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C o n f i s s õ e s d e u m a S u s p e i t a d e A s s a s s í n i o
1morte na
casa dos anjos
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Tenho segredos inconfessáveis para partilhar e mais vale que
seja consigo — um estranho, um leitor, mas acima de tudo, uma
pessoa que não pode fazer-me mal. Portanto, aqui vai, ou tudo ou
nada. Já nem estou certa de conseguir ver a diferença.
Na noite em que os meus pais morreram — depois de os seus
corpos terem sido levados pelo elevador de serviço em grossos sa-
cos pretos de transporte de cadáveres — o meu irmão Matthew gri-
tou com toda a força dos seus poderosos pulmões: «Os meus pais
eram maus, mas não mereciam ser levados como lixo!»
Ele tinha toda a razão quanto à última parte do protesto — e
também quanto à primeira, como se veria mais tarde.
Mas estou a pôr o carro à frente dos bois, não estou? Peço des-
culpa… É uma mania minha.
Estava a dormir no piso inferior, mesmo por baixo do quarto-
-estúdio dos meus pais, quando tudo aconteceu. Por isso não ouvi
nada — nem um bater frenético, nem um grito de terror, nenhum
ruído, nada. Acordei com os berros das sirenes a subir a Central
Park West, provavelmente um dos sons mais habituais na cidade
de Nova Iorque.
Mas nessa noite era diferente.
As sirenes pararam à nossa porta. Foi isso que me fez acordar
com o coração a cem à hora. Estaria o prédio a arder? Teria algum
vizinho mais velho tido um enfarte?
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Atirei para o lado os meus dois cobertores, fui à janela e olhei
para a rua, nove estonteantes andares mais abaixo. Vi três carros
da polícia e o que parecia ser um carro à paisana estacionado na
Seventy-second Street, mesmo nos portões da frente do nosso blo-
co de apartamentos, o exclusivo e famigerado Dakota.
Momentos depois, a campainha tocou, um apito estridente que
me socou o peito através da carne e dos ossos.
Porque é que o porteiro nos estava a ligar? Era de malucos.
O meu quarto era o que ficava mais perto da porta de entrada,
por isso atravessei a sala, fiz uma curva apertada à direita junto aos
tubarões no aquário em forma de mesa de café e passei entre Ro-
bert e a sua TV sempre ligada.
Quando cheguei ao átrio de entrada, atirei-me ao botão do in-
tercomunicador para deter aquele toque irritante, antes que acor-
dasse a casa toda.
Falei num murmúrio para o porteiro, pelo microfone:
— Sal? O que se passa?
— Menina Tandy? Vão dois polícias a caminho do seu aparta-
mento. Não consegui detê-los. Receberam uma chamada do 112.
É uma emergência. Foi o que eles disseram.
— Só pode ser engano, Sal. Está toda a gente a dormir. Passa
da meia-noite. Como é que os deixou subir?
Antes que Sal pudesse responder, a campainha tocou e depois
ouviram-se socos na porta. Uma voz masculina áspera disse:
— É a Polícia, abram.
Certifiquei-me de que tinha a corrente de segurança posta e abri
a porta — mas abri só uma frincha.
Espreitei pela abertura e vi dois homens. O mais velho era gran-
de como um urso, mas tinha uma aparência suave e um bocado
mole. O mais novo era rijo e tinha uma cara dura e inexpressiva,
algo como a lâmina de um machado, ou… não, a lâmina de um
machado, é mesmo isso.
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O mais novo mostrou o distintivo e disse:
— Somos o sargento Capricorn Caputo e o detetive Ryan Hayes,
da polícia de Nova Iorque. Abra a porta por favor.
«Capricorn Caputo?», pensei. «Estás a gozar?»
— Devem ter-se enganado no apartamento — disse eu. — Nin-
guém daqui de casa chamou a polícia.
— Abra a porta, menina. E já.
— Vou chamar os meus pais — disse eu pela fresta da porta. —
Não fazia ideia de que eles estavam mortos e de que nós seríamos
os únicos suspeitos de um duplo homicídio. Estava a viver o meu
último momento de inocência.
Mas quem é que eu estou a tentar enganar? Ninguém na famí-
lia Angel alguma vez foi inocente.
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— Abra a porta, ou o meu parceiro deita-a abaixo ao pontapé!
— disse o Cara de Machado.
Não é exagero dizer que toda a minha família estava prestes a rece-
ber uma visita do inferno. Mas naquele momento eu só pensava que
a polícia não podia arrombar a porta. Estávamos no Dakota. Podía-
mos ser despejados por deixar alguém perturbar o sossego do prédio.
Tirei a corrente e abri a porta. Estava de pijama, claro; de tom
amarelo-gema com dinossauros à caça de borboletas. Muito longe
do traje que escolheria para receber a polícia.
O detetive Hayes, o tipo-urso, perguntou:
— Como se chama?
— Tandy Angel.
— É filha de Malcolm Angel e Maud Angel?
— Sou. Podem dizer-me o que vieram cá fazer?
— Tandy é mesmo o seu nome? — disse ele, ignorando a mi-
nha pergunta.
— Sim, é Tandy. Esperem aqui por favor. Vou chamar os meus
pais para falarem convosco.
— Vamos consigo — disse o sargento Caputo.
A expressão sombria de Caputo disse-me que não estava a pedir
autorização. Acendi as luzes, a caminho da suíte dos meus pais.
Estava a subir as escadas de caracol, a pensar que os meus pais
me iam matar por levar estes homens lá acima, quando de repente
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ambos os polícias me ultrapassaram com rudeza. Quando cheguei
ao quarto, a luz do teto estava acesa e os polícias estavam dobrados
sobre a cama dos meus pais.
Mesmo com Caputo e Hayes à frente, pude ver que o meu pai
e a minha mãe não estavam nada bem. Os lençóis e cobertores
estavam no chão e os pijamas estavam enrodilhados debaixo dos
braços, como se tivessem tentado despir-se. O braço do meu pai
parecia que tinha sido torcido para fora do sítio. A minha mãe es-
tava deitada de cara para baixo, atravessada sobre o corpo do meu
pai e tinha a língua de fora. Uma língua preta.
Não precisei do médico-legista para me dizer que estavam mor-
tos. Soube-o no momento em que os vi. Diagnóstico mais do que
certo.
Dei um grito e corri para eles, mas Hayes travou-me. Impediu-
-me de entrar no quarto, pondo as suas grandes patas sobre os
meus ombros e obrigando-me a recuar para o corredor.
— Lamento ter de fazer isto, — disse ele e fechou-me a porta
do quarto na cara.
Não tentei abri-la. Limitei-me a ficar ali. Sem me mexer. Qua-
se sem respirar.
Bom, deve estar a pensar porque é que eu não estava a berrar, a
guinchar ou a desmaiar de choque e horror. Ou porque não corri
em direção à casa de banho para vomitar, ou porque não me en-
rolava em posição fetal, abraçando os joelhos a soluçar. Ou a fazer
qualquer uma das coisas que uma adolescente que acaba de ver os
corpos dos seus pais assassinados deve fazer.
A resposta é complicada, mas vou simplificar: não sou muito
do estilo das outras raparigas. Pelo menos, tanto quanto possa di-
zer. Para mim, dar-me uma coisinha má estava completamente
fora de questão.
Desde os meus dois anos, quando comecei a dizer frases com-
pletas com sujeito e predicado, que Malcolm e Maud me disseram
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que eu era excecionalmente esperta. Mais tarde, disseram-me que
era analítica e concentrada e que o meu desprendimento face a
emoções fortes era uma característica soberba. Disseram-me que,
se desenvolvesse estas qualidades, atingiria, ou chegaria mesmo a
ultrapassar, o meu extraordinário potencial e isso não era apenas
bom: era ótimo. Era a única coisa que interessava, de facto.
Tratava-se de um desafio e eu aceitara-o.
Eis porque estava mais bem preparada para esta catástrofe do
que a maioria dos miúdos da minha idade, ou melhor, do que to-
dos os miúdos da minha idade.
Sim, é verdade que sentia arrepios de pânico a percorrer-me a
espinha, e que me chegavam à ponta dos dedos. Estava em choque
e talvez mesmo aterrorizada. Mas depressa mandei calar a voz que
gritava na minha cabeça e recompus-me, juntando os poucos factos
que tinha à minha disposição.
Primeiro: Os meus pais tinham morrido de uma forma horrível.
Segundo: Alguém tinha sabido da sua morte e chamado a polícia.
Terceiro: As nossas portas estavam fechadas e não havia sinais
de arrombamento. Tirando eu, os meus irmãos Harry e Hugo, e a
assistente pessoal da minha mãe, Samantha, não estava mais nin-
guém em casa.
Desci as escadas e peguei no telefone. Liguei para o nosso tio
Peter e para o nosso advogado, Philippe Montaigne. Depois fui
aos quartos dos meus irmãos e ao de Samantha. E, de certa for-
ma, dei a cada um deles a inexprimivelmente má notícia de que
os nossos pais estavam mortos e era muito possível que tivessem
sido assassinados.
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Consegue imaginar, caro leitor, as palavras que usaria para dizer
à sua família que os seus pais tinham sido assassinados? Espero
bem que sim porque eu não vou ser capaz de partilhar esses mo-
mentos terríveis consigo, neste momento. Mal nos conhecemos e
eu levo um bocado de tempo a aquecer. Espero que tenha paciên-
cia. Prometo que vai valer a pena esperar.
Depois de completar aquela horrível tarefa — talvez a mais hor-
rível da minha vida —, tentei focar a minha atenção no sargen-
to Capricorn Caputo. Era uma personagem de cara dura, como o
polícia violento de um daqueles filmes a preto e branco dos anos
quarenta, que fumam cigarros sem filtro, têm os dedos mancha-
dos de nicotina, e tossem até deitar os pulmões pela boca a cami-
nho do cemitério.
Caputo devia ter uns trinta e cinco anos. Tinha uma única so-
brancelha, uma tira contínua de pelo sobre os dois olhos negros que
eram duros como pedra. Os seus lábios finos juntavam-se numa
linha curta e seca. Tinha arregaçado as mangas do seu blusão azul
brilhante e reparei num símbolo do zodíaco tatuado no pulso.
Era precisamente o tipo de polícia que eu queria a trabalhar no
caso da morte dos meus pais.
Retorcido e mau.
O detetive Hayes era um bicho muito diferente. Tinha uma cara
essencialmente agradável e usava aliança, um corta-vento da polí-
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cia de Nova Iorque e botas com biqueira de aço. Aos nossos olhos,
três miúdos sentados num semicírculo atordoado à sua volta, pa-
recia simpático. Mas o detetive Hayes não mandava e não era ele
quem ia falar connosco.
Caputo pôs-se de pé, de costas para a nossa enorme lareira e
tossiu para o punho. Depois olhou à volta da sala, boquiaberto.
Nem conseguia acreditar que vivíamos assim.
E não posso condená-lo.
Avançou para o aquário em forma de mesa de café, com os seus
3000 litros de água e quatro brilhantes tubarões-pigmeu a nada-
rem em círculos em torno do seu arejador.
A boca ainda se lhe abriu mais quando viu o tritão em tama-
nho natural que estava pendurado pela cauda, preso ao teto junto
às escadas por um anzol ensanguentado.
Deu uma olhadela ao piano de cauda lacado a branco, a que cha-
mávamos Pégaso porque parecia que tinha asas.
E ficou a olhar para Robert, que estava reclinado num sofá da
La-Z-Boy com uma Budweiser numa mão e o comando na outra, a
olhar para a estática no seu ecrã de televisão.
Robert é uma criação notável. É mesmo. É quase impossível di-
zer que ele, o seu La-Z-Boy, e o seu televisor fazem parte de uma
escultura incrivelmente real e tecnologicamente muito avançada.
Foi moldado em gesso a partir de uma pessoa real e depois feito
em polivinil e num composto chamado Bondo. Robert parece tão
real que quase se espera que ele às tantas amachuque a lata contra
a testa e peça outra cerveja fresca.
— Para que é que isto serve? — perguntou o detetive Caputo.
— É um estilo artístico chamado hiper-realismo — respondi.
— Hiper-real, hein? — disse o detetive Caputo. — Isso quer di-
zer «extravagante»? Porque me parece que isso é uma espécie de
constante nesta família, não é?
Ninguém lhe respondeu. Para nós, isto era o nosso lar.
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Quando o detetive Caputo acabou de passar revista ao cenário,
fixou os olhos em cada um de nós, à vez. Limitámo-nos a piscar
os olhos. Não houve histerismos. De facto, não houve nenhuma
emoção aparente.
— Os vossos pais foram assassinados — disse ele. — Percebe-
ram? O que é que se passa? Ninguém aqui gostava deles?
Gostávamos deles, mas não era um amor simples. Para já, os
meus pais eram complicados: austeros e generosos, castigado-
res, exuberantes e contidos. E, portanto, nós éramos complicados
também. Sabia que cada um de nós estava a sentir o que eu sentia
— um tsunami de horror e perda e confusão. Mas não podíamos
mostrá-lo. Nem mesmo para salvar as nossas vidas.
Claro que o sargento Caputo não nos via como crianças destro-
çadas que passavam pelo pior dia das suas ainda tão curtas e ten-
ras vidas. Via-nos como suspeitos, cada um de nós, uma «pessoa
interessada» num duplo homicídio em quarto fechado.
Não tentou esconder o que pensava e eu não posso criticar o
seu raciocínio.
Achei que ele tinha razão.
O assassino dos meus pais estava naquela sala.
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O meu olhar pousou na cara zangada de Hugo, o meu irmão-
zinho de dez anos de idade. Pelos olhares que dirigia aos polícias,
fiquei com a sensação de que ele os considerava malvados e que
queria partir o sargento Caputo aos bocados como se fosse um fran-
go assado. A questão é que Hugo é provavelmente tão forte quanto
um adulto. Achei que ele era mesmo capaz de o fazer.
Que mais podia Hugo fazer?
Sentou-se na «Cadeira-Porco», uma poltrona cor-de-rosa com pe-
zinhos de porco esculpidos a fazer de pés. Parecia um amor, como
quase sempre. Vestia uma grande sweatshirt dos Giants sobre o pi-
jama. Como Golias era o seu herói bíblico, só aceitava um corte de
cabelo uma vez por ano. Por isso, como já lá iam onze meses des-
de a última ida ao barbeiro, o cabelo castanho caía-lhe pelas costas
como uma cascata numa montanha.
O meu irmão gémeo, Harrison, «também conhecido por Har-
ry», sentou-se no sofá de couro vermelho em frente a Hugo. Vocês
iam gostar de Harry; toda a gente gosta.
Somos gémeos falsos, claro, mas somos bastante parecidos,
com olhos e cabelo escuros que herdámos da nossa mãe. Eu uso
o cabelo pelos ombros, às vezes com uma fita. O cabelo de Harry
tem uns caracóis que eu morria para ter também. Ele usa óculos
de armação escura estilo Harry Potter. Ambos temos o hábito de
fazer caracóis com os dedos, quando estamos a pensar. Eu enro-
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lo o cabelo no sentido dos ponteiros do relógio e ele na direção
contrária.
Harry também tem um belo sorriso. Acho que também devo
ter, mas uso-o pouco, ao passo que Harry o usa muito. Talvez ele
seja o único Angel que sorri, de facto.
Naquela noite, Harry estava com umas calças de pintor e uma
sweatshirt, com o carapuço puxado para lhe tapar metade do rosto,
o que me dizia que ele tinha vontade de desaparecer. Estava com
uma respiração forçada e aguda, como se tivesse um apito na gar-
ganta, anúncio de que vinha aí um ataque de asma.
Samantha Peck, a bela e simpática assistente pessoal interna da
minha mãe, passara a noite no apartamento, do lado de dentro das
portas fechadas. Trabalhava para Maud e isso tornava-a suspeita, tam-
bém. Estava em pé atrás de Hugo com uma mão no ombro dele, a
sua cabeleira cor-de-areia a cair em cascata sobre o roupão cor-de-
-rosa. Tinha o rosto pálido e chupado, como se o coração tivesse para-
do de bombear sangue. Pensei que devia estar em estado de choque.
Caputo apontou para o televisor de Robert que transmitia está-
tica 24 horas por dia, sete dias por semana, e disse:
— Alguém pode desligar aquilo?
Hugo disse:
— Nunca o desligamos. Nunca.
Caputo dirigiu-se à parede e arrancou a ficha.
Por momentos, a sala ficou completamente em silêncio, en-
quanto Caputo nos observava para ver como nós reagíamos. Dei
comigo a desejar mais do que nunca que o meu irmão mais velho,
Matthew, aparecesse de repente. Tentei apanhá-lo várias vezes, mas
não atendeu o telefone. Podia não estar nas melhores relações com
os nossos pais, mas eu não conseguia concentrar-me completamen-
te até ele ter sido informado das suas mortes. E Matthew saberia
de certeza como lidar com estes polícias.
O sargento Caputo arregaçou ainda mais as mangas e disse:
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— O estúdio lá em cima é cena de crime. Está fechado até eu
dizer. Estamos entendidos?
Pensei em como os meus pais teriam querido que nos compor-
tássemos nesta situação.
A minha mãe era como uma máquina de movimento perpétuo,
nunca parava, mal dormia. Parecia reparar ao de leve nas pessoas
— mesmo nos filhos. Toda a sua energia estava virada para a aná-
lise dos mercados financeiros e a gestão dos biliões de dólares do
seu fundo exclusivo de ações.
O meu pai era dono da Angel Pharmaceuticals, a meias com o
irmão mais novo, Peter. Era um químico com um cérebro gigan-
tesco e enormes dons. Ao contrário da minha mãe, Malcolm inte-
ragia connosco de forma tão intensa que, após poucos minutos de
contacto com o meu pai, me sentia invadida até à medula.
Com todos os seus erros, Malcolm e Maud defendiam os inte-
resses dos filhos e preocupavam-se connosco. Não se cansavam
de nos ensinar a cultivar aquilo a que chamavam os nossos «po-
deres sobre-humanos»: a nossa força física, as nossas emoções e
os nossos notáveis QIs.
Os nossos pais queriam que fôssemos perfeitos.
Mesmo nesta situação, haviam de querer que nos portássemos
impecavelmente.
Poder-se-ia pensar que a pressão constante para sermos per-
feitos iria afetar as nossas relações com os outros e as expetativas
que temos de nós mesmos. É como ser uma máquina fotográfica
e o sujeito das suas fotografias ao mesmo tempo.
É um bocado tramado, não é?
Ainda assim, não sei como, os miúdos Angel sobreviveram a
isto — talvez de uma forma que eu podia descrever como… não
inteiramente natural. Mas já lá vamos.
Para já, decidi usar as capacidades que os meus pais nos incu-
tiram e recusei-me a reagir como Caputo queria.
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— Claro, agente Caputo — respondi-lhe por fim. — Não quere-
mos interferir com a sua investigação super-rigorosa.
Só tinha de esperar que os polícias me saíssem da frente.
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confissão
Se ao menos Caputo pudesse interrogar Robert. Sabem, Robert vê
coisas. Sabe de coisas. Acerca dos Angel. Acerca de mim. Por exem-
plo: ele sabe daquela vez em que eu enfiei o pé no ecrã dele. De pro-
pósito. Pelo menos foi o que me disseram. Eu nem me lembro. Mas
sei que aconteceu porque um dia era a melhor jogadora de lacrosse
de All Saints, e no dia seguinte acordei no hospital com cinquenta
pontos no pé e na perna.
No hospital, os rostos assombrados de Malcolm e Maud olhavam
para mim sem qualquer compaixão. Maud disse que, de qualquer
modo, nunca achara que o lacrosse fosse desporto para mim. Eu
nunca mais viria a praticá-lo. Malcolm anunciou que o meu Grande
Corte ia servir para reparar o Robert até o pôr como novo. Os meus
esforços foram, infelizmente, em vão; eis porque Robert hoje em dia
só vê imagens de estática. E foi mais ou menos tudo o que me dis-
seram. Não se exigem respostas a Malcolm e Maud.
Hugo foi o único que viu o que aconteceu. Diz que eu entrei no
apartamento com uma tal raiva que ele se escondeu atrás da escultu-
ra de Claes Oldenburg a ver-me pontapear Robert, enquanto gritava
«Eles mataram-na! Eles mataram-na!». O meu pé atravessou o ecrã
de Robert com a força de um camartelo, afirma.
Como posso ter feito isso? Precisaria de uma força sobre-humana.
Quando perguntei a Matthew, ele encolheu os ombros e disse ape-
nas:
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— É uma peça de arte, Tandy. Não tem a resistência de uma coi-
sa industrial.
Mais importante, ainda assim, foi porque teria eu feito isso. Podia
estar realmente a falar da minha irmã Katherine, que morreu?
Estaria a acusar Malcolm e Maud de terem matado a sua filha
mais velha?
E porque será que não me lembro de nada?
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Caputo continuava a andar de um lado para o outro e a tossir,
olhando-nos com maldade e avisando-nos de que se passássemos
para a zona proibida da suíte lá de cima, teria de nos retirar do
apartamento.
— Estou a fazer-vos um favor ao deixar que fiquem no piso de
baixo. Não façam com que me arrependa.
Encarei o detetive ameaçador e lembrei-me do que tinha sido
crescer aqui no Dakota — uma ilha murada dentro de uma ilha.
Era um dos poucos sítios do mundo onde me sentia segura.
Ainda assim, Malcolm e Maud não eram as primeiras pesso-
as a serem mortas no Dakota. Toda a gente sabia que Mark David
Chap man tinha abatido a tiro John Lennon mesmo em frente aos
portões onde os carros da polícia estavam agora estacionados. E ape-
nas dois andares abaixo do nosso, o ator Gig Young matou a mu-
lher e suicidou-se em seguida.
Agora os meus pais tinham sido assassinados na sua cama
por um homicida desconhecido por um motivo que nem consi-
go imaginar.
Ou talvez consiga… mas não quero. Isso são pensamentos mui-
to íntimos, que deixo para mais tarde.
Sentei-me ao lado de Harry, sob o olhar atento do sargento Ca-
puto, enquanto investigadores da polícia científica passavam pela
entrada privada que muito poucos nova-iorquinos alguma vez
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tinham visto, mesmo em fotografias. Atravessaram o átrio empe-
drado e usaram os elevadores dos residentes para subir, o que era
estritamente proibido pelo regulamento do condomínio.
O sargento Caputo tinha-nos banido da suíte dos nossos pais…
mas eu vivia ali. Tinha os meus direitos. E já tinha aprendido, so-
zinha, as bases da criminologia.
Aprendi tudo acerca de JonBenét Ramsey quando tinha seis
anos, a mesma idade que ela tinha quando foi assassinada. Era uma
rapariguinha adorável, aparentemente alegre, destemida e amoro-
sa. Fiquei tão sensibilizada com a sua morte que escrevi à polícia
do Colorado, perguntando-lhe porque não tinham ainda apanha-
do o assassino. Ninguém me respondeu. Até hoje, o seu assassino
nunca foi descoberto.
O caso Ramsey inspirou-me a ler os trabalhos dos famosos pa-
tologistas forenses Michael Baden e Henry Lee.
Li vários guias práticos de investigação de homicídios, por isso
sabia que quanto mais tempo se demorasse a resolver um caso,
mais probabilidades havia de ele nunca ser resolvido.
Não tinha lá muita confiança nas autoridades. Se calhar, Capu-
to e Hayes até eram polícias honestos. Mas os meus pais para eles
eram apenas mais um caso. Era o máximo que eles alguma vez
seriam para a polícia.
Malcolm e Maud eram os meus pais. Devia-lhes isso. Devia-o
a mim mesma e aos meus irmãos, tentar resolver as suas mortes.
O facto é que eu era a detetive ideal para este caso. Era um tra-
balho que eu podia — e devia — fazer. Por favor, não fique a pen-
sar que eu sou convencida quando afirmo isto.
A questão é que sabia que a minha motivação pessoal e a mi-
nha teimosia ultrapassariam qualquer treino que estes tipos ti-
vessem.
Ao fim e ao cabo, sou uma Angel. Como Malcolm sempre dis-
se, nós tratamos do que há para tratar.
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Por isso, sentada ali na sala naquela noite, assumi a responsabi-
lidade de descobrir o assassino dos meus pais — ainda que viesse
a descobrir que esse assassino partilhava o meu ADN.
Ainda que se descobrisse que tinha sido eu.
Não se deve descartar esta hipótese, amigo.
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Conhece a expressão «narrador não-confiável»? Talvez das aulas
de literatura? É quando quem conta a história pode não ser mere-
cedor da nossa inteira confiança. De facto, o narrador pode ser um
mentiroso compulsivo. Por isso, dado o que acabo de dizer, o leitor
estará provavelmente a pensar: será o meu caso?
Eu fazia-lhe uma coisa dessas? Claro que não. Pelo menos,
acho que não seria capaz. Mas nunca se pode ter a certeza de nada
acerca das pessoas, não é? O que é que sabe realmente acerca do
meu passado?
É coisa que temos de investigar juntos, mais adiante.
Por agora, voltemos à história. Eu estava prestes a dar início à in-
vestigação do homicídio dos meus pais. Quando os dois polícias desa-
pareceram para o estúdio, para longe da vista, trepei as escadas para o
longo corredor da suíte penthouse dos meus pais. Espremi-me contra
a parede vermelho-sangue e afastei os olhos dos técnicos do gabinete
do médico-legista, que retiravam os meus pais em sacos de plástico.
Depois fui até à entrada do quarto de Malcolm e Maud e esprei-
tei lá para dentro.
Uma especialista em cenas de crime com um ar muito eficien-
te andava atarefada a recolher impressões digitais. A placa na sua
camisa dizia csi joyce yeager.
Disse olá à cientista forense sardenta e disse-lhe o meu nome.
Ela deu-me os sentimentos. Acenei com a cabeça e depois perguntei:
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— Importa-se que lhe faça umas perguntas?
Yeager olhou em volta antes de dizer:
— Não.
Não tinha tempo para rodeios. Tinha sido afastada deste quarto
e de tudo o que continha, por isso comecei a disparar perguntas
como se fosse uma metralhadora.
— Qual foi a hora da morte?
— Ainda não foi determinada — disse ela.
— E o meio?
— Ainda não sabemos como os teus pais foram mortos.
— E a causa da morte? — perguntei.
— O médico-legista determinará se foi homicídio, acidente,
morte natural…
— Natural? — interrompi eu, já enervada. — Por amor de Deus…
— É tarefa do médico determinar estas coisas — disse ela.
— Descobriram alguma arma? Havia sangue?
— Ouve, Tandy. Lamento, mas tens de te ir embora, antes que
me arranjes problemas.
A CSI Yeager passou a ignorar-me, mas não fechou a porta.
Olhei em volta pelo quarto, observando a enorme cama de casal e
a colcha de seda no chão.
E fiz um inventário visual dos bens dos meus pais.
A pintura sobre a lareira, de Daniel Aronstein, era uma repre-
sentação moderna de uma bandeira americana: faixas de musse-
lina puída com camadas de pintura a óleo em verde e rosa. Valia
quase 200 mil dólares e não tinha sido tocada.
As joias caras da minha mãe também não tinham sido mexidas;
o seu colar de pérolas Mikimoto incrivelmente macias jazia numa
caixa de veludo aberta sobre o toucador e o seu anel de esmeralda
de doze quilates ainda pendia de um ramo da árvore de cristal para
anéis ao lado da cama.
Era claro como água: não houvera roubo.
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C o n f i s s õ e s d e u m a S u s p e i t a d e A s s a s s í n i o
Não me surpreenderia que as provas indicassem que os meus
pais tinham sido mortos por raiva, medo, ódio…
Ou por vingança.
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Estava eu à porta do quarto dos meus pais quando uma som-
bra caiu sobre mim. Dei um salto, como se já estivesse a viver com
medo dos fantasmas de Malcolm e Maud. Já há muitos fantasmas
nesta família a assombrarem-nos, por isso é bom saber que está
aí, amigo.
Por sorte, esta sombra pertencia apenas ao sargento Caputo.
Apertou-me o ombro. Com força.
— Vamos embora, Tansy. Disse-te que este piso era de acesso
interdito. Entrar na cena de um crime sem autorização equivale a
adulterar provas. É um crime.
— Tandy — disse eu. — Não é Tansy. É Tandy.
Não discuti. Ele tinha razão. Desci as escadas à sua frente e vol-
tei à sala de estar, chegando mesmo no momento em que o meu
irmão mais velho, Matthew, entrava pela cozinha.
Quando Matthew entrou na sala, pareceu atrair para si todo o ar
e toda a luz. Tem caracóis castanhos-claros apanhados num rabo-
-de-cavalo atado com um fio de lã, e uns olhos azuis que brilham
como faróis.
Nunca vi olhos como os dele. Nem eu nem ninguém.
Matty estava de calças de ganga e de t-shirt preta debaixo de
um casaco de cabedal, mas toda a gente juraria que ele vestia um
fato agarrado ao corpo, com um S no peito e uma capa a esvoaçar
atrás dele.
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Hugo quebrou o feitiço, saltando da sua cadeira.
— Upa! — gritou para Matty, pulando para o irmão de braços
abertos.
Matthew apanhou Hugo com facilidade e pôs uma mão na nuca
do seu irmão mais novo, enquanto passava os olhos pelos dois dete-
tives da brigada de homicídios.
Matthew mede um metro e oitenta e cinco e tem bíceps do tama-
nho de coxas. E, bem, ele consegue ser um bocadinho assustador
quando está zangado.
Zangado não era bem o termo para o definir naquela noite.
— Os meus pais acabam de ser carregados para fora do edifí-
cio no elevador de serviço — gritou ele aos chuis. — Eram maus,
mas não mereciam ser levados como lixo!
O detetive Hayes perguntou:
— E o senhor é…?
— Matthew Angel. Filho de Malcolm e Maud.
— E como é que entrou no apartamento? — disse Hayes.
— Os polícias deixaram-me entrar. Um deles até me pediu um
autógrafo.
Caputo disse a Matthew:
— Você ganhou o Heisman no ano passado, não foi?
Matthew acenou afirmativamente. Além de ter ganho o prémio
Heisman, de melhor jogador da temporada do futebol americano
universitário, e ter sido três vezes all-American, como magnífico
jogador amador, Matthew era o rosto da NFL, a Liga Nacional de
Futebol Americano, e tinha um contrato chorudo com a Nike. O jor-
nalista desportivo Aran Delaney disse um dia acerca da velocidade
estonteante e da agilidade de Matthew: «Consegue dar a volta ao
quarteirão enquanto eu tiro um fósforo e acendo o cigarro. Mat-
thew Angel é não só de alta extração mas está anos-luz acima de
outros grandes atletas». Por isso não foi surpreendente que Capu-
to reconhecesse o meu irmão.
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Matty estava a deitar fumo, como se a menção à sua fama nes-
tas circunstâncias fosse ofensiva. Eu tinha de concordar. Quem
é que queria saber da porcaria do Heisman numa altura destas?
Por sorte, Hayes era bastante pragmático.
— Olhe, Matthew. Lamento que tivéssemos de tirar os seus pais
pelas traseiras. Não iria gostar se os tirássemos pela frente, com
esses mirones a ver e a tirar fotos, pois não? Sente-se, por favor.
Temos algumas perguntas para lhe fazer.
— Prefiro ficar de pé — disse Matthew. Nessa altura, Hugo ti-
nha trepado por Matthew acima e estava às suas cavalitas, olhando
para os chuis por cima do ombro do irmão.
Caputo entrou logo em modo hostil.
— Onde é que esteve nas últimas seis horas?
— Estive com a minha namorada em West Ninth Street. Passá-
mos a noite juntos e ela terá muito prazer em lho confirmar.
A namorada de Matthew era a atriz Tamara Gee. Tinha recebi-
do uma nomeação para os Óscares no ano anterior, aos vinte e três
anos, e era quase tão famosa quanto Matty. Eu devia ter pensado que
ele estava no apartamento dela, mas não tinha de facto nenhuma
forma de o contactar lá. Conheci Tamara da única vez que Matty a
trouxe cá a casa para conhecer os pais e embora ela seja realmente
bonita na vida real, e talvez milhões de vezes mais esperta do que
outros atores, percebi perfeitamente, através da sua atitude e ma-
neira de falar, que não queria nada connosco. De certeza que não
nos ia dar o número de casa para a eventualidade de eu querer li-
gar para o meu irmão. Principalmente na calada da noite, para o
informar de que os nossos pais tinham sido assassinados.
O meu pai, por outro lado, pareceu admirar a óbvia desconfian-
ça de Tamara face a nós e mais tarde observou que ela era a última
peça do puzzle para garantir o futuro de Matthew. Quero dizer, ele
queria que Matty se candidatasse um dia à Presidência. Estava cer-
to de que Matty ganharia.
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A propósito, Malcolm também achava que Matthew era um
sociopata. Mas, tirando Harry, todos nós, incluindo o meu pai, tí-
nhamos sido chamados de sociopatas pelo menos uma vez na vida.
— Os meus irmãos poderão dizer-lhes que não ponho os pés
nesta casa, nem vejo os meus pais, há meses — estava Matthew a
dizer ao detetive Hayes.
— Tem problemas com os seus pais? — perguntou Hayes.
— Tenho vinte e quatro anos. Dei à asa. — Matthew nem tenta-
va disfarçar o facto de não querer saber de Malcolm e Maud.
— Vamos verificar o seu álibi mais tarde — rematou Caputo. —
Mas oiça: toda a gente sabe que o senhor podia ter deixado a sua
namorada na Village, matado os seus pais e regressado à cama an-
tes de que a sua miúda se apercebesse sequer onde é que tinha ido.
Era uma afirmação muito próxima de uma acusação, obviamen-
te feita para provocar uma reação em Matthew. Mas o meu irmão
não mordeu o isco. Em vez disso, virou-se para Hugo e disse:
— Vou meter-te na cama, companheiro.
Caputo não tinha conseguido nada com Matty, mas forçara-me
a encarar as minhas próprias suspeitas. O meu irmão odiava os
pais. Era um jogador profissional de futebol americano com cem
quilos, uma besta.
Seria também um assassino?
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confissão
Associo o Heisman a coisas bastante mazinhas. A minha psico-
terapeuta, a Dr.a Keyes, trabalhou muito para me ajudar a esquecer
aquela noite, mas de vez em quando, uma memória pica-me o cérebro.
Foi depois da comemoração, depois de voltarmos ao apartamen-
to, após o jantar no Le Cirque. Malcolm e Matty já tinham bebido uns
copos e Malcolm disse:
— Portanto, deixa-me lá pegar no Heisman da família, filho. —
Esticou a mão para o troféu, à espera de que Matty lho entregasse.
— Lembra-te: deves-nos tudo — prosseguiu. — A tua velocidade, a
tua força, a tua resistência. A tua carreira. O teu dinheiro.
Isto não caiu bem ao Matty. Para dizer o mínimo.
— Eu não pedi para me darem nada — disse entredentes. Bateu
com o punho na mesa de jantar de vidro e eu dei um salto porque vi
aparecer uma racha e estava certa de que ele ia ficar com a mão em
tiras. Matty estava tão zangado que acho que nem notou. — Vocês
criaram cada um de nós para reviverem uma das vossas bizarras fan-
tasias de criança! Somos as marionetas do Malcolm. As bonecas da
Maud. Os trofeuzinhos preciosos da Maud e do Malcolm.
E foi então que ele atirou o troféu Heisman pela janela da sala de
estar, a menos de cinco centímetros da minha cabeça.
Podia ter matado quem fosse a passar lá em baixo. Podia-me ter
matado a mim. Teria ficado com remorsos?
Não nos chamavam sociopatas por acaso.
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Agora que já lhe contei essa recordação, tenho de a tirar da minha
cabeça quanto antes. É uma coisa que o leitor devia aprender acerca de
mim: a minha cabeça é um lugar estranho — e talvez um tanto peri-
goso para se ficar durante muito tempo. Por isso vou dar-lhe bocados
e peças aos poucos. Porque eu quero que fique a gostar de mim; pre-
ciso de um amigo. Alguém que queira estar comigo e sentir o horror
da noite em que os meus pais morreram. Pode fazer isso por mim?
Senti o soalho a estremecer quando Matthew voou da sala, mas
o sargento Caputo não se deixou intimidar. Rosnou para o resto
dos presentes, ainda sentados em volta da lareira:
— Quem foi a última pessoa a ver os vossos pais vivos?
Era uma pergunta apropriada e eu considerei as possibilidades.
Samantha, a assistente pessoal da minha mãe, saiu de serviço às
seis. Não foi convidada para o jantar que foi servido na nossa sala
de jantar às oito, em honra do convidado dos meus pais, o embai-
xador do Reino do Butão.
Hugo também tinha sido excluído do nosso jantar com o em-
baixador e tinha ido para o quarto às sete.
Harry e eu tínhamos ficado à mesa durante todo o espetáculo
e, quando este acabou, Harry tinha ido para o seu quarto e, como
é costume, trancado a porta.
Os meus pais tinham conduzido o embaixador ao elevador e
quando os vi pela última vez, no estúdio uma hora depois, estavam
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em forma. Maud estava elegantemente colocada na beira da sua ca-
deira de couro favorita, e vi que tinha trocado o fato saia e casaco de
seda por uma das suas túnicas tunisinas bordadas favoritas. O meu
pai estava sentado no seu cadeirão de couro, beberricando o seu ha-
bitual copo de whisky. Nenhum deles parecia minimamente agitado.
Em resposta à pergunta de Caputo, Samantha, que tinha ocu-
pado o lugar de Hugo na Cadeira-Porco, disse:
— Fui a última pessoa a vê-los. A Maud enviou-me uma men-
sagem acerca de uns documentos que precisavam de assinaturas,
por isso estive com ela às onze e meia. — Ela hesitou um bocadi-
nho quando disse o nome de Maud, mas ouvir a sua voz suave e
familiar acalmou-me ligeiramente.
— Como é que ela lhe pareceu?
— A Maud de sempre — disse Samantha.
— O que é que isso quer dizer? — Caputo não estava disposto
a usar a imaginação.
Samantha tirou um caracol de cabelo cor-de-areia dos olhos e
encarou Caputo.
— Quer dizer isso mesmo. Perfeita. Nem um cabelo fora do sí-
tio, nem uma ruga de preocupação. Calma. Pronta para enfrentar
o que desse e viesse.
Caputo ignorou aquilo e prosseguiu.
— Quem é que beneficia com a morte destas pessoas?
Samantha eludiu a pergunta.
— Por favor lembre-se de que tudo isto me é muito difícil nes-
te momento — disse ela, com a voz novamente hesitante. — Eu
gostava dessas pessoas e ainda estou em choque por ver que foram
arrancadas da minha vida para sempre.
Achei que percebia o que Caputo estava a fazer. Quando os sus-
peitos de homicídio são pressionados, por vezes cometem erros e
dizem aos chuis coisas que mais tarde podem ser utilizadas como
provas contra eles.
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Caputo voltou a perguntar:
— Menina Peck. Quem ganharia com a morte do Sr. e da Sr.a
Angel?
— Não estou a ver quem ganharia alguma coisa.
— Não está a ver ou não quer ver?
— Não sei — disse Samantha. — Não consigo imaginar que
alguém os quisesse ver mortos. Podiam ter algumas… excentrici-
dades pouco ortodoxas, mas eram boas pessoas.
No meio de ataques de tosse, Caputo espremeu-a quanto aos
seus movimentos na noite anterior e recolheu informação sobre o
amigo com quem Samantha tinha ido jantar à Carmine’s Trattoria
no West Side. Interrogou-a sobre as relações que tinha com cada
um de nós, ao que ela respondeu sucintamente que, se bem que
Maud fosse a sua patroa, cada um de nós, os miúdos, era como se
fosse da sua família. Fazia parte da nossa vida há anos, no princí-
pio enquanto fotógrafa que tirava os nossos retratos de família —
tinha feito centenas de belas fotografias da família ao longo dos
anos, muitas das quais estavam nas paredes do apartamento, ao
lado dos retratos de Leibovitz que possuíamos — e depois, quando
provou a sua capacidade para ser completamente discreta e leal,
como assistente pessoal de Maud. Não me lembrava do tempo em
que ela não estava connosco e, como ela disse a Caputo, sabia que
faria tudo por nós.
Quando Caputo acabou de anotar tudo o que Samantha tinha a
dizer, virou os seus olhinhos franzidos para Harry.
Harry estava de boca aberta e a respirar pesadamente, encosta-
do a mim, sentado tão perto que era como se ainda estivéssemos
aninhados juntos no útero.
— Como é que és o único Angel que parece perturbado?
— Estou… avariado — disse ele, citando o que Malcolm lhe ti-
nha dito demasiadas vezes. — As minhas emoções estão a levar a
melhor sobre mim. Lamento…
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— Queres contar-me algo, Harrington? — disse Caputo, com
a cara a centímetros do nariz de Harry. — O que é que me que-
res contar?
— O que é que quer que lhe diga? Dói-me tudo — gritou Harry
—, por dentro e por fora. Isto é a pior coisa que já me aconteceu!
Abracei Harry e ele rebentou em lágrimas contra o meu peito.
O Hayes porreiro avançou com um sorriso e um «então, en-
tão» para Harry. Podia garantir que estava prestes a fazer a cena
do polícia bom.
E eu estaria preparada para isso.
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