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CIÊNCIA-TECNOLOGIA-SOCIEDADE E EDUCAÇÃO CIENTÍFICA E
TECNOLÓGICA: O QUE LICENCIANDOS EM CINÊNCIAS BIOLÓGICAS TÊM A
DIZER SOBRE AMBOS?
ADRIAN HENRIQUES1
LUÍS FERNANDO MARQUES DORVILLÉ2
Resumo:
Procuramos discutir as principais concepções relacionadas às inter-relações estabelecidas
entre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS) apresentadas por alunos de um curso de
Licenciatura em Ciências Biológicas sediado no campus da UERJ/FFP. A partir da articulação
entre aportes teóricos nacionais (AULER; DELIZOICOV, 2006; DAGNINO, 2002;
SANTOS, 2011) e internacionais (AIKENHEAD, 2005; CACHAPUZ, 2011), buscamos
refletir sobre os potenciais de uma formação docente em Ciências da Natureza mais voltada
para o empreendimento de uma Educação Científica e Tecnológica (ECT) problematizadora,
crítica e humanística. Os dados empíricos aqui discutidos foram obtidos a partir de reflexões
realizadas ao longo de uma sequência didática aplicada num contexto de estágio-docência de
mestrado da primeira autora. Dezessete alunos matriculados em uma disciplina obrigatória
oferecida no quarto período foram convidados à reflexão e posicionamento sobre aspectos
ligados à natureza da atividade científica e tecnológica e suas interações na sociedade.
Observamos que os futuros docentes apresentam dificuldades significativas em compreender
as dinâmicas dos condicionantes envolvidos nas interações CTS. Sobre o empreendimento da
ECT na escola básica, os licenciandos demonstram atribuir contornos utilitários e
instrumentais à mesma. Defendemos que tais discussões politicamente engajadas favorecem a
formação de professores mais conscientes sobre as circunstâncias socioculturais que nos
cercam.
Palavras-chave: Instruções; Artigo; Diretrizes; Normas; Palavras-chave.
INTRODUÇÃO
Os avanços científicos e tecnológicos exercem forte influência sobre a sociedade
contemporânea, levando-os a ganhar cada vez mais destaque nas mídias comunicativas e nas
discussões dos cidadãos pertencentes a diferentes classes sociais. Polarizados entre uma
ingênua crença savalcionista no potencial científico que nos convida ao encanto por este novo
que se descortina aos nossos olhos e um paralisante determinismo tecnológico que nos impele
à naturalização e à aceitação da realidade que vivenciamos como única possível de existir
(AULER; DELIZOICOV, 2006; DAGNINO, 2002), tais discursos passam longe da
1Faculdade de Formação de Professores da UERJ / Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências,
Ambiente e Sociedade – PPGEAS, Bolsista de mestrado da CAPES. Brasil. E-mail: [email protected] 2Faculdade de Formação de Professores da UERJ / Programa de Pós-graduação em Ensino de Ciências,
Ambiente e Sociedade – PPGEAS. Brasil E-mail: [email protected]
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problematização dos interesses, atores, instituições e relações de poder implicados nas
relações estabelecidas entre instâncias científicas, tecnológicas e sociais. Cabe aqui destacar
que o acesso e a distribuição das mais variadas benesses científicas e tecnológicas não se
fazem de maneira homogênea por todo o globo. Devemos salientar também que muitos dos
avanços alcançados principalmente em áreas como a biotecnologia, os meios de transporte e
telecomunicações de massas, entre outras, que antes foram anunciados pelos “senhores do
mundo” como parte incontestável de um processo de integração global rumo à emancipação
humana, conduziram efetivamente à apropriação absoluta da natureza, e, por consequência, à
dominação social (HARVEY, 1993). Tendo em vista o contexto sociocultural anteriormente
colocado, entendemos que o desafio que se coloca à educação formal de maneira geral e à
sociedade como um todo, é o de formar indivíduos autônomos capazes de enfrentar o mundo
atual e suas exigências de maneira ética, crítica e reflexiva (APPLE, 1989; GIROUX, 1997).
De acordo com Von Lisingen (2007), a escola assume um importante papel social
que, segundo o autor, deve ser rediscutido, pois sobre esta recai a tarefa (por vezes árdua) de
promover a inserção de pessoas e sociedades em contextos mais amplos, favorecendo assim a
convivência intercultural e intersocial sem, no entanto, se contrapor ao meio sociocultural em
que está inserida. Nesta perspectiva caberia à educação formal, por meio de diferentes
disciplinas escolares, fornecer ao alunado uma educação científica e tecnológica que os
permitisse refletir a respeito destas interações e suas respectivas implicações, contribuindo
assim para a preparação dos estudantes da escola básica para uma atuação social e política
ativa (AULER, 2002; SANTOS & MORTIMER, 2002). No entanto, a análise do processo de
escolarização vigente leva-nos a duvidar da possibilidade de êxito do empreendimento
educacional em tais termos, visto que cada vez mais tendências conservadoras o empurram
para a “performatividade mercadológica” tão valorizada em tempos de capitalismo tardio
(APPLE, 1989; MAAR, 1995).
Assim, levando em consideração o papel social da escola na formação de indivíduos
democraticamente ativos (VON LISINGEN, 2007) e o potencial do ensino de Ciências de
contribuir para a formação cidadã dos alunos da Educação Básica (SANTOS & MORTIMER,
2002; PINHEIRO et al, 2007), este estudo procurou respostas para as seguintes questões
norteadoras da pesquisa: Que concepções sobre as inter-relações CTS possui um grupo de
licenciandos em Ciências Biológicas? Como concebem o empreendimento da Educação
Científica e Tecnológica nas disciplinas escolares de Ciências e Biologia? Procuramos,
através desta investigação, perceber recorrências no modo de pensar destes futuros
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professores e inferir através de generalizações e correlações com a literatura disponível sobre
possíveis implicações sobre a futura prática docente destes sujeitos.
Acreditamos, assim como Carnio e Carvalho (2013), que as atribuições sociais e
pedagógicas dos professores de Ciências, de maneira geral, e de Biologia, mais
especificamente, em um mundo dirigido pela lógica do livre comércio que dita regras sobre
padrões estéticos, estilos de vida, lazer e consumo, vão muito além do ensino
descontextualizado e burocrático de fórmulas e conceitos. Dessa forma, defendemos que
professores conscientes de seu papel social, capazes de mobilizar tanto os conhecimentos
específicos de suas formações, bem como outros conhecimentos e valores de maneira crítica,
podem realizar de maneira mais satisfatória a mediação entre os conhecimentos científico-
tecnológicos e os contextos sociais. Deste modo, favorecendo a formação de um espírito
crítico, analítico e reflexivo sobre seu alunado no que se refere aos processos de produção,
desenvolvimento e aplicação destes conhecimentos e suas consequências sobre a sociedade
que integram.
REFERENCIAL TEÓRICO
A partir dos anos 70, a constante incidência de reflexões críticas sobre o modelo de
desenvolvimento científico-tecnológico influenciou discussões sobre a inclusão dos aspectos
sociais relativos a estas esferas nos currículos da educação básica nos países desenvolvidos.
Neste contexto, surge o Movimento CTS que, aliado a intelectuais, movimentos
ambientalistas e de contracultura, passa a criticar enfaticamente as contribuições
tecnocientíficas à guerra e aos interesses político-econômicos de opressão e dominação.
Começava assim a preocupação de se formularem enfoques educacionais para a chamada
“formação cidadã” (SANTOS, 2007; AULER & DELIZOICOV, 2006). Santos (2005) e Von
Lisingen (2007) comentam que os desdobramentos do Movimento CTS podem ser separados
em três eixos: (i) Ativismo CTS (que articula questões políticas projetando-se num plano
prático de ação); (ii) Pesquisa Acadêmica CTS (investigações sobre pressupostos teóricos e
questões epistemológicas que subsidiam reflexões sobre as interações CTS), e, por fim (iii)
Educação CTS (que procura trazer para a educação, em seus segmentos formais e não
formais, as discussões sobre a natureza da Ciência e da Tecnologia, problematizações e
contextualizações relacionadas à CT). Este última, segundo os autores, objetivaria o
favorecimento do desenvolvimento das capacidades de participação democrática e reflexão
crítica sobre as interações CTS. Dias (2004) afirma que a América latina desenvolveu neste
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período seu próprio pensamento latino americano sobre Ciência e Tecnologia – PLACTS.
Segundo o autor, estas quatro tradições carregam em si heranças distintas: a norte-americana
(centrada em preocupações pragmáticas), europeia (voltada para investigações acadêmicas) e
a latino-americana (voltada para as demandas dos países periféricos), embora compartilhem a
ideia de um compromisso democrático básico.
Para pensarmos o empreendimento da ECT em tais termos no contexto educacional
brasileiro é preciso que levemos em conta o que diz a Lei de Diretrizes e Bases – LDB 9.934
(BRASIL, 1996). De acordo com ela, ao final do Ensino Médio e do processo de
escolarização básica como um todo, o estudante egresso deve estar apto para o
prosseguimento dos estudos em níveis superiores de ensino, à inserção no mercado de
trabalho e, sobretudo, à atuação cidadã. Acreditamos que cabe aqui problematizarmos o que
significa ser cidadão no contexto social, cultural e político em que vivemos. Que noção de
cidadania que permeia nossa sociedade? Que tipo de exercício de cidadania os integrantes de
camadas sociais distintas podem vir de fato a efetuar? Aproximando esse debate dos nossos
objetivos, que tipos de instrumentos a escola (enquanto microcosmo social), o Ensino de
Ciências (e Biologia) - através da educação científica e tecnológica - e os professores que
mediam tal processo podem fornecer a seus alunos? Recorremos a autores próprios do campo
de educação em ciências (AULER; DELIZOICOV, 2006; 2011; AIKENHEAD, 2005;
CACHAPUZ, 2011; DAGNINO, 2002; SANTOS, 2007; VON LISINGEN, 2000), bem como
a filósofos consagrados como Adorno (1995b) e Hokheimer (ADORNO; HOKHEIMER,
1991) para refletir sobre tais questões de maneira satisfatória, sem, contudo, pretender esgotar
um assunto tão complexo.
Para Adorno (1995b) é preciso ter em mente que o sentido que assumido pela
educação deve partir da vinculação entre a formação crítica e a ideologia, adquirindo assim
contornos de uma educação política na e para a atuação social. Este tipo de formação social
política não deve ser confundida com uma modelagem, mas sim como a busca pela
construção de uma consciência emancipada, que só pode ser alcançada através da interação do
sujeito com a realidade social. O conceito de educação adorniano, portanto, entende o
processo educativo como eminentemente político e não voltado apenas para a transmissão de
conteúdos. Aliás, Adorno adverte os educadores para o deslumbramento diante de um
processo educativo baseado unicamente em uma estratégia de “esclarecimento” da
consciência, que deixa de lado a estrutura social em que a educação ocorre para encara-la
apenas como apropriação de conhecimentos técnicos (MAAR, 1995). Em Dialética do
Esclarecimento, Adorno e Horkheimer (1991) defendem a tese de que a Razão Iluminista,
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antes anunciada como fonte da emancipação humana do medo e do desconhecido a partir do
controle das forças da natureza, foi progressivamente convertida pela burguesia em razão
instrumental. Assim, esse processo levou ao domínio da humanidade não só sobre a natureza,
como também sobre si própria, sobretudo das camadas sociais mais desfavorecidas. Essa
razão técnica, submetida aos objetivos finais do lucro e da produção em série, é convertida em
um tecnicismo exacerbado pelo utilitarismo capitalista que tem como meta a administração
total, através da via positivista do progresso a todo custo, resultando em massificação da
cultura e pressão econômica para reduzir tudo ao pragmatismo do seu valor de troca, tal qual
afirma Miranda (2002). A razão assume deste modo um caráter dialético, pois o mesmo
processo que contribuiu para a sobrevivência da humanidade, dominando a natureza incerta,
engendra em si mesmo as condições de desigualdade capazes de produzir opressão e
dominação de outros seres humanos.
Nesse cenário, ainda segundo Adorno (1995a), a educação não representa um fator de
emancipação, mas de reprodução na sociedade em que se encontra inserida. Restrita a
conceitos técnicos e atendendo à lógica de mercado, ela compromete o processo de
construção de indivíduos dotados da capacidade de interferir e pensar criticamente o contexto
social que os cerca, configurando-se em um princípio de homogeneização que reduz tudo à
lógica da padronização da mercadoria e do fetichismo. Reproduzindo práticas inerentes ao
sistema capitalista, esse modelo de educação estimula o mérito, a capacidade de adaptação, a
competição, a padronização, a testagem e a preparação para o trabalho, convertendo-se, assim,
primordialmente, em um espaço de seleção, exclusão e reprodução do idêntico. Adorno
(1995c) destaca que a utilização da tecnologia como um fim em si mesmo, cujas finalidades
são muitas vezes encobertas, fez com que as pessoas desenvolvessem, por exemplo, um
sistema mais eficiente para o transporte em massa de seres humanos para os campos de
concentração, sem levar em conta o que aconteceria com eles. Portanto, na concepção de
Adorno, não basta pensar em conteúdos, habilidades ou competências. Para ele, a educação
deve ser capaz de proporcionar aos indivíduos uma consciência crítica sobre a realidade à sua
volta, não aceitando tudo que ocorre como algo dado ou natural.
Inter-relações CTS – Contextualizações Necessárias
Definir Ciência é, segundo Cachapuz et al (2011), uma tarefa complexa e que envolve
debates não consensuais sobre a natureza de tal atividade. Auler e Bazzo (2001) sustentam o
entendimento de Ciência como uma instituição social que, portanto, se configura como um
empreendimento humano que busca compreender, manipular e intervir sobre a realidade sobre
a qual se debruça. O saber científico produzido, por assim dizer, constitui-se como uma forma
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de conhecimento que se distingue de outras por possuir bases epistemológicas diferenciadas,
pressupostos teóricos e metodológicos que lhe garantem certos níveis de atuação e potencial
explicativo, sendo produzido e construído por uma atividade determinada pelas condições
materiais e históricas em que esta se realiza (ANDERY et al, 2014).
No que se relaciona à Tecnologia, é preciso esclarecer que desentendimento
contemporâneo que acompanha sua conceituação encontra suas origens na linha tênue que
separa esta tanto da técnica, enquanto capacidade de produção de instrumentos e ferramentas,
quanto da própria Ciência, enquanto atividade de transformação do real (PINHEIRO et al,
2007). Sustentamos neste estudo a compreensão de Tecnologia como um conjunto de
conhecimentos sistematizado desenvolvido, e em desenvolvimento, pela atividade humana,
que está associada a sistemas e aspectos técnicos, simbólicos e organizacionais e, mesmo
científicos, que permitem a sociedade que o desenvolve intervir sobre sua realidade
(VERASZTO, 2009).
Tendo em vista os pressupostos anteriormente apresentados, sustentamos que se
entendermos a Ciência como uma construção humana que visa compreender tanto quanto
possível e agir sobre a realidade e se levarmos em consideração as diferentes dimensões
envolvidas naquilo que chamamos de Tecnologia, perceberemos que ambas estão
inerentemente ligadas à Sociedade, e vice-versa (AULER, 2002). Em outras palavras, se a
atividade científica possibilita o desenvolvimento de novas tecnologias e se as tecnologias
ampliam o poder de compreensão e intervenção científica sobre os fenômenos investigados,
perceberemos uma forte relação de interdependência entre os termos/conceitos C e T.
Entretanto, de modo a evitar compreensões errôneas e progressivistas sobre as interações
CTS, é preciso que levemos em consideração o fato de que essas interações se dão em uma
dimensão histórica, social e cultural que não apenas as condicionam, mas também se vê
influenciada e modificada por tais interações (LACEY, 1998).
Auler e Delizoicov (2001; 2006) nos chamam a atenção para o risco que corremos ao
endossar certos mitos sobre as interações CTS oriundos de compreensões distorcidas das
mesmas, sendo estes o Determinismo Tecnológico, o Modelo Tecnocrático de Decisões sobre
CT, e o Salvacionismo Científico-Tecnológico. Segundo os autores, tais mitos encontram
suporte na difundida crença em um modelo de acúmulo de conhecimento científico e
tecnológico lineares, realizado por cientistas geniais neutros, alheios a questões externas e que
carregam junto de si um forte código de conduta. Em linhas gerais, podemos caracterizá-los
da seguinte maneira: (i) Determinismo: se o conhecimento sobre Ciência é cumulativo e linear
e a Tecnologia é entendida apenas como conhecimento científico aplicado não há como parar
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o “progresso e o acúmulo de conhecimento”, logo não há o que fazer em relação ao avanço
científico e tecnológico; (ii) Tecnocracia: Se os cientistas e técnicos são neutros, eles seriam
os mais indicados para resolver as questões cientificas e tecnológicas, sendo assim, a
influência de “não experts” em tais assuntos seria potencialmente prejudicial à eficácia dos
processos resolutivos; (iii) Salvacionismo CT: Se os “experts” neutros produzem um
conhecimento que leva ao progresso, todos os problemas relacionados à aplicação de CT
serão resolvidos pelas próprias Ciência e Tecnologia, se não agora, então em um futuro
próximo.
Concordamos que tais concepções são falaciosas e reducionistas e que diminuem a
margem para a atuação democrática. Desta maneira, sustentamos que estas devem ser
problematizadas por meio de uma educação cientifica e tecnológica crítica que
instrumentalize os cidadãos a refletirem sobre as inter-relações CTS e suas implicações.
METODOLOGIA
A análise aqui apresentada integra um contexto de pesquisa maior, sendo então parte
dos resultados discutidos na dissertação de mestrado da primeira autora desta investigação.
Participaram 17 licenciandos matriculados no quarto período do curso Ciências Biológicas da
UERJ/FFP. O material empírico obtido, respostas dos licenciandos a um questionário aberto,
foi analisado de acordo com o referencial metodológico de Análise de Conteúdo, proposto por
Bardin (1977) apud Gomes (2007), o qual, segundo o autor, favorece o entendimento de
textos e mensagens em um nível mais profundo que uma leitura comum. Optamos, assim, por
uma Análise de Conteúdo Temática, com temas definidos a priori. Neste tipo de investigação
o conceito central, como o próprio nome diz, é o tema “uma unidade de registro maior em
torno da qual tiramos conclusões” (GOMES, 2007, p.87). Os temas definidos foram: Inter-
relações CTS (discussões sobre a natureza de cada instância da tríade CTS) e ECT nas aulas
de Ciências e Biologia (reflexões voltadas para o empreendimento da ECT na escola básica).
Foram utilizadas as etapas de (i) Pré-análise – leitura compreensiva dos resultados obtidos,
percepção de recorrências e regularidades e escolha e organização do material a ser utilizado
na investigação; (ii) Exploração do material – decodificação, separação dos núcleos de sentido
que compõem o material, reagrupamento das recorrências em torno dos eixos analisados e
escolha de categorias; (iii) Tratamento dos resultados – interpretação do material de análise
obtido de acordo com o referencial teórico e a realização de inferências.
RESULTADOS
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O questionário foi elaborado para realizar um levantamento diagnóstico das
concepções apresentadas pelos futuros docentes a respeito das inter-relações CTS e da função
do Ensino de Ciências. A partir de perguntas como “o que você entende por Ciência?”, “o
que é Tecnologia pra você?”, “como você define Sociedade?” e, por fim, “como Ciência-
Tecnologia-Sociedade se relacionam em sua opinião?”, podemos observar que os alunos
frequentemente recorrem à ideia de Ciência como um corpo de conhecimentos ou ainda a um
processo de produção conhecimentos sobre a realidade. Em ambos a Ciência é vista como
uma criação teórica de descoberta e/ou investigação (“A Ciência é um conhecimento prévio
sobre a realidade com base na observação”Ágatha). A Tecnologia, por sua vez, assume entre
os licenciandos dois papéis, um como Ciência aplicada (“Tecnologia é a aplicabilidade da
Ciência. A Ciência serve como suporte para que a tecnologia seja criada” Tatiane) e outro como
base prática /instrumental para a investigação científica (“Eu acho que a Tecnologia serviu de
base pra Ciência surgir e se desenvolver” Catarina). No que se relaciona à Sociedade, nota-
se que os licenciandos pouco evidenciam hierarquias socioeconômicas em suas definições, e a
maioria demonstra entender a caracterização social a partir de laços de convivência em um
mesmo espaço/ambiente (“São interações entre indivíduos que vivem em comunidade” Tânia).
Sobre as inter-relações CTS, os licenciandos de maneira geral demonstraram concebe-
las de duas maneiras: (i) Ciência como atividade de produção de conhecimento neutra que
gera Tecnologias a serem empregadas pela Sociedade (“É a partir do conhecimento científico
(ciência) que são construídas ferramentas para a resolução dos fenômenos e situações-problema
encontradas na sociedade” Rodolfo) e (ii) Tecnologia como base instrumental que possibilita à
Ciência produzir bens de consumo a serem utilizados pela sociedade (“Sim, vemos isso em
vários exemplos como no caso das novas tecnologias que mudaram nossa sociedade, como no caso
da bomba química cujo princípio permitiu a descoberta do creme espoliante” Mário).
Pude observar que os alunos demonstraram conceber as inter-relações CTS a partir de
duas tendências gerais: (i) Relações de interdependência com ênfase na Ciência: Ciência
como atividade de produção de conhecimento neutra que gera Tecnologias a serem
empregadas pela Sociedade (Ágatha, Bernardo, José, Laura, Leandro, Luísa, Maria,
Rayane, Regina, Rodolfo, Sara e Tatiane) e (ii) Relações de interdependência com ênfase na
Tecnologia: Tecnologia como base instrumental que possibilita à Ciência produzir bens de
consumo a serem utilizados pela sociedade (Catarina, Anna, Augusto e Tânia). Ambas
podem ser consideradas distorcidas, pois compartilham a ideia de que a Sociedade é “um
todo” homogêneo, o que mascara e naturaliza as relações de poder e assimetrias existentes
(BOURDIEU, 2007). A concepção de Tecnologia em ambas aparece como uma base
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instrumental para a aplicação de conhecimentos científicos ou ainda para a produção de
conhecimento científico. Aspectos organizacionais e simbólicos não ganham destaque
(VERASZTO, 2009). A Ciência é vista como uma atividade científica muitas vezes separada
da sociedade e que não possui responsabilidade sobre os produtos que cria ou ajuda a criar,
uma Ciência neutra e asséptica (LACEY, 1998). Tais concepções são passíveis de endosso a
perspectivas de neutralidade e salvacionismo científico-tecnológico, determinismo
tecnológico e gestão tecnocrática (DELIZOICOV, AULER, 2011). Acredito que o
questionário aplicado antes das discussões possibilitou o levantamento das concepções
trazidas pelos licenciandos antes das discussões e assim são indícios importantes de como os
futuros docentes costumam compreender tais temáticas.
Em relação à função social do Ensino de Ciências (QUADRO 1), notamos que uma
parcela dos licenciandos menciona aspectos ligados à utilidade dos conteúdos e
conhecimentos das disciplinas para a vida cotidiana. Tais respostas foram alocadas na
categoria Utilitarista. Outros licenciandos justificaram a presença das disciplinas escolares
Ciências e Biologia a partir da importância inerente aos conteúdos por estas ministrados. Suas
respostas foram alocadas na categoria Conteudista. Uma resposta foi alocada na categoria
Simplista. Por fim, um único licenciando atribuiu ao ensino de Ciências e Biologia a função
de auxiliar na construção de pensamentos críticos relacionados aos conteúdos e
conhecimentos estudados, sendo sua resposta alocada na categoria Crítica.
Quadro1: Exemplos das respostas dos licenciandos à questão relacionada às finalidades do ensino de Ciências e
Biologia na escola básica(APÊNDICE) Categoria Respostas
Utilitarista “É importante saber Ciências para entender aspectos como fenômenos meteorológicos, entre outros que estão em nosso cotidiano”Augusto
“Como quase tudo que temos contato tem alguma relação com a Ciência precisamos conhecê-la para utiliza-la e para solucionar nossos problemas da melhor maneira possível” Luísa “A Biologia é mais próxima do cotidiano do que se pensa. Pra Ciência produzir uma fórmula de medicamento é fundamental entender mais sobre o corpo humano” Tatiane “Diria que a Ciência está em todo lugar e que, portanto precisamos conhecê-la pra viver melhor e entender a realidade. Diria que a Biologia tem sua importância relacionada ao estudo da vida” Catarina
Crítica “Diria que é importante pra entender questões inerentes à sociedade e à política, por exemplo, a “tragédia dos comuns” e o “pesadelo de Darwin”, diria que serve para não sermos manipulados” Mário
Conteudista
“Pra entender os mecanismos e processos que ocorrem nos seres vivos, a vida de maneira geral” Rayanne “São necessárias para explicar a realidade que vivemos e também para contribuir na solução de problemas cotidianos” Laura
Simplista “Diria que é uma Ciência que está em tudo que é vivo incluindo eles mesmos” Anna
Sobre os aspectos ligados à prática pedagógica relacionada às funções do ensino de
Ciências e Biologia, é importante destacar que, segundo Adorno (1986b), um processo
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voltado apenas para a transmissão de conteúdos e para adequação social à ordem vigente
perde o caráter emancipatório que poderia ter. Se o processo formativo se pauta apenas pelo
“esclarecimento” da consciência, deixando de lado a estrutura social em que a educação
ocorre, o que temos é uma instância destinada à instrução de conhecimentos técnicos, segundo
Maar (1995) e Pucci (1994). De acordo com Aikenhead (2005) o papel exercido pelo
professor de Ciências não deve centrar-se apenas na transmissão de conceitos científicos,
muito menos se ocupar somente de sua crítica, devendo operar obedecendo a partir das duas
perspectivas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As análises realizadas acerca das concepções sobre as inter-relações CTS e o
empreendimento da ECT na escola básica refletem em maior ou menor grau a maneira como
futuros professores concebem não apenas o ensino de Ciências e Biologia, como também as
possibilidades de participação social em assuntos tecnocientíficos fornecidas pelo processo
educacional brasileiro. Pude perceber que os licenciandos tendem em maior ou menor grau ao
endosso de perspectivas de neutralidade do conhecimento científico e tecnológico. Acredito
que estas podem ser prejudiciais ao futuro processo de educação científica e tecnológica
empreendido nas salas de aula que estes virão a ocupar, pois podem influenciar a
compreensão de seus futuros educandos sobre as interações ocorridas entre instâncias
científicas, sociais e tecnológicas (AULER, 2002; DAGNINO, 2002) Os resultados
encontrados demonstram diferentes tipos de concepções sobre a ECT possível de ser realizada
nas aulas de Ciências e Biologia. Alguns licenciandos mostram-se mais propensos a atribuir
finalidades meramente conteudistas à ECT e centralizam o poder detentor do conhecimento
científico na figura professor que deve atuar como um facilitador da aprendizagem. Outros,
por sua vez, se mostram mais abertos à reflexão crítica e, portanto, mais dispostos a mudar de
opinião quanto à inclusão de aspectos culturamente problematizados em sala de aula.
De acordo com Carnio e Carvalho (2013) a formação inicial, apesar de estar longe de
conseguir suprir todas as necessidades formativas dos professores que se graduam, pode
contribuir positivamente para a iniciação dos futuros docentes em níveis de reflexão crítica
sobre questões envolvendo Ciência, Tecnologia e Sociedade. Segundo tais autores, o
tratamento de questões que em sua constituição envolvem aspectos sociais, tecnológicos e
científicos, culturais, políticos e ambientais pode ser bastante eficaz no desenvolvimento de
capacidades de raciocínio crítico e reflexivo dos alunos de diferentes segmentos de ensino.
Neste sentido, concordo com Auler e Delizoicov (2006) que concepções distorcidas sobre
questões relacionadas às esferas científicas, tecnológicas, sociais e suas implicações podem
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ser bastante prejudiciais ao empreendimento do processo de Educação Científica e
Tecnológica emancipatória. Isto porque naturalizam aspectos não naturais destas interações,
como as perspectivas de neutralidade e salvacionismo científico e tecnológico, bem como
reservam pouco espaço para a atuação cidadã democrática sobre as decisões sobre assuntos
envolvendo Ciência, Tecnologia e Sociedade.
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