Download - Constituição e Integração Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituição
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
1/452
1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
CENTRO DE CINCIAS JURDICAS
FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO
CONSTITUIO E INTEGRAO INTERESTATAL: DEFESA DE
UMA TEORIA INTERCULTURAL DA CONSTITUIO
BRUNO CSAR MACHADO TORRES GALINDO
TESE DE DOUTORADO
rea de Concentrao: Direito Pblico
Recife
2004
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
2/452
2
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
3/452
3
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
4/452
4
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
A Deus, pela vida, fora e capacidade intelectiva;
Aos Profs. Drs. Nelson Saldanha, Ivo Dantas, Fernando Scaff, Michel
Zaidan e Paulo Lopo Saraiva, pelas oportunidades de discusso das idias
que propiciaram a elaborao desta tese;
Aos amigos e eternos incentivadores de minhas trilhas acadmicas (por
ordem meramente alfabtica e no necessariamente de importncia):
Albano Ppe, Alexandre Costa Lima, Alexandre da Maia, Alfredo Rangel,
Ana Maria Barros, Antonieta Lynch, Artur Stamford, Catarina Oliveira,
Cludio Brando, Ernani Carvalho, Fabola Albuquerque, Felipe Deodato,Fernando Andrade, Gustavo Batista, Gustavo Rabay, Joo Paulo Allain
Teixeira, Larissa Leal, Liana Cirne, Nelson Barbosa, Paulo Muniz,
Ricardo Jorge Guedes, Roberta Cruz, Roney Souza, Vera Della Santa,
Walber Agra, Waleska Vasconcelos, pelo apoio de sempre;
A Joo Maurcio Adeodato, amigo entusiasta e grande incentivador, a
quem considero exemplo de intelectual e acadmico no qual busco
espelhar-me;
Sociedade Caruaruense de Ensino Superior que, na pessoa de sua
Diretora-Presidente Mrcia Charret, propiciou importantssimo apoio
elaborao do presente trabalho;
CAPES Coordenao de Aperfeioamento de Pessoal de Ensino
Superior, pela Bolsa de Estudos concedida que viabilizou financeiramente
os estudos empreendidos na Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra/Portugal;
minha famlia, pelo incentivo e compreenso sem medidas;
Aos diletos e cordiais funcionrios da Ps-Graduao em Direito da
UFPE, especialmente Josi, Carminha, Elaine, Geane, Joanita e Wando,
que, mesmo diante das limitaes pelas quais passa o servio pblico
brasileiro, nunca deixaram de agir com presteza e dedicao exemplar;
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
5/452
5
Aos funcionrios do Centro de Estudos Sociais e da Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra, especialmente Olga Canas, que colaboraram
imensamente com as minhas pesquisas em Portugal;
A Manuel Lopes Porto, Presidente do Conselho Diretivo da Faculdade de
Direito de Coimbra, pela encantadora gentileza e cordialidade que o cargo
no obnubilou;
E, por ltimo, a trs pessoas imprescindveis, sem as quais no teria
sido possvel a realizao deste trabalho:
A Raymundo Juliano Feitosa, mais do que orientador, amigo e guru, a
quem prezo especialmente pelo exemplo de profissional e ser humano que
, iluminando seus discpulos com seu saber e sua generosidade;
Ao Prof. Dr. Gomes Canotilho, que me acolheu com solicitude nafascinante Coimbra, e cujas lies desinteressadamente expostas nos
dilogos que travamos em seu gabinete na tradicional Escola jurdica
coimbrana, propiciaram-me um redirecionamento da proposta de tese, a
partir das sugestes do grande Mestre que, por no terem sido inteiramente
acatadas, no implicam obviamente em co-responsabilidade nas
imperfeies existentes;
minha amada Ana Cludia, amorosa companheira de todos os
momentos e a maior entusiasta de todas as minhas aventuras acadmicas e
pessoais (somente ela sabe em plenitude o quo custoso foi chegar at
aqui).
O Autor.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
6/452
6
RESUMO
GALINDO, Bruno. Constituio e Integrao Interestatal: Defesa de uma TeoriaIntercultural da Constituio. f. Tese de Doutorado Centro de Cincias
Jurdicas/Faculdade de Direito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
Este trabalho prope uma discusso acerca das relaes entre a constituio e o
fenmeno da integrao, almejando construir uma hiptese terica intercultural e
inequivocamente aberta e flexvel, com o objetivo de suprir algumas das insuficincias da
teoria clssica da constituio no que diz respeito caracterizao da constituio diante
da integrao interestatal. Para conseguir tal objetivo, procura primeiramente situar as
teorias clssicas da constituio, assim como a evoluo do conceito e das linhas mestras
do fenmeno constitucional, fundamentado principalmente em autores consagrados como
Kelsen, Schmitt, Smend e Canotilho, assim como os tericos e filsofos polticos mais
antigos. Em seguida, busca dimensionar o conceito de cultura e de interculturalismo, a
partir de categorias tericas e filosficas abertas, destacando-se a contribuio de autores
como Popper e Hberle. Em um terceiro momento, tentamos demonstrar a aplicabilidade
da hiptese terica proposta ao caso da Unio Europia e as relaes existentes entre as
diversas constituies estatais e a constituio supraestatal com os avanos institucionais
e as imperfeies remanescentes. Por ltimo, a verificao do interculturalismo
constitucional no continente americano, suas deficincias e a substancial diferena dos
processos de integrao na Amrica em relao ao que ocorre na Europa.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
7/452
7
ABSTRACT
GALINDO, Bruno. Constituio e Integrao Interestatal: Defesa de uma TeoriaIntercultural da Constituio. f. PHD Centro de Cincias Jurdicas/Faculdade deDireito do Recife, Universidade Federal de Pernambuco, Recife.
This work poses a discussion about the relationships between the constitution and
the phenomenon of integration, longing for construct an intercultural theoretical
hypothesis and clearly open-minded and flexible, with the aim to supply the inadequacies
of classical theory of constitution about the characteristics of constitution in the face of
interstates integration. To conquer this aim, at the beginning, try to put the classical
constitutional theories in their places, as well as the evolution of the concept and the
master lines of constitutional phenomenon, basing on knowledge authors like Kelsen,
Schmitt, Smend and Canotilho, as well as the political theoreticians and philosophers
more ancients. So, the work search for calculate the concept of culture and
interculturalism, to start from open-minded theoretical and philosophic categories,
emphasizing the contribution of Popper and Hberle. Thirdly, we will try to demonstrate
the applicability of the thesis theoretical hypothesis to the European Union case and the
relationships between the various states constitutions and the supranationalized
constitution, with the institutional advances and the remaining imperfections. At least, the
research of constitutional interculturalism in the american continent, his deficiencies, and
the substantial difference of integrations processes in the America in the face of
european integration.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
8/452
8
CONSTITUIO E INTEGRAO INTERESTATAL: DEFESA DE
UMA TEORIA INTERCULTURAL DA CONSTITUIO
*Bruno Csar Machado Torres Galindo
ndice:
Introduo: EM TORNO DAS INCERTEZAS TERICAS EXISTENTES, 1
Primeira ParteA(S) TEORIA(S) CLSSICA(S) DA CONSTITUIO: APORTESEPISTEMOLGICOS E DIMENSES CONTEMPORNEAS
Captulo IESTADO: O REFERENCIAL DA CONSTITUIO MODERNA
1)
Necessidade de delimitao de um adequado conceito de Estado como ponto departida, 11
2) Estado e soberania: o advento do Estado na modernidade ocidental, 133) Estado e nao: razovel falar-se em um Estado nacional?, 17
Captulo IITEORIA DA CONSTITUIO E CONSTITUCIONALISMO (I): PR-MODERNIDADE E POLISSEMIA DO TERMO CONSTITUIO
1) Os antecedentes remotos da teoria da constituio: Aristteles e Ccero, 212) Antecedentes medievais: um constitucionalismo insurgente?, 26
Captulo IIITEORIA DA CONSTITUIO E CONSTITUCIONALISMO (II): A 1a. FASE1) Constitucionalismo como processo poltico-jurdico, 302) O constitucionalismo liberal: as efetivas razes da teoria contempornea da
constituio, 352.1) A teoria poltica liberal e as primeiras experincias constitucionais, 352.2) Assistematicidade das perspectivas tericas dos sculos XVIII e XIX, 45
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
9/452
9
Captulo IVTEORIA DA CONSTITUIO E CONSTITUCIONALISMO (III): A 2a. FASE
1) O advento do constitucionalismo social, 481.1) Parmetros ideolgicos da constituio social, 481.2) As experincias constitucionais do Estado social, 50
2) A sistematizao da teoria da constituio no sculo XX: formulaes tericascomo tentativas de uma epistemologia organizada da constituio, 522.1) Hans Kelsen e a constituio como norma hierarquicamente superior:
a perspectiva normativista, 552.2) Carl Schmitt e a sistematizao epistemolgica: a perspectiva
decisionista e a Verfassungslehre, 612.3) Rudolf Smend e o papel integrador da constituio, 712.4) Gomes Canotilho e o dirigismo constitucional como teoria da
constituio do Estado social, 773) A teoria da constituio tal como ensinada: comodidade dos topoi
dogmaticamente pr-estabelecidos e ocultamento do desconforto terico contemporneo,
82Segunda Parte
TEORIA DA CONSTITUIO E INTERCULTURALISMO CONSTITUCIONAL
Captulo VCONSTITUIO E CULTURA
1) Cultura, multiculturalismo e interculturalismo: notas definitrias, 892) A insero do interculturalismo na constituio: entre diversidade e
homogeneidade, 953) A constituio como produo cultural, 994) A(s) teoria(s) da constituio como teoria(s) cultural(is), 103
Captulo VIINTERCULTURALISMO CONSTITUCIONAL E CONSTITUCIONALISMOINTERCULTURAL: ELUCIDAO DA DISCUSSO
1) Constitucionalismo intercultural: uma constituio culturalmente includente?, 1122) Interculturalismo constitucional: a diversidade de culturas constitucionais, 116
2.1) Culturas constitucionais clssicas em uma perspectiva ideolgica: liberal esocial, 1172.2) Culturas constitucionais clssicas em uma perspectiva sistmica: romano-germnica (romanista) e anglo-americana (common law), 1232.3) Culturas constitucionais em formao: niilista e supraestatal, 1292.4) Insuficincia do culturalismo constitucional unvoco e necessidade deabertura ao interculturalismo constitucional, 1352.5) O fundamento terico da pluralidade constitucional: a teoria intercultural daconstituio, 138
2.5.1) Os pressupostos filosfico-jurdicos: o racionalismo crtico de KarlPopper e o possibilismo constitucional de Peter Hberle, 139
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
10/452
10
2.5.2) As caractersticas fundamentais de uma teoria intercultural daconstituio, 144
Terceira ParteTEORIA INTERCULTURAL DA CONSTITUIO E NOVOS ENTES
JURDICOS SUPRAESTATAIS (I): CONSTITUIO E UNIO EUROPIACaptulo VIIEVOLUO DA INTEGRAO EUROPIA: DAS COMUNIDADES UNIO
1) Tipos de integrao interestatal: delimitao terica, 1562) A idia de integrao europia: antecedentes e a fase da cooperao, 1623) A integrao propriamente dita, 165
3.1) A criao da Comunidade Europia do Carvo e do Ao (CECA): o Tratadode Paris, 1653.2) A criao da Comunidade Econmica Europia (CEE) e da ComunidadeEuropia de Energia Atmica (CEEA): o Tratado de Roma, 167
3.3) Os sucessivos alargamentos: da Europa dos seis dos vinte e cinco, 1693.4) O aprofundamento comunitrio, 1723.4.1) O Ato nico Europeu, 1723.4.2) O Tratado de Maastricht e a Unio Europia, 1733.4.3) Os Tratados de Amsterd e de Nice e o Projeto de Constituio
Europia, 175
Captulo VIIICONSTITUIO E DIREITO COMUNITRIO: UMA DISCUSSO ACERCADE SUAS RELAES
1) A tentativa de caracterizao dogmtica do direito comunitrio a partir da teoriada constituio, 1801.1)
Direito comunitrio como um novo direito constitucional de basefederalista heterodoxa: o recurso dogmtica constitucional, 1841.1.1) A Constituio da Unio Europia, 1841.1.2) A Federao europia, 1871.1.3) Ponderaes crticas, 189
1.2) Direito comunitrio como direito internacional regional: ainda a teoriainternacionalista tradicional, 197
1.3) Direito comunitrio como um novo ramo jurdico: possvel sada para oimpasse terico?, 2051.3.1) Originalidade do direito comunitrio: trata-se realmente de um
direito sui generis?, 2051.3.2)
Os caminhos do direito comunitrio: substituio dos/oucoexistncia com os direitos constitucionais dos Estados?, 206
Captulo IXPOSSVEIS REFORMULAES DA(S) TEORIA(S) CLSSICA(S) DACONSTITUIO DIANTE DA INTEGRAO EUROPIA A PARTIR DAPROPOSTA DE UMA TEORIA INTERCULTURAL DA CONSTITUIO
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
11/452
11
1) A constituio kelseniana, a constituio schmittiana, a integrao smendiana eo paradigma dirigente-vinculante: o que pode subsistir desses modelos?, 210
1.1) O paradigma normativista de Kelsen e a modificao do posicionamentohierrquico da constituio, 210
1.2) A inadequao da sistematizao epistemolgica de Schmitt para a
compreenso da situao atual da constituio, 2151.3) A teoria de Smend e a transferncia do papel integrador para aConstituio da Unio, 217
1.4) O modelo dirigente-vinculante: esgotamento terico ou deslocamentopara o direito comunitrio?, 220
2) Possveis construes tericas em torno das novas indagaes feitas porCanotilho, 226
2.1) Papel da constituio com o esvaziamento das pretenses deuniversalizao da(s) teoria(s) clssica(s) da constituio, 227
2.2) Territrio reinventado: o espao constitucional contemporneo, 2302.3) Nacionalismo versus europesmo: a Europa das velocidades diferentes,
2322.4) A interconstitucionalidade como uma proposta em aberto: plausvel umconstitucionalismo em rede?, 2363) A teoria intercultural da constituio como proposta para reduzir a
insuficincia terica dos paradigmas clssicos no caso europeu, 2403.1) A Unio Europia como integrao interestatal de uma diversidade de
culturas constitucionais: dificuldades existentes, 2413.2) A necessidade de uma abertura terica ao interculturalismo
constitucional para a compreenso contempornea da constituio. Possibilidadese limites da teoria intercultural da constituio no caso da Unio Europia, 247
3.2.1) Teoria intercultural da constituio e a Constituio daUnio Europia: uma constituio supraestatal sem povo?, 248
3.2.2) Teoria intercultural da constituio e as constituies dosEstados membros da Unio Europia: constituies sem supremacia hierrquica?, 258
Quarta ParteTEORIA INTERCULTURAL DA CONSTITUIO E NOVOS ENTESJURDICOS SUPRAESTATAIS (II): CONSTITUIO E INTEGRAOINTERESTATAL NO CONTINENTE AMERICANO
Captulo XA INTEGRAO AMERICANA E O BRASIL
1) O Brasil e os modelos de integrao no continente americano, 2751.1) Associao Latino-Americana de Integrao (ALADI), 2771.2) Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), 2811.3) rea de Livre Comrcio das Amricas (ALCA), 286
Captulo XITEORIA INTERCULTURAL DA CONSTITUIO E INTEGRAOAMERICANA
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
12/452
12
1) Integrao interestatal na Amrica: abertura ao interculturalismoconstitucional?, 290
2) A inevitvel subsistncia de paradigmas constitucionalistas do Estado nacionalclssico e o afastamento terico dos modelos constitucionais europeus da atualidade:permanncia das razes europias de outrora?, 295
3) Os caminhos da integrao americana: inclusividade ou incorporao?, 3014) Possibilidades e limites de uma teoria intercultural da constituio no casoamericano, 313
REFERNCIAS1) Livros e artigos, 3202) Legislao e jurisprudncia, 3383) Internet, 339
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
13/452
13
INTRODUO:
EM TORNO DAS INCERTEZAS TERICAS EXISTENTES
A poca em que vivemos, para muitos denominada ps-modernidade, marcada
por contradies e incertezas quase insolveis em praticamente todos os setores da vida
social. A partir da intensificao do fenmeno da globalizao, as slidas instituies
construdas na modernidade entram em crise, chegando muitos a cogitarem o seu colapso
(Kurz: 2004, p. 15).1Este se torna realidade a partir da eroso dos paradigmas modernos,
sobretudo os construdos no breve sculo XX, chamado por Hobsbawm de era dos
extremos (Hobsbawm: 1997).
Para o famoso historiador ingls, o sculo XX paradigmtico (no cronolgico)
teria iniciado com a Primeira Guerra Mundial em 1914 e terminado com a dissoluo da
Unio Sovitica em 1991, juntamente com a queda do socialismo real em todo o leste da
Europa. De fato, com o fim da Guerra Fria, intensificou-se um processo de globalizao
econmica e ideolgica, tendo por base uma maior liberalidade mundial de capitais a
partir de um paradigma ideolgico obscuro e impreciso com algumas semelhanas com o
liberalismo clssico e por esse motivo denominado de neoliberalismo.
1 Segundo este autor, a filosofia do Iluminismo est historicamente acabada. No tem nenhum sentidoinvocar mais uma vez o idealismo da liberdade burguesa, pois para essa espcie de liberdade no h maisnenhum espao de emancipao. Isso se aplica tambm s regies mundiais que nunca foram alm doscomeos ditatoriais de uma universalizao da forma moderna de sujeito. Como a produtividadeeconmica, tambm a subjetividade burguesa medida pelo standard global homogneo, em que no cabea maioria dos seres humanos. Como se ver adiante, divergimos em boa medida da concepo esboadapelo socilogo alemo.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
14/452
14
Com a inexistncia (ou quase inexistncia) de contraposies ideolgicas, surgem
nos anos 80 e 90 (principalmente) precipitadas doutrinas escatolgicas falando em fim da
histria, fim das ideologias, fim da economia, fim do emprego, fim do Estado-nao, fim
da cincia, fim do dinheiro etc. Tais doutrinas de inspirao neoliberal no subsistem
intocadas por muito tempo, pois antes mesmo do final da dcada de 90 so
veementemente contestadas, no somente em termos doutrinrios, mas derrotadas nos
prprios pleitos eleitorais em vrios pases como Alemanha, Frana e Reino Unido
(Dantas: 1999b, p. 103-108).
Contudo, a eleio de tendncias consideradas politicamente mais progressistasno resulta em um concreto enfrentamento do postulado doutrinrio neoliberal. Antes, ao
contrrio, os governos eleitos com propostas de mudanas nos rumos polticos e
econmicos neoliberais tm mesmo aprofundado algumas medidas condizentes com
aquele iderio, o que causa, notadamente em casos como o brasileiro, uma profunda crise
de identidade ideolgica das foras polticas relevantes existentes, tornando os
governantes gerenciadores de interesses dissociados dos da maioria da populao e cada
vez mais parecidos entre si, desconsiderando obviamente as diferenas mais pontuais
(Faria: 2003, p. 1).
A semelhana apontada tem ocasionado mais recentemente em alguns pases uma
nova guinada eleitoral, desta feita para foras ideologicamente mais conservadoras. Na
Frana, a derrota do Partido Socialista do ex-Primeiro Ministro Lionel Jospin; na
Alemanha, a vitria apertada e pouco convincente da coligao liderada pelo Partido
Social Democrata do Primeiro Ministro Gerhard Schrder; no Reino Unido, a
permanncia do Primeiro Ministro Tony Blair no cargo, graas aos votos do Partido
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
15/452
15
Conservador e da manuteno de polticas muito semelhantes s conservadoras (inclusive
o apoio irrestrito Guerra contra o Iraque, liderada pelos EUA), a ponto do sempre citado
Hobsbawm classificar o lder trabalhista ingls como Thatcher de calas (Hobsbawm:
2000b, p. 114-115). No Brasil, o governo do Partido dos Trabalhadores tambm parece
titubear entre micropolticas socialmente abrangentes e uma macropoltica econmica
bastante conservadora, de certo modo continuando medidas do iderio do governo
anterior.
A crise das ideologias (perceba-se que falamos em crise e no fim) gera uma
postura social niilista e uma apatia poltica, a partir da grande incerteza em termos deparadigmas ideolgicos a serem seguidos. Apesar da crise, a intensificao do processo
de globalizao, neoliberal ou no, parece ser irreversvel, embora no se possa dizer que
seja algo definitivo e imutvel.
Com a irreversibilidade de tal processo, configura-se uma substancial ruptura com
os paradigmas clssicos estabelecidos. Conceitos como os de constituio,
constitucionalismo, soberania, Estado-nao, obrigaes internacionais dos Estados,
organizaes polticas supraestatais, organizaes regionais e outros sofrem grandes
modificaes, inquietantes e de problemtica assimilao pelos cientistas polticos e
juristas. Estes precisam modificar a sua tradicional anlise dos fenmenos que trabalham
para construrem novos paradigmas e novas teorias que possam explicar adequadamente
os mesmos e influenciarem na sua conformao.
O trabalho ora apresentado tenta enveredar por esse caminho, qual seja, a
construo de novas perspectivas tericas, para que o direito constitucional possa sair da
encruzilhada em que se encontra (Verd: 1993b,passim; Verd: 1995,passim). A essa
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
16/452
16
altura, j se torna possvel, sobretudo no continente europeu, falarmos em um direito
constitucional supraestatal, o direito comunitrio como algo distinto tanto do direito
internacional como do direito constitucional estatal. O direito comunitrio como nova
perspectiva jurdica provoca rupturas paradigmticas considerveis em ambos os ramos
do direito, segmentos que os juristas mal se acostumaram a trabalhar, tendo em vista que
os mesmos so relativamente recentes no mundo jurdico (sobretudo se levarmos em
conta direitos milenares, como o civil e o comercial). Tambm nos modelos americanos,
em boa medida influenciados por suas matrizes europias, h, por outros motivos
verdade, uma profunda inquietao terica diante de tantas mudanas em to poucotempo, diante de propostas integracionistas completamente diversas em suas
perspectivas, e diante de profundas modificaes de ordem material no seu
constitucionalismo, apesar de preservarem os arqutipos formais clssicos.
Com a realidade constitucional extremamente difusa e varivel espcio-
temporalmente, inmeras indagaes surgem para a teoria contempornea da
constituio: se h uma variabilidade complexa nas concepes atuais de constituio,
pode-se ainda falar na sobrevivncia de aspectos terico-constitucionais clssicos, como
a supremacia da constituio frente a outras normas jurdicas e as teorias do poder
constituinte, poder de reforma e controle de constitucionalidade das normas
infraconstitucionais? Com o predomnio ideolgico neoliberal, pode-se ainda falar em
constitucionalismo social e dirigente, como no welfare statetradicional? Deve-se aceitar
que os doutrinadores constitucionais ignorem o desconforto terico e permaneam
trabalhando apenas com base nos arqutipos tericos constitucionais clssicos? O
hermetismo terico deve permanecer por razes de rigor lgico e cientfico ou a abertura
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
17/452
17
crtica aos influxos tericos da diversidade constitucional pode ser uma sada para os
impasses? Como adequar uma universalidade terica prpria do racionalismo ocidental a
realidades constitucionais to distintas entre si, apesar das razes tericas serem
semelhantes? Em que medida isso poderia ser dimensionado nas perspectivas especficas
da Unio Europia e do Mercosul, assim como de outros entes de integrao, como a
ALCA e a ALADI?
Dentre outras, so indagaes como estas que o presente trabalho pretende
responder, ainda que parcialmente, atravs de uma abordagem terica intercultural da
constituio.Na primeira parte, pretendemos firmar uma base conceitual e epistemolgica
adequada para servir de referencial nossa proposta de tese. Sem um conhecimento
apropriado dos fundamentos tericos aludidos, no se pode estabelecer uma viso crtica
e evolutiva da teoria da constituio, nem construir teses que realmente propiciem um
novo tratamento temtico das constituies. Para justificar o nosso entendimento, os
pontos de partida clssicos so essenciais e imprescindveis, pois, como diria Popper,
necessrio saber onde estamos para descobrir onde podemos chegar (cf. Magee: 1997, p.
310). Estes se estabelecem nos quatro primeiros captulos que compem a parte inicial do
trabalho. Principiando por conceitos mais genricos como os de Estado, nao e
soberania, expomos os antecedentes antigos e medievais da constituio, chegando
mesmo primeira fase do constitucionalismo moderno, com a teoria poltica liberal e os
fundamentos desta perspectiva de constituio, notadamente a partir dos tericos
polticos consagrados como Montesquieu, Locke, Rousseau e Sieys. Em seguida, a
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
18/452
18
demonstrao da experincia do constitucionalismo social em seus desdobramentos
poltico-jurdicos.
Ainda no captulo sobre a segunda fase do constitucionalismo moderno, a
delimitao epistemolgica das teorias da constituio que pretendemos trabalhar. Em
que pese a importncia de inmeros autores de diversas nacionalidades que poderiam
encontrar-se presentes como principais no lugar dos escolhidos, estes so aqui
trabalhados por duas razes: a primeira, o temor de sermos excessivamente
enciclopdicos e no chegarmos a uma efetiva proposta de tese ao priorizar uma
exposio de carter erudito, e a segunda, o fato de que os autores referidos tenham setornado, cada um deles, a principal referncia em seus campos tericos propositivos. Da
nos concentrarmos em quatro autores e suas grandes teses: Hans Kelsen, clebre pela
teoria escalonadora do ordenamento jurdico, que culmina na concepo normativista de
superioridade hierrquica da constituio; Carl Schmitt, que, a partir de sua idia
decisionista, constri a primeira sistematizao epistemolgica da at ento dispersa e
assistemtica teoria da constituio; Rudolf Smend, com a pioneira proposta de um papel
integrador para a constituio, apesar da diferena para a idia de integrao interestatal,
predominantemente debatida neste trabalho;2 Gomes Canotilho, com a teoria da
constituio dirigente como proposta de teoria constitucional do Estado social, pensada
em um ambiente scio-econmico e cultural mais aproximado com o do Brasil, haja vista
sua vasta influncia na doutrina brasileira e nos prprios trabalhos constituintes de 1987-
1988.
2Esses trs primeiros autores esto entre aqueles que Hberle chama de gigantes da poca de Weimar (cf.Hberle: 1997, p. 14).
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
19/452
19
A concluso nesta primeira parte predominantemente expositiva se faz com uma
crtica ao modo como a teoria da constituio vem sendo ensinada e debatida no Brasil e
at mesmo em pases envolvidos com um processo de integrao mais avanado, como
no caso de Portugal. O ocultamento do desconforto terico causado pelas incertezas
epistemolgicas existentes tem sido a praxisno ensino do direito constitucional, sendo
um dos objetivos deste trabalho chamar a ateno para o problema, alm de propor mais
adiante algumas sadas.
de se considerar que, embora a primeira parte seja prevalentemente expositiva,
no abrimos mo de uma leitura e anlise prpria dos referidos autores, debatendocriticamente as suas concepes, apesar do aspecto crtico e reformulatrio ser
aprofundado somente nas partes posteriores do trabalho.
Na segunda parte, a nossa proposta comea a ganhar contornos mais precisos.
Iniciando com esclarecimentos conceituais prvios acerca da cultura, explicitamos as
diferenas entre multiculturalismo e interculturalismo, demonstrando o porqu da nossa
opo pelo segundo vocbulo. Tambm temos a preocupao de demonstrar como a
constituio e as teorias acerca da mesma so produtos da cultura poltica e institucional
existente e como a questo cultural importante para a construo de uma teoria da
constituio constitucionalmente adequada (Canotilho: 1994, p. 154ss.).
Em seguida, pretende-se destacar a existncia de uma diferena conceitual entre
constitucionalismo intercultural e interculturalismo constitucional, situando o debate
deste trabalho nesta ltima perspectiva. Com a diversidade de culturas constitucionais,
entendidas estas como padronizao de determinados aspectos predominantes nas
constituies ligadas culturalmente a um determinado modelo, torna-se necessrio
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
20/452
20
perceber a existncia de culturas constitucionais clssicas no sentido ideolgico (liberal e
social) e no sentido sistmico (romano-germnica e common law). Para alm dessas
culturas clssicas, h tambm o culturalismo em formao do niilismo constitucional,
com o desencanto ps-moderno com as constituies e o constitucionalismo, assim
como o supraestatalismo e suas concepes de constituio dissociada do ente Estado. A
constatao inevitavelmente a presena na complexidade constitucional contempornea
de uma pluralidade de constituies e de constitucionalismos, dificilmente apreensveis
cognoscitivamente pelas teorias mais tradicionais.
Com a constatao feita, comeamos a delinear, em termos mais abstratos, anossa proposta de uma teoria intercultural da constituio. Tendo por pressupostos
cientfico-filosficos o racionalismo crtico do filsofo anglo-austraco Karl Popper e o
pensamento possibilista do jurista alemo Peter Hberle (cujas bases filosficas so
explicitamente popperianas), estabelecemos em termos gerais qual a nossa idia de
interculturalismo constitucional e em que medida ela pode servir epistemologia
constitucional contempornea no que diz respeito diminuio do dficit cognitivo entre
o que prope classicamente a teoria da constituio e o que vem a ser esta ltima (a
constituio). Obviamente, se pensarmos em termos popperianos, uma proposta terica
na linha da epistemologia evolutiva, essencialmente aberta, crtica, plural e, por que no
dizer, falsevel, sem a menor pretenso de esgotar o debate, mas contrariamente ampli-
lo ainda mais (Popper: 2001a,passim).
A terceira parte dedicada s relaes entre a constituio e a Unio Europia
(UE), ente supraestatal mais desenvolvido em termos de aprofundamento do processo de
integrao. Em um primeiro momento, delimitamos teoricamente a questo da integrao
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
21/452
21
interestatal a partir de seus conceitos bsicos, expondo a evoluo histrica da integrao
europia e situando o leitor nos acontecimentos mais relevantes do ponto de vista
poltico-jurdico. Segue-se uma tentativa de determinar epistemologicamente a natureza
das relaes entre as constituies dos Estados europeus e a Constituio europia
supraestatal, debatendo as principais propostas para tal discusso: a viso federalista, a
doutrina internacionalista clssica, a questo da singularidade do direito comunitrio,
assim como os possveis caminhos para este ltimo nas dimenses relacionais supra-
referidas.
O ltimo captulo desta terceira parte procura perceber as relaes entreconstituio e UE a partir de necessrias e urgentes reformulaes tericas, culminando
na aplicabilidade da nossa hiptese intercultural de entendimento da constituio. Para
isso, faz-se necessrio revisitar as teorias de Kelsen, Schmitt, Smend e Canotilho, e
verificar a sua plausibilidade atual diante dos fenmenos subjacentes, assim como a
sobrevivncia de seus paradigmas sedimentados. A continuidade factvel a partir das
novas idias discutidas por um dos pensadores revisitados, o Catedrtico de Coimbra
Gomes Canotilho. Este ltimo faz por si prprio uma crtica s dimenses de
razoabilidade de suas teorias, defendendo reformulaes das mesmas e apontando novos
caminhos. Estes so referenciais importantes do interculturalismo constitucional e
permitem a edificao da teoria intercultural da constituio em termos concretos,
articulando os constitucionalismos estatal e supraestatal, e estabelecendo proposies
tericas pretensamente redutoras da insuficincia das teorias clssicas da constituio.
Consiste em uma tarefa de difcil envergadura, dada a diversidade intercultural entre
constitucionalismos to dspares como o alemo, o francs e o britnico, assim como o
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
22/452
22
advento de um constitucionalismo supraestatal completamente heterodoxo em termos
modernos.
Na quarta e ltima parte do trabalho, as preocupaes se voltam para as relaes
entre a constituio e os modelos de integrao propostos no mbito americano
(entendido este como abrangendo toda a Amrica do Norte, Central e do Sul - e no
apenas os EUA). Por ser um trabalho feito no ambiente brasileiro, apesar de
considerveis subsdios externos, no poderia o mesmo deixar de ponderar a teoria
intercultural da constituio no Brasil e a partir dos processos de integrao dos quais o
nosso pas faz parte. Da principiarmos por uma abordagem expositiva, sem, no entanto,perder de vista a perspectiva crtica, dos trs entes supraestatais que o Brasil integra: a
Associao Latino-Americana de Integrao (ALADI), o Mercado Comum do Sul
(Mercosul) e a rea de Livre Comrcio das Amricas (ALCA).
O debate mais robusto termina por acontecer no captulo final, no qual
procuramos demonstrar a inexistncia de um interculturalismo constitucional em
processos de integrao incorporativa, como parece ser a ALCA, e a plausibilidade desse
mesmo interculturalismo em integraes inclusivas, como aparenta ser o Mercosul. A
necessidade da manuteno de alguns paradigmas clssicos diante da inadequao dos
modelos europeus atuais, assim como pela resistncia constitucional imprescindvel ao
abandono do dbil Estado social perifrico, procurando manter o carter dirigente da
constituio social enquanto esta for necessria, o que parece ser o caso do Brasil e da
Amrica Latina. Por fim, as ponderaes propostas pela teoria intercultural da
constituio para a especificidade da realidade constitucional americana.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
23/452
23
Em adendo, necessria uma ltima nota: o debate aqui proposto est longe de ter
fim. Como prope Popper para a cincia em geral, a teoria aqui defendida tem a
pretenso de ser aberta, crtica, plural e flexvel, embora no se esquive de elaborar
proposies universalistas e particularistas, procurando contextualiz-las adequadamente.
O rigor lgico no pode d lugar a qualquer dogmatismo, refutado explicitamente pela
perspectiva popperiana, mas precisa ser ponderado em termos de racionalidade crtica,
admitindo a possibilidade do equvoco e, a partir dele, a possibilidade da evoluo
epistemolgica. Lembremo-nos que, como defende o filsofo anglo-austraco, as nossas
melhores teorias no passado viram-se falseadas e no se pode esperar outra coisa dasteorias atuais. Os resultados cientficos so geralmente relativos, pois possuem o carter
de hipteses conjecturais verossimilhantes e no de verdades absolutas. Por isso a
necessidade de humildade por parte dos cientistas, porm, sem o temor de que suas
teorias sejam falseadas e equivocadas, pois a intuio e a criatividade, quando permeiam
argumentos lgico-sistemticos, baseados em sucessos cientficos anteriores e em partes
de conhecimentos de base tomados como premissas, tornam-se aliadas imprescindveis
dos tericos e pensadores de qualquer ramo do conhecimento (Popper: 1987b, p. 229;
252; Popper: 2001b, p. 41-42; Worral: 1997, p. 110).3
Com a humilde pretenso de contribuir com o debate da temtica, propondo uma
teoria explicitamente aberta falseabilidade, ainda assim arriscamos a submet-la
discusso, pois em torno dela, pensadores mais perspicazes talvez possam ir mais adiante,
a partir das crticas exaradas e pensadas ao que dito aqui, e, se o presente trabalho
3 Sobre a humildade cientfica: Falando de modo mais geral, porm, pode realmente dar-se que oscientistas se estejam tornando mais humildes, pois o progresso da cincia caminha em ampla escala atravsda descoberta de erros e, em geral, quanto mais conhecemos, mais claramente nos convencemos do quantono conhecemos (o esprito da cincia o de Scrates) (Popper: 1987b, p. 252).
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
24/452
24
cumprir tal objetivo, sentir-nos-emos profundamente satisfeitos. Conforme o sempre
citado Canotilho,
compreenda-se a mensagem aqui insinuada. Sem as teorias de Newton
no se teria chegado Lua assim o diz e demonstra Sagan; sem o hmus
terico, o direito constitucional dificilmente passar de vegetao rasteira,
ao sabor dos ventos, dos muros e da eficcia (Canotilho: 2002a, p. 18
grifos do autor).
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
25/452
25
Primeira Parte
A(S) TEORIA(S) CLSSICA(S) DA CONSTITUIO: APORTES
EPISTEMOLGICOS E DIMENSES CONTEMPORNEAS
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
26/452
26
CAPTULO I:
ESTADO: O REFERENCIAL DA CONSTITUIO MODERNA
Sumrio: 1. Necessidade de delimitao de um adequado conceito de Estadocomo ponto de partida. 2. Estado e soberania: o advento do Estado namodernidade ocidental. 3. Estado e nao: razovel falar-se em um Estado
nacional?
1. Necessidade de delimitao de um adequado conceito de Estado como ponto de
partida
No h como inserirmo-nos na discusso de uma teoria intercultural da
constituio, se no estabelecermos alguns pontos de partida conceituais para que fique
suficientemente esclarecido em que sentido utilizamos termos como Estado, comunidade
ou organizao poltica, constitucionalismo e constituio, j que so expresses de
notria polissemia. Justamente por esta plurivocidade semntica, o esclarecimento dos
pontos de partida se faz necessrio para evitar, tanto quanto possvel, o dficit
comunicativo, algo lamentavelmente to comum em nosso ramo do conhecimento. Com
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
27/452
27
exceo da nossa proposta terica de constituio, que ficar para o debate posterior, os
esclarecimentos aludidos esto entre as finalidades desta primeira parte do nosso
trabalho, comeando pelo debate em torno do Estado.
Partindo de uma perspectiva histrica, percebemos que o termo Estado
generaliza-se de tal forma na cultura poltica que faz com que, como muitas vezes
acontece, o gnero seja tomado pela espcie. A teoria poltica e a teoria do Estado passam
a chamar de Estado todas as organizaes polticas de carter oficial da Histria que
apresentaram convergncia para um centro superior de mando. Neste alargamento
semntico da expresso Estado, esta passou a designar at mesmo as unidades tribaisestudadas pela antropologia cultural, assim como as organizaes polticas da
Antigidade Clssica e as da Alta e da Baixa Idade Mdia (Vilanova: 1996, p. 146).
As comunidades polticas existem em toda a histria da humanidade, com maior
ou menor grau de organizao, ora sendo vistas como organismos (teorias organicistas),
ora como complexos de relaes intersubjetivas (sociologia relacional), ou ainda como
construo normativa (normativismo) ou como complexo de condutas orientadas por um
sentido (pluralismo, integracionismo etc.) (Zippelius: 1997, p. 35ss.). Nem todas elas
podem ser classificadas como Estados, apesar de possurem muitas das caractersticas que
o Estado tambm possui, desde um domnio efetivo sobre determinado territrio e
populao at uma organizao sistmica ideal a partir de um ordenamento jurdico
vinculante (Kelsen: 2002b, passim). Isso se explica pela simples razo de que todo
Estado uma comunidade poltica, embora o inverso no seja correto, em virtude da
maior amplitude conceitual deste ltimo termo.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
28/452
28
Se precisarmos melhor o conceito de Estado, podemos perceber que o mesmo no
pode ser aplicado a todas as formaes polticas de que estamos tratando. O sentido
contemporneo do termo Estado aponta para um tipo de organizao poltica surgida na
Idade Moderna e no antes.4 Se definirmos Estado como o faz Ataliba Nogueira, no
pode ser outra a nossa concluso. Diz o Mestre da Universidade de So Paulo que Estado
uma sociedade soberana surgida com a ordenao jurdica cuja finalidade regular
globalmente a vida social de determinado povo, fixo em dado territrio e sob um poder
(Nogueira: 1971a, p. 25). Com tal definio, pode-se afirmar que o Estado uma
organizao poltica caracterizada pela existncia de quatro elementos constitutivos:povo, territrio, poder poltico (governo) e soberania. Os trs primeiros caracterizam
tambm as demais organizaes polticas. O quarto que caracteriza especificamente a
organizao poltica denominada de Estado.
2. Estado e soberania: o advento do Estado na modernidade ocidental
Na tradio alem, o vocbulo Estado um termo jurdico que se refere, ao
mesmo tempo, Staatsgewalt(violncia/poder estatal), ramo executivo assecuratrio dos
aspectos interno (supremacia intraterritorial) e externo (independncia extraterritorial) da
soberania, Staatsgebiet (territrio/regio estatal), territrio claramente delimitado e ao
Staatsvolk (povo do Estado), a totalidade dos cidados. Do ponto de vista sociolgico,
Habermas acrescenta que o cerne institucional deste Estado denominado moderno
composto por um aparato administrativo legalmente constitudo e altamente diferenciado,
4Cunha: 2002, p. 106: j uma vexata quaestioa de saber se o Estado criao dos tempos modernos ouuma realidade anterior. No se negar, seja como for, que o Estado, tal como o conhecemos, deve a suagnese modernidade (grifos do autor).
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
29/452
29
monopolizador dos meios legtimos de violncia e obediente a uma diviso de trabalho
com uma sociedade de mercado que dispe de liberdade econmica. Apoiado por foras
armadas institucionais (militares e policiais), o Estado preserva sua autonomia interna e
externa. Para o filsofo de Frankfurt,
a soberania significa que a autoridade poltica mantm a lei e a ordem
dentro das fronteiras de seu territrio, bem como a integridade dessas
fronteiras em confronto com o meio internacional, onde os Estados rivais
se reconhecem mutuamente nos termos do direito internacional
(Habermas: 2000, p. 297-298; Habermas: 1999, p. 84; cf. tb. Hasebe:1999, p. 115-118).
por esse motivo que no se pode chamar de Estado a todas as comunidades
polticas que tenham os trs primeiros elementos. Os Estados so espcies do gnero
organizaes polticas. Dentre estas, podemos falar em reinos, imprios, sultanatos,
tribos, cls, principados,polise outras que no so necessariamente Estados (em que pese
a opinio em contrrio de autores consagrados como Jellinek, para quem a soberania no
constitui caracterstica essencial do Estado Jellinek: 2000, p. 441ss.;passim).
Nas teocracias do oriente prximo, os imprios no criaram um sistema de
filosofia poltica, sendo atribudo o poder poltico a partir de dogmas religiosos
inflexveis e supersticiosos que afirmam a origem divina do poder e, por vezes, o poder
poltico considerado como o poder da prpria divindade, impedindo investigaes sobre a
origem, natureza e aperfeioamento possvel do mesmo (Gettel apudDantas: 1999a, p.
61).
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
30/452
30
No mundo greco-romano, temos o desenvolvimento de sistemas de filosofia
poltica que inspiram experincias institucionais mais slidas (Saldanha: 2000, p. 14).5
No entanto, nem a polis grega, nem a repblica ou o imprio romano desenvolvem
terica ou praticamente a idia de soberania. Napolisgrega, a principal referncia oficial
o povo (demos), o grupo de cidados, desconsiderando o prprio territrio. Os
atenienses, tebanos e corntios so identificados completamente com as suas respectivas
comunidades polticas. A comunidade de cidados corresponde polis que muitas vezes
traduzida como cidade-Estado, mas que no possui um necessrio vnculo com um
territrio (para os gregos seria impensvel um Estado com grande extenso territorial).O referencial sempre a comunidade de cidados, o povo (Jellinek: 2000, p. 153).
Em Roma, prevalece a noo de civitas (comunidade dos cidados) ou de res
publica, a coisa comum a todo o povo, sendo substituda no incio da era crist pela de
imperium, tambm sem uma delimitao da idia de soberania, embora as idias de
cidadania e nacionalidade estivessem presentes como vnculos entre o indivduo e a
comunidade poltica romana, vnculos que ao longo dos sculos so gradativamente
estendidos aos habitantes das provncias de Roma.6Dentre os romanos, prevalece uma
espcie de pragmatismo imperial que at certo ponto procura respeitar as instituies das
diversas localidades conquistadas militarmente, desde que estas paguem determinados
tributos e permitam a presena administrativa de um procurador ou governador que
representa Roma nas instituies locais autnomas (Duverger: 1996, p. 14).
5 Segundo este autor, com os gregos que se verifica a conjuno de uma experincia institucionalextremamente variada com um teorizar idneo e desenvolvido.6Tambm merece registro o fato de que Ccero e inmeros jurisconsultos romanos defendem a idia de queno h res publicasem um poder supremo (summa potestas) (Goyard-Fabre: 1999, p. 58)
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
31/452
31
Se entre os antigos no se cogita de soberania, nas organizaes polticas
medievais, menos ainda podemos afirmar a sua existncia. Na Idade Mdia, o poder
poltico encontra-se bastante fragmentado e confuso, havendo pelo menos trs esferas de
poder, cada qual buscando uma maior efetividade do seu comando: os feudos, os reinos e
a Igreja, representando respectivamente poderes locais, regionais e o que denominamos
hoje de internacionais (mas pretendendo-se superior aos feudos e reinos, diferentemente
dos poderes de coordenao das organizaes internacionais contemporneas). Cada um
destes poderes polticos detm tropas, autoridades, tesouros e representaes
diplomticas prprias, o que torna o ofcio de governar um negociar contnuo, pois adificuldade de submisso unilateral de uma comunidade poltica outra grande, j que
h uma pluralidade de autoridades em uma mesma faixa territorial, alm de pluralismos
legal, cultural e, por vezes, mesmo religioso, como ocorre na Espanha, no perodo
anterior ao incio da reconquista (poltica de intolerncia crist para com os mouros)
por Fernando II, rei catlico de Len (Zippelius: 1997, p. 72; Arnaud: 1999, p. 53).
Por outro lado, a idia do territrio como referencial comea a surgir com maior
nitidez na perspectiva do domnio poltico efetivo sobre o mesmo. A referncia poltica
deixa de ser o demose passa a ser o territrio, at em virtude da valorizao da terra na
Idade Mdia. A comunidade poltica mais ou menos poderosa a partir da maior ou
menor dominao territorial, o que possibilita a gnese da soberania como idia poltica e
a existncia de comunidades polticas com grande extenso territorial, dando origem aos
modernos Estados (Jellinek: 2000, p. 154-155).
Todavia, somente na Idade Moderna que surge a teoria e a prtica da soberania,
bem como a noo contempornea de Estado. O vocbulo Estado utilizado no sentido
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
32/452
32
moderno pela primeira vez, embora ainda com algumas imprecises, por Maquiavel no
seu mais famoso escrito em que afirma que Todos os Estados, os domnios todos que
existiram e existem sobre os homens, foram e so repblicas ou principados (Maquiavel:
1977, p. 11).
A Idade Moderna o perodo histrico em que se delineia o conceito atual de
Estado, culminando na idia de Estado nacional. Ainda assim, no final do sculo XVIII
temos a utilizao do termo Estado, designando classes ou estamentos sociais, como
nas obras de pensadores como Sieys e na prtica revolucionria francesa (aluso a
estados gerais ou terceiro estado) (Sieys: 1997; Bonavides: 1996, p. 66ss.). Mas odelineamento do conceito de Estado s possvel a partir do desenvolvimento da teoria e
prtica da soberania.
Do ponto de vista terico, o primeiro a trabalhar o conceito de soberania Jean
Bodin, no seuDe la Rpublique. Para ele, todo poder inferior subordinado a um poder
superior e no pice, h um poder que no tem sobre si nenhum outro, sendo este o poder
soberano (summa potestas) (Malberg: 1998, p. 80ss.). Para Bodin, por soberania se
entende o poder absoluto e perptuo que prprio do Estado (apud Bobbio: 1998, p. 95-
96). A soberania surge como a caracterstica essencial do poder do Estado sob dois
aspectos: por um lado, a independncia diante dos poderes internos reside no fato de que
a regulao jurdica se torna efetiva, mesmo sem o consentimento dos sditos ou dos
estamentos sociais; por outro, a faculdade de regulao soberana tambm independe de
poderes externos, sendo delimitada apenas por mandamentos divinos, leis naturais e
princpios gerais de direito (Zippelius: 1997, p. 75; Goyard-Fabre: 2002, p.130ss.).
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
33/452
33
A idia de um poder com carter absoluto e perptuo tambm pensada por
Thomas Hobbes. O pensador ingls elabora a doutrina absolutista do Estado,
desenvolvendo a concepo de soberania de Bodin, mas ampliando as justificativas do
seu carter absolutista a partir do momento em que os cidados, em nome da segurana,
concedem o poder absoluto ao soberano, devendo obedincia igualmente absoluta a este
ltimo. Para evitar o catico estado de guerra de todos contra todos, os homens
precisam renunciar a todos os direitos perante o poder de mando absoluto e obedecer a
este (Llorente: 1999, p. 125; Hobbes: 2000, passim; Hobbes: 1998, passim). Embora
absolutista, a concepo hobbesiana no nega a existncia de direitos dos sditos, masdefende a renncia aos mesmos por razes de segurana, pois esta seria prefervel
liberdade individual em um estado de coisas catico. O valor segurana prepondera na
cultura poltica de ento em detrimento do valor liberdade.
Tais doutrinas, aliadas s profundas transformaes ocorridas nos sculos XVI e
XVII, propiciam a delimitao terica e prtica da soberania do Estado. Enfraquecem os
poderes feudais locais com o desenvolvimento do capitalismo mercantilista e o poder
eclesistico com a fragmentao religiosa provocada pela reforma protestante. Com a Paz
de Westfalen, em 1648, os Estados absolutistas soberanos apresentam-se na sua feio
clssica. O Estado absolutista soberano, cujo poder pertence ao monarca, apresenta-se
com suas duas principais caractersticas relacionadas ao seu poder: circunscrito a um
territrio delimitado, ele o mais alto poder dentro deste territrio, tendo supremacia
sobre todos os demais, e independente frente a poderes externos e vinculados a outras
circunscries territoriais (Llorente: 1999, p. 124-125, tb. Malberg: 1998, p. 80-82).7
7De acordo com o primeiro autor, A noo de soberania surge no contexto das guerras religiosas, comouma categoria necessria para dotar o direito de um fundamento autnomo, desligado das crenas
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
34/452
34
Embora a soberania pertena ao Estado, a titularidade da mesma do monarca
que, por este motivo, denominado soberano. A caracterstica do Estado absolutista de
atribuir a titularidade da soberania ao monarca faz com que se confunda o prprio Estado
com a pessoa do soberano, a ponto de se atribuir ao Rei Lus XIV (Rei Sol), o mais
clebres dos monarcas absolutistas, a famosa frase O Estado sou eu (LEtat cest moi).
No sculo XVIII, com as revolues liberais estadunidense e francesa, temos
modificaes quanto titularidade da soberania. A influncia das idias iluministas,
sobretudo as de Jean-Jacques Rousseau, modificam a idia de soberania quanto sua
titularidade que no mais deve ser atribuda a uma pessoa, mas a um ser coletivopossuidor da vontade geral (Rousseau: 1995, p. 38ss.).
O ser coletivo ao qual atribuda a titularidade da soberania em fins do sculo
XVIII a nao. No mais o monarca, mas a nao a titular da soberania, passando a
sedimentar o paradigma de que a cada Estado corresponde uma nao. O Estado e a
nao se fundem sob a forma de Estado nacional.
3. Estado e nao: razovel falar-se em um Estado nacional?
Em torno das relaes entre Estado e nao e da consolidao do termo Estado
nacional, as dificuldades j se estabelecem em torno do controverso conceito de nao.
religiosas. O que d unidade ao Estado, res publica, a existncia de um poder soberano, definido comopoder absoluto e perptuo de fazer as leis, que dizer, como fonte nica do direito (positivo) vlido. Estepoder, cujo titular naturalmente o monarca, um poder territorialmente circunscrito: a vontade soberanano pode se impor fora de suas fronteiras perante a lei, porm somente pela fora e, no mbitointernacional, na relao entre os Estados, no existem mais normas obrigatrias alm daquelas aceitastcita ou expressamente, por estes Estados. A soberania a caracterstica tpica do poder do monarca dentrodo Estado, mas em virtude dessa conexo necessria entre o poder e o territrio tambm se qualifica comosoberano o Estado propriamente dito em sua relao com os demais, enquanto, por estar sujeito somente aoprprio monarca, absolutamente independente do exterior.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
35/452
35
Embora em geral se entenda que o vocbulo tem conotaes de uma comunidade
moldada pela descendncia, cultura e histria comuns, e muitas vezes, tambm por uma
lngua comum, o conceito bastante varivel no tempo e no espao. O seu radical
etimolgico latino natio indicava, no uso clssico dos romanos a ascendncia comum,
mas houve uma grande modificao conceitual at a modernidade, quando se
estabelecem conceitos aproximados com o que colocado acima, designando por nao
as comunidades de origem do indivduo, sem um necessrio atrelamento a uma
comunidade poltica estatal (Habermas: 2000, p. 298; Habermas: 1999, p. 86; Habermas:
1997b, p. 282). Mas efetivamente no se consegue nenhuma definio cientificamentedensa e aceitvel. Por maiores que tenham sido os esforos engendrados, as indagaes
de Otto Bauer, feitas no incio do sculo XX, ainda permanecem sem resposta (Bauer:
2000, p. 45-46).8
Alm da dificuldade de se conceituar adequadamente nao, temos outros
problemas como o das naes espalhadas por vrios Estados como a nao rabe ou
judaica (a despeito da existncia dos Estados de Israel e da Arbia Saudita), assim como
o dos Estados plurinacionais. De fato, se no Estado nacional a cada nao um Estado e a
8Bauer assim se expressa sobre a questo: Bagehot diz que a nao um daqueles muitos fenmenos quecompreendemos, desde que no nos faam perguntas sobre ele, mas que no sabemos explicar em termosbreves e sucintos. Porm, a cincia no pode contentar-se com uma resposta desse tipo; no podeabandonar a questo do conceito de nao, se quiser falar dela. Responder a essa questo no to fcilquanto, a princpio, parece. a nao uma comunidade de pessoas que descendem da mesma origem? Masos italianos descendem dos etruscos, dos romanos, dos celtas, dos teutnicos, dos gregos e dos sarracenos;
os franceses de hoje, dos gauleses, dos romanos, dos bretes e dos teutnicos; e os alemes, dos teutnicos,dos celtas e dos eslavos. a lngua comum que une as pessoas numa nao? Mas os ingleses e irlandeses,os dinamarqueses e noruegueses, os srvios e croatas falam, em cada um dos casos, a mesma lngua, e nempor isso so um nico povo. Os judeus, por outro lado, no tm uma lngua comum mas so uma nao.Ser a conscincia de uma insero comum num grupo que compe a nao? Mas, nesse caso, o camponsdo Tirol no seria alemo, j que nunca teve conscincia de fazer parte do mesmo grupo que os prussianosorientais e os pomeranianos, os turngios e os alsacianos. De que, exatamente, os alemes tm conscinciaquando se lembram de sua germanidade? O que os torna membros da nao alem, pares de outrosalemes? Sem dvida, primeiro preciso que haja um critrio objetivo dessa parceria, para que se possatomar conscincia dela.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
36/452
36
cada Estado corresponde uma nao inteira, como afirma Mazzini, temos dificuldades de
enquadramento de vrios Estados neste perfil (Hobsbawm: 2000, p. 273). S a ttulo de
exemplo, podemos citar o Reino Unido com ingleses, escoceses, galeses e irlandeses, a
Sua com cidados de origem germnica, francesa, italiana e reto-romana, a Espanha
com castellanos, galegos, catales e bascos, para no falarmos na antiga Unio das
Repblicas Socialistas Soviticas com mais de cem naes distintas (Nogueira: 1971b, p.
85ss.; Venter: 1999, p. 21).
Para dificultar ainda mais a preciso terminolgica, tambm as organizaes
polticas internacionais utilizam freqentemente o termo nao com o mesmo significadode Estado, a exemplo da Organizao das Naes Unidas (ONU) que, a despeito do
nome, congrega Estados e no naes.9
Como se percebe, a denominao Estado nacional possui dificuldades
intrnsecas. A perspectiva de correspondncia entre um Estado e uma nao pode, por
exemplo, dificultar a inclusividade das minorias nacionais em um Estado plurinacional
com prevalncia de uma nao especfica que possa ser culturalmente dominante. Ao
mesmo tempo, a idia de Estado nacional pode ainda proporcionar a incorporao
forada de um determinado territrio ao Estado, sob o argumento nacionalista, como
ocorreu com o Anschluss da ustria por Hitler, fundamentado no discurso
pangermanista.10
9 Aunque hoy algunas naciones todava nos recuerdan a los viejos imperios (China), a las ciudades-Estado (Singapur), a las teocracias (Irn), a las organizaciones tribales (Kenya), o muestren rasgos declanes familiares (El Salvador) o empresas multinacionales (Japn), los miembros de la Organizacin delas Naciones Unidas forman, a pesar de todo, una asociacin de Estados-nacin (Habermas: 2001a, p. 85-86).10Sobre o conceito de pangermanismo, cf. Goyard-Fabre: 1999, p. 422-425.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
37/452
37
Apesar dos perigos apontados, no h dvida que o Estado nacional, a partir da
sua caracterizao iluminista no sc. XVIII, serve historicamente para resolver problemas
importantes das comunidades polticas. Sobretudo com a passagem republicana
(entendida no sentido de res publica e no como forma de governo contraposta
monarquia) da soberania da realeza para a soberania popular, como afirma Habermas, o
Estado nacional pde solucionar dois problemas de uma s vez:
1) fundou um modo democrtico de legitimao do poder poltico estatal;
2) fundamentou este modo democrtico em uma forma nova e mais
abstrata de integrao social, substituindo as desgastadas formastradicionais de integrao da sociedade por uma integrao atravs da
cidadania democrtica. O Estado administrador, fiscal e soberano torna-se
tambm um Estado constitucional democrtico (Habermas: 2000, p. 300;
303; Habermas: 2001a, p. 86).
A referncia democracia no deixa de ter, paradoxalmente, um carter inclusivo
das prprias minorias e da populao em geral com a abertura democrtica aos direitos de
cidadania, no mais pertencentes apenas a estamentos especficos, mas ampliados ao
povo como um todo.
No negamos os avanos polticos que o Estado nacional traz, mas contestamos
do ponto de vista cientfico a terminologia utilizada que no corresponde ao objeto que
procura definir.
Entretanto, embora etimolgica e empiricamente falha, a denominao Estado
nacional prevalece a partir das revolues liberais do sculo XVIII e ser aqui utilizada
para evitarmos o dficit comunicativo, apesar da ponderao crtica que fizemos. As
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
38/452
38
caractersticas bsicas do Estado nacional, assim como os seus quatro elementos,
permanecem com o advento das revolues liberais, mudando a titularidade da soberania,
no para a nao, mas para o povo como conjunto de cidados (o Staatsvolk da tradio
alem), ligados entre si por um vnculo jurdico.11Sendo atribuda ao povo e no nao,
a questo da titularidade da soberania mais bem explicada tanto nos Estados nacionais
como nos plurinacionais, embora inevitavelmente precisemos fazer uso de um conceito
jurdico de soberania em detrimento de conceitos sociolgicos.
Delimitada a teoria do Estado nesta perspectiva em que estamos discutindo,
podemos dela extrair inicialmente duas concluses fundamentais:a) s podemos falar em Estado como espcie do gnero organizaes
polticas, espcie esta surgida somente na Idade Moderna e no antes,
sendo, portanto, um dado histrico-cultural (Dantas: 1999a, p. 54-55;
Vilanova: 1996, p. 146-147);
b) o Estado nacional surge somente no final do sculo XVIII com a
mudana de titularidade da soberania, que no pertence mais ao monarca e
sim nao (na verdade, ao povo). A partir desses elementos,
pretendemos levar adiante a discusso proposta acerca da teoria da
constituio que tem no Estado (pelo menos at o momento) o seu
referencial por excelncia.12
11 Alguns autores entendem como povo em sentido sociolgico o que designamos aqui como nao(Zippelius: 1997, p. 94).12Os problemas referentes insuficincia das teorias do Estado aqui esboadas sero discutidos na segundae terceira partes deste trabalho.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
39/452
39
CAPTULO II:
TEORIA DA CONSTITUIO E CONSTITUCIONALISMO (I):
PR-MODERNIDADE E POLISSEMIA DO TERMO
CONSTITUIO
Sumrio: 1. Os antecedentes remotos da teoria da constituio:Aristteles e Ccero. 2. Antecedentes medievais: um constitucionalismoinsurgente?
1. Os antecedentes remotos da teoria da constituio: Aristteles e Ccero
Como afirmamos anteriormente, tambm o termo constituio, objeto do nosso
trabalho, semanticamente plurvoco. Considerando este aspecto, necessitamos
estabelecer um adequado entendimento desta plurivocidade para que o leitor compreenda
o debate e o nosso posicionamento em relao a ele. A construo de uma teoria
intercultural da constituio, como proposta neste trabalho, perpassa necessariamente
por uma anlise da situao terica clssica da constituio, referencial obrigatrio para
as tentativas reformulatrias.
No se pode desconsiderar que a constituio tal como ns a concebemos hoje
como uma norma hierarquicamente superior que organiza as linhas mestras do poder
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
40/452
40
poltico estatal e define o alcance dos direitos fundamentais um projeto da
modernidade. No perodo que aqui denominamos pr-modernidade no h essa
perspectiva de constituio, sendo do entendimento comum a existncia de normas que
regulam a existncia e o funcionamento do poder poltico sem ainda prognoses precisas
de hierarquia, superioridade normativa ou direitos fundamentais como entendemos
atualmente. Nas Idades Antiga e Mdia, assim como na maior parte da Idade Moderna a
constituio um fenmeno muito diverso do que concebemos a partir das revolues
liberais dos sculos XVII e XVIII (principalmente).
A discusso em torno do conceito de constituio e de uma construo terica emtorno da mesma possui antecipaes bastante remotas. J na Antigidade clssica
possvel perceb-las, apesar do conceito antigo de constituio ser bem diverso do
contemporneo.
Embora autores como Loewenstein fale de um constitucionalismo hebreu e de
uma Constituio do Prncipe Botoku, do Japo, no ano 604 a. C., as razes da teoria da
constituio so geralmente atribudas a Aristteles (Loewenstein: 1964, p. 154-155). A
grande maioria dos doutrinadores atribui ao estagirita as primeiras idias para um teorizar
consistente do fenmeno constitucional. Para Ren Marcic, por exemplo, Aristteles o
primeiro terico da constituio, considerando-a como a forma essencial do Estado.
Assim tambm considera Kelsen, afirmando que a Poltica de Aristteles uma teoria
da constituio. Verd ainda afirma ter sido Aristteles o fundador do direito
constitucional comparado ao compilar para Alexandre Magno cerca de 158 constituies
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
41/452
41
de diversaspolisde seu tempo, apesar de quase todas elas terem se perdido, exceo da
de Atenas (Verd: 1994, p. 11-12; Cunha: 2002, p. 279-280).13
A referncia terica atribuda a Aristteles pela doutrina decorre de alguns fatores
relevantes. Primeiramente os arqutipos da cultura poltica do ocidente contemporneo
tm sua origem na rica experincia institucional da polis grega. Em segundo lugar, o
estagirita influencia, com a sua filosofia poltica, a conformao do funcionamento das
instituies atenienses. E por ltimo, ainda existem inmeras construes tericas
contemporneas acerca da constituio claramente influenciadas pelo pensamento
aristotlico, como veremos adiante.A experincia institucional ateniense de fato notvel. A diviso de poderes, a
organizao relativamente democrtica do exerccio do poder poltico, a distribuio
deste ltimo pelos cidados ativos, as frmulas da democracia direta so contribuies
inegveis da polis grega, apesar de no se poder esconder a base escravocrata e
excludente na qual se erige a cidadania em Atenas. A averso dos gregos concentrao
do poder e arbitrariedade faz com que construam muitos instrumentos de controle do
poder poltico que influenciam o constitucionalismo at os nossos dias. Os mandatos
temporalmente fixados, a rotatividade dos governantes no exerccio do poder poltico, o
acesso do cidado comum aos cargos pblicos em geral so instituies que extrapolam a
polise sobrevivem atravs da histria da democracia no ocidente (Loewenstein: 1964, p.
156-157).
13 Verd: 1994, p. 11-12: Desgraciadamente, solo se conserva la Constitucin de los atenienses,encontrada entre las arenas de Egipto en 1880 por Kenyon. El texto se hallo incompleto. Este escrito,como sostiene Garca Valds, transparenta una slida base terica, y esa teorizacin se relacionaestrechamente con la experiencia.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
42/452
42
Em torno do desenvolvimento institucional grego, a filosofia poltica de
Aristteles a maior contribuio terica conformadora das instituies polticas de
ento. O estagirita o primeiro a tratar explicitamente de uma diviso das funes
polticas em deliberativa/legislativa, executiva/governamental e judicial e atribu-las a
pessoas ou grupos de pessoas distintas, mais de dois milnios antes de Montesquieu. A
defesa da eletividade dos governantes e detentores do poder poltico, a curta durao dos
seus mandatos e as resolues da assemblia dos cidados para decidir acerca dos
negcios pblicos de maior importncia tambm esto presentes no pensamento
aristotlico, tudo isso como uma tentativa de racionalizao do poder poltico para queeste no venha a se degenerar (para que a monarquia no se torne tirania, para que a
aristocracia no se torne oligarquia e para que a democracia no se degenere em
demagogia) (Aristteles: 1998, p. 177ss.; Fioravanti: 2001, p. 22-23; 30-31).
Com a preocupao de criar estruturas polticas ao mesmo tempo democrticas e
duradouras, gerando uma estabilidade institucional necessria polisgrega, Aristteles
procura construir uma forma de governo adequada a este fim, tendo em vista toda a
problemtica exposta. Para isto prope a existncia de umapoliteia, geralmente traduzida
como constituio. E esta traduo que provoca controvrsias quando se discute a
constituio dos pr-modernos em confronto com a constituio da modernidade
ocidental. Em verdade, politeiano significa em Aristteles o mesmo que constituio
geralmente significa na cultura poltico-jurdica contempornea. Alm disso, h uma
substancial variao do significado do referido vocbulo mesmo dentre os gregos antigos.
Vejamos.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
43/452
43
Desde o sculo XVIII torna-se corrente traduzir politeiacomo constituio, mas
anteriormente a preferncia , segundo Stourzh, pela palavra inglesa governmentou ainda
conceitos como policie ou commonwealth, lembrando que o vocbulo governo
significava a organizao e exerccio do poder poltico, no tendo sinonmia com poder
executivo, como nas doutrinas modernas de diviso de poderes(Neves: 1994, p. 54-55;
Canotilho: 1999a, p. 50). Outros, como Rolando Tamayo y Salmorn, vo mais adiante
ao levantar vrias acepes do termo entre os gregos antigos (apud Dantas: 1999a, p.103-
105). Porm, a traduo corrente mesmo constituio (cf. Aristteles: 1998, passim;
Aristteles: 1995,passim).O conceito aristotlico de constituio (politeia) o de estrutura poltica da polis
(da a similitude com o conceito de governo que expusemos acima). a ordem da polis
em relao aos cargos governamentais, a como se d sua distribuio, determinao do
poder governamental superior e finalidade da comunidade poltica (Neves: 1994, p. 54;
Craig: 2001, p. 126). Corresponde em parte ao primeiro sentido dado por Schmitt ao
conceito absoluto de constituio, entendendo esta como la concreta manera de ser
resultante de cualquier unidad poltica existente (Schmitt: 1996, p. 30). Tambm
possvel fazer aproximaes conceituais com a constituio real de Lassalle (1998, p. 32),
com a constituio em sentido material de Loewenstein (1964, p. 152), assim como a de
Mortati (1998, p. 195ss.). A matria constitucional (organizao do poder poltico)
diversa das matrias das demais normas jurdicas, havendo, para Aristteles, uma
diferenciao material entre constituio e demais normas jurdicas, embora ainda no
haja uma diferenciao formal em termos de supremacia hierrquica. As normas sobre a
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
44/452
44
organizao do poder poltico fazem parte da essncia da polis (Jellinek: 2000, p. 457-
458).
Apesar das aproximaes, no se pode esquecer o forte contedo axiolgico da
teoria aristotlica. Alm de discutir a forma de ser dapolis, ele analisa valorativamente as
formas de governo (o caso das degeneraes acima descrito), alm de estabelecer um
telos para a constituio (Aristteles: 1998, p. 105).14 Em Aristteles a constituio
contm elementos substanciais, tico-sociais e econmicos (Verd: 1994, p. 19; Goyard-
Fabre: 1999, p. 56). Neste particular diferencia-se, sobretudo, de Lassalle.
Mais do que a estrutura poltica efetivamente existente, a politeia a particularforma constitucional capaz de promover e realizar a justa medida entre dois extremos, em
si mesmos negativos, como a aristocracia e a democracia, mas que, sendo equilibrados,
produzem a constituio ideal (Fioravanti: 2001, p. 24).
O termo que utilizamos (constituio), entretanto, de origem romana.
proveniente do vocbulo constitutio, tambm polissmico como politeia. Tanto
utilizado para a traduo deste ltimo termo como para assumir novas significaes. Na
evoluo das competncias em Roma, o imperador assume, gradativamente o poder de
emitir normas prximas das nossas atuais leis. E so estas normas oriundas diretamente
do poder imperial, embora no necessariamente referentes estrutura da civitas, que os
romanos chamaram de constitutiones, no sendo, portanto, habitual entre eles o
significado depoliteia, corrente na historiografia contempornea (Saldanha: 2000, p. 15-
16).
14A Constituio integral diz: 1o. de quem e de que espcie de pessoas um Estado deve ser composto; 2o.como deve ser governado para ser feliz e florescente.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
45/452
45
A concepo predominante em Roma tem suas bases tericas em Ccero.
Inicialmente com as discusses em torno do termo res publica, tambm de permanente
oscilao semntica, e em virtude disso, cunhou o termo constitutio, embora continue
associando este res publica no sintagma reipublicae constitutio, sendo o primeiro
elemento adjetival. Em conceituadas tradues daDe Re Publica, o autor das Catilinrias
justape os conceitos de res publica e constitutio, afirmando ser o primeiro equivalente
civitasromana, enquanto o segundo refere-se organizao desta ltima (Cunha: 2002, p.
271-272).15
Percebemos, portanto, que Ccero constri um conceito essencialmente jurdicode constituio, afirmando que o termo constitutio corresponde forma jurdica da
unidade da civitas. Embora no ignore os valores, a preocupao de Ccero
predominantemente tcnico-jurdica e formal (Verd: 1994, p. 18-19). um conceito
voltado para a idia de ordem jurdica. A organizao jurdica do poder poltico romano
o que Ccero considera como a constitutio da res publica, da civitas, que necessita de
parmetros jurdicos racionais de ordenao e controle do poder poltico para funcionar
adequadamente. Afigura-se ntida aqui a influncia das idias gregas.
A civitasromana, segundo Loewenstein, um exemplo clssico de uma sociedade
poltica que sendo fundamentalmente constitucional, no se perde em excessos
democrticos como sua predecessora Atenas, j que as assemblias so muito mais
institucionalizaes da estrutura social tradicional do que fruns de deliberaes
democrticas. Sobretudo no perodo republicano, Roma possui um sistema poltico com
15Ferreira da Cunha utiliza o vocbulo Estado em lugar de civitas, mas tal denominao no nos pareceadequada, tendo em vista a nossa posio conceitual acerca do significado do termo Estado. A nossaopo pela expresso civitasdenota os nossos esforos para mantermo-nos coerentes e buscar uma razovelpreciso terminolgica. Sobre a oscilao semntica do termo repblica, cf. Kirsch: 2002, p. 208-209.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
46/452
46
complexos dispositivos de freios e contrapesos para dividir e limitar o poder poltico dos
governantes, com estruturas legislativas e judiciais colegiadas, assim como a limitao na
durao dos mandatos. A prpria ditadura, que uma espcie de direito constitucional de
crise ou de legalidade extraordinria, limitada na sua durao e nos seus fins. No
perodo imperial, o constitucionalismo degenera e a civitas se torna uma organizao
poltica desptica com nuances teocrticas (Loewenstein: 1964, p. 156-157).
2. Antecedentes medievais: um constitucionalismo insurgente?
Na Idade Mdia h, como vimos, uma fragmentao do poder entre as
organizaes polticas existentes (feudos, reinos, Igreja). Com tal disperso do poder
poltico, ocorre tambm uma espcie de concorrncia pelo exerccio do mesmo, j que
no h monoplio da violncia legtima por qualquer das referidas organizaes polticas.
No havendo tal monoplio, que se configura como uma das caractersticas do poder
poltico soberano, tambm no h organizao poltica dotada de soberania. Com a
dificuldade de subsistncia de pretenses totalizadoras por parte das organizaes
polticas existentes, a maior parte da vida dos cidados medievais se desenvolve fora das
previses normativas oficiais, seguindo a fora normativa do costume (Fioravanti: 2001,
p. 35).
Portanto, temos aqui, como assevera Fioravanti, a primeira caracterstica geral da
constituio medieval: a intrnseca limitao dos poderes pblicos. Obviamente no se
trata de uma limitao com base na idia moderna de separao de poderes, nem mesmo
pode-se falar em uma limitao de ordem formal. A limitao apenas de ordem ftica:
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
47/452
47
simplesmente no h, apesar do almejo universalista da Igreja e de alguns imprios, um
centro irradiador de normas jurdicas que possam ordenar efetivamente o conjunto de
relaes civis, polticas e econmicas da sociedade (Fioravanti: 2001, p. 35-36; Arnaud:
1999, p. 58ss.). Os poderes das organizaes polticas so limitados porque no
conseguem se afirmar soberanamente, como acontece com o Estado, e concorrem entre si
para se firmarem enquanto instncias detentoras de poder poltico de fato.
A constituio medieval tambm possui uma segunda caracterstica: a existncia
de relaes substancialmente indisponveis por parte dos poderes pblicos em termos de
uma ordem jurdica dada. necessrio preservar e defender o equilbrio costumeiroexistente de todos os que tentem fazer alteraes arbitrrias no mesmo. As normas
consagradas consuetudinariamente devem ser preservadas de modificaes unilaterais por
parte do poder poltico existente, evitando a tirania do detentor deste poder, notadamente
do monarca (Fioravanti: 2001, p. 36-37).
De certo modo, temos aqui uma antecipao ftica do que se consagra
posteriormente no constitucionalismo liberal como os dois pilares da constituio: a
separao de poderes (idia de limitao recproca dos poderes pblicos) e os direitos
fundamentais (idia dos limites ao exerccio do poder poltico pela existncia de relaes
sociais indisponveis por parte do detentor do poder).
claro que no se pode pensar que h na Idade Mdia uma constituio no
sentido contemporneo. Ainda quando consubstanciadas suas linhas gerais em um
documento escrito, a constituio medieval ainda em boa medida uma constituio real
(no sentido lassalliano), embora no se deva descartar a existncia de um certo idealismo
subjetivo proposto por autores como Toms de Aquino quando defendem a existncia,
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
48/452
48
por exemplo, de um direito de resistncia tirania, autorizando a desobedincia civil em
certos casos.
Todavia, para alm da antecipao ftica que fizemos referncia acima, na Idade
Mdia que so produzidos os primeiros documentos escritos que guardam uma maior
semelhana com as constituies contemporneas. no perodo medieval que comeam a
surgir tais textos que servem de referncia para a teoria da constituio como
antecipaes medievais do constitucionalismo. So as idias de pactos normativos entre
governantes e governados, limitaes formais dos poderes polticos, direitos dos sditos
(na verdade, apenas de parte destes) diante do monarca etc. que ganham contornos maisprecisos nesse perodo histrico. Surge a Bula urea de Andr II da Hungria (1225), as
Ordenaes portuguesas, o Privilgio Geral Aragons (1283) (mais remotamente, h
ainda uma referncia Constituio japonesa do sc. VII) e o mais conhecido desses
documentos que , indubitavelmente, a Magna Charta Libertatum dos ingleses (1215)
(Cunha: 2002, p. 104; Fioravanti: 2001, p. 51).
A Magna Carta das Liberdades basicamente uma carta de direitos, pactuada
entre o monarca e os nobres ingleses. Para compreender o surgimento da mesma, no se
pode esquecer das caractersticas peculiares do desenvolvimento do feudalismo ingls.
Enquanto a fragmentao do poder poltico caracterstica intrnseca do feudalismo
europeu continental, na Inglaterra do sc. XIII j existe uma maior centralizao,
antecipando em alguns sculos caracteres do absolutismo da Idade Moderna. A
centralizao monrquica tambm antecipa as lutas antiabsolutistas, embora os direitos e
liberdades ainda sejam exclusivos para os homens livres, em verdade, limitaes do
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
49/452
49
poder monrquico diante da aristocracia privilegiada (David: 1998, p. 285; Canotilho:
1999a, p. 65; Garca-Pelayo: 1999, p. 252).
Apesar do seu carter aristocrtico, a Carta inglesa a mais importante referncia
histrica de um constitucionalismo insurgente na Idade Mdia. Surge a partir da
insatisfao da nobreza feudal com as polticas implementadas pelo Rei Joo Sem Terra,
em especial no que diz respeito tributao. No se trata de uma revoluo classista ou
de uma ruptura drstica com o modelo anterior; antes, diversamente, a nobreza deseja
estabelecer documentalmente a confirmao de seus privilgios e liberdades j existentes
em regras consuetudinrias e que se vem ameaados pelos decretos reais (Garca-Pelayo: 1999, p. 253). Direitos e garantias fundamentais surgem como limitaes ao
poder monrquico, e princpios como o da legalidade tributria e penal, assim como
instrumentos de proteo da liberdade individual, como o habeas corpus, tm a sua
existncia formalizada a partir do clebre documento ingls. O prprio surgimento do
Parlamento deita razes na referida Carta, considerando a exigncia do consentimento
geral dos homens livres para o estabelecimento de um tributo, contido nos seus arts. 12 e
14 (Lpez: 2001, p. 161).
De menor influncia histrica, mas com um desenvolvimento certamente notvel
em termos de Idade Mdia, est o constitucionalismo histrico ibrico apontado por
Ferreira da Cunha. Apesar de no possuir um documento referencial da dimenso da
Magna Charta Libertatum, pode-se dizer, seguindo o Professor portugus, que h, ainda
na Idade Mdia, o desenvolvimento de um constitucionalismo na Pennsula Ibrica, em
que h um sistema de proteo das pessoas e at de relativo controle do poder poltico.
Possui caractersticas similares ao modelo britnico, tais como o tradicionalismo, a
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
50/452
50
historicidade e a assistematicidade. Limita o poder monrquico ao permitir a interveno
das cortes no governo, na sucesso do trono, na guerra e na paz, no lanamento de
tributos. Como destaca Teixeira de Pascoaes,
Em plena Idade Mdia, enquanto outros Povos gemiam sob o peso do
poder absoluto, impnhamos nossa monarquia a forma condicional: o rei
governar se for digno de governar, e governar de acordo com a nossa
vontade, expressa em cortes gerais, reunidas anualmente (apud Cunha:
2002, p. 124).
Temos, portanto, em vrios quadrantes europeus o desenvolvimento deexperincias constitucionais pr-modernas, embora ainda no se chegue ao sentido
contemporneo do vocbulo constituio. Em termos tericos, pode-se afirmar at que,
no obstante as referidas experincias de fato, no h a articulao de teorias da
constituio. Os autores medievais, como Toms de Aquino, Salisbury, Bracton e
Marslio de Pdua, no se preocupam em teorizar acerca da constituio, optando por
discutir questes pertinentes ao exerccio concreto do poder poltico e suas limitaes
tambm concretas. verdade que fazem algumas antecipaes importantes, mas no
menos verdadeiro que as mesmas ainda tm em vista a realidade poltica fragmentria da
Idade Mdia (e nem poderia ser diferente), ainda distante, de um modo geral, do
centralismo do Estado soberano e da possibilidade, a partir do surgimento deste ente
poltico, de articular um teorizar constitucional mais prximo do sentido contemporneo.
o que se prope no captulo que se segue.
-
7/23/2019 Constituio e Integrao Interestatal - Defesa de Uma Teoria Intercultural Da Constituio
51/452
51
CAPTULO III:
TEORIA DA CONSTITUIO E CONSTITUCIONALISMO (II): A
1a. FASE
Sumrio: 1. Constitucionalismo como processo poltico-jurdico. 2. Oconstitucionalismo liberal: as efetivas razes da teoria contemporneada constituio. 2.1. A teoria poltica liberal e as primeiras experincias
constitucionais. 2.2. Assistematicidade das perspectivas tericas dossculos XVIII e XIX.
1. Constitucionalismo como processo poltico-jurdico
Ao tratarmos de constitucionalismo e de teoria da constituio, tratam