Criminalidade organizada e cooperação judiciária em matéria penal
na União Europeia: traços gerais∗
Francisco Borges1
1. O carácter transnacional da criminalidade organizada: implicações
Nos nossos dias, os Estados vêem-se confrontados com enormes desafios
colocados pela criminalidade organizada e pelo terrorismo internacional, que, em última
instância, podem mesmo chegar a pôr em causa a sua sobrevivência enquanto Estados
de direito, ou seja, enquanto ordens jurídicas legitimamente estabelecidas, fundadas no
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.2 Perante estes perigos, os
Estados têm procurado reagir de diversas formas, que vão desde a tomada de medidas
estritamente preventivas e não sancionatórias, a longo prazo, como é a aposta na
educação (por exemplo, em relação às drogas)3, até à utilização dos meios mais
agressivos ao seu dispor. No limite, isto pode significar a invasão militar de um país –
pense-se na invasão do Afeganistão por uma coligação internacional liderada pelos
EUA, depois dos atentados terroristas ocorridos em Nova Iorque, no dia 11 de Setembro
de 2001, mas, mais rotineiramente, consiste no funcionamento do sistema penal de cada
Estado, através da actuação das suas autoridades judiciárias e policiais.
Têm sido inúmeras e significativas as alterações legislativas ocorridas nas
últimas décadas – com uma intensificação depois de 2001, no rescaldo do já referido
atentado terrorista em Nova Iorque – tendo como motivo o combate à criminalidade
organizada e ao terrorismo. Dentre estas, são de realçar as ocorridas no seio do direito
penal e do direito processual penal dos diversos países ocidentais. Assim, na área do
direito penal, tem-se assistido ao alargamento generalizado das possibilidades de
∗ Este texto corresponde, com pequenas alterações, ao que foi publicado, com o mesmo título, em Jorge Bacelar Gouveia (coordenação), Estudos de Direito e Segurança, Vol. II, Coimbra: Almedina, 2012. 1 Doutorando da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa. 2 Referimo-nos ao princípio do Estado de direito em sentido material. Segundo este princípio, «o Estado não está apenas limitado pelo direito que cria, está essencialmente vinculado à ideia de direito ou, noutra fórmula, ao direito natural. (...) O conceito de Estado de direito em sentido material está, na tradição filosófica, essencialmente ligado à ideia da dignidade da pessoa humana, em que se fundam os direitos do homem» (José de Sousa e Brito, “A Lei Penal na Constituição”, in Jorge Miranda (coord.), Estudos sobre a Constituição, Vol. II, Lisboa: Petrony, 1978, p. 227). 3 Neste sentido, o Conselho Europeu, no Programa de Estocolmo, de 4 de Maio de 2010, reconhece que «a melhor forma de reduzir o nível de criminalidade é tomar medidas eficazes que a impeçam sequer de surgir, designadamente graças à promoção da inclusão social» (n.º 4.3.2.).
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responsabilidade penal, através, nomeadamente, da progressiva antecipação da tutela
penal – de que são exemplos a punição, em certos crimes, dos respectivos actos
preparatórios4 e a criação de crimes de perigo5 - ou da extensão da responsabilidade
penal às pessoas colectivas6. Na área do direito processual penal, têm sido criadas
regras especiais no domínio da criminalidade organizada e do terrorismo, de que
podemos dar como exemplo, no direito português, o regime das revistas e buscas7 ou o
regime jurídico das acções encobertas para fins de prevenção e investigação criminal.8
Todas estas medidas tomadas pelos Estados – com maior ou menor
legitimidade9, com maior ou menor eficácia – deparam com um obstáculo
especialmente colocado pelas formas mais evoluídas de criminalidade: o seu carácter
transnacional. Se é certo que a presença desta especificidade não é imprescindível para a
caracterização de um certo tipo de criminalidade como organizada10, não há dúvidas de
4 Segundo o art. 21.º do Código Penal, «os actos preparatórios não são puníveis, salvo disposição em contrário.» O art. 2.º, n.º 4, da Lei de Combate ao Terrorismo (Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto, com alterações subsequentes) é um exemplo de uma disposição em contrário, já que pune com pena de prisão de 1 a 8 anos «quem praticar actos preparatórios da constituição de grupo, organização ou associação terrorista.» 5 Pense-se no crime de branqueamento, previsto no art. 368.º-A do Código Penal. Na medida em que o bem jurídico protegido pela incriminação é a realização da justiça, trata-se de um crime de perigo abstracto. Sobre o crime de branqueamento, v. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Lisboa: Universidade Católica Editora, 2008, pp. 866 e ss. Sobre o fenómeno do branqueamento de capitais, numa perspectiva não exclusivamente criminal, v. Paulo de Sousa Mendes, “O Branqueamento de Capitais e a Criminalidade Organizada”, in Jorge Bacelar Gouveia e Rui Pereira (coord.), Estudos de Direito e Segurança, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 337 e ss. 6 Só desde a entrada em vigor da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, é que a regra da responsabilidade penal das pessoas colectivas se encontra prevista no Código Penal, mais precisamente no seu art. 11.º (embora já antes estivesse prevista em legislação avulsa). 7 Segundo o art. 174.º, n.º 5, alínea a), do Código de Processo Penal, nos casos «de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, quando haja fundados indícios da prática iminente de crime que ponha em grave risco a vida ou a integridade física de qualquer pessoa», as revistas e buscas não estão sujeitas a autorização prévia por parte da autoridade judiciária competente. No entanto, segundo o n.º 6, «a realização da diligência é, sob pena de nulidade, imediatamente comunicada ao juiz de instrução e por este apreciada em ordem à sua validação.» 8 Este regime está previsto na Lei n.º 101/2001, de 25 de Agosto. 9 A legitimidade – e constitucionalidade – de muitas das medidas tomadas pelos Estados para combater os fenómenos da criminalidade organizada e do terrorismo tem sido amplamente discutida, quer na doutrina, quer na jurisprudência. Para uma crítica de muitas dessas medidas, a propósito do chamado “direito penal do inimigo”, v. José de Sousa e Brito, “O inimigo no Direito Penal”, in Lusíada, Série II, n.º 4/5, 2007, pp. 79-85. 10 A discussão em torno da concretização do conceito de “criminalidade organizada” é muito vasta, não se tendo atingido um consenso nesta matéria, nem na dogmática jurídica, nem na criminologia. Na verdade, o termo pode ter muitos significados diferentes, consoante o contexto ou instrumento legislativo em que é utilizado. Em alguns casos, é de exigir a sua concretização precisa, em homenagem ao princípio da legalidade (por exemplo, para efeitos da concretização do art. 177.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal, que permite que uma busca domiciliária, nos casos de criminalidade altamente organizada, se realize entre as 21 e as 7 horas). Já como instrumento de análise da realidade social, o seu conteúdo poderá ser mais maleável. Seria, todavia, bem vinda uma maior definição do conceito, pois, na verdade, “criminalidade organizada”, sem mais, poderá abranger fenómenos criminais que em nada de significativo se distinguem da criminalidade tradicional, não apresentando nenhum desafio novo aos Estados. O aprofundamento do conceito não cabe no objecto deste estudo, que pretende descrever o
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que ela está tendencialmente presente quando o termo “criminalidade organizada” é
utilizado para denominar um fenómeno criminal recente e especialmente preocupante –
aquele que, afinal, justifica a particular atenção que lhe tem sido dada pelos Estados.11 É
que parte muito relevante do perigo da criminalidade organizada, e da grande
dificuldade que os Estados têm tido em combatê-la de forma eficaz, advém
precisamente do seu carácter transnacional, ou seja, do facto de não limitar a sua
actividade ao território de um único Estado, podendo afectar diversas ordens jurídicas
nacionais.12
É afinal esta capacidade dos grandes grupos criminosos em operarem em
múltiplas zonas geográficas do globo que fatalmente condena ao fracasso as diferentes
tentativas dos Estados de lidarem com o fenómeno de forma isolada. Desde logo, a
criminalidade organizada produz graves danos à escala global, pelo que o seu combate
exige, paralelamente, uma resposta global. Pense-se, por exemplo, no branqueamento de
capitais, actividade ilícita por excelência do crime organizado, que lhe permite integrar
nos mercados globalizados – lícitos – os grandes lucros obtidos através do cometimento
de outros crimes, como o tráfico de drogas, armas ou pessoas. Os proveitos ilegalmente
obtidos são investidos das mais variadas formas, minando a concorrência nos diversos
mercados internacionais, dificultando a actividade das empresas que se financiam de
quadro jurídico da União Europeia relativo à cooperação judiciária em matéria penal, embora tendo como pano de fundo o combate à criminalidade organizada. Nesta medida, procedemos apenas a uma definição sucinta, alertando para a sua inevitável incompletude e para a necessidade de ser integrada por uma enumeração de outros traços tendencialmente presentes, que, claro está, isolados não são decisivos (por exemplo, o «financiamento, entre outros, nos tráficos de estupefacientes, armas e de seres humanos», a «utilização intensiva das novas tecnologias de comunicação e de informação», a «rentabilização ou potenciação dos ganhos obtidos através de operações de branqueamento e investimento em novas formas de actuação, bem como no tráfico de influências e na corrupção», etc. Estas são algumas das características apontadas por João Davin, A Criminalidade Organizada Transnacional; A Cooperação Judiciária e Policial na UE, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 112 e ss.). Assim, com o termo criminalidade organizada pretendemos abranger os grupos de pessoas, organizados de alguma forma (muitos grupos criminosos caracterizam-se precisamente por a sua forma de organização ser muito fluida; v. Hans-Jörg Albrecht, “Criminalidade organizada na Europa: perspectivas teorética e empírica”, in 2.º Congresso de Investigação Criminal, Coimbra: Almedina, 2010, p. 78), que se dedicam à prática reiterada de crimes graves (na verdade, se isoladamente considerados, os crimes podem não ser graves, desde que, pela sua reiteração ou associação a outros crimes, adquiram importância). Sobre a viva discussão em torno do conceito de criminalidade organizada, v., além dos estudos já citados, Anabela Miranda Rodrigues, “Criminalidade organizada – que política criminal?”, in idem, O Direito Penal Europeu Emergente, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, pp. 172 e ss. 11 A relação entre internacionalização e criminalidade organizada é apontada, entre outros, por Anabela Miranda Rodrigues, “Criminalidade organizada...cit.”, p. 173, e Jesús-María Silva-Sánchez, La Expansión del Derecho Penal, Madrid: Civitas, 2001, pp. 86-7. 12 A criminalidade internacional, por seu lado, caracteriza-se por afectar a ordem jurídica internacional. V. João Davin, op. cit., p. 109.
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forma lícita.13 Os danos potenciais para todos os países do globo são evidentes: em
última instância, corre-se o risco de o sistema financeiro internacional – e também
outras esferas de influência, como o poder político, através do cometimento de outros
crimes associados à criminalidade organizada, como a corrupção e o tráfico de
influências – ser dominado por organizações criminosas.
O exemplo do branqueamento de capitais é também útil para ilustrar a grande
complexidade que a criminalidade organizada adquiriu e a forma como esta utiliza em
seu proveito a existência de diversas ordens jurídicas. A entrada dos proveitos ilícitos
nos diversos mercados, disfarçando a sua origem, é apenas a última etapa de um longo
processo – que, na verdade, é cíclico, pois o dinheiro entretanto tornado limpo é, depois,
reinvestido em novas actividades criminosas, e assim sucessivamente. Ora, ao longo do
processo estão envolvidos inúmeros grupos criminosos, prosseguindo finalidades
distintas, actuando em países diferentes, muitas vezes de forma não concertada ou com
ligações muito ténues entre si14, dificultando às autoridades judiciárias e policiais dos
Estados a tarefa de relacionar as diferentes actividades umas com as outras. Dificuldade
que é, por outro lado, aumentada pela alternância entre actividades ilícitas com outras
perfeitamente lícitas e com a participação neste complexo processo de inúmeros grupos
não criminosos – empresas localizadas em todo o mundo. Podemos dar como exemplo
ilustrativo desta complexidade o tráfico de drogas. Muito simplificadamente, a droga é
produzida num país, tratada noutro, percorre depois vários países intermédios até,
finalmente, chegar aos seus diferentes destinos, para ser consumida. Os lucros vão
sendo distribuídos pelos diferentes intervenientes, misturando-se irreversivelmente com
os restantes bens da economia. Entretanto, estiveram envolvidos neste processo muitas
pessoas que nenhuma ligação têm entre si, desde simples camponeses até executivos
sofisticados.
Se as distâncias geográficas, sem mais, já constituem um obstáculo de peso à
prevenção e repressão da criminalidade organizada por parte dos Estados, o facto de
esta afectar inúmeras ordens jurídicas é fonte de outros problemas. Em muitos dos
Estados em cujo território se desenrolam actividades relacionadas com o crime
13 Sobre os perigos que advêm do branqueamento de capitais, v. Paulo de Sousa Mendes, op. cit., pp. 338 e s. 14 Estamos a aludir ao conceito de rede. Sobre este ponto, v. Hans-Jörg Albrecht, op. cit., p. 95: «o conceito de rede presume que não estamos a lidar com fenómenos hierarquicamente estruturados, com fenómenos que têm um único centro e uma única periferia. Os nós das redes podem apresentar dimensões diversas, no entanto a característica central da rede é a redundância. Um ou vários nós podem ser eliminados sem que a função global da rede seja afectada.»
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organizado, não são praticados crimes propriamente ditos ou estes só podem ser
revelados se se tiver em conta a origem ou o destino da actividade praticada. Por outro
lado, os Estados têm, cada um, o seu ordenamento jurídico próprio, com, por exemplo,
um direito processual penal e respectivos mecanismos, garantias e eficácia diferentes. A
criminalidade organizada utiliza estas diferenças em seu proveito, programando a sua
actividade de forma a poder escolher o direito que lhe é aplicável – pense-se nas
diferentes regras relativas à extradição. O próprio direito penal dos diferentes Estados
apresenta muitas diferenças. O branqueamento de capitais é, mais uma vez, um
excelente exemplo desta realidade. Depois de ter sido criminalizado pela primeira vez,
nos EUA, em 1986, só paulatinamente tem vindo a ser criminalizado nos restantes
países do mundo.15
2. O combate à criminalidade organizada através da cooperação judiciária
internacional em matéria penal
Nesta medida, podemos afirmar que o combate isolado dos Estados ao fenómeno
da criminalidade organizada e do terrorismo está condenado ao fracasso, não existindo
alternativa à cooperação internacional, nos mais variados níveis. Tendo esta necessidade
em conta, os Estados têm vindo, de facto, a adoptar uma multiplicidade de instrumentos
jurídicos que regulamentam a cooperação internacional entre as suas diferentes
autoridades, nomeadamente judiciárias e policiais. Por um lado, visa-se atingir uma
maior colaboração em termos operacionais, através, por exemplo, da organização de
investigações conjuntas.16 Por outro, pretende-se a eliminação das lacunas de
punibilidade decorrentes do entrelaçamento das diversas ordens jurídicas. Se as
diferenças de regulamentação são, no final de contas, em maior ou menor grau,
implicadas pela existência de Estados soberanos, não é admissível que, aliadas à
tradicional desconfiança que estes têm uns pelos outros, impeçam a prossecução de um
interesse que é comum – o combate a formas de criminalidade que, em última instância,
afectam o núcleo da soberania dos Estados. Neste sentido, podemos destacar, pelo seu
15 Para tal, muito contribuiu a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, de 2000 (“Convenção de Palermo”), que, no seu art. 6.º, prevê a criminalização do branqueamento do produto do crime. Sobre o assunto, v. Paulo de Sousa Mendes, op. cit., pp. 339-40. 16 Esta matéria encontra-se regulada no art. 19.º da Convenção de Palermo.
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impacto, as diversas convenções multilaterais17 que, umas vezes sob a égide das Nações
Unidas, outras no quadro mais restrito do Conselho da Europa, têm (1) alargado a
competência jurisdicional penal dos Estados, nomeadamente através da superação do
tradicional princípio da territorialidade18, (2) imposto a criminalização de condutas
associadas à criminalidade organizada – por exemplo, associação criminosa,
branqueamento de capitais, corrupção ou tráfico de drogas19 –, e, finalmente, (3)
estabelecido regras comuns sobre mecanismos de cooperação judiciária internacional –
como a extradição ou o auxílio judiciário mútuo.20
3. O nível aprofundado de cooperação judiciária em matéria penal na União
Europeia: factores explicativos
Se a nível internacional existem, como vimos, diversos instrumentos que
regulamentam a cooperação entre os Estados no combate à criminalidade organizada, no
quadro específico da União Europeia foi atingido um nível de integração muito mais
elevado. Esta situação pode ser explicada pelas características próprias da construção
europeia, que acrescem ao factor já mencionado – o carácter transnacional da
criminalidade organizada.
Em primeira linha, há que considerar a progressiva construção de um espaço
europeu sem fronteiras internas, com antecedentes no Acto Único Europeu, de 1986 –
que relacionava este objectivo com o outro mais lato de estabelecimento de um mercado
único21 –, mas só efectivada em 1999, com a entrada em vigor do Tratado de
Amesterdão e do protocolo que integra o acervo de Schengen no âmbito da União
Europeia, agora já na perspectiva da construção de um espaço de liberdade, segurança e
17 Têm também importância os diversos acordos bilaterais existentes a este nível, nomeadamente aqueles que regulam a extradição. 18 Por exemplo, o art. 15.º, n.º 2, da Convenção de Palermo prevê a possibilidade de os Estados Parte estabelecerem a sua competência jurisdicional em relação às infracções cometidas por um ou contra um dos seus cidadãos (princípios da nacionalidade activa e passiva). 19 As três primeiras incriminações estão previstas, respectivamente, nos artigos 5.º, 6.º e 8.º da Convenção de Palermo. A Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas, de 1998 (“Convenção de Viena”), no seu art. 3.º, prevê, entre outros, o crime de tráfico de drogas. 20 Regulam estas matérias duas importantes convenções do Conselho da Europa: a Convenção Europeia de Extradição, de 1957, e a Convenção Europeia de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal, de 1959. É de notar que estas matérias também se encontram reguladas em diversas convenções das Nações Unidas, nomeadamente nas já referidas Convenção de Palermo e Convenção de Viena. 21 O Acto Único Europeu introduziu o art. 8.º-A no Tratado de Roma, estabelecendo que «o mercado interno compreende um espaço sem fronteiras internas, no qual a livre circulação das mercadorias, das pessoas, dos serviços e dos capitais é assegurada.»
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justiça.22 A livre circulação de mercadorias, capitais, serviços e pessoas teve como
consequência uma potenciação dos factores que, como a globalização e a liberalização
dos mercados, estimulam a expansão da criminalidade organizada a nível internacional.
Na verdade, ao criar-se um espaço sem fronteiras internas, tanto é facilitada, por
exemplo, a circulação das mercadorias lícitas como das ilícitas (e dos agentes do crime),
numa realidade que não tem paralelo fora do espaço europeu. Daí que a Convenção de
Aplicação do Acordo de Schengen, de 1990, tenha estabelecido, conjuntamente com a
supressão dos controlos nas fronteiras internas entre os Estados Parte, um conjunto de
medidas compensatórias, incluindo o incremento da cooperação policial e judiciária em
matéria penal23, tendência que foi depois seguida pelo tratado da União Europeia, o
Tratado de Maastricht, e, principalmente, pelo Tratado de Amesterdão24, numa
evolução que, passando pela entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em 2009, continua
ainda a efectuar-se nos nossos dias.25
Por outro lado, como vimos já, a União Europeia, desde a entrada em vigor do
Tratado de Amesterdão, visa a manutenção e desenvolvimento de um espaço de
liberdade, segurança e justiça – objectivo que, aliás, depois da adopção do Tratado de
Lisboa, tem, no elenco dos objectivos fundamentais da União Europeia efectuado pelo
art. 3.º do Tratado da União Europeia (TUE), precedência sobre o estabelecimento de
um mercado interno.26 Ora, a criação deste espaço europeu comum tem como
consequência inevitável a renúncia, por parte dos Estados, a algumas das prerrogativas
tradicionalmente contidas no núcleo da sua soberania – pense-se, mais uma vez, na
obrigação de ausência de controlos sobre pessoas nas fronteiras internas, que é, afinal, o
elemento aglutinador do espaço de liberdade, segurança e justiça, permitindo, ainda
22 O Tratado de Amesterdão acrescentou ao art. B do Tratado de Maastricht o seguinte objectivo da União Europeia: «a manutenção e o desenvolvimento da União enquanto espaço de liberdade, de segurança e de justiça, em que seja assegurada a livre circulação de pessoas, em conjugação com medidas adequadas em matéria de controlos na fronteira externa, asilo e imigração, bem como de prevenção e combate à criminalidade.» 23 V. Nuno Piçarra, “Direito da União Europeia: o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça. Relatório com o Programa, os Conteúdos e os Métodos de Ensino da Cadeira”, in Themis, Ano X, n.º 19, 2010, p. 256. 24 Afirmando que «o Tratado de Maastricht acabou por não dar o impulso que faltava para o desenvolvimento efectivo da cooperação JAI», v. Nuno Piçarra, “Direito da União Europeia...cit.”, p. 255. 25 Não cabe no âmbito deste estudo a descrição pormenorizada das origens e do desenvolvimento da cooperação judiciária em matéria penal na União Europeia, desde a constituição do Grupo TREVI, em 1975, até aos nossos dias. Sobre este assunto, v. Anabela Miranda Rodrigues, O Direito Penal Europeu Emergente, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, pp. 37 e ss. 26 V. o art. 3.º, n.º 2 e n.º 3, do TUE.
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hoje, integrar todas as suas componentes.27 Os Estados só aceitaram esta alteração de
paradigma por terem considerado que podiam confiar uns nos outros e nas instituições
da União Europeia – confiança que, além do mais, deveria ser acompanhada pela
previsão de mecanismos de salvaguarda.
A base para esta confiança mútua é reconhecida em disposições como o art. 2.º
do TUE, que estabelece que a União se funda «nos valores do respeito pela dignidade
humana, da liberdade, da democracia, da igualdade, do Estado de direito e do respeito
pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias.
Estes valores são comuns aos Estados-Membros.»28 É, afinal, esta matriz que é suposto
ser comum a todos – e o seu desenvolvimento, através, por exemplo, da atribuição do
mesmo valor jurídico do TUE e do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
(TFUE) à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia29 – que possibilita o
aprofundado nível de cooperação entre os Estados Membros da União Europeia em
matérias tão fortemente ligadas à sua soberania.30
4. A cooperação judiciária e a cooperação policial
Depois de delineado o contexto em que se desenvolveram, na União Europeia,
os diferentes mecanismos de cooperação judiciária em matéria penal, torna-se
necessária, antes de podermos apontar e concretizar as suas principais marcas
distintivas, uma explicação sobre o que deve entender-se por cooperação judiciária em
matéria penal.
Fundamentalmente, cooperação judiciária em matéria penal significa cooperação
entre autoridades judiciárias – juízes ou magistrados do Ministério Público –, para
27 Assim, no art. 3.º, n.º 2, do TUE, todas as componentes do espaço de liberdade, segurança e justiça são associadas à ausência de controlos nas fronteiras internas. V. Nuno Piçarra, “A União Europeia enquanto Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça: Alguns Desenvolvimentos Recentes”, in Jorge Bacelar Gouveia e Rui Pereira (coord.), Estudos de Direito e Segurança, Coimbra: Almedina, 2007, p. 318. 28 V. também o art. 6.º, n.º 3, do TUE, que se refere às «tradições constitucionais comuns aos Estados-Membros.» 29 V. o art. 6.º, n.º 1, do TUE. 30 Cooperação que não torna os Estados mais fracos, na medida em que, por exemplo, «uma das contrapartidas da supressão dos controlos de pessoas nas fronteiras internas, para além do reforço dos controlos nas fronteiras externas, é o efeito extraterritorial que adquire uma série de decisões administrativas e judiciárias tomadas pelos competentes órgãos dos Estados-Membros, em virtude da sua integração no ELSJ. (...) Este sistemático efeito extraterritorial de muitas decisões de autoridade dos Estados-Membros não pode obviamente deixar de se repercutir na natureza e a identidade dos mesmos – e decerto no sentido não do seu enfraquecimento, mas do seu reforço» (v. Nuno Piçarra, “A União Europeia...cit.”, pp. 319-20).
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efeitos da prossecução do processo penal, em qualquer das suas fases.31 Distinguir-se-
ia, nesta medida, da cooperação policial, efectuada entre autoridades policiais ou
análogas e menos abrangente que a judiciária, por se concentrar na prevenção e
detecção de infracções penais. No entanto, estas noções, tendencialmente exactas,
necessitam de algumas precisões, pois existe uma clara interpenetração entre a
cooperação judiciária e a cooperação policial. É que as atribuições das polícias e das
autoridades judiciárias, maxime do Ministério Público, diferem de Estado-Membro para
Estado-Membro. Por exemplo, certas funções que, em Portugal, pertencem ao
Ministério Público são, noutros Estados, atribuídas a órgãos de polícia.32 Na verdade,
mesmo em Portugal, na fase processual do inquérito, as actividades do Ministério
Público e dos diferentes órgãos de polícia criminal estão claramente interligadas, pois,
se é certo que o inquérito é dirigido pelo Ministério Público, a investigação criminal
propriamente dita é efectuada pela polícia. Assim, está prevista a cooperação entre
autoridades policiais em diversos instrumentos jurídicos que versam sobre cooperação
judiciária em matéria penal.33 Característica essencial desta é que tenha em vista o
processo penal – o que exclui em princípio, por exemplo, a cooperação entre serviços
secretos, mas não entre polícias ou mesmo entre governos, como no mecanismo clássico
da extradição.34
5. A cooperação judiciária e a aproximação das legislações penais e
processuais penais
Por outro lado, se, conceptualmente, a cooperação judiciária internacional em
matéria penal não implica a aproximação das legislações penais e processuais penais
31 A Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, a Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto (com alterações subsequentes), prevê a cooperação internacional desde o início do processo penal – auxílio para obtenção de meios de prova, v. g. – até ao seu final – execução de sentenças penais, por exemplo. É de notar, todavia, que alguns instrumentos internacionais que versam sobre a cooperação judiciária em matéria penal abrangem também a matéria contra-ordenacional. V., por exemplo, o art. 3.º, n.º 1, da Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros da União Europeia, de 2000. 32 Por esta razão, o art. 2.º, n.º 1, da Decisão do Conselho n.º 2002/187/JAI, de 28 de Fevereiro (Decisão Eurojust), posteriormente alterada pela Decisão do Conselho n.º 2009/426/JAI, de 16 de Dezembro de 2008, estabelece que a Eurojust é «composta por um membro nacional destacado por cada Estado-Membro, segundo o seu sistema jurídico, que deve ser procurador, juiz ou oficial de polícia com prerrogativas equivalentes.» 33 Por exemplo, o art. 13.º da Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros da União Europeia, de 2000, prevê a criação de equipas de investigação conjuntas, integradas por agentes policiais. 34 V. infra nota 56.
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dos Estados, na realidade prática os dois mecanismos estão muito interligados,
principalmente na União Europeia, mas não só.35 É que a inexistência de uma
identidade comum mínima no direito penal e no processo penal dos Estados acaba por
inviabilizar, a partir de certo nível, a cooperação judiciária entre eles.
Desde logo, está em causa nesta matéria, e de forma particularmente sensível, o
equilíbrio entre liberdade e segurança. Se houver uma grande desigualdade entre as
garantias do processo penal de dois Estados, não poderão ser aproveitados, no Estado
com mais garantias, até por imposições constitucionais, muitos dos elementos de prova
recolhidos no Estado com menos garantias. Pense-se, por exemplo, na hipótese extrema
de obtenção de provas através da tortura. Em Portugal, tais provas, obtidas noutro
Estado que as considerasse legalmente admissíveis, nunca poderiam ser utilizadas. O
desequilíbrio inverso também é fonte de problemas. Se o direito processual penal de um
Estado contiver garantias excessivas e desproporcionais em relação aos direitos
legítimos dos suspeitos e à segurança de toda a sociedade, colocará entraves
desnecessários à cooperação com outros Estados, impedindo-os de prosseguir as
finalidades do seu direito penal e corroendo, consequentemente, a confiança mútua
entre os Estados. No entanto, nem precisamos de recorrer a exemplos tão extremos, à
partida raros no espaço da União Europeia. Se as normas do direito processual penal
raramente são valorativamente neutras, a verdade é que muitas são fungíveis – existem
diversos meios para atingir o mesmo resultado. Contudo, colocará entraves à
cooperação a mera diferença entre elas, na medida em que o direito processual penal,
nomeadamente nos Estados-Membros da União Europeia, possui uma importante
vertente formalista, de forma a garantir a possibilidade de defesa do arguido.
Por último, agora a nível do direito penal, a inexistência da previsão de certo
crime – ou de certa sanção – em determinada ordem jurídica poderá impedir a execução
de um pedido de cooperação internacional pelo Estado respectivo. Na verdade, uma das
condições clássicas para a admissibilidade de certas formas de cooperação internacional
é a dupla incriminação, ou seja, a exigência de que a conduta que origina determinado
pedido seja considerada crime não só no Estado que emite o pedido, mas também no
Estado que o recebe. Mesmo na União Europeia, apesar de o requisito da dupla
incriminação ter sido, em muitos casos – mas não todos –, abandonado, a questão é
35 Como vimos, a Convenção de Palermo, por exemplo, contém regras não só relativas à aproximação das legislações penais dos Estados Parte, mas também à cooperação entre as suas autoridades policiais e judiciárias.
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muito relevante, pois não é possível manter um nível adequado de confiança mútua –
essencial, como vimos, para uma cooperação estreita – se houver diferenças profundas
nas matérias com maior interesse comum, como a protecção dos direitos fundamentais e
a luta contra a criminalidade organizada.36
Por estas razões, no Capítulo IV do Título V («O Espaço de Liberdade,
Segurança e Justiça») da Parte III do TFUE, capítulo que tem a epígrafe «Cooperação
Judiciária em Matéria Penal», estão também incluídas disposições relativas à
aproximação das legislações penais e processuais penais dos Estados Membros. O art.
82.º, n.º 1, estipula expressamente que «a cooperação judiciária em matéria penal na
União (...) inclui a aproximação das disposições legislativas e regulamentares dos
Estados-Membros nos domínios a que se referem o n.º 2 e o art. 83.º.» O art. 82.º, n.º 2,
estabelece a possibilidade de o Parlamento Europeu e o Conselho adoptarem regras
mínimas relativas a diversos elementos do processo penal – os elencados nas quatro
alíneas desta disposição –, «na medida em que tal seja necessário para facilitar o
reconhecimento mútuo das sentenças e decisões judiciais e a cooperação policial e
judiciária nas matérias penais com dimensão transfronteiriça.»
Já a criação de regras mínimas no âmbito do direito penal propriamente dito não
se encontra, no TFUE, sujeita directamente à condição de facilitação da cooperação
policial e judiciária. Segundo o art. 83.º, n.º 1, essencial é que as infracções penais em
causa se insiram em «domínios de criminalidade particularmente grave com dimensão
transfronteiriça que resulte da natureza ou das incidências dessas infracções, ou ainda da
especial necessidade de as combater, assente em bases comuns.» Entre os domínios de
criminalidade taxativamente enumerados na mesma disposição está a criminalidade
organizada.37 Por sua vez, o n.º 2 do mesmo art. 83.º dispõe que podem ser
estabelecidas regras mínimas relativas a infracções penais e sanções «sempre que a
aproximação de disposições legislativas e regulamentares dos Estados-Membros em
matéria penal se afigure indispensável para assegurar a execução eficaz de uma política
36 Assim, por exemplo, a Decisão-Quadro n.º 2008/841/JAI, do Conselho, de 24 de Outubro, relativa à luta contra a criminalidade organizada, prevê, no seu art. 2.º, «infracções relativas à participação em organização criminosa.» 37 O estabelecimento de regras mínimas relativas a domínios da criminalidade não incluídos na enumeração do 2.º inciso do n.º 1 do art. 83.º do TFUE está sujeito não ao processo legislativo ordinário, mas sim, segundo o 3.º inciso, à deliberação por unanimidade no Conselho, após aprovação do Parlamento Europeu.
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da União num domínio que tenha sido objecto de medidas de harmonização» – por
exemplo, a protecção do ambiente.38
6. A comunitarização da cooperação judiciária em matéria penal
Posto isto, vamos então procurar concretizar os traços gerais que caracterizam a
cooperação judiciária em matéria penal na União Europeia. Começamos por destacar a
principal novidade que, neste plano, foi introduzida pelo Tratado de Lisboa: a supressão
da estrutura de pilares da União Europeia39, transitando toda a matéria penal – incluindo
a cooperação policial e judiciária em matéria penal – do TUE para o TFUE, com todas
as consequências a nível da produção de efeitos dos actos legislativos, do procedimento
para a sua adopção e das possibilidades de controlo jurisdicional por parte do TJUE que
daí advêm. Por outras palavras, toda a matéria penal foi comunitarizada, embora com
importantes limitações – características da cooperação intergovernamental –,
justificadas pela especificidade das matérias em causa.40
Nesta medida, se, antes do Tratado de Lisboa, os actos legislativos em matéria
penal41 revestiam, em princípio, a forma de decisão-quadro42, agora devem revestir a
38 Antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa e da consequente supressão da estrutura de pilares em que assentava a União Europeia, o TJUE, nos acórdãos de 13 de Setembro de 2005, Comissão contra Conselho, processo C-176/03, e de 23 de Outubro de 2007, Comissão contra Conselho, processo C-440/05, já tinha considerado que a Comunidade Europeia tinha competência penal, com os fundamentos e limites que hoje constam do art. 83.º, n.º 2, do TFUE. Esta competência abrangia apenas, todavia, a definição das infracções e já não a concretização das sanções (v. o número 70 do acórdão de 23 de Outubro de 2007), pelo que só o Tratado de Lisboa veio eliminar completamente a necessidade de repartição da regulação de certas matérias penais em dois instrumentos legislativos diferentes, a directiva e a decisão-quadro. Sobre a competência penal da Comunidade Europeia antes da entrada em vigor do Tratado de Lisboa, v. André Klip, European Criminal Law, Mortsel: Intersentia, 2009, pp. 163-4. Para maiores desenvolvimentos sobre a dualidade de bases jurídicas no Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça, v. Nuno Piçarra, “A União Europeia enquanto Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça: Alguns Desenvolvimentos Recentes”...cit., pp. 321 e ss. Sobre a solução agora prevista no art. 83.º, n.º 2, do TFUE, v. a anotação de Anabela Miranda Rodrigues a esta disposição, in Manuel Lopes Porto e Gonçalo Anastácio (coord.), Tratado de Lisboa, Coimbra: Almedina, 2012, pp. 434 e ss. 39 Sobre a estruturação da União Europeia em três pilares, estabelecida pelo Tratado de Maastricht, v. Paul Craig, The Lisbon Treaty. Law, Politics and Treaty Reform, Nova Iorque: Oxford University Press, 2010, pp. 331 e ss. 40 Daí que, por exemplo, Anabela Miranda Rodrigues, “O Tratado de Lisboa e o Direito Penal Europeu”, in Nuno Piçarra (coord.), A União Europeia segundo o Tratado de Lisboa: aspectos centrais, Coimbra: Almedina, 2011, p. 185 (e nota 1), afirme que o Tratado de Lisboa não opera «uma “autêntica” supressão de pilares», «sem com isto se colocar em causa, naturalmente, a unidade institucional consolidada pelo Tratado de Lisboa. Do que ainda não pode falar-se é de “unidade jurídica”.» De facto, existem ainda, ao nível do procedimento de adopção de actos legislativos, excepções importantes ao “método comunitário”. 41 Quando nos referimos, brevitatis causa, à matéria penal, pretendemos abranger todas as matérias regulamentadas pelo Capítulo IV do Título V da Parte III do TFUE («Cooperação Judiciária em Matéria Penal»).
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forma de directiva ou de regulamento. Enquanto, por regra, a harmonização das
legislações penais e processuais penais deverá ser efectuada através de directivas43, a
regulamentação da cooperação judiciária propriamente dita tanto poderá ser realizada
através de regulamentos como de directivas.44 A adopção de regulamentos nesta matéria
representa um grande avanço, em termos de integração, em relação à decisão-quadro, já
que, de acordo com o 2.º inciso do art. 288.º do TFUE, o regulamento «é obrigatório em
todos os seus elementos e directamente aplicável em todos os Estados-Membros.»
Mesmo as directivas, apesar de, em princípio, terem de ser transpostas para as ordens
jurídicas internas para serem aplicáveis nestas, produzem, em certas circunstâncias, de
acordo com jurisprudência do TJUE há muito estabelecida45, efeitos directos, algo que
era expressamente excluído pelo art. 34.º, n.º 2, alínea b), do TUE em relação às
decisões-quadro. Neste contexto, o TJUE apenas pôde reconhecer, numa decisão de
grande alcance, o acórdão Pupino46, que o princípio da interpretação conforme também
se aplicava às decisões-quadro.
Os instrumentos legislativos em matéria penal são agora, por regra, aprovados
segundo o processo legislativo ordinário, naquela que é porventura a inovação mais
relevante ocasionada pela comunitarização do III Pilar. Assim, segundo o art. 294.º do
TFUE, conjugado com o art. 16.º, n.º 3, do TUE, o procedimento legislativo deverá ser
iniciado através de uma proposta por parte da Comissão Europeia, que depois terá de ser
aprovada pelo Parlamento Europeu e pelo Conselho, deliberando este último por
maioria qualificada. É, assim, aberto o caminho para uma maior europeização (iniciativa
da Comissão), democratização (intervenção, em pé de igualdade com o Conselho, do
Parlamento Europeu47) e eficiência (maioria qualificada em vez de unanimidade no
Conselho) do procedimento legislativo no domínio penal. Há, no entanto, importantes 42 Em princípio, pois, como vimos supra na nota 38, o TJUE, no quadro anterior ao Tratado de Lisboa, já tinha reconhecido, em alguns casos, a competência penal da Comunidade Europeia. Por outro lado, no âmbito do III Pilar, a decisão era também um instrumento jurídico relevante. 43 No entanto, os actos legislativos respeitantes à prevenção e combate das fraudes lesivas dos interesses financeiros da União Europeia deverão revestir a forma de regulamento, segundo o art. 325.º, n.º 4, do TFUE. Sobre esta questão, v. Anabela Miranda Rodrigues, “O Tratado de Lisboa...cit.”, p. 186, nota 2. 44 O art. 82.º do TFUE não especifica o instrumento legislativo que deve ser utilizado. Sobre este assunto, v. a anotação a esta disposição de Anabela Miranda Rodrigues, in Manuel Lopes Porto e Gonçalo Anastácio (coord.)...cit., pp. 428-9. 45 Referimo-nos aos acórdãos Van Duyn, de 4 de Dezembro de 1974, processo 41/74, e Ratti, de 5 de Abril de 1979, processo 148/78. 46 Acórdão de 16 de Junho de 2005, processo C-105/03. 47 Com o Tratado de Lisboa, uma maior democratização está também associada a uma maior participação dos parlamentos nacionais no procedimento de adopção de actos legislativos, nomeadamente no tocante ao princípio da proporcionalidade e da subsidiariedade. V. os protocolos relativos ao papel dos parlamentos nacionais na União Europeia e à aplicação dos princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade, anexados pelo Tratado de Lisboa ao TFUE e ao TUE.
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especificidades que atenuam a adopção generalizada do processo legislativo ordinário
neste domínio.
Em primeiro lugar, segundo o art. 76.º do TFUE, além da Comissão, também um
quarto dos Estados-Membros pode apresentar propostas legislativas neste âmbito.48 Por
outro lado, é mantida a regra da unanimidade no Conselho no procedimento de adopção
dos instrumentos que mais intensamente alterem o status quo nesta matéria – maxime no
domínio da harmonização penal e processual penal. Estão, assim, sujeitas a
unanimidade as decisões do Conselho que, para efeitos da adopção de regras mínimas,
identifiquem novos elementos específicos do processo penal (art. 82.º, n.º 2, alínea d),
do TFUE) ou novos domínios de criminalidade (art. 83.º, n.º 1, 3.º inciso), não previstos
já nas disposições respectivas do TFUE. Também a decisão de instituir uma
Procuradoria Europeia para combater as infracções lesivas dos interesses financeiros da
União (art. 86.º, n.º 1) ou a de estender as atribuições desta ao combate à criminalidade
grave com dimensão transfronteiriça (art. 86.º, n.º 4) estão sujeitas a unanimidade,
respectivamente no Conselho e no Conselho Europeu.
Por último, quer o art. 82.º, n.º 3, quer o art. 83.º, n.º 3, contêm uma importante
cláusula de salvaguarda, accionável por qualquer Estado-Membro que considere que um
projecto de directiva contendo regras mínimas sobre processo penal ou direito penal
«prejudica aspectos fundamentais do seu sistema de justiça penal.»49 Nesta situação, o
Estado Membro «pode solicitar que esse projecto seja submetido ao Conselho
Europeu», só podendo a directiva ser adoptada se houver consenso no seio daquele
órgão. As mesmas disposições prevêem, contudo, uma alternativa: a cooperação
reforçada. Se não tiver sido alcançado consenso no seio do Conselho Europeu, um
número mínimo de nove Estados-Membros pode «instituir uma cooperação reforçada
com base no projecto de directiva em questão.»
Todas estas excepções à adopção do processo legislativo ordinário podem ser
explicadas pelo facto de a competência para a criação de normas penais e processuais
penais pertencer essencialmente, mesmo no novo quadro normativo resultante do
Tratado de Lisboa, aos Estados-Membros e não à União. A competência penal e 48 Segundo Marta Flores da Silva, em anotação ao art. 76.º do TFUE, in Manuel Lopes Porto e Gonçalo Anastácio (coord.), Tratado de Lisboa, Coimbra: Almedina, 2012, p. 394, «a exigência da iniciativa de pelo menos um quarto dos membros da UE responde à crítica de que as propostas apresentadas pelos EM defendem primordialmente interesses nacionais e não os interesses da União.» 49 Anabela Miranda Rodrigues, “O Tratado de Lisboa...cit.”, p. 194, dá um exemplo da importância deste “travão de emergência”: «a hipótese da adopção, no nosso direito penal, da pena de prisão perpétua constitui um bom exemplo de limitação ao estatuto de cidadania que o Estado português consagra ao nível “constitucional” e não deve suportar.»
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processual penal da União Europeia é limitada ao necessário para o cumprimento dos
objectivos enunciados nos artigos 82.º e 83.º do TFUE. Há que salvaguardar que não
ultrapassa esse limite.50
Por fim, com a comunitarização do III Pilar, foram alargadas as possibilidades
de intervenção do TJUE no domínio da cooperação judiciária em matéria penal. Assim,
segundo o art. 258.º do TFUE, a Comissão pode recorrer ao TJUE «se considerar que
um Estado-Membro não cumpriu qualquer das obrigações que lhe incumbem por força
dos Tratados» e, nas condições algo restritivas do art. 263.º, 4.º inciso, do TFUE,
qualquer pessoa pode interpor recurso «contra os actos de que seja destinatária ou que
lhe digam directa e individualmente respeito, bem como contra os actos regulamentares
que lhe digam directamente respeito e não necessitem de medidas de execução.» Por
outro lado, de acordo com o art. 267.º do TFUE, o TJUE é competente para decidir, a
título prejudicial, «sobre a interpretação dos Tratados» e «sobre a validade e
interpretação dos actos adoptados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.»
É de realçar, contudo, que subsistem limitações à intervenção do TJUE no
domínio da cooperação judiciária em matéria penal. De acordo com o art. 276.º do
TFUE, «no exercício das suas atribuições relativamente às disposições dos Capítulos IV
e V do Título V da Parte III, relativas ao espaço de liberdade, segurança e justiça, o
Tribunal de Justiça da União Europeia não é competente para fiscalizar a validade ou a
proporcionalidade de operações efectuadas pelos serviços de polícia ou outros serviços
responsáveis pela aplicação da lei num Estado-Membro, nem para decidir sobre o
exercício das responsabilidades que incumbem aos Estados-Membros em matéria de
manutenção da ordem pública e de garantia da segurança interna.» Já segundo o art. 10.º
do Protocolo relativo às disposições transitórias, anexado pelo Tratado de Lisboa ao
TFUE e ao TUE, em relação «aos actos da União no domínio da cooperação policial e
da cooperação judiciária em matéria penal adoptados antes da entrada em vigor do
Tratado de Lisboa», as competências atribuídas por este tratado ao TJUE só passarão a
poder ser exercidas cinco anos após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa.51 De
50 A interpretação e aplicação do princípio da subsidiariedade pelo TJUE vai ter, a este nível, particular importância, dado o grande número de matérias que pode, em abstracto, ser abrangido pelo art. 83.º, n.º 2, do TFUE. V. a anotação de Anabela Miranda Rodrigues a esta disposição, in Manuel Lopes Porto e Gonçalo Anastácio...cit., pp. 437-8. 51 Sobre a jurisdição do TJUE no âmbito do espaço de liberdade, segurança e justiça, após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, v. Ana Maria Guerra Martins, Ensaios sobre o Tratado de Lisboa, Coimbra: Almedina, 2011, pp. 136-7, e André Klip, op. cit., pp. 120 e ss.
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acordo com o n.º 2 da mesma disposição, este prazo só não é aplicável aos actos que
sejam entretanto alterados, já no quadro do Tratado de Lisboa.
7. O princípio do reconhecimento mútuo
Tendo sido concretizadas as principais decorrências da comunitarização do
domínio da cooperação judiciária em matéria penal, iremos agora identificar os seus
traços distintivos – aqueles que afinal nos levam a afirmar que a União Europeia possui
hoje um nível de integração único nesta matéria, superando o enquadramento tradicional
da cooperação judiciária internacional. Faremos essa análise a partir do TFUE e, ao
nível do direito derivado, daremos particular atenção à emblemática Decisão-Quadro n.º
2002/584/JAI, do Conselho, de 13 de Junho, relativa ao mandado de detenção europeu e
aos processos de entrega entre os Estados-Membros (DQ Mandado de Detenção
Europeu).
O princípio fundamental em que assenta a cooperação judiciária em matéria
penal é, como previsto no art. 82.º, n.º 1, do TFUE, o reconhecimento mútuo das
sentenças e decisões judiciais dos Estados-Membros, que deverão, assim, produzir
efeitos em todo o território da União Europeia.52 O princípio, depois de ter sido
implementado pela primeira vez pela DQ Mandado de Detenção Europeu53, tem vindo a
ser aplicado por diversas decisões-quadro aprovadas no âmbito da cooperação judiciária
em matéria penal. Sem o seu estabelecimento, a cooperação judiciária em matéria penal
não conseguiria atingir os objectivos que a justificam, maxime o de impedir que o
estabelecimento de um espaço europeu sem controlos de pessoas nas fronteiras internas
tenha como consequência a criação de melhores condições para o florescimento da
criminalidade, quer nacional, quer transnacional, e o de combater estes fenómenos de
forma mais eficaz. Pense-se, por exemplo, nas decisões judiciais que decretam, em
complemento da condenação numa pena, a perda dos bens que constituem o
instrumento do crime. Se não houver mecanismos eficazes que permitam o seu
reconhecimento no Estado onde se encontram os bens, este meio de prevenção da
52 Já no Programa de Tampere, aprovado em 16 de Outubro de 1999, «o Conselho Europeu subscreve o princípio do reconhecimento mútuo que, na sua opinião, se deve tornar a pedra angular da cooperação judiciária na União, tanto em matéria civil como penal» (n.º 33). 53 Sobre as circunstâncias em que foi implementado pela primeira vez o princípio do reconhecimento mútuo, v. Manuel Monteiro Guedes Valente, Do Mandado de Detenção Europeu, Coimbra: Almedina, 2006, pp. 87 e ss.
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criminalidade perde grande parte da sua utilidade.54 O mesmo vale para a sentença
condenatória propriamente dita, ineficaz se, em virtude da fuga do condenado, não
puder ser executada.55
O princípio do reconhecimento mútuo, para ser eficaz, implica a estipulação de
causas apertadas de recusa de cooperação, nos diversos domínios em que é aplicável.
Além disto, a comprovação da existência, nos casos concretos, de causas de recusa
deverá ser efectuada pelas autoridades judiciárias competentes dos Estados-Membros,
afastando-se, assim, juízos de oportunidade política e a intervenção do poder
executivo.56 O contacto entre as autoridades judiciárias dos diferentes Estados-
Membros deverá ser estabelecido directamente, sem intermediação de autoridades
centrais, embora estejam previstas, em algumas decisões-quadro que aplicam o
princípio do reconhecimento mútuo, excepções a esta regra.57
O princípio do reconhecimento mútuo, todavia, não significa reconhecimento
automático. Como vimos já, a configuração do direito penal e do direito processual
penal é ainda eminentemente uma competência dos Estados e não da União, havendo
diferenças assinaláveis entre eles, que correspondem a opções fundamentais de cada
sistema jurídico. Pense-se, por exemplo, nas regras relativas à idade mínima para a
imputabilidade penal58 ou na admissão da pena de prisão perpétua.59 A necessidade de
cooperação internacional não deverá descaracterizar os Estados, pelo que estes não
deverão ser obrigados a cooperar se isso puser em causa os princípios fundamentais que
regem o seu direito penal – muito embora, como veremos, esta máxima não seja
54 V. a Decisão-Quadro n.º 2006/783/JAI, do Conselho, de 6 de Outubro, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento mútuo às decisões de perda, com a redacção que lhe foi dada pela Decisão-Quadro n.º 2009/299/JAI, do Conselho, de 26 de Fevereiro. 55 Referimo-nos, claro está, à DQ Mandado de Detenção Europeu. 56 Assim, por exemplo, a DQ Mandado de Detenção Europeu estabelece um processo que se desenrola entre autoridades judiciárias. Já segundo o art. 48.º da Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, qualquer pedido de extradição é primeiramente apreciado pelo Ministro da Justiça e, em caso de indeferimento por parte deste, o processo de extradição é arquivado. 57 Por exemplo, o art. 7, n.º 2, da DQ Mandado de Detenção Europeu estabelece que «um Estado-Membro pode, se a organização do seu sistema judiciário interno o exigir, confiar à sua autoridade central ou às suas autoridades centrais a transmissão e a admissão administrativas dos mandados de detenção europeu.» V. também o n.º 9 do preâmbulo desta decisão-quadro, onde se afirma que «o papel das autoridades centrais na execução de um mandado de detenção europeu deve ser limitado a um apoio prático e administrativo.» 58 A inimputabilidade, em razão da idade, da pessoa procurada é causa de recusa obrigatória de execução de um mandado de detenção europeu, segundo o art. 3.º, n.º 3, da DQ Mandado de Detenção Europeu. 59 O art. 5.º, n.º 2, da DQ Mandado de Detenção Europeu elenca as condições que a lei do Estado de execução pode exigir que estejam previstas na lei do Estado de emissão, sob pena de não execução de um mandado de detenção europeu relativo a uma infracção que, segundo o direito penal do Estado de emissão, seja punida com a pena de prisão perpétua.
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inteiramente cumprida, nomeadamente devido à abolição do requisito da dupla
incriminação em determinados domínios.
Por outro lado, está em causa o reconhecimento de decisões judiciais em matéria
penal, que implicam uma restrição dos direitos fundamentais da pessoa afectada. Ora, é
preciso ter em conta que, como vimos, existe uma confiança mútua entre os Estados-
Membros no tocante ao compromisso, por todos, de respeito pelos direitos
fundamentais60 – incluindo, claro está, o funcionamento do seu sistema de justiça penal.
No entanto – de forma muito limitada, é certo, e não envolvendo uma revisão
propriamente dita da decisão judicial da autoridade estrangeira –, sempre se mantêm,
nas diversas decisões-quadro relevantes neste domínio, particularmente sensível, do
direito penal, algumas possibilidades de controlo jurisdicional de um Estado-Membro
sobre as decisões judiciais de outro – por exemplo, no que respeita ao cumprimento do
princípio ne bis in idem.61
8. A abolição do controlo da dupla incriminação
Outro importante elemento – relacionado com o princípio do reconhecimento
mútuo mas não implicado necessariamente por ele62 – que caracteriza a cooperação
judiciária em matéria penal na União Europeia e que tem vindo a ser incluído em
diversas decisões-quadro relevantes neste âmbito é a abolição, em relação a certos
domínios da criminalidade, da exigência de dupla incriminação como requisito para a
cooperação internacional. Tradicionalmente, maxime na extradição, é exigido que a
infracção que motiva o pedido de cooperação judiciária internacional constitua crime
quer no Estado de emissão, quer no Estado de recepção do pedido.63 Esta exigência é
60 Confiança mútua cimentada em disposições como o art. 7.º, n.º 3, do TUE. Segundo esta disposição, o Conselho pode, em caso de violação grave e persistente, por um Estado-Membro, dos valores referidos no art. 2.º do TUE, onde está incluído o respeito pelos direitos humanos, «decidir suspender alguns dos direitos decorrentes da aplicação dos Tratados ao Estado-Membro em causa.» 61 Esta causa de recusa de execução de um mandado de detenção europeu é, em alguns casos, obrigatória e, noutros, facultativa, segundo, respectivamente, o art. 3.º, n.º 2, e o art. 4.º da DQ Mandado de Detenção Europeu. 62 Neste sentido, v. Anabela Miranda Rodrigues, “O Mandado de Detenção Europeu – na via da construção de um sistema penal europeu: um passo ou um salto?”, in idem, O Direito Penal Europeu Emergente, Coimbra: Coimbra Editora, 2008, p. 199. 63 V. o art. 31.º, n.º 2, da Lei da Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal, que dispõe que «só é admissível a entrega da pessoa reclamada no caso de crime, ainda que tentado, punível pela lei portuguesa e pela lei do Estado requerente com pena ou medida privativas da liberdade de duração máxima não inferior a um ano.»
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fundamentalmente uma decorrência da soberania dos Estados64 ou, mais
especificamente, da sua ordem pública internacional: se determinada conduta, em
abstracto, não configura um crime na ordem jurídica do Estado que recebe o pedido de
cooperação, a extradição do agente em causa significará, em alguma medida, uma
deturpação dos valores em que assenta essa mesma ordem jurídica, de que o direito
penal é uma concretização.65
Na União Europeia, dada a confiança mútua existente entre os Estados-
Membros, baseada num quadro de valores comum, considerou-se que, em relação a
determinados domínios da criminalidade, não deveria ser exigida a dupla incriminação –
um entrave à cooperação internacional. Elaborou-se um catálogo com 32 domínios da
criminalidade, que passou a integrar diversas decisões-quadro que aplicam o princípio
do reconhecimento mútuo, começando na DQ Mandado de Detenção Europeu. Assim,
por exemplo, o art. 2.º, n.º 2, desta decisão-quadro estabelece que «as infracções a
seguir indicadas, caso sejam puníveis no Estado-Membro de emissão com pena ou
medida de segurança privativas de liberdade de duração máxima não inferior a três anos
e tal como definidas pela legislação do Estado-Membro de emissão, determinam a
entrega com base num mandado de detenção europeu, nas condições da presente
decisão-quadro e sem controlo da dupla incriminação do facto.»
A abolição do controlo da dupla incriminação é uma medida compensatória da
supressão de controlos de pessoas nas fronteiras internas da União Europeia, que, como
vimos, muito contribui para uma maior mobilidade da criminalidade. O que se pretende
é fortalecer o direito penal de cada Estado-Membro, impedindo que um agente possa
utilizar em seu proveito a existência de diferentes sistemas jurídicos para cometer
crimes e não ser punido. Desta forma, as decisões judiciais em matéria penal de cada
Estado-Membro poderão ser executadas não só no seu território, mas em todo o
território da União Europeia. O direito penal de cada Estado-Membro não perde eficácia
com o reverso da medalha. É que só há obrigação de cooperar sem controlo da dupla
incriminação se o direito penal do Estado-Membro de execução não for, no caso
64 Neste sentido, v. Ana Isabel Rosa Pais, “A ausência de controlo da dupla incriminação no âmbito da decisão-quadro relativa ao mandado de detenção europeu. Breve anotação ao Acórdão do Tribunal de Justiça de 3 de Maio de 2007”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, Vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, p. 804. 65 Pense-se, por exemplo, na extradição, pelas autoridades portuguesas, de um indivíduo acusado do crime de sodomia ou de feitiçaria. É de notar que a ordem pública internacional não impõe ipso facto o princípio da dupla incriminação, podendo ter um alcance mais limitado (na medida em que se considere que a cooperação na ausência de dupla incriminação não afecta, em todos os casos, os princípios fundamentais de uma ordem jurídica).
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concreto, aplicável em função de o facto ter sido cometido no seu território. Se tiver
sido, então o direito penal do Estado-Membro de execução deverá ser aplicado e, no
caso de o facto em causa não constituir crime, o agente não deverá ser punido – v. o art.
4.º, n.º 7, alínea a), da DQ Mandado de Detenção Europeu.
Sendo esta a justificação para a abolição do requisito da dupla incriminação, o
critério para a inclusão de infracções no catálogo deveria ser, sobretudo, a particular
necessidade de as combater através da cooperação judiciária entre os Estados-Membros
ou o facto de serem especialmente fomentadas pela supressão de controlos nas
fronteiras internas. É que se o catálogo resultar exclusivamente de um consenso relativo
à gravidade das infracções em causa, não será de esperar que a abolição do controlo da
dupla incriminação tenha grande alcance prático: sendo os crimes tão graves, como
podem alguns Estados-Membros não os tipificar como crimes? O actual catálogo parece
basear-se, sobretudo – embora não exclusivamente –, num consenso relativo à
necessidade de punição das condutas em causa, pelo que, na opinião de alguns autores,
o seu alcance prático é limitado.66 No entanto, a verdade é que a abolição do controlo da
dupla incriminação tem uma grande utilidade prática, na medida em que as autoridades
judiciárias do Estado-Membro de execução são dispensadas de efectuar as complexas
operações técnico-jurídicas envolvidas no controlo da dupla incriminação do facto.67 A
existência deste controlo implicaria a recusa de cooperação em alguns casos e um
processo mais demorado noutros.
É também de notar que existem dúvidas interpretativas – que podem chegar a
afectar o pleno cumprimento do princípio da legalidade – sobre que crimes se deverão
subsumir ao catálogo, mesmo tendo em conta que essa operação, em mais uma
manifestação do princípio do reconhecimento mútuo, deverá ser efectuada pelas
autoridades judiciárias do Estado-Membro de emissão – v. o art. 2.º, n.º 2, da DQ
Mandado de Detenção Europeu.68 É que o catálogo não se refere a tipos criminais
66 No sentido de que, de facto, o alcance prático da abolição da dupla incriminação é mínimo, v. André Klip, op. cit., p. 335: «the practical influence of the abolition of the double criminality requirement is, at this stage, minimal. The reason for this is that the vast majority of offences on the list are offences which are criminal in all Member States, anyway. (...) A more cynical vision would be that the list does not eliminate the double criminality requirement. What the list does is establish a number of offences for which, by definition, this condition is met.» 67 Em algumas ordens jurídicas, este controlo é particularmente exigente, chegando ao ponto de incluir a verificação da culpabilidade do agente. 68 V., no entanto, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 4 de Janeiro de 2007 (processo n.º 06P4707), onde se afirma que, «se os factos que determinam a emissão do mandado, tal como constam e com a qualificação jurídica e a integração típica que as autoridades de emissão assumiram, não puderem integrar-se, numa razoável e comum dimensão material, no elenco de um dos “domínios de
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propriamente ditos, chegando, em vários casos, a mencionar apenas vagos domínios da
criminalidade, como, por exemplo, a cibercriminalidade. Só a harmonização penal em
todos os domínios do catálogo resolveria cabalmente o problema, mas, nesse caso,
aquele perderia a sua utilidade – abolir o controlo da dupla incriminação. No entanto, o
legislador europeu pode, através de uma maior concretização dos domínios em causa,
eliminar muitas das dúvidas interpretativas que subsistem. Pode também ser decisivo, a
este nível, o papel desempenhado pelo TJUE.
Por último, é essencial sublinhar que a abolição do controlo da dupla
incriminação só pode ser implementada se houver, de facto, uma base fáctica para a
confiança mútua entre os Estados-Membros, cujas ordens jurídicas se devem fundar em
valores comuns, como a protecção dos direitos fundamentais. Assim, se é verdade que
os Estados-Membros podem ser obrigados a executar decisões judiciais relativas a
factos que na sua ordem jurídica não são tipificados como crime, nenhum deles deverá
ser confrontado com um pedido de cooperação judiciária relativo a factos cuja
tipificação como crime seja incompatível com os valores fundamentais em que se baseia
a União Europeia.69
9. O princípio forum regit actum
Uma importante questão que se coloca no âmbito da cooperação judiciária
internacional em matéria penal é a de saber qual deverá ser a lei aplicável às diligências
que constam do pedido de cooperação – a do Estado requerido ou a do Estado
requerente – e, no caso de ser a do Estado requerido, a de que valor lhes deverá ser
atribuído no Estado requerente. É que, como temos repetido, existem muitas diferenças
no direito processual penal dos Estados-Membros, nomeadamente no tocante aos
requisitos a que estão sujeitas as diversas diligências com relevância para o processo.
Sendo as diligências efectuadas no território do Estado requerido, serão de aplicar as
regras contidas na lei interna deste – trata-se de uma decorrência do princípio clássico
locus regit actum. Só que o cumprimento deste princípio, sem quaisquer ressalvas, pode
tornar inútil, em alguns casos, a execução de um pedido de cooperação internacional.
criminalidade” fixados na Decisão-Quadro, o Estado da execução poderá efectuar, nas condições que considere adequadas, a verificação (facultativa) da dupla incriminação.» Para uma análise deste acórdão, v. Carlota Pizarro Almeida, “Cooperação judiciária europeia e internacional”, in 2.º Congresso de Investigação Criminal, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 104 e ss. 69 V. os exemplos dados supra na nota 65.
21
Pense-se, por exemplo, na seguinte situação: no Estado requerido, o arguido não
tem obrigatoriamente de ser acompanhado por um advogado num interrogatório
judicial, enquanto no Estado requerente a presença do advogado é indispensável. Se o
Estado requerido procede ao interrogatório do arguido sem a presença de um advogado,
há o grave risco de os elementos de prova assim obtidos não poderem ser utilizados no
Estado requerente, na medida em que não se cumpriu um requisito considerado
essencial nessa ordem jurídica. Desta forma, a eficácia da cooperação judiciária
internacional seria completamente comprometida.
Para evitar este entrave significativo ao combate à criminalidade, em diversos
instrumentos jurídicos aprovados no quadro da União Europeia procura-se temperar o
princípio locus regit actum, que se mantém como regra, com a aplicação, pelo menos
parcial, da lei do Estado requerente, de acordo com o princípio forum regit actum.
Assim, o art. 4.º, n.º 1, da Convenção Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria
Penal entre os Estados Membros da União Europeia, de 2000, estabelece o seguinte:
«nos casos em que for concedido auxílio judiciário mútuo, o Estado membro requerido
respeitará as formalidades e procedimentos expressamente indicados pelo Estado
membro requerente, salvo disposição em contrário da presente Convenção e desde que
as formalidades e procedimentos indicados não sejam contrários aos princípios
fundamentais de direito do Estado membro requerido.»70
Esta solução não é uma decorrência do princípio do reconhecimento mútuo,
mesmo tendo em conta que os Estados aceitam executar decisões de autoridades
estrangeiras, baseadas em normas que não integram o seu sistema jurídico – na condição
de estas não afectarem os princípios fundamentais do Estado requerido, ou seja, os seus
princípios constitucionais. Mais consentânea com esse princípio seria a obrigação de
validação, sem restrições, dos elementos obtidos no Estado requerido, em cumprimento
da lex loci, por parte dos tribunais do Estado requerente. Neste caso, não haveria
qualquer necessidade de aplicação da lex fori, pois os Estados confiariam uns nos outros
ao ponto de utilizarem, no processo penal, elementos de prova obtidos exclusivamente
de acordo com leis estrangeiras.71 Contudo, no quadro actual da União Europeia, em
70 Esta formulação é depois seguida, por exemplo, pelo art. 12.º da Decisão-Quadro n.º 2008/978/JAI, do Conselho, de 18 de Dezembro, relativa a um mandado europeu de obtenção de provas destinado à obtenção de objectos, documentos e dados para utilização no âmbito de processos penais. 71 Esta solução é defendida, em alguns casos, pela Comissão Europeia, segundo Carlota Pizarro Almeida, op. cit., p. 112: «a Comissão defende que, pelo menos quando estiverem em causa os interesses financeiros da Comunidade, o tribunal deve admitir as provas obtidas legalmente à luz do regime do Estado onde foram obtidas, em nome do princípio do reconhecimento mútuo enunciado em Tampere. Em
22
que subsistem muitas diferenças nos regimes processuais penais dos Estados-Membros,
apesar da confiança mútua que é suposto existir entre eles, a regra deverá continuar a ser
a aplicação combinada da lex loci e lex fori.
10. Excepções à regra da especialidade
No âmbito do mandado de detenção europeu, cumpre salientar a existência de
um mecanismo que constitui uma excepção à regra da especialidade, tradicionalmente
presente na cooperação judiciária internacional. Segundo esta regra, os factos que
tenham sido cometidos antes de uma pessoa ter sido extraditada e que não tenham dado
origem ao respectivo pedido de extradição não poderão produzir quaisquer efeitos
penais no Estado requerente.72 De contrário, a soberania do Estado que concede a
extradição seria posta em causa, pois não teria tido oportunidade de se pronunciar sobre
os factos que não constam no respectivo pedido de cooperação internacional. O
conhecimento de que a pessoa seria perseguida por estes factos poderia alterar a sua
decisão de a extraditar.
Ora, segundo o art. 27.º, n.º 1, da DQ Mandado de Detenção Europeu, «cada
Estado-Membro tem a faculdade de notificar ao Secretariado-Geral do Conselho que,
nas suas relações com os outros Estados-Membros que tenham apresentado a mesma
notificação, se presume dado o consentimento para a instauração de procedimento
penal, a condenação ou a detenção, para efeitos de cumprimento de uma pena ou
medida de segurança privativas da liberdade, por uma infracção praticada antes da sua
entrega, diferente daquela por que foi entregue, salvo se, num caso específico, a
autoridade judiciária de execução declarar o contrário na sua decisão de entrega.» Esta
regra – que se aplica, mutatis mutandis, à entrega ou extradição posterior, segundo o art.
28.º, n.º 1, da mesma decisão-quadro – é mais uma decorrência da confiança mútua
entre os Estados-Membros da União Europeia, com a limitação de só se aplicar aos
Estados que expressamente o requeiram, em condições de reciprocidade.
Contudo, é de notar que a justificação da regra da especialidade não se encontra
apenas no carácter soberano dos Estados, mas também na garantia dos direitos de defesa
da pessoa alvo de um pedido de extradição. Esta só se pode defender em relação às
abono desta posição, enfatiza que, não obstante as divergências existentes, todos os Estados membros estão vinculados aos mesmos princípios relativos a direitos fundamentais.» 72 V. o art. 16.º da Lei de Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal.
23
infracções que constam do pedido. Ora, no caso do mandado de detenção europeu, pode
perfeitamente suceder que, em relação às infracções que não constam do pedido, fosse
aplicável uma causa de recusa de execução do mandado – por exemplo, o crime em
causa ter sido amnistiado no Estado-Membro de execução.73 Por esta razão, a
possibilidade de quebra da regra da especialidade desvirtua o sistema de causas de
recusa previsto nos artigos 3.º e 4.º da DQ Mandado de Detenção Europeu. Uma
solução mais adequada seria, na nossa opinião, aplicar sempre a regra prevista no art.
27.º, n.º 3, alínea g), da mesma decisão-quadro: exigir o consentimento das autoridades
judiciárias que entregaram a pessoa em causa.
11. A Eurojust e a Rede Judiciária Europeia
A cooperação judiciária em matéria penal na União Europeia é também marcada
pela existência de diversos mecanismos que asseguram a coordenação operacional entre
as diferentes autoridades judiciárias dos Estados-Membros. Destes, tem claro destaque a
Eurojust, instituída pela Decisão do Conselho n.º 2002/187/JAI, de 28 de Fevereiro
(Decisão Eurojust), posteriormente alterada pela Decisão do Conselho n.º 2009/426/JAI,
de 16 de Dezembro de 2008. A Eurojust tem por missão, segundo o art. 85.º, n.º 1, do
TFUE, «apoiar e reforçar a coordenação e a cooperação entre as autoridades nacionais
competentes para a investigação e o exercício da acção penal em matéria de
criminalidade grave que afecte dois ou mais Estados-Membros ou que exija o exercício
de uma acção penal assente em bases comuns, com base nas operações conduzidas e nas
informações transmitidas pelas autoridades dos Estados-Membros e pela Europol.» É
«composta por um membro nacional destacado por cada Estado-Membro, segundo o
seu sistema jurídico, que deve ser procurador, juiz ou oficial de polícia com
prerrogativas equivalentes» (art. 2.º, n.º 1, da Decisão Eurojust). As suas competências,
que são exercidas quer através dos membros nacionais (art. 6.º), quer através do colégio
(art. 7.º), não se sobrepõem às decisões das autoridades judiciárias dos Estados-
Membros. Trata-se essencialmente de um órgão de coadjuvação das autoridades
judiciárias dos Estados-Membros, que visa facilitar a comunicação e coordenação entre
elas, no âmbito de investigações e procedimentos penais.74 Nesta qualidade, a Eurojust
73 V. o art. 3.º, n.º 1, da DQ Mandado de Detenção Europeu. 74 Neste sentido, v. a anotação de Anabela Miranda Rodrigues ao art. 85.º do TFUE, in Manuel Lopes Porto e Gonçalo Anastácio (coord.)...cit., pp. 442 e ss.
24
tem desempenhado um papel fundamental no combate à criminalidade organizada no
seio da União Europeia.75
O Tratado de Lisboa criou as bases para o estabelecimento de uma Eurojust com
uma natureza diferente, com poderes mais alargados, inclusive em relação aos Estados-
Membros. Em primeiro lugar, o n.º 1 do art. 85.º do TFUE estabelece que a Eurojust
tem legitimidade para intervir nos casos que exijam «o exercício de uma acção penal
assente em bases comuns» e não só quando esteja em causa a criminalidade
transnacional propriamente dita, alargando assim a competência da Eurojust. Depois, o
art. 85.º, n.º 1, 2.º inciso, estabelece que as funções da Eurojust poderão futuramente
incluir a abertura de investigações criminais, a coordenação de investigações e acções
penais e a resolução de conflitos de jurisdição entre os Estados-Membros. Todas estas
novas competências poderão ser exercidas em relação aos Estados-Membros, o que
constituiria uma verdadeira mutação da natureza da Eurojust. Segundo o art. 86.º, n.º 1,
poderá também ser constituída, a partir da Eurojust, uma Procuradoria Europeia, «a fim
de combater as infracções lesivas dos interesses financeiros da União» ou mesmo,
segundo o n.º 4, para combater «a criminalidade grave com dimensão transfronteiriça.»
É de realçar que as normas contidas nos artigos 85.º, n.º 1, 2.º inciso, e 86.º, n.º 1 e n.º 4,
estabelecem permissões e não imposições, pelo que não se sabe ainda se as inovações
referidas se vão concretizar. A instituição de uma Procuradoria Europeia e o
alargamento da sua competência enfrentam uma dificuldade adicional: as deliberações
respectivas do Conselho e do Conselho Europeu deverão ser aprovadas por
unanimidade. Contudo, esta exigência é mitigada pelo art. 86.º, n.º 1, 3.º inciso, que
estabelece a possibilidade de um grupo constituído por pelo menos nove Estados-
Membros instituir no seu seio uma cooperação reforçada.
Tem também relevância a este nível a Rede Judiciária Europeia, criada pela
Acção Comum do Conselho n.º 98/428/JAI, de 27 de Junho, depois substituída pela
Decisão do Conselho n.º 2008/976/JAI, de 16 de Dezembro. Sendo constituída por
vários pontos de contacto nacionais76, a Rede Judiciária Europeia visa essencialmente,
75 Neste sentido, v. André Klip, op. cit., p. 404. 76 Segundo o art. 2.º, n.º 6, da Decisão de 2008, os magistrados de ligação referidos na Acção Comum do Conselho n.º 96/27/JAI, de 22 de Abril, que institui um enquadramento para o intercâmbio de magistrados de ligação destinado a melhorar a cooperação judiciária entre os Estados-Membros da União Europeia – uma iniciativa que precedeu a Rede Judiciária Europeia e a Eurojust, mas que não teve particular acolhimento, designadamente em Portugal –, deverão, em princípio, ser associados à Rede Judiciária Europeia. V. Fátima Adélia Martins, “Cooperação Judiciária Internacional em Matéria Penal: A Rede Judiciária Europeia (RJE)”, in Revista do Ministério Público, Lisboa, n.º 100, Out.-Dez. 2007, p. 104.
25
de acordo com os artigos 3.º e 4.º da Decisão de 2008, facilitar os contactos entre as
autoridades judiciárias dos Estados-Membros e fornecer a estas diversas informações
sobre os diferentes ordenamentos jurídicos nacionais, quer em casos concretos, quer em
termos gerais. Neste último plano, além de organizar reuniões periódicas entre os
pontos de contacto nacionais, disponibiliza bases de dados úteis, como o atlas judiciário
europeu – com indicações sobre as autoridades competentes de cada Estado-Membro,
nos mais diversos níveis – ou as fichas belgas – com informações sobre diversos
aspectos do direito processual penal de cada Estado-Membro.77
12. O acervo da União Europeia no âmbito da cooperação judiciária em
matéria penal
Por último, são de mencionar alguns dos inúmeros instrumentos jurídicos que
constituem o acervo da União Europeia no âmbito da cooperação judiciária em matéria
penal. São um importante indicador do nível de integração que a União Europeia
alcançou nesta matéria, sendo certo que algumas das decisões-quadro relevantes ainda
não foram transpostas por alguns Estados-Membros, incluindo Portugal.
No âmbito das convenções, são de destacar a Convenção de Aplicação do
Acordo de Schengen, de 1990, que, entre outras medidas compensatórias78, contém
diversos mecanismos de cooperação judiciária em matéria penal, e a Convenção
Relativa ao Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal entre os Estados Membros da
União Europeia, de 200079, que contém importantes elementos inovadores, como a
estipulação de relações directas entre as autoridades judiciárias dos Estados-Membros
ou a aplicação do princípio forum regit actum, que viriam a caracterizar a cooperação
judiciária em matéria penal na União Europeia, sendo plasmados em diferentes
instrumentos legislativos relevantes neste âmbito.80 Quanto aos mecanismos específicos
previstos na convenção, é de referir, por estarem em causa importantes prerrogativas
77 Sobre a Rede Judiciária Europeia, v. Fátima Adélia Martins, op. cit., pp. 103-133. 78 É de notar que «a chave da abóbada destas medidas compensatórias é o Sistema de Informação Schengen (SIS), cujo objectivo consiste em preservar devidamente a ordem e a segurança pública das Partes Contratantes e gerir os fluxos migratórios no espaço comum, através da troca de informações sobre pessoas e objectos possibilitada por este sistema» (Nuno Piçarra, “Direito da União Europeia...cit.”, p. 256). 79 Esta convenção substitui alguns dos mecanismos previstos na Convenção de Aplicação do Acordo de Schengen, como expressamente estabelece o seu art. 2.º. 80 V. Sandra Elisabete Milheirão Alcaide, “Cooperação judiciária clássica vs. a Convenção de Auxílio Judiciário Mútuo em Matéria Penal de 29 de Maio de 2000”, in Revista do Ministério Público, Lisboa, n.º 124, Out.-Dez. 2010, pp. 97 e ss.
26
associadas à soberania dos Estados, a regulamentação pormenorizada das entregas
vigiadas (art. 12.º), da formação de equipas de investigação conjuntas (art. 13.º) e da
realização de investigações encobertas (art. 14.º), embora com importantes salvaguardas
e reservas – quanto às investigações encobertas, os Estados-Membros podem mesmo
declarar que não estão vinculados pelo regime respectivo, de acordo com o art. 14.º, n.º
4. Estes mecanismos, embora incluídos numa convenção relativa ao auxílio judiciário
mútuo, são também instrumentos de cooperação policial.
No âmbito legislativo, merecem destaque as diversas decisões-quadro que
aplicam o princípio do reconhecimento mútuo às mais variadas sentenças no âmbito
penal. Além das já citadas ao longo deste trabalho, são de referir a Decisão-Quadro n.º
2003/577/JAI, do Conselho, de 22 de Julho, relativa à execução na União Europeia das
decisões de congelamento de bens ou de provas, a Decisão-Quadro n.º 2005/214/JAI, do
Conselho, de 24 de Fevereiro, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento
mútuo às sanções pecuniárias (posteriormente alterada pela Decisão-Quadro n.º
2009/299/JAI, do Conselho, de 26 de Fevereiro), a Decisão-Quadro n.º 2008/947/JAI,
do Conselho, de 27 de Novembro, relativa à aplicação do princípio do reconhecimento
mútuo às sentenças e decisões relativas à liberdade condicional para efeitos da
fiscalização das medidas de vigilância e das sanções alternativas, a Decisão-Quadro n.º
2008/909/JAI, do Conselho, de 27 de Novembro, relativa à aplicação do princípio do
reconhecimento mútuo às sentenças em matéria penal que imponham penas ou outras
medidas privativas de liberdade para efeitos da execução dessas sentenças na União
Europeia, e, por fim, a Decisão-Quadro n.º 2009/829/JAI, do Conselho, de 23 de
Outubro, relativa à aplicação, entre os Estados-Membros da União Europeia, do
princípio do reconhecimento mútuo às decisões sobre medidas de controlo, em
alternativa à prisão preventiva.
Estas decisões-quadro são complementadas por outras, que, transversalmente,
visam concretizar algumas das garantias previstas nos diversos instrumentos legislativos
que aplicam o princípio do reconhecimento mútuo – por exemplo, o princípio ne bis in
idem e a protecção de dados pessoais, regulados pela Decisão-Quadro n.º 2008/675/JAI,
do Conselho, de 24 de Julho, relativa à tomada em consideração das decisões de
condenação nos Estados-Membros da União Europeia por ocasião de um novo
procedimento penal, pela Decisão-Quadro n.º 2009/948/JAI, do Conselho, de 30 de
Novembro, relativa à prevenção e resolução de conflitos de exercício de competência
em processo penal, e pela Decisão-Quadro n.º 2008/977/JAI, do Conselho, de 27 de
27
Novembro, relativa à protecção de dados pessoais tratados no âmbito da cooperação
policial e judiciária em matéria penal.
Existe também uma panóplia de instrumentos legislativos aprovados no quadro
da cooperação judiciária em matéria penal e só mediatamente relacionados com o
princípio do reconhecimento mútuo – por exemplo, no âmbito da harmonização das
legislações penais dos Estados-Membros. No que respeita especificamente ao combate à
criminalidade organizada, é de destacar a Decisão-Quadro n.º 2008/841/JAI, do
Conselho, de 24 de Outubro, relativa à luta contra a criminalidade organizada, que
impõe a incriminação de alguns tipos de conduta relacionados com a participação em
organizações criminosas, prevê as sanções mínimas respectivas, estabelece a
responsabilidade – não necessariamente penal – das pessoas colectivas e as sanções que
lhes são aplicáveis, regulamentando ainda outras importantes matérias, relativas, por
exemplo, à jurisdição dos Estados-Membros ou aos requisitos para a abertura de um
procedimento criminal.
13. Perspectivas de evolução
É inegável que a União Europeia dispõe hoje de um acervo normativo muito
desenvolvido no que toca ao domínio da cooperação judiciária em matéria penal, nos
diversos níveis que a compõem. Podemos assinalar este desenvolvimento a partir do
número impressionante de instrumentos jurídicos que existem neste âmbito e das
matérias que por eles são cobertas. Contudo, mais decisivas são as suas características
inovadoras – alicerçadas nos tratados constituintes –, aquelas que, afinal, permitem
afirmar que, na União Europeia, se superou o paradigma clássico da cooperação
internacional.
O paradigma em que se baseia, na União Europeia, a cooperação judiciária em
matéria penal é, por um lado, o do reconhecimento e confiança mútuos e, por outro, o da
subsidiariedade81 – os Estados atribuem competências penais e processuais penais à
União, mas apenas na medida do necessário para a prossecução dos interesses que são
comuns. É à luz deste paradigma que se pode compreender o nível de cooperação
atingido na União Europeia e as suas características distintivas, que fomos apontando ao
longo deste trabalho. É também a partir dele que se pode perspectivar o futuro
81 V. os artigos 4.º e 5.º do TUE.
28
desenvolvimento – e as suas limitações – da cooperação judiciária em matéria penal na
União Europeia: o alargamento das funções da Eurojust, a instituição de uma
Procuradoria Europeia, a harmonização de certos elementos das legislações penais e
processuais dos Estados-Membros, por exemplo. Ora, se o reconhecimento mútuo é um
princípio normativo, a confiança mútua é uma realidade em que o primeiro se baseia.
Como realidade, pode ou não verificar-se, não devendo ser meramente postulada. Pelo
contrário, deverá ser continuamente reforçada por medidas concretas da União Europeia
– dentro dos limites do princípio da subsidiariedade – e dos Estados-Membros, em todas
as vertentes que compõem o espaço de liberdade, segurança e justiça.
Tendo esta necessidade em conta, é de saudar que o Conselho Europeu, no
Programa de Estocolmo, aprovado em 4 de Maio de 2010, que define a agenda da União
Europeia no domínio do espaço de liberdade, segurança e justiça para o período de 2010
a 2014, tenha dado particular destaque ao reforço da confiança mútua – em todas as
vertentes do espaço de liberdade, segurança e justiça –, estabelecendo-o como uma das
principais prioridades políticas da União (v. o n.º 1.2.1. do Programa). Essa prioridade é
depois concretizada em propostas mais delimitadas, em diferentes domínios. Assim,
para dar dois exemplos emblemáticos na área dos direitos fundamentais e da justiça, o
Conselho Europeu propõe a adesão da União à Convenção Europeia para a Protecção
dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (2.1.)82, com reflexos em toda a
actividade da União e, portanto, também nos Estados-Membros, e estabelece como
objectivo o reforço dos direitos dos indivíduos no processo penal (2.4.), algo que já
vinha sendo reivindicado por vários autores.83 Por outro lado, são também estabelecidos
diversos objectivos no âmbito da segurança interna da União – nomeadamente no
tocante à luta contra a criminalidade organizada – e da cooperação judiciária em matéria
penal. Neste plano, tem particular destaque a associação da prossecução da aplicação do
princípio do reconhecimento mútuo – «que poderá ser alargado a todos os tipos de
sentenças e decisões judiciais que, em função do sistema jurídico, podem ser penais ou
administrativas» (3.1.1.) – ao reforço da «confiança mútua nos sistemas jurídicos dos
Estados-Membros», através do estabelecimento de direitos mínimos e de «regras
mínimas relativas à definição de infracções penais e sanções» (3.).
82 Adesão já prevista no art. 6.º, n.º 2, do TUE, mas ainda não concretizada. 83 V., por exemplo, Pedro Caeiro, “Cooperação Judiciária na União Europeia”, in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, Vol. III, Coimbra: Coimbra Editora, 2009, pp. 76 e ss.
29
Tendo em conta as medidas que prevê em relação ao reforço da confiança mútua
e do equilíbrio entre as três vertentes do espaço de liberdade, segurança e justiça, a
implementação – no novo enquadramento que resulta do Tratado de Lisboa – do
Programa de Estocolmo é essencial para o sucesso da União Europeia no que respeita ao
combate à criminalidade organizada e ao desenvolvimento da cooperação judiciária em
matéria penal.
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