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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
DANIEL MOUTINHO SOUZA
MENTIRAS SINCERAS: REALIDADES E IDENTIDADES NAS METAFICÇÕES
A AUDÁCIA DESSA MULHER E CORDILHEIRA
RIO DE JANEIRO
2015
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MENTIRAS SINCERAS: REALIDADES E IDENTIDADES NAS
METAFICÇÕES A AUDÁCIA DESSA MULHER E CORDILHEIRA
Daniel Moutinho Souza
Número de volumes: 1
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
quesito para a obtenção do Título de Mestre em
Ciência da Literatura (Literatura Comparada).
Orientador: Prof. Dr. Eduardo de Faria Coutinho
Rio de Janeiro 2015
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SOUZA, Daniel Moutinho.
Mentiras sinceras: realidades e identidades nas metaficções A audácia dessa
mulher e Cordilheira. / Daniel Moutinho Souza. Rio de Janeiro: UFRJ, 2015.
Xi, 133 f.:Il;31cm.
Orientador: Eduardo de Faria Coutinho
Dissertação (Mestrado) – UFRJ / Programa de Pós-Graduação em Ciência
da Literatura / Literatura Comparada /2015
Referências bibliográficas: f.128-133.
1.Literatura Brasileira. 2.Metaficção. I. Coutinho, Eduardo de Faria. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em
Ciência da Literatura. III. Título.
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Mentiras sinceras: realidades e identidades nas metaficções A audácia dessa
mulher e Cordilheira
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Literatura (Literatura Comparada) da Faculdade de Letras da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Literatura Comparada (Ciência da Literatura).
Examinada por:
__________________________________________________
Presidente, Prof. Doutor Eduardo de Faria Coutinho – UFRJ
__________________________________________________
Prof. Doutor
__________________________________________________
Prof. Doutor
__________________________________________________
Prof. Doutor, suplente
__________________________________________________
Prof. Doutor, suplente
Rio de Janeiro
Novembro de 2015
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Pequenas porções de ilusão
Mentiras sinceras me interessam
Me interessam...
Cazuza, Maior abandonado
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DEDICATÓRIA
Esta dissertação é dedicada a Maria Capitolina de Pádua e a Jupiter Irrisari (in memoriam).
E ao Henrique, minha maior ficção de amor real.
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AGRADECIMENTOS
À Vanessa Seigarro, pelo amor e apoio incondicionais em todas as fases dessa aventura.
Ao Rafael Ottati, amigo de todas as horas, almoços, leituras e assuntos.
Não há exagero nem favor em dizer que, sem eles, este trabalho simplesmente não existiria.
Ao meu orientador, Prof. Eduardo F. Coutinho – pela incalculável contribuição para
transformar ideia em projeto, projeto em dissertação – enfim, para transformar pensamento
em linguagem, e linguagem em realidade.
Ao meu pai e à minha mãe, pelo permanente incentivo à leitura, à cultura, à troca
democrática de ideias e respeito à diversidade nos ambientes familiares – e aos meus avós
Helvio, Daisy, Caetano e Carmen, quatro personalidades bem distintas, cada um à sua
maneira e todos em favor do conhecimento .
A todos os professores de minha trajetória escolar e universitária, em especial os de
Literatura – João Paulo, Liliane, Adriana, Paulo Roberto, Lúcio, Tatiana, Wander, Nádia,
Leonardo Bérenger, Leonardo Mendes, Marcello, Iza, Regina, Fernando, Armando.
Aos professores e colegas do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura, pelos
questionamentos, discussões, debates, leituras e escritas que enriquecem nossos encontros.
At last but not least, a todos meus alunos, eternos laboratórios de ideias, hipóteses,
interpretações, questionamentos...
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RESUMO
SOUZA, Daniel Moutinho. Mentiras sinceras: realidades e identidades nas metaficções A
audácia dessa mulher e Cordilheira. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em
Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2015.
O homem criou a linguagem para falar sobre o mundo; a metalinguagem, para falar sobre a
linguagem; e a ficção, para criar outros mundos. Quando estas duas últimas se reúnem,
configurando a metaficção, um paradoxo se instaura, pois os limites entre a ficção e a
realidade se confundem. Esse processo, observado desde a origem do romance como gênero
narrativo, tem se intensificado com inovações nas estratégias metaficcionais na
contemporaneidade, sobretudo na medida em que a filosofia da linguagem e a linguística
passaram a considerar como fundamento da linguagem não a representação do mundo, mas
sim a sua própria criação. Ao atribuir à linguagem cotidiana o mesmo caráter de criar
realidade que possui a ficção, o paradoxo se aprofunda. Este trabalho tem como objetivo
analisar e comparar a estrutura metaficcional de dois romances publicados recentemente no
Brasil: A audácia dessa mulher, de Ana Maria Machado (1999), e Cordilheira, de Daniel
Galera (2008). Ademais, ambas as obras tematizam relações de gênero e representações do
feminino – a primeira delas escrita por uma mulher, a outra por um homem (mas com
narradora feminina). Em vista disso, discute-se também como as identidades femininas são
abordadas em cada um dos romances.
PALAVRAS-CHAVE: Metaficção; Identidades; Autoria feminina; Relações de gênero;
Romance brasileiro contemporâneo.
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ABSTRACT
SOUZA, Daniel Moutinho. Mentiras sinceras: realidades e identidades nas metaficções A
audácia dessa mulher e Cordilheira. Rio de Janeiro, 2015. Dissertação (Mestrado em
Literatura Comparada) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2015.
Mankind has created language to talk about the world; metalanguage to talk about language,
and fiction to create other worlds. When language and fiction get together to form
metafiction, there occurs a paradox, for the limits between fiction and reality are mixed up.
This process, which can be observed since the origin of the novel as a narrative genre, has
become more frequent due to new metafictional strategies employed in the present time,
especially after Linguistics and the Philosophy of Language came to consider language not
as the representation of the world but rather as a creation of its own. By attributing to
everyday language the same condition of creating reality that fiction has, the paradox above
mentioned becomes more evident. The aim of the present study is to analyze and compare
the metafictional structure of two novels recently published in Brazil: A audácia dessa
mulher, by Ana Maria Machado (1999), and Cordilheira, by Daniel Galera (2008). Since
both these novels also deal with gender relations and feminine representations—the first one
is written by a woman, and the other by a man (but with a female narrator)—it will also be
discussed how feminine identities are approached in each novel.
KEY WORDS: Metafiction; Identities; Female writing; Gender relations; Brazilian
contemporary novel.
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SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO 12
2. (META)FICÇÃO, LINGUAGEM E REALIDADE 20
2.1. METALINGUAGEM E METAFICÇÃO 23
2.1.1. Metaficção e pós-modernismo 23
2.1.2. O longo percurso metaficcional 25
2.1.3 Metaficção vs. Realismo 30
2.2. REALIDADE, LINGUAGEM, FICÇÃO 32
2.2.1 A realidade da ficção 36
2.2.2 A realidade como ficção 41
2.2.3 A construção da história 46
3. DOIS MACHADOS, UMA SÓ CAPITU 49
3.1. QUATRO MODALIDADES DE METAFICÇÃO 51
3.1.1 “Babushka” 51
3.1.2 Metaficção explícita: quem fala ao leitor? 52
3.1.3 Mistura de linguagens 55
3.1.4 Intertextualidade como recurso metanarrativo 56
3.2. FORTUNA CRÍTICA: ESTUDOS POUCO AUDACIOSOS 59
3.3 IDENTIDADES FEMININAS EM A AUDÁCIA DESSA MULHER 61
3.3.1 Bia 62
3.3.2 Ana Lúcia 64
3.3.3 D. Lourdes 66
3.3.4 Capitu-Lina: nova identidade marcada no (e pelo) discurso 67
3.4 ESPELHOS PERPENDICULARES 81
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4. LE GUSTABA MUCHO MIRAR LA CORDILLERA... 85
4.1 PERSONAGENS DE SI MESMOS 86
4.1.1 Irrisari, um caso particular 93
4.2 FORTUNA CRÍTICA: CORDILHEIRA INEXPLORADA 95
4.3 LITERATURA COMO PERFORMANCE 97
4.4 IDENTIDADES FEMININAS EM CORDILHEIRA 102
4.4.1 Anita 102
4.4.2 Ajax 106
4.4.3 Malena 107
4.5 ESCRITA FEMININA? 108
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS – ESCREVER É ESPECULAR 114
6. REFERÊNCIAS 126
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1. INTRODUÇÃO
Too real is this feeling of make-believe
Too real when I feel what my heart can’t conceal
(Buck Ham, The great pretender)
Em Saneamento básico – O filme, dirigido por Jorge Furtado (2006), uma família
habitante de uma pequena cidade na serra gaúcha convive com o mau cheiro de uma fossa.
Eles procuram a autoridade competente, a qual lhes informa que não há verba prevista no
orçamento daquele ano para esse tipo de obra. No entanto, diz uma servidora, há uma quantia
prevista para ser gasta com Cultura, para se produzir um filme, e que não foi reivindicada
por ninguém. Ela pode liberar esse dinheiro, mediante a contrapartida de que inscrevam um
filme de ficção em um festival local.
O casal, vivido por Wagner Moura e Fernanda Torres, aceita o desafio e passa a
“tocar” a obra de saneamento ao mesmo tempo em que produz o filme com baixíssimo
orçamento – as sobras da verba pública mais alguns recursos próprios –, mas não sem antes
se deparar com uma questão crucial: “O que é ficção?” é a pergunta transmitida a amigos e
familiares.
“É história que se passa no futuro”, responde um personagem, ao mesmo tempo em
que outro afirma ser “filme de monstro...”. O efeito cômico nasce, naturalmente, da confusão
entre o conceito de “ficção” e o que se consagrou sob o nome de “ficção científica”, mas
encerra, ao mesmo tempo, uma questão radical e de difícil resposta: O que é ficção, afinal?
O primeiro impulso é opô-la à “realidade”. A ficção corresponderia a uma “mentira”,
a algo que não existe – monstros e/ou cenários futuristas incluídos, mas não apenas isso –,
enquanto a realidade abarcaria o que fosse verídico, experimentado pelos seres humanos.
Essa é, grosso modo, a distinção que se encontra entre “Poesia” e “História” na Arte Poética
de Aristóteles. No entanto, diante de sofisticados recursos de representação linguística e
tecnológica (no campo da realidade virtual, para citar um exemplo), esses conceitos e a
relação entre eles precisam ser repensados.
Com efeito, algumas das respostas mais contundentes a tal pergunta são encontradas
não em discursos teóricos ou filosóficos – atrelados à “realidade”, mas não mais que
representações linguísticas, tanto quanto quaisquer obras literárias, qualquer texto ficcional
–, mas quando a ficção se debruça sobre si mesma, em exercícios metalinguísticos que não
raro esbarram na relação entre ela e a “realidade”.
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É o que ocorre na obra comentada acima. O subtítulo “O filme” classicamente
anuncia adaptações cinematográficas de obras que já obtiveram sucesso em outras mídias –
Superman (histórias em quadrinhos) e Divã (peça de teatro) são exemplos. No entanto, não
é o caso de Saneamento básico, que é originalmente cinematográfico. Aqui, trata-se de uma
indicação metalinguística que replica o que será feito no enredo: um filme dentro do filme.
O título da obra, por sinal, lida duplamente com a oposição tradicional entre o real e
o ficcional. Além de se admitir como filme, como construção artística, a expressão
“saneamento básico” refere-se a um problema prático, a um incômodo da vida concreta – o
mau cheiro que vem das fossas mal projetadas ou defeituosas; “O filme” remete a um cenário
de lazer, de fantasia, àquilo a que recorremos para fugir das mazelas do dia a dia. Além disso,
a obra de Jorge Furtado discute o papel da cultura entre as prioridades das políticas de Estado,
quando propõe que haja dinheiro para fazer um filme mas não para uma obra de saneamento
básico, isto é, de saúde pública. A arte é, então, fuga da realidade, lazer, ou é necessidade
básica? Com efeito, muitas vezes, é na ficção, ou mais especificamente na metaficção, que
nos deparamos com questões centrais acerca da representação e da construção da realidade
cotidiana.
Este trabalho se propõe investigar dois romances da literatura brasileira recente que
lidam com a metalinguagem. A audácia dessa mulher, de Ana Maria Machado (1999), e
Cordilheira, de Daniel Galera (2008), levantam esse tipo de questão sobre a representação
literária e sobre as relações entre realidade e ficção. Nosso objetivo de modo algum poderia
ser o de esgotar a interpretação dessas obras – pelo próprio fato de serem literárias, elas são
por princípio inesgotáveis –, mas observamos que a fortuna crítica que já acumularam não
se aprofunda nos seus aspectos metalinguísticos e, com isso, deixa de considerar elementos
relevantes para a compreensão de ambos.
A seleção de um corpus de estudo em literatura contemporânea é uma tarefa delicada,
visto que uma característica central da produção atual é a multiplicidade, a “heterogeneidade
em convívio, não excludente” (RESENDE, 2008, p.18). Therezinha Barbieri reflete em
sentido semelhante no livro Ficção impura:
...pergunto-me se não seriam tantas as contemporaneidades quantos são os
ficcionistas originais que despontam no horizonte de nosso tempo. Mas, de
imediato, me dou conta de que é da diversidade de visões, mais ou menos
concomitantes, que se forma aquilo que se chama contemporaneidade.
(BARBIERI, 2003, p.80)
14
Pode-se citar como exemplo o V Encontro do Fórum de Literatura Brasileira
Contemporânea: Edição Digital, realizado na Faculdade de Letras da UFRJ em setembro de
2014. Das 69 comunicações apresentadas, 56 abordaram a obra de um ou dois autores
específicos; nestas, discutiu-se a produção de 46 escritores diferentes, a maioria de prosa de
ficção1. Tal diversidade é bastante positiva, uma vez que cabe precisamente às Universidades
a avaliação sobre a produção cultural, e ela significa que as pesquisas acadêmicas estão
abrindo espaço para os mais variados estilos. Por outro, cria-se o risco de um “vale tudo”,
em que preferências pessoais podem suplantar critérios científicos.
Em vista disso, vale a pena explicitar os critérios a que as escolhas deste trabalho
obedeceram: 1- a semelhança quanto à opção pela forma metaficcional; 2- o fato de que a
metalinguagem ocorre, em cada um dos textos, de modos diferentes. Deste modo, esta
pesquisa terá um perfil comparatista, estabelecendo aproximações e distanciamentos entre
os romances na tentativa de enriquecer o entendimento sobre cada um deles.
Aos dois casos expostos, de ordem estrutural do corpus, se somam dois outros, de
caráter biográfico:
3- São autores e obras que se encontram em contextos quase opostos,
complementares:
A carioca Ana Maria Machado, nascida em 1941, publicou A audácia dessa mulher
aos 58 anos de idade, já escritora consagrada por público e crítica. É autora de mais de 150
títulos infanto-juvenis; em 2000, recebeu o prêmio Hans Christian Andersen, tido como o
mais importante do mundo nesse universo, e um ano depois, o Machado de Assis, da ABL,
pelo conjunto de sua obra. Seu website2 organiza sua obra em Infantil (141 títulos), Juvenil
(23), Ficção (10), Ensaios (9) e Coleções (21 itens). O termo Ficção identifica seus romances
dirigidos ao público adulto, dos quais A audácia dessa mulher é o sexto título.
O primeiro deles foi Alice e Ulisses, em 1983, ano em que Daniel Galera completou
quatro anos de vida. O escritor paulistano passou a maior parte da vida em Porto Alegre,
onde fundou a editora independente Livros do Mal. Por ela, lançou seu livro de contos
Dentes guardados (2001) e seu primeiro romance, Até o dia em que o cão morreu (2003),
depois reeditado pela Companhia das Letras. Desde então, a editora paulista publicou seus
outros três romances: Mãos de cavalo (2006), Cordilheira (2008) e Barba ensopada de
1 Dentre eles está “Estudo da metalinguagem em A audácia dessa mulher, de Ana Maria Machado”, resultado
parcial de nossa pesquisa sobre este romance. 2 http://www.anamariamachado.com/livros. Acesso em 14.fev.2015.
15
sangue (2012), além da graphic novel Cachalote (2010), em parceria com Rafael Coutinho.
Cordilheira é, portanto, o livro de um autor que começava a ter reconhecimento no campo
literário do país. É o primeiro título da coleção Amores Expressos, na qual a Companhia das
Letras convidou 16 autores, de idades e perfis variados, para passar um mês em uma cidade
estrangeira e, da experiência, escrever uma história de amor – além de manter um blog sobre
a viagem e participar de um vídeo falando sobre a experiência.3 A pesquisadora Agnes
Rissardo enxerga a coleção dentro de um contexto de “autores contemporâneos que, na
última década, expandiram fronteiras geográficas e/ou imaginárias como condição para a
criação literária”, ao lado de exemplos como Chico Buarque (Budapeste, 2003), Edney
Silvestre (Vidas provisórias, 2013), Paloma Vidal (Mais ao sul, 2008, Algum lugar, 2009,
Mar azul, 2012) e Bernardo Carvalho (Mongólia, 2003, e O sol se põe em São Paulo, 2007)
(RISSARDO in BASTOS et al. (orgs.), 2015, pp.107-8).
Cordilheira foi agraciado com o prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca
Nacional de melhor romance de 2008, o mesmo recebido por A audácia dessa mulher nove
anos antes.
4- A última razão diz respeito à biografia do próprio pesquisador. As leituras dessas
duas obras foram experiências intensas, catárticas e de grande incômodo. Essa intensidade e
essa catarse são experiências possíveis e acessíveis a qualquer leitor diante de quaisquer
textos – e aí está um dos maiores encantos da atividade de leitura. Os “incômodos” que cada
livro produziu aparecerão oportunamente neste trabalho, quando nos ocuparmos da análise
de cada um; eles são o elemento que permitiu que fossem pensadas questões teóricas e se
conseguisse evoluir de uma leitura “leiga” para um estudo acadêmico. É importante para
esta pesquisa o fato de ter partido de uma experiência comum de leitor: diante de uma
realidade sociocultural – e até escolar – que tem afastado a literatura da vivência cotidiana,
desvalorizando-a como produto cultural e relegando-a a uma espécie de gueto, de atividade
para um grupo restrito de iniciados, tentamos trazer para a universidade um pouco do contato
mais primitivo e mais radical do convívio com o texto: a desestabilização das expectativas e
o prazer decorrente dela.
Parte dessa desestabilização provém, no nosso corpus, da metalinguagem, a qual tem
sido objeto de debates calorosos nas últimas décadas. Uns a consideram como um traço da
3 Até o momento dez títulos da série já foram publicados. Os vídeos, com entrevistas dos autores, estão
disponíveis no site YouTube e já foram exibidos pelo canal a cabo Arte 1. A relação de livros da série pode
ser conferida no endereço eletrônico
http://www.companhiadasletras.com.br/busca.php?b_categoria=096&b_filtro=livro
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ficção recente, em especial do chamado “pós-modernismo”, outros observam que ela é quase
tão antiga quanto a própria literatura. Alguns a consideram um sinal de renovação e
revitalização da produção literária, ao propor a reflexão sobre a expressão dentro do texto,
outros a veem como recurso estéril, devido a seu caráter autorreferente.
A presente Dissertação parte da hipótese de que a estratégia/estrutura metaficcional,
construída de maneiras diferentes nos dois romances selecionados como corpus, contribui
em ambos os casos para amplificar o potencial significativo e expressivo das obras, ao
problematizar tanto a construção da ficção e da realidade (e a relação entre elas) quanto a
(in)definição da identidade das personagens.
Apresentamos, a seguir, um resumo dos enredos dos dois romances como forma de
ensejar as questões comuns a eles, a serem desenvolvidas posteriormente.
Em A audácia dessa mulher, a protagonista Bia é uma jornalista que escreve sobre
viagens e é convidada para prestar consultoria à produção de uma telenovela (ou minissérie)
de época. A obra, intitulada “Ousadia”, é ambientada na segunda metade do século XIX e
sua trama central é bastante semelhante à de Dom Casmurro, de Machado de Assis,
tematizando o ciúme e o adultério, conforme os protagonistas percebem (MACHADO, 1999,
p.23).
Bia se envolve com um chef de cozinha, Virgílio, que também está colaborando com
o programa de tevê. Ao mesmo tempo, as subtramas do romance trazem visões distintas
sobre o ciúme. A própria jornalista demonstra sentimentos ambíguos entre seu envolvimento
com Virgílio e outro relacionamento, com Fabrício. A secretária de Bia, Ana Lúcia, tem um
namorado que quer impedi-la de concluir a universidade e de conviver com alguns amigos
– e, portanto, de evoluir pessoal e profissionalmente. No eixo central do enredo essas
questões são mais evidentes. Virgílio empresta a Bia um antigo caderno de receitas, herança
de sua família. Ao começar a lê-lo, ela percebe que o volume contém também o diário de
uma menina que viveu no século XIX. A jornalista se afeiçoa à autora do diário, inicialmente
identificada como “Lina” e, no clímax do romance, revelada como a própria Capitu
machadiana numa carta que esta teria escrito à amiga Sancha em 1911, detalhando sua vida
na Europa após a separação de Bentinho.
Em resumo: a protagonista colabora com uma minissérie baseada em (ou plagiada
de) Dom Casmurro, ao mesmo tempo em que lê o diário de Capitu. Esses dois textos,
minissérie e diário, são dois outros planos narrativos e refletem as situações de traições e
ciúme experimentadas pelos protagonistas de Ana Maria Machado. A entrada de Capitu e
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do universo de Dom Casmurro promove um abalo no romance, pois representam a presença
de personagens de ficção entre outros que se acreditam reais. Esse entrelaçamento é
amplificado pelo uso da metalinguagem explícita pela voz narrativa do romance, que dialoga
com o leitor e chama sua atenção para o caráter fictício da obra e dos personagens.
A construção de Cordilheira é significativamente distinta. A narração se dá em
primeira pessoa sem interrupções por parte de outras vozes, salvo um prólogo e um epílogo,
ambos curtos, em terceira pessoa. A narradora Anita publicara, antes dos trinta anos de idade,
um romance premiado. No início de sua narrativa, ela está desistindo da carreira literária
para se dedicar a ter um filho. Essa ideia precipita o fim de seu namoro com Danilo ao mesmo
tempo em que ela é convidada para o lançamento da tradução castelhana de seu livro, em
Buenos Aires. Ela segue para a Argentina em busca de se consolar do fim do relacionamento
e, quem sabe, concretizar seu sonho de maternidade. No evento de lançamento de seu livro,
Anita pede que seu editor leia para o público presente o último capítulo do romance, no qual
a protagonista Magnólia está com o namorado em uma praia deserta, num dia chuvoso, e o
texto dá a entender que ela o empurra do alto de um penhasco para o mar.
Um ouvinte questiona por que Magnólia empurrou o namorado. Anita se esquiva da
pergunta, e dias depois este homem a procura e se apresenta como José Holden. Eles iniciam
um relacionamento e, apesar dos mistérios sobre sua vida pessoal, ela se muda para a casa
dele e começa a conhecer seus amigos. Estes se reúnem nos fins de semana para debater
literatura. Anita descobre que todos já escreveram pelo menos um livro e são seguidores do
escritor guatemalteco Jupiter Irrisari. Holden explica a Anita que esse autor “concebia
personagens, traçava alguns elementos básicos de sua história e os incorporava. (...) Ele
simplesmente passava a agir como o personagem. Não avisava ninguém, não eram
apresentações” (Ibid., pp.95-6). Com o tempo, Anita descobre que Holden e seus amigos
faziam exatamente isto: reuniam-se numa espécie de seita em que interpretavam, no
cotidiano, suas próprias criações. Quando ela lê o romance de Diego Parisi (nome verdadeiro
de seu namorado), entende o porquê da pergunta dele em seu primeiro encontro. No livro, o
personagem José Holden funda uma seita filosófica e literária e tenta transformá-la numa
religião. Para driblar a desconfiança dos amigos, oferece-se para um sacrifício na Patagônia.
Por isso, Parisi quer que Anita incorpore a protagonista do romance dela (Magnólia) para
matar o dele (José Holden).
Portanto, aqui a metalinguagem se apresenta de maneira implícita, no fato de que os
personagens são escritores e as obras produzidas por eles interferem no plano principal da
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narrativa. Pode-se observar que essas diferentes estratégias metaficcionais convergem em
pelo menos dois elementos:
1º, a reconfiguração de identidades. No primeiro caso, Capitu, quando sai do Brasil
e se separa de Bentinho, assume a outra parte de seu nome, Lina, como sinal da mudança em
sua vida; no segundo, os escritores argentinos abdicam de suas identidades (nomes, famílias
e até aparência física) em prol da de seus personagens;
2º, a mistura entre realidade e ficção. No texto de Ana Maria Machado, a revelação
de que o diário é de Capitu faz com que Bia e Ana Lúcia se vejam em uma dúvida existencial:
como podem pertencer ao mesmo universo que uma personagem de ficção? No de Daniel
Galera, quando Anita entende a lógica da seita de escritores, percebe que vinha convivendo
não com as pessoas que imaginava, mas com criações ficcionais deles.
Outras questões perpassam as duas obras. A primeira é a do ponto de vista feminino
– curiosamente, um escrito por mulher, outro por homem. Em A audácia dessa mulher, a
perspectiva é sempre a feminina, seja o das personagens centrais ou da própria voz narrativa,
que se confunde entre um(a) narrador(a) e a própria autora. Em Cordilheira, tem-se uma
narradora-protagonista que é, além de mulher, escritora, e o romance escrito por ela é
essencial para os rumos do enredo. Em ambos os textos, discutem-se as conquistas e os
problemas femininos e as expectativas da sociedade em torno das mulheres – tema central
em Ana Maria Machado e secundário em Daniel Galera. Neste último, vale ressaltar que se
trata de um discurso feminino escrito por um homem, mais um elemento de contraste entre
os romances e que abre espaço para uma discussão em torno da existência ou não de uma
“literatura feminina” distinta de uma “masculina”.
Deste modo, este estudo principiará por uma revisão histórica e teórica acerca do
fenômeno metanarrativo e suas decorrências no que concerne ao corpus do trabalho. Em
seguida, apresentaremos uma revisão da literatura sobre a relação entre realidade, ficção e
representação, tanto do ponto de vista da teoria literária quanto de outros campos do
conhecimento, tais como a filosofia, a linguística, a sociologia e a história. Essa revisão não
tem a pretensão totalizante – o que extrapolaria as dimensões deste estudo, dada a
complexidade do tema –, mas de lançar luz sobre os aspectos a serem analisados no corpus
literário. Na medida em que A audácia dessa mulher e Cordilheira tratam de conflitos
identitários, uma síntese de problemas teóricos contemporâneos em torno do tema se faz útil,
com ênfase na questão da identidade feminina, especificamente no âmbito da literatura.
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Em seguida, debateremos A audácia dessa mulher e Cordilheira separadamente,
como forma de aprofundar as ideias acerca de cada um deles. O capítulo de Considerações
Finais englobará três aspectos: comparação, crítica e conclusões. Na primeira, será feito o
confronto entre as questões comuns às duas obras e as diferenças e semelhanças na
abordagem delas. Em seguida, pretendemos arriscar um esforço crítico, porém não como
forma de afirmar uma visão pessoal sobre as obras em tela. A proposta deve-se ao fato,
observável nas últimas décadas, de que a universidade tornou-se o lugar privilegiado de
avaliação crítica do meio literário, a partir de uma progressiva profissionalização desta
atividade, que fez com que a imprensa escrita deixasse de ocupar essa função. Também se
justifica porque o fato de termos escolhido tais romances como objeto de estudo não significa
que os vejamos como livres de defeitos, tampouco que as questões teóricas que levantamos
esgotem o que pode ser dito sobre elas. Outra razão para esse procedimento é deixar explícito
que toda teorização, sobretudo em ciências humanas, parte de um posicionamento pessoal
do pesquisador; não admitir essa condição equivale a fazer com que o discurso tente ser lido
como uma espécie de “Verdade”, eterna e absoluta, quando partimos do pressuposto
contrário: que toda realidade é construída em torno de versões sujeitas a transformações no
tempo, tanto no plano individual quanto sociocultural.
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2. (META)FICÇÃO, LINGUAGEM E REALIDADE
La historia es una red y no una vía
(Jorge Drexler, El otro engrenaje)
No início do filme Desejo e reparação (Atonement, dirigido por Joe Wright, 2007),
corre o dia mais quente do ano de 1935 e Briony Tallis acaba de escrever sua primeira peça
de teatro. Ela tem 13 anos de idade e quer encená-la mais tarde, em companhia de três primos
que se hospedam em sua casa, quando seu irmão mais velho virá visitar a aristocrática e
decadente família em companhia de um amigo, um empresário milionário. Porém a peça terá
de esperar. Os primos aparentemente não querem atuar, e outros acontecimentos desviarão
a atenção dela e da família.
Briony vê da janela de seu quarto uma cena ambígua envolvendo sua irmã Cecilia e
Robbie, filho de uma empregada da casa. Mas o que lhe parece um encontro sensual é, na
verdade, um episódio inocente. Mais tarde, Robbie pede à menina que entregue à irmã uma
carta, mas por engano lhe dá uma mensagem pornográfica que havia escrito. Briony a lê e
se convence de que o rapaz é um maníaco sexual. Já à noite, ela vê Cecilia e Robbie fazendo
sexo na biblioteca da casa, pensa que é um estupro, sem saber que o casal acabara de se
descobrir apaixonado.
Durante o jantar, os dois primos gêmeos desaparecem. Grupos são formados para
procurá-los em torno da casa. Na busca, Briony encontra a prima Lola violentada no jardim
e um vulto masculino em fuga. É o suficiente para ela, num misto de ciúme da irmã e
imaginação criativa, acusar Robbie e mostrar a carta interceptada à tarde como “prova”.
Robbie vai para a prisão e, alguns anos depois, tem a opção de se alistar no exército.
Cecilia torna-se enfermeira e deixa de ter contato com sua família. Ela e o rapaz chegam a
se encontrar antes de ele partir para a guerra. No final do filme, o espectador assiste a uma
entrevista da escritora Briony Tallis já idosa e prestes a lançar seu 21º e último romance,
intitulado Atonement (literalmente, “reparação”). Ela conta que Robbie morreu na guerra e
Cecilia faleceu no mesmo ano que ele, numa explosão no metrô de Londres, e que em seu
livro narrou finalmente a verdade dos fatos que presenciara. Mas alterou o final para que a
irmã e Robbie pudessem ter a felicidade que lhes fora negada em vida devido ao erro de
Briony. O título do romance de Briony, então, que é o mesmo do de Ian McEwan e do próprio
filme (em inglês), corresponde a essa tentativa de corrigir com a ficção um erro cometido na
realidade.
21
Ora, por um lado, na chamada “vida real”, essa “reparação” seria evidentemente
impossível; por outro, o fato de se tratar de um livro dentro de outra obra cria uma reflexão
interessante: Cecilia e Robbie são personagens criados pela ficção de Ian McEwan e
verdadeiros somente neste universo e no filme. Desse modo, é possível dizer que, sim, eles
podem ser redimidos, “reparados”, pela ficção de Briony Tallis. Afinal, suas mortes,
projetadas pelo autor, são tão ficcionais quanto o final feliz escrito pela personagem.
Interessantemente, o romance de McEwan tem um final diferente do filme que
inspirou. Desde o início, a ficção de Briony espelha a realidade (ficcional) à sua volta. O
tema da peça escrita pela adolescente é a questão de como “todo amor que não fosse fundado
no bom senso estava fadado ao fracasso” (McEWAN, 2011, p.10), de maneira que anuncia
a tragédia de Cecilia e Robbie. A jovem escritora é descrita como “uma dessas crianças
possuídas pelo desejo de que o mundo seja exatamente como elas querem” (Ibid., p.11). Eis
a própria condição do ficcionista: criar um universo próprio em que valem as suas próprias
regras e critérios, uma forma de ordenar o caos do mundo exterior. O romance de McEwan
é metaficcional quando Briony está em evidência, devido a sua pretensão literária, pois sua
imaginação é moldada pela forma como descreveria os episódios que presencia – e nesse
aspecto reside quase todo seu encanto, pois em outros momentos torna-se sentimental demais
e possui um ritmo arrastado.
Durante a guerra, Briony trabalha como enfermeira num hospital londrino, a exemplo
da irmã. A certa altura, recebe uma carta de uma editora à qual submetera a novela Dois
vultos juntos a uma fonte, na qual narra o episódio definidor de sua vida, mas cujos
protagonistas foram outros, e ela apenas observadora. Percebe-se que as sugestões do editor
são aceitas por ela e formam o próprio texto de Ian McEwan. Mais tarde ela presencia o
casamento de sua prima Lola com o milionário Paul Marshall, adquirindo ainda maior
certeza da injustiça que cometera contra Robbie, e vai à casa de sua irmã Cecilia. Nesta,
ocorre um diálogo repleto de ressentimentos entre as duas e Robbie, que voltara da guerra.
A Terceira Parte de Reparação termina com a inscrição “BT / Londres, 1999”, como
se tudo o que se leu até ali fosse obra de Briony Tallis. Segue-se um epílogo narrado pela
própria Briony no dia do seu aniversário de 77 anos, em que é convidada a participar de uma
comemoração em família num hotel que funciona na casa onde ela passara a infância, cenário
dos episódios iniciais do romance. No encontro, finalmente é encenada sua peça, inédita
desde 1935. Ela conta que escreveu novas versões de Dois vultos..., tendo decidido não
falsificar nada, nem sequer nomes de lugares e personagens. Porém não pode publicá-lo
22
enquanto o rico e influente casal lorde e lady Marshall estiver vivo, pois certamente a
processaria. Somente na última página Briony revela que a irmã e Robbie haviam morrido
em 1940 e este fora o único elemento inverídico de sua narração:
Depois que eu morrer, e que os Marshall morrerem, e o romance for finalmente
publicado, nós só existiremos como invenções minhas. Briony será uma
personagem tão fictícia quanto os amantes que dormiram na mesma cama em
Balham (...). Ninguém estará interessado em saber quais os eventos e quais os
indivíduos que foram distorcidos no interesse da narrativa. Sei que haverá sempre
um tipo de leitor que se sente obrigado a perguntar: mas, afinal, o que aconteceu
de verdade? A resposta é simples: o casal apaixonado está vivo e feliz. Enquanto
restar uma cópia, um único exemplar datilografado de minha versão final, então
minha irmã espontânea e afetuosa e seu príncipe médico haverão de sobreviver no
amor. (Ibid., p.269, itálico no original)
Assim, explicita-se a dúvida que expusemos: a “reparação” nesses termos é possível
ou não? Ela é “real” ou apenas intencional? Deste modo, as duas obras, filme e romance, são
exemplares do paradoxo metanarrativo de que este trabalho se ocupa, em que a
autorreferência cria problemas lógicos entre planos de realidade e ficção. Como na tirinha
apócrifa que circula na internet:
Nela, o personagem passa da euforia de encontrar um “biscoito da sorte” caído no
chão à alegria de ler uma tirinha em quadrinhos, e finalmente à estupefação de se ver
retratado nela, de ser uma tirinha em quadrinhos – como personagem de uma ficção. O efeito
é similar ao de um jogo de espelhos posicionados frente a frente, gerando imagens-cópia ad
infinitum (3º quadrinho). É dessas “cópias”, ou “simulacros”, e de seu potencial criativo que
trataremos adiante.
2.1 Metalinguagem e metaficção
Roman Jakobson, no hoje clássico estudo Linguística e comunicação, aprofunda a
distinção, proposta por Rudolf Carnap, entre “linguagem-objeto” e “metalinguagem”
23
(JAKOBSON, 1977, p.21 e 127). A primeira seria a linguagem usual da comunicação
cotidiana, e a segunda, aquela usada para falar da própria linguagem. O teórico russo observa
que o código utilizado para ambas é o mesmo e que práticas metalinguísticas são parte do
repertório habitual de todos, em casos em que haja dúvida sobre os falantes estarem usando
o mesmo código ou necessidade de explicações através de sinônimos ou paráfrases, ou ainda
tradução em outro idioma – em suma, quando há dificuldades de comunicação (Ibid., pp.93-
4).
Metalinguagem é, em resumo, o nível de linguagem “que fala de linguagem” (Ibid.,
p.127). Essa autorreferência abre espaço para se falar em outros tipos de meta-:
metanarrativa, metapoesia, metateatro etc.
2.1.1 Metaficção e pós-modernismo
Em seu O livro da metaficção, Gustavo Bernardo identifica a origem do termo
“metaficção” – originalmente em inglês, metafiction – em 1958, pelo crítico literário
William Gass, para se referir a certa tendência da ficção norte-americana de sua época. O
teórico brasileiro a conceitua como “uma ficção que não esconde que o é, mantendo o leitor
consciente de estar lendo um relato ficcional, e não um relato da própria verdade”
(BERNARDO, 2010, p.42); e oferece, também, a definição de David Lodge: “Metafiction
is fiction about fiction: novels and stories that call attention to their fictional status and their
own compositional procedures”4 (LODGE apud BERNARDO, 2010, p.42).
Alguns autores associam a prática da metaficção ao estilo pós-moderno. Sobre esse
tema, Verônica Kobs propõe uma analogia interessante entre literatura e arquitetura: “Uma
construção pós-moderna prima pela transparência, dada por materiais como telas e vidros,
ao passo que o estilo modernista prefere inovar nas formas e nas cores, principalmente”
(KOBS, 2006, p.28). Essa transparência é um convite para o leitor acessar a lógica interna
de construção do texto, e estaria relacionada ao mesmo tempo ao procedimento da
metaficção e à estética pós-moderna.
Kobs segue os ensinamentos de Linda Hutcheon, que foi taxativa ao descrever a
Poética do pós-modernismo: “na ficção o termo pós-moderno deve ser reservado para
descrever a forma mais paradoxal e historicamente complexa que venho chamando de
‘metaficção historiográfica’” (HUTCHEON, 1991, p.64, itálico da autora). Dois
4 “Metaficção é ficção sobre ficção: romances e histórias que chamam atenção para sua condição ficcional e
seus próprios procedimentos de composição.” Tradução nossa.
24
esclarecimentos se fazem necessários: por um lado, o projeto da autora é circunscrever o
conceito de “pós-moderno” em diversos campos – principalmente nas artes, na história e na
política –, e no trecho acima se refere apenas às narrativas de ficção; por outro, ela cita uma
modalidade específica, a qual chama “metaficção historiográfica”. Além disso, sua
argumentação corre no sentido de que não se misture o conceito de “pós-moderno” com o
de “contemporâneo” (Ibid., p.20), numa provável tentativa de se afastar de ideias
generalizantes de que “tudo é pós-moderno” ou “vale tudo no pós-modernismo”.
Ainda assim, é sintomático que queira restringir o conceito de narrativa pós-moderna
a uma forma metaficcional. Alguns anos antes, a teórica canadense havia dedicado um
estudo ao tema, pertinentemente nomeado Narcissistic narrative: the metaficcional paradox
(Narrativa narcisista: o paradoxo metaficcional). Neste, não utilizou a palavra pós-
modernismo, sob a alegação de que esta “seems to me to be a very limiting label for such a
broad contemporary phenomenon as metafiction”5 (HUTCHEON, 1980, p.2). Como vimos,
na sua posterior descrição do pós-modernismo a autora acrescentou à metaficção o adjetivo
historiográfica.
Ainda que Hutcheon se apresse em justificar que o adjetivo “narcisista” não possui
intenção pejorativa e refere-se à própria narrativa e não a autores, afirma que a intenção do
termo é apenas “descritiva e sugestiva” (Ibid., p.1); entretanto, sua defesa do recurso
metaficcional não é neutra.
Ao discutir a questão no Brasil, a crítica Therezinha Barbieri (2003, p.15) limita-se
a reconhecer o fenômeno, sem emitir juízo de valor: “A recorrência de índices metaficcionais
denuncia, com frequência, a presença do literário a toda hora invadindo o nível da elaboração
ficcional, o que constitui constante bem característica do período em questão [décadas de
1970 e 80]”. O crítico Karl Erik Schøllhammer, por sua vez, vê com reservas essa forma
narrativa:
a metaficção tornou-se lugar-comum no debate em torno da noção moderna de
literatura, como aquilo que vem explicitar a atenção autoconsciente da natureza
construtiva da ficção. (...) [Por outro lado,] a história da metaficção é longa,
narrada por muitos escritores, e inclui famosas referências a clássicos como As mil
e uma noites, Dom Quixote e Hamlet, dentre as muitas construções ‘em abismo’,
como diria André Gide. (SCHØLLHAMMER, 2011, p.129).
5 “O termo ‘pós-modernismo’ me parece um rótulo um tanto restritivo para um fenômeno contemporâneo tão
amplo quanto a metaficção.” (Tradução nossa.)
25
Também o escritor paranaense Cristovão Tezza, na conferência de abertura do III
Seminário “Caminhos da Literatura Brasileira”, na Universidade Federal Fluminense (UFF),
em agosto de 2014, rejeitou o modelo pós-moderno: este “avisa o leitor de que o texto é um
texto, trata-o como um idiota”. No entanto, a própria obra de Tezza tem componentes
metaficcionais, conforme Verônica Kobs (2006) estudou nos romances O terrorista lírico,
Trapo, Juliano Pavolini, A suavidade do vento, além do conto “A cidade inventada”. Não é
um corpus insignificante.
A aparente contradição de Tezza se resolve em Linda Hutcheon: nem toda
metanarrativa é pós-moderna, apenas a que ela chama de historiográfica. A de Tezza não se
inclui nessa vertente, conforme a análise de Kobs.
2.1.2 O longo percurso metaficcional
Ainda que o termo “metaficção” tenha sido cunhado em 1958, a história da literatura
metanarrativa pode ser contada retroativamente. Hutcheon (1980, pp.9-10) adverte que o
romance é uma forma autoconsciente desde sua origem e apresenta duas hipóteses para tal:
a ideia de Barthes – aceita por diversos estudiosos – de que este é um gênero narrativo
estritamente capitalista e burguês, e o caráter paródico do romance.
Liba Beider, num ensaio pioneiro sobre o tema no Brasil, aproxima-se do primeiro
ponto de vista, ainda que sem entrar no mérito sociológico da questão: “Todo romance se dá
por uma escritura em que a questão é o ato de escrever, só parece caracterizável pelo fato de
ser uma linguagem que está implicada como questão e como certeza” (BEIDER, 1979, p.39).
Adiante, acrescenta: “O que a ficção reflete não é o personagem que descreve ou o objeto
resultante de sua escritura, mas o próprio processo dessa escritura – a narrativa em tensão
com a metanarrativa” (Ibid., p.43). Nessa linha de raciocínio, a questão central de todo
romance, de toda ficção, é a própria linguagem – desse modo, todo romance seria
metaficcional e este se tornaria um conceito estéril para a teorização da literatura.
Quanto ao segundo caso – o caráter paródico –, as referências iniciais são Dom
Quixote, de Cervantes, e Tristram Shandy, de Lawrence Sterne. A citação é do livro Partial
magic: The novel as a self-conscious genre, de Robert Alter:
in many important novelists from Renaissance Spain to contemporary France and
America the realistic enterprise has been enormously complicated by the writer's
26
awareness that fictions are never real things, that literary realism is a tantalizing
contradiction in terms.6 (ALTER apud HUTCHEON, 1980, p.4)
Hutcheon (Ibid., p.4) concorda com Alter: a paródia levada a cabo em Dom Quixote
cria um texto ao mesmo tempo realista e autorreflexivo. A oposição dialética entre ficção e
realidade, ou entre metaficção e realismo, dá a tônica da discussão teórica. Hutcheon (Ibid.,
pp.4-5) enxerga “a dialectical literary progression from one kind of novelistic mimesis to
another”7, em que todo romance equilibra em diferentes dosagens representação da realidade
e autorreferencialidade. Tal formulação é útil porque: a- evita a radicalização de que, se o
romance é um gênero autoconsciente, então será necessariamente metalinguístico, e b-
reconhece a metaficção como recurso narrativo específico. No primeiro caso, tal postura
impossibilitaria o estudo da metaficção, pois todo romance o seria; o segundo justifica sua
relevância como conceito teórico.
Essas duas mímesis seriam a “do produto” e a “do processo”, segundo Hutcheon
(1980). Enquanto a narrativa tradicional enfatiza o enredo (produto), a metaficção atrai o
leitor para os métodos e estratégias de composição textual (processo).
Em verdade, há metalinguagem na epopeia, nas evocações às Musas, quando o poeta
pede inspiração para escrever seus versos, mas tão-somente como recurso retórico; esta,
porém, não é um gênero autoconsciente, e nem sequer o conceito de ficção se aplica a ela.
A metaficção ocorreria, então, na autorreferencialidade do texto e não na consciência do
escritor.
Gustavo Bernardo aproveita duas metáforas que representam um procedimento e um
efeito habituais na metaficção: primeiro, as babushkas, “aquelas bonecas tchecas (...) que se
encaixam umas dentro das outras” (BERNARDO, 2010, p.31), referindo-se ao recurso de se
contar uma história dentro da história, ideia que se aproxima da “construção em abismo”
(mise em abyme) mencionada por Schøllhammer. O segundo é o conceito de strange-loopy
twist, emprestado ao matemático Douglas Hofstadter e traduzido pelo autor como
“reviravolta aninhada”. Ela “ocorre sempre que, quando nos movemos para cima ou para
baixo através dos níveis de um sistema hierárquico, encontramo-nos, inesperadamente, de
volta ao lugar de onde partimos”, produzindo situações de “hierarquia entrelaçada”
(HOFSTADTER apud BERNARDO, 2010, pp.109-10). A intenção, aqui, é representar as
6 “em muitos romancistas importantes, da Espanha Renascentista à França e à América contemporâneas, o
projeto realista tem sido enormemente dificultado pela consciência dos escritores de que ficções nunca são
objetos reais, de que realismo literário é uma provocativa contradição em termos.” 7 “uma progressão literária dialética de uma forma de mímesis romanesca para outra.”
27
relações paradoxais entre realidade e ficção no texto metanarrativo, conforme assinalamos
no exemplo do filme e do romance Atonement, na abertura deste capítulo.
Ambos podem também ser observados em seu estudo a respeito de Dom Quixote de
La Mancha, em O livro da metaficção – e, posteriormente, nos romances que formam o
corpus deste trabalho. Assim o crítico resume o episódio do teatro de marionetes, no capítulo
XXVI da segunda parte do romance de Cervantes:
Dom Quixote, nós o sabemos, é um personagem de ficção de um certo fidalgo que
lia muito, chamado Alonso Quijada – o qual, por sua vez, é um personagem de
ficção do escritor Miguel de Cervantes. Na cena em questão, este personagem do
personagem critica, como se fosse um escritor ou um professor, a
inverossimilhança flagrante da história de Mestre Pedro. Logo, Dom Quixote se
mostra capaz de distinguir a realidade da ficção, tanto que critica a elaboração
imprópria que Mestre Pedro faz da realidade. Entretanto, antes e durante quase
todo o romance, acredita ser realmente Dom Quixote, e não o fidalgo-leitor Alonso
Quijada. (BERNARDO, 2010, p.55)
Dom Quixote é, portanto, uma babushka dentro de Alonso Quijada. Em seguida,
Quixote/Quijada destrói as marionetes do Mestre, pensando tratar-se realmente de um
exército de mouros. Isto é, existem diferentes níveis de ficção que se comunicam e se
confundem, produzindo a reviravolta aninhada: há os personagens de Cervantes (ficção de
primeiro nível) e, dentro deles, o Dom Quixote imaginado por Quijada e os bonecos que
encenam (segundo nível). Tanto aquele quanto estes são tomados por reais e, desta maneira,
o massacre das marionetes reflete o próprio conflito interno de Quijada/Quixote. Até aqui a
metaficção é implícita; porém, mais adiante, “Dom Quixote pergunta ao bacharel Sansão
Carrasco se o autor das suas aventuras promete uma segunda parte” (Ibid., pp.61-2). Agora,
ele demonstra ciência de ser um personagem, e a metaficção se torna explícita.
Em uma seção dedicada a este romance espanhol, Michel Foucault descreve Dom
Quixote com requinte poético: “ele próprio é semelhante a signos. Longo grafismo magro
como uma letra, acaba de escapar diretamente da fresta dos livros. Seu ser inteiro é só
linguagem, texto, folhas impressas, história já transcrita” (FOUCAULT, 1999, p.63). O
filósofo acrescenta que
na segunda parte do romance, Dom Quixote reencontra personagens que leram a
primeira parte do texto e que o reconhecem, a ele, homem real, como o herói do
livro. O texto de Cervantes se dobra sobre si mesmo, se enterra na sua própria
espessura e torna-se para si objeto de sua própria narrativa. (Ibid., p.66)
Essa dobra corresponde precisamente à metalinguagem. Foucault identifica o
paradoxo metaficcional, ainda que em momento algum utilize o termo ou seus derivados.
28
Nem mesmo quando analisa a tela Las meninas, do espanhol Diego Velázquez; segundo ele,
a figura do pintor representada olhando para fora da tela produz uma inversão de papéis entre
quem observa e quem é retratado – o espectador é observado pelo artista e, assim, torna-se
também matéria da pintura:
O pintor só dirige os olhos para nós na medida em que nos encontramos no lugar
do seu motivo. Nós, espectadores, estamos em excesso. Acolhidos sob esse olhar,
somos por ele expulsos, substituídos por aquilo que desde sempre se encontrava
lá, antes de nós: o próprio modelo. Mas, inversamente, o olhar do pintor, dirigido
para fora do quadro, ao vazio que lhe faz face, aceita tantos modelos quantos
espectadores lhe apareçam; nesse lugar preciso mas indiferente, o que olha e o que
é olhado permutam-se incessantemente. Nenhum olhar é estável, ou antes, no
sulco neutro do olhar que traspassa a tela perpendicularmente, o sujeito e o objeto,
o espectador e o modelo invertem seu papel ao infinito. (Ibid., p.5, itálicos nossos)
Mais uma vez, o paradoxo observado por Foucault se identifica com a “reviravolta
aninhada” descrita por Gustavo Bernardo: no espaço dessa “mistura”, seja entre realidade e
ficção (como em Velázquez), seja entre diferentes níveis de ficção (como em Cervantes),
dá-se o paradoxo.
A autoconsciência narrativa não é, portanto, uma invenção pós-moderna. A mistura
entre realidade e ficção está na origem do gênero romanesco, e foi apenas ampliada e
aperfeiçoada. Dois exemplos do século XIX merecem menção. Umberto Eco conta que, em
1837, Edgar Allan Poe publicou o romance A narrativa de A. Gordon Pym – metalinguístico
desde o título. No ano seguinte, outra edição da mesma obra retirava o nome de Poe da capa
e alertava em um prefácio, assinado por A. G. Pym, que era o próprio Pym o autor da obra e
que o nome do “sr. Poe” havia sido acrescentado porque, de outra forma, ninguém acreditaria
na veracidade do relato (ECO, 1994, p.24). É curioso que a obra precise passar por fictícia
para ter credibilidade; como se não bastasse, há uma nota no final da narração a informar
que “os últimos capítulos se perderam em função da ‘morte recente, súbita e dolorosa do sr.
Pym’, morte da qual ‘o público deve ter tomado conhecimento pelos jornais diários’” (Ibid.,
p.24). Esta última oração é significativa na medida em que busca uma cumplicidade com o
leitor ao mesmo tempo em que sugere a menção ao personagem Pym nos jornais, isto é, em
um discurso sobre a realidade. Eco enfatiza que esta nota não pode ser atribuída a A. G. Pym
(pois anuncia a morte dele) nem a E. A. Poe, uma vez que critica a primeira edição em que
este constava como autor; assim, as referências metaficcionais geram um paradoxo “em
abismo”. Quem seria este comentador? Outra criação fictícia? Percebe-se uma sequência de
reviravoltas aninhadas em que o leitor se vê ao mesmo tempo perdido – a questionar a própria
29
existência de Poe, famoso por outras obras – e fascinado na tentativa de decifrar o enigma
por trás das referências cruzadas.
Na literatura brasileira, o marco metaficcional é a obra de Machado de Assis, na qual
merecem destaque as Memórias póstumas de Brás Cubas (1881). A trajetória do defunto
autor desconcerta e desestabiliza o leitor desde sua dedicatória “ao verme que primeiro roeu
as frias carnes do meu cadáver...” (ASSIS, 1978, p.13), escrita do ponto de vista do
protagonista.
Ou mesmo antes. Não por acaso, Brás Cubas (ou Machado de Assis?) presta seu
tributo ao autor de Tristram Shandy na nota “Ao Leitor” que introduz o romance: “Trata-se,
na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne,
ou de um Xavier de Maistre...” (Ibid., p.11, itálico nosso). É significativo que, além de
assinar a nota, o personagem se sinta impelido a acrescentar o aposto “Brás Cubas”, como
modo de impedir que o leitor o confunda com o autor empírico Machado de Assis. Este, por
sinal, ratifica a reviravolta aninhada no breve Prólogo da Quarta Edição. De princípio, age
como a praxe, como autor que apresenta sua obra. Inicia o último parágrafo mencionando
“meu Brás Cubas”, encenando a hierarquia entre criador e criatura; em seguida, porém,
desfaz novamente essa diferença: “Não digo mais para não entrar na crítica de um defunto,
que se pintou a si e a outros, conforme lhe pareceu melhor e mais certo” (Ibid., p.9). Trata-
o como a uma pessoa real, um finado a quem se deve respeito e responsável pelo conteúdo
da narração.
Observe-se que o procedimento de Machado é de certa forma oposto ao de Edgar
Allan Poe: o autor norte-americano faz com que o personagem intervenha para “corrigir” o
próprio Poe, ao passo que o brasileiro utiliza o prólogo para se apresentar como autor
empírico. Entretanto, no fim das contas o efeito é similar: diluir as distâncias entre autor e
obra, entre real e ficcional, por meio da metalinguagem.
Vale mencionar outro exemplo, contemporâneo de Machado e anterior às Memórias
Póstumas... Fala-se de José de Alencar, no romance Senhora (1875). A certa altura, o
narrador comenta, mordaz, que o assunto na conversação das personagens chegou à literatura
nacional: “Fato raro. Entre nós há moda para tudo nos salões; menos para as letras pátrias,
que ficam à porta, quando muito vão para o fumatório servir de tema a dois ou três
incorrigíveis” (ALENCAR, 1987, p.151). Em sequência, um personagem pergunta à
audiência se leram a Diva, romance do próprio Alencar, publicado em 1864. Diante do
silêncio geral, acrescenta: “É um tipo fantástico, impossível!” O “crítico” então faz restrições
30
ao livro, “cujo estilo censurou de incorreto, cheio de galicismos, e crivado de erros de
gramática. O desenlace especialmente provocou acres censuras” (Ibid., pp.151-2)
É, portanto, uma autocrítica ou autoironia de Alencar por meio do discurso de um de
seus personagens. No dia seguinte, a protagonista Aurélia manda que lhe comprem a tal obra
e retoma o assunto com o amigo não nomeado:
– Já li a Diva, disse depois de corresponder ao cumprimento.
– Então, não é uma mulher impossível?
– Não conheço nenhuma assim. (...)
– Em todo o caso é um caráter inverossímil.
– E o que há de mais inverossímil que a própria verdade? retorquiu Aurélia
repetindo uma frase célebre. (Ibid., p.152)
A metalinguagem, uma vez mais, é empregada para contestar o estatuto do real.
Antes de retornar ao enredo, o narrador pontua: “Mal pensava Aurélia que o autor de Diva
teria mais tarde a honra de receber indiretamente suas confidências, e escrever também o
romance de sua vida, a que ela fazia alusão” (Ibid., p.152).
O trecho é notável porque Alencar inclui-se no texto não como narrador, mas como
o próprio autor (de Diva e do romance da vida de Aurélia), ao mesmo tempo em que busca
convencer o leitor da existência concreta, empírica, de sua heroína. Na verdade, ele envolve
a ela e a si próprio numa área difusa entre a realidade e a ficção. Seria Aurélia então real,
para que pudesse imaginar que Alencar escreveria sua história? Estaria o autor no mesmo
plano diegético que a personagem? Fosse um narrador, a questão não se colocaria: este seria
um ente narrativo gerado pela própria escrita de Senhora; no entanto, ao fazer a referência
intertextual de se identificar como autor de Diva, assume-se como o próprio Alencar real,
dando forma ao paradoxo metaficcional.
Por outro lado, sabemos que este é um procedimento pouco usual no escritor cearense,
e caberia a Machado de Assis elevá-lo a estratégia recorrente na literatura brasileira.
2.1.3 Metaficção vs. realismo
Por tudo isso o Bruxo do Cosme Velho é uma das portas de entrada de Gustavo
Bernardo no debate que opõe realismo e metaficção. A discussão nos interessa porque
Machado de Assis, comumente tido como expressão máxima do realismo literário brasileiro,
terá seu Dom Casmurro retomado, metaficcionalmente, em um dos romances em estudo
nesta Dissertação. E, também, porque o frequente uso da metalinguagem é uma das razões
centrais de Gustavo Bernardo para afastar Machado do realismo.
31
A metaficção desconfia da realidade, logo desconfia do realismo. A metaficção
desconfia do autor, logo desconfia também do leitor. A metaficção desconfia de si
mesma, logo desconfia de qualquer presunção de identidade. Sua característica
principal é a autoconsciência, mas uma autoconsciência irônica e, de certo modo,
trágica. (BERNARDO, 2010, p.52)
O primeiro argumento do autor é que a linha de força central da obra machadiana é
o ceticismo, diametralmente oposto ao dogmatismo realista. Para defendê-lo, Gustavo
Bernardo recorre à afinidade entre Machado e o autor de Dom Quixote proposta pelo escritor
mexicano Carlos Fuentes:
A atribuição de filiação direta de Machado de Assis a Miguel de Cervantes impede
que se considere o escritor brasileiro como romântico ou como realista, se na
verdade trata-se de um novo cavaleiro de triste figura a levantar sua pena, já no
século XIX, contra todos os ditames do realismo. (Ibid., p.127)
Ou, como o autor nomeará depois, contra o Gigante do Realismo, numa alusão aos Moinhos
de Vento cervantinos. Ariano Suassuna vê o Rubião, de Quincas Borba, e o major Policarpo
Quaresma, de Lima Barreto, como os herdeiros de Quixote na ficção brasileira8; Gustavo
Bernardo, por sua vez, vê o alienista Simão Bacamarte, Brás Cubas, Quincas Borba, Rubião
e Bento Santiago como “variações do mesmo tema, do mesmo louco que se finge de são”
(Ibid., p.130).
Outro argumento do autor são os ataques do próprio Machado de Assis à estética
realista, na crítica a O Primo Basílio, de Eça de Queirós (1878), e no ensaio “A nova
geração”, do ano seguinte.
No texto de 1879, o escritor é contundente: “A realidade é boa, o realismo é que não
presta para nada”. Anteriormente fora menos enfático: “Voltemos os olhos para a realidade,
mas excluamos o realismo; assim não sacrificaremos a verdade estética.” (ASSIS apud
BERNARDO, 2010, p.146). A expressão “verdade estética” é sintomática quando aliada a
uma negação ao realismo, encerrando mais um paradoxo: a literatura seria mais “verdadeira”
quando menos realista. Nas palavras de Gustavo Bernardo, está em jogo a crença realista de
que a literatura é capaz de retratar o real, daí seu caráter dogmático:
“ser realista” é bom porque apenas o realista pode ver a realidade “como ela é”,
supondo-se portanto duas coisas – primeiro, a realidade “é” de apenas uma
maneira; segundo, apenas o realista enxerga essa maneira; logo, apenas o realista
8 Em conferência proferida na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em 2005
(www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1107200514.htm). O autor desenvolveu o mesmo raciocínio em
entrevistas, das quais um exemplo pode ser encontrado em: http://renatorabelo.blog.br/2014/07/25/ariano-
suassuna-cultura-popular-e-resistencia-nacional/. Acesso em 04.mar.2015.
32
vê realidade, todos os demais estaríamos redondamente enganados ou iludidos.
(BERNARDO, 2010, p.148)
A postura cética, ao contrário, parte do princípio de que é impossível ter certeza de
que a realidade pode ser captada como é, muito menos reproduzida através da ficção. Nesse
sentido se insere a metalinguagem: ao assumir o caráter fictício do texto, o autor estabelece
outro tipo de relação com o leitor. Ele não tenta fazer com que a obra seja experimentada
como real (pelo contrário), portanto ela não é um produto acabado. Assim, a metaficção
funciona como um convite à interação e à participação do leitor, a uma parceria na
construção do sentido do texto, assim como o observador da tela de Velázquez se tornara
motivo, isto é, parte da obra, na concepção de Foucault.
Em comentário sobre a metalinguagem no conto machadiano “To be or not to be”,
Gustavo Bernardo (Ibid., p.166) observa que,
ao quebrar o contrato de ilusão desde o início, o autor dificulta a suspensão da
descrença, ou seja, o envolvimento do leitor com a história como se ela fosse
verdadeira, para facilitar a reflexão crítica e distanciada sobre as crenças e ilusões
cotidianas, entre elas a ilusão do Eu e da identidade pessoal.
O crítico refere-se à expressão cunhada pelo poeta inglês Samuel Coleridge no início
do século XIX, “willingful suspension of disbelief”, suspensão voluntária da descrença. A
ideia é que o leitor acredite temporariamente que a história narrada é real para desfrutar
idealmente dela. Só assim, supõe-se, haveria catarse. A “mentira sincera” da metaficção
propõe outra relação entre autor, obra e leitor – e, portanto, entre realidade e ficção.
2.2 Realidade, linguagem, ficção
A experiência humana nunca deixou de ser transmitida através da linguagem, mas
ela se dá, ao longo da história, de maneiras diversas. Disso decorre que a própria relação
entre homem e linguagem se modifica com o tempo.
Michel Foucault demonstra, no livro As palavras e as coisas, que até o século XIX a
linguagem não se apresentava como um problema para o pensamento. Até então, era tratada
como natural, e os signos, “nada mais que um caso particular da representação”
(FOUCAULT, 1999, p.59). Somente com a transição da epistémê9 clássica para a moderna
9 Sobre o conceito de epistémê: “Numa cultura e num dado momento, nunca há mais que uma epistémê, que
define as condições de possibilidade de todo saber. Tanto aquele que se manifesta numa teoria quanto aquele
que é silenciosamente investido numa prática.” (FOUCAULT, 1999, p.230). Em outras palavras, são as
condições filosóficas e intelectuais em que se dá a construção do pensamento e do conhecimento.
33
o foco da filosofia da linguagem passa da representação para a significação: como se dá a
relação entre signo e realidade, entre palavra e coisa. Nos exemplos analisados pelo filósofo,
é quando a História Natural se converte em Biologia; a Análise das Riquezas torna-se
Economia Política; e, este o caso que nos interessa neste texto, a Gramática Geral passa a
ser Filologia – o estudo das línguas como sistemas de signos com mecanismos próprios de
significação e combinação de elementos:
Durante toda a idade clássica, a linguagem foi posta e refletida como discurso, isto
é, como análise espontânea da representação. (...) [A partir do século XIX, no
pensamento moderno] a linguagem não é mais constituída somente de
representações e de sons que, por sua vez, as representam e se ordenam entre si
como o exigem os liames do pensamento; é, ademais, constituída de elementos
formais, agrupados em sistema, e que impõem aos sons, às sílabas, às raízes, um
regime que não é o da representação. (Ibid., pp.320 e 324, itálicos nossos)
Esse contexto abre lugar para as teorizações do suíço Ferdinand de Saussure no início
do século XX. Saussure concebeu a dualidade do signo, em que a forma (a “imagem
acústica”, o significante) e o conceito (a referência, o significado) funcionam como uma
dicotomia, como dois lados da mesma folha de papel: um não existe sem o outro
(SAUSSURE, pp.79-81). O suíço também insistiu na arbitrariedade do signo, isto é, as
relações entre significante e significado seriam imotivadas. Uma evidência disso é o fato de
que o mesmo conceito é expresso por significantes diferentes em línguas diversas; os casos
de exceção, como as onomatopeias e as interjeições, são recusados pelo linguista, por serem
em pequeno número e também variarem de idioma para idioma (Ibid., pp.81-3). A teoria
saussuriana estabeleceu, portanto, as bases do pensamento moderno acerca da interação entre
linguagem e realidade.
Outra distinção dicotômica proposta pelo estudioso ocorre entre a língua e a fala
(langue/parole). Enquanto a primeira é um sistema estruturado de signos, de conhecimento
prévio de quem emite e de quem recebe uma mensagem, a segunda corresponde ao uso
individual que cada falante faz desse sistema. Facilmente se observa que a langue não pode
existir sem a parole e vice-versa: “a língua é necessária para que a fala seja inteligível e
produza todos os seus efeitos; mas esta é necessária para que a língua se estabeleça” (Ibid.,
p.27). Saussure argumenta em favor de uma separação entre uma Linguística da Língua e
outra da Fala, mas a “Linguística propriamente dita [é] aquela cujo único objeto é a língua”
(Ibid., p.28).
Talvez devido à ênfase com que foi delimitado o objeto de estudo da ciência que
então surgia, somente décadas mais tarde surgiria o estudo sistemático da parole, não
34
exatamente no âmbito da Linguística, mas da filosofia da linguagem. Em 1955 John
Langshaw Austin proferiu uma série de conferências na Universidade de Harvard, que foram
reunidas no livro How to do things with words sete anos depois, e republicadas em versão
ampliada em 1975.
Austin propõe dois conceitos novos para análise dos atos de fala, ou elocuções
(utterances, no original). O primeiro são os atos performativos, cujas principais
características são:
A. They do not ‘describe’ or ‘report’ or constate anything at all, are not ‘true or
false’; and
B. the uttering of the sentence is, or is a part of, the doing of an action, which
again would not normally be described as, or as just, saying something.10
(AUSTIN, 1975, p.5, itálico do autor)
Os exemplos iniciais do filósofo são frases como: “Eu aceito”, dita numa cerimônia
de casamento; “Eu batizo este navio...”; “Deixo meu relógio a meu irmão”, num testamento;
e “Aposto como vai chover amanhã.”. Com efeito, sentenças dessa natureza não descrevem
ou relatam fatos. O que está em jogo em cada uma é, respectivamente, o próprio ato de se
casar, de batizar um navio, de legar um bem a um ente querido e de apostar. São ações que
se realizam através da linguagem e que seriam inviáveis sem essa mediação. Seguindo a
linha de raciocínio de Austin, eles não podem ser julgados como “verdadeiros ou falsos”
exatamente porque as suas condições de verdade são geradas pela própria enunciação. A
aposta está acordada porque foi dita por uma pessoa e aceita por outra; o navio foi nomeado
porque alguém o disse, e assim por diante.
Elocuções performativas são, outrossim, bem-sucedidas ou não; na terminologia de
Austin, “felizes” ou “infelizes”. O filósofo enumera seis condições de felicidade (Ibid.,
pp.14-5, ss.): A.1 Deve haver um procedimento convencional aceito para a elocução dessas
palavras, e A.2, as pessoas e circunstâncias devem ser apropriadas. Por exemplo, a frase “Eu
aceito” deve ser pronunciada pelos noivos em uma cerimônia de casamento – quaisquer
outras pessoas ou situações comunicativas não configuram o matrimônio; B.1 O
procedimento deve ser executado por todos os participantes, B.2, e completamente; e Γ.1 Os
participantes devem ter os sentimentos e intenções de acordo com a elocução, e Γ.2, precisam
se comportar como tal subsequentemente.
10 “A. Eles não ‘descrevem’ nem ‘reportam’ nem constatam nada, não são ‘verdadeiros ou falsos’; e
B. a elocução dessas frases é a prática de uma ação ou parte dessa prática, o que não seria normalmente ser
descrito como – ou como ‘apenas’ – dizer alguma coisa.” (Tradução nossa)
35
As quatro primeiras condições, identificadas por letras latinas (A e B), são condições
básicas para a elocução correta. Por isso, às “infelicidades” decorrentes delas Austin chama
Misfires (“tiros em falso”). A ação não se realiza. Nos casos Γ, a ação se realiza, porém não
de modo sincero – são chamados Abuses (“abusos”).
Austin atribui uma grande importância ao contexto em que se dá a elocução, uma
visão infrequente em sua época; este determinará o sucesso ou insucesso do ato de fala, e
nos últimos casos, a intenção do falante. Tal elemento está ausente da teoria saussuriana,
que vê a língua como um depósito das possibilidades de comunicação, do qual o indivíduo
retira os elementos pertinentes a sua necessidade.
J. L. Austin discute amplamente tais condições de felicidade e elimina a possibilidade
de haver marcas gramaticais capazes de delimitar a diferença entre elocuções performativas
e constativas – aquelas que reportam algo. Mais adiante, desenvolve outro conceito que põe
em relevo a situação comunicativa na produção de sentido. O filósofo norte-americano
demonstra que toda elocução possui três dimensões: o ato locucionário, o ato ilocucionário
e o ato perlocucionário (Ibid., p.98, ss.)
O ato locucionário é o enunciado propriamente dito; o ato ilocucionário é a função
desse enunciado: perguntar, responder, dar informação, assegurar algo, avisar, anunciar etc.
Essa função pode estar explícita ou não (daí, provavelmente, a opção pelo prefixo i-), mas
indubitavelmente faz parte da estratégia do falante. O ato perlocucionário, por sua vez,
corresponde ao efeito do enunciado sobre o destinatário:
Saying something will often, or even normally, produce certain consequential
effects upon the feelings, thoughts, or actions by the audience, or of the speaker,
or of other persons; and it may be done with the design, intention, or purpose of
producing them; and we may say, thinking of this, that the speaker has performed
an act…11 (Ibid., p.101, itálico nosso)
Observe-se, no trecho, o uso do verbo to perform, do qual deriva também o termo
performative, criado por Austin no início da mesma obra. Está em debate, portanto, uma
visão da linguagem distinta daquela descrita por Ferdinand de Saussure; uma que cria atos e
efeitos sobre o mundo, em vez de se limitar a reproduzi-lo em palavras e frases. Isso é obtido
por uma atenção inédita dada às circunstâncias comunicativas:
11 “Dizer alguma coisa frequentemente – ou até normalmente – tem como consequência certos efeitos sobre
os sentimentos, pensamentos ou ações dos ouvintes, ou do falante, ou de outras pessoas: isso pode ser feito
com planejamento, intenção, ou propósito de produzi-los; e pode-se dizer, pensando nisso, que o falante
praticou uma ação...” (Tradução nossa.)
36
for some years we have been realizing more and more clearly that the occasion of
an utterance matters seriously, and that the words used are to some extent to be
‘explained’ by the ‘context’ in which they are designed to be or have actually been
spoken in an linguistic interchange.12 (Ibid., p.100)
Na sequência, Austin propõe que toda elocução pode ser expressa em forma
performativa. Mesmo um ato de fala constativo como “Ele está correndo” pode ser
interpretado como “Eu afirmo que ele está correndo”, de modo que se pratica a ação (to
perform) de afirmar. Por isso, a teoria de Austin foi descrita como “visão performativa da
linguagem”, na expressão de Paulo Ottoni (apud FIORIN, 2004, p.173).
Desta maneira, são dois elementos da teoria austiniana relevantes para nosso
argumento: 1. o contexto de comunicação é importante para a compreensão dos atos de fala
enunciados; 2. mais do que representar a realidade, a linguagem tem um caráter performativo,
que interfere na realidade exterior a ela. Em ambos os casos, a linguagem não é uma entidade
estática pronta para o uso humano. Ao contrário, ela é essencialmente dinâmica e ajuda a
construir a própria realidade que se supunha que ela representasse.
2.2.1 A realidade da ficção
O primeiro pesquisador a dar sequência ao projeto de John L. Austin foi o também
filósofo da linguagem John R. Searle, com o livro Speech acts (1969). Em 1975, publicou
um instigante ensaio que debatia “O estatuto lógico do discurso ficcional”, à luz da teoria
dos atos de fala.
Ao investigar o que distingue ficção de não ficção, Searle começa adotando a postura
não essencialista de Austin, ao afirmar que
‘literatura’ é o nome de um conjunto de atitudes que assumimos perante uma
porção de discurso, e não o nome de uma propriedade interna dessa porção de
discurso, embora as razões pelas quais assumimos as atitudes que assumimos são
evidentemente, ao menos em parte, determinadas pelas propriedades do discurso,
não sendo inteiramente arbitrárias. Em termos aproximados, cabe ao leitor decidir
se uma obra é literatura, cabe ao autor decidir se ela é uma obra de ficção.
(SEARLE, 1995, p.97)
Enquanto Austin se concentra no conceito de “elocução” (utterance), Searle se utiliza
de “asserção” (assertion). Esta é, segundo ele, um ato ilocucionário com as características
seguintes: 1. “quem faz uma asserção se compromete com a verdade da proposição expressa”;
12 “há alguns anos temos percebido com clareza cada vez maior que a circunstância de uma elocução importa
muito, e que as palavras utilizadas podem até certo ponto ser ‘explicadas’ pelo ‘contexto’ para o qual foram
pensadas ou no qual foram de fato ditas em uma interação linguística.” (Tradução nossa.)
37
2. “o falante deve estar preparado para fornecer evidências ou razões da verdade da
proposição expressa”; 3. “a proposição expressa não deve ser obviamente verdadeira para
ambos, falante e ouvinte, no contexto da emissão”; 4. “o falante compromete-se com a crença
na verdade da proposição expressa” (Ibid., p.101). Esses itens praticamente coincidem com
as últimas condições de felicidade das elocuções performativas de Austin, aquelas que ele
identificou pela letra Γ: o emissor compromete-se com a verdade e a sinceridade de sua
proposição. Caso contrário, está “abusando” da faculdade da linguagem.
O filósofo argumenta que “qualquer um que sustente que a ficção contém atos
ilocucionários diferentes dos contidos na não ficção compromete-se com a concepção de que
as palavras não têm, nas obras de ficção, seus significados normais” (Ibid., p.104). Segundo
ele, isso é impossível, uma vez que um texto não pode compor-se apenas de linguagem
conotativa. A questão não é, pois, semântica.
A ficção é, então, uma asserção, mas de uma forma problemática, pois seus critérios
de verdade não são os mesmos da não ficção. Um ficcionista não pode ser obrigado a
comprovar a veracidade do que narra; porém, narra como se os episódios fossem reais. Searle
propõe que o ficcionista pode estar “fingindo fazer uma asserção, ou agindo como se
estivesse fazendo uma asserção, ou efetuando as operações de feitura de uma asserção, ou
imitando o ato de fazer uma asserção”, mas não se convence de nenhuma das expressões;
ainda assim, escolhe investigar o verbo “fingir” (Ibid., p.105).
Escrever ficção é uma asserção fingida: o autor finge que escreve a verdade, e o leitor
finge que acredita. Searle rejeita formulações clássicas como “suspensão da descrença”
(Coleridge) e “mimese” (Aristóteles) por não lhe oferecerem respostas satisfatórias. Ele
prefere ater-se ao sentido do verbo “fingir”, que representa necessariamente uma ação
intencional, donde conclui que o que diferencia o discurso ficcional do não ficcional só pode
ser a intenção do autor: “o critério para identificar se um texto é ou não uma obra de ficção
deve necessariamente estar fundado nas intenções ilocucionárias do autor. Não há nenhuma
propriedade textual, sintática ou semântica, que identifique um texto como obra de ficção”
(Ibid.,p.106). Anos depois, Umberto Eco (1994) corroboraria esse ponto de vista
confrontando trechos de textos ficcionais que parecem não ficção e vice-versa.
Já se disse que ficção é aquilo que não precisa ser real para acontecer. Que
personagens são reais apenas na ficção. Mas o que significa ser real na ficção? Searle propõe
a questão em torno dos célebres personagens criados por sir Arthur Conan Doyle:
38
Suponhamos que eu diga: ‘Nunca existiu uma sra. Sherlock Holmes porque
Holmes nunca se casou, mas de fato existiu uma sra. Watson, porque Watson de
fato se casou, embora a sra. Watson tenha morrido não muito depois do casamento’.
O que eu disse é falso, é verdadeiro, não tem valor de verdade, ou o quê? (SEARLE,
1995, p.113)
Aqui se faz fundamental a distinção, feita pelo filósofo, entre discurso “sério” e
“discurso ficcional”. O discurso sério é aquele que pretende se referir à realidade, ao passo
que o ficcional assume estar criando suas próprias referências.
Searle percebe que a circunstância de sua fala sobre Holmes difere profundamente
daquela do ficcionista: “eu não fingi referir-me a um Sherlock Holmes real [como faz Conan
Doyle]; eu realmente me referi ao Sherlock Holmes ficcional” (Ibid., p.115, itálicos no
original).
Umberto Eco também reflete sobre o estatuto ontológico da ficção, em suas
Conferências Norton na Universidade de Harvard em 1993, reunidas no livro Seis passeios
pelos bosques da ficção. O autor italiano considera o conhecimento sobre a ficção mais
seguro do que o existente sobre a realidade e compara: “conhecemos Julien Sorel
[protagonista de O vermelho e o negro, de Stendhal] melhor que a nosso pai. Muitos aspectos
de nosso pai sempre nos escaparão (...). Stendhal, no entanto, me diz tudo o que preciso saber
sobre Sorel e sua geração” (ECO, 1994, pp.91-2). É interessante o contraste estabelecido por
Eco entre ...E o vento levou e Napoleão Bonaparte: “finjo acreditar que Scarlett se casou
com Rhett, da mesma forma que finjo assumir como uma questão de experiência pessoal o
fato de Napoleão ter se casado com Josefina” (Ibid., p.96). Finge, porque Scarlett O’Hara,
Rhett Butler e Napoleão são conhecimentos que nos chegam por meio de discursos, e nesse
aspecto não se distinguem. É possível que novas provas e documentos desmintam algo do
que se sabe sobre Napoleão, ou qualquer outro personagem ou evento histórico, mas isso
não é possível no caso de narrativas ficcionais.
No âmbito da crítica brasileira, Anatol Rosenfeld corrobora as ideias de Searle, a
começar pela conceituação do campo literário em função da noção de ficção (in CANDIDO
et al, 2011, pp.9-10). Ele oferece um exemplo simples e didático:
a oração “Mário estava de pijama” projeta um correlato objectual que constitui
certo ser fora da oração. Mas o Mário assim projetado deve ser rigorosamente
distinguido de certo Mário real, possivelmente visado pela oração. Como tal, o
correlato da oração pode referir-se tanto a um rapaz que existe independentemente
da oração, numa esfera ôntica autônoma (no caso, a da realidade), como
permanecer sem referência a nenhum moço real. Todo texto, artístico ou não,
ficcional ou não, projeta tais contextos objectuais “puramente intencionais” que
39
podem referir-se ou não a objetos onticamente autônomos. (Ibid., p.15, itálico
nosso)
O ponto de partida, nota-se, é a representação: o “Mário” postulado pelo ato de fala
(oração) não se deve confundir com o ser real. A diferença entre a ficção e a não ficção é
que, nesta, a referência possui existência “ôntica autônoma”. Como em Searle, o ato
linguístico tem caráter intencional e como tal deve ser avaliado.
Rosenfeld é explícito quando se refere a textos científicos e matérias jornalísticas:
“Há nestes enunciados a intenção séria de verdade. Precisamente por isso pode-se falar,
nestes casos, de enunciados errados ou falsos e mesmo de mentira e fraude...” (Ibid., p.18).
Pelo mesmo motivo, tais critérios não se aplicam à criação ficcional. O crítico lembra que,
na formulação da Arte Poética aristotélica, a ficção não é abordada a partir da relação com
o mundo real, mas da coerência que se estabelece entre seus elementos – a verossimilhança.
E observa um paradoxo acerca dessa referência: quanto mais detalhes, sobretudo
insignificantes, o texto vier a apresentar, mais verossímil parecerá, e mais se revelará seu
caráter de construção ficcional (Ibid., pp.20-1).
Sobre o estatuto ontológico dos entes ficcionais, Umberto Eco traz de Os três
mosqueteiros, de Alexandre Dumas, dois exemplos definitivos e de interesse para a análise
de nosso corpus. No primeiro, trata-se de uma personagem:
lemos que lorde Buckingham foi apunhalado por um de seus oficiais, um tal de
Felton, e pelo que sei isso é considerado uma verdade histórica (...) Um historiador
sério deve estar sempre pronto a declarar que Buckingham foi apunhalado por
outra pessoa, se eventualmente um pesquisador dos arquivos britânicos provar que
todos os documentos conhecidos são falsos. Nesse caso, diríamos que
historicamente não é verdade que Felton apunhalou Buckingham, porém o mesmo
fato continuaria sendo verdadeiro no âmbito da ficção. (ECO, 1994, p.97)
No segundo, o tema é o cenário. Eco relata que Aramis morava em uma esquina de
certa rue Servandoni, em Paris. Entretanto, isso é impossível, uma vez que o arquiteto
italiano Giovanni Servandoni, que empresta seu nome ao logradouro, nasceu apenas em
1695, e a ação do romance transcorre em 1625. Por sua vez, D’Artagnan habitava a rue des
Fossoyeurs, que hoje não existe mais porque passou a se chamar Servandoni. Eco ironiza a
situação com a insinuação de que “D’Artagnan mora na mesma rua de Aramis sem se dar
conta de tal fato” (Ibid., p.111).
Evidentemente se trata de um erro de Dumas, um equívoco inocente e sem
consequências para o enredo do romance. Porém, Eco se aproveita dele para um debate
40
curioso: e se Dumas postulasse que Aramis vive na rue Bonaparte? A maioria dos leitores
certamente perceberia o anacronismo, visto que se trata de um personagem histórico
posterior ao Antigo Regime. Tal como o “desconhecido” Servandoni.
A existência da rue Servandoni em 1625 é verossímil de uma forma que a da rue
Bonaparte não é, mas o fato que impossibilita a ambas é o mesmo. A questão, portanto, não
é a incoerência em si; é a capacidade do leitor de percebê-la. Afinal, se por um lado todo
mundo sabe quem foi Napoleão Bonaparte, por outro, “para saber quem foi Servandoni é
preciso saber um bocado de arte, e para saber que a rue des Fossoyeurs era a rue Servandoni
é preciso ter um bocado de conhecimento especializado” (Ibid., p.114). A isto, Eco chama
“competência enciclopédica” do leitor, isto é, o que este precisa saber para compreender a
obra.
Dumas certamente não contou que o leitor estivesse de posse dessa informação, mas
até que ponto isso é controlável? – pergunta Eco. Ou, até que ponto a verossimilhança do
romance histórico precisa se ater aos fatos históricos e, neste caso, também geográficos?
Quem é o leitor imaginado pela narrativa, o que ele sabe e o que precisa saber sobre o
universo em que se passa a ação? Tais questões serão essenciais à investigação de nosso
corpus de pesquisa.
Assim como aos performativos de Austin, à ficção segundo Searle, Rosenfeld e Eco
não se aplicam as categorias de “verdadeiro” ou “falso”. Com efeito, a ficção assim
concebida é um tipo especial de performativo: o que é narrado se torna real por ato linguístico,
e a obra funda seu próprio espaço de referência e suas próprias condições de realidade e de
verossimilhança – e, consequentemente, de “felicidade”; em suma, cria os critérios pelos
quais será validada ou não.
A metaficção atua nesse espaço. Quando chama atenção para sua própria construção
– seja de maneira explícita, seja implícita –, dificulta a “suspensão da descrença”
(BERNARDO, 2010, p.166) e cria uma nova mimese: a mímesis do processo, em detrimento
da mímesis do produto, conforme descreve Hutcheon (1980, p.5). A metaficção se impõe,
então, como uma “mentira sincera”: sem deixar de ser ficção, isto é, uma história
deliberadamente inventada por alguém por algum motivo mais ou menos específico e
definido, não se propõe “enganar” o leitor; sem abrir mão da possibilidade de catarse,
permite a este que também participe da construção do sentido da narrativa e repense
continuamente sua própria relação com a leitura, a escrita, a ficção e, consequentemente,
41
com a realidade a seu redor. Conforme anota Rosenfeld na conclusão de seu ensaio, a obra
literária nos restitui
uma liberdade – o imenso reino do possível – que a vida real não nos concede. A
ficção é um lugar ontológico privilegiado: lugar em que o homem pode viver e
contemplar, através de personagens variadas, a plenitude da sua condição, e em
que se torna transparente a si mesmo; lugar em que, transformando-se
imaginariamente no outro, vivendo outros papéis e destacando-se de si mesmo,
verifica, realiza e vive a sua condição fundamental de ser autoconsciente e livre,
capaz de desdobrar-se, distanciar-se de si mesmo e de objetivar a sua própria
situação. (ROSENFELD in CANDIDO et al., 2011, p.48)
A metaficção, quando praticada e lida de modo crítico, contribui para amplificar essa
condição comum a toda narrativa literária, na medida em que as identidades de autor, leitor
e personagem tendem a se misturar e confundir continuamente.
2.2.2 A realidade como ficção
É célebre a passagem da Arte poética na qual Aristóteles opõe ficção e não ficção,
sob os termos Poesia e História: “a diferença está em que um [o historiador] narra
acontecimentos e o outro [poeta], fatos quais podiam acontecer. Por isso, a Poesia encerra
mais filosofia e elevação do que a História; aquela enuncia verdades gerais; esta relata fatos
particulares” (ARISTÓTELES, 2005, p.28).
O filósofo supõe a separação entre fatos e representações (imitações), entre verdade
e especulação. Entretanto, tanto as formulações que pretendem referir-se à realidade (a seres
onticamente autônomos) quanto as ficcionais (intencionais) têm desafiado essa concepção.
Como vimos, a teoria dos atos de fala de Austin inaugurou uma visão performativa da
linguagem, em que a realidade é mais criada do que reproduzida por ela, denunciando sua
“ilusão descritiva”, conforme o comentário de Fiorin (2004, p.170).
Outras correntes teóricas, ligadas a diferentes campos do conhecimento, seguiram
trilha similar. Apresentaremos, a seguir, alguns exemplos oriundos da teoria literária, da
sociologia, da filosofia e da história.
Na década de 1980, o teórico alemão Siegfried J. Schmidt apresentou os fundamentos
de uma ciência empírica da literatura, a partir do trabalho do grupo de pesquisas NIKOL,
primeiramente nas universidades alemãs de Bielefeld (1972-80) e, mais tarde, de Siegen.
Seu principal objetivo era superar o “dogma da dicotomia fundamental entre as ciências
naturais e humanas”, o qual “faz parte do arsenal de esquemas dualistas do pensamento
42
positivista” (SCHMIDT, 1989, p.54). Não por acaso, o primeiro desses esquemas criticados
por ele é “realidade/ficção”. O autor explica que, em sua concepção epistemológica,
percepção e conhecimento não reproduzem uma realidade objetiva, mas elaboram
ou constroem algo que aceitamos cognitivamente como realidade e que orienta
nossa conduta e ação. (...) Realidade se entende como um conjunto de
descrições/representações e não como um conjunto de coisas objetivas. (Ibid.,
pp.56-7)
Quanto ao papel da linguagem, Schmidt alinha sua visão ao construtivismo dos
biólogos chilenos Humberto Maturana e Francisco Varela: “a função básica da língua não é
a transmissão de informação ou a descrição de um mundo exterior independente, sobre o
qual podemos falar, mas a produção de um campo consensual de conduta entre sistemas
verbalmente interativos...” (MATURANA (1982) apud SCHMIDT, 1989, p.58).
Siegfried Schmidt cita ainda o teórico da cultura inglês Raymond Williams, o qual,
por sua vez, buscara inspiração também na biologia, especificamente nos livros Doubt and
Certainty in Science – a Biologist’s Reflection on the Brain, de J. Z. Youngs, e Mind,
Perception and Science, de Sir Walter Russel Brain, ambos publicados em 195113. “Daqui
em diante devemos pressupor que, neste sentido, a realidade como a experimentamos
representa uma criação humana, que toda a nossa experiência representa uma versão humana
do mundo em que vivemos” (WILLIAMS (1977) apud SCHMIDT, 1989, p.65, itálicos do
autor).
Isso significa que esses biólogos, trabalhando em separado e de um ponto de vista
diferente daquele da filosofia da linguagem, chegam a uma conclusão bastante semelhante à
de Austin – e pouco tempo antes –, e Schmidt se encarrega de avaliar seu impacto para a
teoria da literatura. Ademais, a ideia de que o sentido de um enunciado não pode ser
apreendido fora de seu contexto de produção e recepção, presente em Austin (1975) e em
Eco (1983), também está em Schmidt (1989, p.59).
No campo da sociologia, é notável como as ideias de Peter L. Berger e Thomas
Luckmann sobre A construção social da realidade (1966, edição brasileira em 1973) se
aproximam das proposições de Anatol Rosenfeld sobre a ficção. Em primeiro lugar, eles
afirmam que
13 Respectivamente, Dúvida e certeza em ciência – reflexão de um biólogo sobre o cérebro e Mente,
Percepção e Ciência. Não foi possível encontrar versões destas obras em língua portuguesa. É digno de nota
que a biologia chegou a tais conclusões antes da filosofia e da linguística, visto que as conferências de J. L.
Austin datam de 1955.
43
o mundo da vida cotidiana não somente é tomado como uma realidade certa pelos
membros ordinários da sociedade na conduta subjetivamente dotada de sentido
que imprimem a suas vidas, mas é um mundo que se origina no pensamento e nas
ações dos homens comuns, sendo afirmado como real por eles.” (BERGER &
LUCKMANN, 1973, p.36, itálico nosso)
Assim como segundo Searle e Rosenfeld o discurso ficcional se caracteriza pela
intencionalidade, também a consciência sobre a realidade da vida cotidiana, como insistem
os sociólogos. Utilizando a primeira pessoa do singular como representação da
“autoconsciência ordinária na vida cotidiana” (Ibid., p.37), e referindo-se sempre à
“realidade da vida cotidiana” e não simplesmente à “realidade”, afirmam que ela
aparece já objetivada, isto é, constituída por uma ordem de objetos que foram
designados como objetos antes de minha entrada em cena. A linguagem usada na
vida cotidiana fornece-me continuamente as necessárias objetivações e determina
a ordem em que estas adquirem sentido e na qual a vida cotidiana ganha
significado para mim. (...) A linguagem marca as coordenadas de minha vida na
sociedade e enche esta vida de objetos dotados de significação. (Ibid., pp.38-9)
A linguagem como um mapa, ou uma bússola, que “marca as coordenadas”, é a
primeira de três metáforas a respeito da forma como experimentamos, ou objetivamos, a
realidade cotidiana. A segunda delas os aproxima ainda mais do discurso poético: “A
linguagem constrói, então, imensos edifícios de representação simbólica que parecem
elevar-se sobre a realidade da vida cotidiana como gigantescas presenças de outro mundo”
(Ibid., p.61).
De acordo com Berger & Luckmann, outras realidades se apresentam como “campos
finitos de significação”, em paralelo com a vida cotidiana; é o caso dos sonhos e das
experiências religiosas e estéticas (Ibid., pp.42-3). Com efeito, a ficção é tratada por
Rosenfeld como um campo finito, quando afirma:
a limitação da obra ficcional é a sua maior conquista. Precisamente porque o
número das orações é necessariamente limitado (enquanto as zonas
indeterminadas passam quase despercebidas), as personagens adquirem um cunho
definido e definitivo que a observação das pessoas reais, e mesmo o convívio com
elas, dificilmente nos pode proporcionar a tal ponto. (ROSENFELD in CANDIDO
et al., 2011, p.34)
Isso ocorre, segundo o crítico, porque o leitor se atém ao que é positivamente dado
sobre as personagens. Na mesma obra, Antonio Candido lembra que personagem, enredo e
“ideias” de um texto “só existem intimamente ligados, inseparáveis, nos romances bens
realizados” (CANDIDO in CANDIDO et al., 2011, p.54) – isto é, o personagem é idealizado
44
para existir somente dentro daquele contexto, daí seu caráter determinado: “na vida tudo é
praticamente possível; no romance é que a lógica da estrutura impõe limites mais apertados,
resultando, paradoxalmente, que as personagens são menos livres, e que a narrativa é
obrigada a ser mais coerente do que a vida” (Ibid., p.76). Também o filósofo Emmanuel
Levinas vê as personagens de ficção como “prisioneiras” do enredo: “Their history is never
finished, it still goes on, but makes no headway. A novel shuts beings up in a fate despite
their freedom”.14 (LEVINAS, 1989, p.135)
As aproximações entre a ficção e a realidade da vida cotidiana conforme descrita por
Berger & Luckmann não se resumem a esta:
Embora seja capaz de empenhar-me em dúvida a respeito da realidade dela [vida
cotidiana], sou obrigado a suspender esta dúvida ao existir rotineiramente na vida
cotidiana. Esta suspensão da dúvida é tão firme que para abandoná-la, como
poderia desejar fazer por exemplo na contemplação teórica ou religiosa, tenho de
realizar uma extrema transição. (BERGER & LUCKMANN, 1973, p.41)
Ora, essa suspensão em nada difere da “suspensão (voluntária) da descrença” que
Coleridge postulou como condição para fruição do texto literário; aqui, ela é necessária para
a própria sobrevivência social do indivíduo. A transição de que se fala no final da passagem
é exemplificada por aquela efetuada pelo filósofo e pelo cientista quando se afastam do senso
comum no exercício da reflexão teórica – assim como do teórico e/ou crítico da literatura
quando substitui uma leitura emocional, catártica, de uma obra para se dedicar a seu estudo
metódico, sistemático.
É o contexto de recepção que determinará como abordaremos cada estímulo
proveniente do ambiente, conforme se apreende da terceira metáfora dos sociólogos:
Meu conhecimento da vida cotidiana tem a qualidade de um instrumento que abre
caminho através de uma floresta e enquanto faz isso projeta um estreito cone de
luz sobre aquilo que está situado logo adiante e imediatamente ao redor, enquanto
em todos os lados do caminho continua a haver escuridão. (Ibid., p.66)
No dia a dia, cada um de nós escolhe, a cada instante, que “caminho” quer iluminar:
a realidade da vida cotidiana, uma obra de ficção, o conhecimento científico ou filosófico, a
vivência religiosa etc. Não há, nesse modelo, hierarquia de maior ou menor aproximação ou
distanciamento com relação a uma realidade ontológica, concreta, a qual permanece vasta e
inacessível demais sem a mediação da linguagem.
14 “Suas histórias nunca terminam, elas continuam, mas não progridem. Um romance prende (cala) os seres
num destino a despeito da liberdade deles”.
45
Nas palavras de Levinas,
an artwork prolongs, and goes beyond, common perception. What common
perception trivializes and misses, an artwork apprehends in its irreducible essence.
It thus coincides with metaphysical intuition. Where common language abdicates,
a poem or a painting speaks. Thus an artwork is more real than reality and attests
to the dignity of the artistic imagination.15 (LEVINAS, 1989, p.130)
Outro filósofo, o tcheco radicado no Brasil Vilém Flusser, vê outro aspecto da
questão. Os próprios títulos dos capítulos de seu livro Língua e realidade (1963) são
significativos: “A língua é realidade”; “A língua forma realidade”; “A língua cria realidade”;
e “A língua propaga realidade”. Seu argumento parte de premissas simples: se realidade é o
“conjunto dos dados” a que temos acesso, e língua é a forma como compreendemos esses
dados, então esta molda a noção que temos do real e é, ela própria, o “dado” por excelência.
O autor resume numa analogia inspirada:
O intelecto (...), os sentidos (...), o espírito (...) formam o Eu. O Eu é, portanto,
uma árvore, cujas raízes, os sentidos, estão ancoradas no chão da realidade, cujo
tronco, o intelecto, transporta a seiva colhida pelas raízes, transformada até a copa,
o espírito, para produzir folhas, flores e frutos. Tal qual a árvore consiste
inteiramente de seiva modificada, não passando, do ponto de vista da seiva, de um
canal através do qual a seiva evapora do chão em direção à nuvem, também o Eu
é inteiramente feito da realidade colhida pelos sentidos, não passando de um canal
através do qual a realidade se derrama em direção ao futuro. (FLUSSER, 1963,
pp-30-1)
Não se trata, portanto, de negar a existência de uma realidade concreta, mas sim da
impossibilidade de articulá-la: “A verdade é uma correspondência entre frases ou
pensamentos, resultado das regras da língua. A verdade absoluta, essa correspondência entre
a língua e o ‘algo’ que ela significa, é tão inarticulável quanto esse ‘algo’.” (Ibid., p.30). Ou,
em termos filosóficos: o problema não é ontológico, e sim epistemológico.
Ainda assim a formulação é de tal modo radical, que Gustavo Bernardo obriga-se a
resumir, quando reflete sobre o assunto: “A realidade como a conhecemos é sim um produto
do discurso, mas há uma realidade para além do discurso, sem a qual, inclusive, não haveria
discurso” (KRAUSE, 2005, p15).
2.2.3 A construção da história
15 “uma obra de arte prolonga, e vai além, da percepção comum. O que a percepção comum trivializa e
ignora, uma obra de arte apreende em sua essência irredutível. Assim, ela coincide com a intuição metafísica.
Onde a linguagem comum se omite, um poema ou uma tela fala. Assim, uma obra de arte é mais real que a
realidade e atesta a dignidade da imaginação artística.” (Tradução nossa.)
46
Um caso de particular interesse acerca desse contexto é a história, por ser uma forma
de conhecimento sobre a realidade, sobre a “verdade” dos fatos. Novais & Silva (2010)
lembram que a história existe desde a Antiguidade, porém somente se articulou como ciência
no século XIX, quando surgiram outras ciências humanas e precisou-se diferenciá-la da
sociologia, da antropologia etc. Era o ápice da filosofia positivista, e a história firmou-se
como forma de acesso à verdade dos fatos do passado. Esse pensamento, representado por
autores como Ranke, ficou conhecido como historicismo. Ao longo do século XX, ele sofreu
pelo menos duas contestações de relevo.
Uma delas veio à tona em 1940, sob a forma das teses “Sobre o conceito de História”,
o último escrito de Walter Benjamin. Dentro da perspectiva marxista, o filósofo alemão
percebe que o modelo historicista invariavelmente identificava-se com o ponto de vista dos
“vencedores”; por isso, clama por uma história que denuncie a opressão e possa servir como
forma de transformação social. Benjamin subverte o sentido da história: ao invés da
emergência do passado no presente, ela é uma visão do presente sobre o passado. “Articular
historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-
se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN,
1994, p.224). Nessa concepção revolucionária, cabe à crítica marxista (materialismo
histórico) “escovar a história a contrapelo” (Ibid., p.225), ou seja, recusar o conhecimento
histórico tal como vinha sendo apresentado.
Se não há uma forma única de escrever a história, então o passado não é transparente
à sua representação pela linguagem. Ao propor uma história contra o conformismo e que
seja um motor de transformação política e social, Benjamin prenuncia o que poderia ser
descrito como uma visão performativa da história; esta tem sua origem na linguagem e não
no evento passado que descreve.
A outra corrente a renovar essa forma de conhecimento é a que ficou conhecida como
Escola dos Analles. A revista Annales d’histoire économique et sociale foi fundada na
França em 1929 e, à medida que avançava o século, desenvolveu uma forma própria de fazer
a história. De acordo com José Carlos Reis (2000), toda inovação na historiografia advém
de uma mudança na forma de abordar o tempo histórico; a escola dos Annales foi
particularmente inovadora porque, além de buscar romper com o paradigma historicista,
positivista, então predominante, assimilou as lições trazidas pelas ciências sociais surgidas
no século XIX. É evidente que, em uma trajetória de décadas, o periódico passou por
transformações, representadas em três fases. Entretanto, dentro de uma compreensível
47
heterogeneidade, alguns elementos são constantes: “a perspectiva da longa duração, a
tentativa de superação do evento, a partir da influência das ciências sociais, que permitiu a
interdisciplinaridade.” (Ibid., p.20, itálico no original). A principal conquista dessa escola
foi o reconhecimento da
impossibilidade de se ‘narrar os fatos tal como se passaram’. Reconhece-se que
não há história sem teoria. (...) o historiador sabe que escolhe seus objetos no
passado e os interroga a partir do presente. (...) [Consequentemente,] o texto
histórico é o resultado de uma explícita e total construção teórica e não o resultado
de uma narração objetivista de um processo exterior organizado em si pelo final.
(Ibid., p.25)
Tal qual em Walter Benjamin, há uma relação dialética, de mão dupla, entre passado
e presente, e uma consciência de que a história pode e deve servir no sentido de produzir
acontecimentos e não apenas descrevê-los.
Novais & Silva, por sua vez, identificam uma diferença entre dois modelos: a
“história-acontecimento” e a “história-discurso”. Esta última, mais recente, “é sempre a
narrativa de fragmentos desse objeto absolutamente indelimitável” que é a experiência
humana (NOVAIS & SILVA, 2011, p.17). O fato de se admitir como discurso, narrativa,
fragmento, indica que essa história reconhece o seu caráter de construção, e não mais um
acesso direto e privilegiado a uma realidade do passado.
O resultado é que, no final do século XX, a história como disciplina havia
diversificado sua atuação, incorporando novas fontes, objetos de estudo e metodologias,
influenciada tanto por Benjamin quanto pelos Annales, bem como por autores pós-
estruturalistas. O volume A escrita da história, organizado por Peter Burke (1992), é
exemplar desse fenômeno. Cada um de seus capítulos representa um dos ramos desta que
ficou conhecida como “nova história”. Na apresentação do livro, Burke rejeita a metodologia
tradicional, rankeana, e afirma categoricamente: “a base filosófica da nova história é a ideia
de que a realidade é social ou culturalmente constituída” (BURKE, 1992, p.11).
Das tendências representadas no livro de Burke – micro-história, história de além-
mar, história do corpo... –, interessa-nos “A história das mulheres”, devido à proximidade
temática com nosso corpus literário de pesquisa. Retornaremos a ela posteriormente; por ora,
fiquemos com as observações de Burke no ensaio que encerra o livro, intitulado “A história
dos acontecimentos e o renascimento da narrativa”. Após observar que “a narrativa não é
mais inocente na historiografia do que o é na ficção” (Ibid., p.330) – isto é, que tanto o
48
historiador quanto o leitor devem estar cientes de que produzem discursos e não reproduzem
verdades –, Burke conclui:
cada vez mais historiadores estão começando a perceber que seu trabalho não
reproduz ‘o que realmente aconteceu’, tanto quanto o representa de um ponto de
vista particular. Para comunicar essa consciência aos leitores de história, as formas
tradicionais de narrativa são inadequadas. Os narradores históricos necessitam
encontrar um modo de se tornarem visíveis em sua narrativa, (...) advertindo o
leitor de que eles não são oniscientes ou imparciais e que outras interpretações,
além das suas, são possíveis. (Ibid., p.337)
A história não é uma “mentira” no sentido em que a ficção o é, pois busca referência
nos “dados brutos” da realidade; porém, para poder manter sua credibilidade, sua
“sinceridade”, também se refugia na metalinguagem. Assim a crítica literária Patricia Waugh
resume a relação entre metaficção, realidade e história:
such [metafictional] writings not only examine the fundamental structures of
narrative fiction, they also explore the possible fictionality of the world outside
the literary fictional text. (...) Non-fiction novels suggest that facts are ultimately
fictions, and metafictional novels suggest that fictions are facts. In both cases,
history is seen as a provisional construct.16 (WAUGH apud BERNARDO, p.46 e
p.48)
Uma vez mais, não se trata de negar a existência de uma realidade ontológica – o que
impossibilitaria a própria história. Para retomar a epígrafe deste capítulo, os versos de Jorge
Drexler “La historia es una red / y no una vía” (“A história é uma rede / e não uma via”)
podem se referir tanto a uma estória – uma narrativa literária, de ficção, conforme o exemplo
com que abrimos o capítulo – mas também à própria história como disciplina, que não é
(mais) uma via de mão única e também permite a escolha de um entre diversos caminhos
possíveis.
16 “escritas metaficcionais não apenas examinam as estruturas fundamentais da ficção narrativa, elas também
exploram a possível ficcionalidade do mundo exterior ao texto literário ficcional. (...) Romances de não
ficção sugerem que os fatos são, em última análise, ficções, e romances metaficcionais sugerem que ficções
são fatos. Em ambos os casos, a História é vista como uma construção provisória.” Tradução nossa.
49
3. DOIS MACHADOS, APENAS UMA CAPITU
Woman is the nigger of the world
Think about it
Do something about it
(John Lennon / Yoko Ono,
Woman is the nigger of the world)
Harold Crick, protagonista vivido por Will Ferrell no filme Mais estranho que a
ficção (Stranger than fiction, dirigido por Marc Forster, 2006), é um auditor da Receita
Federal norte-americana. Na sequência inicial, uma voz feminina em off narra todas as suas
ações enquanto ele se arruma e sai para o trabalho, e assim o espectador conhece sua rotina
monótona, rigidamente controlada por seu relógio de pulso.
Certo dia, Harold começa a escutar essa voz a relatar seus atos “com detalhes e com
vocabulário melhor”, como ele mesmo diz. Seu primeiro impulso é procurar uma psiquiatra,
que o diagnostica com esquizofrenia. Ele nega a doença, sob a alegação de que a voz fala
sobre ele, e não com ele. A médica lhe indica, ironicamente, que procure alguém que entenda
de literatura, e assim surge na história o professor de teoria literária Jules Hilbert,
interpretado por Dustin Hoffman. O scholar de início satiriza a história de Harold, mas se
interessa quando este lhe conta que a voz utilizou a expressão “Little did he know...” (“Mal
sabia ele que...”). Explica ao personagem que esse é um indício claro de “literariedade”, e é
preciso descobrir se sua vida é uma comédia ou uma tragédia – “Se for comédia, você se
casa; se tragédia, você morre”, e o espectador já percebeu que se trata da primeira.
Harold é encarregado de auditar as contas de uma padaria e se apaixona pela
investigada, Ana Pascal (Maggie Gyllenhall). A voz narrativa ora desaparece, ora atormenta
os passos do rapaz. Em paralelo a esse enredo, é mostrada a história de Karen Eiffel, escritora
vivida por Emma Thompson. Com a ajuda do professor Hilbert, Harold descobrirá que Eiffel
é não apenas autora/narradora de sua história, mas de diversos romances trágicos. Retirado
de sua rotina monocórdica e apaixonado por Ana, Harold irá lutar por sua vida. O encontro
paradoxal entre autora e personagem – a “reviravolta aninhada” – se dá no momento em que
Eiffel escreve a frase “The telephone rang” e seu telefone realmente toca; o fato se repete
(“The telephone rang again.”). No terceiro toque (“The telefone rang a third time”), ela
50
atende. Harold se apresenta como protagonista do romance, intitulado Death and taxes17, e
na cena seguinte está no escritório da autora.
Harold deixa o manuscrito do romance com o professor Hilbert e recebe uma crítica
negativa: segundo este, trata-se da obra-prima da escritora, mas, para isso, o protagonista
precisa morrer. O próprio auditor lê o texto e se convence disso; devolve-o à autora pedindo
que o complete. Ele se prepara, então, para a morte.
Ao descobrir a existência concreta de Harold, Eiffel entra em crise por ter matado
tantas pessoas (seriam também “reais”?) e muda de ideia. Harold é atropelado por um ônibus
mas sobrevive, salvo por uma peça de seu relógio de pulso. Ela justifica: “É uma história de
um homem que não sabe que vai morrer, e morre. Mas se ele sabe que vai morrer, e mesmo
assim se dispõe a isso, não é o tipo de pessoa que você gostaria de deixar vivo?” Assim a
ficção de Karen Eiffel espelha o próprio filme, encerrando-se como comédia conforme
explicitado anteriormente dentro da obra: Harold e Ana juntos. Em momento nenhum do
filme se explica o que o título consideraria “mais estranho que a ficção”, nem se faz
necessário: é a própria vida, a própria realidade. Curiosamente – ou estranhamente – isso se
faz por meio de um personagem (fictício) que percebe que sua realidade é uma ficção.
O processo que ocorre nessa obra é inverso ao que se observa no romance de Ana
Maria Machado, A audácia dessa mulher, mas com efeito bastante semelhante. No filme,
temos um protagonista que se descobre criação ficcional e tenta mudar o destino preconizado
pelas palavras da escritora – nos termos de John Austin (1975), esforça-se para que as
condições de felicidade do performativo não se realizem e ele permaneça vivo. Essa
descoberta se dá pelo texto literário sendo narrado em sua cabeça, como se uma voz divina
o manipulasse – uma “terceira-pessoa onisciente”, informa Harold Crick à sua autora dentro
da ficção. Nenhum personagem, como ele, exemplifica de modo tão contundente nossa
hipótese de a ficção ser um caso especial da performatividade da linguagem, aquele que
assume para si mesmo a criação de um universo próprio de referência e realidade. A
existência concreta de Harold surpreende a sua própria autora, que imaginava estar criando
seres ficcionais e passa a questionar quantas outras pessoas – e não personagens – havia
matado. É evidente que, do ponto de vista do leitor, são dois níveis diferentes de ficção, mas
isso não muda o paradoxo vivido pelos personagens.
17 “Morte e impostos”. Referência ao enredo trágico e à profissão do protagonista Harold Crick, o título
retoma uma frase atribuída a Benjamin Franklin, segundo a qual “Só há duas coisas certas na vida: a morte e
os impostos.”
51
No romance A audácia dessa mulher também existe uma voz narrativa que se impõe
e faz questão de marcar sua posição hierárquica sobre as personagens, mas a todas, e não
apenas uma como no filme. Também ocorre um encontro entre alguém que se acredita “real”
e se depara com um personagem ficcional. No entanto, quando Beatriz descobre a carta
escrita por Capitu, ela supõe a existência empírica do universo machadiano, sem questionar
a sua própria autonomia ôntica. Seguindo a analogia com o filme Mais estranho que a ficção,
Bia está em posição mais semelhante à da escritora Karen Eiffel do que à do personagem
Harold Crick: ambas descobrem que seres fictícios existem “de verdade”, sem fazer ideia de
que são elas mesmas ficções também.
3.1 Quatro modalidades de metaficção
3.1.1 “Babushka”
A audácia dessa mulher se inicia como uma narrativa tradicional em terceira pessoa,
porém seu caráter metaficcional já está presente. Os protagonistas, a jornalista Beatriz (Bia)
e o chef de cozinha Virgílio, se conhecem numa emissora de televisão no Rio de Janeiro,
convidados pelo autor de um programa de teledramaturgia – minissérie ou telenovela –
intitulado “Ousadia”, para prestar consultoria à produção.
A obra teledramatúrgica se passa no século XIX e é descrita como quase um plágio
de Dom Casmurro. Seu autor, Muniz, menciona um livro sobre viagens publicado por Bia e
estabelece uma relação entre viajar fisicamente e viajar no tempo, de maneira que o papel
dela seria ajudar a equipe a “ver o passado com esses olhos de viajante” (MACHADO, 1999,
p.15); Virgílio, por sua vez, é chef e formado em arquitetura, de modo que está apto a
contribuir por seus conhecimentos tanto de gastronomia quanto da geografia do Rio de
Janeiro. Nenhum dos dois está convencido de poder ser realmente útil, mas ambos aceitam
que pode ser uma experiência positiva.
Com efeito, mais tarde Muniz oferecerá ao leitor – mas jamais às personagens –
outras possíveis razões que o levaram a esse convite. A primeira delas é explicitada ainda
nesse primeiro capítulo (para a outra razão, ver item 3.1.2). Para celebrar o “sim” de seus
convidados, ele diz ao final da reunião:
Um homem que adora ficar na cozinha e uma mulher que gosta de viajar sozinha...
Não é só uma rima. É, isso sim, um sinal dos tempos. Papéis trocados. Duas ideias
impensáveis no século XIX. Uma contribuição de nosso século para a história da
humanidade. (Ibid., p.17)
52
A viagem temporal é, assim, de “mão dupla”: um enredo do século XIX preparado e
exibido na TV no limiar do XX para o XXI, e a experiência do século XX a serviço dessa
construção. Ao mesmo tempo, anuncia o tema central do romance: as identidades de gênero,
sobretudo o feminino.
“Ousadia” é, portanto, a primeira ocorrência metaficcional de A audácia dessa
mulher; nos moldes do que Gustavo Bernardo (2010, p.31) caracterizou como babushka:
uma história dentro da história, a qual refletirá o movimento principal da obra.
3.1.2 Metaficção explícita: quem fala ao leitor?
No capítulo seguinte, o recurso à metalinguagem assume outro rumo e outra
dimensão no texto, justificando a longa citação:
Perdoe-nos a amável leitora ou o gentil leitor, mas as convenções que regem a
feitura de um romance em nossa época diferem grandemente das vigentes no
século XIX, que permitiam a um narrador externo, no momento da escrita, esta
conversa direta com quem iria passar os olhos pela futura página impressa. Essas
coisas que o linguista Roman Jakobson mais tarde chamaria de função fática da
linguagem, que serve apenas para manter o contato e frisar: “sim, não adianta
fingir, somos pessoas nos comunicando e sabemos disso”. Como o alô que se dá
ao atender o telefone, ou o cacoete do professor que fica repetindo ’tão entendendo?
Depois que os romancistas do século XVIII descobriram esta possibilidade
sedutora e difícil, dando ocasionais piscadelas ao leitor, ela virou moda e mania e
foi usada à exaustão. Raramente com o viço irreverente empregado por Sterne e
Fielding quando a criaram, é bom lembrar. Mas a posterior tendência a transformar
esse recurso em clichê não impediu que aqui mesmo, nesta cidade, Machado de
Assis elevasse esse procedimento à categoria de obra-prima, transformando-o num
dos traços mais típicos e deliciosos de seu estilo.
Só que hoje, um século depois, não dá mais. O lembrete foi apenas um lampejo de
viagem no tempo, ao gosto de Bia e no espírito da novela (ou série). (...) Mas a
história continua mesmo é com uma roupagem mais atual, uma convenção tão
rígida quanto as de épocas anteriores – agora, trata-se da regra não escrita que
exige coerência. E que, embora admita e encoraje que a narrativa se faça toda em
aparente caos a partir de um ponto de vista interno, o da consciência de um
personagem, não gosta de misturas. Considera que um livro que começou com um
narrador impessoal não pode trazer essas intromissões em primeira pessoa. Ainda
mais quando não fica claro se quem está falando é o autor (ou a autora, que
audácia!), um narrador não identificado, ou um dos personagens. (MACHADO,
1999, pp.19-20)
A passagem inicia emulando o recurso machadiano de adjetivar o leitor (gentil) e a
leitora (amável) e faz referência direta ao autor de Dom Casmurro como um mestre da arte
metanarrativa. Ao mesmo tempo, através do dêitico “aqui, nesta cidade”, situa o lugar de seu
discurso, o mesmo Rio de Janeiro de Machado de Assis, para em seguida localizá-lo também
no tempo – “hoje, um século depois” (do Bruxo do Cosme Velho). O texto, em essência,
comenta os seus próprios critérios de confecção através de um histórico da metalinguagem
53
na ficção desde o século XVIII até se tornar “clichê”, no XIX. No entanto, atribui tal recurso
à “função fática” da linguagem.
Teria a autora se enganado ou tentado despistar o leitor? Por um lado, os exemplos
que utiliza (o “alô” ao telefone e a pergunta do professor) correspondem de fato ao que
Jákobson chama função fática: “mensagens que servem fundamentalmente para prolongar
ou interromper a comunicação, para verificar se o canal funciona (...), para atrair a atenção
do interlocutor ou confirmar sua atenção continuada” (JÁKOBSON, 1977, p.126); no
entanto, não é o que ocorre nessa apóstrofe ao leitor. O enredo é interrompido, mas não o
discurso literário; ao contrário, esse diálogo direto é parte da estratégia de significação e
comunicação do texto; a não ser que nos atenhamos ao “atrair a atenção do interlocutor” –
no caso, para o caráter construído do próprio texto. De certa maneira, se a metalinguagem é
caracterizada por tematizar a linguagem, e a função fática por atrair a atenção do interlocutor,
então se pode considerar a ocorrência simultânea de ambas no trecho.
Em sequência, a passagem menciona indiretamente a técnica do fluxo de consciência
(“aparente caos a partir de um ponto de vista interno”) e, em seguida, autora deseja-se
transgressora, pois após um capítulo narrado de forma tradicional, em terceira pessoa, rompe
com a “coerência”, intervém (ou “se intromete”, numa formulação mais agressiva) no enredo.
Para encerrar, acena ao leitor com a dúvida sobre quem realiza essa intromissão: narrador(a),
autora ou personagem? Vale observar que esta mesma “voz” ocorre com frequência razoável
ao longo do romance, sempre em momentos estratégicos.
Umberto Eco oferece uma resposta útil a essa questão em seu livro Lector in fabula.
O semiólogo italiano parte da ideia de que nenhum enunciado possui significado ou sentido
determinado em si mesmo, desarticulado do contexto de sua atualização pelo destinatário:
“O texto é uma máquina preguiçosa que requer do leitor um árduo trabalho cooperativo para
preencher espaços do não-dito ou do já-dito, espaços, por assim dizer, deixados em branco,
então o texto não é mais do que uma máquina pressuposicional” (ECO, 1983, p.27). Adiante,
o autor reformula a metáfora, substituindo o adjetivo “preguiçoso” por “econômico”: “[o
texto] vive da mais-valia de sentido que o destinatário lhe introduz” (Ibid., p.55), e, de modo
mais denotativo: “Um texto é um artifício sintático-semântico-pragmático cuja interpretação
previsível faz parte do próprio projeto generativo” (Ibid., p.71).
Essa “interpretação previsível” significa que o autor/emissor da mensagem, no ato
de produzi-la, tem em mente as maneiras como ela deve ser decodificada e compreendida.
54
A essa estratégia capaz de concretizar o sentido desejado, de conduzir a interpretação
imaginada pelo autor empírico, Eco denomina “Leitor-Modelo”:
Para organizar a própria estratégia textual, um autor deve referir-se a uma série de
competências (expressão mais vasta que “conhecimento dos códigos”) que
conferem conteúdo às expressões que utiliza. Deve assumir que o conjunto de
competências a que se refere é o mesmo de seu leitor. Por conseguinte, deverá
prever um Leitor-Modelo capaz de cooperar na atualização textual como ele, o
autor, pensava, e de se mover interpretativamente tal como ele se moveu
generativamente. (Ibid., p.58)
Eco insiste na ideia de que o Leitor-Modelo não é um ente físico, mas uma estratégia
textual imaginada de modo mais ou menos consciente pelo autor empírico – este sim, o ser
concreto: “O Leitor-Modelo é um conjunto de condições de felicidade textualmente
estabelecidas, que devem ser satisfeitas a fim de que um texto seja plenamente atualizado no
seu conteúdo potencial” (Ibid., p.65, itálico nosso). É interessante notar o emprego da
expressão “condições de felicidade”, presente na teoria dos atos de fala de Austin; com ela
Eco comprova seu débito junto a essa filosofia da linguagem. De modo simétrico, há o
Autor-Modelo:
é possível falar de Autor-Modelo como hipótese interpretativa quando
configuramos o sujeito de uma estratégia textual tal como aparece no texto que
examinamos, e não quando se coloca a hipótese, dentro da estratégia textual, de
um sujeito empírico que talvez quisesse ou pensasse, ou quisesse pensar, coisas
diversas daquelas que o texto disse ao seu Leitor-Modelo, comparado aos códigos
a que se refere. (Ibid., p.68, itálico nosso)
Uma vez mais está explícita a noção de que Autor- e Leitor-Modelo não estão fora
do texto, não são projeções das intenções nem das expectativas do autor e do leitor empíricos.
Fica nítido o desejo do teórico de não confundir a persona do escritor com o universo próprio
do texto.
É precisamente o que acontece em A audácia dessa mulher, em consonância com os
exemplos apresentados por Eco tanto em Lector in fabula quanto nos Seis passeios pelos
bosques da ficção (1994, pp.14, 20-4)18, conferências em que retomou tais conceitos. A “voz”
que se dirige ao leitor não é personagem, porque não participa da ação; não é narrador,
porque a narrativa é em terceira pessoa; e é arriscado confundi-la com a autora empírica Ana
Maria Machado, sob risco de se confundirem o ambiente extratextual e o diegético. O Autor-
Modelo – chamemos Autora-Modelo, para adaptarmos ao tema do romance e desta
18 Os principais exemplos em ECO, 1994 são Sylvie, de Gérard de Nerval, a abertura de Pinocchio, de Carlo
Collodi, e A narrativa de Arthur Gordon Pym, este último já mencionado anteriormente.
55
Dissertação – surge então como um conceito adequado para tal situação: faz parte da
estratégia discursiva, mas não da ação narrada.
Outro episódio que pode ser visto como reflexividade metaficcional ocorre no
capítulo 9. Um roteirista da equipe de Muniz na série “Ousadia”, chamado Juliano, diz a Bia:
“Eu acho que ele gosta de brincar com as pessoas, como se todo mundo fosse ratinho no
laboratório dele...” (MACHADO, 1999, p.105). Diante da incompreensão de sua
interlocutora, ele explica:
Quando ele entra nesse processo de escrever e elege uma emoção para ser a
dominante da vez, ele inferniza todo mundo em volta para exacerbar essa emoção.
Só para observar e ver como é que funciona. Como antigamente tinha pintor que
só pintava vendo o modelo na frente. (Ibid., p.106)
O tema de “Ousadia”, como vimos, é o ciúme, à moda de Otelo e Dom Casmurro.
Juliano em seguida fala sobre duas ocasiões em que Muniz, sabedor de que Bia e Virgílio
começavam a se encontrar fora das reuniões na emissora, agira num sentido de provocar no
chef a ideia de um triângulo amoroso que incluía o próprio Juliano. Num romance em que
há a interferência direta da “Autora-Modelo” a se dirigir ao leitor e manifestar sua ingerência
sobre o destino dos personagens, essa postura de Muniz pode ser um reflexo da própria
autora ou Autora-Modelo na obra: ela determina o destino de seus personagens tal qual o
escritor quer usar de sua condição para manipular os que o cercam.
A conclusão de Juliano, na condição de personagem, é desoladora: “O diabo é que
os ratinhos somos nós” (Ibid., p.105). São eles cobaias no laboratório de Muniz ou no de
Ana Maria Machado?
3.1.3 Mistura de linguagens
Na continuação do segundo capítulo, após considerar incoerente sua intromissão na
história – mas ao mesmo tempo não abrir mão dela –, essa Autora-Modelo propõe uma
reviravolta na linguagem narrativa: “Melhor, portanto, retomar a objetividade de uma
câmera que se limita apenas a mostrar o que ocorre. Para quem acredita nisso.”, e a esta
observação segue-se um subtítulo: “CENA 2: Pista de Pedestres / Ciclovia da Lagoa. Manhã
de sol” (MACHADO, 1999, p.20). O encontro entre Bia e Virgílio nesse cenário é
apresentado em forma de texto dramático, estruturado em diálogo antecedido pela descrição
de movimentos de câmera e de figurantes até a entrada em cena dos protagonistas, e
entrecortado por rubricas, tal qual roteiro de cinema.
56
O recurso pode ser visto como uma forma implícita de metanarratividade, pois traz a
atenção do leitor para as estratégias de construção do texto ao comparar a estrutura da prosa,
predominante, com o formato dramático. Na tipologia proposta por Linda Hutcheon (1980),
este procedimento faria parte da modalidade linguística explícita, em que “o texto explora
seus blocos de construção – a própria linguagem cujos referentes servem para construir
aquele mundo imaginário” (REICHMANN, 2006, p.338).
Essa mistura de linguagens retorna adiante no romance no capítulo 9, em que a
colagem de três cenas da série “Ousadia” interrompe a ação (MACHADO, 1999, pp.110-4),
mas para levantar outras questões relevantes ao texto, as representações da escravidão e da
injustiça social, as quais abordaremos adiante.
3.1.4 Intertextualidade como recurso metanarrativo
No mesmo diálogo apresentado como roteiro, Bia apresenta a Virgílio, sem
entusiasmo, a sinopse de “Ousadia”:
BIA – (...) Casal se apaixona e se casa, vive aparentemente muito bem, convivendo
muito de perto com um grande amigo dele. Aos poucos o marido vai sendo levado
a desconfiar da mulher, transformando em indícios de traição todos os pequenos
acontecimentos do quotidiano. Nada de muito original. Já vi esse filme...
VIRGÍLIO – Otelo?
BIA – Ou Dom Casmurro. Na televisão eles não vão ter peito de partir para a
tragédia. E sem tragédia, Otelo não é Otelo. (Ibid., p.23)
As relações entre Dom Casmurro e Otelo são suficientemente óbvias, explícitas nos
capítulos LXII, LXXII e CXXXV do romance de Machado de Assis e amplamente
exploradas no estudo clássico de Helen Caldwell (2002). Observa-se a crítica ao formato
televisivo, aqui tido por Bia como limitado e pouco ousado (a despeito do título da obra). De
todo modo, está anunciada a relação intertextual – e metaficcional – central desta obra.
Para Gustavo Bernardo, “a conhecida intertextualidade – através da paródia, do
pastiche, do eco, da alusão, da citação direta ou do paralelismo estrutural – integra os
processos metaficcionais” (BERNARDO, 2010, pp.42-3). Infelizmente, em O livro da
metaficção o pesquisador não se aprofunda na questão; por outro lado, por duas vezes
tivemos oportunidade de lhe perguntar a respeito dessa afirmação. Na primeira, por e-mail,
em agosto de 2012, a resposta foi:
a referência a um texto literário dentro de outro texto literário (...) duplica a
instância ficcional, sugerindo que o campo do texto que cita o outro texto pertence
57
ao campo do real, real este que produz ficções, embora não pertença. A ilusão é
duplicada e, assim, escancarada pelo avesso.
Conforme veremos, é exatamente o que acontece em A audácia dessa mulher: o
universo das personagens deste romance se mistura com o de Dom Casmurro quando se
descobre que, aqui, Capitu (e por extensão todos os demais personagens: Bento, D. Glória,
a prima Justina, José Dias...) é “real”, duplicando assim sua área de atuação, referência e
significação.
O segundo contato com o professor Gustavo Bernardo ocorreu no Ciclo Cortázar, no
Instituto Cervantes, no Rio de Janeiro, em agosto de 2014. Na ocasião, a resposta foi
ligeiramente diferente: “Todo texto é sobre outro texto. E quando se faz uma relação
intertextual, chama-se atenção do leitor para o fato de que o que se lê é um texto”.
Os próprios nomes do casal protagonista podem ser vistos como marcas de
intertextualidade e indicadores da polaridade que os sexos terão ao longo da narrativa: basta
lembrar que Beatriz e Virgílio são, na Divina Comédia de Dante Alighieri, os guias do poeta
– ele, no Inferno e no Purgatório, e ela, no Paraíso. Luciano Melo de Paula faz essa
observação e acrescenta: “Ele, o maior dos poetas romanos; ela, a paixão platônica de Dante.
Elementos de contato entre o vivido e o criado – realidade e ficção – encontrando-se para a
construção de novas significações” (PAULA in SILVA, 2004, p.95, itálicos no original). Na
perspectiva da A audácia dessa mulher, essa relação se estabelece tendo o homem no polo
negativo (“Inferno”) e a mulher, no positivo (“Paraíso”).
Tal interpretação não parece exagerada na medida em que dificilmente numa obra
literária os personagens são nomeados de modo aleatório, e pode-se reconhecer um uso
criativo desse recurso no primeiro romance da própria Ana Maria Machado19, que também
tematizava configurações de gênero: em Alice e Ulisses, cuja primeira edição é de 1983, os
protagonistas são uma mulher divorciada e um homem casado que se envolvem num
romance tórrido. Conforme se percebe desde o título e já foi observado por Cantarin (2008,
p.117), não se trata apenas de uma semelhança de significantes – a diferença fonética é
mínima, apenas na primeira vogal e no “-s” final do nome masculino –, como são nomes de
personagens icônicos da literatura: o Ulisses homérico e a Alice de Lewis Carroll. A pessoa
que os apresenta diz que os nomes rimam, ao que Alice responde: “Rimava melhor se eu
19 Além disso, a Tese de Doutorado de Ana Maria Machado versou sobre “a importância dos nomes próprios
na obra de Guimarães Rosa”, conforme nota Luciano Melo de Paula (in SILVA, 2004, p.95).
58
fosse plural” (MACHADO, 2012, p.16), para logo depois admitir que a paixão por Ulisses
a tornou plural.
Ali, a intertextualidade não se manifestava apenas no título, nos nomes, mas em
referências diretas no texto, ao caráter aventureiro de ambos. No último capítulo desse curto
romance, os personagens-título haviam rompido o relacionamento e a esposa de Ulisses
convida Alice para uma conversa:
Enquanto Ulisses pintava e bordava, Penélope tecia. Nos bastidores. Resistência
passiva. O papel secundário era tão marcado que, mesmo sem nunca esquecer que
ela existia, guardiã do lar, da prole e da propriedade, dava para Ulisses brincar de
comedor de lótus ou se distrair com sereias, Circes e Calipsos, afagado pelos dedos
cor-de-rosa da aurora. (Ibid., p.79)
Na verdade (do romance), a esposa de Ulisses é identificada metaforicamente pela
mulher do Ulisses mitológico, mas chama-se Adélia – nome de origem grega que significa
“invisível” (CANTARIN, 2008, p.119). A narração propõe outra intertextualidade
relacionada a esse nome, ao compará-la com “Amélia”, a mulher submissa da famosa canção
de Mário Lago e Ataulfo Alves: “lá estava ela sentada diante da divina Adélia, deusa-Amélia
do lar...” (MACHADO, 2012, p.80)
A referência à divindade é irônica: ela pede a Alice que retome a relação com seu
marido, pois ele havia ficado diferente, parecia ter raiva da esposa. Esta, Adélia-Amélia,
aceitava, resignada, o papel de mulher traída desde que se mantivesse a aparência de lar feliz
– algo inaceitável para a outra:
Alice era mais Helena. E não só porque teve gregos e troianos, não. Também
porque a tapeçaria de Helena era outra, e melhor. Não era dessas que se tecem de
dia para desmanchar de noite e nunca acabar. Era das que um dia ficam prontas e
não se pretendem eternas, mas são úteis, belas, e dão lugar a outras no tear. (Ibid.,
pp.92-3)
Pouco adiante, Alice encontra para si outra origem, fora da mitologia grega:
Filha de Helena, filha de Penélope? Filha de Eva, isso é que Alice era. Bem como
a Alice da história, filha de Eva depois da Revolução Industrial, deixando para trás
o tempo do tear manual. Curiosa, inquieta, louca para saber de tudo, trazendo como
marca original o que os homens chamaram de pecado – a vontade de conhecer a
qualquer risco, de dominar o conhecimento do bem e do mal. (Ibid., p.93-4)
Por fim, após passear intertextualmente por personagens de diferentes bosques da
ficção, encontra-se e identifica-se com a de Lewis Carroll:
59
Quero mergulhar na toca do coelho, passar para o outro lado do espelho, saltar
casas do tabuleiro de xadrez, denunciar a justiça do corta-cabeças, fazer e destruir
castelos de cartas, crescer ou me fazer miudinha como uma teleobjetiva ao sabor
do que experimento, como ou bebo, chegando sempre ao foco, conversar com
gatões e flertar com sorrisos que iluminam a selva e depois desaparecem, tomar
chás intermináveis em todos os dias que são diferentes, chegar à última casa e dar
o xeque-mate graças à jogada que eu mesma inventei. Eu sou Alice. Esperar em
Ítaca não está com nada. Eu quero é ir por aí. (Ibid., p.96)
O projeto básico de A audácia dessa mulher está embrionário nesse romance de
estreia. Como afirma Cantarin, “a construção das personagens femininas, nessa narrativa
[Alice e Ulisses], não exclui o modelo masculino, mas tira, de certa forma, o elemento
feminino da marginalidade” (CANTARIN, 2008, p.120). O protagonismo feminino
inspirado por personagens marcantes da tradição literária é comum a ambas as narrativas.
No romance de 1999, a musa é a Capitu de Machado de Assis. Há outras relações
intertextuais, sobretudo quanto à colaboração de Bia para “Ousadia”, mas nenhuma com a
força narrativa e crítica da que se estabelece com Dom Casmurro (ver item 3.3.4).
Desta maneira, desde os dois primeiros capítulos de A audácia dessa mulher
apresentam-se quatro modalidades diferentes de metanarratividade, a saber: I) a história
dentro da história; II) a apóstrofe ao leitor, na qual são discutidos os critérios de construção
do texto; III) a mistura de linguagens – prosa com estrutura dramática; IV) a intertextualidade
como elemento essencial da obra. Todas elas continuam ou voltam a ocorrer ao longo da
narração; não há, pois, dúvida alguma de que se trata de um conceito indispensável para uma
análise aprofundada deste romance.
3.2 Fortuna crítica: estudos pouco audaciosos
Por tudo isso, surpreende que, em toda a fortuna crítica de Ana Maria Machado,
pouca importância tenha sido dada à metalinguagem em A audácia dessa mulher. Devido à
posição alcançada pela autora no cenário literário brasileiro, são muitos os estudos
acadêmicos dedicados a sua obra. Compreensivelmente, a maior parte destes se volta para
sua produção infanto-juvenil, que conta com corpus diversificado e de referência nas escolas
de Educação Infantil e Ensino Fundamental em todo o país. Nessa linha, podem-se
mencionar a dissertação de Mestrado “Os fios da memória nos teares da imaginação de Ana
Maria Machado: o narrador em Do outro mundo”, de Luciete de Cássia Souza Lima Bastos
(UFMG, 2010), e o livro Mundos e submundos, organizado pela professora Vera Maria T.
Silva, da Universidade Federal de Goiás (2004), e composto por 20 ensaios de alunos
graduandos em Letras que abarcam vários títulos da autora. Em artigo publicado neste
60
volume, Luciano Melo de Paula perfaz uma análise comparativa entre A audácia dessa
mulher e Bisa Bia, Bisa Bel, demonstrando com êxito que a preocupação com a questão
feminina também está presente na produção infanto-juvenil da escritora.
A comparação entre obras “para adultos” e “para crianças” da escritora carioca
prossegue na Dissertação de Mestrado “E as meninas cresceram: A construção da
personagem feminina nas obras de Ana Maria Machado”, de Sílvia Maria Rodrigues Nunes
Cantarin (UEM-PR, 2008). A pesquisadora analisa nove títulos do catálogo da escritora –
três infantis, três juvenis e três “adultos”. Dentre estes últimos estão Alice e Ulisses e A
audácia dessa mulher. A principal limitação de seu trabalho é que, com um corpus tão amplo,
o espaço dedicado a cada obra é pequeno. Com linguagem eficiente e observações agudas,
a análise de Alice e Ulisses não é superficial, mas a abordagem inevitavelmente recai sobre
o elemento agregador do corpus, a representação do feminino, e pouca atenção é dada a
outros elementos. O subcapítulo dedicado a A audácia dessa mulher, porém, não mantém o
mesmo nível de profundidade. Os recursos à metalinguagem e à “história dentro da história”
são identificados, mas não relacionados entre si, e não se atribui a eles o papel decisivo que
possuem na estrutura do romance.
Entre erros e acertos, o trabalho de Cantarin é valioso: ao final, é apresentada uma
extensa bibliografia a respeito de Ana Maria Machado. São 29 títulos listados, sendo 22
dedicados à produção infanto-juvenil – e nem todos apenas a esta autora. Dezoito são
Dissertações de Mestrado e seis, Teses de Doutorado. Nenhum destes estudou
especificamente A audácia dessa mulher.
Esta tarefa havia cabido a Leila Wanderléia Bonetti Farias, em sua Dissertação de
Mestrado “A audácia dessa mulher: Ana Maria Machado e a subversão do cânone na
reescrita de Capitu”, na mesma Universidade Estadual de Maringá, em 2007 (curiosamente,
não mencionada por Cantarin). Como se percebe pelo próprio título, Farias trabalha a partir
da intertextualidade com Dom Casmurro, enfatiza a reconstrução da identidade feminina à
luz da crítica feminista, mas não enfrenta a fundo a questão da metaficção.
3.3 Identidades femininas em A audácia dessa mulher
Tornou-se truísmo falar na revolução comportamental ocorrida na década de 1960.
As transformações políticas, sociais e culturais são notórias. Naturalmente elas tiveram
61
consequências no pensamento e na teoria desenvolvida desde então. Linda Hutcheon as
resume:
foi nesses anos que ocorreu o registro, na história, de grupos anteriormente
‘silenciosos’ definidos por diferenças de raça, sexo, preferências sexuais,
identidade étnica, status pátrio e classe. Nas décadas de 70 e 80 houve o registro
cada vez mais rápido e completo desses membros ex-cêntricos no discurso teórico
e na prática artística, pois os andro- (falo-), hetero-, euro- e etnocentrismos foram
intensamente desafiados. (HUTCHEON, 1991, p.89)
Dos grupos anteriormente “silenciosos”, ou silenciados – os “ex-cêntricos”, isto é,
fora do centro das atenções e das discussões –, deter-nos-emos no caso das mulheres. A
teoria feminista sem dúvida conquistou espaços fundamentais no meio acadêmico e, saltando
os muros das universidades, tem ameaçado a milenar hegemonia masculina na vida social.
É muito interessante observar a preocupação, por parte das estudiosas do tema, com o rigor
teórico de suas formulações, talvez para que seus esforços não sejam vistos como
revanchismo ou defesa em causa própria – a imensa maioria de pesquisadores nesse campo
são mulheres.
Uma delas é a historiadora norte-americana Joan Scott, autora do ensaio “Gender: a
useful category of historical analysis”, no qual argumenta em favor do conceito de “gênero”
como ferramenta da ciência histórica. Essa tentativa deve ser entendida no cenário mais
amplo não apenas das questões sociais levantadas na segunda metade do século XX, mas
também da renovação da própria história como área do conhecimento. Scott demonstra como
o “gênero” foi durante muito tempo visto como conceito puramente gramatical, e só
recentemente suas implicações sociais passaram a ser levadas em conta:
In its most recent usage, “gender” seems to have first appeared among American
feminists who wanted to insist on the fundamentally social quality of distinctions
based on sex. The word denoted a rejection of the biological determinism implicit
in the use of such terms as “sex” or “sexual difference.” “Gender” also stressed
the relational aspect of normative definitions of femininity.20 (SCOTT, 1986,
p.1054)
O masculino/feminino, portanto, é mais uma das dicotomias do pensamento clássico
que não se sustenta mais. Existem diversas nuances nas possibilidades identitárias de gênero
20 “Em seu uso mais recente, o termo ‘gênero’ parece ter surgido primeiramente entre feministas norte-
americanas que pretendiam insistir no caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. A
palavra denotava uma rejeição do determinismo biológico implícito no uso de termos como ‘sexo” ou
‘diferença sexual’. O ‘gênero’ também enfatizava o aspecto relacional de definições normativas de
feminilidade.” (Tradução nossa.)
62
inalcançáveis por tal “determinismo biológico”. Segundo Scott, desde o princípio as
historiadoras feministas intuíram que não seria suficiente, ou viável, simplesmente adicionar
o ponto de vista feminino ao escrever a história, uma vez que seus pressupostos desafiavam
todo o conhecimento vigente – até porque este fora estabelecido por homens e sobre homens.
A noção de que a “história das mulheres” trataria de assuntos domésticos, separados dos
temas políticos e econômicos, foi logo descartada.
A historiadora reconhece que a crítica feminista não é homogênea e descreve três
vertentes principais: a teoria do patriarcado, a marxista e a influenciada por autores pós-
estruturalistas. Em sequência, apresenta uma conclusão pertinente à teoria e à crítica
literárias:
We need a refusal of the fixed and permanent quality of the binary opposition, a
genuine historicization and deconstruction of the terms of sexual difference. We
must become more self-conscious about distinguishing between our analytic
vocabulary and the material we want to analyze. We must find ways (however
imperfect) to continually subject our categories to criticism, our analyses to self-
criticism.21 (Ibid., p.1065)
Para Scott, é necessário incluir o “gênero” entre essas categorias, mas não de forma
binária. De certo modo – consciente ou não – é o que Ana Maria Machado faz em A audácia
dessa mulher. Grosso modo, as personagens femininas são construídas de modo complexo,
esférico, enquanto os homens são essencialmente planos – para retomar a célebre teorização
de Edward M. Forster no clássico Aspects of the novel, conforme se verificará na seção
seguinte.
3.3.1 Bia
O romance gira em torno de quatro mulheres. A protagonista é Bia, jornalista bem-
sucedida e independente. Ela se envolve com Virgílio, mas não esquece Fabrício, e sem
grandes crises de consciência. Sua relação com Fabrício é o que poderia ser chamado de
relacionamento aberto, conforme Bia faz questão de explicar a Virgílio, sem convencê-lo.
Contou então que Fabrício e ela estavam juntos havia quatro anos, embora não
morassem juntos. E que tinham uma relação intensa, mas não exclusiva. Era muito
difícil falar nisso, sentia ela. As pessoas tendiam a não entender, a olhar como uma
brincadeira ou como uma espécie de sacanagem consentida, e não era nada disso.
21 “Precisamos de uma recusa do caráter fixo e permanente da oposição binária, de uma genuína
historicização e desconstrução dos termos de diferença sexual. Devemos estar mais autoconscientes ao
distinguirmos nosso vocabulário analítico do material que pretendemos analisar. Devemos encontrar meios
(ainda que imperfeitos) de continuamente sujeitar nossas categorias à crítica e nossas análises à autocrítica.”
(Tradução nossa)
63
Ou então, imaginavam que Fabrício conseguira convencê-la a aceitar o
comportamento machista tradicional, de ter várias namoradas, sem que a mulher
reclamasse. Bia estava acostumada com essa reação. Não se surpreendeu quando
Virgílio saiu de seu silêncio para fazer uma insinuação nesse sentido.
(MACHADO, 1999, p.83)
Ela sabe que não consegue explicar, porém isso também não a angustia. Ao contrário,
há nela certo orgulho em viver essa relação que cria suas próprias regras e ignora padrões
tradicionais. Ela admite sentir ciúme e fazer uso menos frequente da liberdade de “sair” com
outras pessoas do que ele, mas considera que é um preço a se pagar pela liberdade. É como
se Bia soubesse que nada se conquista sem sacrifícios. Por outro lado, ela se relaciona com
Virgílio sem nenhum rastro de culpa, muito menos arrependimento.
O chef, por sua vez, contesta o acordo existente entre Bia e Fabrício ao afirmar que
não haveria entre eles o respeito e a lealdade descritos por ela. Diz Virgílio: “Essa conversa
civilizada toda é muito cerebral para mim... Não dá mesmo para entender...” (Ibid., p.85).
Ele só está preocupado em saber se o casal está mesmo separado, e recorre ao
comportamento machista tradicional: “também tem uma coisa que eu quero que você saiba:
não admito dividir mulher minha com ninguém.” (Ibid., p.86) Ao final do capítulo, Bia
desiste de explicar e se deixa “levar inteiramente pela sensação prazerosa de estar aninhada
num homem grande, de pele morna, cheiro bom e braços aconchegantes” (Ibid., p.87), e eles
fazem amor.
O affair entre os dois dura até um evento trivial quase no clímax do romance. A
jornalista telefona para a casa de Virgílio e é atendida por uma mulher, que não é a filha
deste. “E de repente Bia descobriu que ficara furiosa. Ciúmes dele? Sentia a raiva subir pela
garganta acima, pronta para dizer alguma coisa bem agressiva. (...) Se ia permitir que alguém
a machucasse, só podia ser Fabrício” (Ibid., p.159). Desse momento em diante, ela se recusa
a ter qualquer contato com ele, a não ser por conta da consultoria à produção de “Ousadia”
e do caderno de receitas que ele lhe havia emprestado. Fica evidente que Bia sente ciúmes
de Virgílio, mas, principalmente, fica com raiva devido à assimetria dessa relação: ele
afirmara que não aceitava “dividir” a mulher, mas era obrigado a admitir que estava com
outra. Mais do que sua atitude, seu pensamento revela: “a Tânia não tinha nada que atender,
foi de sacanagem. Mulher é fogo, não deixa passar. A gente dá um dedo, elas tomam o braço,
ficam logo querendo se instalar e virar donas da gente, mandar na casa, em tudo.” (Ibid.,
p.168), enquanto Bia “detestava se ver às voltas com o lugar-comum de que ‘os homens são
todos iguais’.” (Ibid., p.159)
64
3.3.2 Ana Lúcia
Ana Lúcia era apenas a filha da faxineira de Bia, para quem esta costumava enviar
livros regularmente. O interesse da moça pela leitura fez com que ela se tornasse secretária
da jornalista, além de trabalhar para uma editora divulgando livros em escolas cariocas. Ela
se prepara para prestar um concurso público e está noiva de um vizinho, Giba. “O namoro
já durava algum tempo, as famílias faziam gosto e Ana Lúcia, sempre contando que os dois
eram apaixonadíssimos, estava às voltas com o enxoval para o casamento” (Ibid., p.69).
Entretanto, esse relacionamento está ameaçado; Ana Lúcia conta a Bia que Giba brigou com
ela, “dizendo que não é palhaço, que mulher dele não faz uma coisa dessas, que ele não
admite (...) Tudo aos berros, me mandando calar a boca cada vez que eu queria falar” (Ibid.,
p.69, itálico nosso). Segundo a moça, isso aconteceu porque, numa conversa num bar,
amigos dele ficaram interessados na fala dela sobre seu trabalho. Ela descreve o rapaz que
despertou o ciúme do noivo como “sujeitinho muito comum, metido a moderno (...) Desse
tipo que fica bancando o gostoso pra tudo quanto é mulher”; isto é, ela não estava interessada
nele:
Estava curtindo era conversar com aquela galera toda, ver todo mundo prestando
atenção, descobrindo que a noiva do Giba não era uma panaca qualquer, mas uma
profissional, com uma vida interessante, andando por lugares que eles nem
imaginam que existem... (Ibid., p.70)
Ana Lúcia estava feliz por mostrar que possuía uma existência própria, que tinha algo
a dizer. Talvez não seja exagero afirmar que esse fato, somado à desenvoltura social
demonstrada por ela, tenha provocado mais o ciúme de Giba do que o outro rapaz. Pois o
noivo – que, tal qual Fabrício, só aparece pelas falas de outros personagens – é sempre
descrito como um machista que inibe a ascensão profissional de Ana:
Quer que eu pare de trabalhar geral. Não quer nem que eu faça o concurso. Diz
que não dá certo esse negócio de mulher trabalhando. (...) Vive dizendo que
quando a gente casar eu vou ter que ficar em casa. Ou então, se tiver mesmo muita
necessidade de trabalhar, vai ter que ser ali por perto, num lugar que ele escolher.
(Ibid., p.71)
Fica claro o retrato de um homem que pretende controlar a vida da mulher, desejando
que ela viva de acordo com critérios determinados por ele; ao mesmo tempo, insinua-se que
Giba se envolve com outras moças, mas de algum modo Ana o desculpa: “Eu vivo com medo
de perder o Giba, dele ficar preso de repente a uma dessas mulheres com quem ele vive se
65
metendo (...). Pode ser que uma delas combine muito mais com ele, seja muito mais como
ele quer, menos teimosa que eu.” (Ibid., p.176)
É uma atitude semelhante à de Virgílio: não aceita a independência da mulher e faz
questão de afirmar a sua própria. A postura inicial de Ana Lúcia é aceitar as traições e se
submeter às vontades dele, por medo de perder o homem pelo qual é realmente apaixonada.
Seu conflito ocorre em torno de manter ou romper o noivado. Aos poucos, Bia torna-se mais
incisiva nos conselhos para que ela termine o relacionamento, e a secretária menos reativa a
eles.
A pressão sobre Ana aumenta: Giba pede que ela vá trabalhar no mesmo banco que
ele; o concurso para o qual ela estuda se aproxima, e a editora lhe oferece outro cargo, com
salário melhor. Ela mais uma vez conversa com Bia: “eu talvez pudesse propor a ele [Giba]
que abro mão de um dos dois – ou do concurso ou do emprego na editora, e ele resolve
qual...” A amiga responde rápido: “Essa não! (...) Uma decisão tão importante na sua vida
quem tem que tomar é você.” (Ibid., p.174)
Está em jogo a necessidade de Ana Lúcia tomar as rédeas de sua própria vida. No
mesmo diálogo,
Bia, entre surpresa e cheia de ternura, ouviu Ana Lúcia desfiar uma série de novas
ideias. Ou nem tão novas, mas que vinham amadurecendo aos poucos. Queria abrir
um espaço para suas vontades, e confessar o que realmente tinha vontade de fazer,
não o que esperavam que fizesse. Começava pela aceitação do novo emprego na
editora, já, a partir da semana seguinte. Continuava, com a decisão de se mudar:
aproveitar o ganho salarial e sair da casa dos pais, passar a dividir um
apartamentinho perto da praça da Bandeira com uma colega de trabalho. Aí podia
sair da pressão quotidiana em que vivia, ficar mais longe de parentes, amigos,
vizinhos. E talvez – não tinha certeza, era só talvez, mas andava com vontade de
arriscar... – então desse um tempo no noivado com o Giba. (Ibid., p.176, itálicos
nossos)
Aqui, finalmente Ana Lúcia assume a responsabilidade por seu destino, por suas
ações. Ela representa a dificuldade da mulher em se livrar do controle exercido pelo homem,
o qual muitas vezes age de modo sub-reptício, até inconsciente. O trecho entre travessões –
“não tinha certeza, era só talvez, mas andava com vontade de arriscar...” – enfatiza precisa
e exemplarmente essa dificuldade, de modo a valorizar a trajetória da personagem. No final,
ela de fato rompe o noivado e começa a namorar Juliano, roteirista de “Ousadia” e, nas
palavras dela, “uma pessoa tão doce, um cara tão diferente...” (Ibid., p.177). A trajetória de
Ana Lúcia completa-se com essa transição.
66
3.3.3 D. Lourdes
D. Lourdes, mãe de Virgílio, participa de apenas uma cena no romance, mas é um
momento tão importante para a narrativa quanto simbólica para a questão da representação
de gêneros. Bia acabara de romper o relacionamento com Virgílio, mas está intrigada com a
autora do diário no caderno de receitas e precisa de ajuda para descobrir a conclusão daquela
história. Consegue então o contato de D. Lourdes, que a convida para tomar chá numa tarde
de quarta-feira.
A caminho do encontro, Bia esforça-se para não se atrasar: “imaginava a ansiedade
da mãe de Virgílio à espera. Para quem vivia sozinha e sem fazer nada, a ideia de fazer um
lanchinho com quem considerava a ‘namorada’ do filho devia ser um programa cheio de
expectativas” (Ibid., p.179, itálico nosso). A realidade a contradiz: Dona Lourdes a faz
esperar e está ao telefone fechando um contrato.
E conta sua história: ficara viúva ainda jovem, com cinco filhos para criar.
Nunca trabalhara, não tinha diploma nem profissão. (...) Era apenas uma dona de
casa exemplar. Em absoluta dependência em relação ao companheiro que
desaparecera (...). Os filhos se dispuseram a ajudá-la assim que crescessem mais e
pudessem, mas ela percebeu que não queria passar de uma dependência para outra.
(Ibid., pp.180-1)
Sabia cozinhar e “fazer o dinheiro render”. Desse modo, começou vendendo comida
congelada, negócio que cresceu aos poucos e se transformou em uma empresa organizadora
de festas e eventos em bares, restaurantes e hotéis. No momento do relato, possui uma equipe
no Rio de Janeiro, outra em São Paulo, e resolve os assuntos via e-mail. (Vale observar que
o romance foi publicado em 1999 e os lares brasileiros começaram a ter acesso à internet
entre 1994 e 1995.)
Portanto, D. Lourdes é outra mulher a refazer sua vida por seus próprios meios,
distante dos critérios masculinos. Ela admite ter agido por influência direta da menina do
diário, Lina; mas aqui, a reflexão mais importante é a de que até uma mulher moderna e
independente como Bia não esteve imune ao preconceito com relação a essa mulher idosa,
expectativa que a narração de Ana Maria Machado fez questão de contrariar. Ao final desse
encontro, D. Lourdes entrega à protagonista a carta que determinará a conclusão do romance.
3.3.4 Capitu-Lina: nova identidade marcada no (e pelo) discurso
67
No capítulo seguinte, o 16, a Autora-Modelo mais uma vez interrompe a narração
para tecer seus comentários; aqui, a intenção também é adiar a revelação da identidade de
Lina.
Os livros continuam uns aos outros, apesar de nosso hábito de julgá-los
separadamente.
Não fui eu quem disse isso, foi Virginia Woolf. Limito-me a lembrar e concordar.
E não apenas porque existe uma tradição literária onde esses livros se inserem,
fazendo com que nenhuma obra possa ser um fato isolado ou solitário, mas tenha
sempre que ser o resultado de muitos séculos de se pensar em conjunto, de tal
forma que a experiência coletiva está sempre por trás da voz individual. Mais que
isso, porém: a leitura aproxima livros diversos. O que o autor leu está embebido
nele e passa para sua escrita. Acontece o mesmo com aquilo que cada leitor já leu
antes e vai fazer dialogar com o que está lendo agora. (...) Livros que continuam
uns aos outros. (Ibid., p.185)
Trata-se da segunda vez que o texto de Ana Maria Machado cita Virginia Woolf. A
primeira fora logo após a primeira transcrição do caderno de Lina, quando esta manifesta
interesse em latim; então, Bia, ou a Autora-Modelo, observa que ela é “parenta do eterno
fascínio pelo conhecimento dos clássicos negado às mulheres, que Virginia Woolf
mencionara tantas vezes, ansiando por estudar grego.” (Ibid., p.67)
A referência à escritora inglesa não é casual. A frase que abre o capítulo – “Os livros
continuam uns aos outros, apesar de nosso hábito de julgá-los separadamente.” – consta de
seu livro A room of one’s own (WOOLF, 1985, p.106). Em 1928, a autora de Mrs. Dalloway
fora convidada a proferir conferências em universidades para mulheres, sobre o tema “A
mulher na literatura”. Ela argumenta sobre as dificuldades enfrentadas para elas se
dedicarem à leitura e à escrita pelo fato de terem seu papel social restrito ao lar, fora das
discussões sobre a vida em comunidade e sem uma renda própria para seu sustento. Assim,
eram mantidas em situação de dependência econômica e de escassez cultural. Além disso,
em geral frequentavam cômodos da casa de intensa movimentação de pessoas, onde não
haveria possibilidade de se concentrarem em atividades intelectuais, o que justifica o título
metonímico do ensaio, Um teto todo seu.
Esta obra está em total consonância com o projeto de A audácia dessa mulher, ao
discutir o papel social e cultural da mulher; o que surpreende é que Ana Maria Machado, em
seguida, faça outra referência ao mesmo ensaio sem identificar a fonte. No romance,
conforme citado acima, a tradição literária faz com que “nenhuma obra possa ser um fato
isolado ou solitário, mas tenha sempre que ser o resultado de muitos séculos de se pensar em
conjunto, de tal forma que a experiência coletiva está sempre por trás da voz individual.” Na
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tradução de Vera Ribeiro para o ensaio de Woolf: “As obras-primas não são frutos isolados
e solitários; são o resultado de muitos anos de pensar em conjunto, de um pensar através do
corpo das pessoas, de modo que a experiência da massa está por trás da voz isolada”
(WOOLF, 1985, p.87).
Não há como saber por que se credita a primeira citação, mas não a segunda. Talvez
a intenção fosse deixar a descoberta a cargo do leitor, como um desafio. O fato é que a
passagem tematiza a intertextualidade que está prestes a ser escancarada. Mas, antes, a
Autora-Modelo reflete sobre sua protagonista:
Não é de estranhar, portanto, que Bia, personagem de ficção vivendo na realidade
narrativa, estivesse se comportando como entusiasmada leitora real de ficção
diante da história de Lina – a menina que existira de verdade havia muito tempo,
que copiara receitas naquele caderno e nele salpicara pelos anos afora seus
desabafos, fiapos de alegria e aflições. (...) Mas sempre soubera que era tudo real
– o registro escrito por uma mulher carioca do século XIX, à margem de umas
páginas de miúdas anotações domésticas. Algo que, no fundo, só tinha valor
documental e histórico.
Essa certeza era ponto pacífico. Não havia o que discutir nela. E como Bia não
tinha qualquer consciência de que ela própria não existe na chamada vida real
aqui de fora deste livro, sendo mera personagem de ficção criada por uma mulher
carioca no finalzinho do século XX, sua leitura da carta de Lina não se deixou
contaminar por nenhuma dessas considerações. Por ela, não haveria qualquer
motivo para que estas reflexões labirínticas estivessem agora aqui nesta página. Se
o faço não é por ela. É por você, que me lê. Por mim mesma, que escrevo.
(MACHADO, 1999, p.185-6, itálicos nossos)
Aqui o cone de luz projetado pelo texto se desloca para dentro da própria narrativa,
com o objetivo de preparar o leitor para a “reviravolta aninhada” – o momento em que níveis
de ficção distintos se cruzam, conforme descrito por Gustavo Bernardo (2010, pp.109-10).
É flagrante a insistência em termos que demarcam a existência meramente ficcional de Bia
– nas expressões grafadas em itálico –, enquanto a Autora-Modelo se torna cúmplice do
leitor em sua qualidade de “real”.
É a sua resposta à pergunta que moldou nossa abordagem deste romance: como uma
mulher culta, ex-professora de literatura brasileira, pode ler o diário de Capitu sem se dar
conta disso? Há referências ao namorado B., à cena do penteado, à mãe dele, D. Glória,
“beata papa-missas”, ao Tio Cosme e à Prima Justina, ao seminário onde B. conhece o amigo
E.. Mencionam-se a ida para São Paulo e a volta como bacharel, os primeiros conflitos por
ciúmes dele e seu agravamento após o casamento; tudo isso, entre outras menções diretas a
episódios de Dom Casmurro, aparece no diário de Lina. Recorremos novamente à
“competência enciclopédica do leitor” (ECO, 1994, pp.114-5). Pode-se considerar que o
leitor brasileiro conheça a obra machadiana, por se tratar de uma obra de referência no
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imaginário em nosso país; até mesmo pessoas que jamais a leram fazem referência ao
“enigma de Capitu”. Se lembrarmos que este mesmo romance, em seu segundo capítulo, fez
referência a Dom Casmurro – no diálogo entre Bia e Virgílio, quando discutiam a sinopse
de “Ousadia” –, então essa intertextualidade deveria saltar aos olhos.
Ora, é preciso ter em mente que tanto a jornalista quanto a esposa de Bentinho
ocupam nosso imaginário de leitores como personagens de ficção; para Bia, Capitu tem esse
mesmo distanciamento. Ela não consegue se enxergar no mesmo plano diegético que a outra
até que isso seja posto explicitamente na sua frente. Capitu está diante do leitor de uma forma
que não se pode apresentar à personagem: “mesmo se não tivesse existido, se fosse apenas
um personagem de ficção, se todo aquele diário fosse apenas o produto da imaginação e da
palavra de um autor que o tivesse inventado, para Bia a menina tinha força de verdade.”
(MACHADO, 1999, p. 146)
Voltando ao capítulo 16, na sequência a autora(-Modelo) “cola” o capítulo CXIX de
Dom Casmurro, um capítulo curto, digressivo e metalinguístico: “A leitora, que é minha
amiga e abriu este livro com o fim de descansar da cavatina de ontem para a valsa de hoje,
quer fechá-lo às pressas, ao ver que beiramos um abismo. Não faça isso, querida; eu mudo
de rumo.” (MACHADO, 1999, p.186; ASSIS, 1978, p.322)
Ana Maria Machado, ou sua Autora-Modelo, o cita para “corrigir” o Autor-Modelo
do outro Machado e marcar a tomada de voz feminina em sua narrativa, conforme se lê
adiante: “As leitoras de hoje não usam o livro para se distrair entre festas e bailes, nem são
tão delicadinhas a ponto de se assustar com abismos ou vertigens – se é que algum dia o
foram” (MACHADO, 1999, p.186). E critica os leitores homens que preferem os “‘fatos
duros’ jornalísticos ou científicos, os manuais de instruções para vencer na vida” (Ibid.,
p.187), ou ainda filmes de ação repletos de efeitos especiais, a sutilezas do discurso poético
e literário. Uma vez mais ela se desvia de Machado de Assis e desdenha desse público:
A esses leitores, não peço que fiquem nem prometo mudar de rumo. Aceito que
nossas escolhas são diversas e não tenho qualquer pretensão de me esforçar para
retê-los. Talvez seja melhor nos despedirmos por aqui, se é que já não se foram há
muito tempo.
Aos outros, (...) agradeço pela companhia e faço um convite. Venham comigo ler
a carta de Lina e mergulhar com Bia no que ela encontrar, nessas águas nevoentas
onde se cruzam realidade e ficção, no contínuo fluxo de livros que se esparramam
por nossa vida e a fecundam. (Ibid., p.187).
Retornando nas últimas orações à citação inicial do capítulo, de que “os livros
continuam uns aos outros”, a Autora-Modelo demonstra que as dobras metanarrativas “para
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dentro” (a babushka, a história dentro da história) e “para fora” (a intertextualidade) são na
verdade uma só: Capitu-Lina.
A carta é enviada de Vevey, na Suíça, datada de 28 de março de 1911 e dirigida à
Sancha, que teria retornado ao Paraná após a morte de Escobar. Capitu não apenas se declara
inocente do adultério que se lhe atribuiu, como o inverte: afirma sua convicção da traição do
marido “Santiago” com a amiga, utilizando como argumento fatos do capítulo “A mão de
Sancha”, o CVIII do romance machadiano 22 ; informa que Bento não quis assumir a
separação do casal, deixando Capitu e o filho na Suíça com uma moça que conheceram no
navio; declara, ainda, que abandonou o apelido de criança e passou a ser conhecida como
“Lina”, uma forma de deixar o passado para trás; e conta que se tornou uma bem-sucedida
dona de pensão, onde começara trabalhando como ajudante de cozinha. Por fim, relata que
só permitiu que o filho Ezequiel fosse ao Brasil pedir dinheiro ao pai para uma expedição
arqueológica – encontro narrado no capítulo CXLV, “O Regresso”, de Dom Casmurro – sob
a condição de que ele lhe dissesse que ela morrera. No final, assina “Maria Capitolina” (Ibid.,
pp.187-96).
A “reviravolta aninhada” completa-se com o diálogo no qual Bia comunica a
descoberta a Ana Lúcia. Esta reage: “É um romance, uma obra de ficção, todo mundo sabe.
Nunca me passou pela cabeça que Capitu e Bentinho pudessem ter existido de verdade...”
Bia responde: “Tanto quanto você e eu (...). Está tudo no papel” (Ibid., p.198). A frase final
é significativa: ao mesmo tempo em que a jornalista está dizendo à amiga que o papel, a
carta, confirma a existência “verídica” de Capitu, a narração está mais uma vez lembrando
ao leitor que elas são todas de papel, isto é, pertencem todas à ficção. A intertextualidade e
o paradoxo metaficcional estão completos.
É digno de nota o caráter performativo da construção da personagem: Capitu é
postulada como real pelo diário e pela carta, tipologias textuais ligadas tanto à esfera
doméstica a que as mulheres oitocentistas permaneciam restritas (cf. WOOLF, 1985;
SCHWARZ, 1997) quanto à descrição da realidade (como a História, por assim dizer); sendo
documentos privados, não se põe em dúvida sua sinceridade. Por isso Bia lê a ambos como
registros do real. O silogismo é nítido: a autora dos escritos é real; Capitu-Lina é autora do
22 Nesse capítulo, Bentinho narra um instante de desejo sexual com o aperto de mãos da esposa de Escobar:
“o fluido particular que me correu todo o corpo desviou de mim a conclusão que deixo escrita. Senti ainda os
dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado.” (ASSIS,
1978, p.321). É o capítulo imediatamente anterior àquele em que o narrador suplica à leitora que não desista
do livro, e promete “mudar de rumo”. O que contaria, caso não o fizesse?
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diário e da carta; logo, Capitu é real. Não cabe no pensamento das personagens questionar
os seus próprios estatutos ontológicos, de reconhecerem a si mesmas como ficções, como
feitas unicamente de papel e compostas tão somente de orações.
Quanto à leitura da carta, de início ela permite compreender como e por que D.
Lourdes se inspirara nela para recompor sua vida após a viuvez. Entretanto, o detalhe mais
interessante é como a identidade da personagem se reconstrói. É evidente que a separação
de Bentinho, sob acusações graves de traição, lhe deixou marcas traumáticas. Uma vez que,
no discurso dele, ela é tratada como “Capitu”, em sua vida suíça ela faz questão de se afastar
dele e assinar “Lina”. Por isso Bia se assustara ao abrir o caderno pela primeira vez, pois “a
primeira página tinha um buraco regular, mostrando que fora recortada, provavelmente com
gilete ou estilete. (...) No alto, em letras enfeitadas, lia-se: 1857. Logo abaixo: CADERNO
DE RECEITAS DE e o corte brusco, violento, impedia a identificação” (Ibid., p.64). Na
carta, ela escreve: “abandonei meu apelido de menina e passei a me apresentar como Lina,
usando a outra metade do meu nome. Mas sou Lina apenas para os poucos amigos íntimos.
Todos me conhecem mesmo é como Madame Santiago.” (Ibid., p.194), possivelmente como
forma de lembrar que a sociedade do final do século XIX, início do XX, não estava preparada
para aceitar uma identidade feminina independente. Ainda assim, tal qual “Beatriz” e
“Virgílio”, “Lina” é mais um nome significativamente escolhido devido a sua carga
intertextual.
Ademais, ainda que estejamos atentos à proposta de Silviano Santiago de que
“qualquer uma das duas atitudes tomadas na leitura de Dom Casmurro (condenação ou
absolvição de Capitu) trai, por parte do leitor, grande ingenuidade crítica, na medida em que
se identifica emocionalmente com um dos personagens” (SANTIAGO, 2000, p.29), pois
desviaria a atenção do leitor da questão central do romance – o ciúme, e não o adultério –, a
proposta de Ana Maria Machado nada tem de ingênua. Isso porque o contexto do romance
é de uma redefinição do papel feminino no sentido da tomada de voz. Em suma, enquanto
Silviano Santiago ocupa-se da “grande e grave proposição do livro: a consciência pensante
do narrador Dom Casmurro” (Ibid., p.29), Ana Maria Machado interessa-se pela de Capitu.
Ressalte-se que o ensaio de Santiago sobre Dom Casmurro se segue à obra da
estudiosa norte-americana Helen Caldwell, pioneira no questionamento da traição de Capitu,
em seu livro O Otelo brasileiro de Machado de Assis, de 1960, mas com primeira edição em
português somente em 2002. Caldwell esmiúça muitos símbolos e relações intertextuais
presentes no texto machadiano, em especial com a tragédia de Shakespeare e, dentre estas,
72
Otelo, conforme o titulo de seu estudo anuncia. Não por acaso, esta peça aparece em
momentos estratégicos de Dom Casmurro: o capítulo LXII, “Uma ponta de Iago”, no qual
José Dias desencadeia uma das primeiras crises de ciúme de Bento; o LXXII, “Uma reforma
dramática”, logo após o primeiro encontro entre Capitu e Escobar; e o CXXXV, “Otelo”, em
que Bento vai ao teatro assistir a uma montagem desta obra.
Para Caldwell, Machado de Assis altera o eixo dramático shakespeariano, ao
representar o mouro de Veneza e seu antagonista em um mesmo personagem: “a alma
ciumenta de Otelo-Santiago, a perfídia de Iago-Santiago e a culpa (ou inocência) de
Desdêmona-Capitu – eis os principais elementos da ação” (CALDWELL, 2002, p.32). Isto
é, José Dias é uma espécie de pavio para o ciúme, mas a chama arde de fato no próprio
narrador. Caldwell propõe que essa divisão está no próprio nome: “ele é parte santo (Sant’),
parte Iago” (Ibid., p.69). O primeiro é Bentinho; o segundo, Casmurro.
O argumento da autora norte-americana é que, aos poucos, o jovem Bento é
eliminado por Casmurro, e por isso ele não consegue “atar as duas pontas da vida, e restaurar
na velhice a adolescência” ao reconstruir no Engenho Novo a velha casa de Matacavalos no
capítulo II (ASSIS, 1978, p.178), nem terminar o soneto do capítulo LV: “ele não consegue
relacionar o primeiro verso com o último porque a essência de sua alma se perdeu”
(CALDWELL, 2002, p.134).
Dom Casmurro foi lido por seis décadas como um “romance de adultério”, tal qual
seus contemporâneos Anna Karenina, de Tolstoi, Madame Bovary, de Flaubert, e O Primo
Basílio, de Eça de Queirós. Com efeito, a traição feminina aparece em muitos de seus contos,
com destaque para “A cartomante” e “A causa secreta”. Isso pode se dever tanto à profusão
de obras com essa temática na segunda metade do século XIX quanto ao caráter
marcadamente patriarcal da sociedade brasileira (SCHWARZ, 1997), ou, mais
provavelmente, a ambos os fatos. Por isso não surpreende que a dúvida acerca do adultério
tenha sido levantada por uma mulher norte-americana sessenta anos após a publicação do
romance, alguém com distanciamento temporal, cultural e sexual para realizar tal análise (cf.
SCHWARZ, 1997, p.9).
É inegável que a análise de Caldwell inaugurou novos rumos para a análise de Dom
Casmurro. Silviano Santiago, no ensaio referido, busca compreendê-lo na “economia interna
da obra de Machado de Assis” (SANTIAGO, 2000, p.29). Ele enfatiza uma ideia que
Caldwell citara: a formação de Bento em Direito. Comparem-se as duas citações:
73
Os capítulos CXXXVIII-CXL estão permeados de um ar de tribunal. Capitu está
no banco dos réus. (...) Santiago despeja expressões legais em profusão: “admitir”,
negar”, “foro”, “testemunha de acusação”, “confissão”, “testemunha ocular”,
“perdão”, “reparação”, “justiça”, “paternidade”. No capítulo final (CXLVIII), o
leitor percebe em sobressalto que foi convocado como jurado. A “narrativa” de
Santiago não passa de uma longa defesa em causa própria. (...) O argumento
funciona da seguinte forma: ele, Santiago, não é ciumento sem causa; ele não
executou uma vingança injusta: Capitu é culpada. (CALDWELL, 2002, p.99)
Réu e advogado de defesa são, respectivamente, Bento e Dom Casmurro. Dom
Casmurro, como bom advogado que devia ser, toma para si a defesa de Bentinho,
arquitetando uma peça oratória onde se nos afigura de primeira importância seu
aspecto propriamente forense (era escrita por um advogado) e seu aspecto moral-
religioso (escrita por um ex-seminarista).
De início percebemos que o traço mais saliente da retórica do advogado-narrador
é o apriorismo. Ele sabe de antemão o que quer provar e sua peça oratória nada
mais é do que o desenvolvimento verossímil de certo raciocínio que nos conduzirá
implacavelmente à conclusão por ele ambicionada. (SANTIAGO, 2000, pp.33-4,
itálico no original)
Caldwell considera que o objetivo de Casmurro é culpar Capitu aos olhos do leitor;
para Silviano, é inocentar o próprio Bento Santiago – no fundo, a mesma coisa, sendo que
este enfoca o discurso no personagem masculino e aquela, no feminino. Vale recordar que,
em 1960, Caldwell escreve no limiar da década em que, conforme afirma Linda Hutcheon
em Poética do pós-modernismo,
ocorreu o registro, na história, de grupos anteriormente ‘silenciosos’ definidos por
diferenças de raça, sexo, preferências sexuais, identidade étnica, status pátrio e
classe. Nas décadas de 70 e 80 houve o registro cada vez mais rápido e completo
desses membros ex-cêntricos no discurso teórico e na prática artística, pois os
andro- (falo-), hetero-, euro- e etnocentrismos foram intensamente desafiados.
(HUTCHEON, 1991, p.89)
O discurso da mulher encontra-se entre os grupos que Linda Hutcheon chama “ex-
cêntricos”, isto é, fora do centro dos debates teóricos e culturais. A teórica canadense
identifica essa posse do discurso como um traço da estética pós-moderna, juntamente com
uma crescente consciência sobre o caráter artificialmente construído dos discursos,
frequentemente marcado nos textos sob a forma da metalinguagem. A essa forma narrativa,
que dialoga com o passado de forma crítica e intertextual, Hutcheon denomina “metaficção
historiográfica”: “A metaficção historiográfica sempre afirma que seu mundo é
deliberadamente fictício, e apesar disso, ao mesmo tempo inegavelmente histórico, e que
aquilo que os dois domínios têm em comum é sua constituição no discurso e como discurso”
(Ibid., p.184). Percebe-se este movimento em A audácia dessa mulher; o texto admite-se
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metaficcional não para encerrar-se, hermético, em si mesmo, mas para estabelecer um
distanciamento crítico.
Essa mudança na forma de lidar com a tradição, seja histórica ou literária, encontra
eco no descentramento, ou deslocamento, das identidades, conforme analisado por Stuart
Hall:
Um tipo diferente de mudança estrutural está transformando as sociedades
modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens sociais de
classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade, que, no passado, nos
tinham fornecido sólidas localizações como indivíduos sociais. Estas
transformações estão também mudando nossas identidades pessoais, abalando a
ideia que temos de nós próprios como sujeitos integrados. (HALL, 2006, p.9)
Para Hall, “se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até
a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma
confortadora ‘narrativa do eu’.” (Ibid., p.13). Sua construção, portanto, não difere tanto de
uma criação ficcional:
A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos
inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do
nascimento. Existe sempre algo ‘imaginário’ ou fantasiado sobre sua unidade. Ela
permanece sempre incompleta, está sempre ‘em processo’, sempre ‘sendo
formada’. (...) em vez de falar de identidade como uma coisa acabada, deveríamos
falar de identificação, e vê-la como um processo em andamento. A identidade
surge não tanto da plenitude da identidade que já está dentro de nós como
indivíduos, mas de uma falta de inteireza que é ‘preenchida’ a partir de nosso
exterior, pelas formas através das quais nós imaginamos ser vistos por outros.
(Ibid., pp.38-9, grifos no original)
Hall propõe três construções históricas da subjetividade: a Iluminista, “um indivíduo
totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação”
(Ibid., p.10); a sociológica: o “núcleo interior do sujeito não era autônomo e autossuficiente,
mas era formado na relação com ‘outras pessoas importantes para ele’” (Ibid., p.11), isto é,
interacionista; e a pós-moderna:
O sujeito, previamente vivido com tendo uma identidade unificada e estável, está
se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades,
algumas vezes contraditórias e não resolvidas. (...) O próprio processo de
identificação, através dos quais nos projetamos em nossas identidades culturais,
tornou-se mais provisório, variável e problemático. (p.12).
Como vimos, o narrador de Dom Casmurro possui uma identidade dividida, à medida
que Bento vai sendo dominado por Casmurro; ao mesmo tempo, pretende fixar certa imagem
da esposa, na célebre metáfora na conclusão do romance: “tu concordarás comigo; se te
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lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a
fruta dentro da casca” (ASSIS, 1978, p.346). Trata-se de um dos trechos em que Caldwell
(2002) e Santiago (2000) se baseiam para descrever Bento como um advogado em causa
própria.
A Capitu-Lina criada por Ana Maria Machado representa a ruptura com essa unidade
ilusória, o deslocamento de que fala Hall, em que a personagem pode se dissociar da imagem
anteriormente formada. Aqui, a inversão do adultério, lançando sobre o marido e Sancha a
suspeita de traição, é menos importante do que a reformulação de si mesma, distante do
modelo masculino. Por isso, a gênese de A audácia dessa mulher parece estar mais próxima
de Roberto Schwarz, em Duas meninas, do que de Helen Caldwell e Silviano Santiago.
No curto ensaio “A poesia envenenada de Dom Casmurro”, Schwarz reconhece a
grandeza das contribuições não apenas de Caldwell e Santiago, como também do
pesquisador britânico John Gledson, no livro The deceptive realism of Machado de Assis
(1984), que aborda o componente social do romance.
Schwarz afirma que Dom Casmurro exige três leituras: a primeira, romanesca, de um
primeiro contato com o enredo; a segunda, “de ânimo patriarcal e policial, à cata de
prenúncios e evidências do adultério, tido como indubitável”; e a terceira, “efetuada a
contracorrente, cujo suspeito e logo réu é o próprio Bento Santiago” (SCHWARZ, 1997,
p.10). Mais adiante, o crítico denominará esta leitura, à moda de Caldwell, como “a
contrapelo” (p.12), explicitando o diálogo com a proposta de Walter Benjamin (1994, p.225)
para a escrita da história; a ideia, em ambos os casos, é redefinir o olhar sobre o passado,
reconhecendo-o como um discurso passível de contestação e que, em última análise, prioriza
o ponto de vista “vencedor”.
A chave da leitura de Schwarz é a estrutura social. Ele analisa a mãe de Bentinho, D.
Glória, como representante da autoridade, que tomou as rédeas da casa após enviuvar. A
família vive de rendas e está cercada de “parentes, dependentes, aderentes e escravos, todos
mais ou menos atados à vontade e aos obséquios [de D. Glória]” (Ibid., p.18). Um desses
dependentes é o Pádua, vizinho mais pobre e pai de Capitu.
Para Schwarz (Id., p.14), Capitu representa a razão, o esclarecimento, enquanto
Bento é submisso às vontades da mãe. Ela
satisfaz os quesitos da individuação. A menina sabe a diferença entre
compensações imaginárias e realidade, e não tem apreço pelas primeiras (...).
Capitu não só tem desígnios próprios, os quais consulta, como tem opinião
formada a respeito de seus protetores (...) Notícia exata e verificação interior, uma
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certa recapitulação crítica da situação, vão juntas, indicando o nexo entre liberdade
de espírito e objetividade, esta última um verdadeiro esforço metodizado de
pensamento. A clareza na decisão supõe distância em relação ao sistema de
sujeições, obrigações e fusões imaginárias do paternalismo. (SCHWARZ, 1997,
pp.24-5)
É, portanto, o que o século seguinte chamaria de um espírito livre. O autor
complementa a descrição:
Embora emancipada interiormente da sujeição paternalista, exteriormente ela tem
de se haver com essa mesma sujeição, que forma o seu meio. O encanto da
personagem se deve à naturalidade com que se move no ambiente que superou,
cujos meandros e mecanismos a menina conhece com discernimento de estadista.
(Ibid., p.25)
Ao se casar com Bento, este herdará a posição de autoridade da mãe, a condição de
proprietário e senhor. O “tópico ostensivo do romance” passa a recair sobre as acusações de
adultério, mas sua “matéria substantiva está na desinclinação [de Bento/ Casmurro] pela
relação entre iguais” (Ibid., p.31).
Esta é a Capitu que encontraremos em A audácia dessa mulher: desafiadora,
independente, mas ciosa de seu papel social. Basta lembrarmos que ela escreve sua carta a
Sancha somente em 1911, muitos anos depois dos episódios narrados por Bento, com
orientações expressas para que seja enviada somente após sua morte; ela sabe que “as
lembranças e emoções que deito ao papel não têm mais o poder de mudar o curso dos
acontecimentos. Meu gesto serve apenas para trazer-me, a mim, um pouco de paz”
(MACHADO, 1999, p.188). Isto é, nada vai mudar o enredo tecido por Dom Casmurro, mas
pode-se fazer “justiça” à personagem.
Esse estoicismo aparece, também, na descrição de Caldwell: “Capitu quase nunca se
opõe ou argumenta contra Santiago. (...) ela se submete às vontades de Santiago,
independente de quão irracionais elas sejam. (...) Como uma boa esposa luso-brasileira, ela
nunca ‘contraria’ Santiago” (CALDWELL, 2002, pp.106-7). A razão é simples: seu amor
incondicional por Bento, mesmo quando ele é substituído por Casmurro.
No outro ensaio de Duas meninas, intitulado “Outra Capitu”, Roberto Schwarz
investiga o livro Minha vida de menina, diário de Helena Morley escrito, aproximadamente,
entre 1890 e 1930. Helena Morley é pseudônimo de Alice Dayrell Caldeira Brant. O diário
de sua adolescência, vivida em Diamantina (MG), foi publicado em 1942, quando contava
62 anos de idade; ela faleceu em 1970, aos 90. O crítico elogia o livro na medida em que
77
a identificação do obscurantismo, em ambiente de província e partindo de uma
criança em vias de descobrir dentro de si a faculdade crítica, naturalmente tem
poesia. (...)
Talvez por ser criança, mulher e de uma família necessitada, além de guardar
lealdade às suas diversões de rua, Helena briga com a noção adulta, masculina,
abastada e branca de progresso. (SCHWARZ, 1997, p.77).
Nota-se quase uma paráfrase da conceituação dos grupos “ex-cêntricos” feita por
Linda Hutcheon mais de oitenta anos depois, além de um paralelo exato com Capitu.
Se Schwarz causou surpresa ao publicar, no mesmo volume, um ensaio sobre Dom
Casmurro e um sobre um livro quase desconhecido, escrito por uma autora amadora –
nomeando-a “outra Capitu” –, o projeto de Ana Maria Machado não foi menos audacioso:
de modo análogo a Machado de Assis ter unido Otelo e Iago no mesmo Bento/Casmurro, é
como se ela reunisse as duas meninas de Schwarz – Capitu e Helena Morley – em uma só
personagem: Capitu-Lina. Em se tratando de uma figura consagrada da literatura brasileira,
a solução foi posicioná-la num meio-termo paradoxal entre realidade e ficção – a metaficção.
Segundo Schwarz, Capitu havia “dirigido o amigo [Bento] na resistência ao
obscurantismo familiar, aos preconceitos sociais e às confusões dele próprio”, sendo depois
do casamento “forçada a devolver as liberdades e igualdades que acreditava ter conquistado.
Depois de parecer assunto vencido, o universo da dominação patriarcal e carola está de
volta...” (Ibid., pp.97-8). Ana Maria Machado finalmente lhe oferece essa liberdade, ao
“ressuscitá-la” do outro lado do Atlântico, narradora de si mesma.
Não faltam indicações de que sua inspiração tenha tido essa fonte: o livro de Schwarz
foi publicado em 1997, dois anos antes de A audácia dessa mulher, e utiliza o termo “audácia”
diversas vezes para se referir a Helena Morley. Ambos trazem uma Capitu independente e
com voz e vontade próprias. A caracterização de Lina é semelhante à de Morley: uma moça
pobre que mantém um diário, texto de circulação restrita à esfera privada, que é revelado
anos depois, quando o contexto social já é outro. Outro detalhe pode ser empregado como
argumento: em A audácia..., o personagem Juliano, roteirista colaborador em “Ousadia”,
pede a Bia indicações de leitura, pois conhece bem a literatura brasileira mas carece de
conhecimentos em autores estrangeiros. A jornalista cita diversos nomes, mas concentra-se
em Henry James:
Tem que ser ele. (...) ele era americano, viveu na Inglaterra. Mas viajou muitíssimo
pela Europa, desde pequeno, e viu como ninguém nas diferenças de um lado do
Atlântico para outro... Se você tem que escrever sobre gente que viaja pela Europa
no século XIX, é com ele mesmo (...) James tinha sempre um olhar atento para os
contrastes entre os velhos valores e os novos comportamentos – que ficavam muito
78
evidentes nesses ambientes de viagem, quando se reuniam pessoas de origens
diferentes... (MACHADO, 1999, p.76)
O trecho refere-se não apenas aos personagens da série “Ousadia” que viajarão pela
Europa, como antecipa a narrativa de Capitu-Lina, uma viajante que escreve da Suíça. Talvez
não seja coincidência que Roberto Schwarz também se refira a James:
Como o seu contemporâneo Henry James, Machado inventava situações
narrativas, ou narradores postos em situação: fábulas cujo drama só se completa
quando levamos em conta sua falta de isenção, a parcialidade ativa do próprio
fabulista. Este vê comprometida a sua autoridade, o seu estatuto superior, de
exceção, para ser trazido ao universo das demais personagens, como uma delas,
com fisionomia individualizada, problemática e sobretudo inconfessável.
(SCHWARZ, 1997, p.12, itálicos no original)
Os aspectos da obra de James comentados pelo crítico e pela personagem não são os
mesmos, mas as observações de Schwarz servem ao romance de Ana Maria Machado: o
questionamento do discurso do narrador, denunciando-o como um ponto de vista dentre
outros possíveis. Como vimos, ela cita Virginia Woolf uma vez sem mencionar a fonte; pode
ter feito o mesmo com Roberto Schwarz.
Sob esse ponto de vista, A audácia dessa mulher mantém com Dom Casmurro uma
relação paródica, no sentido que Linda Hutcheon atribui ao termo:
quando falo em ‘paródia’, não estou me referindo à imitação ridicularizadora das
teorias e definições padronizadas que se originam das teorias de humor do século
XVIII. A importância coletiva da prática paródica sugere uma redefinição da
paródia como uma repetição com distância crítica que permite a indicação irônica
da diferença no próprio âmago da semelhança. (HUTCHEON, 1991, p.47, grifos
no original)
A autora desvincula a paródia do humor; “a paródia pós-moderna caracteriza sua
duplicidade paradoxal de continuidade e mudança, de autoridade e transgressão” (Ibid., p.57).
A intertextualidade é proposta para, a um só tempo, reconhecer a obra machadiana como
referência – quanto ao uso da metalinguagem, por exemplo – e para marcar uma diferença
ideológica em relação a ela. Trata-se, neste caso, de uma perspectiva feminista.
Em Dissertação de Mestrado sobre A audácia dessa mulher, Leila W. B. Farias
destaca a “subversão do cânone” operada por Ana Maria Machado. A pesquisadora, porém,
não considera o romance uma obra feminista, mas polifônica:
À primeira vista pode parecer que o romance tenha servido como pretexto para
apregoar a ideologia feminista que, de fato, subjaz à sua composição. No entanto,
essa impressão não se concretiza no todo da obra. O que se estabelece é um diálogo
79
entre vários posicionamentos ideológicos frente ao gênero, representados por uma
gama variada de vozes: do/a narrador/a, de cada uma das personagens e da autora
real – Ana Maria Machado – que, por vezes, faz questão de se intrometer na
narrativa para demarcar seu ponto de vista, à moda de Machado de Assis.
(FARIAS, 2007, pp 156-7)
De fato, são diversos personagens a levantarem suas vozes; no entanto, não se pode
negar que as personagens masculinas são caracterizadas como planas, e todas as femininas
convergem para o questionamento da autoridade e do protagonismo dos homens, sendo
possível caracterizar a obra como feminista.
O feminismo, por sinal, inscreve-se nos movimentos que reivindicam novas
identidades no mundo contemporâneo, como escreve Stuart Hall:
O feminismo apelava às mulheres, a política sexual aos gays e lésbicas, as lutas
raciais aos negros, o movimento antibelicista aos pacifistas, e assim por diante.
Isso constitui o nascimento histórico do que veio a ser conhecido como a política
da identidade – uma identidade para cada movimento. (HALL, 2006, p.45, itálico
no original)
Essa política da identidade, relacionada à emergência dos grupos “ex-cêntricos” –
conforme Hutcheon (1991) –, está atrelada também aos “estudos subalternos” representados
pela teórica indiana Gayatri C. Spivak: “no contexto pós-colonial global atual, nosso modelo
deve ser o de uma crítica da cultura política, do culturalismo político, cujo veículo é a
escritura de histórias legíveis, seja do discurso dominante, seja das histórias alternativas”
(SPIVAK, 1994, p.189). Não há dúvida de que A audácia dessa mulher inscreve-se como
uma proposta de história alternativa, retirando a mulher de sua condição “subalterna”. Ainda
assim, não é apenas a questão feminina que está em jogo:
Within the effaced itinerary of the subaltern subject, the track of sexual difference
is doubly effaced. The question is not female participation in insurgency, or the
ground rules of the sexual division of labor, for both of which there is ‘evidence’.
It is, rather, that, both as object of colonialist historiography and as subject of
insurgency, the ideological construction of gender keeps the male dominant. If, in
the context of colonial production, the subaltern has no history and cannot speak,
the subaltern as female is even more deeply in shadow.23 (SPIVAK, 1988, pp.82-
3)
23 “Dentro da trajetória apagada do sujeito subalterno, o rastro da diferença sexual é duplamente apagado. A
questão não é a participação feminina em insurreições, ou as bases da divisão sexual do trabalho, para ambas
as quais existem ‘evidências’. Ao contrário, é que, tanto como objeto da historiografia colonialista quanto
como sujeito de insurreição, a construção ideológica de gênero mantém a dominância masculina. Se, no
contexto da produção colonial, o subalterno não tem história e não pode falar, a mulher subalterna está ainda
mais profundamente na sombra.” (Tradução nossa.)
80
Aqui, as forças do patriarcado e do colonialismo agem em conjunto. Se pensarmos
no contexto de Dom Casmurro, de fato o Brasil imperial é uma periferia da civilização, e a
condição feminina e escravista é a periferia dessa periferia. A propósito, a questão feminina
é primordial, mas não é a única “subalternidade” a ser representada em A audácia dessa
mulher. Bia se frustra porque, das diversas sugestões que fez ao autor de “Ousadia”,
continuariam invisíveis as belas mulatas livres que fabricavam flores (...) e
também não se veriam as outras que atendiam no balcão, ao lado de inglesas e
demoiselles. Como Bia podia ter imaginado que seria possível mostrar a vida num
cortiço, numa casa de pensão ou numa casinha modesta, nas ruas pobres dos
subúrbios ou nas ladeiras da Gamboa ou da Saúde? O máximo que Muniz concedia,
em termos da visibilidade dos esquecidos que ela invocara, era apenas tangenciar
o estereótipo, e mostrar quem trabalhava sempre com cores pitorescas, em traços
cômicos, uns tipos engraçados ‘para dar uma certa leveza à trama’. Isso começava
a irritá-la. (MACHADO, 1999, p.56).
Em outro momento, o romance traz uma “colagem” de três cenas de “Ousadia” em
que é retratado o problema das “mães pretas”, escravas que são afastadas de seus bebês
recém-nascidos para alimentar os filhos dos senhores (Ibid., pp.110-4). Em vigência da Lei
do Ventre Livre, elas sabem que ninguém velará por sua prole. No final da cena, Felipe,
protagonista da série, propõe-se a consultar a esposa, Cecília, sobre adotarem o filho da
escrava. Bia e Juliano se mostram preocupados com a forma de representar essa situação:
– (...) Depois de uma cena dessas, como é que a gente faz? Felipe consulta mesmo
Cecília? Acho que naquele tempo o homem resolvia sozinho. (...) Mas,
consultando ou não a mulher, o que é que Felipe resolve? Ficam com o filho da
escrava ou não?
– Ah, podem ficar... Pode ser até interessante o casal acolher a criança, fica
simpático – disse Bia. – Dá uma empatia com o público.
– Mas será que não é também pura demagogia? Uma forma de paternalismo?
Afinal, se a gente tem a ousadia, como você disse, de lembrar a crueldade que
estava por trás do processo da mãe-preta agora vamos ficar mostrando como os
donos de escravos eram bonzinhos?
Os personagens colocam em questão as implicações éticas das escolhas que o roteiro
de “Ousadia” poderia seguir, quanto à representação de classes marginalizadas, para além
das questões da identidade feminina. A protagonista Bia, além de admirar Fabrício pelo
trabalho dele com crianças de uma favela carioca, em certo momento reflete sobre os
meninos que guardam vagas de carro nas ruas da zona sul carioca. A injustiça econômica
também está representada no romance, ao lado da desigualdade de gênero.
81
Quanto ao relato da Capitu de Ana Maria Machado, enquanto empresária na Suíça,
este é duplamente libertador. Ao deixar a esposa na Europa, Bento Santiago está ao mesmo
tempo exilando-a e fornecendo-lhe as ferramentas para que assuma o comando de sua vida.
Conforme Spivak observa, “refazer a história é uma persistente crítica, sem glamour
nenhum, eliminando oposições binárias e continuidades que emergem continuamente no
suposto relato do real” (SPIVAK, 1994, p.205) – e o que é o discurso jurídico de Dom
Casmurro senão um suposto relato do real, ainda que dentro de um universo ficcional? As
palavras finais da crítica indiana no ensaio “Quem reivindica alteridade?” também iluminam
a relação entre os dois romances ao propor “a insistência em esquecer os privilégios da elite
pós-colonial num mundo neocolonial” (Ibid., p.205).
Devemos seguir Schwarz na identificação de Bento/Casmurro como representante da
elite colonial, que sai da posição submissa diante da mãe para assumir o posto de autoridade
– marido, advogado, narrador. No universo de Ana Maria Machado, o autoritarismo também
está marcado nas personagens masculinas: Muniz, que grita com um de seus colaboradores
na frente de Bia e manipula os acontecimentos ao seu redor, Giba, o noivo de Ana Lúcia, e
Virgílio, que não aceita “dividir mulher” com ninguém e critica o arranjo de Bia e Fabrício,
mas não se sente obrigado a manter a exclusividade que exige de Bia.
A própria voz narrativa, assumindo-se como feminina, marca a inversão do ponto de
vista, e a metalinguagem explícita confirma e reforça a visão em prol do direito ao discurso
– the right to narrate, na expressão de Homi Bhabha (1994, xx).
3.4 Espelhos perpendiculares
No final do romance, Bia está confusa com a leitura da carta de Capitu-Lina e se
refugia num sítio na serra, supostamente em Petrópolis. É um lugar que simboliza sua
independência e autossuficiência (num bom sentido) – um lugar que parece mais uma vez
ecoar o título do ensaio de Virginia Woolf, Um teto todo seu. Ela se distrai orientando seus
empregados e andando a cavalo, medita sobre Fabrício, sobre Dom Casmurro, Capitu e Lina.
Na última cena, vemos a personagem com uma taça de vinho na varanda, sozinha; ela faz
três brindes. Primeiro, a Capitu-Lina:
À petulância daquela menina, que teve o desplante de desafiar ordens maternas,
planos familiares e a gula da Igreja por novos padres – até ganhar o namorado que
seu coração escolhera. E depois de mulher feita, ainda teve a coragem de se
arrancar a fórceps das próprias entranhas e nascer nova. (MACHADO, 1999,
p.223)
82
Em seguida, à Ana Lúcia: “Ao atrevimento dessa moça, que teve garra para enfrentar
o noivo, driblar a ignorância e ficar firme, caminhando com os próprios pés para longe de
seu gueto” (Ibid., p.223). E, por fim, a si mesma: “À audácia desta mulher, que ousa viver
em campo aberto, correndo o risco da verdade. E acredita num amor latente e latejante.
Implícito e vivo como um filho no ventre ou uma semente na terra.” (Ibid., p.224)
É interessante observar a seleção vocabular desses brindes: petulância, desplante,
coragem, atrevimento, garra, audácia... Audácia, como no título da obra. Todos, termos que
remetem à contestação, à transgressão, a um não conformismo que leva a transformar a
realidade em que se vive – uma realidade feita de palavras e orações, mas, para elas, tão real
quanto possível. Note-se, também, a gradação dos pronomes demonstrativos e dos
substantivos, a reforçar o caráter complementar de suas trajetórias: aquela menina Capitolina,
distante no tempo mas convivendo no mesmo ambiente literário e ideológico; essa moça
Ana Lúcia, de convívio contínuo com a protagonista, sua amiga e confidente e que age,
muitas vezes, sob seu aconselhamento direto; e esta mulher Beatriz, refletindo sobre suas
próprias escolhas. Três gerações diferentes, graus variados de envolvimento com as
conquistas femininas: a primeira, anterior ao movimento social que mudou a história,
juntamente com a de outros grupos ex-cêntricos, e que foi por isso literariamente
reconstruída; a segunda, posterior a elas, que goza de tais conquistas, mas exemplifica o
quanto ainda se pode evoluir nesse cenário; e por fim, a protagonista, de uma geração
intermediária, consciente dos sacrifícios e desafios impostos por se pertencer a uma época
de transição.
A coadjuvante Dona Lourdes não é mencionada na sequência, mas ela sem dúvida se
insere no rol de vidas tornadas independentes. O jogo metaficcional permite que as quatro
se cruzem, como reflexos formados por espelhos posicionados perpendicularmente, de modo
a multiplicar as imagens formadas entre si.
83
No último parágrafo, há mais uma intromissão autorreferencial: “brindamos nós
como ela, erguendo uma taça de escrita e leitura” (Ibid., p.224); aqui, o sujeito plural “nós”
inclui certamente a voz narrativa, a Autora-Modelo e o(a) leitor(a). Essa interferência nos
leva a refazer o esquema acima:24
Fica autorizada, também, a interpretação de que se brinda à própria autora empírica, pela
audácia de reescrever – e subverter – uma obra canônica como o Dom Casmurro machadiano
e de assumir para si a referência do título da própria obra.
Não é apenas a mulher que sofre com a opressão e o preconceito histórico. Na canção
Woman is the nigger of the world, John Lennon e Yoko Ono comparam a situação feminina
com a dos negros: “a mulher é o negro do mundo”; porém, se considerarmos que o termo
nigger, nos Estados Unidos, é um termo racista – e que Lennon, apesar de britânico, morava
24 Ilustração de Márcia de Souza Barbosa, com os agradecimentos do autor.
84
em Nova Iorque –, a melhor tradução poderia ser algo como “a mulher é o crioulo do mundo”,
ressaltando a posição desvantajosa na sociedade e no discurso.
Durante a maior parte da produção desta Dissertação, escrita por um homem, a
epígrafe deste capítulo era de Gilberto Gil: “Quem sabe / o Super-Homem venha lhe restituir
a glória / Mudando como um Deus / O rumo da história / Por causa da mulher” (Super-
homem, a canção, em seu jogo intertextual com Superman – o filme de Richard Donner).
Porque se, por um lado, o que Ana Maria Machado fez foi mudar o rumo da história de Dom
Casmurro por causa da mulher – como Deus, em suas intervenções estratégicas na ação do
romance –, por outro, não se permitiria jamais, no contexto dessa obra, que a mudança fosse
realizada por um homem – nem mesmo, ou principalmente, por um Super-Homem. Ela vem,
e tem de vir, e virá, da própria mulher.
85
4. LE GUSTABA MUCHO MIRAR LA CORDILLERA...
Eu sou sua miragem
Sombra fresca da sua realidade
Sou sua resposta
Sua ilusão de ótica palpável (...)
Eu não sou eu
Sou alguém que você imaginou
Uma visão do seu amor
(Lucina / Zélia Duncan, Eu não sou eu)
No filme Wag the dog (1997, direção de Barry Levinson), que em português recebeu
o curioso título de Mera coincidência, o presidente dos Estados Unidos está enfrentando
uma série de acusações de assédio sexual à medida que as eleições se aproximam. Seus
assessores, então, adotam a estratégia de criar uma guerra contra um país obscuro para
desviar a atenção pública. Cenas de explosões e dramas pessoais são criados em um estúdio
de cinema e distribuídos aos telejornais e boletins militares falsos são divulgados à imprensa.
A certa altura, é necessário escolher quem será o adversário nessa guerra fictícia. Um
dos assessores propõe: Albânia! O diálogo é então dominado por perguntas: “Por que a
Albânia?”, questiona um; ao que o primeiro retruca: “Por que não? O que você sabe sobre a
Albânia?”. Todos são obrigados a admitir que nada sabem, de maneira que a sugestão é
aceita.
A cena tem um quê de humor negro, ainda que nenhum cidadão albanês seja ferido
durante as gravações. Na verdade, o que está em jogo é o “formato da enciclopédia” da
opinião pública norte-americana: se nada se sabe, não haverá contestações. O verossímil
torna-se o real quando é exibido nos telejornais.
A metalinguagem está implícita: produzem-se filmes dentro do filme, mas eles são
apresentados como verídicos. Não são ficções; são mentiras, pois possuem o intuito de
ludibriar. Em tempos em que imagens divulgadas via internet são usadas para contestar os
noticiários das emissoras de televisão, e em que se torna cada vez mais difícil diferenciar
fatos de versões e análises sérias de opiniões ideológicas, a reflexão trazida pelo filme é
valiosa.
Porém, algo ainda mais interessante ocorreu naquele período. No início de 1998, logo
após o lançamento do filme nos cinemas, o presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, de
fato enfrentou um escândalo sexual, quando surgiu a informação de que ele fizera sexo oral
com a estagiária da Casa Branca Monica Lewinski. Na mesma época os Estados Unidos
promoveram bombardeios na Sérvia, numa tentativa de abreviar o violento conflito de
86
separação da Iugoslávia. Essa intervenção foi vista por alguns analistas como tentativa de
minimizar o escândalo Lewinski, e de algum modo o filme Wag the dog imitou e antecipou
a própria realidade de um modo que seu título em português, Mera coincidência, amplificou.
4.1 Personagens de si mesmos
A exemplo de A audácia dessa mulher, o romance Cordilheira, de Daniel Galera,
também apresenta uma metalinguagem dobrada “para dentro” e “para fora”. A principal
diferença é que neste, as ocorrências intertextuais, ainda que reveladoras, não interferem no
movimento geral do enredo. As babushkas, por sua vez, lhe são essenciais.
Cordilheira começa com um prólogo em terceira pessoa, intitulado “Como água”,
em que a protagonista Anita van der Goltz Vianna é uma moça de 23 anos sendo observada
pelo pai, que se arruma para uma noite de pôquer com amigos. Sabemos que a mãe morreu
em seu parto, que ela é fã de heavy metal e que desde que se formou em jornalismo só se
ocupa de escrever um livro.
O corpo do romance recebe um título enigmático – “Mamihlapinatapai” – que será
explicado nas páginas finais. O texto é narrado em primeira pessoa, por Anita; ela tem cerca
de 27 anos e, alguns anos antes, publicara um romance premiado, o qual agora renega. Seu
pai morreu num acidente de carro, supostamente na noite narrada no prólogo. Ela desistiu
da carreira literária e deseja ardentemente um filho – como se quisesse se dedicar a outro
tipo de criação. Seu namorado, Danilo, acha que não é o momento certo para serem pais e
isso desgasta a relação deles. Ao mesmo tempo, Anita recebe um convite para o lançamento
da versão castelhana de seu livro, em Buenos Aires; mesmo não se vendo mais como
escritora, a crise conjugal a faz aceitar e planejar uma estada mais longa na capital argentina.
Para o evento de lançamento, Anita pede que o editor leia para o público presente o
último capítulo do romance, como forma de “autossabotagem” (GALERA, 2008, p.40). No
entanto, se essa atitude serve bem ao desprezo da autora por sua obra, serve ainda melhor à
estratégia do autor Daniel Galera, que reproduz integralmente esse capítulo final de
“Descripciones de la lluvia” (o título está em espanhol, mas o texto em português); os fatos
narrados nele serão decisivos para o enredo de Cordilheira, configurando sua primeira
babushka.
Nele, a protagonista Magnólia está numa praia deserta, num dia de chuva. O
namorado, com quem estava hospedada perto dali, a encontra no alto de algumas pedras. No
final, “seu gesto foi belo e inevitável, e a criatura a seu lado, aquele improvável arranjo de
87
carne, despencou rente à parede rochosa e foi tragada para sempre pela espuma e pelas pedras”
(Ibid., p.47). O gesto é de Magnólia, e a criatura é o namorado.
Terminada a leitura, há um debate pelo qual Anita não se interessa. Em seguida, um
ouvinte pergunta à escritora brasileira por que Magnólia empurrara o namorado. Anita dá
uma resposta evasiva e o encontro se encerra. Esse homem telefona para Anita no hotel,
apresenta-se como José Holden, e eles se encontram. Iniciam um relacionamento. Em poucas
semanas ela se muda para a casa dele, no bairro de Palermo, e começa a conhecer os seus
amigos.
Estes se encontram aos domingos para discutir literatura, e nesse ponto o conteúdo
metaficcional ganha destaque em Cordilheira. Na primeira vez em que participa dessa
reunião, Anita percebe que eles têm uma abordagem radical dessa arte: de início, defendem
que “se você quer conhecer uma nação, familiarize-se com seus escritores de segunda linha:
somente eles refletem sua verdadeira natureza” (Ibid., p.89), atribuindo tal ideia a Cioran –
aparentemente, o escritor e filósofo romeno Emile Cioran (1911-1995), conhecido por uma
obra bastante pessimista. No contexto, trata-se de uma justificativa para rejeitar autores
argentinos consagrados, como Borges, Bioy Casares, Piglia, Cortázar..., mas também uma
forma de afirmação do próprio grupo: os “escritores de segunda linha” são eles mesmos.
Holden completa:
Toda arte é egoísta, mas a literatura é a mais egoísta de todas. Não há como
escrever honestamente sobre qualquer coisa que não seja nós mesmos. (...) Os
escritores de segunda linha tendem a ser mais autênticos porque têm menos
capacidade de maquiar a individualidade do que os move a escrever. (Ibid., p.95)
Quando Anita ensaia discordar, é completamente ignorada, o que demonstra o quanto
o grupo estava decidido quanto a essa opinião. Desse primeiro contato, ela fica com a
impressão de que Holden e seus amigos “mostravam ser o tipo de gente que leva a literatura
a sério demais, que só consegue pronunciar essa palavra como se ela tivesse inicial maiúscula.
Oh, meu Deus, a Literatura” (Ibid., p.95), configurando a primeira divergência entre ela e os
argentinos.
Holden não permite que Anita leia o seu romance, e quando ele viaja sozinho para a
Patagônia, ela começa a receber, na casa dele, livros embrulhados. Aos poucos, percebe que
foram escritos pelo grupo de amigos e que cada um deles é um personagem. Eles são uma
espécie de seita: escrevem um livro e escolhem um personagem deste (criados por eles
próprios) para incorporar no dia a dia, conforme o quadro abaixo:
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PERSONAGEM AUTOR TÍTULO DA OBRA
Juanjo Santiago Oyola
(pseudônimo de Félix
Márusic)
Un cuarto oscuro en el fondo
(pp.93, 136)
Silvia Nacha Acosta Más que un sueño (p.112)
José Holden Diego Parisi La conjuración sagrada (p.117)
Vigo Juan Jesús Terragno El gran hotel del universo (p.131)
Pepino Nicolas Godoy La película blanca (p.135)
Jorge Parsifal
(p.86, 95)
???? ????
Esteban ???? ???? (pp.128-130)25
O paradoxo e o conflito de identidades encerrados por essa circunstância são
evidentes. Em primeiro lugar, Anita não conheceu pessoas, mas personagens forjados
primeiramente como letras de ficção (orações) e intencionalmente projetados na realidade,
conforme a terminologia de Anatol Rosenfeld (in CANDIDO et al, 2011). Não são
espontâneos; são simulacros. Eles podem ser interpretados tanto à luz da teoria da ficção
quanto das observações de Stuart Hall: eles abrem mão de suas identidades prévias e se
recriam sob outra, como se não houvesse a anterior. Adquirem uma nova dimensão do caráter
descentrado, “provisório, variável e problemático” da identidade pós-moderna (HALL, 2006,
p.12), numa espécie radical de performatividade autodirigida, na medida em que o discurso
dá origem a um novo “eu”. O romance não menciona explicitamente, mas pode-se inferir a
possiblidade de um desses autores escrever mais um livro e tornar-se outro personagem.
Nem todas essas babushkas são abertas por Daniel Galera, conforme se pode
observar no quadro. Nenhuma delas tem consequências relevantes para o enredo de
Cordilheira, exceto a de José Holden, de modo que se pode concluir que a intenção de Galera
ao desenvolvê-las é explicitar e exemplificar a sua radicalidade.
Deixemos a de Holden para o final e sigamos a regra: mulheres primeiro. Silvia é
personagem do romance “Más que um sueño”. O traço dominante incorporado pela autora
Nacha Acosta são encontros sexuais com idosos. A título de justificativa, Nacha/Silvia
pergunta a Anita: “Algum homem já olhou pra você como se você fosse a materialização de
um sonho?” Diante da resposta afirmativa da brasileira, arremata: “Com esses homens, é
melhor do que isso. A maioria deles já comeu a mulher dos sonhos há muito tempo. Eles
25 Elaboração própria. Os campos preenchidos com “????” correspondem a dados não informados no
romance. Ao longo do texto, referir-nos-emos a eles pelos nomes dos personagens, porque assim eles são
utilizados no romance e nem todos os nomes de autores são informados.
89
ressuscitam diante de mim. Sou mais do que um sonho pra eles” (GALERA, 2008, pp.102-
3, itálicos da personagem, no original).
Vigo age como uma espécie de líder da seita literária, mas originalmente é
personagem secundário de “El gran hotel del universo”. Amputado das duas pernas, ele anda
pelas ruas de Buenos Aires numa cadeira de rodas apoiando-se nos para-choques dos carros.
Daniel Galera escreve quase duas páginas desse livro assinado por Juan Jesús Terragno. Nele,
Vigo tentava “proteger a filha da aproximação de uma Primavera sinistra, descrita como uma
daquelas entidades malignas de um livro de Stephen King ou Clive Barker que avançam
engolindo mundos inteiros” (Ibid., p.133). Fora do livro, Vigo tem uma filha de sete anos
chamada Primavera.
Pouco adiante, quando Pepino leva Anita para conhecer a menina, pergunta a Anita
se vê algo de excepcional nela. E responde: “Ela existe única e exclusivamente porque foi
imaginada e convertida em letra impressa num livro de ficção” (Ibid., p.137). A narradora
demora um pouco a compreender, mas conclui:
Para tornar-se seu personagem, um homem tinha ido ao ponto de gerar uma criança.
Será que isso tinha acontecido antes ou depois de ele ter dado um jeito de eliminar
as próprias pernas? Era monstruoso. Por outro lado, ali estava Primavera,
sorridente e bem alimentada, recém-egressa de sua aula semanal de violino. Não
havia o menor sinal de que não fosse uma menina amada. (Ibid., p.138)
Essa passagem marca o auge do caráter performativo da personagem, que
metonimicamente representa o de todos eles: o ser é gerado primeiramente como um ato
linguístico, composto de palavras e orações, e, posteriormente, converte-se concretamente
em carne e osso – do ponto de vista das personagens, enquanto somente o leitor sabe que
também Anita não passa de um ser “puramente intencional”, fictício.
A propósito, a narrativa de Pepino, ou seja, de Nicolas Godoy, “La película blanca”,
“é sobre um cara que vai ao litoral brasileiro filmar um curta-metragem, é estuprado por um
sujeito que lhe dá carona e...” (Ibid., p.135). Ele não prossegue a descrição, mas nega o
caráter autobiográfico da obra; diz apenas que passou por uma situação parecida em Capão
da Canoa (Rio Grande do Sul). Por outro lado, se Terragno/Vigo não tinha as pernas tal qual
seu personagem, pode-se perguntar se Godoy se teria “deixado” estuprar para se assemelhar
à sua criação ficcional.
Juanjo participa do primeiro dos livros que Anita recebe, “Un cuarto oscuro en el
fondo”, de Santiago Oyola, o qual ela não consegue ler integralmente. O que o distingue dos
demais é o fato de que o autor Oyola também não tem existência “concreta”: é pseudônimo
90
de Félix Márusic, inaugurando outro nível de conflito realidade-representação-ficção no
romance; afinal, a criação de uma persona literária através de um pseudônimo também é
uma forma de performatividade, na medida em que um ato linguístico forja a existência de
um ser, nomeando-o. Márusic é preso por um assassinato com esquartejamento. Chocada,
Anita ouve de Pepino: “Como pensei, você não leu até o fim. Bom, todos nós conhecíamos
bem o livro dele, claro. Mas só Vigo defendia que Félix deveria chegar a esse ponto” (Ibid.,
p.136).
Como Anita não leu, e é ela quem nos dá conhecimento do enredo de Cordilheira,
nós, leitores, também não sabemos, apenas o suficiente de que o autor tornara-se um
assassino a exemplo de seu personagem. Como preciosismo irônico, o esquartejador Márusic
trabalhava como açougueiro na Carnicería Cortázar, referência óbvia ao autor argentino de
O jogo da amarelinha e de diversos contos metaficcionais com o mesmo poder de diluir as
fronteiras entre real e ficcional.
O personagem Esteban não participa das reuniões em que Anita conhece os
companheiros de Holden. Sua primeira aparição no romance se dá quando todos se
encontram na Reserva Ecológica de Buenos Aires para o ritual de despedida desse
personagem. O grupo se reúne em um círculo; o autor-personagem pinga gotas de seu sangue
sobre um exemplar de seu livro antes de este ser completamente queimado. Vigo recita: “A
literatura não é inocente, e, culpada, ela enfim deveria se confessar como tal” (Ibid., p.130).
Por fim, o rapaz age como o seu personagem: despe-se e sai nadando pelo “turvo, gelado,
poluído e de modo geral nada atrativo Rio da Prata” (Ibid., p.130). Quando ele desaparece
na escuridão, todos vão embora. A narração de Anita não volta a dar notícias desse confrade
até a sequência final, na Terra do Fogo, quando se dará o sacrifício de José Holden; mas
talvez ali não seja mais Esteban, mas outro personagem escrito pelo mesmo homem.
Os romances e os personagens dos amigos de Diego Parisi não têm papel decisivo na
narrativa tramada por Daniel Galera. Sua função, aparentemente, é demonstrar a radicalidade
da proposta desse grupo de autores argentinos – inclui crimes, perversões, mutilação e
práticas no mínimo perigosas –, que se assemelha a um role-playing game (RPG) da “vida
real”, mas dentro de um universo ficcional. O RPG caracteriza-se pela incorporação de
personagens por seus jogadores, que agem como se fossem eles enquanto durar a partida.
No elenco de Cordilheira, entretanto, a partida não tem duração pré-determinada, e para
alguns só termina com a morte.
91
As trajetórias determinantes para o romance são as de Anita e de Diego Parisi. A
brasileira só lê “La conjuración sagrada”, de autoria de seu namorado argentino, depois de
compreender a dinâmica do grupo de que ele faz parte. Holden é um funcionário público
exemplar com uma vida libertina; segundo a narradora, “algo como um doutor Jekyll que
bebe a opção e à noite vira o Bukowski” (Ibid., p.118).
Em pouco tempo o grupo de amigos se transforma numa espécie de seita secreta
com sua própria cartilha espiritual. Reúnem-se para discutir textos de filósofos e
antropólogos e artigos de sua própria autoria e dedicam-se a ações de terrorismo
poético. (...) No último terço, que fica mais interessante, o protagonista começa a
levar tudo a sério demais. Bota na cabeça que deseja fundar uma religião.
Inicialmente, seus amigos entram na onda. Passam a estudar textos sobre religiões
do mundo todo. Holden fica vidrado pela religião dos astecas, com seus rituais de
sacrifícios sanguinolentos. A realização de um sacrifício se torna uma obsessão.
Nesse ponto seus companheiros começam a perceber que ele é meio pancada e ele
vai ficando isolado.
No final, Holden resolve demonstrar que não está para brincadeira e oferece-se
para ser a primeira vítima imolada pela seita. Logra arranjar o ritual no meio de
um bosque na Patagônia. Na última hora, porém, tudo dá errado. Os amigos, que
o acompanham sem convicção, frustram seu plano. Ninguém se dispõe a ser o
carrasco. Os confrades o abandonam no meio do mato e o grupo se dissolve para
sempre. O livro termina com um prólogo [sic] em que o personagem, já idoso,
recorda com certo escárnio suas ambições juvenis. Nas últimas frases, porém,
abre-se a possibilidade de que o narrador não seja confiável. (Ibid., pp.118-9,
itálico nosso)
Portanto, a própria formação da seita é performativa, postulada previamente no
romance de Parisi. Anita compreende a aproximação de Holden e a pergunta que ele lhe
fizera no lançamento de seu livro: “Por que Magnólia empurra seu amante do penhasco no
final do romance?” (Ibid., p.50). Diego Parisi quer que Anita incorpore a personagem dela,
Magnólia, para sacrificar o dele, José Holden. Ela lhe diz que não participará disso, assim
como no romance ninguém se dispõe a ser o carrasco. A resposta dele é lacônica: “Eu falei
que era cedo [para você ler o livro].” (Ibid., p.120)
De acordo com a personagem, o romance de Parisi termina com um aviso de que o
leitor deve desconfiar do narrador – uma lição que trazemos de Dom Casmurro e devemos
estender à própria Anita, quando necessário. Além disso, o título esconde uma relação
intertextual sofisticada; “La conjuración sagrada” retoma “La conjuration sacrée”, artigo
do escritor Georges Bataille no primeiro número da revista Acéphale, em 1936. Essa
referência explica por que, no primeiro encontro com Anita, Holden pergunta “se eu já tinha
lido certos autores franceses.” (Ibid., p.68)
No artigo citado, Bataille inicia: “O que empreendemos não deve confundir-se com
nenhuma outra coisa, não pode limitar-se à expressão de um pensamento, nem muito menos
92
ao que se considera justamente como arte.” (BATAILLE, 2003, p.227). Pouco adiante,
prossegue: “É hora de abandonar o mundo dos civilizados e suas luzes. É demasiado tarde
para empenhar-se em ser razoável e instruído, o que tem levado a uma vida sem atrativos.
Secretamente ou não, é necessário tornarmo-nos totalmente diferentes ou deixar de ser.”26
(Ibid., p.228)
A proposta de organização como uma seita está aí presente, bem como a ideia de
transfigurar a própria identidade, “secretamente ou não”. Isso explica o isolamento social de
Holden – ele conta a Anita sua “relação terrível” com os pais: “Eu ficava dias sem ouvir a
voz deles. Não é que não me amassem. Mas não havia conversa. Ninguém nunca se tocava.”
(GALERA, 2008, p.151). Nesse ponto torna-se impossível saber se quem fala é Diego Parisi
ou José Holden; quando ele cita a maternidade de Anita, ela afirma que “estava preparada
para qualquer coisa, menos para vê-lo finalmente sair de seu personagem” e que “os
personagens precisavam voltar”, sem especificar em que ponto exatamente estava a fronteira
entre um e outro. (Ibid., p.153)
O estatuto ficcional desses personagens pode ser representado como um jogo de
espelhos paralelos, gerando imagens ao infinito e uma perspectiva “em abismo”:
Os autores, na coluna central, refletem-se em suas criações ficcionais, nas
extremidades. Nesse processo suas identidades se apagam, fazendo com que os personagens
26 Tradução nossa a partir da versão em espanhol de Silvio Mattoni.
93
“de segundo nível” (babushkas) assumam o primeiro nível da narração e convivam com os
demais como se pertencessem (ou passando a pertencer) à mesma realidade que estes27.
4.1.1 Irrisari, um caso particular
A paixão e o descentramento com que esse grupo aborda a literatura estão expressos
na admiração que todos demonstram pelo escritor guatemalteco Jupiter Irrisari. Na primeira
vez que se fala dele, Holden explica:
– Irrisari concebia personagens, traçava alguns elementos básicos de sua história
e os incorporava. Há algumas poucas crônicas e registros escritos que dão conta
de suas atuações (...)
– Eram como intervenções teatrais, então?
– Não, não. Ele simplesmente passava a agir como o personagem. Não avisava
ninguém, não eram apresentações. Você podia conhecê-lo e encontrá-lo seis meses
depois, e ele seria uma pessoa totalmente diferente, falando de outra maneira, com
outros objetivos e ideias... (Ibid., p.96)
Anita discorda frontalmente dessa postura; diz que considera Irrisari um “otário” e
questiona: “A literatura, para funcionar, não precisa manter certa distância da vida? Todo
livro bom que lembro de ter lido tem essa tensão. É algo que poderia ser real” (Ibid., p.97,
grifo da personagem). Como vimos, ela considera Holden e seus amigos “o tipo de gente
que leva a literatura a sério demais, que só consegue pronunciar essa palavra como se ela
tivesse inicial maiúscula. Oh, meu Deus, a Literatura.” (Ibid., p.89)
Jupiter Irrisari é autor de uma das epígrafes de Cordilheira: “Imaginar o inexistente
é um ato de paixão pela vida, mas viver o imaginado requer um amor duradouro e, sobretudo,
um compromisso” (Ibid., p.5). A citação é atribuída à obra “Personajes” e sugere
intertextualidade – tal qual a outra epígrafe, da compositora folk norte-americana Joanna
Newsom. No entanto, uma pesquisa sobre Irrisari revela que ele é tão fictício quanto Anita,
Diego Parisi/Holden e todos os outros personagens de Cordilheira.
A primeira indicação deste fato é dada pelo próprio Daniel Galera, em texto
publicado no blog da editora Cosac Naify em 2011. Convidado a escrever sobre a relação
entre literatura e sociedades secretas, ele conta:
Morto na cadeia em 1943, com cerca de trinta e cinco anos, em circunstâncias
nunca esclarecidas, o escritor guatemalteco Jupiter Irrisari ficou conhecido em
alguns círculos literários da sua época por conceber e pôr em prática a radical
agenda estética – exposta no raro volume Personajes, edição artesanal de 1931 –
de transformar-se nos personagens que criava. A sociedade que liderou, Los
27 Ilustração de Márcia de Souza Barbosa, com os agradecimentos do autor.
94
Títeres, incluiu os obscuros compatriotas Manolo Godoy, Lucy Longo Chacón e
Denni Mejicanos, todos, supostamente, engajados a partir de algum momento na
encarnação real de seus personagens literários. Suspeita-se da existência de uma
conexão de Los Títeres com a Acéphale, a revista e sociedade esotérica secreta
liderada por Georges Bataille na França entre 1936 e 1939, da qual participaram,
entre outros, Roger Caillois, Jean Wahl, Pierre Klossowski e o pintor André
Masson. Pelo menos um biógrafo do autor francês acredita que um encontro de
Irrisari e Bataille na Espanha foi o estopim do rompimento do segundo com André
Breton e os surrealistas. As atividades da Acéphale, mantidas secretas até hoje por
juramento, seriam uma extensão da “realidade ficcional” dos Títeres
guatemaltecos, porém investida de um caráter esotérico. Em seu artigo A
Conjuração Sagrada, publicada [sic] na primeira edição da Acéphale, Bataille
escreveu: “Secretamente ou não (…) é necessário tornar-se diferente ou então
deixar de existir.” (GALERA, 2011, itálicos nossos)28
Conforme se lê, são diversas as expressões de imprecisão – onde grafado em itálico.
Todas as respostas a uma busca na internet pelo nome “Jupiter Irrisari” referem-se a Daniel
Galera – a Cordilheira ou ao texto apresentado acima. Não se encontra, tampouco, referência
alguma aos outros nomes mencionados como “obscuros”.
Galera insinua Irrisari como pivô do rompimento entre Georges Bataille e André
Breton, dois conhecidos mentores do movimento surrealista. Acreditamos que, se fosse o
caso, o nome do guatemalteco deveria constar de relações de escritores importantes de seu
país – e isso não acontece29.
O recurso de insinuar a realidade empírica, ontológica, de personagens fictícios não
é original. Neste trabalho, citamos A narrativa de Arthur Gordon Pym, de Edgar Allan Poe,
as Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, bem como Senhora de José
de Alencar. Outros tantos exemplos seriam possíveis. Entretanto, nenhuma dessas obras tem
como tema central a relação problemática entre realidade e ficção – que, em Cordilheira,
toma a forma metaficcional das babushkas, de histórias escritas pelos que se dizem
admiradores desse mesmo Irrisari. Por fim, é digno de nota o nome da sociedade criada por
Galera para Irrisari: Los títeres, isto é, marionetes, bonecos manipulados – tal qual aqueles
de Mestre Pedro, em Dom Quixote – em última instância, ficções.
Aos que perguntarem “por que a Guatemala?” seria escolhida por Daniel Galera,
podemos responder com uma paráfrase do filme Mera coincidência: “Por que não? O que
28 Não acrescentamos itálico aos termos para os quais as normas da ABNT determinam esse emprego – nome
do livro Personajes e da revista Acéphale – porque não se encontram grifados no texto original e como forma
de realçar os itálicos que acrescentamos ao texto. 29 Podem-se mencionar como exemplos: http://es.wikipedia.org/wiki/Literatura_de_Guatemala e http://
www.literaturaguatemalteca.org (ambos com acesso em 21.jun.2015). São extensas listas de escritores do
país, com destaque a uma certa “Generación de 1920” (na qual se destaca o ganhador do Prêmio Nobel de
Literatura de 1967, Miguel Ángel Asturias), e não há menção a Jupiter Irrisari nem a seus supostos
companheiros, nem tampouco ao grupo “Los títeres”.
95
você [o leitor médio] sabe sobre a Guatemala?”. Como a resposta será, majoritariamente,
“Nada”, está em jogo a “competência enciclopédica” do leitor (ECO, 1994, pp.114-5).
4.2 Fortuna crítica: Cordilheira quase inexplorada
Ainda não há estudos acadêmicos de fôlego sobre Cordilheira. O estudo mais
aprofundado disponível é “A narrativa de Daniel Galera: mídias confundidas e relações
intertextuais”, do pesquisador João Manuel dos Santos Cunha (2011). O artigo faz uma
abordagem panorâmica dos três romances do escritor publicados até então, de modo que
foge aos seus propósitos aprofundar-se em qualquer um deles.
Em uma (extensa) nota de rodapé, Cunha reconhece o “extraordinário jogo
metaliterário que confunde realidade e ficção” e que simula a existência empírica de Jupiter
Irrisari (CUNHA, 2011, p.457). O crítico comenta que a biografia do autor guatemalteco foi
lida como verídica por muitos, fato que “deve ter provocado imensa satisfação no autor
literário, já que evidencia a existência de uma real confusão entre a verdade e a ficção, entre
a vida e a literatura, um dos problemas tematizados pelo narrador de Galera” (Ibid., pp.458).
Ainda de acordo com o autor, Galera assim se inscreve “na esteira de notáveis
simuladores de verdades literárias – como os contemporâneos Ricardo Piglia e Henrique
Vila-Matas e o notável criador de ‘ficções verdadeiras’, ou ‘verdades ficcionadas’, o chileno
Roberto Bolaño, referência ineludível, quando se pensa sobre esse tema” (Ibid., p.457). Com
efeito, em certa cena de Cordilheira, Anita relata ter comprado um exemplar de um livro de
Bolaño.
Cunha investiga outras relações intertextuais em Cordilheira, mas, apesar de se
referir ao texto do blog da Cosac Naify, ignora a semelhança entre os títulos do romance de
Diego Parisi e do artigo de Georges Bataille. Ele prefere se concentrar em outra similaridade:
o Cerro Bonete onde ocorre o sacrifício de Holden seria o mesmo para onde se dirige
Hermano, protagonista de Mãos de cavalo, romance anterior de Galera (2006). Com efeito,
apesar de o Bonete de Mãos de cavalo ficar na Bolívia, e o de Cordilheira na Terra do Fogo
argentina, não parece se tratar de coincidência; em ambos, “é no Cerro Bonete que se
constrói situação-limite para o fechamento das tramas” (CUNHA, 2011, p.459): Hermano
estabelece sua escalada como um desafio, uma façanha definidora de sua vida e de sua
identidade; Parisi o escolhe para o desfecho de sua trama-vida, aquilo que em seu romance
representa a afirmação de José Holden perante seus amigos e seguidores. Para Anita,
96
simboliza a libertação definitiva em relação a seu livro, à sua personagem, e lhe permitirá
seguir adiante com seu projeto de maternidade independente30.
João Manuel dos Santos Cunha explora, ainda, uma possível intertextualidade entre
os nomes de José Holden e do narrador-protagonista Holden Caufield, de O apanhador no
campo de centeio (The catcher in the rye), do norte-americano J. D. Salinger (1951). A
referência justifica-se porque, para Cunha, o “jogo de linguagem literária [é uma]
determinante estrutural do romance” de Salinger (Ibid., p.461), mas principalmente porque,
no final da narrativa de Caufield,
depois de ter verbalizado o vivido em vida narrada (inclusive, possivelmente,
tendo por ouvinte um psiquiatra), a realidade desaparece, passa a ser texto,
decorrência do real mas não seu substituto. Elaborada em linguagem verbal, a
fantasmática memória do vivido pode agora ser recuperada com a serenidade
possibilitada pelo entendimento, para além das doloridas perdas pessoais e da dor
inaplacável de um mundo que deu errado. (Ibid., p.463)
De fato, desse ponto de vista as descrições dos personagens, o Holden Caufield de J. D.
Salinger e o José Holden de Daniel Galera/Diego Parisi adquirem grandes semelhanças.
Karl Erik Schøllhammer, ao analisar Cordilheira em seu livro Ficção brasileira
contemporânea, também o compara com o romance anterior de Daniel Galera: “como em
Mãos de cavalo, [Galera] consegue construir com muita competência a crise pessoal e a
imanência da transformação nas escolhas de Anita” e “formata a questão do papel da
literatura por um caminho surpreendente” (SCHØLLHAMMER, 2011, p.140). O crítico
sugere influência do escritor argentino Roberto Arlt e de seus romances publicados em 1931
(mesma época em que teria vivido Jupiter Irrisari):
O herói de Arlt, Erdosain Remo, poderia ser um antepassado de Holden na medida
em que percebe a radicalidade existencial das consequências últimas como
liberação de uma sociedade supostamente fundada sobre a liberdade humanista.
Contra uma mentira só uma mentira maior, arguia Erdosain, pois “a mentira é a
base da felicidade humana”. (Ibid., p.142)
Schøllhammer elogia o romance: “Galera constrói com muita habilidade a
transformação na vida de Anita em função da capacidade da personagem de se colocar em
cena enquanto tal” 31 (Ibid., p.143). Ele refere-se ao clímax de Cordilheira, quando a
30 A autorreferência se repete no romance Barba ensopada de sangue, de Galera (2012). O personagem
Bonobo, amigo de infância do protagonista de Mãos de cavalo, ressurge adulto como proprietário de uma
pousada em Garopaba, Santa Catarina. 31 Também Beatriz Resende (2008, pp.123-7), em seu livro Contemporâneos, tece elogios a Daniel Galera.
Porém, seu livro foi editado antes de Cordilheira e sua crítica concentra-se em Mãos de cavalo (2006).
97
protagonista aceitará “encarnar” sua personagem Magnólia, no sacrifício de José Holden,
conforme analisaremos adiante. Por enquanto, tomemos outro trecho de Schøllhammer, não
se referindo especificamente à obra de Galera:
Se no auge do ceticismo pós-moderno a ficção desconstruía a realidade
representada, denunciando sua relatividade teatral, uma inversão se opera na
literatura contemporânea que concretiza os mecanismos expositivos e
performáticos da experiência, abrindo espaço para a realidade de seus efeitos de
verdade.” (Ibid., p.112)
Assim, ao explorar a desconfiança da narradora diante da encenação dos escritores
argentinos, Daniel Galera revela um dos temas centrais de seu texto: a literatura vista como
performance.
4.3 Literatura como performance
Desde as vanguardas modernistas, a expressão artística tem buscado desafiar os
padrões estéticos, as noções de gosto do público e os próprios limites do que pode ser
considerado arte. À medida que as inovações modernistas se expandiram e foram, aos poucos,
assimiladas por público e crítica, chegou o momento de novas experimentações. Ao mesmo
tempo em que os museus se firmavam como espaços de legitimação das obras de arte, estas
passaram a formar um mercado não muito distinto da circulação de outras mercadorias
(CANCLINI, 2012, p.29) – desde então, telas e esculturas de autores consagrados têm sido
vendidas por centenas de milhões de dólares. Em reação a esse movimento, a arte começa a
fugir de seus espaços e formatos tradicionais e a acrescentar novos domínios e possibilidades.
Uma das tendências que se verificam é a chegada da arte aos lugares públicos. O
antropólogo argentino Néstor García Canclini observa uma “expansão da arte para além do
seu próprio campo, quando este se apaga ao se misturar com o desenvolvimento urbano, as
indústrias do design e do turismo” (CANCLINI, 2012, p.20, itálico nosso). Essa arte urbana
é analisada pela pesquisadora Zalinda Cartaxo. No artigo “Arte nos espaços públicos: a
cidade como realidade”, ela identifica a origem desse fenômeno na década de 1960; ali, dá-
se uma reaproximação entre arte e realidade “não apenas numa dimensão estética, mas
também política, cultural e social”, de modo que “o papel das instituições, o lugar da arte (os
museus e galerias ‘cubo branco’), o mercado e o público foram questionados” (CARTAXO,
2009, p.3). Duas formas de arte podem servir-nos de exemplo: o grafite e as intervenções,
esta em suas diversas possibilidades.
98
O grafite surgiu como expressão plástica da cultura hip-hop, a qual inclui o rap e a
dança break. Nas últimas três décadas, ele saiu das regiões empobrecidas, dos guetos, e
chegou a todos os cantos das metrópoles. Em alguns casos, esteve exposto em museus e
possui artistas reconhecidos nominalmente, mas permanece sendo, em essência, uma arte da
rua e anônima. Pelo fato de estar nas vias públicas, o grafite pode estar virtualmente em
qualquer lugar e, portanto, o momento de recepção é igualmente aleatório. Logo, seu público
não é aquele preparado para estar em contato com a obra de arte – que vai a um teatro,
cinema, galeria ou museu, ou abre um livro para ler; é o transeunte, que pode ou não dedicar
à obra uma atenção detalhada, uma apreciação sensorial ou crítica. Por isso o grafite é
avaliado por parâmetros outros em relação à arte tradicional – mais pela sua capacidade de
interagir harmonicamente com o contexto visual já existente do que por seu conteúdo
propriamente dito. De certa forma, sua maior realização pode ser uma paradoxal
invisibilidade: quanto mais integrado à paisagem urbana estiver o grafite, mais difícil pode
ser a sua percepção pelo cidadão. Por outro lado, ainda que não possa reconhecer
características estéticas ou autores, a população da cidade tem uma consciência crescente do
estatuto artístico dessa forma de expressão que se entremeou em seu cotidiano.
As intervenções podem ser, grosso modo, instalações ou performances. Zalinda
Cartaxo analisa três modalidades de instalações, que denomina site-specific: “aquela que
considera as dimensões físicas do lugar, o site-oriented e o site funcional, [as quais]
“cumprem-se em relação direta com a vida e a realidade, tendo, muitas vezes, a cidade como
lugar intermediário destas relações” (CARTAXO, 2009, p.5, itálicos da autora). A primeira
corresponde a obras projetadas para uma determinada localidade, e sua transferência para
qualquer outra perderia o sentido desejado. O site-oriented, diferentemente, leva em
consideração o espaço e até demanda participação do público local, mas “a dimensão
sociocultural prevalece em relação às dimensões físicas” (Ibid., p.6): a obra pode ser
deslocada ou adaptada para diferentes lugares sem prejuízo para seu significado. O site
funcional, por fim, é
nômade por excelência, lida com uma dinâmica de desterritorialização. (...) Trata-
se de um lugar, em si, desmaterializado, uma vez que inscrito num fluxo
circulatório, contudo, ainda muito próximo do lugar-cidade, tendo em vista o seu
caráter dinâmico e interativo. (Ibid., p.7, itálico da autora)
Isto é, ao invés de invocar um endereço específico ou um aspecto físico, trabalha com o
próprio movimento contínuo característico do centro urbano.
99
As performances, cujas origens se encontram no teatro e na dança, também podem
ser incluídas dentre tais intervenções quando ocorrem no espaço público, seja
individualmente ou em grupo. Esta categoria inclui os flash-mobs, nos quais pessoas se
reúnem para executar uma música ou coreografia, muitas vezes em lugar público de bastante
movimento, surpreendendo os passantes.
Em comum, todos possuem a efemeridade, inclusive o grafite, que pode ser removido
para dar lugar a outra obra, ou a nenhuma. Buscam um público aleatório, e nele, um efeito
estético baseado no aqui-e-agora; podem gerar uma impressão ou reflexão duradoura, mas
não como valor primordial, conforme nas palavras de Cartaxo: “Estas obras-manifestações
não possuem o seu valor estético aderente à forma, mas sim à sua condição de
acontecimento-efêmero, em que a participação do público faz-se, muitas vezes, relevante e,
simultaneamente, imperceptível.” (Ibid., p.3)
De fato, quando a obra se integra à paisagem e/ou ao cotidiano da cidade, pode tornar-
se indetectável. Esse entrosamento entre arte e meio urbano resulta também na perda da
autonomia do sentido da arte. Se, anteriormente, esta possuía seus locais próprios de
apreciação e (des)legitimação da obra enquanto tal, assim como suas instâncias críticas, e se
estabeleceu como um saber e um universo específicos, então ao ganhar as ruas ela perde esse
caráter esotérico e sacralizado. O significado da obra passa a não depender apenas dela
própria, mas também do contexto de recepção e do próprio receptor. É o fenômeno que
García Canclini chama “arte pós-autônoma”:
o processo das últimas décadas no qual aumentam os deslocamentos das práticas
artísticas baseadas em objetos a práticas baseadas em contextos até chegar a inserir
as obras nos meios de comunicação, espaços urbanos, redes digitais e formas de
participação social onde parece diluir-se a diferença estética. (CANCLINI, 2012,
p.24, itálicos do autor)
A postura de Canclini converge para a do filósofo francês Yves Michaud. De acordo
com Marc Augé, Michaud afirma, no livro L’Art à l’état gazeux (2003),
que l’esthétique a remplacé l’art, que le grand art est mort, que l’art contemporain
est une expérience mondialiste comme le tourisme de masse, qu’il n’y a plus
d’oeuvre, plus d’aura, de contemplation, mais des modes. Les atitudes auraient
remplacé les oeuvres: les événements, les rencontres, les performances et les
installations ne seraient en quelque sorte q’une réduplication du contexte.
Autrement dit, le contexte ferait le contenu de l’art.32 (AUGÉ, 2008, p.71)
32 “que a estética substituiu a arte, que a grande arte morreu, que a arte contemporânea é uma experiência
mundialista como o turismo de massa, que não há mais obra, nem aura, nem contemplação, mas apenas os
modos. As atitudes teriam substituído as obras: os acontecimentos, os encontros, as performances e as
100
Em ambos os autores se verifica a substituição de um significado essencialista da
obra de arte e uma emergência do contextual, do circunstancial – e, em alguma medida, do
aleatório. A seita literária de Cordilheira permite, justamente, que observemos o parentesco
entre o performativo – criado por meio da linguagem – e o performático – que interfere na
realidade a seu redor. Os livros escritos por Diego Parisi, Nacha Acosta e seus companheiros
saem das páginas e se realizam na realidade cotidiana da cidade.
O crítico de arte Boris Groys analisa outro lado desta questão. Se a arte pode estar
em qualquer lugar e não se deixa guiar pelos mesmos critérios e instâncias de outrora, então
qualquer um é, potencialmente, um criador. O problema é: onde está o público? Para ele, a
contemporaneidade inverteu a lógica da indústria cultural tal como foi descrita por Adorno
e Horkheimer: “Enquanto antes uns poucos escolhidos produziam imagens e textos para
milhões de leitores e espectadores, agora milhões de produtores produzem textos e imagens
para um espectador que tem pouco ou nenhum tempo para ler os textos ou ver as imagens”.
Por isso, a arte contemporânea tem uma “visibilidade fraca, virtual” (GROYS, 2011, p.100).
Em outro artigo, conclui, dialogando com Guy Debord: “If contemporary society is (...) still
a society of spectacle, then it seems to be a spectacle without spectators”33 (GROYS, 2010,
p.10).
Observa-se que as expressões acima descritas podem ser pensadas sob essa ótica: o
grafite está pelas ruas, mas as pessoas passam apressadas sem percebê-lo; o mesmo ocorre
com as intervenções, sejam físicas ou performáticas: muitas vezes nem sequer são
reconhecidas como arte – o que faz parte do próprio questionamento proposto pelo artista,
mas nem sempre realizado pelo transeunte. A esse propósito, Zalinda Cartaxo menciona,
como traços da arte pública, “a imperceptibilidade da obra de arte como tal, o artista-
anônimo, a efemeridade da obra, a dissolução da obra na estrutura-cidade e a obra como
múltiplo.” (CARTAXO, 2009, p.10)
Ademais, se, por um lado, Holden não aceita a comparação entre a proposta de Jupiter
Irrisari e “intervenções teatrais” (GALERA, 2008, p.96), é possível encontrar algumas
semelhanças entre a prática de seu grupo e esta modalidade teatral. No artigo “Por uma
poética da performatividade”, Josette Féral propõe a designação de “teatro performativo”
instalações não seriam nada além de uma reduplicação do contexto. Em outras palavras, o contexto faria o
conteúdo da arte.” Tradução nossa. 33 “Se a sociedade contemporânea ainda é uma sociedade do espetáculo, então ela parece ser um espetáculo
sem espectadores.” Tradução nossa.
101
para o que já fora chamado “teatro pós-dramático” por Hans-Thies Lehmann. Baseada na
teorização de Richard Schechner, a autora escreve que
Performer, quer seja num sentido primeiro “de superar ou ultrapassar os limites
de um padrão” ou ainda no [sentido] “de se engajar num espetáculo, um jogo ou
um ritual”, implica ao menos em três operações, diz Schechner.
1. ser/estar (“being”), ou seja, se comportar (“to behave”);
2. fazer (“doing”). É a atividade de tudo o que existe, dos quarks aos seres
humanos;
3. mostrar o que faz (“showing doing”, ligado à natureza dos comportamentos
humanos). Este consiste em dar-se em espetáculo, em mostrar (ou se mostrar).
(FÉRAL, 2008, p.200)
A autora acrescenta que esse conceito de performance deriva da obra dos filósofos
John Austin e John Searle, segundo os quais a linguagem tem a faculdade de criar a realidade,
e não de (apenas) representá-la. Tal é o caráter performativo da linguagem, conforme
exposto em capítulo anterior. Conforme resume Jacques Derrida, “o performativo não tem
seu referente (...) fora dele ou, em todo caso, antes dele e diante dele. Ele não descreve algo
que existe fora da linguagem e antes dela. Ele produz ou transforma uma situação, ele opera.”
(DERRIDA apud FÉRAL, 2008, p.206, itálico nosso)
Féral demonstra que as três operações nem sempre ocorrem simultaneamente na
performance, podendo alternar-se ou combinar-se de outras maneiras. No tocante a
Cordilheira, pelo menos dois deles podem ser detectados: o primeiro e o terceiro.
Na medida em que os escritores argentinos assumem a identidade de seus
personagens, isso acontece, primeiramente, pela criação destes na ficção. A essência e a
originalidade dessa seita são, precisamente, o “comportar-se” como eles, deixando a sua
própria identidade em segundo plano. O terceiro item não ocorre todo o tempo; ele
corresponderia a mostrar ao público a origem e o fundamento dessa prática, e é justamente
esse fato que faz com que Holden descarte a semelhança com o teatro. Para a população de
Buenos Aires – por exemplo, os homens com quem Silvia/Nacha Acosta se relaciona, a
vítima do assassinato cometido por Juanjo/Oyola/Márusic, ou a própria menina Primavera...
– aquelas são pessoas reais e não personagens sendo interpretados.
De um modo geral, somente os integrantes da seita sabem que se trata de uma
performance. Mas, quando é de interesse de Diego Parisi que Anita participe da encenação
real do sacrifício de Holden e lhe revelam o funcionamento do grupo, eles estão “mostrando
o que fazem”.
102
Como resultado final, não há dúvida de que eles “superam ou ultrapassam os limites
de um padrão” e “se engajam num espetáculo, um jogo ou um ritual”. Ritual, por sinal, é um
termo que define bem a relação do grupo argentino com a literatura; o romance descreve
dois – o de Esteban, na Reserva Ecológica, e o de Holden, na Terra do Fogo.
4.4 Identidades femininas em Cordilheira
4.4.1 Anita
Anita mantém com a literatura uma relação ambígua. Órfã de mãe desde o
nascimento, perdeu também o pai aos 23 anos. Aos 25, publicou um romance pelos quais
recebeu alguns prêmios (GALERA, 2008, p.16). Sua narração se passa alguns anos depois,
quando ela desistiu da carreira literária e seu único projeto é ter um filho. Por isso, ela pouco
fala sobre seu livro: “Magnólia, minha personagem, tem mãe mas não tem pai. Era o
contrário de mim, pelo menos quando comecei a escrever. No fundo, toda essa história (...)
era pretexto para imaginar livremente aquela mãe, dar-lhe uma forma definitiva” (Ibid., p.47).
Ela se interessa pelos livros da mãe para tentar conhecê-la melhor e “criar minha versão
particular de minha mãe, um ser fictício que eu não cansava de imaginar e desenvolver. (...)
Minha mãe foi meu primeiro personagem.” (Ibid., p.54)
Anita vê a ficção, portanto, como uma maneira de preencher uma lacuna da vida e
não como substituta para esta. Talvez por isso ela renegue o romance e não deseje mais
escrever, como se esta fosse uma missão cumprida. Esse desprezo quase obsessivo pela obra
aparece em diversas passagens. Ela afirma mal se lembrar de ter vendido os direitos para a
tradução, descreve-a como “coisa prolixa, ultrapassada, incoerente” (Ibid., p.26) e, quando
o editor argentino lhe pede para escolher um capítulo do livro para ser lido no evento de
lançamento, ela indica o último, como forma de “autossabotagem” (Ibid., p.40). Esta é
certamente a principal razão para ela ser um contraponto perfeito às expectativas de Holden
sobre ela.
Seu projeto é a maternidade, que, a exemplo da arte, da literatura, também é a criação
de algo novo. Esse paralelo está expresso na abertura do último capítulo do romance, quando,
após uma descrição científica do que acontece após a fecundação, Anita conclui que “devia
haver um paralelo entre as vicissitudes do embrião e a angústia humana de ter de se contentar
com a limitação do que somos.” (Ibid., p.162)
Ela substituiu, em si, a escritora pela mãe. Anita é uma “pós-feminista” no sentido
de que goza da liberdade conquistada pelos movimentos político-sociais das últimas décadas
103
(cf. RESENDE, 2008, p.108). No romance, pode-se dizer que ela vive em uma condição de
igualdade com os homens – o que não é a realidade na sociedade atual. Além de narrar a
própria trajetória em primeira pessoa, Anita toma a iniciativa de sair de São Paulo e passar
um período indefinido de tempo sozinha em Buenos Aires, disposta a um relacionamento
casual que lhe traga um filho. Muda-se para a casa de Holden após pouco tempo de relação
– e jamais usa o termo “namorado” para se referir a ele (emprega-o apenas para Danilo, no
início do romance).
Silvia é a única mulher da seita de Holden e a única desses personagens cuja
descrição abarca um comportamento sexual, exceção feita ao estupro sofrido por Pepino.
Em sua única conversa a sós com Anita, pergunta-lhe se seus peitos são reais (“As brasileiras
botam muito silicone, né?”) e como é Holden “na cama” (GALERA, 2008, pp.100-1, 103).
Anita, em outra cena, toma a iniciativa de fazer sexo com o ex-namorado Danilo pelo
telefone, em um locutório na Argentina. São sem dúvida atitudes de mulheres livres. Não
são “ex-cêntricas”, aquele conceito que Linda Hutcheon (1991) criou para designar grupos
sociais distantes das esferas de poder, tampouco “subalternas” nos termos descritos por
Gayatri Spivak (1988).
Por outro lado, Anita desfruta dessa liberdade para desejar ser uma mulher à moda
do pré-feminismo: abdica de uma carreira promissora em prol da maternidade, e seu novo
objetivo na vida é “ser apenas a mulher de um homem” (GALERA, 2008, p.27). É tão livre
que pode reivindicar até o que seria considerado um retrocesso, daí sua identificação com
Duisa, personagem de um livro que ela compra em seus primeiros dias de Buenos Aires –
uma babushka intertextual, mas sem influência determinante no enredo.
Esse livro, cujo título não é citado, consiste nas memórias de um pioneiro da Terra
do Fogo. “Quase no fim do livro havia um capítulo chamado ‘Mi esposa’. Esse homem tinha
ido a Buenos Aires convencer uma moça de vinte e dois anos a casar com ele e ir viver na
Terra do Fogo”. Conseguiu. A descrição feita por ele emociona a narradora: “Duisa era de
poco hablar y observaba todo a su alrededor, porque le gustaba mucho mirar la cordillera,
ya que se había criado en la provincia de Buenos Aires.”34 (Ibid., p.62)
Duisa povoa o imaginário de Anita até o fim de sua narração, ao ponto de esta
passagem fornecer o próprio título do romance (e deste capítulo). De início, ela não
compreende por que se sente tão afetada pela frase.
34 Em espanhol no original. “Duisa falava pouco e observava tudo a seu redor, porque gostava muito de olhar
a cordilheira, já que havia sido criada na província de Buenos Aires.” (Tradução nossa.)
104
Imaginei Duisa na varanda da casinha de madeira instalada numa estância solitária
da baía Aguirre, calada dias a fio, num frio danado, cercada de ovelhas, longe do
grande centro urbano onde cresceu, olhando a cordilheira enquanto é observada
em segredo pelo marido que décadas depois, aos noventa anos, (...) teria pouco
mais que isso a dizer sobre ela. (...) O olhar cravado nas montanhas nevadas e o
marido registrando esse hábito como a expressão máxima de sua personalidade.
(Ibid., p.63)
Somente no final do romance, já em Ushuaia para a cena final do sacrifício, Anita
entende o motivo de tal impressão:
Eu queria ser como ela. Ser tratada como ela foi tratada, viver naquele isolamento
sob a atenção de um único homem, ser lembrada como ela foi lembrada, ser
descrita exatamente da forma como ela foi descrita, com carinho e concisão. Não
era o que me incentivavam minhas amigas, meus namorados, meus editores. Não
era o que recomendavam os especialistas dos programas de televisão vespertinos
ou as revistas femininas, das mais populares às mais elitistas e descoladas. Que
fossem todos à puta que pariu. Não era pedir demais querer viver como Duisa, mas
de todo lado vinham sinais de que esse desejo me seria negado pelo resto da vida.
(Ibid., p.144-5)
Ela refere-se, portanto, a uma conjuntura sociocultural que estabelece, sobretudo
através dos media, certas expectativas sobre os indivíduos, particularmente sobre as
mulheres, e não se sente inclinada a ceder a essas pressões. Anita clama pela liberdade de
viver conforme seus próprios desígnios. É em nome desse projeto que ela muda de ideia
quanto a participar do projeto de Holden quando descobre que está grávida:
(...) éramos dois farsantes. Ele, um tolo idealista que se arrependia de ter nascido
e procurava encarnar um personagem suicida inventado por ele mesmo, e que
projetava em mim a protagonista de um livro ruim que eu tinha escrito anos antes.
Eu, uma mentirosa que assumia em parte o papel que me era dado apenas para
esconder o desejo egoísta e inadiável de arrancar do mundo um filho, sonhando
em obter algo muito próximo de uma paternidade anônima.
E não é que, em certo sentido, Holden estava certo? Era como se tivéssemos sido
feitos um para o outro, mas não por afinidade, como ele acreditava, mas por efeito
colateral do mais extremo fingimento. Ele desejava ter o mesmo destino de seu
personagem. Eu desejava o mais próximo que poderia haver de uma concepção
milagrosa. Pois bem. Uma morte, um nascimento. Uma troca justa. (Ibid., p.141)
Porém, é precisamente a adesão ao sacrifício dele que arruína os planos de Anita. Ela
e Holden viajam para a Ushuaia, na Terra do Fogo. Os amigos chegam alguns dias depois.
Eles sobem o Cerro Bonete, iniciam o ritual e, no momento decisivo, Anita se sente mal e
inicia um processo de aborto espontâneo. Ao perceber que não será empurrado,
Parisi/Holden salta sozinho para a morte.
105
No epílogo do romance, em terceira pessoa, intitulado “Fique para sempre”, Anita
está de volta ao apartamento de Danilo em São Paulo. Ela explica a ele o que significa a
enigmática palavra indígena que dá título à sua narração em primeira pessoa, que é o corpo
do próprio romance: “Mamihlapinatapai”: “é o olhar que duas pessoas trocam quando cada
uma fica esperando que a outra inicie uma coisa que as duas querem, mas que nenhuma tem
coragem de começar”. O rapaz imagina “uma palavra que descrevesse a situação em que
uma pessoa já sabe o que a outra vai dizer, mas se cala porque é essencial que a outra o diga,
para que as palavras tornem inquestionável a verdade indesejável que os dois já conhecem”,
e por isso está disposto a só deixá-la “em paz quando [ela] dissesse nos termos mais simples,
sem rodeios nem palavras indígenas, que não o amava mais.” (Ibid., p.175, itálico nosso)
São as últimas palavras do romance, de óbvio teor metalinguístico. Uma vez mais,
coloca-se em questão a expressão linguística: o que as palavras podem dizer, mas, sobretudo,
o que as pessoas precisam dizer para que elas tenham o efeito desejado sobre a realidade: o
efeito performativo.
O detalhe fundamental é que esse diálogo ocorre no terraço do edifício, sob a garoa
paulistana, de maneira que o final da narrativa de Daniel Galera (e não mais de Anita) ecoa
a conclusão do romance dela, Descrições da chuva, quando Magnólia parece empurrar o
namorado do penhasco num dia de chuva. Ela conseguiu escapar de José Holden, mas não
conseguiu dar seguimento à sua gravidez e, principalmente, não conseguiu fugir de Magnólia,
sua própria ficção, dando nova e definitiva forma ao paradoxo metaficcional de Cordilheira.
4.4.2 Ajax
O contraponto às intenções de Anita, que ecoam em Duisa, é marcado pelo grupo
AJAX, formado por Anita e suas amigas de São Paulo, Julie, Amanda e Xanda (Alexandra).
Amanda é descompromissada e fútil. Trabalha em uma ONG que promove projetos
sustentáveis, porém “sabíamos que suas convicções ecológicas eram meio superficiais, como
tudo em sua vida. Nos últimos tempos, Amanda só falava em deixar o namorado e a ONG e
ir para a Cidade do México” para encontrar um homem “com quem tivera um casinho no
verão” (Ibid., pp.20-1). Ela critica Anita pela vontade de engravidar, mas, quando cobrada
das razões dessa crítica, só dá respostas evasivas. É, enfim, uma mulher inconsistente e
inconsequente.
Julie é a mais próxima de Anita, uma bailarina linda; segundo a amiga,
106
uma potranca com rosto de francesinha. (...) alvo de abordagens incessantes de
homens de todas as idades, e minha impressão é de que cedia a todos, sem exceção
(...) Julie não se apegava aos homens, e o sexo para ela era sobretudo uma questão
de vaidade. Cada homem comido não passava de uma afirmação de sua beleza e
elegância de movimentos. Não trepar era sinônimo de estar feia e desengonçada
como nos anos adolescentes. (Ibid., pp.18-9).
Ela tem, portanto, uma atitude agressiva diante dos homens, explícita na expressão
“cada homem comido” e no desapego com que lida com eles. Visita Anita na capital
argentina e aponta as estranhezas de Holden e seus amigos. Entretanto, após esse encontro a
narradora se mostra
arrependida de tê-la convidado a Buenos Aires. Ao fazer isso, tinha me esquecido
de todos os motivos que me fizeram fugir de São Paulo, dos julgamentos maldosos
que minhas amigas deprimidas faziam de mim enquanto ensaiavam ou levavam a
cabo tentativas de suicídio... (Ibid., p.116)
Ela se refere à própria Julie, que tomara uma overdose de remédios pouco tempo antes da
partida de Anita para a Argentina. E à Alexandra, que efetivamente se matou.
Alexandra acha que o desejo de maternidade da narradora “é só o corpo, Anita.
Daqui a pouco teu organismo desiste” (Ibid., p.21), ou seja, ela o atribui a fatores biológicos.
Ela se mostra confiante; teve uma crise depressiva séria, mas “ultimamente estava muito
bem, trabalhando como repórter numa revista semanal, o carro sempre encerado e cheiroso,
o celular tocando sem parar. Apesar disso, eu sentia que dentro dela havia um espaço vazio”
(Ibid., p.21). Ainda segundo Anita, Alexandra tinha uma visão otimista da vida, “como se
para cada tumulto o destino reservasse uma compensação orquestrada por uma benévola
ordem superior. (...) A seu ver, as noções do bem e do destino eram exclusivamente
interligadas” (Ibid., p.73). É uma crença profundamente arraigada dela, pois se irrita quando
se argumenta em contrário. No entanto, logo nos primeiros capítulos Xanda comete suicídio
de maneira repentina.
Essas mulheres são quatro faces da contemporaneidade, conscientes da liberdade
profissional, pessoal e sexual em suas mãos. Todas elas experimentam essa condição com
angústia, com mais reveses do que vantagens, consolidando uma reflexão amarga das
conquistas femininas recentes. E, curiosamente, são analisadas pelo discurso em primeira
pessoa de uma personagem mulher criada por um escritor homem.
107
4.4.3 Malena
Na primeira vez que a narradora se encontra com José Holden, eles vão a uma
milonga (lugar onde se ouve e dança tango), onde escutam uma canção intitulada “Malena”.
A letra da música encanta Anita; Holden lhe conta que é de autoria de Homero Manzi e
explica:
Essa mulher, Malena, existiu (...). Era argentina, mas Manzi a viu cantar no Brasil.
(...) Malena era seu nome artístico. Foi criada em Porto Alegre. Manzi a viu cantar
tango no Brasil e depois escreveu a letra em sua homenagem. Há um detalhe cruel
nessa história. Por muitos anos, Malena não soube da existência da canção. Estava
no México quando a escutou pela primeira vez. Ficou tão impressionada com a
figura da mulher descrita no tango que desistiu para sempre de cantar. Julgou que
nunca estaria à altura da Malena do tango de Manzi.
– Nossa. Malena foi destruída pela personagem que inspirou.
Holden parou no meio da calçada. Me olhou com um espanto incompreensível.
Parecia estar refletindo com todas as forças.
– Sim. Exatamente. (Ibid., p.71, itálico do personagem)
Esse diálogo ocorre antes que Anita conheça os amigos de Holden e tome
conhecimento do grupo ao qual ele pertence. Do contrário, o espanto dele não seria tão
surpreendente, uma vez que existem diversos níveis de realidade e de ficção na história.
Anita diz que “Malena foi destruída”, e com isso se refere não à mulher, mas sim à
cantora: há notícia de que ela tenha parado de cantar e não morrido, e “Malena” era apenas
seu nome artístico – por si só, uma criação performativa para sua vida no palco.
Quando Holden reflete “com todas as forças”, é porque percebeu que a interpretação
de Anita refletiu a sua própria atividade literária. Também Diego Parisi estava sendo
destruído por Holden, ainda mais que sua vida-narrativa terminaria num sacrifício encenado.
A história de Malena, por fim, é uma “reviravolta aninhada” que antecipa elementos
essenciais ao desenlace de Cordilheira sem que o leitor perceba de imediato, mas a reação
de Parisi/Holden o revela com exatidão.
Tudo indica que, ao contrário de Jupiter Irrisari, ela seja verdadeira. O tango foi
escrito por Homero Manzi, com música de Lucio Demare, em 1941 ou 1942. Alberto Paz
conta, no texto “The making of Malena”35, que Elena Tortolero nasceu na Argentina, filha
de um embaixador espanhol. Seu pai foi nomeado para um cargo em Porto Alegre, onde ela
se tornou cantora conhecida como “Helena de Toledo”. Mudou-se para Cuba, onde se casou.
Teria realmente ouvido a canção de Manzi no México e desistido de cantar. A principal
35 http://www.planet-tango.com/lyrics/malena.htm. Ver também http://www.malena-
tango.com/category/manzi/ (post de 20 de dezembro de 2007). Acessos em 22.jun.2015.
108
diferença entre essa versão e a de José Holden é que, nesta última, “Malena” é um
pseudônimo de Helena, enquanto na outra, foi Manzi quem adaptou seu nome,
provavelmente para melhor sonoridade para sua composição – indicando que Daniel Galera
tenha incorporado a ideia do pseudônimo como um nó a mais em seu tecido metaficcional.
4.5 Literatura feminina e/ou o Feminino literário
O lançamento de “Descripciones de la lluvia” em Buenos Aires guarda outra
discussão metaliterária. O evento inclui um debate com participação do editor de uma revista
paraguaia sobre literatura, Nicanor Benegas, e Lucía Merello, “autora e crítica argentina,
estudiosa da literatura contemporânea brasileira” (GALERA, 2008, p.39).
O primeiro faz um discurso de “postura bélica”, contra “ameaças da invasão cultural
imperialista” (Ibid., p.50). De início, Anita pensa que ele se refere à influência norte-
americana, mas na verdade ele fala sobre o Brasil, o que evidentemente causa um mal-estar.
A cena revela a posição ambígua do Brasil, tanto política quanto culturalmente: periférico,
ex-cêntrico, no panorama global, mas protagonista no contexto continental, e visto como
ameaça por países menores que também buscam afirmar suas identidades.
Lucía Merello, por sua vez, faz um elogio enfático ao romance de Anita:
com Descrições da chuva Anita van der Goltz Vianna não apenas se inscreve na
tradição de uma literatura feminina que evoca tanto Clarice Lispector quanto Lygia
Fagundes Telles, mas usa-a como trampolim para alcançar novas alturas ou, numa
metáfora mais em harmonia com o romance, mergulhar em águas ainda não
desbravadas. (Ibid., pp.48-9)
A narradora, que já não vê sua própria obra de modo simpático, rejeita
veementemente essa postura. Após transcrever uma longa “citação” do discurso de Merello,
comenta: “Era um monte de besteiras. Clarice Lispector. Haja paciência. Nesse ponto parei
de prestar atenção...” (Ibid., p.49, itálico da personagem). A menção a duas autoras
consagradas da narrativa brasileira do século XX torna a cena divertida.
O trecho pode ser lido à luz de uma declaração do autor Daniel Galera em evento
paralelo à Festa Literária Internacional de Paraty de 2015. Perguntado sobre a voz da mulher
na literatura, e referindo-se à voz narrativa feminina de Cordilheira, o escritor afirmou que
escrever sob o ponto de vista da mulher seria igual a escrever como qualquer pessoa diferente
da experiência do próprio autor:
Não é diferente de escrever sobre qualquer outro personagem que está distante da
nossa biografia direta, como, por exemplo, de outra geração, de outra idade, de
109
outra cultura. Se é sobre uma criança ou sobre um velho que tem 80 anos, o desafio
que você tem pela frente é o mesmo. (GALERA in FAJJONI, 2015)
Por isso, para Galera a ideia de literatura feminina é “muito forte” e “sempre foi
errada”. Apesar disto, a questão é importante: seria possível, viável ou válido falar em uma
“literatura das mulheres” (ou feminina, conforme Lucía Merello), nos moldes da “história
das mulheres” defendida por Joan Scott? A essa pergunta têm sido dadas respostas que
divergem da opinião do escritor paulistano.
Lembremos que Scott (1986, 1995) se ampara em formulações pós-estruturalistas
para argumentar em favor dessa possibilidade. Para ela, a “história das mulheres” exige
novos pressupostos teóricos e epistemológicos e o reconhecimento de que toda a ciência se
constrói em função do ponto de vista masculino. Seria o mesmo verdadeiro para a literatura?
No ensaio Um teto todo seu, escrito no final da década de 1920, a escritora Virginia
Woolf dialoga indiretamente com Scott ao considerar “deplorável (…) que não se saiba nada
sobre as mulheres antes do século XVIII” (WOOLF, 1985, p.60). Seu argumento central
nesse ensaio pode ser resumido da seguinte forma: se a literatura é uma expressão da cultura,
e a construção e a experiência culturais do masculino e do feminino são diferentes –
complementares, formando-se uma identidade em oposição à outra –, então deve haver
diferenças entre a literatura produzida por homens e por mulheres.
Conforme vimos no capítulo anterior, na análise de A audácia dessa mulher, Woolf
escreve que “as obras-primas não são frutos isolados e solitários; são o resultado de muitos
anos de pensar em conjunto, de um pensar através do corpo das pessoas, de modo que a
experiência da massa está por trás da voz isolada” (Ibid., p.87) – isto é, a experiência coletiva
de um grupo social interfere no resultado concreto de um produto cultural.
A autora ironiza o fato de que as mulheres são “talvez, o animal mais discutido do
universo”, dada a profusão de livros escritos sobre elas – mas sempre por homens (Ibid.,
p.36). Ela apresenta razões históricas e econômicas, como o fato de que as mulheres não
podiam herdar propriedades e eram alijadas do trabalho; sem uma renda própria, estavam
sempre em posição de dependência, sem mencionar as responsabilidades exclusivas na
criação dos filhos. Woolf imagina o que ocorreria a uma suposta irmã de William
Shakespeare. Ela não seria necessariamente menos talentosa do que ele, mas lhe seria negado
o acesso à educação e à cultura e, consequentemente, o desenvolvimento de suas
potencialidades:
110
Um gênio como o de Shakespeare não nasce entre pessoas trabalhadoras, sem
instrução e humildes. Não nasceu na Inglaterra entre os saxões e os bretões. Não
nasce hoje nas classes operárias. Como poderia então ter nascido entre mulheres,
cujo trabalho começava (...) quase antes de largarem as bonecas, que eram
forçadas a ele por seus pais e presas a ele por todo o poder da lei e dos costumes?
Não obstante, alguma espécie de talento deve ter existido entre as mulheres, como
deve ter existido entre as classes operárias. (...) Mas certamente esse talento nunca
chegou ao papel. (Ibid., p.64)
Virginia Woolf supõe que, por trás de textos anônimos, deveria haver uma mulher
que não podia identificar-se. Para ela, a manutenção da mulher em posição subalterna deriva
de uma necessidade do homem em afirmar uma suposta “superioridade”. Essa ideia é
resumida numa metáfora poderosa:
Em todos esses séculos, as mulheres têm servido de espelhos dotados do mágico
e delicioso poder de refletir a figura do homem com o dobro de seu tamanho
natural. Sem esse poder, a Terra provavelmente ainda seria pântano e selva.
(...) quando ela começa a falar a verdade, o vulto no espelho encolhe, sua aptidão
para a vida diminui. Como pode ele continuar a proferir julgamentos, civilizar
nativos, fazer leis, escrever livros, arrumar-se todo e deitar falação nos banquetes,
se não puder se ver no café da manhã e ao jantar com pelo menos o dobro do seu
tamanho real? (Ibid., 1985, pp.48-9)
A relação entre esse espelho e a impossibilidade de o “subalterno falar” (SPIVAK,
1988) é evidente. Por outro lado, Woolf apresenta perspectivas otimistas: “dentro de cem
anos, (...) as mulheres terão deixado de ser o sexo protegido. Logicamente, participarão de
todas as atividades e esforços que no passado lhes foram negados. A babá carregará carvão.
A dona de casa dirigirá uma locomotiva” (WOOLF, 1985, p.54). Ainda não chegamos a esse
ponto, mas é inegável que houve avanços desde a escrita do ensaio.
Ao comparar romances de Jane Austen com Jane Eyre, de Charlotte Brontë, Virginia
Woolf observa que a prosa desta última revela ressentimento e indignação: “Ela escreverá
com ódio, quando deveria escrever calmamente. Escreverá de maneira tola quando deveria
escrever com sabedoria. Escreverá sobre si mesma quando deveria escrever sobre seus
personagens. Ela está em guerra com sua sina” (Ibid., p.92). Porém, a escritora argumenta,
tudo seria diferente se ela tivesse uma renda de 300 libras por ano. A ensaísta crê que é
impossível, mas necessário, a qualquer pessoa, ao escrever, deixar de lado a condição
sociocultural:
é fatal para quem quer que escreva pensar em seu sexo. É fatal ser um homem ou
uma mulher, pura e simplesmente; é preciso ser masculinamente feminina ou
femininamente masculino. É fatal para uma mulher colocar a mínima ênfase em
qualquer ressentimento; advogar, mesmo com justiça, qualquer causa; de qualquer
modo, falar conscientemente como mulher. (Ibid., p.136)
111
Desta forma, a “literatura das mulheres” somente se libertará quando a condição
subalterna estiver superada e elas puderem escrever sem vestígios dessa história de opressão
e reclusão. Woolf não trabalha com a ideia de uma literatura feminina em oposição a uma
masculina; quando mais se aproxima dessa questão, é primorosa:
Seria mil vezes lastimável se as mulheres escrevessem como os homens, ou
vivessem como os homens, ou se parecessem com os homens, pois se dois sexos
são bem insuficientes, considerando-se a vastidão e a variedade do mundo, como
nos arranjaríamos com apenas um? Não deveria a educação revelar e fortalecer as
diferenças, e não as similaridades? (Ibid., p.116)
No contexto brasileiro, a escritora Rosiska Darcy de Oliveira lida com a questão a
partir da metáfora da “cicatriz do Andrógino”, título de seu artigo e referência à cisão
primordial entre um princípio feminino e outro masculino. Ela confirma a separação cultural
entre os sexos: “A literatura foi domínio reservado do mundo cultural masculino. (...) A
vinda das mulheres à criação literária é parte da energia que vem abrindo, ao longo dos
séculos, a brecha de um paradigma milenar, o da separação dos mundos” (OLIVEIRA, 1990,
p.146).
A autora discute três momentos da afirmação feminina na literatura a partir dos
conceitos de visibilidade, igualdade e identidade. No primeiro, aborda precisamente o ensaio
de Virginia Woolf. No segundo, detém-se na escritora belga (naturalizada norte-americana)
Marguerite Yourcenar; seus mais conhecidos romances apresentam voz narrativa masculina.
Para Yourcenar, o campo fechado da experiência doméstica impossibilitava que personagens
mulheres pudessem dar conta da “envergadura” da experiência humana. Rosiska de Oliveira
assinala que a belga “pode ser tomada como o protótipo da literatura feminina que coincide
com o paradigma da igualdade, entendida como acesso aos territórios do masculino”. (Ibid.,
p.153)
No terceiro momento, sob o signo da “identidade”, a geração dos anos 1970 “irrompe
na História trazendo em seu movimento uma herança ancestral: a valorização do sensual, a
intimidade com o mistério, a intuição como conhecimento, o percebido tão forte quanto o
provado, o sensível contra o racional, a estética como ética do futuro” (Ibid., p.155). É uma
descrição próxima, no romance Cordilheira, da crítica de Lucía Merello a “Descripciones
de la lluvia” – cuja autora compara a Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles. Somente
no final do século XX “a procura da identidade feminina substituirá a da igualdade com os
112
homens” (Ibid., p.155) – previsão que certamente se cumpre em A audácia dessa mulher e
na personagem-escritora Anita.
Ao final de seu artigo, Rosiska de Oliveira se depara com o tema da escrita feminina:
“existe uma escrita feminina, feita de temas e estilos identificáveis como aqueles de autoras
mulheres? Ou uma escrita feminista que pretende levar para o campo literário a busca de
identidade social e sexual das mulheres de nosso tempo?” (Ibid., p.158). Ela não arrisca uma
resposta definitiva, mas pontua: “A presença do Feminino na literatura não é delimitável
senão como crise. É o Feminino em crise, debatendo-se na ambiguidade e na indefinição que
se manifesta na literatura e não o Feminino previsível porque pré-determinado” (Ibid., p.159).
Ou seja, mais uma busca do que uma presença do princípio feminino.
Mais recentemente, a professora Beatriz Resende enfrenta questão similar. Ao
comentar a prosa de Paloma Vidal, afirma e questiona:
Trata-se de literatura feminina. Pronto, entrei na já cansativa briga: existe ou não
existe literatura feminina, é preconceituoso/é excludente falar em ‘literatura
feminina’ uma vez que não existe ‘literatura masculina’, se não se fala em voz
masculina não faz sentido falar em voz feminina etc. (RESENDE, 2008, p.108)
Apesar de certa impaciência na abordagem do tema, desenvolve, ainda se referindo
a Paloma Vidal, a ideia de uma literatura pós-feminismo:
Talvez esta seja uma vantagem que as mulheres de sua geração podem usufruir:
escrever depois do movimento feminista. Não que todas as batalhas feministas
estejam ganhas, mas muitas, sobretudo o direito à palavra, em grande parte do
mundo (não em todo), estão. As muitas necessidades de afirmação que a literatura
de mulheres teve que enfrentar, especialmente nos heroicos anos 1960 e 1970, já
estão superadas. A autora – sim, autora, no feminino – pode, sem maiores traumas
ou conflitos, apossar-se de uma escrita que evidencie a voz feminina ou transite
livremente do ponto de vista da mulher para o de um personagem masculino, indo
e vindo no exercício da função autoral. (Ibid., 2008, pp.108-9, itálico nosso)
Essa condição é, sem dúvidas, compartilhada com a protagonista e narradora de
Cordilheira, tal qual com Ana Maria Machado e com a Beatriz de A audácia dessa mulher:
quando o subalterno pode falar, é porque deixou para trás a condição de subalternidade, ou
de sub-alteridade.
A teórica da cultura franco-chilena Nelly Richard impõe a pergunta desde o título de
seu ensaio: “A escrita tem sexo?”. Sua resposta é engenhosa. Em primeiro lugar, distingue
“literatura de mulheres” de “escrita feminina”; sobressai, então, a mesma ideia de um
princípio feminino. Para Richard, não há um “estilo do feminino” detectável no plano
expressivo-estilístico ou temático; propõe, então, o termo “feminização da escrita”:
113
Qualquer literatura que se pratique como dissidência da identidade, a respeito do
formato regulamentar da cultura masculino-paterna, assim como qualquer escrita
que se faça cúmplice da ritmicidade transgressora do feminino-pulsátil, levaria o
coeficiente minoritário e subversivo (contradominante) do “feminino”.
(RICHARD, p.133, itálico no original)
Isso quer dizer que, tendo sido o ponto de vista masculino não apenas predominante, mas
praticamente único por séculos, quando a voz da mulher se impõe é por meio da diferença,
da contestação.
Nelly Richard insiste no “caráter semiótico-discursivo da realidade” 36 como
conquista teórica do feminismo, para sustentar que a questão central não é o sexo do autor
empírico, mas “como textualizar as marcas do feminino, para que a diferença genérico-
sexual se torne ativo princípio de identificação simbólico-cultural” (Ibid., p.137, itálicos no
original).
Em suma, as quatro autoras enxergam a questão de ângulos diferentes, mas chegam,
cada qual à sua maneira, a conclusões semelhantes: a exclusão histórica das mulheres da
vida social propiciou a elas uma experiência cultural diferente da masculina, o que deve ser
visto não apenas como transgressão, mas como afirmação de um discurso dissonante que ao
mesmo tempo se soma e se contrapõe à ordem estabelecida. E que será tão mais eficiente
quando conseguir se libertar do rancor da opressão.
A epígrafe deste capítulo tem autoria duplamente feminina: a canção Eu não sou eu
tem letra de Lucina para composição de Zélia Duncan. Aparentemente, ela tematiza a
questão das identidades de quem ama: não o outro em si, mas uma imagem que se cria dele.
O eu poético admite-se como uma “sombra” da realidade, uma “ilusão” de quem o/a ama. À
luz do enredo de Cordilheira, o texto adquire novo sentido, se lido do ponto de vista de sua
narradora.
Aos olhos de José Holden, Anita é uma “miragem”, alguém que ele, iludido no
deserto de sua existência, considerou sua salvação. É a resposta que ele desejava em seu
romance, “uma ilusão de ótica palpável”, pois que alguém de carne e osso, mas não quem
ele esperava; “alguém que ele imaginou”, visto que se refere à personagem do romance dela,
Magnólia. “Uma visão do seu amor”, dele, Diego Parisi, mas não por Anita, ou por Magnólia
– seu amor único, pela Literatura, com inicial maiúscula.
36 cf. AUSTIN, 1975; BERGER & LUCKMANN; 1973; FLUSSER, 1963.
114
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS – ESCREVER É ESPECULAR
É tudo real, nas minhas mentiras
e assim não faz mal, não (...)
Eu te imagino, eu te conserto,
eu faço a cena que eu quiser
Eu tiro a roupa pra você,
minha maior ficção de amor
Eu te recriei, só pro meu prazer
(Leoni, Só pro meu prazer)
Uma epígrafe: A brincadeira favorita (The favourite game) é um romance de
formação do escritor, compositor e cantor canadense Leonard Cohen, publicado em 1963.
Em certa altura, o protagonista, Larry Breavman, escreve um conto que consiste num diálogo
entre um casal, Lawrence e Tamara, e o mostra a sua namorada, que se chama Tamara. A
Tamara do conto diz:
Um amante deve se familiarizar totalmente com a amada. Deve conhecer cada
movimento dela (...) Deve conhecê-la tão completamente que ela acaba se
tornando, na verdade, uma criação dele. Foi ele quem moldou a forma de seus
braços e pernas, quem destilou seu aroma. Este é o único tipo bem-sucedido de
amor sexual: o amor do criador pela criatura. Em outras palavras, o amor do
criador por si mesmo. (COHEN, 2011, p.101)
A Tamara do romance, então, que está lendo o conto, reage: “Eu não falo assim! (...)
Você fala, Breavman, você fala como os dois!” (Ibid., p.103).
O romance de formação (Bildungsroman), por tradição, invoca uma discussão
implícita entre realidade e ficção porque, em geral, ficcionaliza a trajetória intelectual,
artística e emocional do próprio autor empírico – um alter-ego, um reflexo distorcido (ora
mais, ora menos) de suas experiências, daquelas que ele considerou dignas de registro. Neste
caso específico, o reflexo é multiplicado. Talvez Tamara seja uma personagem inspirada em
uma namorada real de Leonard Cohen, mas isso não é o mais relevante. Na cena, importa
que o personagem Breavman não foi fidedigno ao ficcionalizá-la, deixando implícito que
não se pode exigir rigor factual da recriação literária.
Mais do que isso, ele a postulou como autora de um discurso enfático sobre a criação,
de cunho performativo: o amante cria uma imagem da pessoa amada e que se volta sobre ele
próprio, autorreflexivo e narcisista como a metaficção. Ao mencionar o “amor do criador
pela criatura”, Cohen (autor do romance)/Breavman (autor do conto-babushka)/Tamara
(personagem do conto) autoriza-nos a incluir o fazer literário nessa interpretação. Ao se
dobrar sobre si mesmo, para dentro e/ou para fora, a metaficção acaba realizando isto: uma
115
declaração de amor à literatura, ao mesmo tempo seu método e seu tema, sua forma e seu
conteúdo. Tais dicotomias são, assim, superadas, descartadas.
Nos romances A audácia dessa mulher e Cordilheira, essas “dobras” são exploradas
no sentido de questionar as fronteiras da realidade e da ficção e os padrões de construção de
gênero – em especial o feminino. Este capítulo final tem por objetivo compará-los e
promover uma visão crítica de ambos, e termina com uma conclusão geral.
Viagens
A audácia dessa mulher e Cordilheira são produtos literários com grandes diferenças
entre si; por isso, as semelhanças surpreendem. É significativo que suas protagonistas,
Beatriz e Anita, sejam mulheres viajantes, e que em ambas essa condição seja representativa
de sua independência em relação ao universo masculino.
Para Beatriz, viajar é uma profissão, um meio de vida. Ela trabalha para um jornal do
Rio de Janeiro, mas sem uma rotina fixa. Ao longo do romance, ausenta-se da cidade
algumas vezes para cumprir pautas. Quando alguém insinua que ela escreve sobre “turismo”,
Bia é enfática em corrigir: especializada em viagens.
O turista é aquele viajante que cumpre um itinerário fixo, geralmente pretendendo
ver determinadas localidades das cidades visitadas; o viajante, ao invés, mantém-se
disponível para o contato com a diferença, para novas experiências. Marcar essa oposição é,
portanto, uma forma de reafirmar a independência da personagem, assim como é o final do
romance, quando Bia se refugia na casa de serra com seus silêncios e sua paz.
Em Cordilheira, por sua vez, a ida à Argentina também é um sintoma do desapego
da protagonista às convenções. O fato de haver desistido da carreira literária reforça sua
decisão de ir ao lançamento da tradução de seu livro em Buenos Aires. Ao mesmo tempo em
que rompe o namoro com Danilo ela lhe comunica que viajará:
A segunda decisão é que eu passaria um tempo em Buenos Aires. Não sabia por
quanto tempo nem exatamente por quê, mas era a coisa certa a fazer. (...) Escondi
essa decisão do Danilo até onde eu pude, por insegurança, mas uma semana antes
da data marcada ele propôs me acompanhar na viagem à Argentina. (...) Falei que
não. Iria sozinha. Ele se ofendeu um pouco. Então eu disse que não apenas iria
sozinha como pretendia passar um tempo lá. Ele fez que não entendeu. Quis saber
por quanto tempo. Chutei um mês. Ele fez que não entendeu. (...) Ele perguntou
para onde eu iria e o que faria da vida. Eu disse que não sabia muito bem, mas
passar um tempinho em Buenos Aires era um bom começo. (GALERA, 2008,
pp.29-30)
116
Apesar de afirmar sua “insegurança”, fica nítido que Anita decide viajar e
deliberadamente não determina o tempo que ficará fora do Brasil como forma de estabelecer
um tópico em que a decisão pertence unicamente a ela própria.
Relacionamentos
Bia e Anita também se aproximam quanto à maneira de lidar com os homens. No
primeiro caso, após um dos primeiros encontros da jornalista com Virgílio, a Autora-Modelo
comenta:
Um filme poderia mostrar isso com o clichê batidíssimo de roupas meio
espalhadas pelo quarto (...). Ou recorrer ao clichê mais disfarçado mas obrigatório
da cena de sexo, com grandes planos de corpos nus, iluminação sofisticada
realçando textura de pele, mãos deslizando lentamente, olhos semicerrados, bocas
semiabertas, movimentos ritmados num crescendo – tudo com música adequada
ao fundo, evidentemente. A fim de não perder tempo procurando algum ângulo
novo para descrever em detalhes novidadeiros – e absolutamente irrelevantes para
a história – tudo aquilo que o leitor ou leitora já conhece ao vivo, a cores e a toques
e cheiros, pode-se aqui simplesmente sugerir que a cena ocorreu, iniciando o
capítulo na manhã seguinte, quando Bia e Virgílio estavam tomando café da
manhã juntos. (MACHADO, 1999, p.37)
O texto, a seu estilo metalinguístico, conta com a cumplicidade do leitor para
imaginar a cena. Acerca de Cordilheira, basta recordar que Anita muda-se para a casa de
Holden com pouco tempo de relacionamento (quando acaba o dinheiro dela) e acrescentar
que por duas vezes ela descreve relações sexuais em sua narração, uma delas com detalhes.
Nos dois casos, o sexo não é tabu para as personagens, tampouco para as narrativas,
ambas de ponto de vista feminino, lembre-se. Ao contrário, é visto naturalmente como parte
do relacionamento entre casais adultos.
Identidades
Ambos os romances lidam com uma reconfiguração de identidades das personagens
“performada” pelo texto literário: no primeiro, de Ana Maria Machado, a Autora-Modelo se
apresenta explicitamente como voz narrativa e oferece uma continuação da trajetória de
Capitu, reinterpretando o relato do marido Bento Santiago, o Dom Casmurrro, de forma
paródica: o discurso masculino e autoritário é substituído por um relato em forma de carta,
sem rancores e subvertendo as acusações de adultério realizadas no romance de Machado de
Assis. No segundo, a metaficção é implícita, proposta através da presença de diversos
personagens-escritores. São eles que “perfazem” as próprias identidades em suas obras – são
117
“personagens de si mesmos”. A narradora Anita renega esse contato problemático com a
literatura, postulando um distanciamento entre vida e obra, mas também se vê refém da
Magnólia que criara, sem saber que ela mesma, Anita, também é personagem de ficção.
Babushkas
Em A audácia dessa mulher, a babushka (história dentro da história) é uma relação
intertextual que modifica a identidade feminina, por meio de Capitu. É essa personagem,
proveniente de outra ficção, que promove “reviravolta aninhada”, ao confundir o estatuto de
“realidade” das personagens, as quais desconhecem seus estatutos de ficção. A narrativa
estrutura-se como um jogo de espelhos perpendiculares: representa uma transformação
coletiva ao refletir as personagens de primeiro nível.
No romance de Daniel Galera, as babushkas são primordialmente intratextuais: os
escritores modificam suas próprias identidades individuais, independentemente do sexo;
eles provocam a “reviravolta aninhada” na medida em que personagens de “segundo nível”
(criações ficcionais dos personagens) assumem o papel dos de “primeiro nível”
(performance dos escritores). Essa estrutura se assemelha a um jogo de espelhos paralelos,
posicionados frente a frente: são gerados reflexos infinitos e reduzidos de si mesmos, numa
construção “em abismo” (mise en abyme) em que se perde de vista qual das imagens seria a
“original”, se é que existe uma identidade primordial “pura”. Mesmo a narradora-escritora,
Anita, que não acredita na “substituição” da identidade do autor pela do personagem, não
consegue escapar da influência da sua própria criação, Magnólia. Por último, vale lembrar
que o autor Jupiter Irrisari é proposto como intertexto por Daniel Galera, quando lhe atribui
uma das epígrafes da obra, mas na verdade é um intratexto, uma vez que é real apenas dentro
deste texto ficcional.
Nos dois casos, a noção de realidade é problematizada, ora quando Bia e Ana Lúcia
se descobrem tão “reais” quanto Capitu, ora quando o leitor de Cordilheira se vê em dúvidas
sobre com que personagens a narradora Anita convive: Diego Parisi ou José Holden?, Nacha
Acosta ou Silvia?, Juan Jesús Terragno ou Vigo?, etc, até a pergunta definitiva: quando é
Anita, e quando é Magnólia?
Intertextualidades
Portanto, em A audácia dessa mulher a intertextualidade é elemento estrutural do
texto, na medida em que Capitu salta de Dom Casmurro para o caderno de receitas/ diário
118
de Lina e se “mistura” com as outras personagens. Ele se estabelece de modo paródico, pois
o objetivo de se estabelecer ligação com a obra machadiana é desestabilizar as posições de
gênero, notadamente pela inversão do discurso, o qual assume a perspectiva feminina. Capitu
representa, assim, tanto o caráter metaficcional (a babushka e a reviravolta aninhada) quanto
a questão da identidade feminina.
Em Cordilheira, os intertextos são acessórios. Dos principais deles, um refere-se ao
caráter metaficcional do romance (“La conjuración sagrada”, o romance de José Holden com
título inspirado em Georges Bataille); outro, Duisa, à discussão da identidade feminina. Um
terceiro engloba os dois aspectos ao mesmo tempo: a Malena do tango de Homero Manzi,
que tematiza tanto a tensão realidade/ficção quanto a geração de uma nova identidade por
meio da linguagem literária, tal qual a Capitu de Ana Maria Machado.
A contraposição de tais elementos demonstra como a metaficção contribui para o
questionamento das fronteiras entre o real e o ficcional, bem como serve bem aos propósitos
de discutir formações identitárias.
Na Introdução deste trabalho, manifestamos a intenção de encerrá-lo com um esforço
crítico a respeito dos romances que lhe serviram de corpus. Vale a pena recordar as razões
que nos levaram a tal decisão.
A primeira é a constatação de que, nas últimas décadas, tem-se reforçado o papel da
pesquisa universitária como instância primordial da crítica literária. A nosso ver, esse
fenômeno deve-se à profissionalização desta atividade, que passou do periodismo para os
departamentos de Letras.
O segundo motivo está ligado aos critérios de seleção desses romances como corpus.
Por um lado, os estudos literários têm admitido uma variedade de tipos de textos cada vez
maior, de maneira que com frequência os pesquisadores escolhem como tema obras e autores
com os quais têm afinidades, sejam estéticas, políticas ou mesmo preferências pessoais. É
inevitável, e não de todo indesejável, que assim aconteça. No entanto, a definição do corpus
não significa – não deve nem pode significar – a idealização das obras. Conforme também
ficou registrado na Introdução, as leituras desses romances foram experiências catárticas e
de certo modo incômodas para este pesquisador. Estes incômodos serão nossos pontos de
partida para a análise crítica.
No caso de A audácia dessa mulher, há uma estratégia narrativa que induz o leitor a
uma aparente incoerência, a qual se desfaz na conclusão do romance. No segundo capítulo,
119
Beatriz e Virgílio comentam entre si a sinopse da telenovela/ minissérie “Ousadia”, para a
qual estão trabalhando, e concluem que se parece muito com Otelo ou Dom Casmurro, pela
maneira de tratar a questão do adultério e da fidelidade conjugal. Nessa cena, Bia revela que
já foi professora de língua portuguesa e de literatura brasileira. Mais adiante, ela começa a
ler o diário entremeado ao caderno de receitas que Virgílio lhe empresta. Ana Maria
Machado “cola” em seu texto alguns trechos desse diário, com referências explícitas ao
enredo de Dom Casmurro. A jornalista, porém, não as reconhece. Entretanto, o romance
oferece uma resposta satisfatória para esse descompasso, quando a Autora-Modelo observa
ao leitor que
Bia não tinha qualquer consciência de que ela própria é que não existe na chamada
vida real aqui de fora deste livro, sendo mera personagem de ficção criada por uma
mulher carioca no finalzinho do século XX. (...) Por ela, não haveria qualquer
motivo para que estas reflexões labirínticas estivessem agora aqui nesta página.
(MACHADO, 1999, p.186).
O diário refere-se a uma realidade, e Dom Casmurro é ficção. Esta é a convicção de
Bia, e assim a maioria das pessoas lida com a leitura de ficção. A expressão “reflexões
labirínticas” é precisa, pela duplicidade de sentido do substantivo (divagações ou o efeito de
um espelho) e pelo fato de o labirinto representar um mistério, uma multiplicidade de
caminhos (interpretações) possíveis.
É inegável que essa metalinguagem explícita dificulta a “suspensão da descrença”
postulada por Samuel Coleridge, conforme anotado por Gustavo Bernardo (2010), induzindo
a uma outra forma de interação entre leitor e obra. Isso ocorre menos por o leitor se sentir
incluído no enredo propriamente dito, e mais por ele ser compelido a completar o sentido e
resolver os enigmas propostos pela narrativa.
O ponto negativo desta obra, a nosso ver, é certa tendência ao maniqueísmo nas
relações de gênero. Os homens são caracterizados pelo machismo e cabe às mulheres
distanciarem-se da influência deles. A estratégia se justifica pelos propósitos políticos do
texto, mas não deixa de soar como simplificação.
Outro recurso empregado pela autora é a conclusão anticlimática do romance. Após
a leitura da carta de Capitu-Lina, Beatriz se refugia num sítio no interior do estado do Rio
de Janeiro. Na cena final, ela faz brindes à força das mulheres, e todos os outros elementos
do enredo são deixados de lado. Sabemos que Ana Lúcia desfez o noivado com Giba e
aproximou-se do roteirista Juliano; supomos que Bia vá se afastar de Virgílio e esperar pela
volta de Fabrício dos Estados Unidos; mas nada se diz sobre “Ousadia”, cuja produção foi o
120
motor de arranque do romance – introduziu sua primeira babushka e promoveu o encontro
entre a jornalista e o chef, a mulher que adora viajar sozinha e o homem que cozinha...
A sensação de inconclusão parece representar um afastamento deliberado entre o
texto de Ana Maria Machado e a tradição realista-naturalista a que a metaficção se contrapõe.
Vale destacar que a mesma estratégia havia sido utilizada em Alice e Ulisses, o primeiro
romance de Ana Maria Machado e no qual encontramos as origens de A audácia dessa
mulher. No último capítulo daquele, a protagonista é convidada pela esposa de Ulisses para
uma conversa. Alice tece duras críticas ao comportamento de Adélia e, após o encontro,
começa a caminhar pela orla carioca. Esse passeio é marcado por diversas divagações
intertextuais e o texto termina com um jogo de linguagem que resume os desejos da
personagem:
Eu quero amar.
Eu quero é ser.
Eu quero ir, sim.
Eu quero opor.
Eu quero o zoom. (MACHADO, 2012, p.96)
A sequência alfabética das vogais é coerente com a poesia constante ao longo da
prosa desse romance. Aqui, porém, interessa mais o fato de que A audácia dessa mulher
repete o procedimento de encerrar-se com reflexões de suas protagonistas sobre a história
narrada e sobre a condição feminina na sociedade.
Em Cordilheira, o incômodo é uma vertigem gerada pela revelação de que os
personagens-escritores argentinos se organizam como uma seita, que justifica as metáforas
já empregadas pela crítica: a babushka e a construção em abismo (mise en abyme). As
reflexões sobre a literatura surgem das divergências entre eles e a narradora Anita, bem como
da contradição vivida por esta, que ao mesmo tempo rejeita a carreira literária e participa do
lançamento de seu romance na Argentina.
Daniel Galera faz uso de dois recursos instigantes. O principal deles é a criação do
personagem Jupiter Irrisari. A sugestão de sua existência concreta por meio da epígrafe
configura-se um enigma ao leitor e amplifica o efeito de vertigem a um patamar mais elevado
– e, em se tratando de uma obra cujo tema central é a problemática fronteira entre realidade
e ficção, não se torna um preciosismo estético estéril.
121
O outro recurso é tão sutil quanto o primeiro. Em pelo menos quatro momentos, a
narradora esconde do leitor informações relevantes do enredo, e mais tarde os revela como
se nós já os conhecêssemos, provocando outro tipo de desestabilização.
No prólogo de Cordilheira, o pai observa Anita penteando o cabelo e avisa que está
saindo para a noite de pôquer com os amigos. Em seguida, a narração dela, em primeira
pessoa, começa com o voo para Buenos Aires e as razões que a levaram à decisão de ir à
Argentina: o convite para o lançamento de seu livro, seu desejo de engravidar e a discussão
com Danilo. De repente, ela conta: “Houve um momento, uns dois meses atrás, em que vi
que tudo estava errado. (...) Sentia vontade de abraçar meu pai mas ele estava morto fazia
três anos e meio” (GALERA, 2008, p.23). Até então, ela nada dissera sobre esse episódio. É
apenas bem mais adiante, no início do terceiro capítulo, que ela detalha: o pai “perdeu o
controle do carro, bêbado, depois de uma noite de pôquer com amigos numa noite de sexta-
feira, e faleceu” (Ibid., p.54) – o que leva o leitor a concluir que o acidente aconteceu na
mesma noite de que se ocupa o prólogo.
Os outros dois momentos são mais decisivos para os rumos do enredo. Ao receber,
na casa de José Holden, o primeiro dos livros endereçados a ela – “Un cuarto oscuro en el
fondo”, de Santiago Oyola, comenta: “Quem poderia ter me enviado aquela porcaria, e por
quê? (...) Talvez fosse alguma gracinha de Holden, que tinha partido três dias antes para
fazer uma ‘jornada ao sul’, como definiu as férias que planejara meses antes de nos
conhecermos” (Ibid., p.94). A sequência do enredo mostra que é pouco provável que Holden
tivesse planejado tal viagem com tanta antecedência, pois deduz-se que ele foi à Patagônia
fazer preparativos para seu sacrifício e é só ao conhecer Anita que o ritual de fechamento de
seu romance acontecerá. No mesmo parágrafo a narradora afirma que “tínhamos passado o
último mês e meio grudados” (Ibid., p.94), uma forma de marcar o tempo narrativo, mas que
permite a pergunta: por que não mencionar a viagem de Holden antes de ela acontecer?
O segundo livro que Anita recebe é “Más que un sueño”, de Nacha Acosta, em um
momento em que Silvia havia se tornado sua principal companhia em Buenos Aires, devido
à viagem de Holden. Ela lê um pequeno trecho e afirma: “Fiquei admirada não com o que já
sabia, que cada um no grupinho de Holden tinha seu livro e seu personagem a ser
desempenhado na vida real, mas com o alcance dessa prática, pelo menos no caso de Silvia”
(Ibid., p.112). Esta é, sem dúvida, a revelação mais importante de todo o romance, o
elemento definidor do enredo. No entanto a narradora admite só compartilhá-la com o leitor
com atraso, uma vez que já tinha conhecimento anterior dela.
122
Finalmente, a última vez em que esse recurso é empregado diz respeito a “La
conjuración sagrada”, livro de Diego Parisi que tem José Holden como protagonista. Anita
recebera a visita de Julie (fato descrito primeiramente por uma fala desta, e não por relato da
narradora) e elas conversam sobre os personagens argentinos, dos quais Julie fez uma
imagem negativa. Vendo-se pouco à vontade na presença da amiga, Anita escreve:
“Precisava dar a entender que Holden era só um namoradinho, que ele e seus amigos eram
pessoas ligeiramente extravagantes e nada mais. Nada sobre livros e personagens. Nada,
sobretudo, a respeito do romance de Holden, que eu tinha terminado de ler dois dias antes”
(Ibid., p.117). Após dezenas de páginas em que Parisi se negava a deixar que ela lesse seu
livro, é desta forma que Anita narra que havia vencido esse bloqueio.
Este é o modo mais frequente com que Galera provoca no leitor a sensação de que
está sempre um passo atrás na compreensão do enredo, de que algo está sendo
deliberadamente encoberto, e por isso deve ficar atento às reviravoltas do enredo. É uma das
principais razões pelas quais Cordilheira é uma trama bem conduzida e que alcança seu
objetivo de fazer o leitor questionar aquilo que lê e, assim, manter seu interesse em descobrir
que novos enigmas lhe serão propostos, mais uma estratégia que requer participação ativa
na construção do sentido da obra literária.
Por fim, as diferenças entre A audácia dessa mulher e Cordilheira podem ser bem
resumidas em duas frases de seus autores. Ana Maria Machado escreve: “...não quero mentir
para quem me lê, não além do inevitável ato de fingimento que é qualquer ficção.”
(MACHADO, 1999, p.97). Daniel Galera diz: “a interpretação que fazemos da nossa
experiência, à qual damos o nome de ‘vida real’, é também uma construção narrativa, não
muito diferente da ficção.” (GALERA apud BIRMAN, 2008)
A frase de Ana Maria Machado pertence ao romance A audácia dessa mulher, isto é,
a reflexão metalinguística ocorre dentro do próprio texto literário. A relação entre realidade
e ficção, em que esta última é vista como uma “mentira sincera”, está explícita: toda ficção
é uma mentira que procura revelar uma verdade por meio de signos. A afirmação de Daniel
Galera, encontra-se numa entrevista concedida por ele a Daniela Birman, portanto, fora da
obra.
Por outro lado, em ambos os casos empregamos a ideia de refletir, de reflexão – bem
como em diversas passagens deste trabalho –, em suas duas acepções principais: a de
imagem reproduzida por um espelho, às vezes de forma distorcida, e a de pensar, meditar.
123
Em verdade, as duas acepções aproximam-se: de certo modo, a segunda inclui a primeira.
Isso porque o pensamento, assim como o contato com a arte, é uma forma de o indivíduo
construir uma imagem de si e do mundo, de acordo com os seus valores e seus pontos de
vista. Em suma, refletir (pensar) é voltar-se sobre si mesmo (ver-se no espelho).
Essa duplicidade semântica também se dá em outro significante: especular. Como
adjetivo, representa a superfície de um espelho; como verbo, apresenta outros sentidos:
examinar minuciosamente; pesquisar; averiguar; meditar; raciocinar (não por acaso se fala
em “especulação filosófica”). Porém, um terceiro emprego corrente aproxima esse verbo
ainda mais da prática da ficção: mais do que “examinar minuciosamente”, especular afigura-
se como imaginar possibilidades, projetar cenários.
Nessa acepção a literatura – e em particular a narrativa de ficção – são profundamente
especulativas. E, quando se voltam sobre si mesmas, pelo uso da metalinguagem (a
linguagem sobre a linguagem), ela se torna também especular, autorreflexiva.
Essa ficção reflete a si mesma (como um espelho) e reflete sobre si mesma (como
ideia, pensamento) mesmo quando não é autoconsciente, ou seja, quando não escancara ao
leitor seu caráter ficcional. Ao longo desta Dissertação, procuramos compreender a
metaficção como estratégia produtiva e geradora de novas possibilidades e níveis de
significação, de uma diferente relação entre obra e leitor, entre ficção e realidade. Para isso,
selecionamos um corpus formado por dois romances contemporâneos que seguem
estratégias distintas: o primeiro, A audácia dessa mulher é uma metaficção explícita,
autoconsciente; no segundo, Cordilheira, essa reflexão aparece implícita. Em ambos se pôde
observar o questionamento do real e as crises de identidades decorrentes da instabilidade das
fronteiras da ficção.
A prática ficcional sempre levantou problemas em sua relação com a realidade,
conforme tem sido apontado desde Aristóteles e sua distinção primordial entre o poeta e o
historiador. Isso ocorre porque o personagem de ficção gera um paradoxo ao habitar uma
zona cinzenta entre o ser e o não ser: ele ao mesmo tempo existe e não existe. A esse
propósito, a editora Companhia das Letras inclui, entre a ficha técnica de alguns de seus
títulos de ficção, a observação: “Os personagens e as situações desta obra são reais apenas
no universo da ficção; não se referem a pessoas e fatos concretos, e não emitem opinião
sobre eles.”37
37 Retiramos o exemplo do romance metaficcional de Bernardo Carvalho, O sol se põe em São Paulo (2007),
mas outros títulos também possuem a mesma inscrição.
124
Por um lado, o homem criou a linguagem para dar nome às coisas e aos fenômenos
a sua volta; por outro, ao utilizar essa mesma linguagem para fazer ficção, passou a criar
universos, lugares e seres sem autonomia ontológica, sem existência própria. No entanto, a
criação desses ambientes ficcionais não difere tanto da forma como se constrói a própria
realidade – por meio da linguagem.
Tal constatação vai ao encontro do desenvolvimento da ciência e da filosofia
modernas, quando estas demonstram que toda realidade é gerada primeiramente na mente
humana, organizada e articulada pelos signos sem que haja um acesso direto, não mediado
por eles, às coisas em si.
A ficção seria, então, um caso privilegiado do caráter performativo da linguagem,
responsável por uma série – ou uma rede – interminável de paradoxos. A metaficção, por
sua vez, eleva esse paradoxo a um nível superior, pois reflete tanto a “realidade” quanto a si
própria. As fronteiras entre o real e o imaginado tornam-se ainda mais indistinguíveis,
conforme a análise do corpus deste trabalho buscou demonstrar.
Se é evidente que a metalinguagem não é uma invenção recente na prática narrativa,
também é notório que a produção contemporânea tem oferecido uma enorme gama de títulos
aos quais cabe tal descrição. Se é uma “tendência” da prosa de nosso século, o tempo e
estudos posteriores poderão responder; se foi uma “moda” literária do período que alguns
autores denominam “pós-moderno”, tal resposta foge ao escopo desta pesquisa e esbarra em
suas limitações. Ainda assim, parece-nos adequado sugerir que essa metaficção insere-se
num quadro cultural de incertezas identitárias, no qual atores sociais buscam afirmar suas
vozes e problematizam verdades seculares, entre elas, a própria noção de verdade e o sentido
de (e da) história. Ela reflete essas dúvidas e esses questionamentos levantados pela condição
contemporânea.
Em Cordilheira, observamos escritores que se fazem, performáticos e performativos,
personagens de si mesmos; dentre eles, um guru literário que é sugerido como pertencente à
realidade do leitor, mas que possui a mesma realidade ficcional dos demais personagens-
escritores. Em A audácia dessa mulher, encontramos a “experiência coletiva” feminina
emergir das sombras da história e se encontrar na “voz individual” de Capitu-Lina 38 ,
finalmente tornada protagonista da própria vida e espelhando as demais personagens do
romance, surpreendendo-as com seu estatuto de ficção real.
38 cf. MACHADO, 1999, p.185; WOOLF, 1985, p.87.
125
Por fim, a condição que pretendemos enfatizar é a de Anita van der Goltz Vianna:
jovem, criação ficcional (personagem) mas também criadora (escritora e mãe em potencial).
Possui estilo e opiniões próprias e é livre para viver suas escolhas a despeito de todo o
discurso em contrário ao seu redor – e narradora. Mais do que personagem, mais do que
protagonista, ela detém sua própria voz. Diante da subalternidade histórica reservada às
mulheres, sua conquista não é desprezível: ela é narradora de si mesma.
126
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