UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO – UFMA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CCH
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL
DÉBORAH GONSALVES SILVA
ARRANJOS DE SOBREVIVÊNCIA: relações familiares entre escravos no sertão do Piauí
(São Raimundo Nonato, 1871-1888)
São Luís
2013
DÉBORAH GONSALVES SILVA
ARRANJOS DE SOBREVIVÊNCIA: relações familiares entre escravos no sertão do Piauí
(São Raimundo Nonato, 1871-1888)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
História Social do Departamento de Ciências Humanas
da Universidade Federal do Maranhão para a obtenção do
título de Mestre em História.
Orientadora: Profa. Dr
a. Antonia da Silva Mota.
São Luís
2013
DÉBORAH GONSALVES SILV
Silva, Déborah Gonsalves
Arranjos de sobrevivência: relações familiares entre escravos no sertão do Piauí
(São Raimundo Nonato, 1871-1888) / Déborah Gonsalves Silva. – São Luís, 2013.
112 f.
Impresso por computador (Fotocópia).
Orientador: Profa. Dr
a Antonia da Silva Mota.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Maranhão, Programa de Pós-
Graduação História Social, 2013.
1.Escravos – Relações familiares – Sertão do Piauí 2. Escravidão 3. Parentesco
consanguíneo e ritual – Escravos 4. Compadrio I. Título.
CDU 326.3:316.812.1 (812.2)
ARRANJOS DE SOBREVIVÊNCIA: relações familiares entre escravos no sertão do Piauí
(São Raimundo Nonato, 1871-1888)
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
História Social do Departamento de Ciências Humanas
da Universidade Federal do Maranhão para a obtenção do
título de Mestre em História.
Orientadora: Profa. Dr
a. Antonia da Silva Mota.
Aprovada em: ______/______/_______
BANCA EXAMINADORA:
_________________________________________________________
Profa. Dra. Antonia da Silva Mota (orientadora)
Universidade Federal do Maranhão – UFMA
_________________________________________________________
Profo. Dr. Antonio Otaviano Vieira Júnior
Universidade Federal do Pará – UFPA
_________________________________________________________
Profo. Dr. Josenildo de Jesus Pereira
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
________________________________________________________
Profa. Dr
a. Isabel Ibarra Cabrera
Universidade Federal do Maranhão - UFMA
A Rita Gonçalves, minha mãe, que, até hoje, me
ensina a conduzir a vida com coragem e esperança.
A ela, todo o meu amor e admiração.
AGRADECIMENTOS
Durante os dois anos de mestrado, eu pude contar com o apoio de algumas pessoas que
foi fundamental para que pudesse chegar à conclusão deste trabalho. Quero, aqui, registrar o
meu agradecimento especial a elas, pois a tarefa de produzir uma dissertação não é solitária.
Agradeço a Professora Antonia da Silva Mota, pela competência como conduziu a
orientação deste trabalho, pelo carinho, incentivo e confiança.
Aos Professores Josenildo de Jesus Pereira e Isabel Ibarra Cabrera, que participaram
da banca de qualificação, pela leitura acurada do texto e pelas contribuições com vistas ao
aprimoramento da dissertação. Procurei incluir as sugestões na versão final do trabalho.
Aos professores do Mestrado em História Social, por compartilhar experiências e
conhecimento acerca do fazer historiográfico, especialmente os professores Alexandre
Navarro, João Bitencourt, Dorval do Nascimento, Lyndon de Araújo, Maria Izabel Barboza e
Regina Helena de Faria. Agradeço também aos funcionários da secretaria da pós-graduação,
Lauriana Reis e Jonathas, pela atenção e generosidade ao solucionar as minhas dúvidas e
questões burocráticas.
Meu agradecimento especial ao meu querido amigo, Professor José Carlos Aragão,
pelo carinho e incentivo depositados desde o processo inicial de seleção para o mestrado até a
conclusão da dissertação.
Ao professor Clódson dos Santos, pelas indicações e livros emprestados e pelas
correções feitas ao projeto de pesquisa no período de seleção.
Agradeço o apoio do professor Francisco Vasconcelos e sua família. Obrigada pela
amizade, confiança e valorização.
Aos amigos professora Pedrina Nunes, professor Gênesis Naum e professor Gabriel
Frechiani, pela “força” com as atividades na UESPI, durante a minha ausência. Agradeço
também pelos momentos de alegria e pelas conversas que, muitas vezes, me tranquilizavam.
A professora Nívia Paula, pela ajuda com o processo de autorização para acessar os
documentos cartoriais e paroquiais. Agradeço ainda pela gentileza em compartilhar alguns
materiais e diálogos sobre a História do Piauí, a fim de enriquecer a pesquisa.
A FAPEMA, pela concessão da bolsa de estudos. Certamente, sem esse financiamento
seria mais difícil garantir a pesquisa em outro Estado.
Agradeço ao Pe. José Cláudio Moreno, por, gentilmente, permitir o acesso às fontes
eclesiásticas (registros de batismo e casamento) da Freguesia de São Raimundo Nonato e ao
funcionário da Cúria Diocesana, Fagner Nascimento.
Agradeço aos funcionários do Cartório e do Fórum de São Raimundo Nonato,
especialmente ao Juiz da Segunda Vara da Comarca de São Raimundo Nonato, Dr. Belmiro
Meira Júnior, por autorizar o acesso e manuseio da documentação alojada no arquivo do
Fórum.
Agradeço aos funcionários do Arquivo Público do Estado do Piauí, pela agilidade em
atender aos sucessivos pedidos de documentos com tanta solicitude, e agradeço,
especialmente, a minha xará Débora Cardoso pelo apoio fundamental durante as buscas no
arquivo de Teresina. Obrigada pelo carinho.
A Carolina de Abreu, pela forma atenciosa e prestativa com que me ajudou,
compartilhando seus materiais de Paleografia, para me ajudar a desenvolver a pesquisa.
A querida Ianthe Silva, pela ajuda com o abstract. Muito obrigada!
Ao meu grande amigo, Márcio Zamboni, por se fazer sempre presente. Sou muito
grata pela paciência, pelo incentivo, pelo companheirismo.
Agradeço a minha amiga, Marcela Valls, pela amizade, pelo apoio e companheirismo.
Aos amigos em São Raimundo Nonato, Lennon Matos, Anna Borges, Gênesis, Hamilton,
Larissa Reis, Laura Carvalho, Maurício Castro, Fernanda Ribeiro e Ednaldo Damasceno, por
compartilharem momentos de alegria que serviram para recarregar as energias e voltar à
labuta.
Ao querido Anderson de Almeida, pela amizade, por acompanhar de perto esse
processo de “gestação” da dissertação, desde o período de seleção do mestrado até a
conclusão do trabalho. Sou imensamente grata pelo trabalho com a elaboração do banco de
dados, tabelas, gráficos, organogramas e mapas. Agradeço ainda pelos livros, pelas leituras,
comentários e discussões sobre o texto, até mesmo nos finais de semana. A sua participação
neste trabalho foi essencial e a minha dívida é impagável...
Agradeço imensamente a Lúcia Almeida e a toda sua família, por me acolherem como
parte da família durante o primeiro ano do mestrado em São Luís. Obrigada pela ajuda que foi
fundamental, sem o apoio de vocês seria muito mais difícil. Sou eternamente grata.
Aos amigos do mestrado, especialmente, aos queridos, Iramir Araújo, Cláudio Melo,
Mirian Reis, Daylana Cristina, Eduardo Melo, Gonçalo Mendes, muito obrigada por
compartilharem experiências, conhecimentos e momentos de alegria. A Joelma Santos, pelo
carinho.
Agradeço a minha amiga Marivânia Moura, pela amizade, pelo carinho e ajuda
fundamental durante o mestrado. Obrigada por me proporcionar momentos saudáveis de
conversas e de longas risadas, por me receber no aconchego de seu lar, por me “socorrer” nos
momentos de aperreio. Não poderia me esquecer de agradecer a Sophia Moura e a Naruna
Mello, pelo carinho e momentos de descontração.
Por fim, quero agradecer a minha família, pelo apoio incondicional, por depositar toda
confiança em mim, por compreender a minha ausência durante esses dois anos, por me
encorajar e acreditar que posso conquistar os meus sonhos. A minha mãe, agradeço,
especialmente, pelo exemplo de força e determinação, e por “segurar a barra” enquanto me
dediquei ao mestrado. Obrigada por acreditar em mim.
RESUMO
O presente estudo tem como objetivo investigar as relações familiares de escravos da vila de
São Raimundo Nonato, atualmente, município homônimo localizado no sudeste do Piauí. O
recorte temporal compreende os anos de 1871 a 1888, período marcado por intensas
mudanças, no âmbito nacional, como a proibição do tráfico atlântico de escravos, o
consequente aumento do tráfico interprovincial, as transformações provocadas pela Lei do
Ventre Livre, ente outras. Partindo da leitura minuciosa das fontes documentais oitocentistas
como: inventários, cartas de alforria e registros paroquiais (batismo, casamento e óbito),
procurou-se realizar um levantamento de informações inscritas sobre o perfil da população, o
grau de legitimidade dos cativos e condição social dos pais e dos padrinhos, para, então,
compreender as estratégias tecidas pelos escravos através do parentesco consanguíneo e ritual.
Desse modo, através do cruzamento dessas fontes, buscou-se reconstituir algumas trajetórias
familiares e individuais de cativos, atentando para as vivências cotidianas, sobretudo, para os
arranjos de sobrevivência forjados por meio dos laços de compadrio estabelecidos entre
escravos, livres e libertos no sertão piauiense. As múltiplas histórias abordadas no decorrer
deste trabalho apresentam uma dinâmica familiar multifacetada, visto que os arranjos de
sobrevivência tecidos por meio das estratégias de parentesco consanguíneo e ritual ampliaram
o significado desta instituição.
Palavras-chave: Escravidão. Família. Compadrio. Sertão do Piauí.
ABSTRACT
The present study aims to investigate the family relations of slaves from São Raimundo
Nonato villa, currently a homonym county located in the southeast of Piauí. The time frame
cover the years 1871 to 1888, a period noticeable by intense changes on national level, such
as the prohibition of the Atlantic slave trade, the consequent increase in inter-provincial trade,
the transformations due to the “Lei do Ventre Livre” and etc. From rigorous reading of
nineteenth-century documentary sources such as inventories, letters of manumission and
parish records (baptism, marriage and death), we sought to conduct a survey of written
information about the population profile, the legitimacy degree of the captives and social
status of parents and godparents, and then to understand the strategies used by slaves through
consanguinity and ritual. Thus, by crossing these sources, we tried to reconstruct some family
and individual paths of captives paying attention to the daily experiences, especially the
arrangements for survival forged through crony ties established between slaves, free and freed
individuals in Piauí's back country. The multiple stories addressed in this paper present a
multifaceted family dynamics, since the survival arrangements constituted by means of
consanguinity strategies and ritual expanded the significance of this institution.
Keywords: Slavery. Family. Crony. Back country of Piauí.
LISTA DE GRÁFICOS
Gráfico 1 – Número de mulheres distribuído por cor e condição social. Recenseamento Geral
do Império, 1872.......................................................................................................................39
Gráfico 2 – Número de pessoas do sexo masculino distribuído por cor e condição social.
Recenseamento Geral do Império, 1872....................................................................................40
Gráfico 3: Distribuição da posse escrava na Freguesia de São Raimundo Nonato-PI, entre
1840e 1886.................................................................................................................................45
Gráfico 4: Percentual de padrinhos a partir de sua condição jurídica.......................................60
Gráfico 5 – Frequência de casamentos envolvendo escravos.São Raimundo Nonato(1837-
1884).........................................................................................................................................66
Gráfico 6: Percentual da filiação de filhos de escravas batizados entre 1871 e 1888..............81
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 – Quadro da População Livre e Escrava de São Raimundo Nonato por sexo e cor,
1872...........................................................................................................................................38
Tabela 2 - Estrutura da posse de cativos segundo faixa de tamanho dos plantéis.....................44
Tabela 3 – Padrão de Propriedade de Escravos em Inventários de São Raimundo Nonato,
1840-1863..................................................................................................................................46
Tabela 4 – Padrão de Propriedade de Escravos em Inventários de São Raimundo Nonato,
1864-1886..................................................................................................................................47
Tabela 5 – Condição Jurídica de Padrinhos e Madrinhas. São Raimundo Nonato, 1871-
1888...........................................................................................................................................58
Tabela 6 - Frequência de Casamentos Envolvendo Escravos – 1837-1884..............................61
Tabela 7 – Frequência de casamento escravo por propriedades em São Raimundo Nonato,
1837-1884..................................................................................................................................62
Tabela 8 – Frequência das testemunhas dos casamentos de escravos. São Raimundo Nonato
(1837-1884)...............................................................................................................................64
Tabela 9 - Filiação legítima ou natural dos batizados. Paróquia de São Raimundo Nonato,
1871-1884.................................................................................................................................70
Tabela 10 – Distribuição da População Escrava por estado civil em São Raimundo Nonato,
1872...........................................................................................................................................79
Tabela 11 – Padrinhos “preferenciais” e número de afilhados. São Raimundo Nonato, Piauí.
...................................................................................................................................................97
LISTA DE FIGURAS
Figura 1– Provincia do Piauhy: Segundo projecto de nova divisão do Império. Antonio
Cãndido da Cruz Machado 1820-1905 – 1875.........................................................................16
Figura 2 – Sudeste da Capitania do Piauí. Detalhe do “Mappa geographico da capitania do
Piauhy, e parte das do Maranhão, e do Gram Pará”. Data provável de levantamento
1816...........................................................................................................................................27
Figura 3 – Sudeste da Capitania do Piauí. Detalhe da “Geographische karte der provinz von
São Iozé do Piauhý”, produzida pelo tenente Joseph Schwarzmann em 1828. Detalhamento de
algumas das fazendas localizadas às margens do Rio Piauhy...................................................32
Figura 4 – Sudeste da Província do Piauí, com detalhe da localização das principais fazendas
da região. Provincia do Piauhy: Segundo projecto de nova divisão do Império. Antonio
Cãndido da Cruz Machado 1820-1905 – 1875..........................................................................33
Figura 5 – Família dos cativos Zacarias e Maria, 1872-1879...................................................89
Figura 6 – Família da cativa Amância, 1873-1884. ................................................................92
Figura 7 – Laços de compadrio do cativo Antônio, 1872-1885................................................98
Figura 8 – Laços de Compadrio da Cativa Geralda, 1878-1882..............................................101
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................14
2 FORMAÇÃO HISTÓRICA DE SÃO RAIMUNDO NONATO - PIAUÍ ...................... 24
2.1 A ocupação do Piauí ....................................................................................................... 24
2.2 A vila de São Raimundo Nonato .................................................................................... 32
2.3 A estrutura de posse escrava nos inventários ................................................................. 41
2.4. O homem escravizado tido como “bem” valioso no sertão piauiense ........................... 48
3 REDES DE PROTEÇÃO E SOLIDARIEDADE ESTABELECIDAS POR
ESCRAVOS NO SERTÃO PIAUIENSE ............................................................................. 52
3.1 Relações familiares entre escravos ................................................................................. 52
3.2 Casamento de escravos, livres pobres e libertos: redes de proteção e solidariedade ..... 56
3.3 O casamento e a questão da ilegitimidade ...................................................................... 63
4 TRAJETÓRIAS FAMILIARES: OS SIGNIFICADOS DAS REDES DE
PARENTESCO CONSANGUÍNEO E COMPADRIO....................................................... 74
4.1 Laços de compadrio: o parentesco entre as pequenas posses escravas.............................74
4.2 Experiências familiares de escravos ............................................................................... 87
4.3 Redes de solidariedade: o compadrio entre escravos ..................................................... 94
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................103
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 106
14
1 INTRODUÇÃO
No dia oito de julho de 1872, Gertrudes, cativa de Domingos Dias Soares1, moradora
na localidade Caracol, batizou o seu primeiro filho.2 Delfina, mulata, filha natural
3, nascida
em novembro de 1871, já podia ser considerada livre em virtude da Lei 2.040 de 28 de
setembro de 1871 (Ventre Livre). Foram padrinhos, Joaquim Manoel Dias, filho do
proprietário de Gertrudes, e sua esposa Ana Maria Dias. Dois anos depois, Gertrudes é
anunciada na documentação batizando o segundo filho, uma menina chamada Maria, parda,
também filha natural. Foram padrinhos, mais uma filha do proprietário de Gertrudes, Carlota
Leopoldina Dias e Leopoldino Augusto Dias Figueiredo, seu cunhado. No ano de 1877,
Constantino, mulato, foi batizado por Augusto José Soares e Joana Josefa Dias e Leandro, o
quinto filho de Gertrudes, foi batizado em 1881 teve como padrinhos João Augusto Dias
Figueiredo e Constantina Maria de Jesus. Severino e Efigênia também eram escravos de
Domingos Dias Soares e foram padrinhos de José, pardo, quarto filho de Gertrudes, batizado
em 18794.
Ao estabelecer parentesco ritual (compadrio) através do batismo de seus filhos, a
cativa Gertrudes teve preferência por pessoas de condição jurídica diferente da sua. Assim
como os demais, Josina e José foram batizados por pessoas livres em 1882 e 1885,
respectivamente. No total, entre os anos de 1872 e 1885, Gertrudes batizou sete filhos, sendo
três do sexo feminino e quatro do sexo masculino, e apenas um dos rebentos teve como
padrinhos, pessoas da mesma condição jurídica de sua mãe. O que é mais notável nesse
padrão de escolha é a posição social que esses padrinhos assumiam, na maioria das vezes,
eram pessoas que, além de possuir patentes militares, também eram proprietários de escravos
ou parentes de primeiro e segundo grau do proprietário da mãe dos rebentos batizados. Esse
1Segundo pesquisa realizada por Rômulo Negreiros (2012, p. 3-4), Domingos Dias Soares era filho do coronel
José Dias Soares, que comandou expedições para conquista do território piauiense entre os séculos XVIII e XIX,
foi o“[...] indivíduo que comandou a derrocada” dos índios da nação Pimenteira no sudeste do Piauí. 2Existe a possibilidade de que a cativa Gertrudes tenha dado à luz a outros filhos anterior a este, porém não é
possível confirmar esta hipótese, visto que, de todos os registros de batismo em que ela é mencionada como mãe,
este é o que apresenta data mais recuada. Portanto, considera-se como sendo o primeiro filho. 3 Todas as atas de batismo consultadas nesta pesquisa atribuem a condição de “filho natural” aos rebentos filhos
de mães cativas solteiras, ou mesmo àquelas que mantêm relações consensuais com o pai da criança, isto é, sem
formalizar a união através do matrimônio religioso. 4 As sete atas de batismo dos filhos de Gertrudes encontram-se no mesmo livro de registro de batismo, localizado
na Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Filhos de Escravas (1871-1888).
15
esboço de parte da trajetória da família de Gertrudes revela o principal objetivo deste estudo,
que é identificar, a partir das vivências cotidianas5 dos escravos da vila de São Raimundo
Nonato, as estratégias6 e os significados das relações de parentesco (vertical e horizontal)
7,
para a manutenção e, muitas vezes, para a sobrevivência da família desses escravos
sertanejos.
Tomamos, como contexto espacial, a Vila de São Raimundo Nonato, Piauí, hoje atual
Município de mesmo nome, localizado no Sudeste do Estado do Piauí. Região de caatinga,
situada na fronteira geológica entre a planície da Depressão Periférica do São Francisco e a
Bacia Sedimentar Piauí-Maranhão, de rica biodiversidade e às margens do Rio Piauí,
ocupada, inicialmente, por povos nativos e, em seguida, pelos desbravadores do sertão do
Piauí. A figura abaixo (figura 1) representa a Província do Piauí em meados do século XIX, a
parte em destaque corresponde à área de estudo. Durante o século XIX, a região em estudo
caracterizou-se por uma produção voltada, principalmente, para o mercado interno, através da
agricultura de subsistência e da pecuária. Além disso, é necessário salientar que essas
características tornaram o modelo de produção peculiar em relação às regiões de grandes
plantéis voltadas essencialmente para o mercado externo, e refletiram diretamente no regime
escravista local, marcada por uma estrutura de posse escrava com pequeno número de cativos
por propriedade.
5 A compreensão de cotidiano utilizada nesse estudo segue o pensamento de Agnes Heller (1989, p.18), quando
expressa que a vida cotidiana é a vida de todo o homem e que, portanto, não existe homem sem cotidiano. Para a
autora “[...] o homem participa da vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua
personalidade”. Outra concepção de cotidiano é registrada por Maria Odila L. Dias (1991, p. 49), em que: “O
quotidiano, visto pelo prisma de nossa contemporaneidade enquanto espaço de mudança, de resistência ao
processo de dominação, define um campo social de múltiplas interseções que aproximam e diluem um no outro,
conceitos ideológicos estratégicos como o público e o privado, o biológico e o mental, a natureza e a cultura, a
razão e as paixões, o sujeito e o objeto – e que envolvem, todas, a dualidade das relações de gênero, tanto na
medida em que estão determinadas, como no processo em que estão se transformando e sendo transformadas.”
Em outro estudo, a autora refere-se ao cotidiano como “[...] mediações sociais continuamente improvisadas no
processo global de tensões e conflitos, que compõem a organização das relações de produção, o sistema de
dominação e de estruturação do poder” (1995, p. 15-18). 6Em A Invenção do Cotidiano. Artes de Fazer, Michel de Certeau, ao diferenciar estratégia de tática, define
estratégia como “[...] o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do
momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exercito, uma cidade, uma instituição
científica) pode ser isolado. A estratégia se postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e
ser a base de onde se pode gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças”, entendida como “[...]
um tipo específico de saber, aquele que sustenta e determina o poder de conquistar para si um lugar próprio”
(2008, p. 99-101). 7 Consideram-se laços de parentesco vertical quando é estabelecido com pessoas de condição jurídica diferente,
ou seja, livres. Já o parentesco horizontal é aquele que se estabelece com pessoas de mesma condição social.
16
FIGURA 1 – Provincia do Piauhy: Segundo projecto de nova divisão do Império. Antonio
Cãndido da Cruz Machado 1820-1905 – 1875.
Fonte: Biblioteca Digital Hispânica. <http://iberoamericanadigital.net . Acesso em 19 de agosto de
2012
17
O recorte temporal compreende os anos de 1871 a 1888, período marcado por fatores
que, no contexto nacional (como a Lei do Ventre Livre, a intensificação do tráfico
interprovincial) e regional (como as fortes secas que atingiram a região no início da década de
70), foram responsáveis por provocar algumas transformações na vida social e material desses
indivíduos e que, hoje, possibilitam a análise das implicações causadas pela conjuntura da
época para a vida da população dessa região. A partir da análise de um conjunto de fontes,
identificamos que a reprodução natural entre a população escrava de São Raimundo Nonato
pode ter sido utilizada como um mecanismo para a manutenção da posse escrava, visto que a
partir da proibição do tráfico atlântico ocorreu a intensificação do tráfico interprovincial e,
consequentemente, o aumento da venda de escravos das regiões de economia de subsistência
para áreas voltadas para a agricultura exportadora8.
Além disso, devido ao longo período de secas vivenciado por essa região do sertão
nordestino na década de 70, ocorreu uma queda na produção e consequente redução no
número de escravos por propriedade, que, certamente, foram vendidos para outras regiões.
Todos esses fatores refletiram em mudanças na dinâmica das relações sociais entre escravos,
livres e libertos, e é a partir desse contexto que buscamos compreender as experiências9
vividas por esses sujeitos, como também apontar as singularidades que estas apresentam em
relação a outras áreas do país durante o mesmo período. É importante salientar que o recorte
temporal utilizado nesta pesquisa não é rígido, visto que, por muitas vezes, ocorre a
necessidade de buscar informações no escopo documental para unir às peças dessa trama em
datas além do limite de recorte.
Outro fator que determinou o recorte temporal escolhido para este estudo foi a
predominância do número de batismo de filhos de escravos a partir do ano de 1871 e
registrados em livro diferenciado dos demais livros de batismo localizados na Cúria da
Catedral de São Raimundo Nonato. Dos 16 livros acondicionados no arquivo da Cúria que
contém as atas de batismo, apenas este livro com data limite de 1871 a 1888 foi reservado
8Sobre essa possibilidade ver GUTIÉRREZ, Horácio. Demografia escrava numa economia não-exportadora:
Paraná 1800-1830. Revista de Estudos Econômicos. São Paulo: 17 (2), 1987, p. 297-314. 9Em E.P. Thompson (1981, p. 182), encontra-se uma definição que é de suma importância para a compreensão
do conceito de experiência. Ao abordar as experiências coletivas de exploração dos trabalhadores ingleses,
através da vida material e das estruturas de classes, em sua narrativa, o autor cede espaço para pensar os sujeitos
“[...] como pessoas que experimentam suas situações e relações produtivas determinadas como necessidades e
interesses e como antagonismos, e em seguida ‘tratam’ essa experiência em sua ‘consciência’ e sua ‘cultura’ (as
duas outras expressões excluídas pela prática teórica) das mais complexas maneiras (sim, ‘relativamente
autônomas’) e em seguida (muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classe resultantes) agem,
por sua vez, sobre sua situação determinada”.
18
exclusivamente para o registro de batismo de filhos de escravos. Portanto, partimos da ideia
de que a Lei do Ventre Livre (1871) possa ter influenciado o aumento significativo dos
registros batismais de crianças geradas de ventre escravo a partir desta data e que, portanto,
esses agentes inseridos dentro e fora do contexto escravista possam ter utilizado essa
possibilidade para ampliar as suas relações sociais.
A partir das informações contidas nas atas de batismo, identificamos um expressivo
número de relações de parentesco estabelecidas através do compadrio com pessoas de
condição jurídica diferente da situação das mães cativas, o que nos leva a pensar na hipótese
do apadrinhamento de filhos de cativas por pessoas de status superior como uma estratégia de
proteção e de ampliação das relações. Quando ocorreram batismos em que escravos foram
padrinhos, estes eram apenas de filhos de outros escravos, ou seja, nenhum escravo
apadrinhou um rebento filho de pessoas com condição jurídica diferente da sua.
Desse modo, o parentesco ritual (compadrio), construído na pia batismal, pode revelar
as expectativas e os significados nutridos por esses escravos em relação à família, visto que
envolve mecanismos de escolha que o parentesco consanguíneo não possui (ROCHA, 1999).
Portanto:
A especificidade do compadrio talvez residisse exatamente no fato de
apresentar uma grande possibilidade de extensão – uma pessoa poderia
apadrinhar um número infindo de afilhados, incorporando à sua parentela
inúmeras unidades familiares – e, ao mesmo tempo, permitir que se criassem
sólidos vínculos entre pessoas das mais diferentes condições sociais que
passavam a se reconhecer como parentes (BRUGGER, 2007, p. 325).
Em relação aos núcleos familiares, a documentação revela a predominância de
famílias formadas apenas pela mãe e seus filhos, sendo classificada como família matrifocal.
Desse modo, o número de crianças consideradas ilegítimas salta aos olhos, indicando
expressivo índice de relações consensuais. Porém, o caso de não haver identificação da
paternidade na documentação não anula a possibilidade da presença do pai no convívio com
seus filhos, muito menos da existência de uma relação familiar estável. O casamento
oficializado pela igreja não foi um ritual comum entre os escravos de São Raimundo Nonato,
sendo que os registros localizados por esta pesquisa apontam para um pequeno número de
uniões formais envolvendo escravos. No entanto, o contato cotidiano entre esses sujeitos
permitiu o estabelecimento de laços de parentesco ritual (casamento e batismo) em diferentes
configurações, a saber: escravos de mesma propriedade estabeleceram compadrio ou casaram-
se; muitas vezes, escravos de diferentes propriedades construíram tais relações, e ainda há
casos de parentesco entre escravos e libertos, e com pessoas de condição livre. Esse
19
considerado grau de mobilidade espacial10
permitiu a construção e manutenção das redes de
convívio entre os diferentes segmentos sociais, garantindo, através dos vínculos parentais,
arranjos de sobrevivência e de solidariedade que, por sua vez, possibilitaram a formação de
comunidades escravas11
.
Ocorre que a diversidade de configuração das relações de parentesco e de formação
dos núcleos familiares aponta para uma dificuldade em definir o conceito de “família escrava”
dentro desse estudo. Em estudo sobre a História da vida familiar e afetiva de escravos na
Bahia do século XIX, Isabel Cristina F. dos Reis (2003) identifica relações familiares que
envolviam escravos e libertos, e em alguns casos, livres pobres. Desse modo, a autora propõe
uma ampliação do conceito de “família escrava” para “família negra”, por considerar que as
relações familiares envolviam os diferentes segmentos sociais. Porém, em se tratando das
famílias de São Raimundo Nonato, foi possível identificar vestígios de relações familiares
entre escravos, mas também composições de famílias que envolviam escravos, livres e
libertos.
Grande parte das trajetórias apresentadas nessa pesquisa corresponde a famílias
compostas por mães cativas e filhos livres, que também constituíam um tipo de estrutura
familiar (SAMARA, 1983, p. 36). Além disso, foram localizados casos de uniões familiares,
em que, pelo menos, um dos cônjuges era livre ou liberto. Outra questão vinculada à categoria
de família está na ampliação do conceito de família, que, nesse caso, é entendido para além de
um modelo familiar composto pela figura do pai, da mãe e de seus filhos, e reconhecido
apenas a partir da oficialização do matrimônio pelo casamento religioso. Nesse caso, pela
complexidade dos vínculos familiares envolvendo escravos, livres e libertos, entendemos que
as relações familiares são de todo modo multifacetadas, não cabendo o enquadramento dessas
estruturas numa única categoria.
10
O conceito de mobilidade adotado nessa pesquisa segue as referências de Hebe Mattos (1998, p. 29) quando
destaca a mobilidade como um recurso “comum a ricos e pobres, mesmo considerando-se as expressivas
diferenças que a posse de alguns escravos ou outros bens móveis podia representar nas oportunidades abertas na
reinserção social”. Essa mobilidade espacial reflete ainda na vida dos escravos através da conquista de certa
autonomia, que é dada justamente pelas relações sociais e comunitárias mantidas com escravos de outras
propriedades (Ibdi, p. 65). 11
Sheila de Castro Faria, em trabalho intitulado: Identidade e comunidade escrava: um ensaio (2007, p. 144),
destaca que “poucas regiões poderiam ter condições de criar uma singular comunidade escrava. A maioria,
entretanto, principalmente pela grande variedade de origem e de heranças de seus membros, criou comunidades
separadas, nem sempre oponentes ou inimigas, mas que estabeleciam, por meio da vida no cativeiro,
solidariedades, espírito de grupo, identidade e proteção mútua. É claro que tal possibilidade estava mais
acessível para escravos de grandes unidades produtivas, mas dela poderiam participar os de outros senhores,
inclusive dos pequenos”.
20
Considerações feitas, cabe registrar os caminhos percorridos por esta pesquisa e a sua
relação com o conjunto de fontes. Como mencionado anteriormente, o foco principal deste
estudo é examinar as relações de parentesco entre escravos, livres e libertos na vila de São
Raimundo Nonato, na segunda metade do século XIX. As fontes utilizadas para essa
investigação são registros paroquiais (casamento, batismo), localizados na Cúria Diocesana de
São Raimundo Nonato; e documentos cartoriais (inventários post-mortem, cartas de alforrias,
registros de casamento, etc.), que se encontram divididos entre o Cartório do 1o
Ofício e
Fórum da Cidade. Para o acesso a documentação, contamos com o apoio da Professora Nívia
Paula de Assis, que, através de parceria mantida por meio do Programa de Educação Tutorial
(PET) desenvolvido pela UNIVASF, garantiu apoio nas investidas para conseguirmos ter
acesso às fontes.
Após a autorização para manusearmos a documentação, deparamo-nos com um vasto
acervo documental em péssimas condições de conservação e de armazenamento. Faz-se
necessário destacar que não há um arquivo público onde esta documentação possa estar
devidamente organizada, o que exigiu, dessa pesquisa, um cuidadoso trabalho para colecionar
as inúmeras peças desse complexo mosaico da vivência escrava em São Raimundo Nonato.
Com a documentação totalmente desorganizada, inicialmente, cuidamos de classificar todos
os registros do período em estudo, para, em seguida, fotografá-los e só a partir daí inserir as
informações pertinentes à investigação em fichas. Dessas fichas, geramos um banco de dados
em arquivo de Excel, onde armazenamos todas as informações contidas nos diferentes tipos
de documentos. A partir desse banco de dados, podemos tomar uma noção quantitativa das
fontes, para que, em seguida, fosse possível traçar um perfil populacional da época, bem
como identificar o número de batismos e casamentos com a situação jurídica dos sujeitos
envolvidos nesses rituais (pais, afilhado, padrinhos, cônjuges, testemunhas, proprietários,
etc.).
Esse processo tornou-se fundamental para a interpretação das práticas de sociabilidade
entre homens e mulheres escravizados, livres e libertos, visto que não há, até então, nenhuma
pesquisa dessa natureza na região em estudo. Contamos, portanto, com um banco de dados
contendo informações sobre batismo, casamento, óbito, inventário post-mortem e cartas de
alforrias envolvendo a população livre e escrava de São Raimundo Nonato entre 1871 e 1888,
e a partir do cruzamento das informações dessas fontes, com o apoio da historiografia da
escravidão no Brasil, buscamos identificar as estratégias utilizadas por esses sujeitos
21
escravizados e livres quanto ao estabelecimento do compadrio, a fim de interpretar os
significados dessas relações para ambos os grupos.
Devido às condições físicas das fontes, muitos documentos não traziam as
informações completas ou não permitiam a leitura completa de suas informações. Como esses
documentos estavam muito comprometidos fisicamente, em alguns casos, a leitura era quase
que impossível, e quando ocorria, demandava bastante tempo e cuidado. Por não estarem
organizadas, classificadas e em estado de conservação, algumas fontes consideradas
importantes para esse estudo como testamentos, livros de compra e venda, listas de matrícula
e classificação de escravos, não puderam ser analisadas, pois seria necessário maior tempo
para realizar essa investigação.
Em busca de mais vestígios que revelassem a teia das relações entre os sujeitos da
pesquisa, realizamos visita ao Arquivo Público do Estado do Piauí, na capital Teresina, porém
só localizamos um “rastro” da existência das listas de classificação dos escravos de São
Raimundo Nonato, uma correspondência datada de 1886, comunicando o recebimento das
listas de matrícula e classificação dos escravos de São Raimundo Nonato. As informações do
Recenseamento Geral do Império de 1872 também foram relevantes para a compreensão da
formação populacional da região no período em estudo. Desse modo, todas as fontes
utilizadas nesta pesquisa assumiram papel fundamental para o entendimento das vivências
cotidianas envolvendo escravos, livres e libertos.
Dentre toda a documentação, os registros de batismo tornam-se significativas para a
análise dessas relações, especialmente porque a imposição do batizado ao recém-nascido
tornou-se prática corrente no mundo católico a partir do século XVI, como resposta ao avanço
das religiões protestantes na Europa. Em Portugal e em suas colônias, esse registro assumiu
grande importância, pois o regime do padroado, ao transformar a hierarquia eclesiástica em
burocracia do Estado, facultava aos livros paroquiais o duplo status de registro religioso e
civil. Remetendo-nos à escravidão, tal qual uma escritura pública, o batismo assegurava a
propriedade do cativo ao proprietário (LIMA e VENÂNCIO, 1991, p. 26-34). Diferentemente
da documentação alojada no Fórum da cidade, os livros contendo as atas de batismo tanto de
pessoas livres, como de escravas, encontram-se classificados e acondicionados em condições
que lhes garantam melhor conservação. No entanto, o procedimento adotado foi o mesmo, a
saber: leitura minuciosa das atas de batismo, anotações dos dados em fichas, seguido de
fotografia dos documentos. Apesar de não possuir maiores informações da época, os registros
fazem menção ao nome da criança, da mãe, do pai em poucos casos, da fazenda e do
22
proprietário dos escravos, dos padrinhos e da condição jurídica dos mesmos, as datas de
nascimento e de batismo e, na maioria dos casos, a cor da criança.
O método ligação nominativo das fontes foi utilizado como suporte metodológico para
identificar as trajetórias dos sujeitos pesquisados neste trabalho, e tentar relacionar com os
dados demográficos, comparando as informações para, então, tentar compreender as teias das
relações entre escravos no sertão piauiense. O cruzamento de informações contidas em
diversas fontes é fundamental para aprofundar para a “[...] compreensão dos sentidos que os
negros conferiam às suas próprias experiências” (REIS, 2010, p. 117). O apoio metodológico
para esta pesquisa está nas experiências de análises das relações familiares entre escravos,
livres e libertos de trabalhos renomados na historiografia da escravidão como o de Stuart
Schwartz (1988), que se dedica ao estudo da formação da família escrava através do
matrimônio e do compadrio, utilizando, como fonte principal, os documentos paroquiais e
adotando o cruzamento de informações como método de análise. Outro trabalho que servirá de
apoio é o de Manolo Florentino e José Roberto Goés (1997), que tratam da família escrava e
do parentesco entre escravos como um meio para conseguir “a paz nas senzalas”12
.
É importante ressaltar que pretendemos trilhar, neste trabalho, os caminhos apontados
pela História Social, tentando realizar uma análise da vida cotidiana através das micro-
histórias desses homens e mulheres escravizados. Desse modo, a reconstituição de trajetórias
individuais e familiares é fundamental para a compreensão das alianças de parentesco e dos
seus significados quanto ao arranjo de sobrevivência.
A estruturação do texto dá-se em três capítulos. No primeiro capítulo, apresentaremos
o contexto espacial e breve histórico da ocupação do Piauí até chegarmos ao Município de
São Raimundo Nonato, na época, vila de mesmo nome, procurando destacar aspectos da vida
material e social da época. É necessário ressaltar que a região possuía uma dinâmica
econômica marcada pelo predomínio de atividades agrícolas de subsistência e que, apesar de
ter vivido um momento de grande influência no desenvolvimento com o criatório de gado, no
final do século XIX, a pecuária atravessou forte crise econômica. Ainda neste capítulo,
realizaremos um estudo sobre a estrutura de posse escrava distribuída entre as principais
fazendas da região, para compreendermos como se constituía a hierarquia das relações entre
12
Apesar de terem desenvolvido suas pesquisas em regiões caracterizadas pela economia agroexportadora, de
grandes plantéis e de expressiva posse de escravos, os trabalhos desses autores são referência no sentido
metodológico, mas também são importantes para compreendermos as singularidades das relações escravistas
existentes nas diferentes regiões brasileiras.
23
homens livres e escravizados. Percebemos que, apesar da maior posse escrava concentrar-se
entre poucos proprietários, havia um número considerável de proprietários de terras com
posse média de dois escravos. Contudo, quando analisamos as diversas composições de
patrimônio e de atividades econômicas através dos inventários, identificamos o escravo sendo
listado juntamente com outros bens inventariados, como sendo um dos “bens” de maior valor
em uma propriedade. Essas questões são elencadas no decorrer do capítulo para que se possa
compreender o lugar social dos escravos do Sertão piauiense.
No capítulo dois, procuraremos interpretar as alianças entre escravos, livres e libertos,
na tentativa de compreender a importância dos arranjos familiares para a manutenção e
ampliação da comunidade escrava. Através do cruzamento de fontes, identificaremos diversas
formas de organização familiar existentes entre os escravos da Vila de São Raimundo Nonato,
e relações que através do matrimônio oficializado pela Igreja, se estabeleceram entre os
cônjuges e as testemunhas dos casamentos. Apresentaremos as uniões oficializadas pela igreja
e as redes de sociabilidade tecidas através das testemunhas escolhidas no ato ritual do
casamento religioso. Percebemos um padrão de testemunhas em condição jurídica livre, e ao
mesmo tempo, a predominância de algumas pessoas como testemunhas das uniões.
Abordaremos ainda, a respeito das taxas de ilegitimidade entre os filhos das mães cativas, das
redes de compadrio tecidas a fim de garantir proteção aos mesmos.
E, por último, o terceiro capítulo traz algumas trajetórias individuais e familiares de
escravos, livres e libertos que desenvolveram estratégias de parentesco dando origem a
extensas redes de proteção e solidariedade. Procuraremos compreender o compadrio no
conjunto das relações entre senhor e escravo, mas, especialmente, buscaremos identificar os
condicionantes e mecanismos das escolhas dos cativos por padrinhos de condição jurídica
livre, como também a opção por manter as alianças de parentesco com outros escravos,
muitas vezes, pertencentes a outras propriedades.
24
2 FORMAÇÃO HISTÓRICA DE SÃO RAIMUNDO NONATO – PIAUÍ
2.1 A ocupação do Piauí
Durante muito tempo, a historiografia piauiense destacou que a ocupação do território
do Piauí partiu do interior para o litoral, com a justificativa do desenvolvimento da pecuária
que ocorria no interior e, portanto, distante da costa litorânea. Considerando uma ocupação
tardia em relação às demais províncias, alguns estudos apontam as primeiras manifestações de
ocupação no século XVII, como consequência das primeiras expedições militares e religiosas
na região13
.
Após inúmeras polêmicas em torno dessas afirmativas, sabe-se que a ocupação das
terras piauienses, então, correspondentes à parte do “Sertão de Dentro” (ABREU, 1969), foi
impulsionada pelo desenvolvimento da pecuária, responsável pelas instalações dos primeiros
currais na costa do território, seguindo pelos rios Piauí, Canindé e Gurguéia. Por Carta Régia
do rei de Portugal ,em 1758, o “Sertão de Dentro”, densamente povoado por inúmeras tribos
indígenas14
, passou a ser Capitania de São José do Piauí.
Foram as fazendas de gado que definiram o processo de ocupação e distribuição das
terras piauienses. Com interesse de povoar e impulsionar o comércio de exportação no sertão
do Nordeste, a Coroa Portuguesa, tão logo, incentivou a ocupação da região através da doação
de extensas áreas. Entre os séculos XVII e XVIII, as expedições de bandeirantes e sertanistas
associadas à doação de lotes de terras, através da concessão de sesmarias, impulsionaram a
ocupação do Piauí e, ao mesmo tempo, a existência predominante dos latifúndios. Domingos
Afonso Mafrense, o Domingos Sertão como ficou conhecido, foi o maior beneficiado com as
concessões de sesmarias na época, além de contribuir com a ocupação territorial do Piauí, este
também foi responsável pela introdução do trabalho escravo na sociedade em processo de
formação (LIMA, 1999).
Acompanhado de Domingos Sertão, o expedicionário Francisco Dias D’Ávila deu
início ao processo de ocupação das terras localizadas entre os rios Canindé e Gurguéia. Os
13
Ver entre outros: BRANDÃO (1999), MOTT (2010), COSTA FILHO (1988), GORENDER (1978). Estes
trabalhos clarificam a respeito da ocupação do território piauiense e, principalmente, da presença do trabalho
escravo na atividade pecuarista. 14
Alguns autores apontam quatro etnias que povoavam as terras piauienses: Jê, Caraíba, Cariri e Tupi. Ver:
Baptista (2009), Dias (1999), Machado (2002) e Oliveira (2007) distinguem quatro etnias para o Piauí: Jê,
Caraíba, Cariri e Tupi.
25
D’Ávila pertencentes à Casa da Torre da Bahia15
ocuparam estas terras com o intuito de
expandir as fazendas de criação de gado (OLIVEIRA, 2007). A partir desse momento, ocorreu
a implantação dos currais e fazendas com base na expansão pastoril para a criação do gado
vacum.
Entre os maiores sesmeiros em terras piauienses, destaca-se ainda a figura do
bandeirante paulista Domingos Jorge Velho, que participou da ocupação das terras entre os
rios Canindé e Poti, e, assim como os demais, foi também responsável pelo povoamento do
Piauí, desencadeando a implantação de fazendas de gado em toda região.
Nesse período, toda essa área era ocupada por povos indígenas que se tornaram os
primeiros homens a trabalharem no regime de escravidão no Piauí. De acordo com Brandão,
desde a instalação dos primeiros currais na Província do Piauí já se utilizava mão de obra
escravizada, no caso dos indígenas:
Além de peças militares, eram os índios que praticavam a agricultura de
subsistência para o terço. Outra parcela dos índios apresados era
comercializada em outras capitanias para o trabalho na lavoura. O tráfico de
peças do sertão foi, no século XVII e XVIII, empreendimento bastante
lucrativo. As irregularidades no abastecimento e o alto preço do negro
abriam perspectivas para o tráfico de índios capturados (BRANDÃO,
1999, p. 116).
Devido à guerra travada entre devassadores do território e indígenas, no final do
século XVIII, o contingente da população nativa entrou em declínio. Segundo Ana Stela de
Negreiros Oliveira, em pouco mais de dois séculos de contato entre os povos nativos e o
colonizador, dispersou-se praticamente toda a população indígena.
Inicialmente aconteceu a ocupação daquela área, com a chegada dos
sertanistas provenientes do São Francisco, durante o final do século XVII e
início do XVIII, dispersando a sua população nativa; provavelmente os
remanescentes dos agricultores-ceramistas. Para as etnias que sobreviveram,
restou somente buscar áreas de refúgio para serem incomodadas novamente
pelo processo de ampliação da área das fazendas de gado no século XVIII ou
integrar-se ao processo colonial (OLIVEIRA, 2007, p.26).
Surgia, porém, a necessidade de continuar abastecendo a província com mão de obra,
nesse caso “o escravo continuou sendo adquirido pelos proprietários, nos núcleos de produção
15
Segundo ALVES (2003, p.58), a Casa da Torre foi fundada pela família Ávila, e tinha como principal objetivo
financiar expedições realizadas por aventureiros que desbravavam os Sertões. “Após chegar às novas terras, os
Ávila requeriam-nas através de sesmarias que normalmente abrangiam cada uma, extensões de 10 a 12 léguas
em quadro.”
26
pecuarista, competia ao escravo à construção e manutenção da infra-estrutura como casas,
aguadas, currais e roça (BRANDÃO, 1999, p. 45). Odilon Nunes (1972, p. 215) também
salienta a importância da utilização de mão de obra escrava no Piauí, “o negro ajudava o
senhor ou o vaqueiro no custeio de gado, quanto nas vaquejadas, ou em buscas das feiras;
tratava das cavalgaduras, dos arreios, dos currais, e cercados, chiqueirava as miuças, separava
os bezerros das vacas, faziam a ordenha, cuidava das bicheiras [...]”. De acordo com os dados
contidos nas Listas de Classificação de 1873 da Província do Piauí, a maioria dos
trabalhadores cativos desenvolviam atividades ligadas à agricultura e à pecuária, apesar de
existirem outras atividades “desde as mais simples como roceiro, lavrador, doméstica até as
mais especializadas como carpinteiro, ferreiro, entre outras”, a pecuária e a agricultura
predominavam no campo das atividades que mais utilizavam a força de trabalho escrava
(SILVA, 2003, p. 51).
Como mencionado anteriormente, a criação de gado tornou-se o carro-chefe da
reocupação do território e, em seguida, a principal atividade econômica da região da Província
do Piauí. Segundo Mott (1985, p.9), “trata-se de uma região onde a unidade de conquista e
povoamento foi a fazenda de gado, cristalizando-se toda a vida sócio-econômica em derredor
da pecuária extensiva, qualquer estudo sobre a história do Piauí deve iniciar-se a partir dos
currais de criatório”. De acordo com Caio Prado Júnior, as fazendas da Província do Piauí
chegaram a ser as mais importantes fornecedoras de gado da região Nordeste, estabelecendo
aquecido comércio com a Província da Bahia, principal consumidora do gado e fornecedora
de mão de obra escrava para o abastecimento das fazendas da província do Piauí (PRADO
JUNIOR, 2006, p. 66).
27
FIGURA 02 – Sudeste da Capitania do Piauí. Detalhe do “Mappa geographico da capitania do
Piauhy, e parte das do Maranhão, e do Gram Pará”. Data provável de levantamento 1816.
Fonte: Apud NEGREIROS, 2012, p. 53.
Paralelas à criação de gado, outras atividades econômicas eram desenvolvidas em toda
a província, a exemplo do cultivo de algodão, das lavouras de cana mais ao norte, do
extrativismo vegetal e também das atividades domésticas. Segundo Miridan (2005, p. 147),
[...] existiam também as tendas de carpintaria e de ferreiro com seus
equipamentos, os currais, os cercados (para a separação das reses, para a
engorda de outras, para reserva de pastos na época da seca, etc.), as lavouras
de cana, em geral nos brejos, as lavouras de’legumes’ (designação à
mandioca, feijão, abóbora, melancia, fava, melão são-caetano, nos locais
mais frescos), as lavouras ’secas’, as roças de arroz, as plantações de algodão
e mais adiante o açude.
Ainda sobre os tipos de moradias, a autora descreve uma propriedade como um
conjunto complexo que está ligado ao sistema produtivo adotado na região. Além da casa de
morada do proprietário da “fazenda”, existiam as casas menores, próprias dos agregados e
outros moradores, além da “casa de forno” ou “casa da farinhada” um pouco mais distante da
casa do proprietário. Durante a leitura dos inventários consultados para esta pesquisa, as casas
tanto do proprietário de terras como as demais moradias eram descritas como sendo muito
28
simples, algumas com “paredes de barro e madeira” e “coberta de telha”. Mais adiante,
trataremos sobre essas residências descritas no interior dos inventários.
Até o século XVIII, a criação de gado bovino atingiu o mais alto nível de produção,
além da Bahia, as boiadas eram enviadas para o Maranhão, Pará, Pernambuco e Minas Gerais
(BRANDÃO, 1999, p. 63).
O Sudeste do Piauí encontrava-se na rota dos dois pontos de irradiação da
pecuária para o interior do Brasil, a corrente baiana e a pernambucana, assim
como, dos caminhos do gado do sertão para distribuição na Bahia e Minas
Gerais (OLIVEIRA, 2007, p.26).
Ainda no início do século XVIII, com a morte de Mafrense, os jesuítas passaram a
administrar as 39 fazendas deixadas pelo bandeirante. Esse fato marcaria, então, o início do
que seria considerada uma segunda fase de povoamento vivido pelo Piauí, momento marcado
por inúmeros conflitos entre o colonizador e os grupos indígenas e pelo abandono de
inúmeras fazendas.
Durante essa fase, ocorreu o abandono de diversas fazendas pelos moradores
locais e, depois, o despovoamento da região, com a dispersão dos povos
indígenas para que ocorresse um repovoamento colonial e a construção
geográfico-social daquela área. Esta fase se prolonga até o início do século
XIX, com o controle da região pelos colonizadores e a total dispersão dos
povos indígenas (OLIVEIRA, 2007, p. 26).
De acordo com Bastos (1994), a maior importância da Companhia de Jesus no Piauí
está relacionada à atuação de padres do colégio da Bahia como testamenteiros de Domingos
Afonso Mafrense. Em 1711, esses padres foram transferidos para o Piauí, onde o Pe. Miguel
da Costa foi designado como administrador das fazendas de Mafrense.
Em testamento declarou-se senhor das terras piauienses, tendo-as ocupado
com gados, trabalhadores escravizados e o mais que fosse necessário. Em
junho de 1711, o sertanista faleceu em Salvador, Bahia, deixando as posses
para os padres inacianos. Ao patrimônio, herdado, foram acrescidas outras
fazendas, totalizando 39 unidades produtivas, todas assentadas no trabalho
escravo (LIMA, 2006, p. 434).
Durante o período em que estas fazendas estiveram sob a administração da Companhia
de Jesus no Piauí, o colégio da Bahia recebeu sustento a partir da produção de gêneros
alimentícios das fazendas. Segundo Nunes (1975, p. 36), “as duas mais importantes fundações
culturais do Brasil colonial, o colégio da Bahia e o noviciado de Jequitaia, passariam a ser
financiados pela economia piauiense”.
Após quase cinco décadas de administração destas fazendas, por meio de alvará régio
datado de três de fevereiro de 1759, a Coroa Portuguesa mandou expulsar os jesuítas de todos
29
os seus domínios, resultando no confisco das terras, do gado e dos escravos (ALENCASTRE,
2005). Com o intuito de viabilizar a administração das fazendas, a Coroa Portuguesa realizou
a divisão das propriedades em três inspeções, Nazaré, Piauí e Canindé, sendo que, para cada
uma delas, seria escolhido um administrador (LIMA, 2005, p.24).
Estas terras passaram a ser chamadas de “Fazendas do Fisco” e, segundo Solimar
Lima, “toda a estrutura produtiva estava assentada no trabalho escravo e voltada, de forma
dominante, para a produção de mercadorias, e era esse caráter da produção que determinava o
nível das contradições sociais” (Idem, 2005, p. 29).
É dentro desse mesmo contexto que surgiram o que podemos chamar de duas
categorias de escravos, a saber, aqueles pertencentes à Coroa, então denominados “escravos
do Fisco” (BRANDÃO, 1999, p. 158-159), e aqueles que seriam cativos de particulares.
Segundo Tanya Brandão, além de pertencerem a grupos diferentes, estes homens escravizados
ainda receberiam tratamentos diferenciados. Embora um expressivo grupo da historiografia
piauiense considere que havia certa diferenciação no tratamento de escravos da Nação,
Solimar Lima esclarece que, assim como cativos de propriedades particulares, os homens
escravizados nas Fazendas da Nação viviam numa atmosfera de fortes tensões sociais, onde a
violência seria o principal meio de controle destes trabalhadores (LIMA, 2006, p. 433-457).
Luiz Mott, ao tratar sobre o escravismo nos sertões pecuaristas, menciona a respeito
do tipo de tratamento dispensado aos escravos destas áreas em comparação aos grandes
plantéis do Sul do país. O autor salienta que:
Embora havendo no Piauí, aliás, como no resto do país, resistência e revolta
por parte da escravaria contra a servidão, parece que as condições e relações
de trabalho, assim como as perspectivas de alforria eram muito melhores na
zona pecuária do que nos engenhos de açúcar (MOTT, 2010, p. 85).
Alinhou-se a essa ideia de diferenciação do modo de vida dos escravos nos sertões, o
trabalho de Miridan Falci. A escravidão, no Piauí, é apresentada, na obra da autora, como
sendo peculiar, na medida em que há a coexistência do trabalho livre com o escravo. Carla
Aparecida (2003, p. 36), ao estudar a escravidão na Província do Piauí a partir das listas de
Classificação, ressalta que “os trabalhadores livres e cativos plantavam, colhiam, serviam a
mesa, cuidavam dos cavalos e tocavam música em ocasiões festivas. Portanto, as fazendas
produziam para o mercado interno, mas uma parcela dos seus trabalhadores se ocupava de sua
manutenção”.
Apesar das possibilidades de estreitamento de relações entre homens livres e escravos,
muitas vezes permitidas pelo modelo econômico característico das pequenas propriedades,
30
acredita-se que a escravidão no sertão do Piauí e, especialmente o tratamento recebido por
homens e mulheres escravizados, não foi diferenciado em relação às demais regiões do país.
A respeito da importância da mão de obra escrava nas fazendas pecuaristas, Miridan
Falci, ao realizar uma comparação do percentual de valores dos bens das Fazendas Nacionais
destaca a importância e o valor dos escravos das Fazendas da Nação em relação a outros bens,
considerados como um patrimônio financeiro, os escravos chegaram a ser “o mais valioso
bem das Fazendas Nacionais” 16
(FALCI, 1995, p. 19-20).
No final do século XVII, as 129 fazendas existentes na Capitania do Piauí
concentravam 441 pessoas “entre brancos, negros, índios, mulatos e mestiços [...]” (COUTO
apud GORENDER, 1978, p. 415), desse número 47% da população das fazendas era de
negros, constituindo a principal mão de obra dessas fazendas.
De acordo com o primeiro censo setecentista elaborado por Pe. Miguel de Carvalho
(apud FALCI, 2000, p. 264), em Descrição do Sertão do Piauí, a população escrava do Piauí
correspondia a 64,51%, distribuída entre 74,28% de negros e 22,85% de índios. No ano de
1855, a Província do Piauí contava com um total de 13.966 cativos, que constituíam
aproximadamente 7% da população total. No Recenseamento Geral do Império (1872), a
população escrava do Piauí era de aproximadamente 23.795 habitantes, sendo que, em relação
à população total, o percentual era de 11,8% somando aproximadamente 125.818 habitantes.
Devemos observar que, em grande número, os cativos que viviam em solo piauiense eram
adquiridos através do comércio interprovincial, sobretudo, com Pernambuco e Bahia:
Os escravos negros entraram no Piauí pela estrada que ligava a feira de
Capuame, na Bahia, à vila da Mocha (Oeiras). Alguns escravos também
foram trocados por bois em Minas Gerais, mas em pequeno número. O Piauí
nunca fez imigração direta da África. A maior parte veio do Maranhão,
Pernambuco e Bahia (BASTOS, 1994, p. 200).
Para Miridan Falci, os dados revelam a importância da mão-de-obra escrava para a
produção nas fazendas particulares e da Nação, o escravo: “Era o roceiro, o vaqueiro, o
fábrica, o do serviço (nos arrolamentos das fazendas de gado), mas era também o mestre-
ferreiro, o alfaiate, o ourives, o pedreiro, o oleiro, ou o tecelão nos pequenos núcleos
populacionais” (FALCI, 2000, p. 266).
16
De acordo com a autora. “Os escravos representavam entre 40 e 60% do patrimônio das fazendas... O preço de
um escravo, ou seja, entre 400 e 500 mil réis, equivalia ao preço de 100 cabeças de gado vacum ou 50 cavalos ou
6 jumentos”. (2005, p. 185).
31
Tânya Brandão (1999) também considera as diferenças de tratamento da escravaria
entre as fazendas públicas e privadas do Piauí. Em seu trabalho sobre a participação do
escravo na formação social do Piauí, a autora chega a inferir que os escravos das fazendas
públicas teriam algumas regalias em relação aos escravos de fazendas privadas, destacando
ainda o absenteísmo como uma das características marcantes das propriedades, onde a relativa
ausência dos administradores da Coroa nas “Fazendas do Fisco” resultava em relativa
autonomia dos escravos. Em se tratando da escravaria privada, esta sofria com a vigilância e
frequente violência dos seus proprietários.
Solimar Lima, em Braço Forte, salienta que as fazendas públicas do Piauí eram
marcadas por um sistema de vigilância e de controle em que os castigos e a violência
frequente garantiam a estabilidade da administração das fazendas.
A violência foi o mecanismo principal de controle dos trabalhadores
escravizados nas fazendas públicas do Piauí. A violência efetiva ou latente
garantia a dominação escravocrata, aguçava as contradições sociais e
reproduzia-se nas relações pessoais dos trabalhadores escravizados, que se
mostravam indissociáveis ao contexto escravista. O território era marcado
por permanentes tensões sociais (LIMA, 2005, p. 156).
Considerando a complexidade do sistema escravista no Brasil, é importante lembrar
que as relações entre senhores e escravos apresentavam-se como uma via de mão dupla.
Afinal, considera-se que esses homens e mulheres escravizados possuíam seus mecanismos de
resistência e de sobrevivência. A historiografia da escravidão no Brasil vem apresentando
inúmeros indícios das possibilidades da conquista de autonomia desses escravos. Nessa
pesquisa, o termo autonomia é utilizado na perspectiva do escravo como “ator social”, bem
como das estratégias utilizadas por este para escapar do domínio dos senhores. Segundo
Maria Helena Machado:
Autonomia, sem dúvida, relativa, forjada nas relações orgânicas entre
senhores e escravos, ocupando as brechas do domínio hegemônico da
camada dominante. Colocando-se a questão de outra maneira, pode-se dizer
que a autonomia do escravo é o espelho dos limites da dominação senhorial
(MACHADO, 1987, p. 20).
Neste sentido, acredita-se que esses escravos utilizavam essas “brechas” para
alcançarem as possibilidades de formar família, estabelecer as relações de parentesco e, até
mesmo, de conquistar a liberdade. Portanto, procuramos entender o escravo do sertão
piauiense, mais precisamente de São Raimundo Nonato como um protagonista dentro das
relações entre senhores e escravos sertanejos.
32
2.2 A vila de São Raimundo Nonato
Considerando esse contexto de ocupação territorial, de implantação da pecuária
associada ao uso da mão-de-obra escrava, surgiram as fazendas do Sudeste do Piauí. Nesse
período, a irregularidade das chuvas já era um agravante na região do sertão, o que provocou
a busca pelas margens dos rios para a instalação dos primeiros currais, nesse caso, instalados
às margens do Rio Piauí, a exemplo da fazenda que seria sede do distrito eclesiástico de São
Raimundo Nonato. Com efeito, observa-se no mapa, que segue (figura 2), que a localização
das principais fazendas da região de estudo encontra-se às margens do Rio Piauí.
FIGURA 3 – Sudeste da Capitania do Piauí. Detalhe da “Geographische karte der provinz von
São Iozé do Piauhý”, produzida pelo tenente Joseph Schwarzmann em 1828.
Detalhamento de algumas das fazendas localizadas às margens do Rio Piauhy.
Fonte: Apud NEGREIROS, 2012, p. 54.
O processo de ocupação da região, onde, atualmente, delimita-se o Município de São
Raimundo Nonato, assim como em toda a região Sudeste do estado, esteve fortemente
influenciado pela criação de gado, que impulsionou instalação das primeiras fazendas na
região. Caracterizadas pelas grandes extensões de terras, sem demarcações que
estabelecessem os limites de cada fazenda, “o gado era geralmente criado solto: como não
havia cercas dividindo as fazendas uma das outras, e existindo consuetudinariamente uma
33
légua de terra de uso comum entre as mesmas [...] sucedia certamente que os animais de um
proprietário se misturassem com os dos vizinhos” (MOTT, 2010, p. 67).
Nos registros de inventários post mortem, batizados e casamentos analisados no
decorrer da pesquisa, foram identificadas inúmeras fazendas distribuídas pelas terras que,
atualmente, correspondem a pelo menos 13 Municípios pertencentes ao Território Serra da
Capivara, incluindo São Raimundo Nonato. Dentre as fazendas mencionadas nas fontes
analisadas, com maior frequência, aparecem a Fazenda Jenipapo, Fazenda São Victor,
Fazenda Queimadas, Almas, Massapê, Tigre, Curral Novo e Bom Sucesso.
FIGURA 4 – Sudeste da Província do Piauí, com detalhe da localização das principais
fazendas da região. Provincia do Piauhy: Segundo projecto de nova divisão
do Império. Antonio Cãndido da Cruz Machado 1820-1905 – 1875.
34
Mais tarde, o território foi sendo ocupado por fazendas de criatório de gado, pelo
cultivo da lavoura de subsistência e pelo extrativismo, e brevemente passou a ser Freguesia
Eclesiástica. A Freguesia de São Raimundo Nonato foi criada, em 1832, por meio do Decreto
Regencial 8.832, na Região Confusões, recebendo a denominação de Freguesia Eclesiástica
de São Raimundo Nonato.
Anterior a isso, a área que correspondia à freguesia pertencia aos municípios de Jaicós
e Jerumenha17
. Em 1836, a Freguesia foi transferida para a Fazenda Jenipapo, onde, segundo
Willian Palha Dias, dentre os motivos da transferência, destaca-se a possibilidade de maior
desenvolvimento da região situada às margens do Rio Piauí, pois ali crescia um núcleo de
população vinculada à lavoura e pecuária (DIAS, 2001). Ademais,
A escolha recaiu no lugar Jenipapo, na confluência do Baixão Vereda com a
margem esquerda do rio Piauí. A escassez de água potável, por certo,
concorreu para que fosse escolhido aquele local tão sujeito a constantes
inundações, porém, mais fácil seria, então escapar-se a uma repentina
inundação que aos rigores de uma estiagem cuja duração não se poderia
prever. (DIAS, 2000, p.32).
O Distrito-Freguesia foi elevado à categoria de Vila em 1850, mantendo a mesma
denominação e localização anterior, era marcada pela escassez de chuvas e devido a essa
característica climatológica o modelo de produção agrícola era distinto das áreas litorâneas
sendo, portanto, essencialmente voltado para o abastecimento do mercado interno.
Segundo Ferreira (1959), a vila teve crescimento lento devido as secas decenais e as
dificuldades decorrentes do desconhecimento da população em armazenar a produção agrícola
excedente. Esses fatos contribuíram para que a população, ao ser atingida pelo flagelo da seca,
acabasse por migrar para regiões vizinhas como Bom Jesus e Gilbués, áreas do Sudoeste do
estado. No entanto, a região tornava-se favorável ao desenvolvimento da pecuária extensiva,
que foi, até o final do século XIX, a atividade que impulsionou a economia na época.
Em suas investigações sobre o sistema de ensino e a sociedade no Piauí em meados
dos oitocentos, Alcebíades Costa Filho (2006) ressalta a importância da pecuária na ocupação
do solo piauiense e, principalmente, para a constituição da sociedade piauiense. Para o autor,
a política de desenvolvimento pensada no Império deu-se de forma desigual entre as
17
Segundo Miranda (2004, p. 26-27), “o aldeamento Nossa Senhora das Mercês, dos Jaicós, fundado em 1714,
no lugar Cajueiro – lembrando que esses povos se rebelaram, mas foram novamente aldeados em 1731- deu
origem à cidade de Jaicós.” De acordo com OLIVEIRA (2007, 38). “[...] a vila de Jerumenha, onde teria sido o
antigo Arraial dos Ávila, com quatro moradores na sede e 692, em toda a freguesia, hoje cidade de Jerumenha.”
35
províncias, de maneira que o Piauí já sentia a crise na economia pecuarista logo no século
XVIII.
Problemas como a incapacidade da pecuária piauiense competir no mercado devido à
permanência das técnicas tradicionais de produção foram cruciais para o aumento da crise
econômica que o setor pecuarista sofria naquele momento (COSTA FILHO, 2006, p. 24-25).
Além disso, a Província do Piauí vivenciou um período marcado por inúmeras transformações
ao longo do século XIX, dentre elas ressalta-se a transferência da capital do município de
Oeiras para a Vila do Poti, que, mais tarde, receberia o nome de Teresina.
Mas qual o perfil da população que desenvolvia essas atividades econômicas e
compunha a sociedade São Raimundo Nonato na época?
De acordo com Claudete Dias (2006), estas terras que foram usurpadas dos nativos
pimenteiras, prováveis ceramistas-agricultores, foram distribuídas entre familiares e
companheiros de guerra dos sesmeiros e posseiros conquistadores. Rapidamente, a região foi
ocupada por fazendas de gado e pela lavoura de subsistência, dando origem a uma nova
atmosfera social, composta por famílias de sertanejos criadores de gado vacum e cavalar, e de
agricultores. Ainda, segundo a autora, até 1890 esta era “uma sociedade rústica”, onde:
As famílias de sertanejos viviam nas fazendas comendo o que plantava,
vestindo o que teava com o algodão que produzia, era hospitaleira,
respeitando a Deus, as leis e apego a terra. A convivência familiar ao
contrário de outras regiões era marcada pelo contato amigável (DIAS, 2006,
p. 9).
Este modelo econômico, baseado na criação de gado, durou até o final do século
XIX, quando entrou em decadência, dando lugar à economia extrativista da maniçoba18
, que
chegou a ser o impulso para o crescimento da Vila de São Raimundo Nonato entre o final do
século XIX e início do XX. De acordo com Teresinha Queiroz:
A exploração da maniçoba para a produção láctea tornou-se
economicamente viável com alta nos presos internacionais da borracha na
segunda metade do século XIX, e início do século XX, impulsionado pela
demanda de países industrializados, sobretudo a Inglaterra, constituía o
principal comprador e distribuidor dessa matéria-prima. (QUEIROZ, 2006,
p.33).
Conforme Ana Stela Oliveira (2001 p.73), “a maniçoba no Sudeste do Piauí era
comercializada em Juazeiro na Bahia, e Petrolina em Pernambuco. Estas cidades separadas
18
A maniçoba é uma árvore pertencente ao gênero botânico Manihot Glaziowii, da família euforbiácea, própria
do Nordeste brasileiro, é resistente ao período de seca, produz um látex que, no passado, era extraído durante
todo o ano para a produção de borracha.
36
pelo rio São Francisco estão localizadas a uma distância de 300 quilômetros” da região de São
Raimundo Nonato.
Retomando os passos eclesiásticos, vale ressaltar que, apesar de ter se tornado
Freguesia Eclesiástica e Vila (1832) em breve espaço de tempo, somente em 1876, a Igreja
Catedral de São Raimundo Nonato foi construída, sob a orientação do Padre José Henrique
Cavalcante. Nessa empreitada os habitantes do município colaboraram com as obras da igreja.
Anterior à construção da igreja, os párocos da época realizavam as celebrações, os casamentos
e batizados em atos de desobrigas pelas fazendas da região.
Em conformidade com Willian Palha Dias, nesse período, “os habitantes da região se
constituíam de poucos brancos, alguns mamelucos, negros e índios aldeados e um ou outro
mulato desgarrado de outras freguesias” (DIAS, 2001, p. 10). Para o referido período, não
encontramos nenhum censo populacional da região, porém, quando se analisam os dados do
recenseamento geral do Império de 1872, o número de pardos é superior ao de brancos e
negros, além disso, não se faz menção a nenhum aldeamento indígena para a região de São
Raimundo Nonato no período em questão.
Segundo o censo de 1872, o Piauí contava com uma população de 202.222 habitantes,
sendo que havia 102.276 homens e 99.955 mulheres. Em 1822, o número de escravos em todo
o Piauí era de 21.691, deste total, 1.247 encontrava-se em São Raimundo Nonato (CHAVES,
1998, p. 194-195). Já no recenseamento geral do império de 1872, 50 anos depois, a
população escrava de São Raimundo Nonato apresentava pouco mais de 500 escravos, de um
total de 5.334 habitantes, ou seja, 88% da população eram pessoas livres, em sua maioria era
proprietários de terras.
Na tabela 1 (na sequência), que apresenta a distribuição populacional de São
Raimundo Nonato a partir do recenseamento geral do império de 1872, podemos observar que
o número de habitantes da vila de São Raimundo Nonato já era bastante expressivo. Embora a
população livre seja muito superior a população escrava, o número de cativos para essa região
também era significativo se considerarmos que a produção nas fazendas da freguesia esteve
integrada em grande parte à economia de subsistência e ao mercado interno. Faz-se lembrar
que, apesar da dinâmica econômica desta região não estar diretamente vinculada ao mercado
37
externo, registra-se o uso da mão de obra, mais especificamente da força de trabalho escrava
na pecuária e nas lavouras das fazendas. 19
A tabela também apresenta a classificação da população escrava quanto à sua cor.
Tanto para homens como para mulheres, a predominância é de escravos pretos,
correspondendo a 55,4% do total de escravos. Os 44,6% restantes correspondem a escravos
classificados como pardos. A mesma tabela também apresenta a classificação da população
livre quanto a sua cor, sendo: 62% pardos, 26,6% brancos, 7,9% pretos e 3,6% do total de
livres correspondiam aos caboclos. Essa classificação por cor além de referir às “[...]
diferentes tonalidades da pele ou aos diversos graus de miscigenação” (LIBBY, 2010, p.48), é
indicativa do lugar ocupado por escravos e libertos na hierarquia social.
Ao pesquisar os significados das representações de identidade em Minas Gerais entre
os séculos XVIII e XIX, Douglas Libby (2010) apresenta algumas terminologias utilizadas
para escravos e libertos e os seus possíveis significados. Segundo o autor, o pardo além de
referir-se à tonalidade de pele também faz referência para certo grau de miscigenação, “[...] e,
portanto, quase sempre possui vínculo ancestral ao cativeiro” (p. 40); o preto normalmente
seria utilizado para referir-se a pessoas originárias da África; o caboclo designaria o mestiço
de branco com índio.
Porém, na documentação pesquisada (assentos de batismo, registros de casamento,
inventários post-mortem), encontramos outras terminologias que não aparecem nos dados do
recenseamento para São Raimundo Nonato, é caso das terminologias crioulo e cabra. Ainda
segundo os possíveis significados propostos por Douglas Libby, a primeira “constituía,
sobretudo, uma referência à ascendência africana/escrava e, ao que tudo indica, perpassou
várias gerações ao longo dos períodos Sete e Oitocentistas” (p. 49); já a segunda designaria “à
prole de pais de origens mistas: um pardo (ou, talvez mais precisamente, a um mulato) e o
outro crioulo ou africano (p. 50)”. O autor atenta para as possíveis mudanças que ocorrem em
relação à utilização desses termos ao longo do tempo e do espaço, pois, em alguns
documentos, um sujeito é classificado como pardo, negro, cabra, porém, em outro documento,
essa designação pode ser diferente ou até mesmo nem existir referência à cor. Essa questão
pode ser uma indicação de mobilidade social, pois “quando indivíduos ou até famílias inteiras
passavam de pardos para serem consistentemente referenciados sem qualificação de cor, sem
19
A partir do levantamento documental de inventários post mortem e de testamentos acondicionados no Fórum
da Comarca de São Raimundo Nonato, verificamos registros da existência de escravos entre os bens dos
inventariantes, bem como de atividades desenvolvidas por estes cativos no interior das fazendas.
38
dúvida estamos diante de exemplos de embranquecimento e, portanto, de mobilidade social
ascendente” (LIBBY, 2010, p.51-52).
TABELA 1 – Quadro da População Livre e Escrava de São Raimundo Nonato por sexo e cor,
1872.
Cor
População Livre População Escrava
Homens Mulheres Total Homens Mulheres Total
Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. % Abs. %
Brancos 657 34,1 619 21,5 1276 26,6 0 0,0 0 0,0 0 0,0
Pardos 1016 52,8 1961 68,1 2977 62,0 132 57,9 105 34,7 237 44,6
Pretos 198 10,3 180 6,3 378 7,9 96 42,1 198 65,3 294 55,4
Caboclos 53 2,8 119 4,1 172 3,6 0 0,0 0 0,0 0 0,0
Total 1924 100 2879 100 4803 100 228 100 303 100 531 100
Fonte: Recenseamento Geral do Império, 1872.
Os dados da tabela apresentam um maior número de escravas em relação aos escravos
do sexo masculino. De fato, nota-se que 57% dos escravos da região eram do sexo feminino.
Na matrícula de 1873, dos 25.533 escravos registrados na Província, 50,7% destes eram do
sexo feminino. É importante destacarmos a disparidade existente entre os dados dos diferentes
levantamentos populacionais da época, porém essa maioria feminina ocorre em diferentes
regiões da Província. Esse percentual de mulheres, assim como a diminuição do número de
escravos, pode ser explicado a partir de razões como o fim do tráfico atlântico de escravos
que, segundo Chaves, “estancou o comércio” internacional de escravos, fazendo com que
muitos agenciadores comprassem escravos no Piauí por preços vantajosos (CHAVES, 1998,
p. 195). Conforme o autor, isso encorajou muitos proprietários a comercializarem seus
escravos, especialmente do sexo masculino. Sabe-se que, nesse mesmo período, a produção
de café no Sudeste estava em alta, provocando maior necessidade de mão de obra escrava, e
que foram as regiões de pequenos plantéis que abasteceram os grandes plantéis do Sudeste do
país com a mão de obra que necessitavam naquele momento.
39
GRÁFICO 1 – Número de mulheres distribuído por cor e condição social. Recenseamento
Geral do Império, 1872
Esses números corroboram com a afirmação da pesquisadora Miridan Falci, quando
destaca as especificidades da população piauiense em relação às demais regiões brasileiras
durante o século XIX, salientando a “contínua ampliação de mulheres em relação aos
homens” (FALCI, 2000, p. 264-265). De acordo com a autora:
As mulheres tiveram um importante papel como roceiras, trabalhando nas
roças de algodão e de fumo, nas plantações e corte de cana, nos trabalhos
domésticos como cozinheiras, costureiras, engomadeiras, parteiras e amas-
de-leite, mas ajudaram principalmente no trabalho do algodão (FALCI,
2000, p. 266).
Percebe-se, portanto, que o trabalho da mulher escrava no sertão do Piauí não se
restringia apenas às atividades domésticas, constituíam também força de trabalho nas lavouras
e no artesanato, tornando-se de grande importância na produção local. No que tange à cor,
segundo os dados do recenseamento, 65,3% dessas mulheres escravizadas eram de cor preta, e
34,7% eram pardas. Essa maioria de cor preta corresponde apenas às mulheres, pois entre os
homens escravos a maioria eram pardos, constituindo 57,9% do total de escravos.
40
GRÁFICO 2 – Número de pessoas do sexo masculino distribuído por cor e condição social.
Recenseamento Geral do Império, 1872.
Cabe ainda ressaltar que o número de pardos em relação ao de brancos também é
superior. Em 1872, os pardos livres representavam 62% da população. Entre os escravos, o
percentual de negros era de 55,4% contra 44,6% de pardos escravos. Os 38% da população
parda livre e escrava da Vila de São Raimundo Nonato leva-nos a acreditar no peso que a
miscigenação possuiu no processo de formação social da região. É preciso que se diga que a
miscigenação não é atribuída, aqui, como única explicação para tal indício, porém, de início,
esta é a primeira ideia que surge ao analisar os dados demográficos.
Como podemos perceber, a população de São Raimundo Nonato estava basicamente
composta por escravos e por pecuaristas e lavradores sertanejos que, embora não possuíssem
grandes extensões de terras associadas aos grandes plantéis, utilizavam a mão de obra escrava
em suas fazendas. Conforme informações assinaladas na documentação analisada, a
organização da posse escrava nessa região era composta por homens e mulheres escravizados
nascidos na região ou em áreas vizinhas. Ao analisar a vida escrava no sertão, Miridan Falci
(2000, p. 268-269) reforça que a escravidão em áreas sertanejas possuiu, como principal
especificidade, o nascimento e a multiplicação da população escrava em suas terras “[...] sem
grande interferência do tráfico africano”.
A documentação analisada possibilitou localizar algumas informações a respeito da
estrutura da posse escrava em São Raimundo Nonato, identificando, principalmente, o perfil
dos proprietários e a origem de grande parte dos seus escravos.
41
2.3 A estrutura de posse escrava nos inventários
Sabemos que o uso da mão de obra escrava no Brasil esteve, inicialmente, relacionado
à produção de gêneros desenvolvida em grandes propriedades (plantations) e voltada para o
abastecimento do mercado externo. Por esta razão, durante muito tempo, a literatura da
escravidão no Brasil, comungando com a literatura internacional, dedicou seus estudos às
regiões de economia exportadora e que utilizavam um expressivo número de mão de obra
escravizada, reduzindo, assim, o espaço para os estudos de regiões com pequenos plantéis e
de economia voltada para o abastecimento do mercado interno.
Apesar da predominância dessa visão tradicional a respeito das relações estabelecidas
no sistema escravista, recentemente, diversos estudos sobre escravidão, que têm como foco os
pequenos plantéis voltados para o abastecimento do mercado interno, vêm contribuindo para
ampliar o debate em torno do complexo sistema escravista brasileiro.20
Assim como as
atividades produtoras voltadas para a exportação faziam uso da mão de obra escrava, não
podemos ignorar que, apesar da dinâmica econômica diferenciada dos pequenos plantéis, a
necessidade de escravos para a produção de subsistência e para o desenvolvimento da
pecuária era significativa.
Desse modo, tais especificidades assumidas pelas atividades escravistas não
exportadoras abrem um amplo leque de investigação a respeito da diversidade do uso de mão
de obra escrava nas pequenas propriedades, bem como dos diversos tipos de relações sociais
que podiam ser estabelecidas entre pequenos proprietários e homens escravizados.
A análise que ora se desenvolve tem como objetivo identificar, a partir das
informações contidas nos inventários post-mortem, as principais características dos pequenos
plantéis que possuíam como base econômica as atividades de subsistência e a criação de gado
no sertão piauiense. Além disso, pretende-se verificar o quanto a posse de escravos estava
distribuída entre os proprietários de fazendas, sendo fundamental para compreender se a posse
cativa encontrava-se concentrada entre um grupo de proprietários ou difundida entre
diferentes estruturas de posses. Para isso, utilizamos informações da região em estudo no
período de 1840 (coincide com a transferência da Freguesia para a Fazenda Jenipapo e com o
primeiro registro de inventário encontrado nos arquivos) a 1886 (após a proibição do tráfico
transatlântico de escravos, da Lei do Ventre Livre e já inserido no contexto abolicionista).
20
Ver, entre outros, BARICKMAN (2003) para a Bahia, VERSIANI & VERGOLINO (2003) para Pernambuco.
42
Para este estudo, assim como para as demais análises, foi desenvolvido um banco de
dados em planilha do programa Excel para registro das seguintes informações (a saber, nome
do senhor, data do falecimento e do registro em inventário, localidade a que pertencia, posses
declaradas, quantidade de escravos, bem como a idade, o sexo, a cor, a condição de saúde,
ocupação e valor). Cerca de cento e setenta registros de inventários foram lidos e analisados,
porém algumas informações não constam nos inventários, é o caso da naturalidade e, em
alguns casos, da ocupação do escravo.
Outra questão envolvendo as informações contidas nos inventários diz respeito à lista
nominativa de matrícula dos escravos, que passou a ser uma exigência do Império a partir de
1872. Além do número de matrícula de cada escravo, registrava-se o “nome, sexo, estado,
aptidão para o trabalho e filiação de cada um, se for conhecida” (CONRAD, 1975, p. 369).
Destarte, as listas de matrícula tornaram-se o “principal instrumento legal da propriedade
escrava” (LIMA, 2009, p. 170), e normalmente, as cópias dessas listas eram anexadas aos
inventários post-mortem, possibilitando, ao pesquisador, rastrear a formação familiar escrava
visto que as listas apresentam informações sobre filiação e situação conjugal do escravo. Mas,
infelizmente, poucos inventários possuem a lista nominativa de escravos por propriedade
anexada a eles.
A documentação localizada no Fórum de São Raimundo Nonato permitiu identificar
aspectos importantes a respeito da estrutura da posse escrava nas fazendas do sudoeste
piauiense. Para isso, utilizamos informações de 174 inventários post-mortem acondicionados
no Fórum de São Raimundo Nonato. A seleção dos inventários partiu das condições físicas
que os mesmos possuíam, uma vez que, como já mencionado anteriormente, muitos
documentos estão em péssimas condições, alguns quase que totalmente estragados, devido às
condições inadequadas de armazenamento e conservação, o que dificulta a leitura do
documento.
Após o trabalho de limpeza, classificação e separação dos inventários em condições de
leitura, restaram 174 inventários entre o período de 1840 e 1886 (mostra parcial) para serem
analisados. Deste total, 73 inventários fazem menção à posse de escravos, ou seja, 42% do
total dos documentos analisados. A soma do número de escravos localizados nos inventários é
de 280 escravos, entre homens, mulheres, crianças e idosos, sendo 138 do sexo feminino e
142 homens. Essa paridade entre os sexos é também identificada por Marcelo Matheus ao
estudar a população escrava em Alegrete (RS) para esse período. O autor considera que o fim
43
do tráfico de escravos foi responsável por essa igualdade no percentual entre homens e
mulheres e que se acentuou na década de 1870 (MATHEUS, 2012, p. 87).
Durante a leitura desses inventários post-mortem, identifica-se que, além do número
de escravos que o proprietário possuía naquele momento, são registradas algumas
informações sobre os cativos, como a naturalidade, o sexo, a cor da pele, a idade e a condição
de saúde do escravo, essas duas últimas características eram importantes no momento da
avaliação do escravo, pois isso determinava o valor de compra, venda ou aluguel do escravo.
Os inventariantes21
arrolavam as posses de terras, as casas, o gado vacum e cavalar, metais
como ouro e prata, e até mesmo utensílios domésticos. A igualdade no registro das
informações não era um padrão entre os inventários, alguns possuem todas as informações
mencionadas anteriormente, enquanto outros apresentam apenas o nome, a idade e o valor do
escravo, em poucos casos, fazem menção à profissão do cativo. Percebe-se, portanto, que:
Se havia homens verdadeiramente metódicos na anotação das características
conhecidas dos escravos (e relevantes para o mercado), havia também os que
pareciam ter pressa na execução de seu ofício. Por vezes, nem sequer
anotavam-lhes a idade, um elemento-chave na avaliação deste peculiar bem
(FLORENTINO; GÓES, 1997, p. 44).
A maioria dos inventariados22
possuía mais de uma posse de terra na região, o que nos
leva a considerar que os escravos em sua posse trabalhavam nas diferentes fazendas do seu
senhor. De acordo com Chaves (1998, p.190-194), os “negros escravos eram geralmente
ajudantes dos vaqueiros nas fazendas e sítios piauienses”. Além disso, era costume entre os
proprietários de escravos “[...] alugarem a outras pessoas os serviços deles, auferindo renda
dessa forma”.
Carla Aparecida Silva (2003), ao realizar um levantamento sobre a população escrava
da Província do Piauí a partir das Listas de Classificação entre os anos de 1874 e 1877,
apresenta uma concentração de posse escrava entre os médios proprietários, que possuíam
entre cinco e dezenove escravos, totalizando 42,7% do total de cativos (ver tabela 2). A autora
conclui que, apesar do número de pequenos proprietários ser bastante superior ao de médios e
grandes proprietários, a concentração da maior posse escrava estava entre os médios
proprietários.
21
Responsáveis por declarar os bens pertencentes ao falecido para avaliação em inventário. 22
Pessoas falecidas com bens a serem arrolados em inventários.
44
TABELA 2 - Estrutura da posse de cativos segundo faixa de tamanho dos plantéis.
FTP* Proprietários (%) Escravos (%)
1 1.418 (42,5) 1.418 (11,0)
2 a 4 1.129 (33,8) 3.098 (24,0)
5 a 9 486 (14,5) 3.164 (24,5)
10 a 19 229 (6,9) 2. 926 (22,7)
20 a 39 69 (2,1) 1.869 (14,5)
40 ou mais 8 (0,2) 420 (3,3)
TOTAL 3.339 (100) 12. 891 (100)
Fonte: Lista de Classificação (1874-1977). SILVA, 2003, p. 56.
*FTP=Faixa de Tamanho dos plantéis.
Em seu estudo, a autora em discussão utiliza as Listas de Classificação das seguintes
cidades piauiense: Barras, Batalha, Jaicós, Parnaíba, Piracuruca, Pedro II, Oeiras, Teresina,
União e Valença. Apesar de não utilizar informações a respeito de São Raimundo Nonato, é
possível estabelecer certo comparativo a respeito da posse cativa entre as cidades
mencionadas e a região de estudo escolhida nesta pesquisa. Apesar das informações terem
sido recolhidas em diferentes fontes, no caso desta pesquisa não se utiliza as Listas de
Classificação, verifica-se que o número de pequenos proprietários (possui entre um e cinco
escravos) é superior ao número de médios e grandes proprietários, porém são os médios
proprietários (que possuem entre seis e dez escravos) que possuem a maior concentração de
posse cativa na região. Nesse caso, a distribuição da posse escrava entre os proprietários
sertanejos não apresenta larga diferença entre as cidades mencionadas anteriormente, vejamos
o gráfico abaixo.
45
GRÁFICO 3: Distribuição da posse escrava na Freguesia de São Raimundo Nonato-PI, entre
1840 e 1886.
Fonte: Fórum de São Raimundo Nonato. Inventários 1840-1886.
A maioria dos proprietários do sertão piauiense, de acordo com a documentação
examinada, possuía de um a cinco escravos, esse percentual varia de 57,9% a 88,89% das
propriedades mencionadas. Os dados analisados nos inventários post-mortem de São
Raimundo Nonato, entre os anos 1840 a 1886, demonstram que o maior número de escravos
encontrava-se sob posse de um menor número de proprietários, apresentando uma média de
8,53 escravos por propriedades que possuíam entre seis e dez escravos. Por outro lado,
verifica-se um número maior de proprietários que possuíam entre um e cinco escravos,
perfazendo uma média de 2,58 de escravos por proprietário. Neste sentido, percebe-se um
predomínio do número de pequenos plantéis, apesar da posse cativa ser menor.
No que tange à média de posse escrava para o Piauí, Carla Aparecida Silva (2003, p.
55) apresenta uma média de 3,9 escravos por proprietário, número muito superior a média
para Parnaíba que se apresentou em 2,5 escravos, semelhante à média para São Raimundo
Nonato e inferior a média de posse para a cidade de Teresina, que, segundo a autora, chegou a
5,2 escravos por proprietário.
Para melhor verificar a estrutura de posse escrava, dividimos as informações dentro de
dois recortes temporais, a saber, 1840 a 1863 e de 1864 a 1886, sendo que cada tabela
apresenta os dados dos inventários num espaço de cerca de dez anos. Para o primeiro recorte,
foram encontrados registros de 182 escravos. Percebe-se que, após a década de 1850 –
período em que se registra a proibição definitiva do tráfico de escravos para o Brasil -, o total
de proprietários que possuía entre um e cinco escravos registrou uma queda significativa,
passando de 72,2% para 57,9% das propriedades. O percentual de escravos para essas
46
propriedades também diminuiu, se, no período anterior a 1850, o percentual de escravos era
de 48,15%, na década seguinte, os números são de 27,72% dos escravos.
Essa diminuição do número de escravos por propriedades pode ser explicada a partir
de fatores como a proibição do tráfico atlântico de escravos. Sabemos também que essas
regiões do Nordeste passaram a comercializar mão-de-obra escravizada com as regiões do
Sudeste brasileiro, sobremaneira, pela necessidade que estas tinham de ampliar a força de
trabalho na medida em que a agricultura cafeeira estava em pleno desenvolvimento. Esse
mesmo fator pode explicar o número superior de mulheres escravas em relação ao de homens
na região em estudo.
TABELA 3 – Padrão de Propriedade de Escravos em Inventários de São Raimundo Nonato,
1840-1863
Nº Escravos
1840 - 1851 1852 - 1863
%Prop. %Escr. %Prop. %Escr.
1 a 5 72,2 48,15 57,9 27,72
6 a 10 27,8 51,85 31,6 45,54
11 a 20 - - 10,5 26,73
Total 100 100 100 100
Nº Proporcional 18 19
Nº de Escravos 81 101 Fonte: Fórum de São Raimundo Nonato-PI, inventários post-mortem de 1840-1863. Documentação
não catalogada.
Em contrapartida, é importante salientar que, a partir de 1852 até o ano de 1863,
ocorreu um aumento das propriedades com mais de dez escravos, chegando a 10% do total
das propriedades, registra-se, portanto, uma concentração da posse escrava em plantéis
maiores. A maior posse escrava para o período em estudo foi identificada no inventário de D.
Maria da Conceição, proprietária da Fazenda Sete Lagoas, datado de 1857 com 14 escravos.23
Para o segundo recorte analisado, entre o período de 1864 e 1886, os escravos listados
nos inventários totalizam 107, entre crianças, idosos e adultos. Percebe-se, em relação ao
recorte anterior, que houve, nesse período, o aumento da participação de propriedades que
possuíam entre um e cinco escravos. Por outro lado, o número de propriedades com posse
23
Fórum de São Raimundo Nonato-Pi. Inventário de 1857. Documentação não catalogada.
47
entre seis e dez escravos diminuem, passando para 11,76% entre 1876 e 1886. E a partir de
1864, não há registros de propriedades com mais de dez escravos, demonstrando um período
de desconcentração da posse escrava entre os maiores proprietários, o que confirma a hipótese
de que a participação de pequenos plantéis em São Raimundo Nonato era expressiva para esse
período.
TABELA 4 – Padrão de Propriedade de Escravos em Inventários de São Raimundo Nonato,
1864-1886.
Fonte: Fórum de São Raimundo Nonato-PI, inventários post-mortem de 1864-1886. Documentação
não catalogada.
Essas características em relação à estrutura de posse escrava não são particulares da
região em estudo, existem pesquisas a esse respeito em outras regiões do país que
demonstram configuração semelhante. Marcelo Matheus (2012), em estudo sobre a estrutura
de posse escrava em Alegrete, no século XIX, identifica um predomínio dos pequenos
plantéis em relação aos plantéis com mais de 20 escravos, porém, segundo ele, ocorre uma
concentração da posse entre os grandes proprietários. O autor aponta “que a grande maioria
dos senhores – 70,5% - detinha pequenos plantéis. Por outro lado, apenas 31% dos escravos
estavam nessas escravarias, enquanto os 29,5% de médios e grandes proprietários eram
senhores de quase 70% dos cativos” (MATHEUS, 2012, p.82).
Para São José dos Pinhais, Cacilda Machado (2008, p. 46-47) indica uma
“predominância de senhores de poucos escravos”; em 1827, o grupo de proprietários que
tinha entre um e quatro escravos representava 72% dos domicílios com escravos, enquanto
que o percentual de proprietários com cinco a nove escravos chegava a 24%.
Nº Escravos
1864 - 1875 1876 - 1886
%Prop. %Escr. %Prop. %Escr.
1 a 5 88,89 70,91 88,24 69,23
6 a 10 11,11 29,09 11,76 30,77
11 a 20 - - - -
Total 100 100 100 100
Nº Proporcional 18 17
Nº de Escravos 55 52
48
Ao estudar a organização da posse escrava no sertão do São Francisco entre 1840 e 1880,
Napoliana Santana (2012) registra um decréscimo no número de escravos durante a década de
1860. De acordo com a autora, “essa queda resulta das crises econômicas regionais, da seca e
epidemias que atingiram o sertão” (SANTANA, 2012, p. 28). Essas mudanças ocorridas em
relação à posse escrava podem também está relacionada às secas e epidemias que assolaram o
sertão nordestino, mas, principalmente, resultam das mudanças provocadas pela proibição do
tráfico de escravos e, em seguida, pela Lei do Ventre Livre.
Ainda com relação à representatividade dos pequenos plantéis, Caetano De’Carli, em
estudo sobre a família escrava no Sertão de Pernambuco, identificou que, na segunda metade
do século XIX, o número de pequenos plantéis para essa região “aumentou de 65,4% (de 1800
a 1830) e 61,8% (de 1831 a 1850), para 71,8% entre os anos de 1851 a 1870 e de 71,4% entre
os anos de 1871 a 1887”, concluindo que havia “um número considerável de proprietários de
escravos entre os sertanejos minimamente abastados” (DE’CARLI, 2007, p. 60). Não muito
diferente, verifica-se que a posse escrava no sertão do Piauí encontrava-se disseminada entre
os pequenos proprietários de terras e que a posse de cativos representava uma das riquezas
registradas nos inventários desses sertanejos.
2.4. O homem escravizado tido como “bem” valioso no sertão piauiense
Apesar da média de posse escrava em São Raimundo Nonato representar um número
pequeno se comparado à posse de cativos das plantations, os escravos do sertão estavam entre
os “bens” de maior valor constatado nos inventários. Um exemplo disso encontra-se no
inventário da D. Anna Antunes de Macedo, datado de 1873. Esposa do Capitão Manuel
Antunes de Macedo, Anna Antunes teve sete filhos, João, o mais velho com nove anos e
Maria Rosa, a mais nova dos filhos, com apenas um ano de idade. No inventário, aparece um
total de dez escravos, todos com idade inferior a 25 anos, porém o valor declarado desses
escravos estava acima do valor declarado para os demais “bens” da inventariante. A escrava
Luiza, crioula, com 17 anos de idade, foi avaliada em Rs. 600$000 (réis), e o valor do escravo
Manoel, crioulo, de 15 anos chegou a Rs. 700$000 (réis).
Sobre a valorização do preço de escravos após a proibição do tráfico atlântico, Miridan
Falci (1995, p. 192) explica que:
[...] até o início de 1875 o preço médio dos escravos masculinos, quando
vendidos, era de 556$000, e cinco anos mais tarde passou a um preço médio
49
de 933$000. Os preços das escravas mulheres sofreram também grande
alteração. Se antes valiam, em média, 337$00, agora seu preço se alterará
para 625$00.
Ainda, segundo a autora, essa crescente valorização do preço de homens e mulheres
escravos encorajou muitos senhores do sertão piauiense a venderem seus escravos para fora
da Província (FALCI, 1995, p. 192).
Tânya Brandão, ao tratar do escravo no Piauí, identifica nos inventários que a
aquisição de escravos era uma prática comum e acessível à população em geral. Destarte, ela
relaciona a posse cativa a um instrumento de status social.
Isto significa dizer que não havia uma relação direta com o interesse de
acumulação de bens, mas uma relação muito mais social na posse do
escravo, não apenas no alívio de trabalho braçal, mas uma ostentação de
posição social (BRANDÃO, 1999, p. 154).
A autora observa que “[...] a escravatura no Piauí, extrapolou a condição de uma
instituição econômica, já que a posse de escravos, além de lucrativa era também um indicador
do nível do proprietário” (Idem, p. 154).
Nos inventários analisados, foram identificados muitos casos em que a posse dos
escravos estava dividida entre os familiares do inventariante, os filhos em sua maioria. Com a
valorização do preço do escravo e o consequente aumento das vendas, encontramos, pelo
menos, três razões que justificavam a venda de parte dos escravos que se encontravam
divididos entre diferentes membros da família do inventariante: “para cobrir uma dívida”24
;
por gerar “dívidas inúteis”25
solicitam “a troca da escrava por gado novo”.26
Analisando o inventário do Capitão Carolino Gonçalves de Assis, datado de 1869,
constatamos um número de oito escravos pertencentes à família, dos quais dois homens e seis
mulheres. A média de idade para os homens era de 25 anos e para as mulheres foi calculada
uma idade média de 15 anos. O preço dos cativos variava entre 500$000 para o africano
Adeodato (40 anos); 600$000 para Maria, crioula (13 anos) e 100$00 para Damiana, cabra
(“aleijada de uma mão”). 27
No que diz respeito aos bens, o Capitão Carolino possuía partes de terras em diversas
áreas da freguesia, lavouras de milho e feijão, “burros serviçais”, gado vacum e cavalar,
24
Fórum de São Raimundo Nonato-Pi. Inventário de 1873. Documentação não catalogada. 25
Fórum de São Raimundo Nonato-Pi. Inventário de 1875. Documentação não catalogada. 26
Fórum de São Raimundo Nonato-Pi. Inventário de 1875. Documentação não catalogada. 27
Fórum de São Raimundo Nonato-Pi. Inventário de 1869. Documentação não catalogada.
50
“uma casa sem terminar”; móveis, ferramentas e metais (abrangendo ouro, cobre e prata)
compunham parte da riqueza da família do inventariante.
Voltamos ao inventário de D. Maria da Conceição, mencionado anteriormente, entre
os inventários analisados, o arrolamento de bens da inventariante apresentou a maior posse de
escravos para o período em estudo. Proprietária de diversas partes de terras, a de maior valor é
a Fazenda Sete Lagoas, avaliada em 6$000.000, era nesta fazenda que os 14 escravos (dos
quais nove homens e cinco mulheres) desenvolviam suas atividades como o trato com a terra
e com o gado e os serviços domésticos, geralmente reservados às mulheres (lavadeiras,
cozinheiras e passadeiras). Ferramentas, móveis, poldros, gado vacum e cavalar estão entre os
bens classificados no inventário.
A criação de gado e o cultivo de produtos alimentares por pequenos proprietários de
terras no sertão do Piauí não isenta a utilização de mão de obra escrava. Ao contrário, ainda
que esses proprietários dividissem a labuta do dia a dia com os seus escravos, os dados
existentes nos inventários revelam a importância da mão de obra escravizada e valor
econômico atribuído a posse desses cativos.
A respeito da proximidade das relações entre os proprietários de pequenos e médios
plantéis e seus escravos, não podemos desconsiderar que:
[...] houve uma vivência mais próxima entre senhores e escravos,
especialmente nos menores plantéis. O cotidiano da escravidão nestas
condições deixava frente a frente estes indivíduos. A interação possibilitou
formas variadas de relações pessoais desde as mais amenas até as mais
cruéis, cordialmente demarcadas por laços de amizade/ inimizade, amor/ódio
etc. (MARCONDES, 2011, p. 249).
Os dados analisados não permitem classificar todos os escravos por atividades
desenvolvidas no interior das fazendas, mas identificamos que paralelo à atividade criatória,
estes cativos também desenvolviam trabalhos artesanais, atividades extrativas, serviços
domésticos e agricultura, todas essas atividades produtivas, provavelmente, serviam como
sustentação da economia local ao lado da pecuária extensiva.
Nos termos de Falci, o escravo do Piauí:
Era o roceiro, o vaqueiro, o fábrica, o do serviço (nos arrolamentos das
fazendas de gado), mas era também o mestre-ferreiro, o alfaiate, o ourives, o
pedreiro, o oleiro, ou o tecelão nos pequenos núcleos populacionais (FALCI,
2000, p. 266).
A documentação analisada revelou uma economia baseada na pecuária extensiva
(criação de gado e outros animais) e no cultivo de gêneros agrícolas de subsistência. Além
disso, a estrutura de posse dos escravos mostrou a predominância de pequenos proprietários
51
de terras e de posses de cativos. Em relação à composição da massa escrava analisada nos
inventários, ocorre a predominância de crioulos, dos quais predominam escravos do sexo
masculino, com faixa de idade entre 20 e 30 anos. O número de crianças classificadas nos
inventários em análise também se faz expressivo, o que nos leva a acreditar que a reprodução
natural era um meio de manutenção da estrutura de posse entre os proprietários de escravos da
região.
Portanto, os resultados apresentados neste capítulo reforçam a importância da pequena
propriedade escrava na região em estudo. Apesar de identificarmos, na maioria dos
inventários, registros de um, dois e três escravos por inventariante, a posse cativa para a
região apresenta média de quatro escravos por proprietário, um indicador da elevada presença
de pequenos e médios escravistas. Tais resultados são semelhantes aos dados referentes ao
padrão de propriedade escrava em Oeiras e Teresina, que revelam um número médio de 4,4 e
5,2 escravos, respectivamente (FALCI; MARCONDES, 2001, p.12). Esses números
contrapõem a ideia, muitas vezes, defendida pela historiografia da escravidão, de que não há
compatibilidade entre o trabalho escravo e as atividades de lavoura de subsistência e de
criação extensiva de gado no sertão piauiense do século XIX.
A partir da análise das informações contidas nos inventários post-mortem (amostra
parcial), surgiram inúmeras indagações a respeito das funções atribuídas a esses escravos e,
especialmente, das relações existentes entre eles e seus proprietários, realçando, portanto, a
importância de realizar maiores pesquisas a respeito desse tema com o intuito de elucidar
questões a respeito da importância da pequena propriedade escrava no Brasil oitocentista.
52
3 REDES DE PROTEÇÃO E SOLIDARIEDADE ESTABELECIDAS POR
ESCRAVOS NO SERTÃO PIAUIENSE
3.1 Relações familiares entre escravos
Estudar as relações familiares entre escravos como um dos meios de sobrevivência e de
resistência entre negros escravizados no século XIX significa (re)pensar a história e a
historiografia brasileira que trata desse tema, além de lançar um outro olhar que privilegia as
camadas populares e suas relações com a estrutura social28
. Partindo dessas assertivas, a
proposta desse capítulo é identificar as possíveis estratégias utilizadas pelos indivíduos
escravizados do sertão piauiense como meio para estabelecerem redes de parentesco e,
possivelmente, conquistarem certa autonomia e mobilidade social.
Até meados da década de 1970, a historiografia brasileira da escravidão – com as
devidas exceções - sempre destacou a vivência escrava no Brasil a partir do desregramento
moral e da promiscuidade, ou seja, fatores como a sexualidade, a criminalidade e o
desinteresse pela formação estável da família eram atribuídos ao escravo. Por essas razões,
explicar-se-ia a ausência de uma família escrava criando, portanto, o “mito da anomia
social”.29
A obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, apresenta a família patriarcal como
modelo principal de família, da qual o negro faz parte como uma extensão, isto é, o escravo
não teria a possibilidade de constituir família visto que o mesmo foi retirado “do seu meio
social e de família, soltando-o entre gente estranha muitas vezes hostil” (FREYRE, 2002, p.
315). No entanto, a obra de Freyre abriu um leque para os estudos de escravidão,
especialmente, por apresentar a estrutura das relações sociais e escravistas no contexto
brasileiro.
As obras de autores da chamada escola paulista, representada por Florestan Fernandes,
Emília Viotti da Costa, Fernando Henrique Cardoso, apesar de lançarem críticas à ideia de
Freyre de que havia certa harmonia na relação senhor-escravo, também apresentam o escravo
como “coisa” dentro do sistema escravista, e argumentam que a ausência de normas não
permitiria o estabelecimento de relações familiares entre eles.
Sob a influência da historiografia norte-americana, as pesquisas em torno da
escravidão no Brasil passaram a lançar um novo olhar, a partir de 1980, sobre o papel desses
28
DIAS, C. M. M. Balaios e Bem-te-vis: a guerrilha sertaneja. Teresina: Dom Barreto, 2002. 29
Ver ROCHA, 1999.
53
sujeitos sociais no contexto escravista. Embora ainda se fizessem presentes alguns
estereótipos sobre as condições da escravidão, especialmente sobre a família, caracterizada
pela instabilidade e pelo desregramento, a historiografia brasileira da escravidão passou a
admitir não somente a existência da família escrava, como também as inúmeras possibilidades
de “negociação” utilizadas por esses indivíduos escravizados a fim de conquistarem certa
mobilidade social e, quiçá, sua liberdade.
Os estudos realizados por Gutman (1976), apesar de serem no contexto norte-
americano, tiveram significativa influência nos estudos sobre a escravidão no Brasil. Segundo
esse autor, os escravos eram capazes de tomar decisões e possuíam um conjunto de valores e
crenças que influenciavam o comportamento doméstico, garantindo casamentos estáveis entre
os escravos.
No Brasil, os estudos realizados por Manolo Florentino e José Roberto Goés (1997),
em A paz das senzalas, apontam para a formação de um parentesco entre escravos que
permitiria uma convivência harmoniosa no contexto escravista, ou seja, a formação familiar e
de parentesco entre escravos favorecia também à paz nos plantéis, demonstrando que, além
dos escravos, os senhores também possuíam interesses na existência e manutenção dessas
relações.
Não muito diferente desses autores, Robert Slenes (1999), também analisa, em sua
obra Na senzala, uma flor, a formação da família, das redes de parentesco e os significados
que essas relações possuíam para os cativos. Para ele, estas eram uma estratégia de
“resistência cultural” dos escravos em relação ao domínio do senhor. Apesar de não
considerar a pacificação no cativeiro como razão primeira dessas relações, o autor aponta as
relações familiares entre escravos como forma de sobrevivência e de resistência ao sistema
escravista.
Nessa perspectiva, inúmeros trabalhos sobre escravidão passam a destacar as
experiências cotidianas desses cativos, bem como as possibilidades de organização familiar e
de parentesco e os significados dessas relações em suas vidas, deixando de lado a ideia do
escravo como “peça” no sistema escravista, pois:
[...] essa caracterização da figura do escravo anula a possibilidade de
entender que os escravos eram seres que agenciavam suas vidas enquanto
escravos, resistindo e se acomodando, e que a relação senhor - escravo era
fruto dessa dinâmica, entre dois pólos, e não uma construção imposta de
cima para baixo, unicamente pela vontade senhorial (LARA, 1988, p. 353).
Sobre a importância da família nessa teia de relações, Sheila de Castro Faria (1998),
considera que a família além de exercer influência na classificação social, proporciona
54
movimentação e estabilidade aos escravos e, portanto, que as relações de parentesco
(consanguíneo e espiritual) apesar das condições impostas pelos senhores, também se
estabeleciam através das escolhas dos escravos. A autora demonstra que, através do
compadrio, os pais da criança batizada priorizavam nas suas escolhas os padrinhos livres,
libertos e escravos de senhores diferentes, o que, para ela, sugere um grau de sociabilidade
entre esses diferentes segmentos da sociedade.
Apesar do significativo número de estudos em torno da vida familiar escrava no
Brasil, a maior parte dos pesquisadores que se debruçaram sobre esse tema, privilegiam
estados da região do Sudeste, caracterizadas pelos grandes plantéis e por possuírem um
grande número de escravos. No Piauí, por exemplo, os estudos sobre as relações familiares e
de compadrio entre escravos são muito tímidos.
A historiografia piauiense, não obstante, apresenta alguns trabalhos sobre escravidão,
porém ainda existem– como é compreensível em qualquer trabalho com a história – diversas
lacunas acerca da formação e manutenção da família escrava no Piauí. Autores como Solimar
Oliveira Lima (2009), Miridan Brito Falci (2005) e Tanya Brandão (1999) debruçaram-se na
documentação piauiense sobre escravidão dedicando seus estudos a questões demográficas,
sociais e econômicas dessa temática. Nesse sentido, ressalte-se que, apesar desses autores
mencionarem a vida cotidiana dos escravos e suas intensas experiências vividas no sertão
piauiense, os aspectos relacionados à formação familiar e aos seus mecanismos de
manutenção, ao compadrio, à reprodução natural, estabilidade, autonomia, entre outros, ainda
carecem de mais pesquisas.
Em seu livro Escravos do Sertão (1995), Miridam Falci pretendia, através do seu
estudo, “determinar que o escravo no Piauí fora resultado de um modelo demográfico que
refletia a vida econômica e social da província verificando seus ritmos vitais, suas atividades e
suas relações sociais” (FALCI, 1995, p. 19-20). Com um trabalho pioneiro acerca da região, a
autora faz uma análise na Província do Piauí entre os séculos XVII e XIX, a partir dos dados
demográficos das cinco principais freguesias existentes na Província. Nessa investigação,
além de discutir questões em torno da população, economia e força de trabalho da época,
Miridan analisa os vínculos familiares existentes entre escravos, livres e libertos a partir dos
índices sobre matrimônios, batismos e legitimidade envolvendo cativos.
Solimar Oliveira Lima (2005, p.127), ao discutir a respeito do trabalho escravo nas
Fazendas da Nação do Piauí, a partir das relações econômicas que eram estabelecidas, faz
menção à formação de uma família em que existiam designações de parentesco e a um
55
cotidiano pautado por intensas relações entre trabalhadores escravizados, moradores livres e
libertos. Em conformidade com o autor,
O regime escravista nas fazendas permitiu a criação de pares e a formação de
núcleos familiares convivendo sob o mesmo teto, fora do espaço da casa-
grande. Contudo, ao mesmo tempo em que a instituição escravista
incentivou uniões e procriações, mostrou-se extremamente adversa à
estabilidade das relações afetivas familiares (LIMA, 2005, p.154).
Em Braço Forte, o autor destaca a existência de relações familiares entre escravos nas
fazendas da Província, porém deixa claro que esse fator não excluía o caráter violento do
sistema escravista, nem tão pouco dava possibilidades de estabilidade familiar entre escravos,
“em geral, nessa família escravizada não se nutriam expectativas de proteção e manutenção
das relações [...]” (LIMA, 2009, p. 155), mesmo porque não excluía deles a condição de
cativos. Embora não seja possível afirmar, existem estudos que destacam a falta de interesse
dos cativos em buscar a formação e manutenção das relações familiares e de parentesco no
cativeiro. Vale ressaltar que os autores anteriormente citados não descartam que esses sujeitos
escravizados possuíam vontades e interesses, e que o sistema escravista não era unilateral,
pelo contrário. De fato, os estudos recentes em torno dessa temática apontam para a existência
de um complexo jogo de interesses e de relações recíprocas estabelecidas entre senhores e
escravos.
Como afirma Alida Metcalf, “apesar das esmagadoras exigências impostas pelos
senhores, exigências não somente quanto ao trabalho, mas também de obediência e deferência
– os escravos conseguiam preservar algo de sua própria cultura e história” (METCALF, 1987,
p. 229-230), e a formação familiar e de parentesco seria um exemplo disso.
A presença de famílias escravas no Piauí já no século XVIII e, ainda, o interesse
dessas famílias em efetivar o batizado de seus filhos, seja pela preocupação em cumprir os
princípios cristãos, fenômeno destacado por Tanya Brandão (1999), seja pelo interesse em
estabelecer laços de proteção e solidariedade através do compadrio, evidenciam a existência
dessas expectativas.
Nesses termos, essa pesquisa segue os caminhos indicados pela história social da
escravidão e procura identificar indícios das relações sociais estabelecidas entre escravos em
solo piauiense, considerando que estes não eram sujeitos passivos e incapazes, mas indivíduos
ativos que agiam de acordo com o contexto social a que estavam inseridos. Para isso, foi
56
selecionada uma amostragem de registros de batismos e de casamentos30
envolvendo
escravos, livres e libertos, onde, através da análise das informações contidas nas fontes,
podemos identificar sinais das escolhas e das experiências vividas por esses cativos na teia
das relações durante a segunda metade do século XIX.
Os registros de batismos e de casamentos consultados na pesquisa e referentes à
Freguesia de São Raimundo Nonato possibilitaram pensar as estratégias utilizadas pelos
escravos para estabelecerem relações de parentesco e solidariedade dentro da comunidade
escrava. A documentação analisada revelou a presença da formação familiar e a possibilidade
de manutenção e estabilidade da mesma, como também das estratégias de parentesco ritual
utilizadas pelos escravos na Freguesia de São Raimundo Nonato.
3.2 Casamentos de escravos, livres pobres e libertos: redes de proteção e solidariedade
Estudar o casamento de escravos torna-se um grande desafio quando se considera a
limitação das fontes históricas, pois o registro de casamento só ocorria quando este era
oficializado pela igreja. Nesse caso, as uniões consensuais entre cativos não eram
reconhecidas e consequentemente, não havia registro documental das mesmas.
De acordo com Antonia Mota (2012, p. 75), “os senhores faziam vista grossa para a
formação das famílias entre seus cativos, evitando formalizar os casamentos”. Segundo a
autora, os senhores de escravos viam a oficialização dos laços conjugais como um problema,
visto que a separação das famílias unidas pela igreja não seria moralmente bem aceita. Além
disso, esse desinteresse dos senhores em permitir os casamentos aumenta a partir da
existência das leis elaboradas pela igreja que impediam a separação dos casais e de seus filhos
(FARIA, 1998, p. 339).
A documentação utilizada para esta análise compreende os livros de registros de
casamento da Paróquia de São Raimundo Nonato, datados de 1837 a 1884. Faz saber que os
registros das uniões tanto de livres como de escravos eram realizados no mesmo livro, não
havendo, por exemplo, a separação de livros como ocorria para os batismos. Assim como para
os assentos de batismo, após seleção e classificação da documentação, as informações sobre
os casamentos foram organizadas em um banco de dados obedecendo às seguintes
características: nome dos nubentes, idade, cor, origem (quando ocorre), nome dos pais, local e
30
Cabe ressaltar que os registros de casamento selecionados para o período em estudo encontravam-se
espalhados entre o restante da documentação e, em alguns casos, os registros possuíam informações incompletas,
dificultando o acesso de todo o material, inicialmente, proposto para a pesquisa.
57
data do casamento, nome do senhor, nomes das testemunhas e do vigário que celebrou a
união.
Concluído o banco de dados, foram filtrados os registros em que, pelo menos, um dos
noivos é de condição escrava e/ou liberta, totalizando 175 matrimônios. A partir da leitura dos
registros, identificamos que, em muitos casos, algumas informações foram negligenciadas
pelos párocos, principalmente, o nome dos pais, a cor e a idade dos nubentes.
Aos vinte e quatro dias do mês de outubro de mil oitocentos e setenta e três,
n’esta Igreja de São Raimundo Nonato, Província do Piauhy às nove horas
da manhã tendo precedido as denunciações com palavras dos presentes e em
minha presença se receberam José Pereira Bons Olhos, dezenove anos, filho
natural de Brarida Maria de Jesus, e Clara dezessete anos escrava de José
Piauilino de Macedo morador d’esta freguesia, receberam as bênçãos da
Igreja. Foram testemunhas presentes Olímpio Francisco Campos Braga e
Antônio Martins de Sousa de que fiz este assento que assinei com as
testemunhas nomeadas a cima. Padre Sebastião Pereira Lima.31
Sheila Faria (1998, p.308), em estudo sobre os casamentos realizados pela igreja
Católica no período colonial, observa a ausência de referência aos pais dos escravos nos
registros de casamento analisados. A autora explica que o nome dos pais não era exigido para
africanos, isto é, a ausência dessa informação não se constituía como um problema para a
realização do matrimônio destes, e, segundo ela, “com certeza os párocos estenderam
preguiçosamente o costume a todos os escravos, mesmo com pais conhecidos”. No caso de
São Raimundo Nonato, em se tratando dos casamentos envolvendo pessoas de condição livre,
os registros são mais homogêneos no que se refere ao conjunto das informações dos noivos,
porém, nem todos os párocos foram cuidadosos quando registraram as informações sobre os
cônjuges escravos, o que, de certa forma, dificulta as análises. Nesse caso, o cruzamento de
informações contidas em diferentes fontes (inventários, casamento, batismo) foi essencial
para a realização desse estudo.
Sobre o número de casamentos envolvendo escravos em São Raimundo Nonato,
verificamos, para o recorte temporal estabelecido, que o índice de escravos casados
apresentava-se superior em relação aos dados do censo de 1872. Segundo o levantamento
realizado pelo Censo, o percentual de homens solteiros chegou 96,1% e de homens casados a
1,8%.
Para as mulheres, apenas 1% delas eram casadas, enquanto 98,3% eram solteiras. É
certo que as relações extraoficiais não aparecem nesses dados, porém o levantamento de
31
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento (1837-1884).
58
casamentos envolvendo escravos nos registros de casamentos revelou um número de uniões
matrimoniais maior.
Do total de 75 uniões, o período de 1870 a 1884 apresentou 29 casamentos entre
escravos que foram oficializados pela igreja (ver tabela 5). Vale ressaltar que, apesar de o
número de uniões oficializadas apresentar-se muito baixo em relação às uniões que envolvem
pessoas livres, não se pode desconsiderar que as uniões consensuais também representam a
busca por formação familiar e estabelecimento de relações de solidariedade e reciprocidade
entre escravos.
Provavelmente, além do desinteresse dos proprietários pela oficialização dos
casamentos de seus cativos, outros fatores podem ter atuado para inibir a oficialização das
uniões. Essa questão será discutida no capítulo seguinte.
TABELA 5 - Frequência de Casamentos Envolvendo Escravos – 1837-1884
Ano Nº casamentos Porcentagem (%)
1837 – 1847 19 25,33
1848 – 1858 15 20,00
1859 – 1869 12 16,00
1870 – 1884 29 38,67
Total 75 100,00 Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato – Livro de Registro de Casamentos (1837-1884).
Para o Sertão de Pernambuco, entre os anos de 1855-59 e 1872, Caetano De’Carli
(2007, p. 83) verifica que “15,3% dos escravos eram casados e 84,7% deles eram solteiros.
Entre as escravas, essa proporção era de 82,5% para as solteiras e 17,5% para as casadas”,
dados do levantamento populacional da Polícia Civil. “No censo de 1872 a amostragem era
de 12,2% de escravos casados, 2,6% de viúvos e 85,2% de solteiros. Em relação às cativas,
esses dados indicam que 10,6% delas eram casadas, 2,9% viúvas e 86,5% solteiras”. O autor
argumenta que a não oficialização das uniões para algumas escravas funcionava como “uma
estratégia de parentesco mais viável”, considerando a questão da estabilidade financeira,
segundo ele, as cativas possuíam mais possibilidade de agregar recursos materiais ao
ambiente doméstico do que os homens, nesse caso, ele sugere que algumas cativas preferiam
a vida de solteiras ao invés do casamento.
59
É certo que, em alguns casos, tal escolha poderia ocorrer entre algumas escravas,
porém não consideramos essa hipótese para São Raimundo Nonato, haja vista a existência de
fatores que implicariam muito mais em relação à oficialização dos casamentos. A respeito da
menor quantidade de uniões matrimoniais para o período em estudo, a documentação sugere
que as dificuldades em sacramentar as uniões podem estar relacionadas à posse escrava nos
pequenos plantéis, isto é, como a média de posse escrava era pequena entre as propriedades as
possibilidades de oficializar as uniões diminuíam.
Além disso, como mencionado no capítulo anterior, a desproporcionalidade entre
número de homens e de mulheres pode ter sido também um fator que dificultava o
estabelecimento desses laços. Nesse caso, comungamos com a observação de Cristiane
Jacinto (2008, p. 96) quando trata do casamento envolvendo escravos, forros e livres em São
Luís do Maranhão, na segunda metade do século XIX, “para uma mulher negra, escrava, livre
ou liberta que vivia numa sociedade marcada pelo preconceito, ser casada poderia ser um
elemento de normalidade e distinção social, da mesma forma que para o homem”.
Robert Slenes (1999), ao pesquisar sobre as relações familiares entre cativos em
Campinas, ressalta que o parentesco familiar entre escravos era uma maneira de resistir ao
sistema escravista. Ao analisar os dados do gráfico cinco, podemos considerar que a formação
familiar escrava foi também para o cativo de São Raimundo Nonato uma estratégia de
sobrevivência e de resistência. O número de uniões matrimoniais envolvendo escravos
apresentou um aumento considerável a partir de 1870, atingindo pouco mais de 38% do total
de casamentos analisados no escopo documental. Em 1869, o decreto nacional no
1.695,
proibia a separação de casais por venda, não obstante, como destaca Slenes ( 1999, p. 96), a
separação entre escravos ainda podia ocorrer. Porém, apesar desse risco, consideramos que
casar oficialmente representava para o cativo uma estabilidade familiar, sobretudo, porque,
em virtude da lei, estes eram impedidos de serem separados e, provavelmente, esse fator
tornou-se mais um aspecto que fortalecia a importância da oficialização do matrimônio.
Para Florentino e Goés (1997, p.177), o casamento foi uma maneira utilizada pelos
cativos para evitar a separação destes, bem como de seus filhos. Sheila Faria (1998, p. 304),
também considera que: “Casar-se significava buscar uma estabilidade familiar e um respeito
social, [...] estratégico, no caso de escravos, forros e mestiços”.
60
GRÁFICO 4 – Frequência de casamentos envolvendo escravos. São Raimundo Nonato.
Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento (1837-1884).
Ao analisar a estrutura de posse de cativos e o estado conjugal destes nas Listas de
Classificação de 1874 a 1877, na Província do Piauí, Carla Aparecida Silva (2003, p. 58)
chama a atenção para a concentração de escravos solteiros em todas as faixas de plantéis
sendo que, em plantéis menores, essa concentração era maior. “Mas, conforme vai
aumentando os tamanhos dos plantéis se nota uma diminuição dessa participação e
conseqüente aumento dos pais casados e viúvos e dos filhos, ou seja, as famílias estão mais
representadas em plantéis maiores”.
De fato, Slenes (1999) também indica essa dificuldade por parte dos cativos de
pequenos plantéis em estabelecer uniões matrimoniais, considerando também as dificuldades
em encontrar um parceiro, já que as possibilidades eram menores em propriedades com
pequeno número de cativos. Como uma parte considerável dos escravos do sertão piauiense
vivia em pequenos plantéis, podemos considerar que as chances de matrimônio eram bem
menores para eles.
Dos matrimônios oficializados pela igreja, localizamos, na documentação, a
predominância de algumas propriedades, onde foram realizados os rituais que sacralizaram
dos casamentos. Além de São Raimundo Nonato, onde estava localizada a igreja, muitos
casamentos foram realizados em atos de desobriga nas capelas das propriedades, sendo que a
maioria dos casamentos envolvia escravos da mesma fazenda, o que caracteriza a chamada
endogamia de plantel.
61
No que concerne ao total de matrimônios levantados na documentação, 33 envolviam
escravos de mesmo proprietário e apenas nove casamentos entre escravos de diferentes
proprietários. Destacamos um total de oito uniões mistas, ou seja, um dos noivos era escravo,
enquanto o outro era liberto. Existem sete casos de matrimônios envolvendo escravos que não
fazem menção ao nome do senhor. Mais adiante, apresentamos alguns exemplos dessa prática.
TABELA 6 – Frequência de casamento escravo por propriedades em São Raimundo Nonato.
Propriedade Nº Casamentos Porc. %
São Raimundo Nonato 32 42,67
Fazenda Umbuzeiro 6 8,00
Fazenda Sete Lagoas 4 5,33
Fazenda Pé do Morro 4 5,33
Fazenda Curral Novo 2 2,67
Fazenda Massapê 2 2,67
Fazenda Riacho Seco 2 2,67
Fazenda Tanque Novo 2 2,67
As demais 21 propriedades 1 28,00
TOTAL 75 100,00 Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento (1837-1884).
Quanto às testemunhas dos casamentos, consideramos que a escolha destas estava
vinculada a uma estratégia de aliança e de ampliação da rede de relações sociais do casal de
cativos. Para todos os matrimônios analisados, as testemunhas eram sempre homens, não se
identificou nenhuma testemunha do sexo feminino, tanto para uniões de escravos como de
livres. Ao que parece essa característica era comum nesse período, pois alguns autores
identificam esse padrão nos matrimônios, além disso, Sheila Faria (1998) chama a atenção
para a pouca importância que as testemunhas dos casamentos tinham em relação aos
padrinhos de batismo.
No caso das uniões envolvendo escravos em São Raimundo Nonato, a maioria das
testemunhas era constituída por homens livres, em grande parte proprietários de escravos. Do
total de casamentos realizados entre 1837 e 1884 (mostra parcial) envolvendo escravos,
97,3% das testemunhas eram livres. Considerando que os escravos participavam da escolha
dessas testemunhas, os dados revelam que havia uma importância dada a condição social
daqueles que, além de estarem presentes na cerimônia, confirmavam essa aliança de
parentesco através de suas assinaturas.
62
De acordo com Caetano De’Carli (2007, p. 97):
Os motivos que levaram os cativos a essa aliança podem ser compreendidos
a partir de dois pontos de vista: eles procuravam obter, dos homens livres (e
mais precisamente dos membros da família senhorial), alguma espécie de
benefício para suas vidas públicas ou privadas; ou procuravam, no caso dos
homens livres pobres, solidificar um laço de solidariedade existente entre
eles e demais membros da comunidade sertaneja.
O autor ainda salienta que havia, pelo menos, três tipos de alianças para os casamentos
envolvendo escravos sertanejos de Pernambuco. O primeiro caso refere-se à aliança com
outros cativos,
[...] esse tipo de aliança corresponde a 19,6% dos casos. Desses, 5,4%
correspondem a dois escravos do mesmo plantel dos cativos casados; 8,9%
correspondem a dois escravos e somente um do mesmo plantel dos cativos
casados; e 1,8% dos casos sendo testemunhas mistas: um livre e um
escravo”. Nas demais alianças ocorrem à predominância por testemunhas de
estatuto social livre, correspondendo a 76,8% dos casos. “Desses, 25% eram
membros da família senhorial, e 1,8% era o próprio senhor do cativo que se
colocou na posição de testemunha” (Ibdi.id.).
Para São Raimundo Nonato, outro indício diz respeito à frequência das testemunhas, é
o tipo de aliança envolvendo pessoas livres, inclusive alguns senhores que chegaram a servir
em mais de dois matrimônios como testemunha, são os exemplos de Liberato Ribeiro Soares,
Manoel Antunes de Macedo, Gonçalo Alves de Farias Pindaíba, no entanto, diferente do que
ocorre com os cativos do Sertão de Pernambuco, nenhum dos senhores serviu como
testemunha em casamentos que envolviam seus próprios escravos. (Ver tabela 7).
TABELA 7 – Frequência das testemunhas dos casamentos de escravos. São Raimundo
Nonato.
TESTEMUNHAS NÚMERO DE
CASAMENTOS
Raimundo Martins Xavier de Macedo 2
Bibiano Dias de Sousa 2
Clarismundo Pereira da Silva 3
Custódio Ribeiro Antunes 3
Joaquim Marques dos Reis 4
Manoel Antunes de Macedo 5
Gonçalo Alves de Farias Pindaíba 6
Liberato Ribeiro Soares 9
Fonte: Cúria Diocesana da Igreja Matriz de São Raimundo Nonato. Livro de Casamento (1837-1884)
63
São poucos os casos em que outros escravos serviram como testemunhas de casamento
de escravos, apenas seis cativos serviram como tal. Um caso interessante é o de Zacarias e
Maria, ambos eram escravos do Padre Sebastião Ribeiro Lima e oficializaram o matrimônio
em 30/05/1858 tendo como testemunhas os escravos Apagidio e Ludugero, pertencentes a
Jerônimo Sousa Nunes Boson. A partir dessas informações, acredita-se na importância dada
pelos escravos às testemunhas dos casamentos. Certamente, Zacarias e Maria, quando
escolheram as suas testemunhas, buscaram tecer redes de proteção ou até mesmo fortalecer os
laços de solidariedade, provavelmente, já existentes entre eles. O contato entre escravos de
diferentes senhores sugere a existência de certo grau de mobilidade espacial atribuído aos
escravos, pois se entende que a “[...] circulação com ’autonomia’ dos escravos não era
exclusivamente do mundo das cidades coloniais e imperiais”, ocorrendo também no meio
rural (LIMA e MELO, 2004, p. 130).
A respeito da circulação dos escravos pelo território das fazendas, verifica-se, nas
fontes acessadas para esta pesquisa, que, pelo menos, nove uniões matrimoniais ocorreram
entre o período de 1837 e 1884 envolvendo escravos de diferentes propriedades. Sabe-se que
a proibição do casamento entre escravos pertencentes a diferentes senhores constituía-se em
um dos principais empecilhos para a união matrimonial dos cativos. Segundo Schwartz
(1988), os senhores procuravam restringir o máximo possível o universo social do cativo.
Porém, as evidências encontradas nas fontes analisadas são de que, apesar das restrições
impostas pelos senhores, os escravos procuravam tecer estratégias de união e fortalecimento
do seu meio familiar e social para além das propriedades em que viviam. Vale ressaltar que o
estabelecimento desses laços de parentesco, através do matrimônio, partia de uma vontade de
ambos os noivos, isto é, a necessidade de constituir uma família em busca de proteção, de
sobrevivência e sociabilidade era mútua.
3.3 O casamento e a questão da ilegitimidade
A partir do levantamento de informações a respeito dos batismos de filhos de escravos
entre o período de 1871 e 1888, identificamos altas taxas de “ilegitimidade” de escravos. Essa
questão da ilegitimidade está relacionada a não oficialização dos casamentos segundo os
princípios da igreja católica. Nesse caso, a mesma não reconhece as relações consensuais de
escravos e, por esta razão, o nome do pai do rebento a ser batizado só aparece no assento de
batismo se a união entre os pais da criança for legitimada pela igreja. Na grande maioria dos
64
casos, a criança é considerada filho natural, ou seja, quando apenas a mãe é reconhecida no
ato do batismo. Esse “silenciamento” na documentação a respeito do pai da criança torna
ainda mais complexa à busca pelo entendimento dos arranjos familiares envolvendo escravo,
pois “[...] o cálculo das taxas de ilegitimidade das crianças escravas baseado nos assentos de
batismos nos diz muito pouco acerca da realidade vivida pelas famílias. Tais índices
revelariam uma ilegitimidade formal, ou seja, do ponto de vista legal, que poderia estar muito
distante da prática” (ROCHA, 1999, p. 101).
Ao analisarmos a tabela que segue (tabela 9), notamos que a ilegitimidade entre os
nascimentos de filhos de escravas em São Raimundo Nonato era expressiva. Pouco mais de
90% dos rebentos foram considerados filhos naturais, mas até que ponto o alto índice de
filhos naturais pode revelar a realidade das uniões entre escravos? Miridan Falci (1995, p. 77),
ao analisar as taxas de natalidade para o século XIX, no Piauí, identificou que, praticamente,
100% dos escravos eram ilegítimos, concluindo que essa alta taxa não se fazia por “casamento
legítimo”, porém a autora não descarta a possibilidade de permanência das uniões consensuais
envolvendo escravos.
TABELA 8 - Filiação legítima ou natural dos batizados. Paróquia de São Raimundo Nonato,
1871-1884
FILIAÇÃO NÚMEROS
ABSOLUTOS
PORCENTAGEM (%)
Legítima 23 6,6
Natural 326 93,4
Total 349 100
Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato. Livro de Registro de Batismo de filhos de escravos (1871-
1884).
Para a cidade de Salvador, Kátia Matoso (1988, p. 45) constatou que do total de 85
batismos de escravos realizados entre 1870 e 1874, 100% deles correspondiam a crianças
ilegítimas. No entanto, a autora faz uma ressalva ao destacar que as altas taxas de
ilegitimidade não correspondiam apenas à população escrava, segundo Matoso, 62% da
população livre de Salvador também era ilegítima. Para São Raimundo Nonato, se as taxas de
ilegitimidade entre escravos eram elevadas, para a população livre ocorre o contrário, os
números de filhos naturais eram modestos.
65
Sheila de Castro Faria (1998, p. 325) procura identificar os “lugares de ilegitimidade”
de escravos em freguesias do Rio de Janeiro durante os séculos XVII e XIX, e aponta um
índice de mais de 40% de filhos legítimos, sendo que, para algumas freguesias, mais de 83%
dos batizados eram de filhos de escravos casados oficialmente. A autora chama a atenção para
o aumento dos índices de ilegitimidade no século XIX, que estaria ligado às leis contra a
separação de casais e a entrada de africanos no Rio de Janeiro até 1850. Para Sheila Faria, se
anterior às leis que proibiam a separação das famílias, as uniões matrimoniais entre escravos
eram difíceis, após esse tipo de proibição, os senhores passaram a ter certa resistência no que
diz respeito à oficialização das uniões entre seus escravos, consequentemente as taxas de
ilegitimidade aumentaram. Porém, o casamento não é a única base para os estudos sobre
família, para além da oficialização matrimonial, a formação familiar também podia ocorrer
através de uniões consensuais, pois, em muitos casos, o fato do pai não aparecer nos registros
de batismo não significa dizer que não havia vida familiar. Além disso, a família matrifocal
(mães e filhos) e o compadrio devem ser entendidos como formas de organização e de
estabelecimento de laços familiares. Roberto Guedes enfatiza que:
[...] não se pode afirmar que não houvesse uniões sexuais entre os cativos,
mas apenas que elas surgiram fora da norma católica. Deste modo, o que se
está a afirmar aqui é que a família, entre os cativos não passava,
necessariamente, pelo reconhecimento social dos padres que fizeram os
assentos de batismo (FERREIRA, 2000, p. 146).
Desse modo, devemos considerar que essa questão da ilegitimidade é algo que deve
ser relativizada, principalmente se analisarmos algumas situações que giram em torno do
cotidiano desses sujeitos escravizados. Em primeiro lugar, podemos supor que, em alguns
casos, o rebento era filho de pais pertencentes a diferentes senhores, residindo em fazendas
diferentes, o que nos leva a “imaginar as dificuldades que podiam surgir quando este tipo de
união ocorria: residências diferentes, separação forçada, conflitos sobre tratamento humano e
direitos de propriedade” (SCHWARTZ, 1988, p. 313). Nesse caso, inúmeras questões
poderiam atuar como empecilho para a presença do pai do rebento no ato de batismo do seu
filho.
Em se tratando do número de filhos de escravas considerados naturais pela igreja no
ato do batismo, devemos atentar para a diversidade das relações envolvendo esses sujeitos. A
saber, das mães escravas que levaram seus filhos a pia batismal, certamente, boa parte delas
possuía um parceiro e mantinha relações consensuais, porém a igreja Católica não reconhecia
esse tipo de relação por não ser oficializada segundo seus dogmas. Dentro dessa teia de
66
relações, podia haver também mães cativas que assumiam sozinhas a responsabilidade pelos
filhos e, finalmente, a possibilidade de que muitos casais oficializaram a união dentro das
exigências religiosas algum tempo depois do batizado de seus filhos.
Conforme gráfico que segue, dos 349 registros de batismos realizados entre 1871 e
1888, 93% apresentam apenas o nome da mãe, sendo considerados filhos ilegítimos ou
naturais32
. Contudo, não podemos interpretar esse percentual como sendo resultado de uma
população escrava promíscua e sem interesses em estabelecer relações familiares, pelo
contrário, acreditamos que, para o cativo sertanejo, estabelecer laços de parentesco era
fundamental para a sua sobrevivência no mundo da escravidão e “[...] de nenhuma forma, os
baixos índices de uniões legítimas entre a população negra, desqualifica a sua experiência de
vida familiar” (REIS, 2010, p. 118).
GRÁFICO 5: Percentual da filiação de filhos de escravas batizados entre 1871
e 1888.
Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato. Registro de Batismo de Filhos de escravos
(1871-1888).
É certo que não podemos deixar de considerar a existência de outras questões que
envolvem o cotidiano do cativo sertanejo, como é o caso das particularidades do modelo
econômico da região que pode ter influenciado sobre as diferentes organizações familiares. Os
32
No entanto, é necessário esclarecer que o fato de ter filhos considerados ilegítimos ou naturais, por não haver
uma união entre o casal segundo os moldes da Igreja Católica, não significa desconsiderar a existência e
estabilidade de uma família.
67
registros de batismo analisados revelam um total de 17 uniões formais, isto é, a mãe e o pai do
rebento são mencionados no assento de batismo, com destaque para uniões matrimoniais
envolvendo casais escravos pertencentes ao mesmo proprietário.
Esse tipo de matrimônio repetiu-se por 12 vezes, o que nos faz considerar que, apesar
das possibilidades para formação de casais serem menores nos pequenos plantéis (devido a
pequena posse escrava e ao mesmo tempo a maioria de mulheres em relação a homens), os
escravos do sertão piauiense possuíram maiores possibilidades de sacramentar as uniões entre
aqueles de mesmo proprietário. Devemos lembrar ainda que a maior convivência entre os
cativos e também a preferência dos proprietários por casamentos envolvendo seus próprios
escravos podem ter sido fatores que tornaram as uniões mais viáveis.
Por outro lado, a hipótese defendida por Sheila Faria (1998, p. 310) de que as
determinações das Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia sobre os casamentos de
escravos, “[...] induziram proprietários a impedir o casamento de seus escravos com os de
outros donos”, pode ser confirmada também para a região do sertão do Piauí. Nos registros de
batismo analisados, localizamos a ocorrência de apenas um matrimônio entre escravos de
diferentes propriedades, o que nos faz imaginar que os senhores, além de não incentivarem,
também proibiam esse tipo de união. Conforme Robert Slenes (1999, p. 75),
Os senhores de escravos em Campinas praticamente proibiam o casamento
formal entre escravos de donos diferentes ou entre cativos e pessoas livres.
(Na amostra da matrícula de 1872, não existem uniões matrimoniais que
cruzem a fronteira entre posses e há apenas alguns casamentos entre
escravos e libertos; além disso, nos assentos de casamento da Igreja ambos
esses tipos de união são raros.) Os senhores Campineiros não eram atípicos
nesse respeito; em outras localidades para as quais existem dados, a mesma
’proibição’ existia. Em outras palavras, e invertendo a perspectiva, o escravo
que queria casar-se pela Igreja quase sempre tinha que encontrar seu cônjuge
dentro da mesma posse.
A despeito do pequeno número de registros de uniões formais localizado na
documentação pesquisada, alguns casos chamam a atenção por algumas especificidades
envolvendo as relações entre cativos, livres e libertos no sertão piauiense. Em alguns desses
casos, ocorre o registro de uniões envolvendo casais de diferentes propriedades e até mesmo
de condição jurídica distinta, um exemplo disso são as relações consideradas mistas, ou seja,
casamentos envolvendo cônjuges de condição jurídica diferente, sendo identificadas uniões
entre livre e liberto, escravo e liberto, livre e escravo. É o caso do casal Jerônimo Alves de
França, de condição livre, e Luiza, escrava de Luís Correia Lima Júnior. Pais de Jerônimo,
68
mulato, nascido em 20/06/1872, levaram o rebento a pia batismal em 25/11/1872, formando
compadrio com Antônio, escravo de João Macedo Peixoto e Ana Clara de Farias Pindaíba33
.
O casal oficializou a união em 12/08/1872, porém tudo indica que já mantinham
relação estável anterior ao matrimônio34
. Provavelmente, o casamento oficial ocorreu pela
necessidade de batizar o filho com o reconhecimento da paternidade, visto que a igreja
Católica não reconheceria o rebento como filho legítimo já que era fruto de uma relação
consensual. Esse tipo de relação em que um dos cônjuges era livre e o outro escravo podia ser
utilizado como um meio de viabilizar a conquista da liberdade do cônjuge cativo, pois, com
um dos cônjuges sendo livre, havia maior possibilidade de conseguir recursos para a compra
da alforria do outro.
Certamente, essa estratégia efetivou-se para este casal, pois, em seis de julho de 1884,
Luiza e seu marido Jerônimo Alves de França apadrinharam Antonio, filho de Roberto e
Marta, então escravos de Virgilina Constantina Boson e Lima35
. No assento de batismo do
rebento Antonio, Luiza, agora, era indicada como liberta e com o sobrenome Alves de França.
Infelizmente, não foi possível localizar a carta de alforria da escrava Luiza, pois, através
desta, poderíamos, então, inferir a respeito da compra de sua liberdade pelo seu marido,
porém acreditamos que a mesma possa ter alcançado a liberdade nessa situação e que
possivelmente ocorreu muito tempo antes do ato de batismo de seu afilhado Antonio.
Obviamente que devemos considerar os possíveis significados que esse tipo de união
podia ter tanto para livres e libertos como para cativos, mais do que uma busca pela liberdade,
os arranjos familiares seriam também uma necessidade de garantir proteção e solidariedade no
mundo da escravidão. Isabel Cristina dos Reis (2007, p. 84) lembra que: “[...]
Independentemente do estatuto jurídico dos indivíduos, se a união matrimonial era consensual
ou legitimada, fazer parte de uma família fazia muita diferença, pois podia ser garantia de
amparo nos momentos de necessidade”. Em muitos casos, essa necessidade de garantir
proteção e ajuda também pode ser considerada como uma expectativa nutrida pelos casais de
escravos.
Seria por exemplo a trajetória do casal de cativos João (24 anos) e Margarida (26
anos), pertencentes a João José da Silva, proprietário da fazenda Oiteiro. Os escravos
33
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Batismo de Filhos de Escravos, 1871-1888. 34
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento, 1864-1875. 35
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Batismo de Filhos de Escravos, 1871-1888.
69
oficializaram a união no dia 18 de julho de 1871,36
e seis anos depois (05/08/1877), num ato
de desobriga, na mesma fazenda, batizaram o rebento de nome Tertuliano, que teve como
padrinhos Espiridião José Rodrigues, livre, e Boaventura Maria de Jesus, escrava liberta.
Livres também eram as testemunhas do casamento e diferentemente dos padrinhos de
Tertuliano, estes, possivelmente, eram parentes próximos ao proprietário, pois possuíam
mesmo sobrenome. O que dificulta o cruzamento das informações, nesse caso, é a ausência do
nome das mães dos nubentes no registro de casamento, no entanto, essa situação permite
entrever que esses cativos utilizavam o casamento e o batismo como um meio de ampliar os
espaços de sociabilidade, optando por uma verticalização do parentesco ritual.
Em sete de junho de 1871, Boaventura Maria de Jesus, escrava liberta, 32 anos, havia
oficializado a união com Tibério, 30 anos, escravo de José Raimundo da Silva, na Fazenda Pé
do Morro. 37
Serviram como testemunhas o proprietário de Tibério e José Malaquias da Silva,
que também era livre. Provavelmente, Boaventura ajudou seu marido Tibério a conquistar a
liberdade. As trajetórias dos casais Jerônimo Alves de França e Luiza, João e Margarida,
Boaventura e Tibério, são alguns exemplos de que, apesar das adversidades existentes no
mundo escravista, a união entre casais, seja de diferentes propriedades ou até mesmo de
condições jurídicas distintas, era possível de ser conquistada.
Apesar de as informações contidas no recenseamento geral do império revelarem que
mais de 90% dos escravos em São Raimundo Nonato eram solteiros em 1872, devemos
considerar que, embora seja um dos levantamentos populacionais mais completos para o
período e forneça informações sobre a população escrava, os dados apresentam
incompatibilidade com os dados levantados de outras fontes. Na tabela 5 (cinco) apresentada
no item anterior deste capítulo, que trata da frequência de casamentos envolvendo escravos a
partir dos registros de casamento, o número de escravos que oficializaram a união através do
matrimônio é superior ao número apresentado pelo censo. Porém, como para os dois
levantamentos, o número de casamentos de escravos é modesto se comparado a outras regiões
do Brasil, algumas questões podem ser levantadas a respeito dos significados do matrimônio e
da ilegitimidade.
36
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamentos, 1864-1875. 37
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamentos, 1864-1875.
70
TABELA 9 – Distribuição da População Escrava por estado civil em São Raimundo Nonato,
1872.
Freguesia de São Raimundo Nonato-PI
Estado Civil
Homens
Mulheres
Total
Abs. % Abs. % Abs. %
Casado/a 4 1,8 3 1,0 7 1,3
Solteiro/a 219 96,1 298 98,3 517 97,4
Viúvo/a 5 2,2 2 0,7 7 1,3
Fonte: Recenseamento Geral do Império, 1872.
Se o número de matrimônios envolvendo homens e mulheres de condição escrava
atingiu pouco mais de 3%, poderíamos, logo, inferir que o casamento entre escravos não
estava entre as estratégias de ampliação das redes sociais. No entanto, imaginamos três
situações que poderiam explicar esse abismo existente entre os índices anteriores.
Em primeiro lugar, as uniões consensuais certamente não estão incluídas nesses
números, sabemos que a igreja Católica não reconhecia os amancebamentos como relações
legítimas, além disso, existiam inúmeros entraves burocráticos para a oficialização do
casamento. Dentre as exigências para a oficialização do matrimônio, estavam a comprovação
por parte do casal do batizado e o processo de denunciações que era realizado durante três
domingos seguidos na freguesia onde seria realizado o casamento, bem como na localidade
onde o casal teria residido após os 14 anos, para os homens, e 12 anos, para as mulheres, com
o objetivo de evitar a bigamia (SILVA, 1998, p. 191).
Outra questão que poderia ser um agravante para as uniões entre escravos diz respeito
às leis que, a partir do século XIX, impediam a separação de casais escravos e de seus filhos.
Sheila de Castro Faria38
observa que essas leis teriam desestimulado por parte dos senhores a
permissão de tais uniões, principalmente se fosse uma união entre escravos de diferentes
propriedades. A documentação analisada assinala um aumento significativo de uniões entre
escravos legitimadas pela igreja Católica a partir de 1871. Nesse caso, como discutiremos
mais adiante, consideramos a possibilidade de que muitas dessas uniões entre escravos, livres
38
FARIA, Sheila de Castro. Op. cit. 1998. Ver especificamente o capítulo 2.
71
e libertos, que foram oficializadas a partir desse período, já existiam, porém em caráter
consensual.
E, por último, com base nos dados da tabela 1 (um), já mencionados anteriormente, a
desproporcionalidade entre o número de homens e de mulheres pode ter dificultado para que
as uniões entre escravos ocorressem. Como já mencionado em capítulo anterior (Vide:
capítulo 2), a documentação assinala que o número de mulheres era bem superior ao número
de homens em idade fértil. Porém, como narra Schwartz (1988, p. 311), devemos considerar
que “[...] a escassez de casamentos na igreja não são de modo algum, uma medida da
realidade escrava e da capacidade dos cativos de criar e manter laços de afeição, associação e
sangue que tivessem um significado real e permanente em suas vidas”. É possível que as
relações consensuais envolvendo escravos fazia-se presente em grande número no sertão do
Piauí, portanto, “dizer que um casal não era casado e que seus filhos eram ilegítimos, não
significava que eles não formavam uma unidade familiar, ainda que legalmente pudessem ser
incapacitados por certos aspectos” (SCHWARTZ, 1988, p. 310).
Além de uniões formais, isto é, oficializadas pela igreja e que evidenciam a formação de
família nuclear envolvendo escravos, nos assentos de batismo analisados, salta aos olhos a
presença de famílias matrifocais, ou seja, formadas pela mãe e seus filhos sem a presença da
paternidade. Porém, devemos considerar que apesar da documentação silenciar o nome do pai
do rebento pelo fato de não haver uma união legitimada pela igreja entre o casal,
possivelmente, em muitos casos, havia a permanência de uniões consensuais.
O cruzamento de informações contidas em diferentes fontes (inventário post-mortem,
assentos de batismo e registro de casamento) torna possível a identificação de alguns casos
que revelam a existência dessas famílias compostas apenas pela mãe e pelos filhos e que,
apesar de não indicarem o estado civil da mãe, fazem crer na possibilidade de união
consensual. Vejamos alguns exemplos de cativas que viviam nas mesmas propriedades que
outros escravos, tiveram pelo menos quatro filhos num espaço de tempo considerável e, em
razão disso, possivelmente mantiveram algum tipo de relação com outro escravo. Damiana,
escrava de Maria Honorata dos Anjos, vivia na Fazenda Curral Novo, onde, provavelmente,
deu à luz a cinco rebentos: João, nascido em oito de abril de 1872; Vitória nasceu em agosto
de 1873; Maria, em julho de 1874; Sebastião, em fevereiro de 1878 e, em setembro de 1879,
nasceu mais uma menina que também recebeu o nome de Maria.39
Dos cinco filhos, apenas
Maria, nascida em 1874, teve como padrinhos um casal de escravos, Anastácio pertencia a
39
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Batismo de Filhos de Escravos, 1871-1888.
72
Isidoro Pereira do Rego, proprietário de parte das terras na Fazenda Curral Novo, e Sabina,
era escrava de Maria da Conceição, proprietária de terras na Fazenda Sete Lagoas. As demais
crianças foram apadrinhadas por pessoas livres, dentre elas, Josefa Benta dos Anjos, irmã de
Maria Honorata dos Anjos.
Localizamos a escrava Damiana entre os “bens” arrolados no inventário de sua
proprietária40
. Havia, em seu domínio, oito escravos, sendo dois do sexo masculino,
Francisco, crioulo de 20 anos, e Adeodato, africano, 40 anos; e seis do sexo feminino, a saber:
Benedicta, 11 anos, Ludugera, 16 anos, Cosma, cinco anos de idade, duas escravas de nome
Maria e Damiana. As informações contidas nesse inventário a respeito dos escravos são muito
poucas, nesse caso, apenas a idade, cor/origem e a avaliação foi registrada para praticamente
todos os escravos, a exceção ocorre com a escrava Damiana, pois as únicas informações
fornecidas sobre a mesma são a cor, a condição de saúde e avaliação. Damiana, cabra, foi
avaliada em 100$000, valor considerado baixo se comparado ao de outras escravas da mesma
propriedade.
Contudo, a avaliação pode estar relacionada à idade (que não é mencionada no
documento), mas, especialmente, a condição de saúde de Damiana, ela era “aleijada de uma
mão”, e certamente apresentava dificuldades para desenvolver determinadas atividades no
dia-a-dia. As escravas de nome Maria, de 20 “pouco mais ou menos” e de 13 anos, foram
avaliadas em 450$00 e 500$000, respectivamente41
. Seriam estas as filhas da escrava
Damiana? O inventário não demonstra a existência de vínculo familiar entre Damiana e as
escravas de nome Maria, porém é possível que se trate de mãe e filhas.
A presença do pai também não é discriminada no inventário, fato comum já que a
situação jurídica do filho estaria vinculada a da mãe. A ausência da paternidade nos registros
de batismo e também no inventário não significa que as crianças não conheciam ou até
mesmo conviviam com seu pai, nem tampouco podemos descartar a existência de uma união
consensual duradoura entre Damiana e o pai das crianças. O entrecruzamento de um conjunto
de fontes42
permite identificar a presença em solo piauiense de famílias nucleares estáveis,
como também de unidades familiares matrifocais que, apesar da não oficialização da união
entre mães e pais escravos segundo a legislação da igreja, se faziam presentes no convívio
familiar.
40
Fórum de São Raimundo Nonato-PI. Inventários Post-Mortem de 1869-1890. Documentação não catalogada. 41
Ibidem. 42
Para este caso, utilizamos os assentos de batismo, registros de casamento e inventários post-mortem.
73
[...] Devemos ter em mente desde já que a formação de unidades conjugais e,
em última análise, de famílias, não dependia do casamento consagrado pela
Igreja, quer para os escravos, quer para os livres. Dizer que um casal não era
casado e que seus filhos eram ilegítimos não significa que eles não
formavam uma unidade familiar, ainda que legalmente pudessem ser
incapacitados sob certos aspectos (SCHWARTZ, 1988, p. 310).
Neste sentido, procuramos desvendar alguns traços do viver escravo no sertão piauiense
e que possam revelar a existência e os significados que a família escrava possuía para cativos,
libertos e livres.
74
4 TRAJETÓRIAS FAMILIARES: OS SIGNIFICADOS DAS REDES DE
PARENTESCO CONSANGUÍNEO E COMPADRIO
4.1 Laços de compadrio: o parentesco entre as pequenas posses escravas
As últimas duas décadas do século XXI têm assistido ao crescimento dos estudos
sobre redes de sociabilidade que existiam entre os escravos no século XIX. Nessa perspectiva,
diversos estudos vêm demonstrando que, ao longo dos anos, os escravos construíram redes de
solidariedade que, de acordo com as circunstâncias das diferentes conjunturas históricas,
garantiram direitos, criaram melhores condições de vida e, para alguns, trouxeram a
liberdade43
.
Fortalecendo essa ideia, Florentino e Goés entendem que, em relação aos escravos, o
sacramento do batismo foi uma oportunidade aproveitada por eles para tecer laços de proteção
e ajuda mútua. O estabelecimento e a manutenção de relações de parentesco, por exemplo,
representavam uma grande conquista para os escravos, visto que, através dessas estratégias,
esses cativos podiam conseguir estreitar relações parentais com homens livres, forros e outros
escravos, e, nesse último caso, consequentemente, mantinham vivos os laços de solidariedade
entre eles.
A esse respeito, Florentino e Goés (1997, p. 157) afirmam que:
[...] restituíam aos cativos um tanto da humanidade que sequer os seus
senhores ousaram expropriar: a capacidade de criar e viver sob normas
intrínsecas ao humano. Sabe-se hoje, que a escravidão e o parentesco não
são experiências excludentes; o cativo não abortou a família escrava [...].
É certo que, apesar das limitações impostas pelo sistema escravista, os cativos
procuravam “criar formas sociais e culturais que lhes proporcionassem consolo e apoio
naquele mundo hostil” (SCHWARTZ, 1988, p.310). No Brasil, são vários os estudos que
discutem o parentesco espiritual entre escravos, livres e libertos, como uma das estratégias
utilizadas pelos cativos para conquistar alguma proteção e até mesmo mobilidade social44
.
43
Sobre essa temática ver: SOUZA, Sonia Maria de. Terra, família e solidariedade...: estratégias de
sobrevivência camponesa no período de transição – Juiz de Fora (1870-1920). Bauru, SP: Edusc, 2007.
MACHADO, Cacilda. A trama das vontades: negros, pardos e brancos na construção da hierarquia social do
Brasil escravista. Rio de Janeiro: Apicuri, 2008. GUDEMAN, Sthephen e SCHWARTZ, Stuart. Purgando o
pecado original: compadrio e batismo de escravos na Bahia do século XVIII, In: REIS, João José (Org.)
Escravidão e Invenção da Liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1988. 44
GUDEMAN, Stephan & SCHWARTZ, Stuart. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de escravos
na Bahia no século XVIII, in: João José Reis (org.). Escravidão e invenção da liberdade: estudos sobre o negro
no Brasil, São Paulo: Brasiliense, Brasília CNPq, 1988. FERREIRA, Roberto Guedes. Na pia batismal família e
75
Ao analisarmos os registros de batismo - principal fonte de consulta sobre essa
temática -, surgem inúmeras inquietações em torno do compadrio, e sobre este já são
apontados alguns padrões quando o assunto é o batismo de escravos no Brasil.
O batismo cristão, além de significar a inserção do pagão na atmosfera da igreja
Católica, representou uma forte instituição na sociedade brasileira, pois, na ausência do
registro civil, o “registro da vida das pessoas passava pelo domínio do catolicismo” (FARIA,
1998, p. 307). Desse modo, os registros de casamento, batizado e óbito sob a responsabilidade
da igreja assumem também um caráter civil no conjunto das relações. Os laços estabelecidos
entre os cativos e seus padrinhos extrapolavam as barreiras do mundo cristão, atingindo uma
dimensão social, podendo ser utilizados para garantir relações aproximadas com pessoas de
condição social diferente ou mesmo para fortalecer os laços de parentesco já existentes.
De acordo com Stuart Schwartz (1988, p. 330):
[...] Seguramente a ‘família’ estendia-se muito além dos limites de qualquer
unidade residencial. É sempre muito difícil recapturar tais laços, mas no ato
ritual do batismo e no parentesco religiosamente sancionado do compadrio,
que acompanha esse sacramento, temos uma oportunidade de ver a definição
mais ampla de parentesco no contexto dessa sociedade católica escravocrata
e testemunhar as estratégias de escravos e senhores dentro das fronteiras
culturais determinadas por esse relacionamento espiritual.
Como apresenta Stuart Schwartz, a relação de compadrio gerada pelo batismo
produzia um “parentesco espiritual” entre os afilhados e seus padrinhos, bem como entre os
padrinhos e os pais da criança. Os padrinhos eram considerados pais substitutos de seus
afilhados e, portanto, frequentemente, os escravos procuravam “[...] pessoas de consideração
para apadrinharem os seus filhos [...]” (1988, p. 130-131). Partindo desse pressuposto, a
ampliação da família escrava podia acontecer através da relação de compadrio estabelecida
pelo sacramento do batismo.
A partir do levantamento de dados, através dos registros de batismo acondicionados na
Cúria Diocesana da Igreja Catedral de São Raimundo Nonato-PI, buscamos compreender qual
a importância do batismo para homens livres e escravos, e principalmente qual o significado
para as mães escravas dos laços de parentesco estabelecidos através do apadrinhamento de
seus filhos durante esse período. Como já ressaltado em momento anterior, o recorte temporal
utilizado para este estudo compreende os anos de 1871 a 1888, período que foi marcado por
compadrio entre escravos na freguesia de São José do Rio de Janeiro (primeira metade do século XIX). Niterói:
Universidade Federal Fluminense, 2000.
76
um conjunto de intensas mudanças na atmosfera social do país. Dentre elas, a aprovação da
Lei do Ventre Livre, em que, a partir da mesma, os filhos nascidos de ventre escravo seriam
considerados livres.
O foco de estudo está em torno desta Lei, porque objetiva, especialmente, identificar
se ocorreu algum tipo de mudança no quadro de relações entre senhores e escravos, mais
especificamente, na prática de batismos de filhos de escravos dentro desse contexto.
Conforme as informações eram recolhidas, de antemão, percebemos que o número de
registros de batismo de filhos de mães escravas aumentou em relação aos anos anteriores, do
mesmo modo que os batismos passaram a ser registrados em livros específicos, isto é, um
livro foi reservado apenas para registrar batismos de filhos de ventre escravo.
Acredita-se que as informações a respeito do batismo dos rebentos não eram
registradas no momento do batismo, pois, em muitos casos, os registros não aparecem em
ordem cronológica de tempo e, além disso, muitas informações como a cor, a condição do
batizando, a condição jurídica dos padrinhos, não aparecem em muitos registros. Em geral, os
registros de batismo presentes na documentação analisada eram da seguinte maneira:
Aos oito dias do mês de julho do ano de mil oitocentos e setenta e dois, em
desobriga, na Fazenda Caracol, d’esta Freguesia de São Raimundo Nonato,
Província do Piauhy, Bispado do Maranhão, batizei solenemente e dei os
santos óleos à Silvano, crioulo, filho natural de Iphigenia, escrava de Dona
Maria Joaquina Dias, nascido aos dezenove d’outubro do mês passado, livre
em conseqüência da Lei dois mil e quarenta de vinte e oito de setembro de
mil oitocentos e setenta e um, foram padrinhos Belarminio Dias e Maria do
Patrocínio de Jesus. E para constar fiz e assinei este termo. Cônego
Sebastião Ribeiro Lima. 45
O registro de batismo mencionado é um exemplo de um documento pesquisado com o
maior número de informações a respeito do batizando. Apesar das poucas informações
contidas nos textos que correspondem a esses registros – nome da mãe, nome da fazenda e do
proprietário a que pertence; nome do pai quando ocorre, nome da criança, cor, data de
nascimento e de batismo; nome dos padrinhos, entre outros -, questões como a maior
frequência de registros de batismo nesse período, provocaram-nos algumas inquietações no
que diz respeito ao campo de ação dos escravos através do parentesco espiritual.
Compreender, portanto, se existe alguma relação entre a Lei do Ventre Livre e a
frequência de batismo nesse período, pode ajudar-nos a entender também se nas escolhas dos
padrinhos destas crianças encontra-se imbricado algum tipo de estratégia de sobrevivência,
45
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos (1871-
1888).
77
resistência, proteção, manutenção ou mesmo de ampliação das relações sociais entre senhores
e escravos. Assim, a utilização desses percentuais sobre o número de batismos, a condição
jurídica dos padrinhos, entre outros dados, além de fornecer informações sobre a população de
São Raimundo Nonato, permitirá pensar a respeito das estratégicas tecidas por escravos, livres
e libertos no contexto escravista do sertão piauiense.
A respeito das práticas de parentesco, especialmente o parentesco espiritual, Miridan
Falci (1995) concluiu que entre o total de 5.273 escravos no Piauí, cerca de 70% dos
padrinhos eram homens livres, sendo livres também em sua maioria as madrinhas, com raras
exceções entre padrinhos e madrinhas de grupo social distinto.
Essa preferência por pessoas livres para apadrinharem as crianças escravas também é
apontada por Stuart Schwartz (2001, p. 223-5). As pesquisas coordenadas pelo autor, nos
registros de batismo da paróquia de Nossa Senhora da Luz dos Pinhais (Curitiba), apontam
como um padrão nos séculos XVIII e XIX, o apadrinhamento de crianças escravas por
pessoas livres ou libertas. Segundo o autor, 70% dos batismos tiveram padrinhos livres, o que
revela que, talvez, houvesse reconhecimento da importância social do padrinho livre. Quando
havia apadrinhamento por outro escravo, o autor percebeu que a preferência era por escravos
de outras propriedades e, em sua maioria, o padrinho era livre e a madrinha escrava, o que
demonstra a possibilidade de redes de parentesco para além dos limites das propriedades.
O contrário é identificado por Ana Lugão Rios (1990, p. 56), em sua pesquisa sobre a
família negra na Paraíba do Sul. Destacando que a preferência era por padrinhos da mesma
condição, sendo que, do total de registros de batismo levantados, 57% dos padrinhos eram
escravos, 40% de pessoas livres e uma minoria de cerca de 3% eram de escravos libertos. Para
a autora, a preferência por padrinhos escravos é parte das intenções de ampliação e
manutenção da comunidade escrava através desta rede de parentesco construída por meio do
compadrio. Ela acrescenta ainda que apenas em pequenas escravarias a escolha de padrinhos
livres superava a de escravos.
As pesquisas desenvolvidas por Schwartz (1989) e Rios (1990) foram em regiões que
possuíam grandes propriedades e, consequentemente, grandes escravarias. Porém, apesar das
diferenças que estas regiões apresentam em relação ao sertão piauiense, os resultados e as
interpretações dos mesmos tornam-se muito importantes para a compreensão da dinâmica das
relações do sistema escravista. Apesar da heterogeneidade presente nas relações sociais do
sistema escravista, cada uma delas carregava os anseios de homens e mulheres escravizados
que puderam ser vivenciados através do parentesco consanguíneo e ritual.
78
E no caso de São Raimundo Nonato, quem os escravos escolhiam para apadrinharem
os seus filhos? Assim como os escravos das grandes propriedades de Curitiba durante os
séculos XVIII e XIX, os cativos sertanejos optaram, em grande maioria, por estabelecer o
parentesco ritual com pessoas livres. A partir dos dados da tabela quatro, percebemos que, dos
349 batizados de filhos de escravas entre 1871 e 1888, 86,4% dos padrinhos são pessoas de
condição livre e apenas 10,5% dos padrinhos possuíam a mesma condição social das mães
cativas, isto é, eram escravos. Essa informação levou-nos a pensar em algumas questões a
respeito das estratégias tecidas na pia batismal. Quais as razões que levaram um número
considerável de crianças a serem apadrinhadas por homens livres? Seria uma estratégia das
mães escravas para garantir a proteção dos seus filhos? Ou um mecanismo utilizado pelos
senhores para manter essas crianças em suas propriedades?
As informações contidas nos registros e analisadas durante a pesquisa evidenciam as
tentativas dos pais das crianças batizadas em estabelecerem uma aliança de parentesco
vertical, na medida em que o número de padrinhos livres é muito superior ao de padrinhos de
mesma condição social dos pais. Pessoas livres foram as que mais apadrinharam crianças
consideradas ilegítimas, isto é, filhos que, em sua maioria, são fruto de uniões consensuais e,
portanto, não reconhecidas pela igreja como legítimas. Esse padrão também é identificado por
Sílvia Brügger em Minas Gerais.46
Ela pondera que os filhos de mães cativas, considerados
ilegítimos pela igreja, foram mais apadrinhados por pessoas livres do que as crianças
legítimas. Esse padrão de escolha é entendido pela autora como uma tática que se constituía
numa espécie de aliança “para cima”, desse modo ao escolher padrinhos de status superior, as
mães procuravam garantir alguns benefícios para si e para os seus filhos (2007, p.289).
Outra característica dessas escolhas associa-se ao “lugar social” ocupado por alguns
padrinhos, que, além de livres, eram diferenciados dos demais através de distintivos que
representavam algum prestígio social, a saber: sacerdote, coronel, comendador, entre outras
patentes. Em geral, esse mesmo grupo era frequentemente escolhido para apadrinhar os filhos
de mães cativas, possivelmente porque “o compadrio tendia a ligar a família do batizando a
pessoas situadas num patamar equivalente ou superior da hierarquia social” (BRUGGER,
2007, p. 293), e, nesse caso, as mães procuraram tecer redes de parentesco ritual que
garantissem benefícios aos afilhados, como o de proteção. Sobre essas questões, o capítulo
46
Ver principalmente o capítulo 5 (cinco), dedicado especialmente ao estudo do parentesco ritual em diferentes
segmentos sociais.
79
três deste trabalho tem a intenção de aprofundá-las a partir de alguns casos que representam
os laços de parentesco vivenciados por estes sujeitos.
TABELA 10 – Condição Jurídica de Padrinhos e Madrinhas. São Raimundo Nonato, 1871
1888.
Condição
Jurídica
Padrinhos Madrinhas Padrinhos +
Madrinhas
Abs. % Abs. % Abs. %
Livres 315 90,3 288 82,5 603 86,4
Escravos 28 8,0 45 12,9 73 10,5
Libertos 0 0,0 1 0,3 1 0,1
Santos 0 0,0 7 2,0 7 1,0
N/C 6 2,0 8 2,3 14 2,0
Total 349 100 349 100 698 100 Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato. Livro de Registros de batismo
1871-1888. N/C = Não consta.
Sabemos que, após a Lei do Ventre Livre47
, toda criança nascida de mãe escrava seria
considerada livre, porém ficaria sob tutela do Estado se caso o proprietário da mãe optasse por
não a manter até atingir os oito anos de idade. Certamente que a “maioria dos proprietários
mantiveram os filhos dos escravos em vez de entregá-los ao Estado” (COSTA, 2008, p. 57),
consequência disso, entre os períodos de 1879 e 1880, “apenas 52 ingênuos haviam sido
entregues ao Estado em todo o império” (JACINTO, 2008, p. 152). Possivelmente, muitos dos
filhos de escravas continuaram sob o poder dos proprietários de suas mães, sendo tratados
também como escravos.
Neste sentido, podemos considerar que a preferência por padrinhos livres pode ter sido
utilizada pelas mães escravas como um meio de garantir a sua proteção e a dos seus filhos,
pois, seguindo os preceitos católicos do parentesco espiritual, dificilmente o padrinho de uma
criança iria submetê-lo ao trabalho exaustivo e aos castigos físicos. Nesse contexto, para essas
mães escravas, “o batismo e o compadrio poderiam significar um passo em direção à
liberdade ou mesmo formas de minimizar as agruras do cativeiro e a sobrevivência”
(ROCHA, 2009, p. 259).
Ao analisarmos os registros de batizados de filhos de escravas, identificamos a
predominância dos filhos e das esposas de proprietários de escravos apadrinhando os filhos
47
A Lei no 2.040, de 28 de setembro de 1871, considera livre toda criança nascida de ventre escravo a partir dessa
data. Sobre o tema ver: COSTA, Emília Viotti da. A Abolição. 8a Ed. São Paulo: UNESP, 2008.
80
dessas cativas. Stuart Schwartz (1988, p. 132), quando analisa as relações de compadrio na
sociedade da Bahia colonial, destaca alguns padrões nesse tipo de prática e compreende o
compadrio como um tipo de relação que vai além da dimensão religiosa, atingindo também o
campo social. Segundo esse autor, dificilmente os senhores apadrinhavam seus próprios
escravos, sendo que, na maioria das vezes, essa tarefa estava condicionada aos seus filhos ou
parentes mais próximos. O apadrinhamento desses rebentos, considerados livres em
decorrência da lei, pelos familiares do senhor de sua mãe pode ser considerada mais uma
estratégia utilizada pelo senhor no sentido de garantir a permanência do batizando em sua
propriedade.
No caso dos escravos de São Raimundo Nonato, verificamos que a escolha por
padrinhos de condição jurídica livre foi predominante. Desse modo, podemos considerar a
existência de, pelo menos duas, possibilidades em torno desse padrão. A primeira delas diz
respeito ao reconhecimento pelos cativos da importância social que os padrinhos livres
possuíam. Se considerarmos a importância atribuída ao ritual do batismo, bem como as
responsabilidades atribuídas aos padrinhos em torno de seu afilhado, - pois assumiriam a
responsabilidade de “pais espirituais” - de certa forma, compreenderemos o conjunto de
expectativas que envolviam as escolhas desses padrinhos pelos pais escravos. Além disso,
percebemos, na documentação analisada, certa importância atribuída ao ritual católico para
todos os segmentos sociais da época, inclusive para os escravos, se considerarmos o aumento
do número de batismo de filhos de escravos no período analisado.
Para a igreja Católica, os padrinhos e madrinhas “seriam os protetores de seus
afilhados, uma espécie de pais espirituais, com vínculo superior ao dos pais carnais, e, com
esse sacramento, o batizando adquiria igualdade como cristão e passaria a ter acesso às
cerimônias da Igreja” (VASCONCELLOS, 2002, p. 147), provavelmente esse aspecto
religioso passou a ser levado em consideração pelos pais escravos.
A segunda possibilidade associa-se à dimensão social atribuída ao batismo, revelada a
partir das preferências desses escravos ao estabelecerem parentesco vertical, isto é, com
pessoas de status superior (livres e libertas). Segundo Ellen Woortmann (1995, p. 294), “o
compadrio vertical, que implica relações com pessoas de status superior, caracteriza relações
de patronagem, ou pelo menos uma ideologia de patronagem”. Ainda segundo a autora, esse
tipo de compadrio, caracterizado por ampliar as redes de relações de solidariedade entre os
compadres, foi bastante comum nas regiões de campesinato brasileiro.
81
Nos termos de Stuart Schwartz, tanto escravos como pessoas livres tinham tendência a
escolher pessoas de condição jurídica igual ou superior a do batizando, no caso dos escravos,
acreditamos que estes desejavam conseguir, através do compadrio, algum tipo de proteção,
solidariedade e até mesmo a possibilidade de liberdade.
Analisando o gráfico 1 (um), constatamos que o número de padrinhos livres era
superior ao de madrinhas livres. O contrário ocorre entre padrinhos escravos, isto é, as
madrinhas escravas são maioria em relação aos padrinhos de mesma condição jurídica.
Possivelmente, esses pais, ao escolherem madrinhas escravas para apadrinharem os seus
filhos, utilizaram a possibilidade de ampliar laços de solidariedade entre a comunidade
escrava, mas, sobretudo, acreditavam que, em caso de morte da mãe, por exemplo, a madrinha
assumiria a responsabilidade de criar o seu afilhado.
GRÁFICO 6: Percentual de padrinhos a partir de sua condição jurídica
Fonte: Arquivo da Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato. Livro de Registro de batismo 1871-1888.
N/C = Não consta
Outra característica dessas relações de parentesco com pessoas livres vincula-se ao
número expressivo de padrinhos e madrinhas que possuíam ligação familiar com o
proprietário desses escravos. Do total de 86,4% de padrinhos livres, pouco mais de 48% deles
possuíam alguma ligação familiar com o senhor de escravos, entre eles destacam-se filhos,
irmãos e sobrinhos. Essa predominância de padrinhos que possuíam ligações familiares com
os senhores leva-nos a considerar que, embora o senhor não apadrinhasse um rebento de
82
ventre escravo, os seus familiares estabeleciam essas relações. Nesse caso, podemos
considerar que, para esses pais escravos, esses laços verticais com compadres e comadres de
condição livre representavam uma tentativa de ampliar o campo social das alianças de
parentesco, bem como de ascensão social, o que nos demonstra claramente a existência dessas
relações.
Poderíamos considerar, para o caso de São Raimundo Nonato, a afirmação de Goés
(1993, p. 79) de que o número de escravos por propriedade poderia influenciar nas escolhas
dos padrinhos. Isto é, quanto maior a posse de escravos por propriedade, maior a
possibilidade de escolhas de compadres entre os próprios escravos. Nesse caso, o pequeno
número de escravos por propriedade em São Raimundo Nonato pode ter influenciado na
escolha por padrinhos livres.
Apesar da possibilidade de buscar padrinhos fora do grupo escravizado, uma
característica recorrente na documentação é a repetição dos mesmos compadres para mais de
uma criança batizada. É o caso de Agostinho, que estabeleceu compadrio com a escrava
Florência pelo menos três vezes. Verificamos que essa repetição de compadres foi comum
entre padrinhos escravos, mas também entre padrinhos livres, o senhor Manoel Antunes de
Macedo foi o que mais apadrinhou filhos de escravas no período em estudo, chegando a servir
de padrinho em oito batizados.
No que concerne ao apadrinhamento do rebento escravo pelo senhor, apesar de muitos
autores afirmarem que essa não era uma prática comum, a documentação analisada sinaliza o
estabelecimento de compadrio entre escravos e seus senhores em, pelo menos, sete registros
de batismo. Em um caso específico, encontramos Matias, filho legítimo de Romão e Maria,
escravos de Manoel Martins dos Santos, que apadrinhou o filho do casal em ato de desobriga
na capela da Fazenda Santa Maria. A madrinha também era livre, Maria Mateus de Jesus,
infelizmente não encontramos nenhum registro que demonstre se havia algum grau de
parentesco entre os padrinhos. No entanto, o que fica evidente é a tentativa desses pais
escravos de estabelecer laços verticais ascendentes, nesse caso, com o próprio senhor.
Evidencia-se aqui, a partir das fontes consultadas, que ao contrário do que prevalecia
na historiografia sobre a escravidão no Brasil, os pais escravos procuravam e obtinham
sucesso ao tentar estabelecer laços verticais ascendentes com seus senhores a partir do
batismo, no sertão piauiense, mais especificamente, na região de São Raimundo Nonato.
Quem também procurou estabelecer o compadrio com o seu senhor foi o casal Roberto
e Marta, escravos de Virgilina Constantina Boson e Lima, que batizaram o menino Antonio
83
em 06/07/1884 em São Raimundo Nonato, e tiveram como compadre Jerônimo Alves de
França e como comadre a senhora Virgilina, então proprietária do casal.
Para melhor compreendermos como se davam essas relações, buscamos interpretar as
estratégias utilizadas pelos cativos ao estabelecerem o compadrio com outros escravos,
pessoas livres e, em muitos casos, com familiares do seu próprio senhor.
Cecília (crioula) nasceu em 20/11/1871 e foi batizada quase dois anos depois, em
09/08/1873; Inias (negra) nasceu em 20/10/1873, batizada dez meses depois. Filhos do
mesmo casal, José e Eduvirges, escravos de Avelino Ribeiro Antunes, tiveram padrinhos de
condições sociais distintas. A primeira foi apadrinhada por pessoas livres, Manoel Sabino
Ribeiro Antunes e Vitalina Maria Ribeiro, provavelmente parentes do senhor. Já a menina
Inias, teve como padrinho um homem livre, Francisco José Quitarra e como madrinha a
escrava Severina, pertencente a Jezuína Clementina de Carvalho, que, provavelmente, seria de
outra fazenda48
.
Partindo desse caso, podemos destacar algumas questões a respeito das estratégias
tecidas por esses escravos para estabelecerem vínculos de parentesco. Considerando que os
cativos tinham a possibilidade de escolha de padrinhos e, portanto, teriam opções de
estabelecer relações de parentesco mais amplas, o que fez com que os pais de Inias elegessem
uma escrava para apadrinhar a sua filha? Apesar da maioria das escolhas serem por padrinhos
livres, segundo Stuart Schwartz (apud Machado, 2006. p.52), “uma estratégia paralela e
prática consistia em levar em conta a possibilidade de, em caso de morte da mãe, a madrinha
escrava assumir a responsabilidade pela criação do afilhado”.
Acreditamos que a escolha de uma madrinha escrava, pertencente a um proprietário
diferente, representa a clara tentativa de estabelecer relações de solidariedade ou até mesmo
de estreitar e/ou consolidar os laços já existentes entre esses escravos. No caso da escolha de
José e Eduvirgens por pessoas livres para apadrinharem a menina Cecília, torna latente o
interesse em conseguir proteção, mobilidade e certos privilégios. As alianças de parentesco
para esse casal ocorreram em universos distintos, o que demonstra as inúmeras possibilidades
de estabelecerem uma gama de relações entre os diferentes segmentos da sociedade.
Clara, escrava pertencente a José Antunes Piauilino de Macedo deu a luz a menina
Valentina em 14 de fevereiro 1877 e que foi batizada um ano após o seu nascimento, na
Fazenda Casa Nova. Casada com José Manoel Pereira, provavelmente um homem livre, pois
48
Os registros de Batismo de Cecília e Gertrudes encontram-se, respectivamente, nas páginas 5 e 7, do Livro de
Um de Batismo contendo apenas registros de filhos de cativos, entre os anos de 1872 e 1888, armazenado na
Cúria da Catedral de São Raimundo Nonato-PI
84
não há menção de que seus pais foram escravos ou forros, nem da sua condição social no
registro de batismo, Clara escolheu para padrinhos de Valentina duas pessoas livres, José
Newton de Carvalho e Josefina Camará.
No primeiro caso, a escolha por padrinhos livres revela, mais uma vez, que esses
escravos possuíam expectativas em relação ao parentesco espiritual e que, em muitos casos, a
escolha estaria associada à esperança de que os mesmos pudessem conquistar a liberdade.
Para Schwartz (1985, p. 333), além disso, prevaleciam, na escolha dos padrinhos,
“considerações de cor e condição social”. Porém, no tocante aos rebentos filhos destas mães
cativas, a liberdade não seria o maior dos anseios, visto que os mesmos seriam livres em
decorrência da Lei. Nesse caso, quais seriam, então, as expectativas de futuro para os rebentos
quando as mães escolhiam padrinhos livres para estabelecer o compadrio? Que esperanças
eram nutridas a partir do parentesco ritual? Segundo Alida Metcalf (1987, p. 240), os laços de
parentesco de escravos com pessoas livres “[...] representavam mobilidade social e
familiaridade com uma sociedade mais ampla”. Considerando que as crianças nascidas a
partir de 1871 eram livres, a escolha dos padrinhos de diferente condição jurídica e social,
visto que muitos são proprietários de terras, revela o desejo de conseguir proteção e melhores
condições de vida para as crianças.
Entretanto, os benefícios vislumbrados com o parentesco espiritual não faziam parte
apenas do mundo dos escravos, o proprietário e também os padrinhos possuíam interesses e
utilizavam suas estratégias para garanti-los. Um exemplo disso é o compadrio estabelecido
entre Maria, mãe de Claudina, parda, nascida em 1879, com o proprietário de terras Amadeu
Ruben de Macedo.49
Apesar das informações serem muito fragmentadas, o que não permite
confirmação, é possível que o senhor da cativa tenha utilizado o parentesco espiritual para
beneficiar-se, visto que Amadeu Ruben de Macedo possuía parentesco consanguíneo com
Manoel José Ruben de Macedo. E essa estratégia estendia-se para as outras três cativas do
proprietário, que também estabeleceram compadrio com Amadeu Ruben de Macedo. Esses
benefícios estariam ligados às garantias de manter o afilhado vinculado ao proprietário de sua
mãe. Portanto, “[...] o compadrio estabelecia um vínculo de mão dupla. Tanto os padrinhos
podiam se beneficiar dos trabalhos, dos préstimos e da fidelidade dos afilhados, quanto estes
esperavam contar com o cuidado, a proteção e o reconhecimento daqueles” (BRUGGER,
2007, p. 325).
49
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo (Filhos de escravas), 1871-1888.
Documentação não catalogada.
85
Ainda em se tratando dos padrinhos, é interessante atentar para a interpretação de
Miridan Falci que compreende os apadrinhamentos como uma escolha do escravo e também
do senhor: “
quem sabe se o apadrinhamento não teria sido um prêmio para aquela criança,
filha de uma escrava, que merecesse aquela consideração, uma amostra, significação de sua
importância para o grupo dos senhores?”(FALCI, 1995, p. 104). Concordamos que, apesar das
hierarquias presentes nessas relações, os escravos tinham as possibilidades de escolhas dos
seus compadres e comadres, e faziam uso desses mecanismos a fim de alcançarem alguma
vantagem nessa rede de relações.
O segundo filho do casal (Clara e Manoel), recebeu o mesmo nome do pai, Manoel,
nascido em 13/12/1880, foi apadrinhado em 01/03/1881, tendo como padrinhos, José Antunes
de Macedo e Nossa Senhora da Conceição.50
O menino Manuel, foi um filho de cativos que
teve como padrinho o senhor de sua mãe, situação considerada, como já mencionamos, pouco
comum no estabelecimento das relações de compadrio no contexto escravista. Com efeito,
para alguns historiadores da escravidão, eram raras as vezes em que senhores apadrinhavam
os filhos de seus escravos, confirmando a hipótese de que o parentesco espiritual era
incompatível com a propriedade escrava (GUDEMAN e SCHWARTZ, 1988). É certo que
essa relação de proximidade entre esses sujeitos através do compadrio não é tão comum para
o período em estudo, porém os poucos casos em que senhores tornam-se compadres de seus
escravos evidenciam a existência de possibilidades que poderiam garantir algum benefício
tanto para os escravos como para os senhores. Em estudo sobre o compadrio na Bahia, Stuart
Schwartz e Stephen Gudman (1988) identificam que poucos senhores apadrinharam os filhos
de suas escravas, porém destacam a preferência dos pais escravos por pessoas livres para
apadrinharem os seus filhos.
No que se refere à madrinha de Manoel, a sua proteção foi atribuída a Nossa Senhora
da Conceição. Segundo Miridan Falci (1995), esse tipo de apadrinhamento ligado à
espiritualidade não se caracterizou como uma prática comum. Em se tratando das fontes
analisadas nesta pesquisa, apenas sete casos (2%) de batizados estão relacionados ao
apadrinhamento espiritual, sendo que todos eles foram atribuídos a Nossa Senhora da
Conceição. A escolha por uma madrinha espiritual pode estar relacionada a uma
demonstração de religiosidade, ao pagamento de uma promessa feita pelos pais do rebento ou
50
Os registros de Batismo de Valentina e Manoel encontram-se, respectivamente, nas páginas 26 e 30 do Livro
de Batismo contendo apenas registros de filhos de cativos, entre os anos de 1872 e 1888, armazenado na Cúria
da Catedral de São Raimundo Nonato-PI
86
mesmo a possibilidade de proteção espiritual que a criança poderia receber. Além disso,
“Nossa Senhora aparecer como protetora, [...] é um demonstrativo de que eles estavam mais
interessados em uma proteção espiritual que material para os seus filhos” (SOUZA, 2007, p.
294).
Ao escolher como padrinho uma pessoa de status superior, Clara, ao que tudo indica
levou em consideração a possibilidade de que o padrinho livre pudesse proporcionar algum
tipo de amparo e de proteção para os filhos. Ao contrário de Clara, o casal José e Eduvirges,
ao que parece, possuía expectativas diferentes, pois procuraram reforçar os laços de
parentesco com membros da comunidade escrava e garantir a proteção do rebento, caso os
pais viessem a falecer.
De fato, a complexidade dessas relações parentais está imbricada em cada um dos
casos analisados, pois se as famílias cativas nutriam possibilidades de proteção, mobilidade e
de liberdade ao estabelecerem o compadrio com pessoas livres ou libertas, ao mesmo tempo
teciam como estratégia a possibilidade de fortalecer os laços de solidariedade já existentes
entre os escravos da mesma comunidade, quando escolhiam uma madrinha escrava para
apadrinhar os seus filhos.
No contexto da vivência entre escravos e demais grupos sociais, as relações eram
complexas e diversificadas. Para Josenildo Pereira, “entre os senhores e os escravos existiam,
particularmente, relações pessoais de dominação, de conflito, mas também de alianças e
convivência pacífica” (2001, p. 49), que podem ser identificadas nas estratégias de
estabelecimento de parentesco utilizadas por senhores e escravos. A despeito disso, acredita-
se que os senhores também possuíam seus interesses quando consentiam com o
estabelecimento de relações parentais envolvendo membros de sua família, pessoas livres ou
escravas de outras fazendas com seus escravos.
Exemplos como os expostos são muito comuns na documentação acessada.
Certamente, esses sujeitos escravizados, libertos, livres pobres, conviviam cotidianamente no
interior dessas propriedades dividindo as atividades de labuta com o gado, da lida com as
roças e atividades domésticas, e, consequentemente, estreitando laços de amizade e de
solidariedade. O resultado dessa convivência diária e a busca pela manutenção dessas relações
de solidariedade pode ser identificado nas atas de batismo. Vejamos algumas trajetórias que
podem revelar os significados dessas relações envolvendo esses sujeitos sociais.
87
4.2 Experiências familiares de escravos
Sabemos que o compadrio não se constituía como única possibilidade de ampliação
das redes de parentesco e, portanto, existiam outras relações que eram estabelecidas pelos
cativos e que demonstram as estratégias dos mesmos no tocante às alianças de parentesco e à
convivência entre estes e os senhores. Neste sentido, a família escrava pode dizer muito a
respeito das redes de sociabilidade que envolviam escravos, libertos e livres no contexto
escravista. Por esta razão, pretendemos, neste capítulo, compreender o estabelecimento desses
laços parentais de maneira mais aprofundada, tratando de alguns casos que mais chamaram a
atenção durante o desenvolvimento desta pesquisa.
Ao tratar do trabalho escravo e dos sacramentos batismais e matrimoniais na Província
do Piauí, Miridan Falci (1995) observou a formação de três tipos de família escrava: nuclear,
matrifocal e solitária51
entre os escravos do sertão do Piauí. Mas que tipo de família
predominava entre os escravizados de São Raimundo Nonato? Atualmente, já não se discute
sobre a existência ou não da família escrava, principalmente porque estudos recentes têm
mostrado que a estruturação familiar de escravos foi uma realidade no contexto escravista.
Compreender o seu significado para cativos e senhores tem sido a grande questão nos estudos
da escravidão. Entender quais as estratégias utilizadas pelos cativos quanto às alianças de
parentesco e, especialmente, qual o significado da família para cativos e senhores faz parte do
conjunto de questões pertinentes a essa temática.
A partir do cruzamento de informações contidas nos assentos de batismo, registros de
casamento e inventários post-mortem, procuramos compreender o significado de cada “peça”
existente nesse complexo quebra-cabeça que são as redes de parentesco envolvendo escravos.
Como mencionado na introdução deste trabalho, a pesquisa com as fontes primárias que
poderiam ser utilizadas para o cruzamento de informações sobre a trajetória de vida desses
sujeitos ficaram limitadas nos três tipos de fontes citadas Os testamentos, as listas de
matrícula e de classificação não puderam ser exploradas por essa pesquisa devido às
condições físicas e a não classificação e catalogação das mesmas, portanto, este trabalho
demandaria um tempo de estudos que ultrapassaria o limite do prazo para a conclusão de um
mestrado acadêmico. Entretanto, a utilização das fontes disponíveis para o levantamento
documental permitiu a elaboração de organogramas que pudessem representar as redes de
51
As famílias nucleares são entendidas como as que são formadas pelo casal e um ou mais filhos. Em seguida,
aquelas formadas apenas pelo casal, são as famílias solitárias. As famílias matrifocais, apresentam apenas a mãe
e seus filhos. (MOTA, 2012, p. 81).
88
relações existentes entre cativos, libertos e livres tanto pelo casamento, como pelo ritual do
batismo. O objetivo, aqui, é apresentar algumas das inúmeras teias de relações existentes e
que, em muitos casos, demonstram as possibilidades de formação e manutenção da família
escrava em São Raimundo Nonato.
O organograma em continuidade (figura 1) destaca a formação de uma família nuclear,
isto é, composta pelos pais e seus filhos. O casal Maria e Zacarias pertencia ao Pe. Sebastião
Ribeiro Lima, mesmo padre que celebrou o ritual de batismo dos quatro filhos deste casal. A
trajetória desta família pode ser acompanhada pelos assentos de batismo dos filhos e pelo
registro de casamento de Maria e Zacarias. Inicialmente, verifica-se um intervalo de quatorze
anos entre a oficialização da união, através do casamento, até o nascimento e batismo do
primeiro filho52
.
Esse fato não anula a possibilidade do casal ter outros filhos com datas de nascimento
durante esse intervalo de tempo, porém prefere-se utilizar a data de batismo do primeiro filho
como ponto referencial, visto que não foram encontrados registros de batismo de algum filho
do casal com data anterior. É certo que esses vinte e um anos entre a data do casamento e o
batismo do último filho53
, podem representar a possibilidade de existência de uma família
cativa estável no sertão piauiense, porém não é possível afirmar que essas famílias não se
encontravam vulneráveis à constante ameaça de separação. É o que Eric Foner (1988, p.17)
pondera quando afirma que “está claro que fortes laços familiares existiram durante a
escravidão, mas sempre foram vulneráveis às rupturas”. Desse modo, é possível que o casal
tenha tido outros filhos anteriores à oficialização do matrimônio ou mesmo após esse ritual e
que podem ter sido separados de seus pais por inúmeras circunstâncias, talvez por esse motivo
ocorra a ausência de outros filhos nos registros.
Dos assentos de batismo em que o casal é mencionado como pais do rebento, foram
localizados quatro registros entre 1872 e 1879. A partir do apadrinhamento dos rebentos é
possível verificar também as estratégias de parentesco ritual estabelecidas pelo casal,
especialmente pela escolha dos padrinhos, na maioria das vezes, pessoas de condição jurídica
diferente e que, muitas vezes, residiam em outras propriedades.
O primeiro filho do casal foi Raimunda, nascida em dezesseis de fevereiro de 1872, foi
levada a pia batismal em vinte e um de março do mesmo ano. Raimunda teve como padrinhos
52
Além de utilizar o nome como referencial de busca e cruzamento de informações, utiliza-se também, como
referência de início das relações, a data de nascimento do primeiro filho do casal. 53
Pode ser que outros filhos vieram após 1879, porém não foram localizados outros registros de batismo que
confirmassem essa possibilidade.
89
um casal de condição jurídica livre, Jerônimo de Sousa Nogueira Boson e Lima e Francisca
Adelino Lopes de Sousa Lima, ambos possivelmente parentes do proprietário do casal, pois
ocorre repetição de sobrenomes em três casos de apadrinhamento. Pouco mais de um ano
depois, nasceu Joaquina, a segunda filha do casal que foi batizada em maio de 1873 por
pessoas de condição livre, Licurgo de Paiva e Maria Constantina Boson e Lima (ver
organograma na sequência).
FIGURA 5 – Família do casal de cativos Zacarias e Maria.
As duas últimas filhas do casal receberam o nome de Maria. A primeira nasceu em
dezembro de 1876 e foi batizada em fevereiro de 1877, tendo como padrinho o proprietário de
escravos Luís Correia Lima e, como madrinha, a escrava Laurinda, cativa de Luís Correia
Lima. Essas informações revelam que havia possibilidade de estabelecer relações de
parentesco com pessoas livres ou escravas de diferentes propriedades e, sobretudo, que a
escolha de compadres e comadres partia de uma rede de relações e de interesses bem mais
complexas, visto que para a mesma família, por exemplo, ocorrem relações de parentesco
entre pessoas de condições jurídicas diferentes e, em alguns casos, envolvendo o senhor do
próprio escravo. A quarta filha do casal, que também recebeu o nome de Maria, nasceu em
abril de 1879 e foi batizada dois meses depois pelo casal Constatino de Souza Nogueira
90
Boson e Lima e Guilhermina Constantina Boson e Lima, ambos eram pessoas livres e
proprietários de escravos.
Consideramos que havia o interesse por parte do casal Zacarias e Maria de estabelecer
laços com pessoas de condição jurídica diferente, nesse caso, a rede de parentesco com
pessoas livres esteve praticamente concentrada na família Boson e Lima. Não é possível
afirmar sobre as razões destas escolhas, mas certamente havia um jogo de interesses tanto por
parte dos cativos como pelo seu proprietário ou ainda pelos padrinhos, o que se nota é que os
Boson e Lima possuíam relações de parentesco com o Pe. Sebastião Ribeiro Lima, e que isso
pode ter influenciado o casal de escravos na escolha dos padrinhos de seus filhos.
Possivelmente, entre os interesses contidos no estabelecimento de relações de
compadrio com pessoas livres, estava o de proteção, pois “[...] a possibilidade da separação de
familiares através da venda, na segunda metade do século XIX, existia e amedrontava
principalmente os escravos que viviam em pequenas propriedades” (ROCHA, 1999, p. 127).
Tecer essas redes de parentesco tanto com outros escravos, como pessoas livres,
proporcionava ampliar o raio de proteção e solidariedade.
No que concerne à única madrinha com a mesma condição jurídica do casal,
observamos a estratégia de garantir a manutenção das relações existentes entre os mesmos e,
ao mesmo tempo, a possibilidade de que seus filhos pudessem ser ajudados pela comadre
Laurinda, caso precisassem. Essa tentativa pode ser percebida também na escolha das
testemunhas do casamento do casal, ambas eram escravos e pertencentes a outros
proprietários de diferentes propriedades, ocorrendo, portanto, uma tentativa de ampliação das
redes de solidariedade entre a comunidade escrava nos dois casos.
A cativa Maria, por exemplo, também apadrinhou três rebentos, filhos de escravas que
pertenciam a diferentes proprietários e que viviam em outras propriedades, o que demonstra a
possibilidade que o cativo tinha de ultrapassar as barreiras da propriedade em que vivia e
estabelecer relações com outros cativos para além dos limites da fazenda. Como destacam
Florentino e Goés (1997, p. 90) “[...] na verdade, o que se buscava era aumentar o raio social
das alianças políticas e, assim, de solidariedade e proteção, para o que se contava inclusive
com ex-escravos, escravos pertencentes a outros senhores e, em casos eventuais, com alguns
proprietários”.
Outro caso de formação familiar e estabelecimento de parentesco é o da cativa
Amância, escrava de Jorge Ferreira de Oliveira, proprietário da Fazenda Tigre. Além de
Amância, foram encontrados registros de mais quartro cativas pertencentes a Jorge Ferreira de
91
Oliveira e todas elas possuíam, em média, cinco filhos cada uma. Amância batizou seis filhos
entre 1873 e 1884, sendo que dois destes eram do sexo masculino e os demais do sexo
feminino.
Nesse caso, a família de Amância seria considerada matrifocal, pois a formação desta
está em torno apenas da figura da mãe e dos filhos, em razão da ausência da paternidade dos
rebentos nos assentos de batismo. Porém, é necessário ressaltar, mais uma vez, que a ausência
do pai nos registros de batismo está relacionada principalmente ao não reconhecimento pela
igreja das relações consensuais existentes entre os pais das crianças, o que não significa que a
cativa Amância não possuía um companheiro. Tarcísio Botelho chama a atenção para essa
questão salientando que:
[...] a possível ausência do pai escravo deve ser posta em dúvida, já que pode
estar sendo influenciada pela documentação utilizada. Apenas os laços
conjugais legalmente sancionados eram levados em consideração. Assim
muitos núcleos familiares que apareciam constituídos apenas de mãe e filhos
poderiam na verdade contar com a presença de um parceiro masculino fixo,
que também dividiria atribuições e encargos (BOTELHO, 1994, p. 127).
Em segundo lugar, detaca-se a frequência, pelo menos em tese, de relações consensuais
entre casais que residiam em diferentes propriedades, principalmente para aqueles que
pretenciam ao mesmo proprietário, mas que desenvolviam suas atividades em propriedades
diferentes. E, no caso de Amância, a quantidade de filhos nascidos em curtos intervalos de
tempo, entre um e outro, leva a crer que havia um relacionamento estável.
Entretanto, outras questões podem explicar a ausência da paternidade nos registros.
Uma delas diz respeito a separação do casal principalmente por venda, este assunto já foi
mencionado em capítulo anterior em que se destaca, para esse período, a possibilidade de
venda de cativos do sexo masculino em grande número para outras regiões do país,
principalmente para a região Sudeste. Destarte, ocorre a impossibilidade de afirmar a presença
da parternidade, visto que não foi possível localizar o registro de casamento de Amância, pois
pode ser que a mesma não tenha oficializado a união com o pai das crianças, se for
considerado o fato de que muitos proprietários de escravos não apoiavam o casamento a fim
de não enfrentarem problemas com a lei, caso desejassem, futuramente, vender um dos
cônjuges.
Além da formação familiar, o parentesco ritual estabelecido através do batismo pode ser
investigado no sentido de identificar a utilização do mesmo como uma estratégia de
sobrevivência, mobilidade social e proteção. A documentação evidencia a predominância de
pessoas livres para apadrinharem os filhos das cativas, sendo que poucos são os registros em
92
que libertos apadrinham filhos de escravos e nenhum caso (do escopo documental utilizado
por esta pesquisa) em que um escravo serve como padrinho de filhos de libertos ou livres.
Ocorre, no último caso, a nítida presença na sociedade escravocrata da relação
hierárquica “para as atitudes, para as ações”, pois nenhum escravo chegou a ser padrinho ou
madrinha de uma pessoa livre, porém a maioria dos padrinhos de filhos de escravos eram
livres. “[...] Mas, nem por isto cativos deixaram de se relacionar com livres e liberto, [...]
embora resguardando hierarquia de valor nestas nelações.” (FARIA, 1998, p. 292). Para o
recorte temporal estudado em São Raimundo Nonato, grande parte das cativas preferia
pessoas livres ou libertas para apadrinharem os seus filhos, como foi o caso da escrava
Amância (figura 6) 54
.
FIGURA 6 – Família da Cativa Amância.
Essa maioria de padrinhos e madrinhas livres é evidente no caso da cativa Amância.
Mas, quais foram as estratégias utilizadas por Amância quanto ao parentesco ritual
estabelecido pelo batismo? Dos seis filhos batizados, apenas dois tiveram, pelo menos, um
dos padrinhos na condição de escravo. João, cabra, nascido em março de 1875, foi batizado,
em junho de 1877, pelo escravo Manoel da Cruz e por Savina Maria de Jesus, de condição
livre. Manoel da Cruz era cativo de Antonio da Costa Passos, proprietário da Fazenda
Caldeirão e casado desde outubro de 1852 com Savina Maria. Percebemos, nesse caso, uma
54
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registros de Batismo de Filhos de Escravos (1871-
1888).
93
aliança de parentesco através do compadrio que envolvia escravos e livres e acreditamos que,
ao escolher o casal de padrinhos de João, a mãe do rebento procurou ampliar o raio de
relações existentes entre eles e, principalmente, garantir a proteção do filho, caso necessitasse.
Boaventura, parda, nascida em 1882, foi batizada em outubro do mesmo ano e teve
como padrinho Manoel de Araújo, de condição jurídica livre, e, como madrinha, a escrava
Emília. O interessante em relação às escolhas dos padrinhos, é que mesmo os padrinhos
escravos pertenciam a outras propriedades e, portanto, eram cativos de outros senhores.
Amância não estabeleceu o compadrio com nenhuma das quatro cativas que também viviam
na mesma propriedade, ou seja, seus filhos não foram apadrinhados pelas outras cativas da
propriedade e Amância também não serviu como madrinha de nenhuma das crianças que
eram filhas das demais escravas. Pode ser que todas as escravas, inclusive Amância,
preferiram estabelecer alianças de parentesco fora da propriedade onde viviam, fortalecendo
os vínculos com pessoas de mesma condição social e, portanto, com interesse em garantir os
laços de solidariedade entre os mesmos.
E no caso dos padrinhos livres? O que Amância esperava ao estabelecer o compadrio
com pessoas de condição jurídica diferente? Maria, a primeira filha de Amância, nasceu em
1873 e também teve como padrinhos um casal de condição jurídica livre, Antônio José dos
Passos e Ana Maria do Espírito Santo, no registro de casamento dos mesmos, Antônio é
citado como proprietário55
.
O casal Nicolau Carlos da Mota e Idalina Maria da Conceição, ambos livres, foram os
padrinhos do rebento Agostinho e levaram o afilhado a pia batismal em junho de 1877.
Evarista, nascida em 1884, teve como padrinhos um casal de livres, Gervásio Vicente de
Oliveira e Emília Maria de Oliveira. Em agosto de 1880, Maria, a quarta filha da cativa
Amância, foi apadrinhada por pessoas livres, Vitoriano Pereira de Araújo e Maria das Neves,
costureira56
.
Apesar das limitações das fontes, que dificultam acompanhar a trajetória dos padrinhos,
em alguns casos, o estado civil e a profissão são mencionados nos registros. Essas
informações podem ajudar a compreender que tipo de expectativas essas mães cativas
possuíam em relação à escolha de compadres e comadres. É possível que um dos significados
dessas estratégias para estabelecer relações de parentesco esteja relacionada à posição social
55
Cartório 2o
Ofício de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento, 1889-1892. Documentação
não catalogada. 56
Cartório do 2o
Ofício de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Casamento, 1889-1892.
Documentação não catalogada.
94
que os padrinhos ocupavam naquele momento, pois, além de serem livres, estes possuíam
alguma profissão ou mesmo eram proprietários de terras.
A possibilidade de estabelecer redes de parentesco com pessoas de status jurídico
diferente pode ter sido também uma medida de proteção. Mesmo que as crianças fossem
livres em consequência da Lei de 1871, havia os riscos de serem separadas de suas mães que
ainda eram escravizadas pelos seus senhores. Nesse caso, os padrinhos, que pelas normas da
igreja seriam os “pais espirituais” da criança, poderiam atuar nessa rede de proteção e
solidariedade, caso fosse necessário. Obviamente, que além da desejada proteção de sua
família, a cativa Amância possuía anseios em relação à conquista de algumas vantagens,
como sua liberdade ou uma possível mobilidade social, visto que “[...] para os cativos, possuir
um padrinho ou compadre livre nas imediações significava vatagens que podiam sobrepujar
as associações internas ou desejo por laços familiares mais amplos” (SCHWARTZ, 1998, p.
332). Casos como o do casal Zacarias e Maria e da família de Amância saltam aos olhos na
documentação, revelando a existência e manutenção das famílias e de suas redes de
sociabilidade no sertão piauiense do século XIX.
4.3 Redes de solidariedade: o compadrio entre escravos
Além de pensar a respeito da família e das estratégias utilizadas pelos cativos
sertanejos, é importante refletir sobre os significados que as redes de compadrio estabelecidas
entre escravos possuíam para os mesmos. A documentação utilizada nesta pesquisa demonstra
a preferência das mães cativas por pessoas livres para apadrinharem seus filhos. Considerando
esses escravos como sujeitos históricos possuidores de vontades e interesses, não há dúvida de
que a predominância de padrinhos livres partiu também das escolhas destas cativas. Porém,
muitos escravos escolheram outros cativos para serem padrinhos de seus filhos. O compadrio,
nesse caso, poderia estar vinculado à estratégia de manter as relações de amizade entre
compadres, reforçando os laços no interior da comunidade escrava, como também em garantir
a proteção do rebento.
Ao tratarem do compadrio no Recôncavo Baiano, durante o século XVIII, Stuart
Schwartz e Stephen Gudeman (1988, p. 37) ressaltam que, apesar do vínculo estabelecido
entre os padrinhos e o afilhado ter sido produzido dentro das normas eclesiásticas através do
batizado, o parentesco ritual ultrapassa o contexto religioso, sendo fortemente influenciado
pelo contexto social a que ambos os sujeitos presentes no ritual do batismo estavam inseridos.
Os autores destacam que cerca de 70% dos padrinhos escolhidos pelos escravos para
95
batizarem as crianças cativas eram de condição jurídica livre, evidenciando que, ao
escolherem padrinhos livres para estabelecerem o compadrio, os escravos da Bahia do século
XVIII possuíam o interesse de garantir um protetor dentro de uma esfera social diferente da
sua (Idem, p. 47-48).
Robert Slenes (1997, p. 271) também salienta a importância do compadrio para o
estabelecimento das relações entre livres, libertos e escravos. Para o pesquisador, a escolha
dos padrinhos pelas famílias cativas era de grande importância para a ampliação das alianças
sociais tanto no cativeiro, como fora dele. Em seu estudo sobre estas relações no Oeste
Paulista do século XIX, ele também identifica uma preferência por padrinhos livres. Porém,
quando os cativos escolhiam pessoas de mesma condição jurídica para apadrinharem seus
filhos, havia preferência por escravos domésticos ou que possuíam alguma profissão.
Ao descrever as relações de compadrio na Freguesia de São José dos Pinhais (PR),
Cacilda Machado (2006, p. 53) indicou uma predominância de pessoas livres apadrinhando
crianças escravas, sendo que poucos eram os padrinhos forros ou cativos que batizavam filhos
de mães escravas. Segundo a autora, embora “[...] o estabelecimento de relações de
compadrio com pessoas de status superior pudesse funcionar bem na busca de proteção social
e mesmo como mecanismo de manutenção e de ampliação de uma comunidade de negros e
pardos [...]”, o compadrio também fortaleceu a dominação e a submissão na teia das relações.
No entanto, apesar de atentar para a complexidade das redes de parentesco, a autora afirma
que o compadrio também “[...] promovia o estreitamento das relações entre escravos e
proprietários, entre livres e cativos, entre negros, pardos e brancos” (MACHADO, 2006, p.
74).
O estudo realizado por Cacilda Machado (2006) sobre as relações políticas e sociais
existentes entre negros, pardos e livres, tem como lócus uma região que apresenta algumas
semelhanças com São Raimundo Nonato (PI), especificamente no que diz respeito à
demografia e à economia. Trata-se de uma Freguesia que, na passagem do século XVIII para
o XIX, caracterizava-se por apresentar pequenas escravarias, onde o número de escravos era
bem inferior se comparado a outras regiões brasileiras. Desse modo, a autora atenta para a
existência de diferenças no âmbito das relações sociais entre regiões de pequenos plantéis e
aquelas que possuíam plantations e, portanto, uma escravaria maior (Idem, p. 82).
Carlos Engemann (2006, p. 212), apesar de estudar as relações escravistas nos grandes
plantéis do sudeste brasileiro, também aponta uma frequência de pessoas livres como
padrinhos de crianças cativas. O autor chama a atenção para essa predominância de padrinhos
96
livres para destacar duas modalidades de ligação entre as comunidades escrava e livre através
do ato ritual do batismo. Segundo ele, essa “simbiose” entre as duas comunidades poderia
ocorrer de duas maneiras, a primeira seria incidental, ou seja, o padrinho aparece na
documentação batizando apenas um escravo. E devido a isso, esses casos tornam-se mais
complexos para analisar as possíveis intenções dos sujeitos, pois, conforme o autor, seria mais
difícil verificar se havia estratégias por parte dos padrinhos e dos pais da criança de tecer
redes de sociabilidade e de proteção, por exemplo.
Uma segunda forma de associar as duas comunidades seria através dos “padrinhos
preferenciais”, isto é, aqueles que aparecem apadrinhando mais de dois filhos de cativas do
mesmo proprietário. Nesse caso, os padrinhos “preferenciais” “[...] parecem ter investido seu
potencial em um único senhor, isto é, mesmo tendo batizado um número considerável de
cativos, por opção ou condição, o fizeram de um mesmo senhor” (Ibdem, p. 213). Desse
modo, os padrinhos utilizavam o compadrio com escravos do mesmo proprietário como tática
para estreitar as relações com o senhor. Não desconsiderando as possibilidades de escolha dos
padrinhos por parte das famílias cativas, o autor também atenta para a existência de interesses
destes cativos ao estabelecer redes de parentesco com pessoas livres.
As relações de compadrio no sertão piauiense envolveram as comunidades escrava e
livre permitindo que homens e mulheres produzissem laços de parentesco e de solidariedade
dentro do contexto escravista. Como a maioria dos padrinhos eram pessoas livres, em muitos
casos, estes chegavam a apadrinhar pelo menos dois filhos de mães cativas pertencentes ao
mesmo proprietário. Seguindo a análise do compadrio realizada por Engemann (2006, p. 213),
situações como esta, em que a mesma pessoa surge apadrinhando filhos de escravos com
maior frequência, podem ser consideradas como uma estratégia tomada pelo padrinho. De
acordo com Engemann, dentro das inúmeras possibilidades de favorecimento, ao escolher
apadrinhar filhos de escravas pertencentes ao mesmo proprietário, o padrinho estaria
construindo ou mesmo fortalecendo as suas alianças sociais com o senhor de seus compadres.
Os classificados como padrinhos “preferenciais” podem ter utilizado essa tática para assegurar
os seus interesses, alguns chegaram a apadrinhar até seis filhos de escravas pertencentes ao
mesmo senhor (ver tabela 11):
97
TABELA 11 – Padrinhos “preferenciais” e número de afilhados. São Raimundo Nonato,
Piauí.
PROPRIETÁRIO PADRINHO AFILHADOS
Daniel José de Souza Bernardo Campos Ramalho 2
Jorge Ferreira de Oliveira Felipe Rodrigues dos Santos 2
Domingos Dias Soares João Augusto Dias Figueiredo 3
Gonçalo Hilário de Farias Jerônimo Maurício dos Santos
Pindaíba
3
José Antunes Piauilino de Macedo Agostinho Dias de Sousa 4
Manoel Antunes de Macedo Raimundo Martins Xavier de
Macedo
4
Luís Correia Lima Júnior João Antunes de Macedo 6
Fonte: Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo (1871-1888).
Entre os padrinhos “preferenciais”, os que apadrinharam até duas crianças filhas de
escravos do mesmo senhor assumem maioria significativa. Outra característica dessas práticas
de parentesco é a predominância de padrinhos que possuíam parentesco consanguíneo ou
ritual com o proprietário dos escravos. A família Antunes de Macedo, por exemplo, foi a que
mais apadrinhou filhos de cativos e, normalmente, os filhos das escravas pertencentes aos
membros dessa família eram batizados entre eles mesmos. Sheila Faria (1998, p.213) também
identificou essa “sobreposição de relações consanguíneas e rituais”, destacando que “em
todos os grupos, parentes próximos foram chamados com frequência para apadrinhar
crianças”. Desse modo, era possível formar uma ampla rede de parentesco ritual, abrangendo
as comunidades livre e escrava, fortalecendo também o campo de atuação dos proprietários de
escravos.
As relações construídas através do parentesco consanguíneo e ritual foram
fundamentais para a ampliação, o fortalecimento e a manutenção da comunidade escrava,
assim como foram importantes para livres e libertos. No que tange ao parentesco ritual, não
somente pessoas livres assumindo o papel de padrinhos e madrinhas faziam parte dessas redes
de relações. Muitos escravos conseguiram estabelecer alianças de parentesco ritual com
outros escravos, alguns de diferentes propriedades, mas também com pessoas livres. As atas
de batismo registram situações em que um cativo chegou a apadrinhar pelo menos duas
pessoas de uma mesma propriedade, mas também evidenciam uma extensão do raio de
relações sociais destes cativos. Ao examinar os laços de compadrio estabelecidos entre
98
escravos, alguns exemplos chamaram a atenção pela frequência com que alguns cativos
apadrinhavam os filhos de outros escravos.
O escravo Antônio, pertencente a Rita Maria de Jesus, moradora na localidade Lagoa
do Mato, batizou, no período entre 1872 e 1885, quatro filhos de escravas pertencentes a
outros proprietários.57
O primeiro afilhado foi Jerônimo, mulato, classificado como filho
legítimo, pois é filho do casal Jerônimo Alves de França, livre, e de Luíza, escrava de Luís
Correia Lima Júnior, batizado em 1872. A madrinha de Jerônimo foi Ana Clara de Farias
Pindaíba, livre e provavelmente possuía algum tipo de relação com o proprietário da escrava
Luíza. Nesse caso, Antônio teve uma comadre cativa, mas residente em outra propriedade,
além disso, ele estendeu a sua rede de parentesco para além da comunidade escrava, visto que
o seu compadre era livre.
FIGURA 7 – Laços de compadrio do cativo Antônio (1872-1885).
57
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravas (1871-
1888). Freguesia de São Raimundo Nonato.
99
Em 1876, foi a vez de Antônio levar a pia batismal o rebento Tertuliano, pardo, filho
de Marinha, cativa de José Antunes Piauilino de Macedo58
. Dessa vez, a rede de parentesco
envolveu três cativos pertencentes a diferentes proprietários, pois, além da mãe do rebento e
do padrinho, a madrinha Tomásia também era escrava. Infelizmente, não foi possível localizar
a quem ela pertencia, porém, a partir do que foi possível identificar na documentação, temos
que a cativa Tomásia era parda, 21 anos, vivia na localidade São Lourenço. Esse caso de
apadrinhamento revela que os escravos de diferentes propriedades relacionavam-se entre si,
confirmando que possuíam certa mobilidade espacial e que, muitas vezes, chegavam a
percorrer longas distâncias entre uma fazenda e outra para participar de uma cerimônia de
batismo.
No ano de 1882, Raimunda, cativa de Domingos Dias Soares, batizou sua filha Ana,
na localidade de Lagoa do Mato. A mãe escolheu para padrinhos o cativo Antônio e a
proprietária Rita Maria de Jesus59
. O mais interessante, nesse caso, é que a madrinha da
menina Ana, é também a proprietária do escravo Antônio, o que reforça mais uma vez a
intensidade das relações existentes entre pessoas escravizadas e livres. Depois deste batismo,
Antônio apadrinhou mais um rebento, filho de escravos. José, filho de Vitoriana, escrava de
Daniel José de Souza, moradora na localidade Julião, foi batizado no ano de 1885, sendo seus
padrinhos Antônio e Fulgência Maria de Jesus, livre60
.
O compadrio estabelecido entre Antônio e os pais de seus afilhados ultrapassou os
limites das propriedades onde os mesmos viviam, demonstrando que havia uma rede de
convívio entre escravos de diferentes propriedades. Em conformidade com Manolo Florentino
e Roberto Goés (2005, p. 215-216), em regiões de pequenos plantéis, as chances dos escravos
serem padrinhos dos escravos que viviam em propriedades diferentes era muito maior, visto
que as opções de escolha eram bem menores nas propriedades com pequena posse de escravo.
Portanto: “Nos plantéis menores, a maior parte dos padrinhos escravos pertencia a outro
senhor; nos maiores se dava o inverso, isto é, os escravos aí reunidos buscavam padrinhos
entre eles mesmos”.
Dos quatro rituais de batismo em que o cativo Antônio participou como padrinho,
apenas um deles menciona o nome do pai do batizando, nos demais, a documentação silencia
58
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravas (1871-
1888). Freguesia de São Raimundo Nonato. 59
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-
1888). Freguesia de São Raimundo Nonato. 60
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-
1888). Freguesia de São Raimundo Nonato.
100
a paternidade. Infelizmente, é impossível afirmar se as três mães cativas que aparecem
batizando os seus filhos, listados na ata de batismo como ilegítimos, mantinham uma relação
estável com o pai da criança. Talvez estas mães consideradas pela igreja como solteiras,
viviam com um parceiro numa relação consensual e, possivelmente, algumas delas
oficializaram a união anos depois. Um exemplo disso é o da cativa Marinha, mãe de
Tertuliano, batizado pelo escravo Antônio em 1876. Quatro anos antes, Marinha levou a pia
batismal, Firmino, mulato, com um ano e quatro meses de nascido61
. Os padrinhos escolhidos
foram Alexandre José da Silveira, livre, e Liberata Irias, escrava. Em 1885, Marinha é citada
na ata de batismo de Manoel, seu terceiro filho, como escrava liberta e casada com Joaquim,
então escravo de José Piauilino de Macedo.62
Possivelmente, Joaquim e Marinha já
mantinham uma relação estável quando batizaram Firmino e Tertuliano, porém a oficialização
da união só ocorreu anos depois, contudo, não se pode afirmar quando o casamento
aconteceu, nem mesmo se Marinha já era liberta quando formalizou a união com Joaquim,
devido à limitação de tempo e das fontes.
Possivelmente, a cativa Vitoriana também mantinha uma relação estável com o pai dos
seus filhos. Ela teve cinco filhos no intervalo entre os anos de 1871 e 1883.63
Considerando o
nascimento do primeiro filho como tempo inicial da união do casal, possivelmente mãe e
filhos contavam com a participação do pai no convívio familiar. É também possível que eles
não tenham oficializado a união, pois o registro de casamento ou outro documento que
sinalize para este fato não foi localizado. Quanto às relações de parentesco ritual estabelecidas
por Vitoriana, todos os padrinhos dos seus cinco filhos são de outras propriedades, ela não
estabeleceu compadrio com nenhum escravo que vivia na mesma propriedade. As atitudes de
Vitoriana, assim como as de muitas mães cativas, revelam a existência de “brechas” dentro do
sistema escravista que permitiam aos escravos do sertão piauiense estabelecer suas relações
de parentesco e de amizade. O parentesco ritual “[...] revela-nos elementos relativos às
expectativas dos cativos diante da família, que não são percebidos através do parentesco
consangüíneo. Isso porque envolve os mecanismos de escolha que este não possui” (ROCHA,
1999, p. 121).
61
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-
1888). Freguesia de São Raimundo Nonato. 62
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-
1888). Freguesia de São Raimundo Nonato. 63
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-
1888). Freguesia de São Raimundo Nonato.
101
Analisando os registros de batismo em que a escrava Geralda aparece como madrinha,
verificamos um padrão muito interessante quanto às relações de compadrio. As três crianças
que ela apadrinhou eram filhas de cativas pertencentes à mesma família, porém todas elas
moravam em diferentes propriedades.
FIGURA 8 – Laços de compadrio da cativa Geralda (1878-1882)
No ano de 1878, Geralda, cativa de Raimundo Xavier de Macedo, foi madrinha de
Maria, cabra, filha natural de Romana, moradora na localidade São Vitor e escrava de José
Antunes Piauilino de Macedo.64
Eugência, parda, filha natural de Maria, escrava de Maria
Antunes de Macedo, foi a segunda afilhada de Geralda, sendo batizada no ano de 1881, na
localidade de Tanque. 65
E, por fim, Isabel, escrava de Manoel Antunes de Macedo, escolheu
os escravos Geralda para madrinha e Vitalino para padrinho de seu filho, chamado Lourenço.
66 Dentre as inúmeras motivações para a escolha da madrinha, percebemos claramente a
preferência por estabelecer laços de parentesco entre escravos pertencentes à mesma família
de senhores, para assegurar proteção ou algum outro tipo de vantagem.
64
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-
1888). Freguesia de São Raimundo Nonato. 65
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-
1888). Freguesia de São Raimundo Nonato. 66
Cúria Diocesana de São Raimundo Nonato-PI. Livro de Registro de Batismo de Filhos de Escravos, (1871-
1888). Freguesia de São Raimundo Nonato.
102
Acreditamos que esse padrão nas relações de compadrio pode ser uma escolha tanto
dos escravos, como dos seus senhores. Para os primeiros, manter relações de amizade e
parentesco entre escravos constituía-se num meio de estender os laços de solidariedade dentro
da comunidade escrava. No que concerne aos interesses dos senhores, manter os laços de
parentesco consanguíneo ou ritual entre seus escravos, seguramente, representava uma
medida de controle. Desse modo, “[...] o predomínio de pequenos proprietários de escravos
tornou o compadrio estratégico também na busca de proteção social, por parte dos escravos, e
instrumento de controle senhorial” (MACHADO, 2006, p. 49).
A partir das informações contidas na documentação utilizada para esta pesquisa e da
reconstituição de trajetórias familiares abrangendo escravos, podemos inferir que o ritual do
batismo transcendeu o seu significado religioso, assumindo, sobretudo, a qualidade de ato
social. Os laços de compadrio estabelecidos entre os cativos de São Raimundo Nonato (PI),
durante o século XIX, constituíam um mecanismo para ampliar e manter uma comunidade de
negros, pardos, caboclos e de alguns brancos. Como destacado, esses homens e mulheres
escravizados procuraram forjar laços de parentesco consanguíneo e ritual que garantissem
determinada mobilidade e espaço de autonomia na vida cotidiana do sertão piauiense.
103
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos últimos meses de elaboração deste trabalho, uma frase foi mencionada com
frequência: “Uma hora é preciso parar de ler e de analisar fontes, pois o tempo acaba”. E
realmente é preciso fechar este ciclo, pois a cada nova leitura, a cada fonte localizada em
meio as tantas peças desse quebra-cabeça, surgem novos questionamentos, novos caminhos e
possibilidades de interpretação.
No decorrer deste trabalho, procuramos examinar aspectos da vida cotidiana no sertão
piauiense na segunda metade do século XIX. O objetivo central foi compreender as maneiras
como os escravos, livres e libertos da região teciam suas estratégias de sobrevivência. Para
isso, os registros paroquiais, as cartas de alforria e os inventários post-mortem foram preciosas
fontes de investigação. Foi nas entrelinhas destas fontes que se pôde identificar e destacar
algumas especificidades das relações escravistas presentes naquele período. Dentre as
características do período em estudo que tornaram a Vila de São Raimundo Nonato uma
região específica, destacou-se a estrutura da posse escrava. As informações contidas nos
inventários revelaram a predominância de pequenas propriedades e, com elas, um número
pequeno de posse escrava. Além disso, a documentação não revelou a presença de senzalas e
de feitores nas propriedades, o que evidencia que, muitas vezes, senhores e escravos dividiam
a lida cotidiana e compartilhavam os mesmos espaços.
Para compreender os significados das relações de parentesco, tornou-se fundamental
conhecer o perfil populacional e o universo material dos habitantes dessa região. Vimos que a
maioria de mulheres em relação aos homens, as consideráveis taxas de natalidade, a
predominância de pequenas propriedades atreladas à agricultura de subsistência e à pecuária,
entre outros fatores, influenciaram diretamente na dinâmica das relações sociais entre
escravos, livres e libertos.
A partir do cruzamento de informações contidas nos diferentes documentos, foi
possível observar que os escravos estavam fortemente ligados por redes de parentesco
consanguíneo e ritual. Apesar do casamento formal pela igreja não ter predominado entre os
cativos dessa região, pelo menos no período em estudo, a cada busca por informações sobre a
trajetória destes sujeitos, uma “peça” encaixava-se no grande quebra-cabeça. Muitas famílias
constituíram-se nucleares, o casal e seus filhos mantiveram estabilidade familiar por gerações.
Outros casais preferiram a união consensual, mas não deixaram de manter os laços familiares
104
e de buscar meios para garantir a sua sobrevivência. E ainda, um número expressivo de mães
cativas que se mantiveram solteiras, porém tecendo alianças de parentesco para proporcionar
aos seus filhos proteção e melhores condições de sobrevivência. A formação dos núcleos
familiares no sertão piauiense ocorreu de forma diversificada, aconteceram uniões entre
escravos e libertos, livres e escravos e, principalmente, casamentos envolvendo cativos de
diferentes propriedades.
Dos assentos de batismo, brotaram arranjos familiares e de compadrio fundamentais
para garantir a sobrevivência dessas famílias. A predominância de escolha por padrinhos
livres revela os interesses destes escravos em forjar vínculos parentais com pessoas em
melhor situação dentro da hierarquia social da época e, assim, poder assegurar as vantagens
desejadas, que não raro eram conquistadas. Mas, não se pode generalizar, pois foram
identificados alguns casos em que o compadrio foi estabelecido entre escravos, sendo que
alguns dos padrinhos escolhidos viviam em outras propriedades. Nesse caso, percebemos que
as alianças de parentesco visavam também à proteção e ao fortalecimento da comunidade
escrava.
Outra questão revelada é a mobilidade dos escravos entre os espaços, de modo que,
para escolherem padrinhos residentes em outras propriedades, os mesmos já circulavam por
esses espaços e mantinham relacionamentos com os demais cativos. Alguns desses micro-
casos foram utilizados neste trabalho para demonstrar os diversos tipos de práticas adotadas
através do compadrio, inclusive, alguns mecanismos empregados pelos proprietários de
escravos para manter o controle sobre eles.
Apesar de algumas limitações, as fontes utilizadas nesta pesquisa afloraram relações
de amizade, sociabilidade, respeito e solidariedade entre homens escravizados, livres e
libertos, demonstrando as experiências cotidianas e os significados dessas relações para esses
sujeitos. Desse modo, esperamos ter conseguido demonstrar a diversidade e as peculiaridades
do viver escravo no sertão piauiense, bem como destacar os arranjos tecidos através da família
escrava e do estabelecimento de relações de compadrio que permitiram a esses homens
garantir laços de afetividade e de sobrevivência no sertão piauiense.
Contudo, apesar do crescente número de estudos sobre a escravidão no Brasil, ainda
existe um vasto campo de pesquisa a ser explorado, sobretudo no aspecto regional que
propicie conhecer as especificidades da vida material e das relações sociais envolvendo
escravos. No Piauí, por exemplo, a documentação das igrejas, dos fóruns, dos arquivos em
105
geral ainda aguarda por pesquisadores que possam narrar as muitas histórias de homens e
mulheres sertanejos.
106
REFERÊNCIAS
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