gente rirá de ti, nas ruas, vendo o
teu séquito.
CHICO REI - Ainda me humilhas.
VILA RICA (Já no portal) - Mas eu te amo em meu
coração. Meu filho, meu amante. Eu te
amo. Isto é o que importa. (Pasmo de Chico
Rei com a capa numa das mãos e a coroa
na outra. Vila Rica sai).
CENA V
Música surda do Reisado ao fundo.
CHICO REI - Estou só com estes despojos. Minha rainha
chora. Meu filho pressente que não será rei
pois a nossa hierarquia sucumbe. Minha
nora perde o amor de meu filho que se
inquieta e não se afunda mais no seio
amado. Estou só porque sei de tudo:
passado, presente e futuro. Com o demônio
pousado em meu ombro, passo diante desses
fantasmas. (Exaltado) Tu, quem és tu, filho
do ouro, com esses olhos azuis e esta pele de
açucena? Quem és tu que apóias a mão
nesta espada reluzente e pisaste meu
domínio africano com esta caçada de
vergonha? E tu, sempre empunhando este
chicote, com esta carne suspeita de
mestiço, com este ódio de inferior e esta
força animal, onde está tua alma? Tu, que
nem entendeste da nossa tristeza e que
foste a máquina dócil na mão dos
perfumados príncipes dominadores. Quem
és tu, porco afeminado que nos colocaste em
galés, como um tronco de madeira sem
sangue e sem sentidos, esperando que te
servíssemos infinitamente, e que não
morrêssemos e não desfalecêssemos nunca,
nós que éramos a glória muscular de uma
raça. De uma raça que crescia diante dos
teus olhos, porque nada sabíamos de
dominações humilhantes. E tu, Conde de
Assumar, gavião célere sobre os ares desta
Vila Rica. Tu que impões a lei a despeito de
qualquer verdade maior, servidor deste D.
João V, despótico alimentador de feras, que
nada tem a dar senão títulos de honra, e os
dá por amizade ou terror como uma lebre
acuada. Só conheço o teu rei pelas garras
do teu fisco e pelas rédeas desumanas dos
seus ministros. Tu, Conde de Assumar,
exagerado disciplinador que não viste a
justiça dos desamparados, mas jogaste a
espada cegamente, como um ídolo. Tu,
Governador, que só tinhas para consolo de
tua solidão, o direito de não consentir
costumes viciosos nem espíritos rebeldes. Tu
que idealizaste o código negro, porque te
afligia o número de negros errantes por
estas plagas, este desgracioso rebanho de
humilhados e vítimas. (Pausa. A música
cresce) É o momento do Reisado e eu estou
só como um fantasma. O amor é um
engano, mas nele buscamos a nossa força.
Mesmo um rei tem compromissos de amor,
ainda mais um rei tão desamparado. (Põe a
capa nos ombros) Como pesa! (Coloca a
coroa na cabeça. Olha para o portal da
igreja. Jogo de luz e sinos. Neste momento
deve surgir, se possível, um Reisado
completo, com dança, canto e desfile.
Passado o Reisado surge a figura da Morte.
Silêncio total) A morte...
CENA VI
MORTE - Tu me chamaste.
CHICO REI (Desolado) - Quando poderei baixar o punhal
sobre o meu coração...
MORTE - Vim para te dizer que existo.
CHICO REI - Graças a Deus! (Vai ajoelhar-se).
MORTE (Erguendo-o) - Não, não te ajoelhes. Neste
momento és um verdadeiro rei, diante de
mim.
CHICO REI - Quero ir contigo.
MORTE - Tua carne está verde. Ainda não... A História
me desarma.
CHICO REI - Eu estou sofrendo.
MORTE - Eu tenho compaixão de ti.
CHICO REI - Como eu tenho sonhado contigo!
MORTE - No meu regaço esquecerás tudo.
CHICO REI - Isto é a paz.
MORTE - Será?
CHICO REI - Espero que seja.
MORTE - Se não fosse pelo amor que te conduziu até
aqui, eu já te teria levado.
CHICO REI - A quem levas?
MORTE - Aos que já se cumpriram. Ou aos que não
vieram para cumprir nada. Apenas para
assistir. Com estes é fácil.
CHICO REI - E eu?... Eu já cumpri... meu reino fica lá,
além do mar... tu sabes...
MORTE - Sei.
CHICO REI - Então me consideras já para além do que
fui mandado?
MORTE - Teu destino se desdobra. És um predestinado.
CHICO REI - Mas a gente nasce para ser feliz. E eu
sofro...
MORTE - Nada sei da felicidade. Sei da mistura dos
elementos que forjam a alma.
CHICO REI - Eu não posso mais lutar. Sou um escravo.
MORTE - És um rei.
CHICO REI - Não, tu sabes que não. Tu sabes tudo. Lês o
que se passa no fundo do meu coração... eu
não sou cego.
MORTE - As feras rasgam a carne contra as armadilhas,
e se matam sem saber, porque estão presas.
O homem pode construir com sua prisão o
pássaro da liberdade.
CHICO REI - Minha nação sucumbe.
MORTE - E quem te disse que vieste para salvar da
escravidão uma pequena nação de negros?
Quem te disse? Chico Rei, o teu coração não
sabe tudo.
CHICO REI - Eu amo os meus filhos, os meus amigos, os
meus súditos.
MORTE - Amarás os teus inimigos. Porque os que
oprimem não sabem que ao forjar cadeias
se aprisionam em vergonha e indignidade.
Os que oprimem serão esmagados pela
aflição que causam. Morrerão desesperados
e asfixiados. Apieda-te dos poderosos.
CHICO REI - De El Rei D. João V.
MORTE - Tu não o conheces.
CHICO REI - Eu o odeio.
MORTE - Um pobre manequim de arminho e medo, é o
que ele é. Como todo o déspota. Tu não tens
amor por ele, Chico Rei?
CHICO REI (Descrente) - Quisera.
MORTE - Eu vou te ensinar o amor. Eu existo para isso.
Se a morte não existisse, o amor não
salvaria o homem, porque é o amor que
reúne as legiões contra mim. É com amor
que me combatem e resistem.
CHICO REI - É com ódio.
MORTE - A agonia, com amor, é muito mais leve, muito
mais consoladora. É me combatendo que os
homens se salvam, Chico Rei. Tu ainda não
tens amor...
CHICO REI - Esta espécie de amor, não!
MORTE - Vais morrer muito velho, Chico Rei.
CHICO REI - Velho...
MORTE - E manso... manso como um cordeiro. E com o
coração tão repleto de mansidão que eu te
chamaria santo. Queres ser santo, Chico
Rei?
CHICO REI - Quero ser livre e deixar livre meu povo.
MORTE - Pois aprende o amor desde já. Eu tenho a
única liberdade que conta para ti. Eu sou a
tua morte. E tu me enfrentarás com amor.
Não com o amor menor que te limita a pai,
amante e esposo. Mas com um amor que
não exclui mesmo os inimigos.
CHICO REI - És uma louca!
MORTE (Riso largo) - Não imaginas quanto, Chico Rei.
CHICO REI (Ouvindo a música do Reisado) - Agora devo
ir.
MORTE - Não antes de mim. As negras já desempoaram
e estão felizes.
CHICO REI - São vaidosas como cães de caça.
MORTE - As tuas negras, Chico Rei.
CHICO REI - O meu povo dança, o meu povo canta.
MORTE - E os poderosos cismam apavorados com o
segredo que eu pouso diariamente na raiz
do sangue. Eles não sabem o que fazer com
a sua morte. Tu já sabes... teu delírio me
pertence e tu sabes que eu te construo.
CHICO REI - Sei.
MORTE - Adeus. (Olhar de Chico Rei como uma
despedida. A Morte sai. O canto ao longe é
melancólico e ritmado. Um canto muito
triste de resignação).
CENA VII
CHICO REI (Elegia e Cantochão) - Quando poderei
baixar o punhal contra o meu coração?
Eles dançam e cantam e se embriagam. Ai,
Angola, Moçambique, Áfricas remotas,
Congos e Senegais. Que saudade sinto do rei
que fui. Bastava então a minha vida para
que o povo fosse feliz. Hoje o vício do
dominador passou para cada espírito, riem
nesse arremedo de civilização, integram o
deboche das vaidades, são cúmplices dos
traidores. É por essa liberdade que lutei. É
por essa liberdade que me pedem
resistência e paciência. Eu quero ver a
limpeza e a ordem. (Clamor) Põe em ordem
tua vida, negro! Apanha o que há de
melhor nesta lama do mundo e planta o teu
jardim. Planta a tua horta, negro! Aprende
o teu canto e a tua oração, para que os
santos te valham. Quem me comanda nesta
luta é muito maior que o desespero, e até a
morte me abandona. Esta cidade de Vila
Rica tem desígnios que não alcanço. (Canto
mais alto, depois atenuado) Quem sou eu? O
que dirão de mim os que apenas souberam
do meu sacrifício? Morrerei de velho como
um capitão nauseado do mar e seu
embalo... (Outro tom) Corpos ao mar! Por
que não fiquei lá entre os caminhos da
água, ainda com terras de África na boca?
Agora aqui estou neste 6 de janeiro de 1720,
esperando o fim do Reisado. As negras lá,
impacientes como potrancas novas, com
seus adereços e suas sedas e seus perfumes
pesados. Esperando por mim, seu rei.
Amanhã estarão fatigadas da festa, com
um gosto amargo na boca, a seda rompida
no entusiasmo da dança. Pobres damas de
honra de um séquito falido. E eu morrerei
de velho, com a desesperança me
emaranhando a palavra, ou talvez um
silêncio de quem viu a Morte e não foi
salvo. (Ouve-se de fora um Cantochão,
coral, pronunciando o nome de Chico Rei,
repetindo o fraseado fúnebre em "bocca
chiusa") Já vou. Os poderes maiores não
quiseram deter a força do meu coração.
Tenho que chorar todas as lágrimas por
este reinado fictício. Mas se alguém me
escutar ou me erguer da poeira desta
abandonada Vila Rica, sentirá que uma
chama conduz o meu cego fantasma por
estes montes eternos. É o meu sangue que
quer ser livre, e permanece. É o tempo de
uma festa de Reis em que dançamos como
loucos, o peito em fogo, a alma desabalada.
(Outro tom) Ai, terras de África,
Moçambiques tranqüilos, sois o punhal
baixando sobre o meu coração.
(Encaminha-se, lentamente, para o portal
da igreja, enquanto irrompe o canto mais
alegre das músicas do Reisado, e tocam os
sinos. Ilumina-o um único ponto de luz até
que desapareça com um legítimo rei. E o
pano fecha).
FIM