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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE ARTES
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM MSICA
THIAGO COLOMBO DE FREITAS
CIACCONA EM R MENOR BWV 1004 DE J. S. BACH:um estudo das
articulaes e uma transcrio para violo
Orientador: Prof. Dr. Daniel Wolff
Porto Alegre
2005
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A meus pais
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AGRADECIMENTOS
Agradeo ao Prof. Dr. Daniel Wolff, pelo trabalho realizado nesta orientao.
Aos professores Fredi Gerling, Andr Loss e Fernando Mattos, pelas idias e
contribuies bibliogrficas.
minha irm, Ana Laura, e aos colegas que contriburam comigo
das mais variadas formas.
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O que vo descobrir em nossos textos,no sabemos.
Temos intenes, pretenses inmeras.Mas o que vo descobrir em nossostextos,no sabemos.Desamparado o texto,desamparado o autor,se entreolham, em vo.rfo,o texto aguarda alheia paternidade.rfo,o autor consideraentre o texto e o leitor
- a desletrada solido.
Af fonso Romano de Santanna
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RESUMO
Este trabalho uma anlise das articulaes indicadas por Johann
Sebastian Bach (1685-1750) na sua Ciaccona em r menor - quinto movimento
da Partita II para violino solo, BWV 1004 e uma transcrio desta obra para
violo. A questo da interpretao dos sinais de articulao assinalados por
Bach abordada a partir de referenciais tericos e prticos. So discutidas as
tradies de execuo e os variados entendimentos atribudos por estas aos
sinais de articulao.
Palavras-chave:
Articulao musical transcrio retrica barroca tradies de
execuo
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ABSTRACT
This work is an analysis of the articulation markings in Johann
Sebastian Bachs Ciaccona in D minor - fifth movement of the Partita BWV
1004, for solo violin and a transcription for guitar. The problem of interpreting
Bachs articulation indications is examined in the light of theoretical and
practical references. The discussion also focuses on performance traditions and
the various understandings of the articulation markings led to by these
traditions.
Keywords:
Musical Articulation transcription baroque retoric musical
performance traditions.
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LISTA DE EXEMPLOS MUSICAIS
Exemplo 1: Soggetto cavatoencontrado no Orgelbchlein, BWV 625, Christ lag
in todesbanden(Williams, 1981, p. 67). ..................................................... 20
Exemplo 2: Compasso 60 da Ciaccona (urtext)......................................... 31
Exemplo 3: compasso 57 da Ciaccona. Em destaque, figura agrupando trs
notas e articulando a quarta. ..................................................................... 31
Exemplo 4: incio da Toccata em f maior BWV 504 para rgo (Keller, 1955,
p. 120)........................................................................................................ 32Exemplo 5: Compasso 16 da Ciaccona (urtext)......................................... 36
Exemplo 6: compasso 16 da Ciaccona: representao grfica da execuo de
David Russell. ............................................................................................ 36
Exemplo 7: compasso 16 da Ciaccona: representao grfica da execuo de
Thomas Zehetmair..................................................................................... 37
Exemplo 8: compasso 16 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia. ......... 38
Exemplo 9: Suite BWV 1012 para violoncelo: compasso 1 do preldio (antes da
barra dupla) e compasso 7 da Giga (depois da barra dupla), urtext (pentagrama
superior) e transcrio de Stanley Yates (pentagrama inferior). ................ 40
Exemplo 10: compassos 109 e 110 do Preldio BWV 1006 (pentagrama
superior) e do BWV 1006a, transcrio para alade do compositor (pentagrama
inferior)....................................................................................................... 41
Exemplo 11: compassos 229 e 230 da Ciaccona: manuscrito (pentagrama
superior), representao grfica das execues de Russell e Fernndez
(pentagrama inferior). ................................................................................ 42
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Exemplo 12: trecho da Paixo segundo So Mateus (Keller, 1955, p. 55).
................................................................................................................... 45
Exemplo 13: trecho da Valsa, Op. 64, n 2 de Chopin (Keller, 1955, p. 55).
................................................................................................................... 45
Exemplo 14: compassos 81-83 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia. 46
Exemplo 15: compassos 81-83 da Ciaccona: edio de Henryk Szeryng. 46
Exemplo 16: compassos 85-88 da Ciaccona (urtext)................................. 48
Exemplo 17: compasso 85 da Ciaccona: edies urtextNeue Bach Gesellschaft
e Neue Bach Ausgabe. .............................................................................. 49
Exemplo 18: compassos 245-247 da Ciaccona (urtext)............................. 50
Exemplo 19: compassos 245-247 da Ciaccona: edies de Abel Carlevaro(pentagrama superior) e Henryk Szeryng (pentagrama inferior)................ 51
Exemplo 20: compassos 245-247 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia.
................................................................................................................... 52
Exemplo 21: compasso 245 da Ciaccona: representao grfica da execuo
de Eduardo Fernndez. ............................................................................. 53
Exemplo 22: compassos 29-32 da Ciaccona (urtext)................................. 56
Exemplo 23: compassos 29-32 da Ciaccona: edio de Enrico Polo. ....... 57Exemplo 24: compasso 221 da Ciaccona: possvel notao usada atualmente,
considerando a funcionalidade das notas (pentagrama superior); notao do
compositor (pentagrama inferior). .............................................................. 59
Exemplo 25: compasso 221 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia
(pentagrama superior) e representao grfica da sua execuo............. 60
Exemplo 26: compasso 217 da Ciaccona: possvel notao usada atualmente,
considerando a funcionalidade das notas (pentagrama superior); notao docompositor (pentagrama inferior). .............................................................. 62
Exemplo 27: compassos 22-25: do Preldio BWV 1011 para violoncelo
(pentagrama superior), da transcrio para alade do compositor (BWV 995,
pentagrama intermedirio) e de tablatura feita por um alaudista do sculo XVIII
(pentagrama inferior). ................................................................................ 66
Exemplo 28: compassos 49-51 da Ciaccona (urtext)................................. 68
Exemplo 29: compassos 49-51 da Ciaccona: edies de Abel Carlevaro
(pentagrama superior) e de Andrs Segovia (pentagrama inferior). .......... 69
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Exemplo 30: compassos 49-51 da Ciaccona: edies de Enrico Polo
(pentagrama superior) e de Henryk Szeryng (pentagrama inferior)........... 71
Exemplo 31: compassos 72 e 73 da Ciaccona (urtext).............................. 72
Exemplo 32: compassos 65-80 da Ciaccona: A- variao compreendida entre
os compassos 65-72, B- variao compreendida entre os compassos 73-80,
a- duas figuras primordialmente em semicolcheias, b- figura primordialmente
em fusas, a- duas figuras figuras primordialmente em fusas, b- figura
primordialmente em semicolcheias............................................................ 74
Exemplo 33: compassos 65-80 da Ciaccona: A- variao entre os compassos
65-76, B- nova variao. ......................................................................... 77
Exemplo 34: compassos 65-80 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia. 79Exemplo 35: Ciaccona compasso 1: a)original b) transcrio com adio de
baixo .......................................................................................................... 81
Exemplo 36: a) conduo das vozes no original, b) conduo das vozes na
transcrio ................................................................................................. 81
Exemplo 37: Ciaccona compasso 229: a)original, b) transcrio com
deslocamento de oitava da nota pedal ...................................................... 82
Exemplo 38: Ciaccona compasso 29: a) original, b) transcrio com adio debaixo .......................................................................................................... 83
Exemplo 39: Ciaccona compassos 72-73: a) original, b) transcrio com adio
de baixo ..................................................................................................... 83
Exemplo 40: Ciaccona compasso 81: a) original, b) transcrio com inverso de
haste .......................................................................................................... 84
Exemplo 41: Ciaccona compasso 241, a) original, b) transcrio com
duplicao de hastes ................................................................................. 85Exemplo 42: Ciaccona compasso 88: a) original, b) transcrio com adio de
ligados mecnicos ..................................................................................... 86
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SUMRIO
INTRODUO ...........................................................................12
Articulao e msica barroca.......................................................................12
Retrica e semntica na msica de Bach e a Ciaccona..............................15
Tradies de Execuo................................................................................21
1 LIGADURAS CURTAS ...........................................................30
1.1 Ligaduras em funo da mecnica...................................30
1.2 Ligadura em resoluo de apojatura................................35
1.3 Ligaduras em Pedal............................................................39
1.4 Ligaduras indicativas de acentuao rtmica ..................44
1.4.1 Ligaduras responsveis por acentuao hierrquica........................ 44
1.4.2 Ligaduras responsveis por quebra de acentuao hierrquica....... 50
1.5 Ligaduras indicando pol ifonia implcita...........................55
1.5.1 Ligaduras em arpejos ....................................................................... 551.5.2 Polifonia conquistada por saltos ....................................................... 58
1.5.3 Polifonia conquistada por saltos e arpejos........................................ 61
2 LIGADURAS LONGAS...........................................................65
2.1 Ligaduras marcando mudana de harmonia ...................68
2.2 Ligaduras caracterizando mudana de afeto ..................72
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3 COMENTRIOS SOBRE A TRANSCRIO.........................80
3.1 Alterao e adio de notas ..............................................80
3.1.1 Notas adicionadas para preenchimento harmnico.......................... 80
3.1.2 Notas adicionadas para reforar a articulao.................................. 82
3.2 Inverses e duplicaes das hastes ................................84
3.3 Adio de l igaduras ...........................................................85
CONCLUSO ............................................................................87
REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS..........................................91
APNDICE A CIACCONA (TRANSCRIO: THIAGO
COLOMBO DE FREITAS) .........................................................95
ANEXO A CIACCONA (MANUSCRITO) ................................105
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INTRODUO
O presente artigo um estudo da articulao musical na Ciaccona
BWV 1004, de J. S. Bach, seu entendimento pelas vrias tradies de
execuo ao longo dos tempos, e sua aplicabilidade ao violo, demonstrada na
transcrio em anexo.
Ar ticulao e msica barroca
Estudar a articulao musical em obras do perodo barroco
imprescindvel para o entendimento e, por conseguinte, para a execuo de
uma msica fundamentalmente orientada pela linguagem, que, nas palavras
de Harnoncourt (1984, p. 42), fala, em contraposio msica posterior a
1800 que, a grosso modo, pinta.
Segundo Hermann Keller (1955, p. 46),
Tal qual o fraseado, tambm a articulao musical deriva dalinguagem. Os sons da fala se compe de vogais, aqueles comsonoridade prpria, e consoantes, que se combinam com asmesmas. Emiti-las claramente e delimit-las umas das outras a misso da articulao lingstica. A criana aprende a falar
aprendendo a articular.
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A importncia da articulao musical apontada por Keller no seu
estudo Phrasierung und Artikulation: Ein Beitrag zu einer Sprachlehre der Musik
(1955, Brenreiter-Verlag, Kassel und Basel) nos remete s palavras de
Schenker (in: Keller, 1955), segundo o qual,
[...] o problema deveria apoiar-se sobre uma base vocal, ouseja, sobre aquela arte da distribuio da respirao que seperdeu h muito, mas que, no obstante, de uma maneiramisteriosa constitui tambm o fundamento da articulaomusical.
Harnoncourt1(1984, p. 49) diz que,
Articulao o nome dado ao processo tcnico de falar, amaneira de proferir as diversas vogais e consoantes. De acordocom o Lexikonde Meyer (1903), articular dividir, expor algoponto por ponto; fazer com que as partes separadas de um
todo apaream claramente, sobretudo os sons e as slabas daspalavras. Na msica, compreende-se por articulao o ligar edestacar das notas, o legato e o staccato, bem como a suamistura, para a qual muitos empregam abusivamente o termofrasear. Deparamo-nos com o problema da articulaoprincipalmente na msica barroca, mais precisamente namsica de 1600 at 1800, pois esta fundamentalmenteorientada pela linguagem. Os paralelos com a linguagem foramacentuados por todos os tericos daquele tempo, e a msicaera freqentemente descrita como uma linguagem de sons.
O trabalho como professor de msica somado experincia pessoal
de aprendizado nos mostra uma dificuldade singular no estudo de obras de
perodos anteriores ao sculo XIX. Esta dificuldade est ligada diferena
fundamental de conceito referida por Harnoncourt, que nos permite dividir,
ainda que de forma superficial, em duas partes a msica ocidental do medievo
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at hoje, e nos leva a denominar msica antiga a msica feita antes do sculo
XIX. Podemos dizer que, para ns, esta linguagem dos sons constitui uma
lngua estrangeira, j que no somos homens do barroco (Harnoncourt,
1984). O aprendizado desta lngua implica em entender uma arte-linguagem
baseada nos princpios da retrica2.
A arte do discurso musical est, ento, dividida em trs partes:
Inventio, idia bsica a ser apresentada; Dispositio ou Elaboratio, esqueleto
da pea; Pronuntiatioou Elocutio, apresentao do discurso (Kloppers, 1965, p.
56-65, 196, in: Butt, 1990, p. 16). De acordo com Butt (1990, p. 16), Inventio
pode ser facilmente associado com o Affekt3 nico tradicionalmente
associado com cada pea musical [...] Decoratio4 a continuao do mesmo
processo [Elaboratio], adicionando detalhes e palavras ou frases individuais.
Cabe ao executante a tarefa de realizar o elocutio, mas este s poder ser bem
concretizado se o executante tiver conhecimento sobre as etapas anteriores.
Temos ento que conhecer os afetos contidos na obra ( inventio), entender as
1HARNONCOURT, Nikolaus. O discurso dos Sons: caminhos para uma nova compreensomusical. Traduzido por Marcelo Fagerlande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1998.2 Todos os conceitos musicais relacionados retrica originaram-se na extensiva literatura
sobre oratria e retrica dos escritores da Grcia e Roma antigas, principalmente, Aristteles,Ccero e Quintiliano. (SADIE, Stanley. Rhetoric and music in: The New Grove Dictionary ofMusic and Musicians. v 21. p.261-2)3Como resultado de suas intrincadas relaes com as doutrinas retricas, a msica barrocatomou como seu objetivo esttico primrio a obteno de uma unidade estilstica baseada emabstraes emocionais chamadas de Afetos. Um afeto (Affekt em alemo, do grego pathos edo latim affectus) consiste em um estado emocional ou paixo racionalizada. Aps 1600, arepresentao dos Afetos tornou-se a necessidade esttica da maioria dos compositoresbarrocos, sejam quais fossem suas nacionalidades, e a base fundamental de numerosostratados. (SADIE, Stanley. Rhetoric and music in: The New Grove Dictionary of Music andMusicians. v 21. p.261-2)4A transformao mais complexa e sistemtica do conceito de retrica em uma equivalnciamusical origina o decoratio da teoria da retrica. Na oratria, cada orador modifica o seu
comando das regras e tcnicas do decoratio de forma a embelezar suas idias com umaimagem retrica e, infundir o seu texto/discurso com uma linguagem apaixonada. O significadodisso foi o amplo conceito sobre as figuras de linguagem. (SADIE, Stanley. Rhetoric andmusic in: The New Grove Dictionary of Music and Musicians. v 21. p.261-2)
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inflexes que exibem ou ocultam figuras5 significativas, anotadas pelo
compositor para tornar atraente o texto (decoratio), e conhecer as tradies de
execuo, onde encontramos referenciais prticos, que nos auxiliaro nesta
realizao da etapa final, o elocutio.
Retrica e semntica na msica de Bach e a Ciaccona
Uma idiossincrasia de Bach que o diferenciou dos msicos de seu
tempo foi o rigor de detalhes na escrita. Harnoncourt6 (1984, p.45) diz que
Bach foi o nico compositor de seu tempo que repetidamente rompia as
barreiras entre obra e execuo, as quais definiam de maneira fundamental a
msica do perodo barroco. Bach era especialmente detalhista na notao da
articulao e dos ornamentos. Tal detalhismo foi um dos agentes responsveis
por uma mtica controvrsia pblica entre Johann Adolph Scheibe, compositor
contemporneo de Bach, e Johann Abrahan Birbaum, amigo de Bach,
professor de retrica em Leipzig e compositor. Em trecho da crtica escrita por
Scheibe em 1737 (in: Harnoncourt, 1984, p. 45-46), dirigida ao senhor
compositor da corte, ele diz:
Este grande homem seria objeto da admirao de naesinteiras caso fosse mais gracioso e se no subtrasse toda anaturalidade s suas peas por meio de uma execuobombstica e confusa, cuja beleza obscurecida por seusexcessos artsticos. [...] Ele expressa detalhadamente, emnotas, todos os maneirismos e pequenas ornamentaes que
5A Figurenlehre, ou teoria das figuras, se refere a uma repertrio de gestos musicais tpicosdo perodo barroco, um repertrio mais ou menos codificado que tradicionalmenterelacionado com o aspecto retrico da msica. Por definio, esta uma compilao de gestosmusicais usualmente e quase universalmente empregados. Neste caso, h uma regra similarquela dos tropiretricos, isto , figuras comuns do discurso escrito ou falado. (Fernandez,
2003, p. 81)6HARNONCOURT, Nikolaus. O Dilogo Musical: Monteverdi, Bach e Mozart. Traduo de LuisPaulo Sampaio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 1993.
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entendemos como prprios ao modo de tocar, o que no sretira de suas peas toda a beleza e harmonia, como torna ocanto bastante inaudvel.
Em trecho de sua rplica, escrita em 1738, Birbaum refuta os
argumentos de Scheibe da seguinte forma:
O que seria bombstico na msica? Ser que se deveentend-lo tal como o significado dado ao termo na arte daretrica, onde usado para designar uma forma de escrita emque so aplicados os mais sublimes ornamentos de linguagempara enfatizar coisas insignificantes e destarte tornar ainda
mais evidente a sua inconseqncia? O simples fato de sepensar assim em relao ao senhor compositor da corteconstitui a mais grosseira injria. Este compositor nodesperdia seus magnficos ornamentos em canes detaverna, canes de ninar ou demais galanterias inspidas. Emsuas peas religiosas, suas aberturas, seus concertos e outrasobras, encontramos seus ornamentos sempre emconformidade com os temas principais desenvolvidos por ele...[...] Ele conhece to profundamente os aspectos e regras quetm em comum a obra musical e a arte da retrica, que no so ouvimos com grande prazer quando emite suas profundasopinies a respeito das similitudes e concordncias das duas
artes, como tambm admiramos a hbil aplicao que faz dasmesmas em suas obras.
O preciosismo da escrita musical de Bach permitiu que sua obra
chegasse at ns conservando sua riqueza de significado expressa em cada
ornamento e em cada figura agrupada pela articulao. Quando Birbaum
escreve que Em suas peas religiosas, suas aberturas, seus concertos e
outras obras, encontramos seus ornamentos sempre em conformidade com os
temas principais desenvolvidos por ele, refere-se ao no uso de notas
gratuitas. Podemos dizer que os ornamentos de Bach so sempre referentes
a uma citao que est relacionada temtica central da obra. Este argumento
responde satisfatoriamente a Scheibe quando diz, de forma pejorativa, que ele
expressa detalhadamente, em notas, todos os maneirismos e pequenas
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ornamentaes que entendemos como prprios ao modo de tocar. Sendo
assim, Bach d orientaes ao intrprete para que este no ornamente de
forma inconseqente, ou, nas palavras de Butt7
(1990, p.191), Claramente,
Bach est atuando aqui como intrprete supremo da sua msica. Sua atividade
como executante um estgio posterior no processo composicional, incidindo
profundamente em um decoratio superficial.
Em 1994, Helga Thoelne escreveu Johann Sebastian Bach,
Ciaccona: Tanz oder Tombeau. Verbogene Sprache eines berhmten Werkes.
(Verffentlichungen des Historischen Museums Kthen / Anhalt XIX, Cthener
Bach-Hefte 6, Kthen 1994), um trabalho que trata de semntica e numerologia
nesta obra. Neste trabalho, Thoelne demonstra convincentemente como Bach
insere corais na Ciaccona com a inteno de fazer desta obra uma
homenagem no funeral de sua primeira esposa (Fernndez8, 2003, p. 75).
Baseado neste artigo, Jos Miguel Moreno gravou, no seu disco De Occulta
Philosophia9, uma Chaconne Tombeau, onde sobrepe, baseado no artigo de
Thoelne, a Ciaccona de Bach ao coral luterano Christ lag in todesbanden
(Cristo est deitado nos braos da morte), um hino de sete versos constituido
na seqncia Victimae Paschali Laudes (Williams
10
, 1980, p. 66), experinciarealizada posteriormente por Christoph Poppen e o Hilliard Ensemble, no disco
Morimur (After Bach), em 2001.
7BUTT, John. Bach Interpretation: articulation marks in primary sources of J. S. Bach. 278 p.Cambridge Universidy Press, Cambridge, 1990.8FERNNDEZ, Eduardo. Essays on J. S. Bachs Works for lute. Ediciones ART: Montevideo,
Uruguay, 2003.9MORENO, Jos Miguel. De Occulta Philosophia. GCD 920107. Glossa. 1998.10 WILLIAMS, Peter. The Organ Music of J. S. Bach. II - Works Based on Chorales. Cambridge
Universidy Press: Cambridge, New York, New Rochelle, Melbourne, Sydney, 1980.
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O Christ lag in Todesbanden foi publicado em 1524 e tornou-se o
principal hino de Pscoa em Leipzig e arredores. A letra diz,
Cristo jazia em seu sudrio de morte, Aleluia.
Ningum pode forar a morte.
Tua vontade, senhor Deus, se faz igual na terra
como no reino dos cus.
Ordena-nos teu caminho.
Onde devo ir?
Aleluia, Jesus, minha alegria,
Ordena-nos teu caminho.
No medo e na necessidade confio no meu querido
Deus, quero esper-lo sempre.
Ningum pode forar a morte.
D-nos pacincia em tempo de sofrimento.
Ordena-nos teu caminho.
Cristo jazia em seu sudrio de morte, aleluia.
Venho do alto dos cus.
Como hei de receber-te?
Jesus, tua paixo quero rememorar.
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Venho do alto dos cus.
Como hei de receber-te?
No mais profundo do meu corao teu nome e a
cruz queimam a cada momento.
Isso me torna feliz.
Louvado seja o altssimo.
Agora ofereo minha alma ao senhor.
Tua vontade, senhor Deus, se faz igual na terra
como no reino dos cus.
Do alto dos cus.
Como hei de receber-te?
Venho do alto dos cus.
Cristo jazia em seu sudrio de morte, aleluia.
A melodia tomada de um hino mais antigo, intitulado Christ ist
erstanden (Williams, 1980, p. 66). Um arranjo de Bach deste coral constitui o
BWV 625, pertencente ao Orgelbchleine, onde o compositor ornamenta
usando um soggetto cavato11
(figura 1)em forma de cruz (Fernndez, 2003,p. 69), definida por Schweitzer (1905, p. 349, in: Williams, 1980, p.67) como os
braos da morte.
11[...] motivos cujas notas formam palavras ou abreviaturas de acordo com o sistema alemode solmizao.[...] O mais notrio caso de um motivo derivado deste sistema na obra de Bach provavelmente o aparecimento sujeito B-A-C-H na no-finalizada fuga final da Arte da Fuga.
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Exemplo 1: Soggetto cavato encontrado no Orgelbchlein, BWV 625, Christ lag in
todesbanden(Williams, 1981, p. 67).
No BWV 625 tambm encontramos a relao com o passus
diriusculus, grupo de notas cromticas ascendentes, definidos assim por
Bernhard, pupilo de Schtz (Williams, 1980, p. 44). Estes passus duriusculus
esto no compasso 235 da Ciaccona, sendo imitados no compasso posterior
pela voz mais grave. Sobre esta figura Williams diz ainda que tambm
encontrada em r menor, ou tnus primus, de Sweelinck (Fantasia Cromtica)
a Beethoven (Nona Sinfonia, coda do primeiro movimento).
Outro soggeto cavato que evidencia a relao da Ciaccona com a
crucificao de Cristo a repetio tripla da nota l que recorre ao longo de 15
compassos (161-176), o CCC (Christus Coronabit Crucigeres), smbolo, ou
representao icnica (Fernndez, 2003) da crucificao, encontrado na
seo central da obra, em r maior.
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Tradies de execuo
Segundo Harnoncourt (1984, p.51),
Na execuo da msica antiga, a tradio um fator todeterminante quanto a prpria notao da obra. Toda a peamusical submetida, atravs de repetidas execues no cursodos decnios e sculos, a uma elaborao formal que acabapor adquirir um carter quase definitivo. As numerosasinterpretaes de algum modo se copiam umas s outras,acabando por construir uma forma legtima que no pode maisser ignorada em novas execues [...] a tradio consideradacomo uma espcie de purificao, de cristalizao definitiva,confirmada por longos anos de experincia.
Ao contrrio de Bach, as tradies de execuo da obra de
Beethoven remontam ao prprio compositor. As diversas tendncias
interpretativas das obras de Beethoven so, desta forma, como afluentes de
um rio cuja nascente sua prpria execuo. Quando tratamos de tradies
interpretativas da obra de Bach devemos ter bem claro que estamos falando de
uma tradio interrompida, ou seja, que inexistiu por um longo perodo e que,
portanto, nos desliga da tradio na qual estava inserido o compositor.
Podemos dividir em quatro partes a histria das prticas interpretativas da obra
de Bach: 1) a contemporaneidade do compositor (final do sculo XVII e
primeira metade do sculo XVIII); 2) o renascimento em 1829 e a tradio
romntica (Bach Gesellschaft 1850, reedio em 1900); 3) o Ps-guerra, a
proliferao dos estudos musicolgicos sobre o assunto (Dart 1954, Keller
1955, Dolmetsch 1957, Donington 1963, etc.) e a edio Neue Bach
Ausgabe(NBA, 1954-); 4) a contemporaneidade.
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Aps seu falecimento em 1750, Bach e sua obra passaram por
quase um sculo de esquecimento12 at 1829, ano em que Mendelssohn
apresentou com grande xito a Paixo segundo So Mateus. Este
acontecimento foi o passo inicial do que podemos chamar de renascimento da
msica de Bach. Em 1850, no centenrio da morte do compositor, foi fundada a
Bach Gesellschaft, que editou toda a obra do mestre de Leipzig durante os
cinqenta anos posteriores. Em 1900 a Bach Gesellschaftfoi reeditada com o
nome de Neue Bach Gesellschaft, sendo por mais meio sculo a referncia
principal sobre a msica deste compositor.
No raro em nosso meio musical ouvimos afirmaes do tipo: o
Bach dele meio romntico, ou, tocava bem, mas fazia tudo nas cordas
graves e com vibrato, ou ainda, toca Bach usando at pedal. Estas
afirmaes aparecem tanto em tom pejorativo como enaltecendo o executante.
Cabe aqui fazer algumas perguntas: O que vem a ser uma execuo romntica
de Bach? Estaria relacionada ao uso de vibrato, ou de dinmica, ou de timbre?
Talvez a velocidade? Possivelmente est relacionada ao uso de todos estes
recursos, mas cabe ento uma nova pergunta: Na poca de Bach estes
recursos eram usados? De acordo com os tratados da poca, a resposta sim.Este impasse nos leva a concluir que a caracterizao de cada tradio de
execuo no est no uso dos elementos de expresso, e sim no porqu do
uso e, conseqentemente, no tipo de uso destes.
12Sabe-se que compositores, entre eles Haydn e Beethoven, estudaram o Cravo bemTemperado, mas com cunho puramente didtico.
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A tradio romntica de execuo da obra de Bach fruto do
anacronismo resultante do redescobrimento de uma linguagem musical em
uma poca musical e filosoficamente diferente e at antagnica.
Ao longo da presente pesquisa o autor recordou uma anedota que
representa a viso de Bach que nos legou o sculo XIX. H alguns anos, em
um concurso internacional de jovens msicos, estavam a comentar sobre a
Chaconne transcrita para violo por Segovia. A av de um pianista participante
do certame (que, como vrios outros pianistas do concurso, tocava a lendria
transcrio Bach-Busoni da mesma obra) interferiu dizendo: como pode soar
bem a Chacona de Bach em seis cordinhas?, obtendo do neto a seguinte
resposta: Av, a Chacona foi composta para quatro cordinhas!. O conceito da
Ciaccona sugerido por esta senhora, nada mais que um resumo da viso
propagada majoritariamente durante mais de um sculo desde o referido
renascimento de Bach. A Ciaccona aqui uma obra com o ideal de
transcendncia, conceito fundamental do romantismo e antpoda do conceito
barroco de msica e de mundo. Segundo Bruno Kiefer13(1985, p.13),
H muita analogia entre os processos que caracterizam a
construo de uma fuga de Bach e a concepo de leisinvariveis e eternas que regem o universo. A propsitocitamos Leibniz, praticamente contemporneo de Bach. Para ofilsofo o cu e a terra so regulados pelas mesmas leis,claras, cognoscveis, calculveis. A matese divina e a matesehumana obedecem s mesmas leis. Para o mesmo filsofoainda a matemtica e a lgica so cincias de primeira classe,porque coincidem com a estrutura, com a essncia de Deus, domundo e do homem. Dentro desta perspectiva, compreende-seque Leibniz falasse na harmonia preestabelecida, sensaoque se tem muitas vezes ao ouvir uma fuga de Bach.
13KIEFER, Bruno. Msica Alem. Editora Movimento: Porto Alegre, 1985.
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Em Bach a msica deve falar, e falar bem falar em harmonia com
a estrutura perfeita do universo (para tanto, se utilizava a arte da retrica),
acessvel e at previsvel ao homem, que parte dela. Nesta cultura, conceitos
como gnio criativo e transcendncia no existem, existindo sim os
conceitos de permanncia e previsibilidade (Kiefer, 1985), amplamente
negligenciados pela tradio romntica. Nossa referncia auditiva que mais se
aproxima dos conceitos romnticos aplicados obra de Bach est nas
gravaes dos grandes virtuoses da primeira metade do sculo XX, ainda no
nascedouro do registro fonogrfico. Grandes instrumentistas, cantores e
regentes da poca abordaram a obra deste compositor a partir do paradigma
vigente, imbudos do anacronismo j comentado. Podemos dizer que neste
momento arranjos como os de Busoni, Siloti, Brahms, Schumann, Liszt,
Stokowski ou Segovia, pretendiam corrigir (no so raros os
aperfeioamentos da escrita nas edies Bach Gesellschaft) e melhorar a
obra de Bach, implementando-a com o mximo de notas e efeitos instrumentais
possveis. Ao ouvir o arranjo de Stokowski (1930) da Ciaccona temos a real
dimenso do carter faranico imposto a esta obra pela gerao romntica.
Aqui podemos entender perfeitamente a idia de que a msica, ao invs defalar, desgraadamente pinta (Harnoncourt, 1984). Hoje parece mais
interessante entender que estes arranjos so grandes obras em si, licenas
poticas que tm como ponto de partida ou motivo inspirador a obra de Bach.
Aps a segunda guerra mundial o ocidente passou por um perodo
de revisionismo histrico e os esforos em apagar um passado recente
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acabaram por estabelecer a anttese de um processo dialtico de um sculo
marcado por extremismos. Na tradio interpretativa de Bach este revisionismo
est expresso no grande aumento de publicaes musicolgicas sobre o
assunto e a busca das execues autnticas, baseadas nestas publicaes.
So desta poca os estudos de Dart14, Keller, Dolmetsch15, Donington16, entre
outros. Tambm desta poca o incio da edio urtextNeue Bach Ausgabe
(1954-), onde os manuscritos foram transcritos sem qualquer alterao. Novos
nomes da execuo musical e selos especializados trilhavam caminho paralelo
ao meio musical tradicional, criando um mercado especfico que cresceu rpido
e que, todavia, segue crescendo. Os excessos e o xiitismo, caracterizado na
no aceitao dos instrumentos e afinaes modernos foram, muitas vezes,
motivo de preconceito por parte do meio musical estabelecido, mas graas a
grandes intrpretes atuando na rea de msica antiga este meio paralelo tem
sido cada vez mais influente e respeitado.
Atualmente convivem diversas tradies de execuo da obra de
Bach. Executantes de alto nvel demonstram que os instrumentos antigos so
diferentes, mas nunca inferiores aos modernos, ao passo que grandes msicos
de instrumentos modernos demonstram como possvel reproduzir nestes amsica de Bach em sua plenitude. Estas diferenas (entre instrumentos
modernos e antigos) foram, e por vezes ainda so geradoras de controvrsias.
Porm, com o passar dos anos, se evidencia a continuidade de uma tradio
de co-existncia e at convivncia, ainda que nem sempre amigvel, entre as
14DART, Thurston. The Interpretation of Music.New York: Harper and Row, 1954.15 DOLMETSCH, Mabel. Personal Recollections of Arnold Dolmesch. Routledge and KeganPaul: London, 1957.16DONINGTON, Robert. The Interpretation of Early Music. London: Faber and Faber, 1963.
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partes. A dificuldade em tratar das questes estticas referentes s diferenas
entre os recursos tcnico-musicais dos instrumentos modernos e antigos passa
a ser ento parte de uma infindvel busca do conhecimento na obra deste
compositor.
Metodologia
No princpio, a presente pesquisa pretendia adaptar as indicaes
de articulao da Ciaccona ao idioma do violo sem que estas perdessem suas
caractersticas principais. Ao longo do percurso, esta pesquisa foi tomando
caminhos mais abrangentes. Na tentativa de transpor para o violo os efeitos
sonoros criados pelas referidas indicaes, fez-se necessrio um estudo do
seu significado, j que estas suscitavam interpretaes completamente
diferentes por parte dos prprios violinistas. Cabia pesquisar, antes de tudo, o
significado destes smbolos anotados por Bach e os procedimentos adotados
pelo prprio compositor para adapt-los em suas transcries.
Harnoncourt diz que os sinais de articulao continuam os mesmos
atravs dos sculos, inclusive no perodo posterior a 1800, mas o seu
significado est sempre passando por mudanas radicais (1984, p. 49). A
pesquisa ento passou a ter como principal objetivo estudar o entendimento
dos sinais de articulao por parte dos especialistas da rea, a fim de lev-los
ao violo da forma adequada. Os referenciais tericos que deram suporte ao
trabalho, no que tange ao entendimento dos sinais de articulao de Bach,
foram Hermann Keller (1955), John Butt (1990) e Nikolaus Harnoncourt (1984).
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A leitura destes referenciais e de outras bibliografias relacionadas
demonstrou como as indicaes de articulao em Bach repercutem em todos
os elementos que constituem a msica deste compositor. Fez-se necessrio
referenciar questes de retrica musical, s quais a articulao bachiana est
intrinsecamente relacionada. Os estudos de Eduardo Fernndez (2003) e Peter
Williams (1980) auxiliaram nas questes envolvendo retrica e semntica, onde
tambm contribuiram os j mencionados estudos de Keller (1955) e Butt
(1990).
Como comentado acima, as indicaes de articulao na msica de
Bach passaram por entendimentos variados ao longo dos tempos,
caracterizando uma diversidade de tradies de execuo. Estas tradies no
poderiam deixar de ser consideradas por esta pesquisa. Harnoncourt foi
suporte terico para estas questes. Ainda que no tenham sido citados ao
longo do trabalho, estudos sobre autenticidade nas prticas interpretativas,
presentes na bibliografia, foram importantes dentro da pesquisa. O estudo
sobre a transcrio de Segovia da Ciaccona, de Eros Rosseli17, foi referncia
sempre que comentada esta transcrio.
Este trabalho baseou-se tambm em uma srie de referenciais
prticos e terico-prticos. As transcries para violo das sutes para
violoncelo de Stanley Yates18 e seus ensaios sobre arranjo, interpretao e
performance de J. S. Bach, bem como a edio urtext da obra integral para
17ROSELLI, Eros. In: Il Fronimo, vol. 18, n 71: ed. Ruggero Chiesa, Itlia, 1990.18YATES, Stanley. J. S. Bach: Six Unaccompanied Cello Suites Arranged for Guitar. Mel BayPublications: Pacific, 1998.
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alade, de Tilman Hoppstock19, formam o que consideramos as referncias
terico-prticas. Nesta definio tambm cabe citar o trabalho de Rodolfo
Betancourt sobre a Ciaccona20
e sua transcrio para violo.
Os referenciais prticos propriamente ditos so as partituras de
edies prticas e as gravaes. Foram ouvidas numerosas gravaes da
Ciaccona: em violino, violo, violoncelo, cravo, alade e orquestra sinfnica e
observadas quatro edies para violino, trs para violo e duas para piano;
alm de muitas outras obras do compositor para diversas formaes. Neste
sentido o trabalho tambm passou por reformulaes durante sua produo.
Tal nmero de edies e gravaes no permitia o aprofundamento
necessrio, visto a desproporo com o escopo do artigo. Sendo assim, foram
selecionadas trs gravaes de violinistas (Nathan Milstein21, Itzhak Perlman22
e Thomas Zehetmair23) e cinco gravaes de violonistas (Andrs Segovia24,
Juliam Bream25, John Williams26, David Russell27 e Eduardo Fernndez28),
visando que estas fossem representativas de tradies de execuo variadas.
Utilizando o mesmo critrio, selecionamos duas edies tradicionais do violino
19BACH, J. S. Das Lautenwerk und verwandte Kompositionen im Urtext fr guitarre. Publicadopor Tilman Hoppstock, apartir dos manuscritos , 138 p, Darmstadt: PRIM, 1994.
20BETANCOURT, Rodolfo J. The Process of transcripition for guitar of J. S. Bach Chaconnefrom Partita II for violin without accompaniment, BWV 1004. University of Denver. Colorado,1999.21MILSTEIN, Nathan. Bach Sonatas & Partitas.EMI classics, ZDMB 6479323, 1955-1956.22PAERLMAN, Itzhak. Sonatas & Partitas for solo violin. EMI, :7-49483-2, 1986-1987.23ZEHETMAIR, Thomas. Sonatas & Partitas for solo violin. Teldec, 9031-76138-2, 1992/1983.24SEGOVIA, Andrs. The Legendary Andrs Sogovia in an All-Bach Program. MCA Classics,MCAD-42068, 1987.25BREAM, Julian. J. S. Bach by Julian Bream. EMI Classics,CD 106073, 1992.26WILLIAMS, John. John Williams plays Bach. Sony Classical, 2-089612, 1975, 1984, 1988.27RUSSELL, David. David Russell plays Bach. Telarc, CD-80584, 2003.28FERNNDEZ, Eduardo. Lute Suites. London, Decca 421-434-2, 1987.
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(Enrico Polo29e Henryk Szeryng30) e duas de transcries para violo (Andrs
Segovia31 e Abel Carlevaro32). Tanto as gravaes como as edies so
analisadas usando como objetos de comparao: o manuscrito, bem como as
edies urtext Neue Bach-Ausgabe33e Neue Bach-Gesellschaft34.
29BACH, J. S. 6 Sonate & Partite per violino solo.Edizione Enrico Polo. Ricordi, Italia, s.d.
30BACH, J. S. Sonaten und Partiten fr violine solo.Ed. Henryk Szeryng. B. Schotts Shne,Mainz, 1981.31 BACH, J. S. Chaconne. Ed.Andrs Segvia. B. Schotts Shne, Mainz, 1934, reviso de1963.32
BACH, J. S. Chaconne BWV 1004. Ed. Abel Carlevaro (Master Class volume IV). Chanterelle:
Heidelberg ,1989.33BACH, J. S. Drei Sonaten und drei Partiten fr violino solo.Brenreiter Kassel Basel London BA 5116, 1959.34BACH, J. S. Drei Sonaten und drei Partiten fr violino solo.Neue Bach-Gesellschaft edition:Leipzig, 1900.
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ANLISE DAS LIGADURAS
1 LIGADURAS CURTAS
1.1 Ligaduras em funo da mecnica
Neste captulo trataremos de ligaduras com funo mecnica, ou
seja, ligaduras que, a priori, no apresentam significado musical aparente,
seguindo preceitos tcnico-instrumentais. Ainda que estas indicaes no
obedeam a princpios musicais em um primeiro momento, elas muitas vezes
acabam por determinar o entendimento de uma passagem, o que se perpetua
na tradio interpretativa da obra. Em uma pea to arraigada ao idioma
instrumental como a Ciaccona, so comuns os casos onde no h total
independncia entre mecnica instrumental e interpretao musical
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propriamente dita. Veremos aqui o exemplo do compasso 60, na variao sete
da Ciaccona (Exemplo 2).
Exemplo 2: Compasso 60 da Ciaccona (urtext).
Neste compasso as ligaduras possibilitam que o violinista mantenha
o arco sobre duas cordas, sustentando as notas em colcheia enquanto se
desenrola o contraponto em semicolcheias. Se abstrairmos este trecho
ignorando as condies instrumentais, poderemos concluir que a articulao
para a figura em semicolcheia seria: ligar as trs primeiras notas, que formam
bordadura, e separar a ltima, que estabelece relao de anacruse com o
prximo tempo, articulao indicada pelo compositor na primeira apario,
compasso 57 (exemplo 3).
Exemplo 3: compasso 57 da Ciaccona. Em destaque, figura agrupando trs notas e articulando a
quarta.
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Esta deciso aparece na edio urtext Bach Gesellschaft (1850-
1900) e, aparentemente, a articulao mais adequada estrutura retrica do
trecho, j que destaca a bordadura, ornamento representativo na obra de
Bach e constantemente relacionado s figuras em forma de cruz, definido por
Fernndez como o homem na cruz (Fernndez, 2003). Keller (1955, p. 120),
ao analisar este tipo de figura, exemplifica com o incio da Toccata em f maior
BWV 540 para rgo, onde liga as bordaduras e separa os saltos (exemplo 4).
Exemplo 4: incio da Toccata em f maior BWV 504 para rgo (Keller, 1955, p. 120).
Neste trecho da Ciaccona, presume-se que a indicao do
compositor uma orientao de como tocar a passagem ao violino de forma
idiomtica, mas o resultado incide de tal maneira na audio que as ligaduras
acabam por ser adotadas como um recurso musical independente, o que
explica a apario destas na quase totalidade das edies analisadas neste
trabalho, incluindo as verses para violino (Polo e Szeryng), violo (Segovia) e
piano (Brahms e Siloti).
Ainda que tenhamos uma srie de argumentos a favor desta
padronizao de como articular esta figura, nos cabe ainda a seguinte
pergunta: por que o compositor assinala as ligaduras de forma to irregular
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neste trecho? No manuscrito a figura em questo aparece com trs notas
ligadas e uma desligada ( , 5 vezes, c. 57, 61 e 62), com as quatro notas
desligadas ( , 1 vez, c. 58) e com as notas ligadas duas a duas ( , 6
vezes, c. 59, 60 e 63). Estas indicaes de Bach nos do mostra da diferena
entre o conceito de unidade do perodo barroco e nosso tempo. Sobre esta
questo, nos diz Harnoncourt (1984, p. 55-56),
Na parte instrumental da ria do baixo da Cantata 47, porexemplo, ele [Bach] articula um grupo de quatro notascolocando um ponto sobre a primeira e ligando as outras trs.Entretanto, na mesma cantata essa figura onde se acha otexto: Jesu, beuge doch mein herze- , torna a voltar e, destavez, as notas esto ligadas duas a duas. Eu, pessoalmente,acho esse exemplo de grande importncia, pois Bach, aqui,diz: no h apenas uma articulao correta para umadeterminada figura musical, mas vrias; e, ainda por cima, nocaso em questo, simultaneamente! claro que h tambmpossibilidades que so absolutamente falsas; cabe a nsencontr-las e elimin-las. Em todo o caso observamos que na
mesma pea o compositor desejou expressamente duasarticulaes diferentes para o mesmo trecho. E o ponto dearticulao nos mostra bem o quanto Bach exigia estas duasvariantes precisas. Isto nos leva a uma outra reflexo. Napintura a leo com veladura a cor transparente; possvel,nela, vermos uma camada atravs de outra e de tal sorte quechegamos a ver, atravs de quatro, cinco camadas o desenhoem baixo. O mesmo acontece com a nossa audio no caso depeas bem articuladas; levamos nossos ouvidos a passear nasprofundidades e l escutamos claramente as vrias camadasque se fundem num todo. Ao fundo percebemos o desenho, oplano; passando a outra camada iremos encontrar as
acentuaes das dissonncias e numa prxima, uma voz dedico doce, enquanto na seguinte, uma outra voz estarsendo articulada forte e rigidamente; tudo isto sincronizado,acontecendo simultaneamente. O ouvinte no pode, deimediato, perceber a totalidade do contedo da obra. Mas elecaminha por entre as varias camadas e ouve constantementealgo diferente. A existncia destes mltiplos nveis de enormeimportncia para a compreenso desta msica que no sesatisfaz com uma simples concepo plana, montona.Encontramos, freqentemente, em partes vocais da obra deBach, situaes semelhantes anteriormente mencionada,onde a parte vocal possui uma articulao radicalmente oposta
do instrumento de acompanhamento. Essas diferenas so,nos dias de hoje, freqentemente consideradas um erro docompositor, e infelizmente corrigidas. Para ns, difcil
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entender e aceitar esta multiplicidade do barroco, o acontecerde diversas coisas ao mesmo tempo; ns queremos a ordemdo tipo mais fcil. Contudo, no sculo XVIII, procurava-se aplenitude, o excesso; Por onde quer que se escute, recebe-seuma informao; nada uniformizado. Observamos as coisasde todos os lados ao mesmo tempo! No existe umaarticulao sincronizada para todos os instrumentos tocandocolla parte. A orquestra articula de maneira diferente do coro. Amaior parte dos especialistas do barroco no tem conscinciadisto, eles querem sempre nivelar, ter tudo o mais igualpossvel, escutam a msica como belas colunas sonoras bemalinhadas, e no em sua diversidade.
As palavras de Harnoncourt so diretamente aplicveis a esta
variao da Ciaccona. Neste trecho Bach tambm nos diz que no h apenas
uma articulao correta para uma determinada figura musical e, no obstante,
aqui tambm o ponto de articulao nos mostra bem o quanto Bach exigia
estas duas variantes precisas.
Diz Roselli (1990, p. 45), [...] no compasso 60 Segovia adota
fielmente a indicao original (que bem se adapta s possibilidades do violo)
[...]. Como expressam as palavras de Roselli, estas ligaduras coincidem
perfeitamente com o idioma do violo, e facilitam o trabalho da mo direita.
Carlevaro abre mo destas indicaes e de qualquer outra ligadura.
Russell no faz uso de ligaduras ao longo da variao, mas, no
compasso 60, liga as duas primeiras notas em todas as aparies da figura em
semicolcheias. Esta tambm a soluo de Fernndez, com a diferena que
este a usa em todos os aparecimentos da figura ao longo da variao, em uma
deciso que se assemelha hiptese levantada anteriormente, onde esta
figura aparece com bordadura e nota isolada.
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1.2 Ligadura em resoluo de apojatura
Nas palavras de Keller (1955, p. 53),
Quanto aos sons estranhos harmonia, todos os que seapresentam em tempo forte ou fraco do compasso, tem emcomum que, sendo dissonncias, no podem pretendernenhuma significao prpria, e no grau seguinte, inferior ousuperior, tem que se resolver em sua nota principal. Amboscasos foram expressos claramente pela msica antigaanotando esses sons com figuras pequenas unidas notaprincipal por uma pequena ligadura que nunca falta, nemsequer em uma msica que no apresente indicao alguma.De modo, pois, que para todas as notas secundrias, masespecialmente para retardos longos ou curtos, a ligadura notaprincipal se subentende.
No compasso 16 da Ciaccona, encontramos um trecho
representativo do que diz Keller. Aqui Bach assinala uma ligadura bvia
segundo as consideraes deste autor, a resoluo de uma nota suspensa (r)
na nota pertencente ao acorde de dominante (d#). Segundo Harnoncourt
(1984, p. 57),
Na msica barroca, o significado fundamental da ligadura aacentuao da primeira nota. [...] aqui a hierarquia daacentuao no compasso ser perturbada atravs daarticulao e da dissonncia. justamente esta perturbaoque interessante; da mesma forma que uma perturbaoprovoca na ostra o nascimento de uma prola, no ouvinte, elasuscita uma ateno permanente.
Podemos ento dizer que a apojatura uma representao de dor,
e, portanto, responsvel pela satisfao fsica e espiritual, nas palavras do
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mesmo autor, quando resolvida. Em suma, s atravs do contraste
estabelecido com um sentimento inverso que podemos chegar a real dimenso
de outro. Esta suspenso tambm responsvel por evidenciar o acento (no
segundo tempo de cada compasso) caracterstico do tipo de dana (chacona).
Exemplo 5: Compasso 16 da Ciaccona (urtext).
O uso do trinado como recurso para preencher espaos como esse
uma tradio, principalmente nos instrumentos com menos sustentaosonora, caso do violo. No exemplo a seguir podemos observar a alternativa
apresentada na gravao do violonista David Russell, onde o trinado longo
preenche todo o espao temporal da ligadura. Com esta soluo, Russell
mantm por pouco tempo a tenso causada pela nota r, aproximadamente a
durao de uma semicolcheia.
Exemplo 6: compasso 16 da Ciaccona: representao grfica da execuo de David
Russell.
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No caso dos instrumentos de arco, o ornamento no condicionado
pela menor capacidade de sustentao do som no instrumento. A gravao de
Zehetmair nos mostra uma forma semelhante de Russell de ornamentar a
passagem, porm, aqui o trinado bem mais curto, fazendo durar mais a
perturbao causada pela nota r, que se resolve em pianssimo no d
sustenido.
Exemplo 7: compasso 16 da Ciaccona: representao grfica da execuo de
Thomas Zehetmair.
Na grande maioria das gravaes e edies de violonistas
analisadas nessa pesquisa usado o trinado ligando as duas notas (r - d#)
como visto no exemplo 6. Destas, todas foram feitas na ultima dcada, o que
delata uma tradio interpretativa atual. Analisando a verso de Segovia, nos
deparamos com um entendimento completamente diferente do compasso em
questo. Sua transcrio opta por uma repetio do acorde completo de l
maior no terceiro tempo do compasso, o que resulta discordante em relao ao
original do compositor, tanto no que tange acentuao quanto articulao
propriamente dita. No exemplo 8, vemos a transcrio de Segovia.
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Exemplo 8: compasso 16 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia.
Williams e Bream no agregam o acorde no ltimo tempo, mas
acentuam igualmente as duas notas. Bream faz uso de trinado sobre o d, mas
aqui o trinado no cumpre a funo comentada anteriormente, j que no liga o
r ao d. Milstein, bem como Pearlman, desliga as duas notas, acentuando-as
igualmente. Esta noo de acentuao est claramente de acordo com o
conceito romntico da Ciaccona, como possvel observar nas palavras deJohn Moore (1854) segundo o qual,
A Chaconne tem algo em comum com a Sarabanda, mas bem mais grave, tem o primeiro e o ltimo tempo de todos oscompassos fortemente acentuados, e era formalmente usadacomo um acompanhamento para certas danas, lentas egraciosas neste movimento [...].
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1.3 Ligaduras em Pedal
Entre os compassos 229-240 da Ciaccona (variao 27) h um
pedal de l. Temos aqui uma textura que comea em trs planos (pedal de l,
linha superior; melodia em graus conjuntos, linha intermediria; e baixo, nas
cabeas dos compassos). Essa textura dura at o compasso 236, onde o baixo
ganha mais movimento, e cria um contraponto de primeira espcie com a linha
intermediria. Cabe ressaltar que, entre os compassos 233-235, a linha
intermediria se move por semitons, o que imitado pelo baixo no compasso
236. Sadie (p.261-2) atribui a Burmeister a definio da Pathopoeia, que o
movimento no qual semitons saem de uma harmonia ou uma escala para
expressar sentimentos tais como: tristeza, medo e terror. Keller (1955, p.100)
nos diz que, Via de regra, Bach concebe o legato de uma maneira emocional,
como sinal de tristeza, de dor serena [...]. A partir destas afirmaes
conclumos que, no trecho em questo, tanto os semitons como o legato, so
representativos de dor. Desde o primeiro momento, compasso 229, Bachdefine o afeto desta variao quando sobrepe sib-l (respectivamente linha
central e pedal), formando o intervalo harmnico de segunda menor. Esta
expresso se refora posteriormente com o aparecimento dos cromatismos.
Nos compassos 235-236 temos finalmente o passus diriusculus.
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Com base nestas afirmaes, podemos considerar que os ligados
aqui, apesar de agruparem as notas duas a duas, sugerem um legato contnuo.
Estes ligados tm como funo primordial diferenciar hierarquicamente as
melodias que cantam do pedal. Indicaes semelhantes aparecem nas
demais obras para violino e em obras para violoncelo, o que aponta para a
relao deste tipo de articulao com o idioma dos instrumentos de arco. Desta
forma, as ligaduras de duas notas em pedal constituem um efeito caracterstico
destes instrumentos. Veja no exemplo 9 dois trechos da Sute 6, BWV 1012,
para violoncelo solo (linha superior) e a soluo proposta por Yates de
adequao ao violo.
Exemplo 9: Suite BWV 1012 para violoncelo: compasso 1 do preldio (antes da barra dupla) e
compasso 7 da Giga (depois da barra dupla), urtext (pentagrama superior) e transcrio de
Stanley Yates (pentagrama inferior).
No exemplo 10, podemos observar como o prprio compositor leva
ao alade um trecho semelhante, oriundo da Partita 3, BWV 1006, para violino.
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Exemplo 10: compassos 109 e 110 do Preldio BWV 1006 (pentagrama superior) e do BWV
1006a, transcrio para alade do compositor (pentagrama inferior).
Nas execues em violo analisadas nesta pesquisa, observamos
uma prtica comum entre os registros mais atuais. Fernndez e Russell optam
pela mudana de oitava do pedal, trocando o l do segundo espao do
pentagrama pelo l da primeira linha suplementar superior, ao longo de toda a
variao. No exemplo 11 um trecho da variao e a soluo comentada.
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Exemplo 11: compassos 229 e 230 da Ciaccona: manuscrito (pentagrama superior),
representao grfica das execues de Russell e Fernndez (pentagrama inferior).
Com esta soluo possvel ouvir cada plano independente da
polifonia, visto que, em nenhum momento, h cruzamento entre as mesmas, o
que tambm possibilita o legato contnuo mencionado anteriormente. A
manuteno do quarto dedo preso na quinta casa, primeira corda, faz com que
o pedal no seja interrompido nunca. Porm, esta soluo abre mo dos
choques harmnicos que caracterizam o j comentado afeto neste trecho,
caso do sib - l recorrente ao longo da variao. Bream e Williams optam por
manter a oitava do l na primeira parte da variao, mudando de oitava no
compasso 236 em diante. Esta soluo, apesar de manter a proximidade dos
intervalos, no permite que o pedal se sustente, interrompendo o legato e,
muitas vezes, no deixando soar a segunda menor, o que seria o mrito desta
deciso. Segovia, na tentativa de imitar o efeito do violino, mantm, na sua
edio, a oitava original do pedal por toda a variao. Sobre esta soluo nos
diz Roselli (1990, p. 45),
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relevante notar, por outro lado, o que acontece nasvariaes 57, 58 e 59 [compassos 229-240], onde nem semprea transcrio respeita o legato a dois com o pedal l (que, noesqueamos, no violino corda solta!), pela objetiva dificuldadede deixar sempre livre a terceira corda. Isso obriga Segovia aacrobacias da mo esquerda e transferncias do l para aquarta corda, criando assim insatisfatrias variaes de timbree inutilizando precisamente o sentido de legato explicitamenterequerido.
As insatisfatrias variaes de timbre referidas por Roselli, so
resultado do uso do l pedal na terceira corda, por vezes na quarta e, at
mesmo, em harmnicos na sexta corda (compasso 232). O comentrio de
Roselli, feito a partir da transcrio de Segovia, se aplica perfeitamente s
gravaes de Bream e Williams.
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1.4 Ligaduras indicativas de acentuao rtmica
1.4.1 Ligaduras responsveis por acentuao hierrquica
No compasso 16 tnhamos uma articulao que resultava influente
na acentuao. Veremos nos compassos 81 - 83 uma articulao motivada
pela acentuao rtmica. Aqui os dois recursos, articulao e acentuao,
somam-se na representao de um afeto.
Escreve Butt (1990, p. 186),
Mais do que nunca tm surgido teorias demonstrando que
muitas indicaes so coerentes com a estrutura do Decoratio,de acordo com certas hierarquias mtricas, figuraes equestes harmnicas. Em instrumentos de corda as ligadurasafetam diretamente o modo de produo do som e,conseqentemente, tem profunda influncia na acentuao damsica.
Referindo-se ao exemplo 12, retirado da Paixo Segundo So
Mateus, escreveu Keller (1955, p. 55):
primeira vista parecer estranho que a antecipao, apesarde ser um adiantamento impaciente do som posterior, estejaligada sempre nota anterior [...], mas condio prvia de talconcepo que esta forma esteja baseada em um legato decolcheias. Ao destacar-se a nota estranha, se aumenta o pesoda nota precedente [...].
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Exemplo 12: trecho da Paixo segundo So Mateus (Keller, 1955, p. 55).
E segue referindo-se ao exemplo 13: ... onde isso no acontece,
como na valsa em d sustenido menor de Chopin (Op. 64, n 2), se intensifica
a relao de anacruse.
Exemplo 13: trecho da Valsa, Op. 64, n 2 de Chopin (Keller, 1955, p. 55).
As palavras de Keller nos do mostra do quo significativa a
articulao desta passagem. Aqui a mudana da articulao original pode
promover uma inverso do significado musical. Sobre a edio de Segovia
(Exemplo 14), nos diz Eros Roselli (1991, p. 45),
[...] nos compassos 81-83, onde a ligadura a dois evidencia uminteressante significado expressivo, [Segovia] no faz nadapara realizar a vontade do autor; e liga, em todos compassos,duas semicolcheias do ltimo grupo de quatro notas, deixadosolto no original.
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Exemplo 14: compassos 81-83 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia.
Na edio de Szeryng so mantidas as articulaes indicadas no
original de Bach. Szeryng agrega ao trecho a expresso senza glissando e
um sinal de tenuto sobre a cabea do segundo tempo dos compassos 81-82
que, segundo a explanao feita por ele no prefcio da edio, no significa
necessariamente um tenuto35, mas uma nfase expressiva da nota. Neste
caso, o editor enfatiza a mudana de carter harmnico dada pelo
aparecimento do acorde diminuto (exemplo 15).
Exemplo 15: compassos 81-83 da Ciaccona: edio de Henryk Szeryng.
Com o uso do termo senza glissando no compasso 81 Szeryng
aconselha ao executante o no uso de um recurso tpico da tradio romntica
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de interpretao da Ciaccona ao violino. Esta tradio pode ser observada, por
exemplo, na gravao de Nathan Milstein onde h um glissando da primeira
nota (sol#) para a segunda (f) do segundo grupo de quatro notas do
compasso. Milstein enfatiza atravs deste ornamento a mesma nota que
Szeryng destaca em sua edio. Temos aqui um caso em que executantes de
geraes diferentes demonstram, cada um a seu modo, um entendimento
parecido do texto musical de Bach.
Na gravao do violonista Leo Brouwer h o uso de um glissando na
mesma nota. Neste caso, se observa uma apologia tradio violinstica
representada aqui por Milstein.
Nos compassos 85-88 temos uma articulao de funo semelhante
no que tange acentuao, porm muito diferente em termos de afeto. Tal qual
no trecho comentado anteriormente (compassos 81-83), as ligaduras aqui so
responsveis por uma acentuao em colcheias, com exceo dos compassos
87-88 onde o compositor une as duas ltimas ligaduras de forma a enfatizar o
terceiro tempo.
35Szeryng usa este sinal como denotativo de notas de particular importncia temtica ouharmnica.
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Exemplo 16: compassos 85-88 da Ciaccona (urtext).
Nas edies analisadas h uma grande variedade de interpretaes
diferentes e at antagnicas. A pequena diferena de articulao apresentada
por Szeryng, que agrupa as duas primeiras ligaduras de forma a unir dois
grupos de fusas, pode ser entendida como uma forma de sobre-acentuar o
compasso de chacona (sobre a cabea do segundo tempo, Szeryng agrega
ainda um sinal indicativo de arco para baixo). Essa deciso ganha coerncia na
aproximao com as variaes anteriores. O exemplo mais prximo a
variao dos compassos 81-83 onde Szeryng enfatiza o segundo tempo como
comentado acima. Aqui o sinal de tenuto usado no terceiro tempo dos
compassos 87-88.
Na gravao do alaudista Jos Miguel Moreno evidenciada a
relao de anacruse do primeiro para o segundo tempo dos compassos 85-86.
Moreno separa claramente a primeira nota do primeiro grupo (f), clarificando
assim a relao de anacruse das notas l-si-d rumo primeira nota do
compasso posterior (r). A mesma explicao se aplica ao compasso posterior.
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No manuscrito da Ciaccona a ligadura em questo pode gerar dvidas pela
impreciso da grafia, que, tanto parece ligar as quatro semicolcheias do grupo,
como ligar as trs ltimas, deixando de fora a primeira. Esta gravao de
Moreno nos apresenta a segunda opo, ainda que as edies urtext (Neue
Bach Ausgabee Neue Bach Gesellschaft) tenham optado pela primeira.
Exemplo 17: compasso 85 da Ciaccona: edies urtextNeue Bach Gesellschaft e Neue Bach
Ausgabe.
A articulao de Segovia para esta passagem est diretamente
baseada na transcrio de Brahms. Em ambas vemos uma acentuao acfala
que lega ao compasso um carter de 6/8 ( ). Na edio de Enrico Polo,
podemos observar uma deciso parecida, porm aqui o acento est justamente
nos tempos fortes do compasso interno (6/8).
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1.4.2 Ligaduras responsveis por quebra de acentuao hierrquica
No ttulo anterior vimos ligaduras determinantes de acentuaes
rtmicas regulares, ainda que tenhamos analisado exemplos de interpretaes
que no obedecem a este preceito. Agora veremos casos onde as ligaduras
assinaladas pelo prprio compositor so responsveis por quebra de
acentuao. Nos trechos analisados anteriormente (1.1.4), as ligaduras eram
responsveis por uma acentuao em colcheias; no trecho a seguir
(compassos 245-247) elas acentuam o compasso de forma sincopada
( ). Aqui temos quatro quilteras de trs e uma de seis onde a primeira
nota do compasso deixada solta seguida por quatro grupos de notas ligadas
trs a trs e um grupo de cinco notas ligadas.
Exemplo 18: compassos 245-247 da Ciaccona (urtext).
Sobre casos semelhantes ao trecho em questo, diz Butt (1990,
p.190): Por vezes as ligaduras esto discordantes com o ritmo e a harmonia.Nestes casos as ligaduras esto normalmente indicando apenas o
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agrupamento de um conjunto de notas. Com esta afirmao, Butt alerta para o
uso das ligaduras agrupando (e, por conseguinte, separando das demais)
notas representativas dentro da retrica bachiana. Butt diz ainda (1990, p.191):
As implicaes das ligaduras na execuo musical so departicular importncia na interpretao da msica. Elas podemestar relacionadas a elementos que parecem correr contra amtrica. Podem confirmar que tal agrupamento meldico tambm ritmicamente importante. Claramente, Bach estatuando aqui como intrprete supremo da sua msica. Suaatividade como executante um estgio posterior no processocomposicional, incidindo profundamente em um decoratio
superficial.
Na observao das edies v-se uma concordncia geral sobre
esta variao. De formas variadas estas edies mantm o sentido musical
sugerido pelas indicaes do compositor. As diferenas entre as diversas
gravaes e edies esto principalmente no plano da dinmica. Nas edies
mais atuais, caso de Carlevaro (1989) e Szeryng (1979) a acentuao
mantida rigorosamente, bem como nas gravaes em instrumentos de poca.
Exemplo 19: compassos 245-247 da Ciaccona: edies de Abel Carlevaro (pentagrama
superior) e Henryk Szeryng (pentagrama inferior).
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Carlevaro, por uma questo idiomtica do violo, liga apenas as
duas primeiras notas de cada grupo, sem deturpar em nenhum momento a
figurao original das notas (1+3+3+3+3+5). Essa deciso foi tomada
anteriormente na edio de Segovia (1934) e foi encontrada em todas as
gravaes em violo analisadas neste trabalho com exceo do registro de
Narciso Yepes que no usa nenhum ligado e acentua os tempos fortes,
ignorando assim todas as indicaes do compositor. Sobre a deciso tomada
por Segovia para este trecho escreveu Roselli (1990, p. 45):
[...] na variao 61 (excetuando o provvel erro de impressono compasso 244, que liga inexplicavelmente duas notas f)Segovia respeita muito bem o legato que inicia na segundasemicolcheia, utilizando um ligado que acentua levemente talnota, deixando quando necessrio, como nos compassos 245 e246 o mi e o sol soltos, tocando-os presos na retomada.
A nica diferena entre as edies de Carlevaro e Segovia neste
trecho, no que se refere articulao, que Segovia, no ltimo grupo de cinco
notas liga, alm das duas primeiras entre si, as duas notas posteriores, criando
assim uma acentuao a mais que divide o grupo de cinco em um grupo de
duas e um de trs notas (1+3+3+3+3+2+3). Segovia indica tambm um
pianssimo no incio do trecho que cresce culminando em um fortssimo ao final
do compasso 247.
Exemplo 20: compassos 245-247 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia.
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Eduardo Fernndez, alm de respeitar o sentido das ligaduras de
Bach, agrega um portato na primeira nota e na que precede o ltimo grupo de
cinco notas de cada compasso. Sendo assim, acentua o compasso de forma a
congregar esta quebra (1+3+3+3+3+5) acentuao mais recorrente na obra
( ).
Exemplo 21: compasso 245 da Ciaccona: representao grfica da execuo de Eduardo
Fernndez.
Nas gravaes de violinistas se evidencia uma tradio interpretativa
deste trecho contradissente com o original. Em seu registro, Milstein agrupa as
notas de forma a acentuar regularmente (colcheias agrupadas duas a duas),
apesar de respeitar o legato sugerido. Zehetmair intensifica a quebra,
respeitando o legato e acentuando a primeira nota de cada grupo. Grumiaux
(tal qual Milstein representante da gerao romntica de executantes) difere
dos demais violinistas por separar as cinco ltimas notas de cada compasso
entre si, usando para isso uma articulao non legato. Esta deciso se
aproxima um pouco edio de Siloti que, alm de articular desta forma,
agrega uma seqncia de baixos em movimento descendente, segregando
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ainda mais este ltimo grupo. Na edio de Brahms a notao nos diz o
contrrio: uma grande ligadura une os ltimos oito tempos (1+3+3+3+8).
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1.5 Ligaduras indicando polifonia implcita
Referindo-se polifonia36 implcita que aparece especialmente nas
obras de Bach para instrumentos solistas sem acompanhamento, nos diz Yates
(1998),
O termo unaccompanied [no-acompanhado], quandoaplicado msica solo de Bach para instrumentos de cordarepresenta um equvoco de terminologia. Na verdade, essasobras so auto-acompanhadas, com o acompanhamentoembutido em uma linha meldica junto da parte solopropriamente dita. Bach subentende esta textura polifnica detrs maneiras: atravs de arpejos, de saltos meldicos e denotas tocadas de forma simultnea.
Muitas vezes as ligaduras nas obras de Bach para instrumentos de
arco so indicativas desta polifonia implcita. Nestes casos, a articulao tem
especial importncia quando tratamos de arpejos e saltos, visto que nos
acordes de notas tocadas simultaneamente no h necessidade de indicao
dessa natureza. Veremos separadamente casos em que Bach usa arpejos e
saltos para conquistar esta polifonia e, logo, um trecho misto, onde ambos
recursos so empregados.
1.5.1 Ligaduras em arpejos
Um exemplo de uso de arpejos para caracterizar uma textura de
melodia acompanhada est nos compassos 29-32 da Ciaccona (exemplo 22).
36O termo polifonia usado por Yates de forma ampla, referindo-se a acompanhamentos emgeral, no se restringindo ao seu sentido estrito de textura polifnica.
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Neste trecho as indicaes de ligadura do compositor esto justamente sobre
as notas que definem a estrutura harmnica: f-l-r37, acorde de r menor,
compasso 29; d#-mi-sol, primeira inverso do acorde de l maior com stima
menor, no compasso 30; sib-r-sol, primeira inverso de sol menor, no
compasso 31; sol#-si-r, acorde diminuto que resolve em l-mi-r, acorde de l
com apojatura, compasso 32. Desta forma se desenha um movimento de
tnica, dominante, subdominante, dominante da dominante, dominante e
Tnica (primeiro tempo do compasso 33).
Exemplo 22: compassos 29-32 da Ciaccona (urtext).
Tendo em vista que os acordes mencionados anteriormente (salvo o
arpejo sib-sol-r no compasso 31) so passveis de serem compreendidos
como acordes de quatro notas, estas ligaduras cumprem ainda uma segunda
funo. Com a separao dada pela articulao da ltima nota do grupo, esta
passa a ser tratada como anacruse para a prxima clula musical.
Na edio de Szeryng so mantidas as ligaduras como no original
fazendo apenas uma correo no primeiro grupo do compasso 29, onde liga
37Neste grupo o compositor assinala um ligado apenas entre l e r. Isso acontece porque nacabea do grupo aparecem tocadas simultaneamente as notas r (com funo de baixo) e f.
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as notas f-l-r, pelos motivos comentados anteriormente (ver nota 35). Polo
(exemplo 23) liga as quatro notas do primeiro tempo no compasso 29, o que se
explica por ser a quarta nota um f, ainda pertencente ao acorde de r. Desta
forma o editor abre mo da relao de anacruse definida pelo desligamento da
ltima nota f do grupo. Esta relao de anacruse respeitada e at reforada
por Plo nos dois compassos posteriores onde ele indica portato para as notas
sib (ltima semicolcheia do segundo grupo, compasso 30) e l (ltima
semicolcheia do segundo grupo, compasso 31). No compasso 32, Polo indica
uma ligadura de seis notas, adicionando tambm portato s notas d#-r
posteriores, chamando a ateno para a suspenso sobre o acorde de
dominante (nota r) que ser resolvida em d#.
Exemplo 23: compassos 29-32 da Ciaccona: edio de Enrico Polo.
Uma outra interpretao possvel para a ligadura de duas notas do
compasso 29 que o compositor pretende separar o acorde do resto do grupo.
Nas execues de Milstein e Perlman temos um tratamento semelhante para
este trecho. No primeiro tempo do compasso 29, ambos fazem um tenuto no
intervalo harmnico r-f, e ligam as trs notas posteriores. Tal qual Polo, eles
Por similaridade com os compassos posteriores podemos deduzir que esta figura se articula atrs: trs notas ligadas e uma desligada.
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ligam a ltima semicolcheia do grupo, desfazendo assim a relao de anacruse
entre o f que finaliza o primeiro tempo e o que inicia o segundo. Nos demais
compassos (30-32), Milstein faz uso de glissandos caractersticos da gerao
romntica de intrpretes de Bach, cumprindo funo semelhante s ligaduras
indicadas pelo compositor, ainda que, de forma anti-estilstica aos olhares de
hoje. Perlman respeita a articulao proposta por Bach nestes compassos.
As execues de Zehetmair, Russell e Fernndez respeitam as
indicaes do compositor ao longo de todo o trecho (c. 29-32), evidenciando as
relaes de anacruse e clarificando a polifonia implcita. Fernndez e Russell
agregam, cada um a seu modo, alguns baixos a este trecho, no alterando o
encadeamento funcional da harmonia. Segovia trata cada um dos grupos em
questo de forma diferente, mas em todos nega a relao de anacruse, pelo
uso de ligados entre primeira e segunda, ou terceira e quarta notas dos grupos
de quatro. Segovia indica ainda um portamento entre as duas ltimas
semicolcheias do primeiro grupo, soluo adotada tambm por Bream, que nos
remete quela tradio romntica referida anteriormente.
1.5.2 Polifonia conquistada por saltos
Um exemplo de polifonia implcita conquistada por saltos meldicos
est na segunda metade da variao 25, compassos 221-224. Aqui o
compositor assinala ligaduras que destacam uma melodia em graus conjuntos.
As notas remanescentes constituem a estrutura harmnica, tendo funo de
acompanhamento. No exemplo 24 temos o compasso 221 conforme o
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manuscrito e, no pentagrama superior, uma transcrio em notao que
evidencia as funes de cada figura dentro da textura musical.
Exemplo 24: compasso 221 da Ciaccona: possvel notao usada atualmente, considerando a
funcionalidade das notas (pentagrama superior); notao do compositor (pentagrama inferior).
A gravao de Fernndez nos d mostra de todos estes elementos.
Fernndez usa ligados mecnicos na melodia, caracterizando o legato sem
estabelecer um padro de emprego deste recurso. Bream, Williams e Russell
tambm so claros na exibio dos elementos texturais, mas deturpam a
articulao na primeira ligadura do compasso 223, por no desligarem a ltima
nota da ligadura (r) da nota posterior (f). Bream e Willams usam inclusive um
ligado mecnico entre essas duas notas, o que nos remete edio de
Segovia. Sobre a deciso de Segovia, Roselli (1990, p.45) diz que, a ligadura
posta sobre as primeiras duas notas do segundo tempo do compasso 223
revela a no ateno ao original. Desta forma, a melodia que vinha
seqencialmente se desenhando em figuras de trs notas, recebe uma quarta
sem motivo aparente. Esta soluo est influenciada pelo estilo segoviano de
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execuo desta obra, que prima por destacar a segunda figura ligada de cada
compasso. Apesar de no fazer meno na sua edio, Segovia distingue este
ltimo grupo com uso de tenuto sobre as trs notas e tocando mais forte
(exemplo 25).
Exemplo 25: compasso 221 da Ciaccona: edio de Andrs Segovia (pentagrama superior) erepresentao grfica da sua execuo.
Carlevaro no faz indicao alguma de expresso neste trecho, mas
sugere uso do polegar nas notas destacadas na gravao de Segovia. As
edies de Szeryng e Polo destacam as trs ltimas notas de cada compasso
com sinais de portato38. Essas notas so um arpejo da dominante secundria,
que direciona a harmonia para o compasso posterior. No entanto, Szeryng
mantm a articulao sugerida por Bach, enquanto Polo agrupa as notas em
quatro, separando sempre a primeira de cada grupo de semicolcheias, o que
desfaz o sentido textural das ligaduras.
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A execuo de Milstein diretamente representativa da deciso
tomada por Polo. Perlman claro na separao dos planos da textura, ainda
que o gesto musical d margem a uma ambigidade que parece tender para o
lado da indicao de Polo (agrupando quatro notas). Zehetmair toca staccatto a
nota anterior e acentua a primeira nota da ligadura indicada pelo compositor,
de forma a clarificar o gesto e planificar a textura.
1.5.3 Poli fonia conquistada por saltos e arpejos
Temos tambm um exemplo de polifonia implcita na primeira parte
da variao 25, compassos 217-220. O compositor expe a polifonia fazendo
uso das duas tcnicas: arpejos de trs notas (no incio de cada compasso) e
saltos meldicos (que separam as primeiras notas das demais nos tempos dois
e trs). Aqui, Bach constri uma textura de trs partes (exemplo 26): uma linha
meldica aguda, um preenchimento harmnico com bordaduras (r-d#-r), e
uma linha de baixo formada pela nota mais grave de cada acorde.
38Szeryng especifica no prefcio da edio que o sinal de portato deve ser compreendido comoum destaque da nota e no propriamente como um portato, nem como um tenuto. Na ediode Polo entenderemos esta notao da forma tradicional.
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Exemplo 26: compasso 217 da Ciaccona: possvel notao usada atualmente, considerando afuncionalidade das notas (pentagrama superior); notao do compositor (pentagrama inferior).
Cabe ressaltar a diferenciao que o compositor faz nas figuras que
compem o que aqui chamamos de preenchimento: as bordaduras aparecem
ligadas entre si e com a nota anterior, ou seja, em total legato; j no ltimo
tempo do compasso 220, as notas r-d#-mi aparecem desligadas. Essa
diferenciao ocorre em funo das figuras de retrica. Segundo Butt (1990, p.
193),
A anlise das ligaduras e figuraes especficas se faz maiscomplexa pelo fato dessas ligaduras poderem exibir uma
rtmica especfica ou funo afetiva muitas vezes associadacom a mecnica instrumental que no necessariamente estrelacionada com a figurao que constitui a linha musical. Aligadura no BWV 1005, Allegro Assai, por exemplo, estrelacionada com o ritmo e no diretamente com as figurasempregadas. [...] Contudo, algumas figuras derivam damecnica instrumental empregada.
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Ainda na figura 1 podemos observar duas das figuras referidas por
Butt como derivadas da mecnica instrumental empregada, os tempos dois e
trs podem ser considerados como messanza39
.
A edio de Polo indica acentos nas cabeas dos compassos e uma
ligadura que agrupa cinco notas, as quatro semicolcheias do primeiro grupo e a
primeira do segundo, ligando a trs as bordaduras e, por conseguinte,
separando-as do resto. Desta forma o editor chama a ateno para a
bordadura, numa deciso contrria do compositor. Szeryng mantm as
indicaes de Bach, mas agrega um ligado de quatro notas ao ltimo grupo do
compasso 220, negando assim os preceitos retricos comentados.
Carlevaro usa haste dupla destacando a linha de baixo, mas no faz
nenhuma indicao com relao ao resto da textura. Segovia faz uso da haste
dupla tal qual Carlevaro e acentua alguns baixos sem estabelecer um padro.
No terceiro tempo do compasso 218, Segovia pe haste de colcheia para o mi,
na linha de baixo. Desta forma o editor sugere uma articulao non legato,
contrastante com os demais baixos. Esta articulao no tem motivo musical
aparente, sendo decorrente de um pressuposto tcnico. Segovia usa tambmligados mecnicos entre segunda e terceira notas da bordadura, assim
fragmentando a figura. A indicao de piano para todo o trecho e a digitao
em posies altas do instrumento (entre os compassos 217-219 todo o
dedilhado est indicado acima da casa cinco) pode sugerir para muitos um
39Butt (1990, p. 20) atribui a Prinz (1673, p. 53-55) a definio de messanza. Segundo Prinzesta uma figura de quatro notas que podem aparecer tanto agrupadas como no agrupadas.
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carter romantizado, mas devemos ponderar que este recurso de dinmica e
timbre remete diretamente ao afeto da passagem.
As gravaes de Bream e Fernndez so muito semelhantes neste
trecho, excetuando o que tange ao andamento. Nelas esto claramente
expostos os nveis da textura e uma ligadura a dois posta nas cabeas das
bordaduras, unificando-as. Russell e Williams tambm caracterizam
perfeitamente os planos da textura sem uso de ligados mecnicos. Williams
usa ligados apenas nas bordaduras do compasso 220, diferenciando estas das
anteriores.
Milstein e Perlman tm concepes parecidas neste trecho, ambos
enfatizam a bordadura como sugere a edio de Polo. Milstein, no compasso
220, toca as notas r-d#-mi no lugar da bordadura r-d#-r, o que pode
representar uma deciso arbitrria ou apenas um erro, j que a gravao em
questo foi feita ao vivo.
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2 LIGADURAS LONGAS
Trataremos nesse captulo das ligaduras que agrupam mais de
quatro notas. Segundo J. Butt (1990, p.180),
Na msica do sculo XIX dois nveis de ligaduras sofreqentemente usados: ligaduras curtas indicam os detalhesde articulao e ligaduras longas implicam em um fraseadogenrico. O termo frase cada vez mais evidente nosdicionrios musicais do final do sculo XVIII. A definio deRosseau na Encyclopdie (1751-7 vol. 12 p. 530) pareceu tersido