Corrente realista: J. M. G. Le Clézio e Guy de Maupassant
Danilo Brandão de LIMA1
Resumo
A leitura do conto "La ronde" (2010) de J. M. G. Le Clézio revela sua literatura
particular, criativa, crítica e suas influências literárias. Diante disso, serão analisados
aqui seus procedimentos narrativos sob o viés do realismo literário, do fim do século
XIX, inventariado por Philipe Hamon, em "Un discours contraint" (1973, p. 411-445), à
medida que se busca explicitar também a intertextualidade dessa obra de Le Clézio em
relação à escrita realista de Guy de Maupassant, em "Boule de Suif" (1957), escritor que
dizia não pertencer a uma determinada escola literária.
Palavras-chave: Le Clézio. Maupassant. Realismo. Intertextualidade.
Abstract
The reading of the short story "La ronde" (2010), by J. M. G. Le Clézio, reveals his
private, creative and critical literature and his literary influences. Therefore, will be
analyzed his narrative techniques in relation to the procedures of the literary realism of
the end of 19th century, listed by Philippe Hamon, in Un discours contraint (1973, p.
411-445), as we search also for the intertextuality of the Le Clézio's work regarding
realistic writing of Guy de Maupassant, in Boule de suif (1957), writer who claimed not
to belong to a particular literary school.
Keywords: Le Clézio. Maupassant. Realism. Intertextuality.
1 Atualmente é estudante, bolsista CAPES, do programa de Pós-Graduação, Mestrado, em
Neurolinguística da UNICAMP, Universidade Estadual de Campinas. CEP: 13083-970, Campinas-SP, e-
mail: [email protected].
O objetivo inicial deste artigo era analisar o conto "La ronde" (2010) de J. M. G.
Le Clézio, a partir das bases estabelecidas para o realismo literário inventariado por
Philipe Hamon em Un discours contraint (1973, p. 411-445). Porém, durante a
atividade de análise desse texto de Le Clézio, encontrou-se também sua relação com o
realismo, com arte de se alcançar o efeito de real, presente em contos de Guy de
Maupassant, especificamente em "Boule de Suif" (1957), obra publicada primeiramente
em 1880, na coletânea naturalista "Les soirées de Médans", a qual era chefiada e
também composta por Émile Zola.
Le Clézio nasceu em Nice, em 1940, e tornou-se conhecido por Le procès
verbal, seu primeiro grande trabalho, publicado em 1963. Em "La ronde" (2010),
impresso pela primeira vez em 1990, ou seja, mais de cem anos após "Boule de Suif",
aparece, de acordo com este estudo, uma forte influência de Maupassant, escritor
francês do fim do século XIX, mestre da narrativa curta, autor que dizia não pertencer,
necessariamente, a uma determinada escola literária.
Sobre a possível intertextualidade entre eles, o próprio Le Clézio (1967, p. 126)
afirma: “Toute la littérature n’est que pastiche d’une autre littérature. En remontant
ainsi dans le temps, jusqu’où arrive-t-on ? Jusqu’à quelles oeuvres cachées, quels
chants et quelles légendes des premiers temps des hommes ?”. Dessa forma, a fim de
identificar semelhanças na escrita de Maupassant e de Le Clézio, usamos aqui as
proposições de Hamon, em Un discours contraint (1973, p. 411-445), que é professor
emérito da Université Sorbonne Nouvelle, especialista em teoria e história literária,
autor de diversos ensaios sobre a poética da narrativa e estética do romance realista e
naturalista.
De acordo com as análises encontradas nesse trabalho, obra em que Hamon
arrola procedimentos narrativos (empregados especialmente por escritores do século
XIX) que fornecem ao texto máxima impressão de verossimilhança, citam-se ações e
detalhes narrativos que, postos em diferentes trechos da trama, envolvem o leitor e o
colocam diante de fatos pertencentes a uma realidade que, por conta dos elementos que
a registram, se apresenta indubitável.
Em relação ao realismo do século XIX, identifica-se que, nesse tipo de texto,
marcado pela objetividade de suas descrições, além de tratar de personagens de diversas
classes sociais, cada detalhe é um índice, um sintoma pertinente de interpretação.
Segundo Hamon (1973, p. 411-445), esse realismo se caracteriza – entre outros aspectos
que serão apresentados em seguida – por propor questões pontuais sobre o espaço que
cerceia o homem e seu âmago. Realismo que, preocupado com a verdade, ganha
também um caráter pedagógico, como acontece em "Boule de suif" (1957), narrativa
que aborda a situação das pessoas durante a guerra franco-prussiana, e "La ronde"
(2010), que trata da aventura de duas jovens, Martine, a protagonista, e Titi, sua amiga,
que cruzam sobre motos (em alta velocidade) as ruas da cidade, com o propósito de
cumprirem uma prova, a qual termina com o roubo da bolsa da dame en bleu,
personagem estratégica do conto.
Ademais, o enredo de "La ronde" (2010) é desenvolvido de modo que se
estabeleça um clima de suspense sobre seu desfecho. Enquanto se apresentam as
atitudes e os sentimentos das meninas, o estilo de vida dos adultos, estes que estão
distantes das (dos) jovens, é posto em cena, contrastado com a vida adolescente. O autor
trata da vida que passa, que é "desperdiçada" pela inconsequência das garotas ou pela
passividade dos mais velhos, que simbolizam um viver alienado pelas inovações
tecnológicas, afastados do mundo e até do espaço em que vivem. Enquanto elas
representam a fugacidade do espírito jovem.
No que se refere à estrutura da obra, destaca-se, entre os procedimentos
mencionados por Hamon (1973, p. 411-445), que o texto realista indica uma previsão de
conteúdos e faz um apelo frequente aos fatos já narrados, isto é, a narração tende a
retornar a cenas já citadas. Em "La ronde" (2010), por exemplo, à medida que a
narrativa avança, o narrador insiste sobre cenas das duas jovens pilotando as motos e a
inquietude interior da protagonista Martine, personagem que – como a heroína de
Maupassant em Boule de Suif (1957) – é fundamental para a leitura do conto, pois seus
pensamentos, suas sensações e suas falas permitem-nos prever a sequência e o desfecho
de toda a trama.
Por outro lado, a desfocalização da personagem principal, Martine, e a
focalização nas demais personagens, como Titi, sua amiga, contribuem para que seja
reforçada a noção de realidade do texto, assim como ocorre em "Boule de Suif" de
Maupassant: a protagonista divide o centro da narrativa com Loiseau. Aliás, no que se
refere à autonomia das personagens, sendo esse um procedimento que, segundo Hamon
(1973), trata da clareza da leitura e é fundamental para a caracterização do realismo, a
autonomia das personagens se mostra, por diversas vezes, ausente em "Boule de suif"
(1957) e também em "La ronde" (2010), visto que suas ações deixam de ser tomadas por
elas e passam a ser desencadeadas pela voz do narrador, que se mostra pleno em toda
história, quando, de acordo com Hamon (1973), sua voz deveria ser neutralizada. No
entanto, vale dizer que a presença da enunciação nesses dois contos termina por ser
decisiva: a supremacia do narrador onisciente traz relatos sensoriais e contemplativos;
em "La ronde" (2010), por exemplo, ele constantemente dialoga com o narratário,
contando-nos o que sente e pensa sua personagem:
Pourquoi a-t-elle peur [Martine]? Elle ne sait pas très bien, sa tête est
froide, et ses pensées sont indifférentes, même un peu ennuyées ; mais
c’est comme si à l’intérieur de son corps il y avait quelqu’un d’autre
qui s’affolait. En tout cas, elle serre les lèvres et elle respire
doucement, pour que les autres ne voient pas ce que se passe en elle.”
(LE CLÉZIO, 2010, p. 12-13).
Além disso, esse conhecimento do narrador, como dito, é também marca muito
recorrente em contos de Maupassant, que, tal como se vê na obra de Le Clézio, em "La
ronde" (2010), apresenta suas personagens ao leitor logo no início da narrativa:
Titi, la plus âgée, qui a des cheveux rouges [...]. Martine a deux ans
de moins que Titi, cʼest-à-dire, quʼelle aura dix-sept ans dans un mois,
bien quʼelle ait lʼair dʼavoir le même âge. Mais elle manque un peu de
caractère, comme on dit, et elle cherche à dissimuler sa timidité sous
un air renfrogné, en haussant les épaules pour un oui ou pour un non,
par example. (LE CLÉZIO, 2010, p. 11).
Note que Le Clézio, além de descrições simples, apresenta em seu texto
passagens muito sugestivas; recurso que, aliado às perguntas do narrador ao narratário,
amplia as margens do texto e o mistério do conto. Durante toda leitura, perguntamo-nos
sobre o que espera pelas jovens no final de sua aventura sobre as motos. E o narrador,
frequentemente, incita e esconde o que está por acontecer: “En tout cas ce n’est pas
Martine qui a eu l’idée. Ce n’est peut-être pas Titi non plus, mais c’est elle qui en a
parlé la première.” (2010, p. 11). Percebe-se que elas se preparam para algum evento:
“Martine voulait que ça se fasse en dehors de la ville, […], mais Titi a dit que c’était
mieux en pleine ville, au contraire, là où il y a des gens qui passent, et elle a tellement
insisté que Martine finalement a haussé les épaules.” (2010, p. 12).
Tudo, em "La ronde" (2010), move-se, preparando o leitor para o que
acontecerá, por meio de uma construção minuciosa da narrativa. Tal como esclarece
Ricardo Piglia (2006, p. 13), “a realidade trabalha em escala real, tandis que l’art
travaille à l’échelle réduite. A arte é uma forma sintética do universo, um microcosmo
que reproduz a especificidade do mundo”. Desse modo, a fim de concentrar o foco
principal do texto e instigar no leitor a curiosidade por revelações, o autor –
detalhadamente – forma a realidade de seu conto, encadeando, como destaca Piglia
(2006), situações, sensações e objetos do quotidiano:
Pendant tout le temps du déjeuner avec sa mère, Martine n’a
presque pas pensé au rendez-vous. Ce n’était sûrement pas
pareil pour Titi. […], elle en avait sûrement parlé pendant
qu’elle mangeait son sandwich sur un banc, à côté de son
petit ami. D’ailleurs c’est lui qui a parlé la première fois de
prêter son vélomoteur à Martine, parce qu’elle n’en avait pas.
Mais lui, on ne peut pas savoir ce qu’il pense de tout cela.
(LE CLÉZIO, 2010, p. 12, grifo nosso).
Além de descrições concretas e específicas da realidade, em "La ronde" (2010),
há outras que, feitas por comparações, se desenvolvem por um processo sinestésico,
com o intuito de que seja possível sentir e perpassar o que nos é contado: “Peut-être
que les vibrations du vélomoteur, l’odeur et la chaleur de gaz ont empli tout le creux
qu’il y avait en elle.” (2010, p. 15). Os sentimentos de Martine e sua sensibilidade
acentuada aumentam a atmosfera realista, que, como mostra Hamon (1973), é reforçada
pelo uso de linguagem corrente e de onomatopéias: “Pourtant, quand elle est arrivée
dans la rue de la Liberté, près de la place, Martine a senti son coeur tout d’un coup qui
paniquait. C’est drôle, un coeur qui a peur, ça fait « boum, boum, boum »”. (2010, p.
12, grifo nosso).
É dessa forma que Le Clézio (2010), assim como Maupassant, traz em suas
palavras a capacidade de retratar, criticar e transcender o real. Há uma fusão de
elementos diversos que compõem as sensações e o mundo desejado pelo escritor, o que
certamente pode ser relacionado à metáfora impressionista, muito empregada por
Maupassant, técnica que:
[...] ele [o autor] escolhe palavras que, mesmo não tendo
relação lógica entre si, quando unidas podem gerar no
inconsciente do leitor a sensação desejada. Assim como duas
cores se unem na retina do espectador para formar uma
terceira. (BALZI, 1992; 50).
Essas qualidades, visuais, auditivas e táteis, em "La ronde" (2010), oferecem um
realismo sensorial, marcante também por sua função crítico-social e pedagógica que
impõem ao leitor a realidade da obra; alcança-se um estágio, durante a leitura, em que
“[...] a tensão entre objeto real e objeto imaginário não existe, tudo é real, tudo está aqui,
e nos movemos por parques e ruas deslumbrados por uma presença sempre distante.”
(PIGLIA, p. 13, 2005). Ou seja, tal como se vê nessa narrativa de Le Clézio, que coloca
o real e o imaginário em uma mesma posição, envolvidos pelas sensações de sua
personagem e pelas descrições do espaço urbano feitas por seu narrador.
E, no caminho enaltecedor das relações entre os métodos de trabalho desses dois
autores, verifica-se que Le Clézio desenha suas personagens, assim como faz
Maupassant, sob um tom pessimista. Sua visão social, em "La ronde" (2010), como dito
no início deste trabalho, divide o enredo em duas etapas: a principal, marcada pela
corrida das jovens sobre as motos e outra que aborda a vida dos adultos. Estes são
citados muitas vezes no texto apenas como “les autres”, aqueles que não participam do
núcleo da narrativa, não participam da vida em si:
Hommes au visage épais, aux yeux enfoncés, hommes enflés, qui
sourient vaguement, et dans leur regard brille une lueur de désir, une
lueur de méchanceté. Femmes, femmes aux traits durcis, qui la
regardent avec envie et mépris, avec crainte aussi [...]. Ils sont là
tous, Martine devine leur présence derrière les vitres des bars, dans
les recoins de la rue que le soleil vide. (LE CLÉZIO, 2010, p. 17-18).
O movimento entre dois pólos narrativos de "La ronde" (2010) proporciona,
como em Boule de Suif (1957) – cuja narração alterna entre a invasão da França pelos
prussianos e a vida de seus habitantes, que temiam os horrores da guerra – um sentido
ciclotímico ao conto, que é decidido pela decisão da protagonista, Boule de Suif. Em
"La ronde" (2010), por sua vez, os altos e baixos da narrativa intercalam-se entre a
aventura, os acontecimentos vibrantes, por parte das jovens, e estáticos, por parte de les
autres, os adultos. Além disso, há seguidas repetições de comentários sobre a cidade,
“le soleil au zénith”, o clima, o girar das motocicletas, as percepções de Martine e, além
disso, o aparecimento estratégico das personagens secundárias como a dame en blue, o
autobus vert e o camion bleu delineiam perfeitamente a ideia circular da narrativa, que
será definida pelas ações de Martine.
"La ronde" (2010), como o próprio título sugere um círculo, é um conto marcado
pelas voltas rápidas das garotas sobre as motos, porém, destacam-se ainda as presenças
da dame en bleu, personagem enigmática que está à espera do autobus vert, e o camion
bleu. Estes dois últimos (veículos), Martine e Titi circulam pela narrativa em pontos
diferentes, mas em torno de um ponto em comum, a dame en bleu. Seus movimentos
provocam-nos a desvendar o encerramento da história.
Salienta-se que a presença desse camion bleu de déménagement, que
literalmente promove uma mudança na narrativa é crucial para o efeito de suspense,
para o caráter circular e para o desfecho do conto. O escritor, em seu ciclo de repetições,
afirma na mente do leitor as características dessa personagem: pintado em um vilain
bleu, brutalisé, “il plissé les yeux, il grimace.” (2010, p. 20). “[...] un peu semblable à
un animal en colère.” [...] un peu semblable à un animal furieux.” (2010, p. 20). Além
dessa animalização dada ao camion bleu, há a desumanização da dame en bleu, o que
amplia seu mistério: “elle ressemble à une statue de plâtre, immobile au bord du
trottoir. Seule la peau noire de son sac à main et des ses chaussures semble vivant,
jetant des éclats de lumière.” (2010, p. 21). E é no encontro dessas duas personagens,
ambas de cor azul, uma estática, a outra girando pela cidade, que se tem o fim da
narrativa, ou seja, há aí a comunhão de fatores para a morte de Martine, para a quebra
do círculo: símbolo daquilo que começa e acaba em si mesmo.
Nesse movimento circular criado por Le Clézio, não há marcação de tempo, o
que seria importante para a escola realista por configurar um sentido de historicidade ao
conto, como em Boule de suif (1957). Em "La ronde" (2010), deduz-se a época em que
se passa a narrativa apenas por alusões feitas pelo narrador, como l’école de sténo, a
formação de prédios novos, a obsessão pela TV e certos hábitos sociais sobre os quais se
mantém a crítica do autor, diferente do que faz Maupassant, que data seu conto, por
exemplo, com a eclosão da guerra franco-prussiana. No entanto, percebe-se que, à
medida que se fortalece o enredo, começam a surgir mais semelhanças estruturais entre
"La ronde" (2010) e "Boule de suif" (1957). O intertexto entre os autores pode ser
nitidamente visualizado, sobretudo na maneira em que Le Clézio trabalha com a técnica
mise en abyme e sua crítica à sociedade. Nesse caso, ele não hesita em seguir os passos
do mestre do conto; em Maupassant lê-se:
Le lendemain, un clair soleil d’hiver rendait la neige éblouissante. La
diligence, attelée enfin, attendait devant la porte, tandis qu’une armée
de pigeons blancs, rengorgés dans leurs plumes épaisses, avec un œil
rosé, taché, au milieu, d’un point noir, se promenaient gravement
entre les jambes des six chevaux, et cherchaient leur vie dans le
crottin fumant qu’ils éparpillaient. (MAUPASSANT, 1995, p. 63).
No excerto acima, o autor retrata, por meio da figura e do comportamento dos
pombos, dos pigeons, a situação das pessoas, que, frente às durezas da guerra, andam
entre as pernas dos cavalos e buscam suas vidas literalmente no esterco. Já em "La
ronde" (2010), após revelado o sentido da aventura das jovens, “c'est un examen, une
épreuve” (2010, p. 13), citam-se novamente as sensações de Martine sobre a realidade
que a envolve e, sutilmente, como se Le Clézio saboreasse a genialidade e o toque
naturalista de Maupassant, o narrador conta que Martine, na rua da liberdade,
compreende que o mundo espera alguma coisa, enquanto as poucas pessoas que passam,
também figurativizadas por meios dos pigeons, apenas balançam suas cabeças
mecanicamente, caminham quotidianamente, como se nada estivesse errado com a
passividade de suas vidas. Note:
Elle [Martine] comprend que le monde attend quelque chose.
Pourtant, la rue de la Liberté est calme, il n’y a pas grand monde qui
passe. Les pigeons marchent au soleil, sur le bord du trottoir et dans
le ruisseau, en faisant bouger mécaniquement leurs têtes. Mais c'est
comme si, de toutes parts, était venu un vide intense, angoissant,
strident à l'intérieur des oreilles, un vide qui suspendait une menace
en haut des immeubles de sept étages, aux balcons, derrière chaque
fenêtre, ou bien à l'intérieur de chaque voiture arrêtée. (LE CLÉZIO,
2010, p. 14).
Por outro lado, como se pôde perceber, Le Clézio, em "La ronde" (2010), faz-
nos um forte apelo sensitivo, seu narrador, ai detalhar as sensações da protagonista,
esclarece ao leitor fatos futuros, os quais se escondem falsamente sob a atmosfera de
suspense. De acordo com Alain Goulet (2006, p. 39-58), o que temos agora é um uso
clássico de mise en abyme, em que a expressão do narrador sobre a sensibilidade de
Martine revela-nos o que está oculto no texto, o que espera pela jovem no fim de sua
''prova'' sobre a motocicleta:
Puis, tout d’un coup, à nouveau, la peur revient à l’intérieur de
Martine, et sa gorge devient sèche. Elle vient de s’apercevoir que la
rue n’est pas vraiment vide, que tout cela est comme règle d’avance,
et qu’elles s’approchent de ce qui va arriver sans pouvoir se
détourner. (LE CLÉZIO, 2010, p. 14, grifo nosso).
O percurso de motocicleta mostra-se como algo sem volta e ela tem consciência
disso. “Martine serre bien fort les lèvres, comme tout à l’heure, pour ne pas laisser
échapper sa peur.” (2010, p. 17). O medo -- como pergunta o narrador desde o início
do conto, “Pourquoi a-t-elle peur ?” (2010, p. 12-13) -- é a certeza sobre o que Martine
já imaginava que poderia lhe acontecer. Tal como ensina Maupassant em seu clássico
La peur (1882), o medo, esse sentimento, é o que melhor define, domina e explica as
atitudes humanas. Portanto, identifica-se que "La ronde" (2010) se desenvolve sob os
signos do medo e do sol, que entorpecem Martine:
Les deux jeunes filles roulent le long du trottoir, vers l'ouest. Le soleil
est au zénith, il brûle, et l'air frais n'arrive pas a dissiper l'espèce de
sommeil qui pèse sur le groudon de la rue et sur le ciment des
trottoirs. Les magasins sont fermés, les rideux de fer sont baissés, et
cela accentue encore l'impression de torpeur. (LE CLÉZIO, 2010, p.
15).
Martine ferme les yuex, et elle savoure ces quelques secondes de nuit
rouge, dans toute cette journée cruelle. Quand elle regarde à
nouveau, la rue est encore plus déserte et plus blanche, avec le grand
flueve de groudon noir qui fond sous les rayons du soleil. (LE
CLÉZIO, 2010, p. 17).
Ela busca sua comunhão com o sol, senti-lo, e o narrador acrescenta: “C’est
sûrement le soleil de feu qui donne la peur, [...].” (LE CÉZIO, 2010, p. 18). O sol é um
elemento revelador, mas também destruidor. Conclui-se que o sol, que aparentemente
esvazia a rue de la Liberté, é elemento decisivo para o término da trama. Ademais, é
interessante apontar o destaque que se dá aos olhos das personagens.
Tem-se nos olhos outra fonte de significados, pois basta analisar como o autor os
descreve em quase toda história: “yeux enfoncés, pĺissés, étrécis, éteints”. Martine tem,
no encontro dos olhares, na busca do entendimento das sensações, sua maneira de
entender o que se passa ao seu redor: “Titi et le garçon la regardent, les yeux plissés à
cause de la lumière du soleil. Ils lui parlent, et elle [Martine] ne les entend pas.” (LE
CÉZIO, 2010, p. 14). Igualmente, enquanto circula com a moto, ela tenta trocar olhares
com la dame en tailleur bleu, e nos pergunta o narrador: “Pourquoi chercher à saisir
son regard ?” (LE CÉZIO, 2010, p. 19). Os olhares de ambas não se encontram por
conta da falta de luminosidade, de um sombreamento na face de a dame en blue, no
entanto, ao final da narrativa:
[...] et juste avant de tomber, la dame regarde Martine qui roule
devant elle dans le ruisseau, elle la regarde enfin, ses yeux grands
ouverts qui montrent la couleur de ses iris, qui donne la lumière de
son regard. Mais cela ne dure qu’un centième de seconde, et ensuite
il y a ce cri qui résonne dans la rue vide, ce cri de soufrance et de
surprise, tandis que les deux vélomoteurs s’enfuient vers le carrefour.
(LE CLÉZIO, 2010, p. 23, grifo nosso).
No primeiro momento em que os olhos são definidos como “yeux grands
ouverts” diante de Martine, a narrativa alcança seu final. Quando nos perguntamos
sobre la ronde, o motivo dessa prova e todos seus acontecimentos, os quais poderiam
ser tomados como fatos banais, um fait-divers, o narrador responde: “Tout cela est à
cause d’elle : la dame au tailleur bleu qui attend l’autobus” (LE CÉZIO, 2010, p. 14),
exatamente como o movimento circular das personagens ao seu redor sugere: ela é o
centro. Desse nodo, não se culpa a jovem Martine, em momento algum a atitude dos
jovens é questionada. Quando ela surge, a dame en bleu, também se apresenta o objeto a
ser roubado por Martine: “Au bout de son bras droit, elle [la dame] balance un peu son
sac à main de cuir noir, marqué d’un frémoir en métal doré qui envoie des éclats de
lumière.” (2010, p. 19, grifo nosso). O metal brilha fortemente com os raios do sol e,
dessa forma, se entende porque foi este o objeto a ser roubado por Martine, que ama os
dias de sol. Aliás, como diz o narrador, le soleil de feu qui donne la peur, o objeto
dourado e brilhante mostra-se como algo desafiante para a garota, algo que incita o
medo que ela não deixa escapar de seus lábios fechados. Roubar a dame en bleu seria
cumprir la ronde.
Durante toda ação descrita e de nossa observação sobre o trabalho de
encadeamento dos fatos feito pelo autor, comfirma-se que o narrador faz perguntas ao
narratário e, "secretamente", descreve também situações que as responde. Em um único
parágrafo, exemplificado em seguida, deduz-se a chave da narrativa em outra forma de
mise en abyme que, como diz Goulet (2006, p. 43), é caracterizada por uma "[...]
réduction partielle de l'ensemble, ce qui conduit L. Dällenbach (1977, p. 18) à définir la
mise en abyme comme '[...] toute enclave entretenant une relation de similitude avec
l'œuvre qui la contient'." Logo, verifica-se que o excerto a seguir, fixado, encravado no
meio da narrativa, mantém uma relação exemplar com todo a conjuntura do conto; e,
desde que seja percebido pelo leitor, põe fim ao suspense da história:
C’est le mouvement circulaire qui les enivre aussi, le mouvement qui
se fait contre le vide des rues, contre les silences des immeubles
blancs, contre la lumière cruelle qui les éblouit. La ronde de
vélomoteurs creuse un sillon dans le sol indifférent, creuse un appel,
et c’est pour cela aussi, pour combler ce vertige, que roulent le long
des rues le camion bleu et l’autobus vert, afin que s’achève le cercle.
(LE CLÉZIO, 2010, p. 22, grifo nosso).
No parágrafo acima, esclarece-se a resposta para a ilusão de suspense e resume a
sequência dos fatos principais: o movimento circular, as motos que cavam um sulco no
solo (como uma cova para Martine), o camion bleu e o autobust vert que, com a dame
en bleu, terminam o circulo da trama, fecham “la ronde”. Além disso, ressalta-se a
opinião súltil do autor sobre a relação dos adultos e mundo: são apenas as motos contra
o vazio das ruas, contra o silêncio dos imóveis, contra a luz do sol que não os
vislumbra.
Assim, a função pedagógica empregada por Le Clézio, cara ao trabalho realista e
habilmente utilizada por Maupassant, mantém-se por conta da intenção do autor em
questionar a maneira como vive e comporta-se a sociedade, les autres: “Qu’est-ce
qu’ils attendent, donc ? Qu’est-ce qu’ils veulent ?” (2010, p. 17). Homens e mulheres
possuem vidas infelizes, presos em suas casas, sem receber a luz solar, são símbolos de
uma civilização marcada pela modernidade, pela dominação da televisão e pelo
consumismo. Ao retratá-los, guardadas as diferenças de épocas, as descrições feitas por
Le Clézio, em "La ronde" (2010), muito se assemelham às de Maupassant, que retrata a
atmosfera da guerra franco-prussiana em "Boule de suif" (1957, p. 7):
Des commandements criés d'une voix inconnue et gutturale montaient
le long des maisons qui semblaient mortes et désertes, tandis que,
derrière les volets fermés, des yeux guettaient ces hommes victorieux,
maîtres de la cité, des fortunes et des vies, de par le "droit de guerre".
Les habitants, dans leurs chambres assombries, avaient l'affolement
que donnent les cataclysmes, les grands bouleversements meurtriers
de la terre, contre lesquels toute sagesse et toute force sont inutiles.
Le Clézio, por sua vez, apresenta a vida e os costumes do homem moderno:
Dans les cellules de leurs appartements fermés, les adultes ne savent
pas ce qui se passe au-dehors, ils ne veulent pas savoir qui tourne
dans les rues vides, sur les vélomoteurs fous. Comment porraint-ils le
savoir ? Ils sont prisonniers du plâtre et de la pierre, le ciment a
envahi leur chair, a obstrué leurs artères. Sur le gris de l’écran de
télevision, il y a des visages, des paysages, des personnages. Les
images s’allument, s’éteignent, font vaciller la lueur bleue sur les
visages immobiles. Au-dehors, dans la lumière du soleil, il n’y a pas
de place que pour les rêves. (LE CLÉZIO, 2010, p. 22).
Observa-se como os escritores marcam as relaçãos humanas, o vazio pessoal, as
ruas desertas. O primeiro demonstra a reação as pessoas diante dos homens da guerra e
o outro coloca-as prisoneiras diante da vida que corre e termina nas ruas. Em "La ronde"
(2010), quando os adultos, les autres, são apresentados, não há diálogos ou expressões
que suscitem qualquer uma das boas qualidades humanas. As personagens de Le Clézio
estão submetidas e dominadas pela comodidade de suas belas inovações tecnológicas,
presas em automóveis, em casas novas e hipnotizados pela televisão. Desse modo, vê-se
que a censura exercida por Le Clézio sobre o homem de seu tempo é parecida com a
feita, um século antes, por Maupassant, que, apesar de não se considerar pertencente a
uma determinada escola literária, encontrou no realismo e no pessimismo de
Schopenhauer grande influência de sua escrita. “La théorie de Schopenhauer peut se
résumer ainsi : « L'homme est mauvais, irrémediablement mauvais ; la vie est
mauvaise, irrémediablement mauvaise, et il vaudrait mieux n'être pas né. »”
(LEMOINE, 1957, p. 121).
Nesse sentido, como Le Clezio define que toda literatura não passa de imitação
de uma outra, verificamos que ele soube muito bem reconhecer e empregar, a seu modo,
a maestria literária de Maupassant, que renovou e fortaleceu as bases do gênero conto a
partir de suas observações e descrições do que se passa na mente e decorre das ações
humanas, as quais, quase nunca, trazem finais felizes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
ALVERNHE, A.; GUIRAND, F.; LEJEALLE, L. (Org.). Guy de Maupassant: contes
choisis. 2.ed. Paris: Larousse, 1955.
BALZI, J. J. O impressionismo. São Paulo, Editora Ática, 1992.
BERSANI, L. Le réalisme et la peur du désir. Poétique. Paris, n. 22, p. 177-195,
1975.
CAPUT, P. J.; GUIRAND, F.; LEJEALLE, L. (Org.). Guy de Maupassant: contes et
nouvelles. 1.ed. Paris: Larousse, 1972.
______ Guy de Maupassant: contes et nouvelles II. Paris: Larousse, 1974.
GOULET, A. L'auteur mis en abyme (Valéry et Gide). Lettres françaises, Araraquara,
n. 7, p. 39-58, 2006.
HAMON, Ph. Un discours contraint. Poétique. Paris, n. 16, p. 411-445, 1973.
LE CLÉZIO, J.-M. G. L’extase matérielle. Paris: Gallimard, 1967.
LE CLÉZIO, J.-M. G. La ronde et autres fait divers. Paris: Folio France, 2010.
LEMOINE, F. Guy de Maupassant. Paris: Éditions Universitaires, 1957.
MACHADO, G. M. O discurso realista em Guy de Maupassant. Lettres Françaises.
Araraquara, n. 1, p. 59-66, 1995.
MAUPASSANT, G. Boule de suif. Paris: Brodard et Taupin, 1957.
PIGLIA, R. O último leitor. Heloisa Jahn (trad.). São Paulo: Companhia das Letras,
2006.