UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS SOCIAIS APLICADOS
FACULDADE DE CIÊNCIAS ECONÔMICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA
BIANCA AIRES IMBIRIBA DI MAIO BONENTE
DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA
ECONÔMICA: POR UMA CRÍTICA NEGATIVA DO
DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA
Niterói (RJ)
2011
ii
BIANCA AIRES IMBIRIBA DI MAIO BONENTE
DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA
ECONÔMICA: POR UMA CRÍTICA NEGATIVA DO
DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências Econômicas da
Universidade Federal Fluminense como parte
dos requisitos para obtenção do Grau de
Doutor em Economia.
Orientador: Prof. Dr. João Leonardo Medeiros
Niterói (RJ)
2011
iii
BIANCA AIRES IMBIRIBA DI MAIO BONENTE
DESENVOLVIMENTO EM MARX E NA TEORIA
ECONÔMICA: POR UMA CRÍTICA NEGATIVA DO
DESENVOLVIMENTO CAPITALISTA
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências Econômicas da
Universidade Federal Fluminense como parte
dos requisitos para obtenção do Grau de
Doutor em Economia.
Banca examinadora:
________________________________________________________
Prof. Dr. João Leonardo Medeiros (Orientador)
Faculdade de Economia - UFF
________________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Dias Carcanholo
Faculdade de Economia - UFF
________________________________________________________
Prof. Dr. Mario Duayer
Faculdade de Economia - UFF
________________________________________________________
Prof. Dr. Niemeyer Almeida Filho
Instituto de Economia – UFU
________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Nakatani
Departamento de Economia – UFES
Niterói (RJ)
03 de Agosto de 2011
iv
B712
Bonente, Bianca Aires Imbiriba Di Maio Desenvolvimento em Marx e na teoria econômica: por uma crítica negativa do desenvolvimento capitalista / Bianca Aires Imbiriba Di Maio Bonente ; orientador João Leonardo Medeiros. Niterói, 2011.
142 f. Tese (Doutorado em Economia) – Universidade Federal
Fluminense, 2011.
1. Teoria do desenvolvimento. 2. Desenvolvimento sócio-econômico. 3. Crítica da economia. 4. Teoria marxista. I. Medeiros, João Leonardo Gomes, orientador. CDD 338.9
v
Peço-lhe que tente ter amor pelas próprias
perguntas, como quartos fechados e como livros
escritos em uma língua estrangeira. Não
investigue agora as respostas que não lhe podem
ser dadas, porque não poderia vivê-las. E é disto
que se trata, de viver tudo. Viva agora as
perguntas. Talvez passe, gradativamente, em um
belo dia, sem perceber, a viver as respostas.
(Rainer Maria Rilke – Cartas a um jovem poeta)
vi
À Alice Helga Werner, em memória.
vii
Agradecimentos
Gostaria de começar essa seção de agradecimentos com uma espécie de
autocrítica e balanço da trajetória acadêmica ao longo da qual venho perseguindo um
entendimento mais amplo da temática discutida no presente trabalho. Para aqueles que
transitam no meio acadêmico, não contarei qualquer novidade ao lembrar como minha
pesquisa foi, não raras vezes, atropelada pela necessidade de cumprir prazos (cada vez
mais estreitos) e seguir adiante na formação strictu sensu. A todos, devo ainda confessar
que dessa vez as coisas não foram tão diferentes assim, aliando-se aos prazos estreitos, a
necessidade de dar início às atividades como docente (atravessadas por aulas, reuniões,
concursos e mudanças de cidade). No entanto, diria ainda que, apesar dos contratempos
e das questões deixadas em aberto (que fazem com que compartilhe o sentimento do
jovem poeta a quem Rilke dirige suas cartas), creio finalmente ter conseguido chegar à
forma mais aproximada daquela que idealizei. A todos aqueles que contribuíram, direta
ou indiretamente, para que isso fosse possível, deixo aqui registrados os meus sinceros
agradecimentos.
Em especial, agradeço ao orientador e amigo João Leonardo, que abraçou esse
projeto com empenho e dedicação admiráveis, que esteve sempre disponível e presente
(apesar das distâncias que separam Niterói de Uberlândia, Campos e/ou Vitória),
sabendo ser duro e afável nos momentos certos. Do tempo em que trabalhamos juntos
levarei comigo muitas lições, as melhores recordações e a esperança de poder seguir
adiante na parceria.
Ao professor Marcelo Carcanholo, que carregou durante muito tempo parte da
responsabilidade por esse trabalho, respondendo formalmente como meu orientador,
sempre disposto a dialogar sobre o tema e dar valiosas críticas e sugestões. Agradeço
também ao professor Niemeyer Almeida Filho, que colaborou com esse projeto durante
todo o período do mestrado, mas especialmente como orientador da minha dissertação.
Ao professor André Guimarães, o primeiro a ter coragem de me acompanhar nessa
empreitada, ainda no período da graduação, e peça fundamental no meu retorno à
Niterói para o início do doutorado.
Apesar da impossibilidade de mencionar e prestar os devidos agradecimentos
aos demais professores que contribuíram com minha formação, gostaria de agradecer
ainda a duas pessoas muito especiais, sem as quais nada disso teria sido possível. Em
primeiro lugar, ao professor Mario Duayer, por ter iluminado meus caminhos e me
apresentado às discussões no campo da filosofia da ciência, que serviram como
fundamento para a realização desse trabalho. Finalmente, gostaria de deixar registrados
meus agradecimentos póstumos à professora Alice Werner a quem dedico este trabalho
e com quem tive a primeira oportunidade de conhecer a obra de Marx.
A todos os colegas e amigos do departamento de Economia da UFF/Campos
(sempre generosos e extremamente compreensivos diante da minha necessidade de
dedicar muito das 40 horas semanais à redação desse trabalho), do Instituto de
Economia da UFU (onde fiquei por um período breve, mas muito feliz), do Grupo de
Pesquisa Teoria Social e Crítica Ontológica e do Núcleo Interdisciplinar de Estudos e
Pesquisas sobre Marx e o Marxismo (espaços de diálogo e aprendizado constantes).
Mais uma vez, apesar da impossibilidade de mencionar os nomes de todos aqueles que
estiveram ao meu lado e contribuíram com a realização desse projeto, gostaria de prestar
ainda meus agradecimentos especiais às amigas Lérida Povoléri e Paula Nabuco,
sempre muito presentes e fiéis.
viii
Por fim, agradeço a toda a minha família (avô, avós, tios, tias, primos e primas),
em especial ao meu pai Humberto (apoio e presença constantes), à minha mãe Thereza
(exemplo de mãe, mulher e profissional, que ainda encarou nos momentos finais a árdua
tarefa de revisar todo o trabalho), à minha irmã Luciana (minha luz) e ao meu sobrinho
Theo (criança adorável). À família que adotei nos últimos anos (Eduardo, Madelaine,
Creuza, Elisa e demais membros da família Figueira), especialmente ao meu
companheiro Hugo, que esteve ao meu lado durante os últimos oito anos, me apoiando
nos momentos mais difíceis, abrindo mão das suas próprias questões para me auxiliar
com os minhas, algo que só uma pessoa com coração tão grande e generoso é capaz de
fazer. Muito obrigada!
ix
Resumo
O objetivo deste trabalho é testar a hipótese de que as teorias do
desenvolvimento são única e exclusivamente teorias do desenvolvimento capitalista,
tanto no sentido de que o limite teórico e prático da sua intervenção é o capitalismo (e
apenas o capitalismo), quanto no sentido de que ao fazê-lo projetam o capitalismo (uma
imagem dele, ao menos) como figura inexorável do futuro da humanidade. Para,
primeiro, atestar e, depois, defender o nexo entre as teorias econômicas do
desenvolvimento e a reprodução da sociedade capitalista, foi empreendido um contraste
entre os termos comuns dessas teorias e os elementos que caracterizam a análise do
desenvolvimento em-si da sociedade capitalista encontrada na obra de Marx (seguindo,
é claro, a interpretação aqui defendida). O contraste evidenciou não apenas ser possível
conceber o desenvolvimento da sociedade na sua atual configuração como uma fase
historicamente contingente do desenvolvimento social em geral, mas também confirmar
a hipótese de que as teorias econômicas do desenvolvimento são manifestações teóricas
do próprio desenvolvimento social na sua atual forma.
Abstract
This work consists of an attempt to test the following hypothesis: that theories of
development are nothing but theories of capitalist development, either in the sense that
the theoretical and practical limits of their intervention is capitalism (and nothing
beyond it) and in the sense that, in doing so, they project capitalism (at least an image of
it) as a inexorable picture of the future of humanity. In order to, firstly, attest and,
secondly, maintain the connection between economic theories of development and the
reproduction of capitalist society, a contrast between the common traits of these theories
and the elements that characterize the Marxian analysis of development in itself was
undertaken. This contrast revealed that it was possible to conceive the development of
society in its current configuration as a historically contingent phase of the general
development of society. It also confirmed the hypothesis that economic theories of
development are theoretical manifestations of social development in its current form.
x
Índice
Introdução................................................................................................................. 1
Parte I. Por uma teoria ontológica do desenvolvimento....................................... 8
Capítulo 1. Leis gerais de desenvolvimento da sociedade: historicidade e
desigualdade do desenvolvimento....................................................................
10
Seção 1.1. As leis gerais de desenvolvimento da sociedade........................ 10
Seção 1.2. Historicidade e desigualdade do desenvolvimento.................... 13
Seção 1.3. Linhas gerais de desenvolvimento do ser social: considerações
finais.............................................................................................................
16
Apêndice I. Esclarecimentos sobre a categoria Desenvolvimento
Desigual.......................................................................................................
21
Capítulo 2. Lei geral da acumulação capitalista: dinâmica autoexpansiva,
desenvolvimento e estranhamento...................................................................
24
Seção 2.1. Leis gerais de desenvolvimento da sociedade capitalista......... 25
Seção 2.2. Considerações sobre o desenvolvimento capitalista e suas
contradições.................................................................................................
29
Apêndice II. Desenvolvimento capitalista e mercado mundial.............. 35
Capítulo 3. O desenvolvimento capitalista e suas particularidades............. 39
Seção 3.1. A assim chamada “Era de Ouro do capitalismo”....................... 40
Seção 3.2. A crise dos anos 1970 e a contra-revolução conservadora......... 48
Seção 3.3. O desenvolvimento capitalista e suas particularidades:
considerações finais.....................................................................................
60
Apêndice III. Notas sobre a complexidade da dinâmica capitalista...... 63
Parte II. Teorias do desenvolvimento: por uma crítica ontológica..................... 67
Capítulo 4. Os modelos “prototípicos” de crescimento econômico:
Harrod, Domar e Solow....................................................................................
70
Seção 4.1. Crescimento equilibrado e instabilidade nos modelos de
Harrod e Domar...........................................................................................
71
Seção 4.2. A estabilidade do crescimento no modelo de Solow................. 77
Seção 4.3. Considerações finais................................................................... 80
Capítulo 5. Teorias clássicas do desenvolvimento (i): estratégias de
industrialização para as regiões subdesenvolvidas, em geral.......................
83
Seção 5.1. Círculo vicioso da pobreza e estratégia de crescimento
equilibrado...................................................................................................
84
Seção 5.2. Causação circular acumulativa e estratégia de crescimento
desequilibrado..............................................................................................
90
Seção 5.3. Rostow e o manifesto não-comunista: uma síntese do debate?. 94
Seção 5.4. Considerações finais................................................................... 99
xi
Capítulo 6. Teorias clássicas do desenvolvimento (ii): em defesa da
industrialização na América Latina................................................................
102
Seção 6.1. O “sistema centro-periferia” e a deterioração dos termos de
troca.............................................................................................................
103
Seção 6.2. Em defesa da industrialização na América Latina..................... 107
Seção 6.3. Considerações finais................................................................... 111
Capítulo 7. As tendências do debate sobre desenvolvimento no pós-1970... 114
Seção 7.1. A requalificação do debate sobre desenvolvimento................... 117
Seção 7.2. O dilema “Estado x Mercado”................................................... 123
Seção 7.3. Considerações finais................................................................... 128
Conclusão.................................................................................................................. 130
Referências................................................................................................................ 137
1
Introdução
Não é de se estranhar que um autor polêmico como Marx suscite ainda hoje
tantas releituras e interpretações, dos mais variados tipos e nas mais diversas áreas,
desde aquelas decididas a apontar inconsistências e incorreções teóricas, até as que
buscam, a partir de um resgate, avançar em pontos pouco explorados pelo autor,
passando ainda pelas tentativas de sistematização (pretensamente isentas) geralmente
encontradas em manuais e/ou livros-texto. Em uma inspeção rápida desse material,
podem ser encontradas algumas leituras pertinentes (embora nem sempre corretas) e
outras insustentáveis diante de um exame cuidadoso da obra do autor. Particularmente
no que diz respeito à temática do desenvolvimento, uma leitura bastante difundida é
aquela que atribui ao autor uma noção de desenvolvimento associada ao trânsito
inexorável por etapas históricas bem definidas. De acordo com essa concepção,
portanto, Marx estaria apresentando a história humana como uma sucessão de modos de
produção (movida pelas contradições que se estabelecem entre forças produtivas e
relações de produção, ou entre base econômica e superestrutura), cujo fim, ou estágio
último, seria o comunismo (independentemente da forma como este é concebido).1
Perspectivas desse tipo buscam amparo, por exemplo, em trechos do prefácio ao
Para a Crítica da Economia Política, onde Marx (1982: 26) fala de “relações de
produção [...] que correspondem a uma etapa determinada de desenvolvimento das [...]
forças produtivas materiais”, ou ainda em trechos do conhecido prefácio à primeira
edição de O Capital, onde Marx utiliza por diversas vezes o termo desenvolvimento,
geralmente em referência aos casos Inglês e Alemão (tomados ambos, especialmente o
primeiro, como “laboratórios de investigação”). Nesse particular, Marx (2002: 16) faz
afirmações como “o país desenvolvido não faz mais do que representar a imagem futura
do menos desenvolvido”, ou mesmo, “uma nação deve e pode aprender de outra. [...]
não pode ela suprimir, por saltos ou por decreto, as fases naturais de seu
desenvolvimento”. (Ibid: 17-18) Nas passagens mencionadas, portanto, Marx estaria
comunicando aos conterrâneos alemães que o futuro de seu país poderia ser conhecido
diretamente pelo exame do passado de um país mais desenvolvido: a Inglaterra. Como
1 Uma síntese desta leitura, e das principais controvérsias por ela suscitada, pode ser vista em Harris
(1983).
2
sintetizado na expressão tomada de empréstimo pelo autor das Sátiras de Horácio:
“Quid rides? Mutato nomine, de te fabula narratur”.2
Ainda que o emprego da palavra desenvolvimento nas passagens supracitadas
tenha alimentado polêmicas, é possível encontrar inteligibilidades bastante diversas da
questão dentro do mesmo ambiente teórico. Uma interpretação particularmente
instigante encontra-se no trabalho póstumo do filósofo marxista G. Lukács (1979).
Considerando o conjunto da obra e o sentido geral da teoria social marxiana, Lukács
propõe que, com a palavra desenvolvimento, Marx tem por referência o aumento
objetivo da complexidade como elemento regulador da dinâmica de funcionamento de
objetos estruturados ao longo do tempo. (Ibid: 54) Ou seja, “uma dada estrutura
(totalidade) é objetivamente superior, ou mais desenvolvida, do que outra estrutura da
mesma espécie caso seja constituída por um maior número de componentes específicos,
ou pelo mesmo número de componentes mais complexos”. (Medeiros, 2007: 45)
No caso da sociedade (abstratamente considerada), esse aumento no grau de
complexidade poderia ser traduzido no crescimento da sociabilidade em sentido
extensivo (aumento da quantidade de componentes predominantemente sociais como
elementos mediadores da vida em sociedade) e/ou intensivo (crescente complexidade
dos componentes já existentes), tendência essa que Marx costumava caracterizar como
recuo das barreiras naturais. Sobre as tendências que regulam a dinâmica de
funcionamento da sociedade, Lukács (2007: 237-238) menciona ainda o aumento das
forças produtivas do trabalho (ou seja, a diminuição do tempo de trabalho necessário à
produção e reprodução das condições de vida humana) e a formação do gênero humano,
resultado das “ligações quantitativas e qualitativas cada vez mais intensas entre as
sociedades singulares originalmente pequenas e autônomas”. (Ibid)
No caso da sociedade em forma especificamente capitalista, desenvolvimento
significa, seguindo a mesma lógica, a operação das leis que emanam da organização
própria da economia regida pelo capital em sentido extensivo (i.e., para uma porção
mais ampla do globo, submetendo uma quantidade maior de formações sociais e seres
humanos) e/ou intensivo (comandando momentos mais amplos da convivência social,
como a atividade artística, esportiva, relações afetivas etc.). O trânsito desde um estágio
mais baixo de desenvolvimento para um estágio mais alto significa, portanto, a
2 “Está rindo do quê? Em outras palavras, a fábula fala de ti”.
3
predominância mais ampla da lógica capitalista na existência social (e não a passagem
do pior ao melhor, como quer que esses estados sejam definidos).
Se essa é, de fato, a maneira como Marx concebeu o desenvolvimento, então o
desenvolvimento de que fala em O Capital é o desenvolvimento do seu objeto de
análise (a sociedade capitalista, cuja dinâmica é dominada por sua economia, como
procura demonstrar a obra). Ademais, o fato de que Marx tenha procurado capturar a
essência desse desenvolvimento mediante o enunciado de leis de tendência revela, por
um lado, que o autor tem plena consciência de que o processo de desenvolvimento
comporta histórias (i.e., trajetórias concretas, efetivas) bastante diferenciadas. Isso
porque leis de tendências não são afirmações sobre sequências regulares de eventos,
mas sim proposições sobre a capacidade causal de um determinado objeto do mundo,
que pode ser exercida sem que os fenômenos causados se manifestem (em virtude da
operação de tendências contra-restantes). Naturalmente, isso confere à análise de Marx
um caráter post festum, não preditivo. Por outro lado, a caracterização do processo de
desenvolvimento mediante o enunciado de leis de tendência nitidamente revela o
reconhecimento do caráter não-teleológico da história em seu conjunto. Ainda que Marx
destaque a teleologia como o aspecto distintivo da práxis humana, ele simultaneamente
caracteriza a dinâmica da sociedade como o resultado da articulação espontânea, não-
teleológica, dessas práticas.3
Com essas considerações, torna-se possível retomar as passagens de Marx
citadas no início dessa introdução, especialmente aquelas que tratam da relação entre
Inglaterra e Alemanha. À luz da interpretação aqui defendida, pode-se sugerir que Marx
considerava a Alemanha um país capitalista, mas com um grau de penetração do capital
na vida social como um todo relativamente limitado em comparação com a Inglaterra.
Por esse motivo afirma que “além dos males modernos, oprime a nós alemães uma série
de males herdados, originários de modos de produção arcaicos, caducos, com seu
séquito de relações políticas e sociais contrárias ao espírito do tempo. Somos
atormentados pelos vivos e, também, pelos mortos. Le mort saisit le vif. [O morto tolhe
o vivo]” (Marx, 2002: 16-17)
3 Em O Capital, essa diferença entre o caráter teleológico das práticas individuais e o caráter não-
teleológico do processo social em seu conjunto é salientada por diversas vezes. Um bom exemplo é a
análise da prática dos capitalistas em processo de concorrência, realizada no Capítulo X do Livro I.
Embora os capitalistas movam sua prática no sentido da extração de mais-valia extraordinária, do ponto
de vista do processo em seu conjunto o resultado de tais práticas é a redução do valor da força de
trabalho. (Marx, 2002: 368-370)
4
Um indício claro desse raciocínio também pode ser encontrado na afirmação de
que a Alemanha é menos desenvolvida que a Inglaterra por não contar com uma
regulação jurídica das relações entre capital e trabalho, isto é, com uma estrutura
jurídica compatível com a produção capitalista (ou ainda, com “relações de produção”
correspondentes à “etapa determinada de desenvolvimento das [...] forças produtivas
materiais”). Mais do que isso, ao afirmar que a Alemanha se desenvolveria como a
Inglaterra, Marx não estava falando de eventos e fenômenos históricos concretos, mas
sim do surgimento, naquele país, de um terreno favorável à operação das leis
(econômicas) que caracterizam e governam a sociedade capitalista.
Na tentativa de esclarecer o motivo pelo qual julgamos necessário demonstrar
que essa é efetivamente a noção de desenvolvimento carregada por Marx, é
indispensável ainda contrastá-la com a noção de desenvolvimento convencionalmente
aceita no campo da ciência econômica. Nesse caso, observamos que o desenvolvimento
é entendido, em geral, como trânsito do “pior ao melhor”, o que envolve um juízo sobre
condições pretéritas, presentes ou futuras, realizado com base em determinados critérios
pré-estabelecidos. Ao lado dessa posição geral, está a noção de desenvolvimento como
mero desdobramento de possibilidades postas pelo presente ordenamento social,
colapsando o desenvolvimento da sociedade enquanto tal e o desenvolvimento
capitalista (o que não chega a surpreender, pois, como se sabe, para a Economia a
sociedade capitalista é o limite último de todas as teorias e práticas).
Os exemplos mais claros de conjugação das duas características acima
apresentadas são, sem sombra de dúvidas, oferecidos pelas teorias econômicas do
desenvolvimento, tomadas como objeto da presente tese. O surgimento desse conjunto
de teorias é normalmente datado do período posterior à Segunda Guerra Mundial e
marcado pelo fato de compartilharem uma mesma preocupação: explicar por que os
diferentes países sustentam trajetórias históricas de crescimento distintas e propor saídas
para os “menos favorecidos” – geralmente tratados como subdesenvolvidos.4 Como
esperamos demonstrar ao longo do trabalho, essas teorias possuem diferenças e
particularidades, tanto nos diagnósticos, quanto nas prescrições, que não podem ser
ignoradas. Ainda assim, o desenvolvimento é tratado, em geral, como a passagem de um
4 Vale notar que há uma variedade de termos e eufemismos utilizados para tratar desse grupo de países:
desde o próprio “subdesenvolvidos” até “deprimidos”, “periféricos”, “terceiro mundo” etc. Para facilitar a
exposição, adotaremos prioritariamente o termo subdesenvolvimento, a não ser quando estivermos
empregando a linguagem de um autor específico na exposição de suas ideias.
5
estágio de privação material para um estado de pletora material, qualquer que seja o
critério para avaliar essa transição (pelo produto per capita, expectativa de vida, nível de
escolaridade etc.). Além disso, a formação social capitalista é tomada como um
pressuposto tanto na definição dos fins (objetivos primordiais do desenvolvimento),
quanto na definição dos meios (i.e., das estratégias e requisitos necessários a essa
passagem). Trata-se, portanto, como dito, de encarar o desenvolvimento como o eterno
desdobrar do presente e, simultaneamente, de ajuizar esse processo, explícita ou
implicitamente, como positivo.
Por que deveríamos recusar a noção de desenvolvimento veiculada pela ciência
econômica, uma noção que conduz à identificação imediata de desenvolvimento com
desenvolvimento capitalista? Pensemos por um minuto que Marx tenha razão.
Admitamos que ele esteja correto quando procura demonstrar que o capitalismo não
pode subsistir sem o exército industrial de reserva, que o capitalismo não pode
prescindir da separação dos seres humanos em classes sociais (ou seja, da
desigualdade), que nós não temos como controlar, mesmo pela ação do Estado, a
dinâmica capitalista (isto é, que estamos subordinados à possibilidade de crises e de um
uso destrutivo da natureza). Se esse argumento faz sentido, e nós estamos presos ao
desenvolvimento capitalista, então nossa única alternativa seria desenvolver uma teoria
da conformação universal, e, naturalmente, da administração da calamidade. Por outro
lado, se percebemos o desenvolvimento capitalista como momento específico de um
desenvolvimento mais amplo, então podemos ao menos nos questionar se devemos
contribuir para a explicitação das leis que respondem pelo desenvolvimento capitalista
ou se devemos, no sentido contrário, esforçar-nos por transitar para outro modo de
desenvolvimento.
Em segundo lugar, ainda partindo da premissa de que Marx tinha razão, se o
desenvolvimento capitalista envolve por necessidade mazelas sociais e ecológicas, seria
impossível que, junto às mazelas, não emergissem formas de consciência em diversos
níveis (cotidiano, filosófico, científico etc.) que se ocupam dessas mazelas, tanto no
sentido de compreender suas causas, como no sentido de tratá-las com práticas. Se as
mazelas são mazelas em algum sentido, elas reclamam remédio e as teorias que
confundem desenvolvimento capitalista e desenvolvimento enquanto tal tratam de
oferecê-los. Então, no fundo, essas teorias não são apenas teorias, são ideias necessárias
de um mundo que produz mazelas.
6
Diante desse panorama geral, podemos finalmente afirmar que o objetivo deste
trabalho é testar a hipótese de que as teorias do desenvolvimento são única e
exclusivamente teorias do desenvolvimento capitalista, tanto no sentido de que o limite
teórico e prático da sua intervenção é o capitalismo (e apenas o capitalismo), quanto no
sentido de que ao fazê-lo projetam o capitalismo (uma imagem dele, ao menos) como
figura inexorável do futuro da humanidade. Para, primeiro, atestar e, depois, defender o
nexo entre as teorias econômicas do desenvolvimento e a reprodução da sociedade
capitalista, foi empreendido um contraste entre os termos comuns dessas teorias e os
elementos que caracterizam a análise do desenvolvimento em-si da sociedade capitalista
encontrada na obra de Marx (seguindo, é claro, a interpretação aqui defendida). O
contraste evidenciou não apenas ser possível conceber o desenvolvimento da sociedade
na sua atual configuração como uma fase historicamente contingente do
desenvolvimento social em geral, mas também confirmar a hipótese de que as teorias
econômicas do desenvolvimento são manifestações teóricas do próprio
desenvolvimento social na sua atual forma.
As páginas que se seguem apresentam, em duas grandes partes, os resultados do
estudo. Na Parte I, buscamos defender a possibilidade de formulação de uma teoria do
desenvolvimento autenticamente ontológica e definir de modo mais preciso o sentido
do termo desenvolvimento dentro dessa perspectiva.5 Para tanto, essa parte encontra-se
dividida em três capítulos, nos quais buscamos progressivamente diminuir o nível de
abstração da análise: no primeiro, tratando das principais linhas de desenvolvimento da
sociedade, abstratamente considerada; no segundo, buscando a apreensão das linhas
gerais de desenvolvimento da sociedade em forma especificamente capitalista, com
especial atenção para aquelas tendências que determinam o caráter autoexpansivo dessa
formação social; no terceiro, por fim, examinando a manifestação das leis anteriormente
apresentadas em dois contextos históricos específicos (o período conhecido como “Era
de Ouro do capitalismo” e aquele posterior à crise dos anos 1970), buscando, com isso,
mostrar como a análise do desenvolvimento em-si deve envolver o reconhecimento de
que as tendências gerais são atravessadas por particularidades. A Parte I conta ainda
5 O termo ontologia, empregado por diversas vezes ao longo deste trabalho, refere-se ao conjunto de
considerações gerais sobre a realidade, sobre o ser, sobre o que existe em si, uma visão geral de mundo
enfim, que constitui o pano de fundo para a interpretação dos diferentes momentos da existência natural
e/ou social. O termo ontologia é dotado de uma “duplicidade semântica”, podendo referir-se tanto à
realidade em si mesma, quanto às considerações sobre a realidade, duplicidade que também afeta as
palavras “economia” e “história”, por exemplo.
7
com três apêndices, onde buscamos explorar algumas temáticas específicas, que, ao
longo da pesquisa, apresentaram-se como complementos importantes à linha central de
argumentação, cujo eixo encontra-se presente nos capítulos.
Cumprida esta etapa, a Parte II foi dedicada à inspeção crítica das teorias
econômicas do desenvolvimento, que expressam de maneira mais clara a forma como o
desenvolvimento é geralmente abordado no âmbito da ciência econômica.
Considerando, no entanto, a proximidade inicial entre as temáticas do desenvolvimento
e do crescimento econômico (por vezes tomados como sinônimos), julgou-se prudente
iniciar a Parte II oferecendo, no quarto capítulo, um panorama geral dos modelos de
crescimento econômico no período pré-1970. Para tratar das teorias do desenvolvimento
produzidas no mesmo período (que, em virtude do “pioneirismo”, foram por nós
intituladas teorias “clássicas” do desenvolvimento), foi necessário dividi-las em dois
grandes grupos: aquelas que falam sobre as regiões subdesenvolvidas, em geral
(apresentadas no quinto capítulo) e aquelas que tratam especificamente do caso latino-
americano (apresentadas no sexto capítulo). O sétimo capítulo, por fim, busca
apresentar as principais reorientações observadas no debate sobre desenvolvimento no
período posterior à década de 1970.
Apenas para enfatizar, a inspeção crítica realizada ao longo da Parte II não tem
como objetivo avaliar se as teorias do desenvolvimento, ao interpretarem os problemas
dos países subdesenvolvidos, produzem ideias melhores ou piores, quando comparadas
umas contra as outras. Ao contrário, espera-se demonstrar, através da identificação de
elementos teóricos comuns, que as teorias sob análise encontram-se no interior do
amplo conjunto de formulações ao qual se pretende dirigir uma crítica conjunta,
fundamentada no arcabouço teórico da Parte I e apresentada na conclusão geral do
trabalho.
8
Parte I. Por uma teoria ontológica do desenvolvimento
Para realizar a inspeção crítica das teorias do desenvolvimento veiculadas pela
ciência econômica, faz-se necessário, antes de tudo, esclarecer os princípios gerais que
irão nortear o presente trabalho e delimitar com precisão o sentido aqui atribuído ao
termo desenvolvimento. Organizada em três capítulos e três apêndices (nos quais são
destacados pontos específicos do argumento), a Parte I tem fundamentalmente esse
intuito. Ao longo das páginas que a compõem, pretendemos defender, em linhas gerais,
uma visão de mundo dentro da qual o termo desenvolvimento é empregado de modo
plenamente objetivo: isto é, utilizado exclusivamente para se referir às propriedades
objetivas de funcionamento do objeto examinado (independentemente da forma como se
julguem essas propriedades).
Se o objeto em questão for a sociedade (em geral e em sua forma
especificamente capitalista), é preciso, em primeiro lugar, demonstrar a historicidade e a
processualidade que caracterizam essa forma de ser. Em segundo lugar, é necessário
apreender as leis gerais de movimento da sociedade e as leis que regem o
funcionamento do modo de produção especificamente capitalista. Por fim, devem-se
conhecer as condições concretas de manifestação dessas leis, em condições históricas
específicas, e perceber como, apesar das particularidades, as determinações mais gerais
são mantidas. Nesse último caso, podemos ainda observar em que medida as mudanças
nas condições particulares contribuem para tornar o funcionamento do capitalismo mais
adequado à lógica do capital.
Para dar início ao tratamento dos pontos acima enumerados, dedicamos o
primeiro capítulo da Parte I ao resgate da descrição oferecida por Marx sobre a
sociedade em geral e à identificação de determinações que transcendem os marcos de
qualquer modo de produção específico. Ao mesmo tempo, aproveitamos a oportunidade
para expor algumas considerações preliminares, que, além de elucidarem importantes
afirmações feitas por Marx a respeito do mundo e da forma de capturá-lo no
pensamento, também permitem “limpar o terreno”, desfazendo o que parecem ser
alguns dos equívocos mais recorrentes na interpretação da teoria marxiana. O capítulo
primeiro é complementado ainda por um Apêndice, no qual realizamos alguns
esclarecimentos adicionais a respeito da categoria desenvolvimento desigual,
9
particularmente importantes para estabelecer a distinção entre a perspectiva aqui
delineada e aquela defendida por grande parte das teorias de inspiração marxista.
O segundo capítulo destina-se mais pontualmente ao resgate dos elementos
indispensáveis à caracterização do sistema social vigente, tomando como base a
descrição feita por Marx, especialmente em O Capital. Considerando a impossibilidade
de refazer o longo argumento elaborado pelo autor, o capítulo terá ao menos um foco
fundamental: a demonstração de que, por sua própria constituição, a sociedade
mercantil possui como dispositivo imanente o impulso ao aumento da riqueza, ou, dito
de outra forma, que esse modo de produção possui uma dinâmica autoexpansiva. Trata-
se, mais especificamente, de demonstrar como, em sua processualidade, a dinâmica
capitalista produz crescimento contínuo da riqueza e como esse resultado vem
acompanhado do acionamento de novas contradições. Para auxiliar a compreensão
desse ponto, dedicamos o Apêndice II à apresentação de um importante elemento da
dinâmica capitalista: a tendência à formação do mercado mundial.
No terceiro e último capítulo, analisamos a dinâmica capitalista em um nível
ainda mais baixo de abstração, mostrando como as tendências gerais apresentadas no
capítulo anterior são atravessadas por determinações particulares (inclusive tendências
historicamente específicas), que influenciam a forma concreta de manifestação das leis
gerais. Para tanto, utilizamos como exemplo dois períodos históricos: o primeiro
conhecido como a “Era de Ouro” do capitalismo e aquele posterior à crise dos anos
1970. A partir do contraste entre esses dois períodos, esperamos mostrar as mudanças,
mas também as permanências, indicando como o capital modifica-se num determinado
momento para preservar sua lógica geral. Por fim, utilizamos o Apêndice III para
prestar alguns esclarecimentos sobre a complexidade da dinâmica capitalista, apontando
para o equívoco cometido por aquelas teorias que tentam explicar a dinâmica capitalista
exclusivamente a partir de uma única categoria.
10
Capítulo 1. Leis gerais de desenvolvimento da sociedade: historicidade e
desigualdade do desenvolvimento
Na vasta produção intelectual de Marx, é perceptível a preocupação recorrente
em elucidar o modo concreto de funcionamento da sociedade, sua processualidade
histórica, suas linhas gerais de desenvolvimento. Seguindo as pistas deixadas por
Lukács (1979), filósofo que se ocupou deste aspecto da obra marxiana, momentos
fundamentais de tais argumentos podem ser explicitados, de modo a oferecer resposta a
uma série de questões pertinentes para os propósitos deste trabalho. Por exemplo, o
desenvolvimento da sociedade é governado por leis? Existe algum tipo de lei regulando
a forma como os seres humanos, nas suas atividades cotidianas, produzem e
reproduzem as condições de sua existência? Mais do que isso: existem características e
determinações desse desenvolvimento que sejam comuns a todas as épocas da produção,
independentemente das condições históricas específicas?
Respondendo afirmativamente a essas questões, o presente capítulo tem como
principal objetivo identificar justamente as leis humanas universais que caracterizam a
produção, abstraídas as formas históricas (concretas), como se manifestam (como já
indicado, esse nível de abstração será progressivamente reduzido conforme avançarmos
para os capítulos seguintes). Para tanto, utilizamos na primeira das três seções o resgate
feito por Lukács (1979, 2007) para expor, de modo sistemático, as principais tendências
que regulam o desenvolvimento do ser social. Feito isso, dedicamos a segunda seção ao
tratamento de duas temáticas extremamente importantes ao argumento do presente
trabalho: historicidade e desigualdade do desenvolvimento. Por fim, realizamos na
última seção algumas qualificações necessárias ao correto entendimento da teoria
ontológica de desenvolvimento da sociedade aqui defendida.
Seção 1.1. As leis gerais de desenvolvimento da sociedade
Tomando como base especificamente os estudos de Marx sobre a economia
(entendida aqui como a esfera de produção e reprodução da vida humana), Lukács
(2007: 238) demonstra que a linha geral de desenvolvimento da sociedade (aquela que
transcende os marcos de um modo de produção específico) é marcada por três
tendências básicas: a primeira delas apresenta-se como um constante recuo das
11
barreiras naturais, a segunda na forma de um também constante aumento das forças
produtivas do trabalho, e a terceira está relacionada à conformação do gênero humano.
A primeira das tendências identificadas por Lukács na obra de Marx, o recuo das
barreiras naturais significa, por um lado, que a vida humana e social jamais pode
desvincular-se inteiramente de sua base última na natureza – trata-se, portanto, de recuo
e não de eliminação. (Lukács, 1979: 53) Por outro, essa tendência mostra que, “[...]
tanto quantitativa quanto qualitativamente, diminui de modo constante o papel do
elemento puramente natural (quer na produção, quer nos produtos)”. (Lukács, 2007:
238) Nesse sentido, observamos que “momentos decisivos da reprodução humana –
basta pensar em aspectos naturais como a nutrição ou a sexualidade – acolhem em si,
com intensidade cada vez maior, momentos sociais, pelos quais são constante e
essencialmente transformados”.6 (Ibid)
Ainda seguindo a leitura de Lukács da obra de Marx, a segunda tendência que
caracteriza a dinâmica de desenvolvimento da sociedade é a tendência ao aumento das
forças produtivas do trabalho, que se manifesta diretamente em uma diminuição do
tempo de trabalho socialmente necessário à produção de objetos e, portanto, à
reprodução dos seres humanos. Antes que conclusões equivocadas sejam extraídas
dessa afirmação, é necessário enfatizar que o enunciado “tempo de trabalho socialmente
necessário” não deve ser confundido com o enunciado da categoria “valor”. O ser
humano sempre trabalhou e sempre despendeu tempo em sua atividade produtiva, mas
só em determinadas condições sociais (aquelas postas pelo capital) o trabalho apresenta-
se de modo dominante como propriedade das coisas produzidas, como valor, e o tempo
funciona como medida dessa propriedade. Portanto, como veremos no próximo
capítulo, somente na sociedade comandada pelo capital, a redução do tempo de trabalho
socialmente necessário apresenta-se como diminuição do valor unitário das mercadorias
e constitui uma tendência dinâmica que marca a fundo a reprodução sistêmica.
Por ora, tratamos do aumento da produtividade, numa perspectiva bastante
ampla, como uma tendência ultrageral da reprodução social, que contribui para a
diversificação das necessidades sociais e das formas de práticas humanas (e até mesmo
6 Para ilustrar essa tendência da vida social de tornar-se, sempre e cada vez mais, mediada por categorias
sociais, podemos resgatar ainda uma das célebres passagens da Introdução de 1857, na qual Marx mostra
como mesmo uma atividade vital à nossa manutenção como seres naturais (o ato de alimentar-se) é
também socialmente determinada: “A fome é fome, mas a fome que se satisfaz com carne cozida, que se
come com faca ou garfo, é uma fome muito distinta da que devora carne crua, com unhas e dentes”.
(Marx, 1982: 9)
12
para a ampliação das possibilidades de crescimento populacional). Nas palavras da
historiadora Ellen Meiksins Wood:
Evidentemente, não se discute que numa perspectiva bastante longa o
desenvolvimento das forças produtivas materiais tenha tido o caráter geral da
evolução; mas isso significa apenas que as mudanças nas forças de produção
tendem a ser acumulativas e progressivas, que, uma vez ocorrido um avanço,
raramente ele se perde completamente, e que a regressão seja excepcional no
longo prazo. Se isso é verdade, ainda é possível caracterizar como evolutivos
e “direcionais” esses desenvolvimentos (e não teleológicos), no sentido de
que há uma tendência progressiva geral e cada desenvolvimento se faz
acompanhar de novas possibilidades e de novas necessidades. Mas isso nada
nos diz acerca do vigor, da frequência, da rapidez ou da extensão da
mudança; nem contradiz o entendimento, expresso por Marx, de que
“petrificação” tem sido mais a regra que a exceção. (Wood, 2003: 115)
Sem muitas mediações, chegamos à terceira tendência que acompanha o
desenvolvimento do ser social, na qual se expressa um novo aspecto de sua
historicidade, e que também constitui mais um progresso objetivo desse ser: a
explicitação do caráter genérico da humanidade. Sobre este ponto, é importante ter
presente, em primeiro lugar, que individualidade e gênero já aparecem como categorias
do ser natural, e que, portanto, do ponto de vista biológico, o gênero humano já existe
em si quando o ser humano separa-se objetivamente dos primatas superiores. Mas o
gênero, como relação exclusivamente natural, só pode assumir a forma de um gênero
mudo, como nota Lukács:
A relação assim surgida entre os exemplares singulares e o gênero é uma
relação puramente natural, inteiramente independente de qualquer
consciência, de qualquer objetivação da consciência: o gênero se realiza nos
exemplares singulares; e esses, em seu processo vital, realizam o gênero. É
óbvio que o gênero não pode ter nenhuma consciência; e igualmente óbvio é
que, no exemplar singular natural, não pode surgir nenhuma consciência
genérica. (Lukács, 1979: 140)
O caráter genérico da humanidade, tomada em sentido social, no entanto,
manifesta-se aos indivíduos que constituem o gênero, abrindo o caminho para a tomada
de consciência tanto da identidade genérica como da singularidade de cada indivíduo.
Mas essa tomada de consciência é, ao menos inicialmente, restringida pelo
fracionamento da humanidade em comunidades diversas e, em muitos casos, isoladas e,
pela própria divisão dos seres humanos em classes sociais, que muitas vezes leva à
negação do reconhecimento da identidade humana de camadas inteiras da população
(escravos, por exemplo). O reconhecimento do gênero humano como um problema
universal que envolve todos os seres humanos, além das fronteiras de comunidades
específicas, das classes e outras divisões possíveis (“raça”, gênero), é um fenômeno
relativamente recente, que acompanha o recuo progressivo das barreiras naturais, o
13
desenvolvimento das forças produtivas e especialmente a tendência à formação do
mercado mundial. (Lukács, 2007: 238)
Assim como no caso da tendência ao aumento das forças produtivas, veremos no
próximo capítulo como a explicitação do gênero humano ganha contornos mais
definidos no modo de produção capitalista, e que, apesar do caráter de progresso
objetivo, vem acompanhado do acionamento de novas contradições. Antes disso,
seguimos na próxima seção com o tratamento de duas questões indispensáveis ao
correto entendimento da concepção de desenvolvimento aqui defendida: a historicidade
e o desenvolvimento desigual.
Seção 1.2. Historicidade e desigualdade do desenvolvimento
A respeito da historicidade, vale notar imediatamente que atribuí-la a
determinado objeto significa, antes de tudo, reconhecer seu contínuo movimento ao
longo do tempo (movimento este que não implica, necessariamente, a irreversibilidade
de processos, sejam eles físicos ou sociais). Nessa afirmação, é preciso dar especial
atenção ao uso do termo “contínuo”, pois uma das condições para que se estabeleça a
mudança de um objeto é que este continue e permaneça sendo o mesmo objeto, ainda
que tenha sofrido alterações substantivas. Só é possível, por exemplo, analisar as
modificações experimentadas por determinada espécie ao longo do tempo se esta se
sustenta como mesma espécie. O mesmo se aplica à sociedade: falar das modificações
pelas quais passou o capitalismo nos últimos anos só faz sentido na medida em que este
modo de produção continua a existir. Como nota Lukács (1979: 79): “a continuidade na
persistência, enquanto princípio de ser dos complexos em movimento, é indício de
tendências ontológicas à historicidade como princípio do próprio ser”.
Mais do que isso, a historicidade implica não apenas a permanência na
mudança, “mas também e sempre uma determinada direção na mudança, uma direção
que se expressa em transformações qualitativas de determinados complexos, tanto em-si
quanto em relação com outros complexos”. (Lukács, 1979: 79) Sem muitos rodeios,
podemos extrair daqui o entendimento correto do papel desempenhado pelos conceitos
de desenvolvimento e progresso dentro dessa formulação. Com o auxílio de Medeiros:
Os conceitos de desenvolvimento e progresso são empregados para descrever
em si mesma a direção do movimento de objetos estruturados, ou seja, para
descrever objetivamente a direção do movimento. A ideia-chave envolvida
14
neste procedimento é a complexidade. Uma dada estrutura (totalidade) é
objetivamente superior, ou mais desenvolvida, do que outra estrutura da
mesma espécie caso seja constituída por um maior número de componentes
específicos, ou pelo mesmo número de componentes mais complexos. Dada
esta concepção de desenvolvimento, a noção de progresso serve para
descrever a passagem de um nível mais baixo de desenvolvimento para um
nível mais alto – o aumento da complexidade de objetos estruturados.
(Medeiros, 2007: 45)
No caso do ser social, identificamos ao menos três tendências (ou
desenvolvimentos) desse tipo. A crescente sociabilidade, a diminuição do tempo de
trabalho necessário à reprodução humana e a constituição da consciência genérica são
expressões precisas dessa “passagem de um nível mais baixo de desenvolvimento para
um nível mais alto”. Vale notar que o reconhecimento desses progressos objetivos
independe da forma como são avaliados: “Nessa constatação ontológica do progresso,
não está contido nenhum juízo de valor subjetivo. Trata-se da constatação de um estado
de coisas ontológico, independentemente de como ele seja avaliado posteriormente.
(Pode-se aprovar, deplorar, etc. o „recuo das barreiras naturais‟)”. (Lukács, 1979: 54)
A questão é que a sociedade, assim como outros objetos estruturados, fica mais
bem representada como uma totalidade, composta de complexos, complexamente
articulados, onde “todo „elemento‟, toda parte, é também [...] um todo; todo „elemento‟
é sempre um complexo com propriedades concretas, qualitativamente específicas, um
complexo de forças e relações diversas que agem em conjunto”. (Ibid: 40) Se
investigamos, portanto, a relação que se estabelece entre as diferentes partes e/ou
esferas que integram uma totalidade, o que se observa é que estas partes e/ou esferas
podem possuir legalidades próprias e se comportar de maneira heterogênea: “por um
lado, complexos diferentes de uma mesma totalidade podem estar em estágios distintos
de desenvolvimento; por outro, alguns complexos podem estar contingentemente
regredindo ao invés de progredindo”. (Medeiros, 2007: 46)
Na medida em que progressos singulares, em uma ou outra esfera da vida social,
podem ser acompanhados por regressões simultâneas em outras esferas, temos de
reconhecer que todo desenvolvimento (ou progresso) que tem lugar na história do ser
social pode assumir, por necessidade (isto é, em razão da própria configuração dinâmica
do objeto), a forma de um desenvolvimento desigual. Apesar de ser por vezes associado
às diferenças na distribuição de riqueza entre as nações, trata-se aqui o desenvolvimento
desigual como uma categoria cujo alcance é mais abrangente, dentro da qual a
15
desigualdade entre países pode apenas ser vista como um caso específico.7 E para
entender a profundidade dessa categoria, recorremos ao exemplo citado por Marx da
desigualdade de desenvolvimento que se estabelece entre a produção material face à
produção artística:
Em relação à arte, sabe-se que certas épocas de florescimento artístico não
estão de modo algum em conformidade com o desenvolvimento geral da
sociedade, nem, por conseguinte, com o da base material que é, de certo
modo, a ossatura da sua organização. (Marx, 1982: 20)
Na verdade, segundo o autor, não estão em conformidade e nem poderiam estar.
Tomando como ilustração a relação entre a arte grega e sociedade moderna, observa
Marx:
A intuição da natureza e as relações sociais que a imaginação grega inspira e
constitui por isso mesmo o fundamento da [mitologia] grega serão
compatíveis com as selfactor [máquinas automáticas de fiar], as estradas de
ferro, as locomotivas e o telégrafo elétrico? Quem é Vulcano ao lado de
Roberts & Cia., Júpiter em comparação com o pára-raios e Hermes em face
ao Crédit Mobilier? Toda mitologia supera, governa e modela as forças da
natureza na imaginação e pela imaginação, portanto, desaparece quando essas
forças são dominadas efetivamente. O que seria da Fama ao lado de Printing
House Square? A arte grega pressupõe a mitologia grega, isto é, a elaboração
artística mas inconsciente da natureza e das próprias formas sociais pela
imaginação popular. Esse é o seu material. (Marx, 1982: 20-21)
Ainda que tenha sido muito pouco trabalhada por Marx (o conceito de
desenvolvimento desigual é apenas explicitamente abordado na Introdução de 1857, na
forma de “pontos que devem ser mencionados aqui e não devem ser esquecidos”), essa
formulação nos permite oferecer uma crítica consistente a, ao menos, duas concepções
distintas e opostas, que normalmente figuram no debate sobre o assunto. Por um lado,
tem-se a “concepção simplista e vulgarizada do progresso, que retém apenas um
resultado qualquer já quantificado do desenvolvimento (crescimento das forças
produtivas, difusão do conhecimento etc.) e, sobre essa base, decreta a existência de um
progresso generalizado”; por outro, no extremo oposto, temos a posição que, assumindo
os retrocessos como unidade de medida, nega de modo absoluto a presença de
progresso. (Lukács, 1979: 124)
É evidente que, na medida em que, em ambos os casos, momentos singulares do
processo de conjunto são amplificados e tomados como critérios únicos, as duas
concepções são equivocadas. Como ressalta Lukács:
Desigualdade do desenvolvimento significa, “simplesmente”, que a grande
linha de evolução do ser social [...] não pode se explicitar em linha reta,
7 Uma discussão sobre o conceito de desenvolvimento desigual, focada especialmente na distinção entre
as duas noções (a defendida no presente trabalho e aquela que trata exclusivamente da desigualdade de
desenvolvimento entre as nações), poderá ser vista no Apêndice I.
16
segundo uma lógica racional qualquer, mas se move em parte por vias
travessas (deixando mesmo atrás de si alguns becos sem saída) e, em parte,
fazendo com que os complexos singulares, cujos momentos reunidos formam
o desenvolvimento global, encontrem-se individualmente numa relação de
não-correspondência. (Lukács, 1979: 134)
A compreensão deste ponto é particularmente importante para o presente
trabalho, pois as teorias do desenvolvimento não raramente incorrem em equívocos do
tipo acima enunciados. Em primeiro lugar, grande parte dessas teorias agarra-se a um
critério específico de desenvolvimento para, a partir dele, decretar “a existência de um
progresso generalizado”, desconsiderando o caráter necessariamente desigual desse
desenvolvimento. Além disso, essas teorias, em lugar de encarar o desenvolvimento
como um reconhecimento objetivo, costumam tratar o desenvolvimento como um “juízo
de valor subjetivo”. Essas e outras questões correlatas serão tratadas mais detidamente
nos próximos capítulos. Por ora, seguimos com a apresentação de mais alguns
elementos indispensáveis à caracterização da perspectiva aqui delineada.
Seção 1.3. Linhas gerais de desenvolvimento do ser social: considerações finais
Apesar de já terem sido reveladas, ao longo das seções anteriores, as principais
leis gerais de desenvolvimento da sociedade e o caráter necessariamente desigual desse
desenvolvimento, o correto entendimento da teoria sobre a sociedade aqui defendida, no
nível de abstração em que nos encontramos, depende ainda da realização de alguns
esclarecimentos adicionais. É precisamente esse o objetivo da presente seção. Ao longo
das próximas linhas, pretendemos sustentar o caráter tendencial, não-teleológico e
objetivo das leis sociais, nem sempre reconhecido por parte da literatura sobre o tema.
Em seguida, reafirmamos o caráter necessariamente post festum do conhecimento sobre
a sociedade, apontando para algumas implicações de tal atitude, tanto em termos
teóricos, quanto práticos.
Em primeiro lugar, portanto, devemos notar que as leis sociais não são tomadas
aqui como leis empíricas, ou seja, não se trata de buscar e reconhecer regularidades
(conjunções constantes) na relação entre eventos. As leis de tendência, que se referem
ao modo de agir de objetos estruturados, podem ou não se manifestar em eventos,
dependendo da força com que operam as contratendências (ou fatores contra-restantes).
Importa compreender, portanto, que o fato de uma determinada lei não se verificar em
certo momento não contradiz a existência da lei em si. Como destaca Lukács:
17
[...] a tendencialidade, enquanto forma fenomênica necessária de uma lei na
totalidade concreta do ser social, é consequência inevitável do fato de que
nos encontramos aqui diante de complexos reais que interagem de modo
complexo, frequentemente passando por amplas mediações, com outros
complexos reais; a lei tem caráter tendencial porque, por sua própria
essência, é resultado desse movimento dinâmico-contraditório entre
complexos. (Lukács, 1979: 64)
Além disso, as dinâmicas e determinações anteriormente enunciadas funcionam
com relativa autonomia com referência às intenções particulares dos sujeitos em suas
ações (o resultado social do processo em si não tem uma finalidade, ou seja, é não-
teleológico).8 A dificuldade aqui reside no fato simples, embora nem sempre intuitivo,
de que, enquanto a maioria das atividades cujo conjunto compõe o movimento da
sociedade é certamente de origem teleológica, o somatório dessas atividades é feito de
conexões causais que em nenhum sentido podem ser de caráter teleológico – e, na
maioria dos casos, produz resultados inteiramente diversos das motivações iniciais.
(Lukács, 1979: 81) Apesar da impossibilidade de aprofundar esse e outros temas
relacionados, julga-se aqui relevante ao menos indicar que, desse fato fundamental,
depreende-se de imediato que os processos sociais podem ser ditos ao mesmo tempo
dependentes e independentes dos atos individuais que os produzem e reproduzem.9
A correta caracterização da teoria aqui defendida exige ainda a compreensão de
que as dinâmicas e tendências que se verificam no interior do ser social sustentam sua
objetividade, na medida em que existem e operam independentemente do conhecimento
que se tem sobre elas e a despeito dos juízos de valor formulados a seu respeito. Em
postura perfeitamente compatível com uma ontologia realista e materialista (válida para
além dos limites das ciências da sociedade), explicita-se aqui, em primeiro lugar, o
reconhecimento fundamental da distinção entre a realidade e o conhecimento da
realidade (ou ainda, nos termos de Marx, entre o concreto e o concreto pensado). Mais
do que isso, trata-se, na verdade, de reconhecer a prioridade (ontológica) da primeira
(realidade) em relação à segunda (consciência).10
Nos termos de Lukács:
8 Nas palavras de Sánchez-Vázquez (2007: 55-56): “o progresso histórico é fruto da atividade coletiva dos
homens como seres conscientes, mas não de uma atividade comum consciente”. 9 Como sintetizado por Marx em mais uma de suas célebres passagens: “Os homens fazem sua própria
história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas
com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. (Marx, 1997: 21) Sobre o tema,
conferir também Lukács (1979: 64; 2007: 236). 10
Esse é um dos aspectos mais decisivos do materialismo sustentado por Marx: “Do mesmo modo que
em toda ciência histórica e social em geral é preciso ter sempre em conta, a propósito do curso das
categorias econômicas, que o sujeito, nesse caso, a sociedade burguesa moderna, está dado tanto na
realidade efetiva como no cérebro; que as categorias exprimem portanto formas de modos de ser,
determinações de existência, frequentemente aspectos isolados dessa sociedade determinada, desse
18
Quando atribuímos uma prioridade ontológica a determinada categoria com
relação à outra, entendemos simplesmente o seguinte: a primeira pode existir
sem a segunda, enquanto o inverso é ontologicamente impossível. É algo
semelhante à tese central de todo o materialismo, segundo o qual o ser tem
prioridade ontológica com relação à consciência. Do ponto de vista
ontológico, isso significa simplesmente que pode existir o ser sem a
consciência, enquanto toda consciência deve ter como pressuposto, como
fundamento, algo que é. Mas disso não deriva nenhuma hierarquia de valor
entre ser e consciência. (Lukács, 1979: 40)
Obviamente, como o próprio Lukács nos adverte na última frase citada acima,
não se pretende com isso negar a importância da consciência. Embora a consciência seja
entendida como um “produto tardio do desenvolvimento material”, não é jamais um
“produto de menor valor ontológico”. Ao contrário, afirmar que a consciência, ao
refletir a realidade, abre a possibilidade de modificá-la, significa dizer que “a
consciência tem um real poder no plano do ser e não – como se supõe a partir das [...]
visões equivocadas – que ela é carente de força”. (Lukács, 2007: 227)
Além dessa distinção fundamental entre ser e consciência, resta ainda notar que
a forma de apreender a realidade geralmente não coincide com o processo de gênese da
própria realidade, ou seja, a leitura da história caminha no sentido oposto à gênese da
própria história. Isso porque se a evolução do ser social segue a norma do aumento da
complexidade interna do ser, o processo histórico efetivo tende a transformar formas
mais simples em formas mais complexas. Quando se trata de compreender
cientificamente as categorias sociais, ao contrário, temos acesso de imediato as suas
formas mais complexas e a, partir delas, procuramos reconstituir as formações mais
simples, momentos anteriores, post festum. (Marx, 1982: 17)
Esse ponto é particularmente importante, pois, abrindo caminho para o tema do
próximo capítulo, ajuda-nos a entender um dos motivos pelos quais Marx estudou de
modo praticamente exclusivo a sociedade capitalista, mesmo quando tinha a intenção de
descobrir propriedades gerais da sociedade. A questão é que, além de as relações sociais
capitalistas constituírem o material histórico imediatamente disponível (aquele a que
temos acesso de imediato), a partir dessas relações constitui-se a forma social na qual a
linha geral de desenvolvimento manifesta-se de modo mais ampliado até o presente.
Mas é preciso prontamente salientar que assumir esse ponto de partida não implica
negar o caráter histórico da sociedade, praticando assim uma forma qualquer de
anacronismo, hipóstase e/ou naturalização. Ao contrário, Marx rejeitou explicitamente
sujeito, e que, por conseguinte, essa sociedade de maneira nenhuma se inicia, inclusive do ponto de vista
científico, somente a partir do momento em que se trata dela como tal”. (Marx, 1982: 18)
19
todas as análises desse tipo (que fazem desaparecer as diferenças históricas e projetam
características específicas da sociedade burguesa para todas as formas de sociedade
precedentes), tendo sempre o cuidado de assinalar seus desdobramentos sobre a prática
social.11
Ademais, e para concluir as ressalvas, é prudente advertir que o fato de Marx ter
assumido o âmbito da economia como objeto de estudo não significa, como falam os
críticos, que sua imagem de mundo seja fundada sobre o economicismo. A resposta a
esse questionamento exige, antes de tudo, o entendimento do sentido atribuído por Marx
ao termo “econômico”: economia em Marx aparece, em termos extremamente gerais,
como a esfera de produção e reprodução da vida humana, e as categorias econômicas
como categorias dessa produção e reprodução (e é isso que torna possível uma descrição
da sociedade sobre bases materialistas). Concebida dessa forma, a economia ocupa o
posto de determinante em última instância da vida social e, assim como na relação entre
ser e consciência, aqui também podemos recorrer mais uma vez ao conceito de
prioridade ontológica:
O mesmo vale, no plano ontológico, para a prioridade da produção e da
reprodução do ser humano em relação a outras funções. Quando Engels, no
discurso pronunciado junto à tumba de Marx, fala do “fato elementar de que
os homens devem primeiro de tudo comer, beber, ter um teto e vestir-se,
antes de ocupar-se de política, de ciência, de arte, de religião, etc”, está
falando precisamente de uma relação de prioridade ontológica. (Lukács,
1979: 41)
Sobre este ponto, valeriam ao menos duas observações: afirmar a prioridade
ontológica da economia em relação às outras esferas não significa dizer que a primeira
seja necessariamente mais importante (ou seja, não implica qualquer juízo ou hierarquia
de valor); mais do que isso, não significa que as outras esferas sejam diretamente
determinadas pela economia. (Lukács, 1979: 155)
É correto, no entanto, afirmar que a peculiaridade histórica da sociedade
capitalista está diretamente associada ao fato de que a sua economia constitua mais do
que uma base. No capitalismo, a economia forma efetivamente o centro da vida social, a
partir do qual emana a dinâmica que subordina todos os demais momentos e esferas da
existência. É por esse motivo que, respeitando o caráter post festum do pensamento
social, Marx dedica-se ao estudo das relações econômicas que se afirmam em seu tempo
e que, segundo ele logo percebe, tornam a economia não apenas o momento
11
Como veremos adiante, especialmente na Parte II, a naturalização de estruturas sociais (historicamente
constituídas) é algo recorrente na ciência econômica, inclusive entre as teorias do desenvolvimento, e as
implicações não são muito diferentes das assinaladas por Marx.
20
predominante do ser social, mas a principal esfera de sociabilidade. Como veremos no
próximo capítulo, esse ponto é extremamente importante para a compreensão da
dinâmica capitalista.
21
Apêndice I. Esclarecimentos sobre a categoria Desenvolvimento Desigual
Como se tentou demonstrar ao longo do primeiro capítulo, desde a perspectiva
ontológica defendida no presente trabalho, desenvolvimento significa o reconhecimento
objetivo de um aumento no grau de complexidade dos complexos constitutivos de um
objeto estruturado. Tomando exclusivamente nossa condição de seres naturais e o
critério acima apresentado, podemos dizer, por exemplo, que mesmo o mais deplorável
dos seres humanos é mais desenvolvido que um animal de estimação (por maior que
seja a estima pelos últimos). Uma vez entendida a sociedade como uma totalidade
composta de vários complexos, complexamente articulados, o mesmo tipo de análise
pode ser a ela aplicada. E, assim como no caso anterior, proferir sentenças a respeito do
desenvolvimento da sociedade significa falar sobre o grau de
desenvolvimento/complexidade de suas esferas constitutivas: economia, política, artes,
direito, religião etc.
Também desde essa perspectiva, não é possível falar em desenvolvimento sem
levar em consideração o fato de que todo desenvolvimento é desenvolvimento desigual.
Aqui nos referimos, mais uma vez, à heterogeneidade que se estabelece entre
complexos, que, em seu desenvolvimento, comportam-se de maneira diferenciada.
Portanto, em postura compatível com as defendidas por Marx e Lukács, entendemos
que a categoria desenvolvimento desigual diz respeito à relação entre complexos e, mais
especificamente, aos graus diferentes de desenvolvimento dos complexos que compõem
uma totalidade.12
Esse não é, no entanto, o emprego mais usual da categoria. Sua versão mais
disseminada é aquela difundida, em parte, por teorias inspiradas nos trabalhos de Lênin,
Trotsky, entre outros, e na noção de desenvolvimento desigual e combinado.13
Nesses
12
Ao longo do capítulo citamos o exemplo, dado por Marx (1982: 20), da desigualdade de
desenvolvimento entre arte e economia. Podemos ainda utilizar o conceito, como sugere Marx (Ibid), para
falar da desigualdade que se estabelece entre direito e economia ou, como sugere Lukács (1979: 137),
entre música e arquitetura. Um tratamento detalhado da categoria desenvolvimento desigual e a síntese de
todos esses casos podem ser encontrados em Lukács (Ibid: 123-137). 13
Quando se trata de analisar a concepção de desenvolvimento desigual sustentada por Lênin, o texto
mais recorrentemente citado é, sem dúvidas, o livro intitulado Imperialismo, Etapa Superior do
Capitalismo (1917). Nele, no entanto, encontram-se poucas e esparsas referências ao termo, e nenhum
tipo de tratamento teórico mais refinado. Trotsky, por outro lado, faz diversas menções ao termo
(acrescido do qualificativo combinado), especialmente nos livros Balanços e Perspectivas (1906), 1905
(1909), III Internacional depois de Lênin (1928) e História da Revolução Russa (1930), mas também não
chega a debater o conceito mais extensamente. Essa tarefa coube a alguns seguidores, como Mandel
22
autores, observamos a utilização do termo tanto para descrever o processo histórico por
meio do qual determinados países realizaram tardiamente a transição para o modo de
produção capitalista, combinando setores “modernos” e “atrasados” em seu interior,
quanto para tratar da desigualdade de desenvolvimento (econômico) entre nações.
Embora nem sempre seja feita a devida referência aos trabalhos de Lênin e
Trotsky (ou se mantenha fidelidade às suas formulações originais), a utilização da
categoria tornou-se muito comum entre autores de orientação marxista, especialmente
para abordar a questão da desigualdade entre nações. Isso pode ser comprovado a partir
da síntese formulada por Ernest Mandel:
No sentido mais geral da expressão, “desenvolvimento desigual” significa
que sociedades, países, nações desenvolvem-se segundo ritmos diferentes, de
tal modo que, em certos casos, os que começam com uma vantagem sobre os
outros podem aumentar essa vantagem, ao passo que, em outros casos, por
força dessas mesmas diferenças de ritmo de desenvolvimento, os que haviam
ficado para trás podem alcançar e ultrapassar os que dispunham de vantagem
inicial. Para ter sentido, portanto, a ideia de “desenvolvimento desigual” deve
incluir, em cada caso específico, a principal força propulsora (ou forças
propulsoras) que determina essas diferenças de ritmo de desenvolvimento.
(Mandel, 1983: 98)
Não pretendemos aqui fazer uma revisão das teorias que, de uma maneira ou de
outra, trabalham com a categoria desenvolvimento desigual no sentido acima
apresentado, mas apenas chamar atenção para alguns problemas relacionados a essa
definição. Em primeiro lugar, essas teorias utilizam uma concepção de desenvolvimento
(como crescimento da riqueza, capacidade produtiva, condições de vida da classe
trabalhadora etc.) que em muito difere daquela utilizada por Marx e Lukács
(reconhecimento objetivo da dinâmica de funcionamento da sociedade).14
Em segundo
lugar, ainda que seja possível demonstrar que o desenvolvimento desigual entre países é
efetivamente um caso de desenvolvimento desigual (no sentido empregado por Marx e
Lukács), esse seria ainda apenas um caso possível de apresentação do problema. Ou
seja, tomar essa acepção como a definição de desenvolvimento desigual seria tomar
uma instância específica como o caso geral.
Como não consta entre os objetivos do presente trabalho demonstrar a correção
ou incorreção do tratamento convencionalmente dispensado à categoria do
(1979) e Novack (2008), por exemplo, que buscaram dar um tratamento mais sistemático à noção de
desenvolvimento desigual e combinado. Sobre o tema, conferir também Löwy (1998). 14
Oferecendo um exemplo bastante emblemático, Paul Baran (1986: 47) afirma explicitamente:
“Definamos crescimento (ou desenvolvimento) econômico como o aumento, ao longo do tempo, da
produção per capita de bens materiais”, descartando ainda na sequência qualquer tentativa de associação
entre desenvolvimento e aumento de bem-estar. Uma definição similar pode ser vista também em Dobb
(1973: 14).
23
desenvolvimento desigual (isto é, aquele que utiliza a categoria para descrever a relação
entre países capitalistas), limitamo-nos apenas a mostrar, ainda que brevemente, como o
desenvolvimento desigual é mais amplo e mais complexo do que sugere a interpretação
tradicional e o reducionismo assim implícito nessa definição da categoria. Em suma,
enfatize-se que desenvolvimento desigual, no registro marxiano, refere-se a (1) uma
disparidade no grau de desenvolvimento entre complexos integrantes de uma totalidade;
e (2) uma disparidade não acidental, mas provocada pelo próprio modo de ser da
totalidade e dos complexos (i.e., uma desigualdade causalmente determinada). Trata-se,
enfim, de uma determinação ultragenérica e que não pode ser reduzida à relação
econômica (entre setores, classes ou entre nações).
24
Capítulo 2. Lei geral da acumulação capitalista: dinâmica
autoexpansiva, desenvolvimento e estranhamento
Dando continuidade à tarefa proposta inicialmente para a Parte I do trabalho, o
presente capítulo busca contribuir para a construção de uma interpretação de mundo
alternativa àquelas representações tradicionalmente aceitas pela ciência econômica.
Para fazer uma breve recapitulação, vimos no capítulo anterior que a sociedade deve ser
entendida como uma totalidade composta de complexos (partes que também são um
todo) que, em virtude de sua própria constituição, comportam-se de maneira
heterogênea, e é justamente essa heterogeneidade dos complexos que determina o
caráter necessariamente desigual do desenvolvimento do ser social. Apesar dessa
heterogeneidade, vimos ainda ser possível identificar leis gerais de desenvolvimento da
sociedade que, apesar de seu caráter tendencial e desigual, constituem progressos
objetivos no interior desse ser.
Seguindo, portanto, o raciocínio iniciado no capítulo anterior, mas diminuindo o
nível de abstração, o presente capítulo tem como principal objetivo apresentar as linhas
gerais de desenvolvimento da sociedade especificamente capitalista.15
Mais
precisamente, esperamos com isso mostrar como a dinâmica capitalista também produz
resultados contraditórios, ainda que se reconheçam neles progressos objetivos do tipo
descrito anteriormente. Para tanto, o capítulo encontra-se dividido em duas seções: na
primeira, discutiremos as principais tendências que caracterizam a dinâmica capitalista,
sintetizada através do famoso enunciado de Marx da lei geral da acumulação
capitalista; feito isso, voltamos à temática do desenvolvimento e suas legalidades na
segunda seção.
15
Antes de prosseguir, faz-se necessário um esclarecimento a respeito da utilização do qualificativo
“geral”. Assim como as tendências expostas no primeiro capítulo, as tendências adiante examinadas são
“gerais”, na medida em que independem da forma concreta como se manifestam. Mas, ao contrário das
anteriores, não são comuns a todas as épocas da produção: são válidas para a sociedade capitalista e
apenas para ela. Como antecipado na introdução, as formas distintas de manifestação dessas leis, em
condições históricas específicas, serão objeto do próximo capítulo.
25
Seção 2.1. Leis gerais de desenvolvimento da sociedade capitalista
Como se sabe, já no Livro I de O Capital, Marx cumpre a tarefa de apresentar as
leis gerais de desenvolvimento da sociedade capitalista. Dentre as leis identificadas por
Marx, interessa-nos particularmente aquelas por intermédio das quais o autor procura
dar conta do caráter expansivo da acumulação capitalista. Ou seja, concentramo-nos
aqui na demonstração de que a produção capitalista é caracterizada, por sua própria
organização interna, por um movimento dinâmico necessariamente expansivo. São
basicamente três as tendências identificadas por Marx: (1) a tendência à concentração de
capital; (2) a tendência à centralização do capital; e (3) a tendência ao aumento da
composição do capital.
A primeira delas nada mais é do que outra forma de expressar-se a tendência à
acumulação do capital, ou seja, a sua reprodução em escala ampliada, ou, ainda, o
movimento de reaplicação da mais-valia na esfera da produção. Intitula-se tendência à
concentração, pois implica, em última instância, concentração crescente de meios de
produção e do comando sobre o trabalho nas mãos de capitalistas individuais. (Marx,
2002: 728-729) Se capital é valor que se movimenta em busca de sua valorização, a
produção capitalista só pode, por definição, ser entendida como uma produção que gira
em torno do aumento da mais-valia, da busca por essa valorização. Uma vez acumulada
a mais-valia, ampliam-se as bases para a produção de mais mais-valia, de modo que, ao
fim de cada ciclo, fica evidente a possibilidade de seu recomeço em escala ampliada.
Como “a valorização do valor só existe dentro movimento sempre renovado”, conclui
Marx (2002: 182-183): “o movimento do capital é insaciável”. Na medida em que cada
capital perfaz individualmente esse ciclo e se reproduz em escala ampliada, tem-se
como resultado o aumento do capital para o conjunto da sociedade.16
Além da tendência à concentração do capital, que trata do crescimento do capital
social realizado através do crescimento de muitos capitais individuais, destaca-se outra:
a tendência à centralização do capital. Apesar de aparecerem como tendências
articuladas que se retroalimentam, a tendência à centralização descreve o crescimento
16
Como se trata aqui de uma tendência, não significa que não possa existir, ou que jamais tenha existido
a reprodução simples; significa apenas que a reprodução em mesma escala não é, e nem poderia ser, a
regra do modo de produção capitalista: “Se a produção tem forma capitalista, também a terá a reprodução.
No modo capitalista de produção, o processo de trabalho é apenas um meio de criar valor; analogamente,
a reprodução é apenas um meio de reproduzir o valor antecipado como capital, isto é, como valor que se
expande”. (Marx, 2002: 661)
26
dos capitais individuais, obtido através da centralização do comando, isto é, da
“concentração de capitais já formados, a supressão de sua autonomia individual, a
expropriação do capitalista pelo capitalista, a transformação de muitos capitais
pequenos em poucos capitais grandes”. (Marx, 2002: 729) Como o propósito da
centralização é o aumento da mais-valia, isso pode levar à acumulação, mas, na medida
em que pressupõe apenas alteração na repartição dos capitais já existentes em
funcionamento, seu campo de ação não está limitado pelo crescimento absoluto da
riqueza social – pode ocorrer, e normalmente ocorre, também em momentos de crise.
Por fim, a terceira tendência, ao contrário das anteriores, não se refere ao
tamanho do capital, mas à relação entre suas partes constitutivas. Para expressar a
dimensão útil (valor de uso) da composição do capital, Marx introduz a categoria
intitulada composição técnica do capital, determinada pela proporção em que o capital
se divide em meios de produção e força de trabalho. Do ponto de vista abstrato (valor),
tem-se a composição em valor do capital, determinada pela proporção em que o capital
se divide em constante (montante de capital adiantado em meios de produção) e variável
(montante de capital adiantado em força de trabalho). A síntese dialética de ambas,
chamada de composição orgânica do capital, expressa “a composição do capital
segundo o valor, na medida em que é determinada pela composição técnica e reflete
modificações desta”. (Marx, 2002: 715)
A tendência ao aumento da composição do capital mencionada anteriormente –
que se traduz em aumento do capital constante em relação ao capital variável, aumento
na quantidade de meios de produção que a força de trabalho é capaz de pôr em
movimento, ou ainda, substituição de trabalho vivo por trabalho objetivado – nada mais
é do que a forma de expressar-se o aumento das forças produtivas do trabalho sob o
capitalismo. Mas, na medida em que produz uma queda no valor unitário das
mercadorias e contribui para o aumento da mais-valia relativa, pode-se afirmar a
existência de uma motivação exclusivamente capitalista para aumentar a produtividade
do trabalho.
Antes de prosseguir com o argumento, é preciso aqui diferenciar essa tendência
própria (particular) da sociedade capitalista da tendência geral (universal) de aumento
das forças produtivas tratada no capítulo anterior. Vimos que o aumento da
produtividade é condição sine qua non do desenvolvimento social, porque dele depende,
por exemplo, a diversificação das práticas humanas e o próprio aumento populacional.
27
O capitalismo, contudo, é a única formação social até então existente em que essa
tendência universal de aumento da produtividade apresenta-se como condição
particular indispensável à sua reprodução. Ou seja, diferentemente das demais
formações sociais conhecidas, a sociedade capitalista tem o aumento da produtividade
como elemento estrutural de sua reprodução e necessariamente entra em crise caso não
se revolucionem periodicamente as condições de produção. Infere-se daí que a
tendência expansiva do capital, centrada fundamentalmente na busca da valorização,
confere ao aumento das forças produtivas uma potência sem precedentes na história da
humanidade. Ao ingressar na produção, o capital revoluciona a forma de produzir,
revoluciona o modo de fazer as coisas: transforma a produção para que essa se
transforme num meio de expansão do valor.17
Combinando as três tendências acima apresentadas, é possível vislumbrar uma
dinâmica inerente à acumulação capitalista. Em períodos de relativa estabilidade
técnica, a acumulação de capital tende a absorver mais trabalhadores, subordinando-os à
lógica capitalista e ampliando extensivamente seu raio de atuação. Mas a dinâmica de
acumulação ultrapassa, e tem de ultrapassar essa fase: “Dados os fundamentos gerais do
sistema capitalista, chega-se, sempre, no curso da acumulação, a um ponto em que o
desenvolvimento da produtividade do trabalho social se torna a mais poderosa alavanca
da acumulação”. (Marx, 2002: 725) Isso porque o aumento de produtividade permite
superar os limites encontrados pelo capital para a expansão da mais-valia com
composição técnica constante, especialmente aquele postos (i) pela impossibilidade de
se estender indefinidamente a jornada de trabalho e (ii) pelo tamanho da população
imediatamente disponível.
Acumulação de capital ocorre, portanto, combinando fases de acumulação
predominantemente extensiva (acumulação com composição constante) e fases de
acumulação predominantemente intensiva (acumulação com aumento da
produtividade): nesse processo, o capital tende a absorver trabalhadores para o campo
da produção (crescimento da proletarização) para depois torná-los redundantes. Assim,
17
Já no Manifesto Comunista, Marx e Engels reconheceram que o capital desenvolve por necessidade as
forças produtivas do trabalho: “A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente o
instrumental de produção e, em consequência, as relações de produção e todas as relações sociais. A
conservação inalterada do modo tradicional de produção era, ao contrário, a primeira condição de
existência de todas as classes industriais precedentes. A contínua transformação da produção, a
turbulência ininterrupta de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação permanentes distinguem a
era burguesa de todas as que a precederam”. (Marx e Engels, 1985: 30) Marx, naturalmente, reafirma a
importância dessa descoberta em O Capital. Cf.: Marx (2002: 551).
28
mesmo que a demanda por trabalho aumente em termos absolutos, como tendência,
diminui em termos relativos, implicando a diminuição da participação do capital
variável na totalidade do capital. O resultado é que “a acumulação capitalista sempre
produz, e na proporção da sua energia e de sua extensão, uma população trabalhadora
relativamente supérflua, isto é, que ultrapassa as necessidades médias da expansão do
capital, tornando-se, desse modo, excedente”. (Marx, 2002: 733) Essa população ficou
conhecida como superpopulação relativa ou exército industrial de reserva.
Apesar de tratados, no jargão econômico, como “excluídos”, é preciso notar que
a existência desses desempregados e subempregados, de trabalhadores em espera, é não
apenas resultado da dinâmica da acumulação capitalista mas também seu requisito
objetivo. Isso porque, se essa economia (não coordenada) pode crescer inesperada e
rapidamente, é necessário ter trabalhadores à disposição e em condições de trabalhar
(inclusive no que se refere à qualificação), independentemente dos limites colocados
pelo efetivo incremento populacional:
A expansão súbita e intermitente da escala de produção é condição para sua
contração súbita; esta provoca novamente aquela, mas aquela é impossível
sem material humano disponível, sem aumento dos trabalhadores,
independentemente do crescimento absoluto da população. Esse aumento é
criado pelo simples processo de “liberar” continuamente parte dos
trabalhadores, com métodos que diminuem o número dos empregados em
relação à produção aumentada. (Marx, 2002: 736)
Se o “processo de liberar continuamente parte dos trabalhadores” descrito acima,
tão indispensável à produção de riqueza, é o mesmo responsável pela produção de
pobreza, infere-se que o pauperismo é tão indispensável à acumulação quanto a própria
produção de riqueza – como diz Marx, “faz parte das despesas extras da produção
capitalista”. (Marx, 2002: 748) E assim chegamos à verdadeira lei geral da acumulação
capitalista: quanto maior a riqueza, maior tem de ser a pobreza, “[...] acumulação de
riqueza num pólo é, ao mesmo tempo, acumulação de miséria, de trabalho atormentante,
de escravatura, ignorância, brutalização e degradação moral, no pólo oposto, constituído
pela classe cujo produto vira capital”.18
(Ibid: 749)
Para as finalidades deste trabalho, basta que nós recuperemos, da obra de Marx,
a descrição das tendências acima selecionadas para representar, no nível de abstração
18
Para outros estudos congruentes com a perspectiva aqui apresentada, que interpretam a pobreza como
produto inerente e necessário da dinâmica capitalista, ver Mészáros (2002), Cammack (2002), Medeiros
(2007) e Duayer e Medeiros (2003).
29
em que nos encontramos, a dinâmica que caracteriza o desenvolvimento capitalista.19
É
claro que, como pretendemos demonstrar no próximo capítulo, essas são tendências que
dependem de condições históricas concretas para se manifestar e, conforme o lócus
específico, manifestam-se de maneira diferenciada. Mas antes de transitar para a análise
da dinâmica capitalista neste nível ainda mais baixo de abstração, seguimos na próxima
seção com algumas conclusões que podem ser extraídas do estudo das leis do
desenvolvimento capitalista, vistas ainda no plano “geral”.
Seção 2.2. Considerações sobre o desenvolvimento capitalista e suas contradições
A partir do exposto acima e do resgate de alguns elementos apresentados no
capítulo anterior, podemos fazer uma série de afirmações a respeito das leis de
desenvolvimento da sociedade capitalista. Em primeiro lugar, assim como no caso das
leis gerais de desenvolvimento da sociedade, as leis especificamente capitalistas são
não-teleológicas, ou seja, os resultados aqui apresentados não são necessariamente
previstos ou intencionados pelos sujeitos em suas ações. Para entender o que está sendo
dito, sem precisar ir muito longe, basta pensar que, se a combinação dessas leis produz
uma deterioração relativa nas condições de vida da maioria da população, esse é um
resultado indesejável que as pessoas, como regra, consideram lastimável, mesmo quando
não associam este resultado ao desenvolvimento capitalista.
Em segundo lugar, na medida em que “estão em jogo fatores adversos que
estorvam e anulam o efeito da lei geral”, (Marx, 1974: 266) também as leis do
desenvolvimento capitalista possuem o caráter tendencial. Assim, ainda que a expansão
da pobreza tenha sido apresentada como resultado intrínseco à dinâmica capitalista, essa
mesma dinâmica comporta, em seu interior, a possibilidade de expansão com absorção
acelerada de força de trabalho, o que cria condições favoráveis para a redução do
desemprego, aumentos salariais, melhoras nas condições de trabalho, conquistas sociais
etc. Se “as tendências gerais e necessárias do capital devem ser distinguidas de suas
formas de manifestação”, (Marx, 2002: 367) um período de acumulação
19
Ao lado das tendências aqui mencionadas, há outras leis que são fundamentais para reconstituir o modo
de funcionamento da economia capitalista, tal como concebido por Marx. É o caso, por exemplo, da
tendência à queda da taxa de lucro. Aqui nos concentramos, no entanto, em determinações que
caracterizam a natureza expansiva e estranhada da produção capitalista. Essa análise será, entretanto,
enriquecida, à medida que o grau de abstração for reduzido, no capítulo seguinte e principalmente no
terceiro apêndice.
30
predominantemente extensiva pode, como comprovam alguns exemplos históricos,
interromper por determinado tempo a manifestação fenomênica da lei geral.20
Em terceiro lugar, tomando o conceito de desenvolvimento/progresso
apresentado também no primeiro capítulo, temos que reconhecer que, apesar dos
resultados nefastos decorrentes da dinâmica capitalista, esta mesma dinâmica representa
um progresso objetivo na história da humanidade. Ou seja, independentemente da forma
como os sujeitos interpretam e avaliam os resultados desse processo, “a crescente
socialidade da produção se manifesta não simplesmente como aumento dos produtos,
mas também como diminuição do trabalho socialmente necessário para fabricá-los”, e
isso representa um “traço objetivamente ontológico da tendência evolutiva interna ao
ser social”. (Lukács, 1979: 82) Ao conferir ao aumento das forças produtivas um
potencial ímpar, produzindo aumentos significativos de riqueza e de entrelaçamento
entre os povos – e demonstrar a existência objetiva desta dinâmica é um dos objetivos
de Marx –, amplia-se substancialmente a possibilidade de controle coletivo sobre a vida
social. O aumento da produtividade cria a base material indispensável para livrar, ao
menos em alguma medida, a humanidade da escravidão pelo trabalho. Acentua assim a
possibilidade de a humanidade afastar-se de sua “prisão” natural, do reino de suas
necessidades. (Marx, 1974: 941) Ao exasperar esta dinâmica progressiva, o capitalismo
cria e amplia as condições materiais de emancipação humana.
A análise não pode, no entanto, esgotar-se neste ponto, pois, ao mesmo tempo
em que cria e amplia as condições da emancipação, o capital obstrui continuamente, ele
mesmo, a realização plena dessa possibilidade. Isso porque, como indicado
anteriormente, por mais que contenha em si um “desenvolvimento no sentido de níveis
superiores”, a dinâmica capitalista envolve a “ativação de contradições de tipo cada vez
mais elevado, cada vez mais fundamental”. (Lukács, 2007: 239) Conforme sintetizado
por Marx na passagem abaixo:
A barreira efetiva da produção capitalista é o próprio capital: o capital e sua
autoexpansão se patenteiam ponto de partida e meta, móvel e fim da
produção; a produção existe para o capital, ao invés de os meios de produção
serem apenas meio de acelerar continuamente o desenvolvimento do
20
Os anos que vão do imediato pós-guerra até meados dos anos 1970, conhecidos como a “era de ouro do
capitalismo”, talvez nos ofereçam aqui o exemplo mais emblemático. Apesar dos significativos aumentos
de produtividade, assiste-se durante este período a uma diminuição do desemprego e melhoria nas
condições de vida da população, especialmente nos países capitalistas mais afortunados. (Hobsbawm,
1995: 253pp.) O fato de que mais trabalhadores estivessem empregados e em melhores condições não
significa, no entanto, que a subordinação da classe trabalhadora ao capital tenha diminuído. Ao contrário,
o fato de mais trabalhadores estarem submetidos à relação salarial significa que o domínio do capital
aumentou extensivamente, se revestindo apenas de “formas suportáveis”. (Marx, 2002: 720-721)
31
processo vital para a sociedade dos produtores. Os limites intransponíveis em
que se podem mover a manutenção e a expansão do valor-capital, a qual se
baseia na expropriação e empobrecimento da grande massa dos produtores,
colidem constantemente com os métodos de produção que o capital tem de
empregar para atingir seu objetivo e que visam ao aumento ilimitado da
produção, à produção como fim em si mesma, ao desenvolvimento
incondicionado das forças produtivas sociais do trabalho. O meio –
desenvolvimento ilimitado das forças produtivas sociais – em caráter
permanente conflita com o objetivo limitado, a valorização do capital
existente. Por conseguinte, se o modo capitalista de produção é um meio
histórico para desenvolver a força produtiva social e criar o mercado mundial
apropriado, é ele ao mesmo tempo a contradição permanente entre essa tarefa
histórica e as relações sociais que lhe correspondem. (Marx, 1974: 288)
Apesar de não ser a única forma de expressar-se o caráter contraditório do
desenvolvimento capitalista, utilizamos a lei geral, mais uma vez, como ilustração. Ao
final da seção anterior, vimos que o desenvolvimento capitalista, tal como concebido
por Marx, envolve, simultaneamente, empobrecimento e enriquecimento, e que, embora
o trabalho social típico da sociedade capitalista suscite um avanço técnico e científico
potencialmente enriquecedor para todos os seres humanos, isso se dá às expensas do
empobrecimento de muitos. Por um lado, analisando a questão objetivamente, desde o
ponto de vista do funcionamento sistêmico, podemos observar que, se a riqueza no
capitalismo tem caráter mercantil e, por isso, carece de realização, é contraditório que
esse mesmo sistema prive permanentemente uma parte da população da capacidade de
consumo. (Marx, 2011: 343-344) Ademais, a massa de pobres e miseráveis representa
uma ameaça à estabilidade social e política, ao menos em potencial. Por outro lado,
partindo do prisma da humanidade, da preservação da vida, da melhora e
desenvolvimento de nossa individualidade, também é contraditório que haja pobreza
numa sociedade que cria as condições materiais para eliminá-la.
No caso específico do modo de produção capitalista, essa contradição foi
reconhecida, e corretamente tratada, por diversos autores, de maneiras variadas.21
Em
comum entre eles, identificamos o entendimento de que, na análise de Marx, o
desenvolvimento não pode ser compreendido de forma unilateral, “nem como progresso
do conhecimento e da felicidade, ou como „progresso‟ da dominação e da destruição”.
(Postone, 1993: 35-36) Ao contrário, é preciso reconhecer que, no capitalismo, ao
mesmo tempo em que “a capacidade e o conhecimento da humanidade são acrescidos
enormemente”, isso ocorre “de uma forma alienada que oprime as pessoas e tende a
destruir a natureza”. (Ibid: 30)
21
Conferir, por exemplo, Lukács (2007), Hobsbawm (2009), Mészaros (2002: 39), Cammack (2002:
197), Postone (1993), Medeiros (2007) e Duayer e Medeiros (2003).
32
Esse caráter contraditório (dialético) do desenvolvimento capitalista é
certamente um resultado da forma peculiar de articulação do trabalho nesta sociedade.
Como Marx revela ainda nos primeiros capítulos de O Capital, ao contrário de
produção diretamente social, os trabalhos privados, independentes uns dos outros,
somente atuam como parte constitutiva do trabalho social por meio da troca. Assim,
embora resulte da interação entre as ações humanas, o trabalho articula-se socialmente
constituindo uma dinâmica semi-autônoma com relação a esses agires e às suas
condições objetivas e subjetivas. Apesar de não ser essa a leitura convencional, muitos
marxistas julgam, em nosso juízo acertadamente, que o grande mérito de Marx foi
justamente ter reconhecido – e posto em primeiro plano na sua principal obra – esse
caráter estranhado ou alienado do trabalho que domina a sociedade capitalista.22
Em uma sociedade desse tipo, na qual os produtos do trabalho assumem a forma
mercadoria, o esforço de trabalho aparece, em primeiro lugar, como uma propriedade
das coisas, como valor. Além disso, o trabalho humano, materializado como
propriedade das mercadorias, autonomiza-se e subjuga seus produtores. E, na medida
em que as relações sociais entre as pessoas aparecem como relações entre coisas, o
conjunto das relações humanas aparece aos sujeitos como algo externo a eles, que os
constrange e domina. Daí a centralidade da categoria valor para a compreensão dessa
formação social. De acordo com Duayer,
A categoria valor nada mais é [...] do que a expressão social do fato de que
nesta sociedade os sujeitos são reduzidos a trabalho. O trabalho, se não é a
única forma de socialização, é a fundamental, básica, incondicional, da qual
todas as outras dependem, e sem a qual os sujeitos perdem não só a sua
sociabilidade, mas também a sua humanidade e, no limite, sua existência
física. O valor, na teoria de Marx, é esse poder exclusivo da espécie humana,
esse notável poder social de associação, o trabalho social, que, emergindo na
história nas circunstâncias em que o fez – e que poderiam ter sido outras,
quem sabe – constitui-se em poder que escapa ao controle dos sujeitos e,
mais do que isso, os subordina à sua lógica. E por isso tem de se apresentar
como valor, como poder das coisas, em lugar de força diretamente social dos
sujeitos. (Duayer, 2008: 16)
Em suma, essa sociedade, mesmo sendo resultado da articulação espontânea
entre atos teleológicos, possui uma dinâmica que escapa ao controle de, enfatize-se,
todos os sujeitos. Como Marx adverte ainda no prefácio de O Capital, os capitalistas
também se dobram à lógica de valorização, sendo impelidos, na condição de
representantes do capital, a buscar aumentos de produtividade. (Marx, 2002: 18) Por
22
Como afirma Postone (1993: 30): “[...] uma marca central do capitalismo é que as pessoas realmente
não controlam sua própria atividade produtiva ou o que elas produzem, mas são, em última instância,
dominadas pelos resultados desta atividade. Esta forma de dominação é expressa como uma contradição
entre indivíduos e sociedade e constituída como uma estrutura abstrata”.
33
mais curioso que pareça, também não controlam as relações sociais em que
comparecem como representação subjetiva de uma categoria objetiva, o capital.23
Para encerrar o argumento, gostaríamos de enfatizar uma importante
característica das leis até o momento apresentadas, fundamental para a compreensão da
crítica que se pretende fazer às teorias do desenvolvimento. Como mencionado na seção
de encerramento do capítulo primeiro, na medida em que são sociais, as leis de que
tratamos aqui não são totalmente independentes da atividade humana e não podem, ao
mesmo tempo, ser diretamente criadas por ela. Assim, por aparecerem como
pressuposto da sua atividade, na forma de estruturas que condicionam a sua prática, os
sujeitos percebem essas leis como elementos da natureza, e as tomam, na consciência,
como condições naturais do seu agir. Ao assim fazê-lo, assumem necessariamente uma
postura conservadora diante do mundo, confirmando e reproduzindo na sua prática
corrente as leis pelas quais são dominados.
Essa não é, no entanto, uma exclusividade das formas de consciência cotidianas:
reflete-se também em formas científicas de consciência. Isso porque, como vimos
também no capítulo anterior, analisar cientificamente determinado objeto significa
seguir caminho oposto ao desenvolvimento histórico real: “começa-se depois do fato
consumado, quando já estão concluídos os resultados do processo de desenvolvimento”.
(Marx, 2002: 97) Quando a ciência econômica se empenha em apreender o sentido das
“formas que convertem os produtos do trabalho em mercadorias”, estas já possuem a
consistência de “formas naturais da vida social”, transistóricas e imutáveis. (Ibid)
Assim, “fórmulas que pertencem, claramente, a uma formação social em que o
processo de produção domina o homem, e não o homem o processo de produção, são
consideradas pela consciência burguesa uma necessidade tão natural quanto o próprio
trabalho produtivo”. (Ibid: 102-103)
Quando tratarmos especificamente das teorias do desenvolvimento ao longo da
próxima parte do trabalho, veremos que, ainda que sejam de diversos tipos e incorporem
23
Como afirma Mészáros (2002: 96), “O capital não é simplesmente uma „entidade material‟ [...] mas é,
em última análise, uma forma incontrolável de controle sociometabólico. [...] uma estrutura
„totalizadora‟ de controle à qual tudo o mais, inclusive seres humanos, deve se ajustar”. E segue: “O
preço a ser pago por esse incomensurável dinamismo totalizador é, paradoxalmente, a perda de controle
sobre os processos de tomada de decisão. Isto não se aplica apenas aos trabalhadores [...], mas até aos
capitalistas mais ricos, pois, não importa quantas ações controladoras eles possuam na companhia ou nas
companhias de que legalmente são donos como indivíduos particulares, seu poder de controle no conjunto
do sistema do capital é absolutamente insignificante. Eles têm de obedecer aos imperativos objetivos de
todo o sistema, exatamente como todos os outros, ou sofrer as consequências de perder o negócio”. (Ibid:
97-98)
34
de maneira diferenciada os fundamentos teóricos que antecedem o nascimento desse
ramo específico, as teorias do desenvolvimento compartilham essa visão de mundo.
Como esperamos demonstrar, mesmo aquelas teorias que por vezes reconhecem o
caráter histórico, e portanto passageiro, do modo de produção capitalista, tomam essa
forma de sociabilidade, e as possibilidades postas por ela, como pressuposto de suas
formulações.
Antes de realizar a inspeção das teorias do desenvolvimento, no entanto, faz-se
necessário analisar o funcionamento da dinâmica capitalista em um nível ainda mais
baixo de abstração. Por isso, dedicamos o próximo capítulo à apresentação de alguns
exemplos históricos que nos permitam mostrar como, além das tendências gerais, o
desenvolvimento capitalista é marcado por particularidades que influenciam a forma
concreta de manifestação dessas leis gerais (ainda que, no fundo, as características mais
gerais sejam mantidas).
35
Apêndice II. Desenvolvimento capitalista e mercado mundial
Dedicamos este segundo apêndice da Parte I ao tratamento de uma importante
tendência da dinâmica capitalista, mencionada ao longo dos primeiros capítulos, mas
não suficientemente tratada: a tendência à formação do mercado mundial. Ainda que
envolva uma série de temáticas e suscite discussões que fogem ao escopo do presente
trabalho, julgamos necessário resgatá-la por tratar-se de uma das tendências que
distinguem de modo mais universal a produção capitalista e por dela depender a própria
operação da dinâmica capitalista em nível global. Como pretendemos demonstrar de
modo bastante sucinto, essa tendência decorre da (e contribui para a) expansão
incessante de riqueza (característica da produção capitalista) e pode ser apresentada com
recurso a categorias simples, também enunciadas por Marx no Livro I de O Capital.
Para cumprir com esse objetivo, é fundamental reconhecer, em primeiro lugar,
que as trocas e, portanto, o mercado (lócus no qual se realiza a circulação – compra e
venda – de mercadorias) são pressuposto do capital e do capitalismo, tanto em termos
históricos, quanto (e por consequência) em termos teórico-formais. (Marx, 2002: 177)
Ao contrário do que afirmam os economistas políticos, no entanto, as trocas (e a
consequente transformação do produto do trabalho em mercadoria) também são
resultado de um processo histórico, que certamente envolve o contato entre sociedades
não-mercantis, pois a troca não poderia emergir na prática social de indivíduos imersos
em relações de produção nas quais o produto não tem a troca como meio de
distribuição. Apenas posteriormente, com o desenvolvimento das relações de comércio,
as trocas penetram no seio das comunidades e se transformam na forma dominante de
articulação entre os produtores. Por isso, podemos intuir que o comércio de longa
distância põe o comércio local e o precede historicamente.24
Do ponto de vista analítico é possível mostrar ainda que a simples articulação de
unidades produtivas pela troca coloca a necessidade da produção de riqueza material e
24
Não por acaso, as formas primitivas (ou, para usar a expressão de Marx, “antediluvianas”) de capital
são justamente aquelas que surgem na esfera da circulação, pertencem a essa esfera e nela permanecem
confinadas: capital de comércio de mercadoria (capital mercantil) e capital de comércio de dinheiro
(capital usurário). Em capítulo dedicado a “observações históricas sobre o capital mercantil”, forma mais
antiga de existência do capital, Marx (1974: 372pp.) mostra justamente (i) como este atua, nos seus
primórdios, mediando a relação entre modos de produção diversos, voltados essencialmente a produção
de valores-de-uso, (ii) como contribui para que a produção seja crescentemente orientada para a troca e
(iii) como o seu desenvolvimento é pressuposto necessário (ainda que não suficiente) da emergência e
consolidação do modo capitalista de produção.
36
valor em escala crescente. Isso porque a participação na riqueza social a que se tem
acesso é uma alíquota que depende, ao menos potencialmente, da magnitude da
produção: a porção de riqueza que se pode retirar do mercado é sempre proporcional à
que nele se lança, e quanto maior a parcela da riqueza que se tem em mãos, maiores são
as chances de acessar riqueza social. E uma vez estabelecida essa dinâmica, cada
produtor tem necessariamente de buscar uma produção crescente, sob pena de ver cair
sua parcela da riqueza social (i.e., de empobrecer relativamente à riqueza total e aos
outros produtores). (Duayer e Medeiros, 2008) Esse impulso ao aumento da riqueza,
que consiste em uma das determinações mais importantes da dinâmica capitalista e já
pode ser percebido (embora não devidamente caracterizado, claro) exclusivamente a
partir da análise da esfera da circulação e do caráter mercantil da sociedade, ganha novo
ímpeto com o ingresso do capital na esfera da produção.
Nesse sentido, é preciso reconhecer, em segundo lugar, que a colonização da
esfera produtiva pelo capital e o consequente advento da produção capitalista
representam um salto qualitativo, tanto em termos do desenvolvimento das forças
produtivas, quanto do desenvolvimento das relações mercantis.25
Se capital é valor que
se movimenta em busca de sua valorização, valor que procura acrescer ao seu corpo
mais-valor, e o capitalismo é a sociedade que possui esse impulso como determinação
geral (produção moldada desde a raiz ao imperativo do crescimento da riqueza na dupla
forma que ela adquire quando destinada à troca), não fica difícil perceber como aquilo
que é inicialmente um pressuposto também se põe como resultado do próprio
desenvolvimento das relações de produção capitalistas.
Partindo, portanto, do conceito de capital, observamos, por um lado, que
mercado / comércio / circulação / relações de troca / troca são pressupostos, pois ainda
que a extração de mais-valia (trabalho excedente) ocorra na esfera da produção, ela não
dispensa, em nenhum sentido, a esfera da circulação. (Marx, 2002: 196) Isso porque, em
primeiro lugar, é na esfera da circulação que se encontram os elementos materiais
(meios de produção e força de trabalho) necessários à produção de mais-valor; e, em
segundo lugar, é na esfera da circulação que o valor produzido realiza-se como valor
25
Tomando como referência a produção capitalista no lócus clássico de sua emergência (a Inglaterra),
observamos, por exemplo, o papel desempenhado pelo capital como elemento socializador de uma
produção fracionada no campo (produção camponesa) e na cidade (produção artesanal). Tendo em vista
que a produção fracionada é limitada, por natureza, e incompatível com o impulso que emerge da simples
articulação pela troca, essa socialização se mostra indispensável ao aumento de produtividade e contribui,
em grande medida, para tornar a produção compatível com o aumento de riqueza. Sobre o tema, conferir
Marx (2002: 876; 2011: 485pp.).
37
que se conserva e se expande. De acordo com os termos utilizados por Marx (2011:
328) nos rascunhos que antecedem a redação de O Capital, é como se o capital, no
momento em que deixa a forma dinheiro e assume a forma mercadoria, passasse por um
processo de desvalorização: caso o circuito interrompa-se sem a venda do produto final
(transformação de mercadoria em dinheiro), não apenas valor novo deixa de ser
acrescido, mas também se perde com isso o valor original.
Por outro lado, a circulação é posta pelo capital como resultado, sempre de modo
ampliado, pois a produção de valor em escala crescente também exige circulação em
escala crescente, fazendo com que a tendência do capital à ampliação do trabalho
excedente venha acompanhada da tendência à ampliação dos mercados. Como
explicitado por Marx, novamente, “o modo capitalista de produção supõe produção em
grande escala e necessariamente venda em grande escala [de tal forma que] o comércio
de mercadorias [...] é condição do desenvolvimento da produção capitalista e com ela se
desenvolve cada vez mais”.26
(Marx, 2000: 125)
Sendo, portanto, dotado de uma tendência à expansão imanente, o capital precisa
incorporar áreas cada vez mais extensas ao seu limite de operação; pela sua própria
natureza, precisa ir além de qualquer barreira espacial, criar condições objetivas para
ampliação das trocas e conquistar o mundo como seu mercado. (Marx, 2011: 445) E faz
isso, em parte, por meio do desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte,
realizando o que Marx chamou de aniquilação do espaço pelo tempo. Nas palavras do
autor (Ibid): “Quanto mais desenvolvido o capital, quanto mais distendido, portanto, o
mercado em que circula, tanto mais ele se empenha simultaneamente para uma maior
expansão especial do mercado e para uma maior destruição do espaço pelo tempo”.27
Nesse processo, o contato comercial de regiões nas quais o capital comanda a
produção com regiões onde ele ainda não havia penetrado abre o caminho para a
subordinação dessas últimas às primeiras. Essa expropriação dos modos de produção
pré-capitalistas ocorre, fundamentalmente, devido à maior capacidade produtiva do
capital e à operação de suas leis imanentes, e mostra como, embora não dispense outros
métodos (extraeconômicos) de subordinação, o capital contém uma arma própria,
muitíssimo potente, típica da expansão capitalista e da competição mercantil: o preço
(i.e., a maior produtividade). Na medida, portanto, em que o desenvolvimento do
26
Ver também Marx (2011: 332-333; 1974: 272; 384). 27
Um tratamento minucioso da tendência à aniquilação do espaço pelo tempo e da discussão relacionada
à produção capitalista do espaço pode ser encontrado nos trabalhos de David Harvey (1990, 2006).
38
comércio (e do capital mercantil) cria sobre esses modos de produção a necessidade de
aumento das forças produtivas e estimula a ampliação da produção orientada para a
troca (e pelo valor-de-troca), desagrega as antigas relações sociais e “exerce sempre
ação mais ou menos dissolvente sobre as organizações anteriores da produção”. (Marx,
1974: 382)
Em suma, mesmo que ainda hoje se discuta o efetivo alcance da produção
capitalista no mundo, não há dúvidas de que, “pela primeira vez na história, o
capitalismo cria uma efetiva economia mundial, a ligação econômica de todas as
comunidades humanas entre si”. (Lukács, 1979: 148) De fato, não é preciso ir muito
longe para perceber como o planeta “outrora povoado por inúmeras pequenas tribos,
que frequentemente não sabiam quase nada uma da outra, ainda que fossem vizinhas”,
hoje caminha para uma unidade econômica, “uma plena e completa interdependência
mesmo entre os povos mais afastados entre si”. (Ibid: 147) Mais uma vez, essa ligação e
interdependência entre os povos representa um desenvolvimento/progresso objetivo e
amplia as possibilidades da emancipação humana (que apenas sob o modo de produção
capitalista adquire consciência genérica). Como já havia sido dito em outro momento,
no entanto, esse desenvolvimento vem acompanhado da ativação de contradições de
tipo cada vez mais elevado e/ou operação das contradições inerentes ao modo capitalista
de produção em escala ampliada.
39
Capítulo 3. O desenvolvimento capitalista e suas particularidades
No capítulo anterior, apresentamos algumas das principais tendências que
caracterizam o desenvolvimento do modo de produção capitalista, tomando como base a
descrição feita por Marx, especialmente em O Capital. Considerando os objetivos do
presente trabalho e a impossibilidade de recompor todos os passos do argumento
elaborado pelo autor, dedicamos especial atenção àquelas tendências que, quando
articuladas, determinam o caráter necessariamente expansivo dessa formação social.
Além disso, esperamos ter demonstrado como essa dinâmica subordina crescentemente
os demais momentos da vida social e envolve uma série de contradições (como, por
exemplo, aquela explicitada no enunciado da lei geral da acumulação capitalista).
Ainda que essa análise situe-se em um nível relativamente elevado de abstração,
os elementos de que dispomos até o presente momento já permitem perceber uma
diferença substantiva entre a perspectiva aqui defendida e aquela propalada pelas teorias
do desenvolvimento. Ao proferir sentenças a respeito do desenvolvimento capitalista,
fazemos referência à sua dinâmica objetiva de funcionamento, às tendências que
regulam sua transformação ao longo do tempo, seu decurso histórico causalmente
determinado. Ou seja, ao contrário do que normalmente se afirma, o desenvolvimento
capitalista não é entendido aqui como a passagem de um estágio de privação material
(países pobres, periféricos, terceiro mundo) para o estado de pletora material (países
ricos, centrais, primeiro mundo), como quer que se meça essa transição (pelo produto
per capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.). Falar sobre o
desenvolvimento da produção capitalista significa falar sobre a operação de suas leis em
escala global. O fato de esse desenvolvimento envolver disparidades materiais apenas
comprova o caráter contraditório da dinâmica capitalista, em lugar de negá-la.
É claro que, como indicado anteriormente, essas tendências manifestam-se de
maneiras distintas em condições históricas específicas, o que explicaria o fato, por
exemplo, de que o capitalismo, ao instalar-se em localidades distintas, desenvolve-se de
maneira diferenciada. Como sustentado nos capítulos precedentes, isso não exclui a
possibilidade de formular uma teoria geral do desenvolvimento da sociedade,
abstratamente considerada. Mas, na medida em que variam as condições históricas
específicas, as características nacionais, regionais, locais etc., tendências particulares se
formam e essas particularidades têm de ser levadas em conta quando se trata de analisar
40
o desenvolvimento dessa formação social. Mais do que isso, essas particularidades
precisam ser levadas em consideração quando se trata de analisar criticamente as formas
de consciência produzidas sobre esse desenvolvimento no interior da ciência
econômica, pois, se as teorias sobre desenvolvimento remetem a algum contexto
particular, devem ser examinadas a partir da relação com seu referente histórico.
Nesse sentido, dedicamos este capítulo de encerramento da Parte I à
demonstração de que, além das tendências gerais indicadas nos capítulos anteriores, a
produção capitalista é caracterizada por tendências particulares, circunscritas
historicamente a condições específicas de reprodução sistêmica, que permitem delimitar
fases de seu desenvolvimento. Não se trata, com isso, de investigar a pertinência das
alegadas fases, mas apenas mostrar, através de alguns exemplos, que o desenvolvimento
capitalista é marcado por particularidades e que essas particularidades suscitam
entendimentos teóricos.
A título de ilustração, começaremos tratando aqui de um período no qual o
desenvolvimento capitalista foi claramente atravessado por determinações particulares:
o quarto de século posterior a Segunda Guerra Mundial, mais conhecido como a “Era
de Ouro” do capitalismo. É claro que não se pretende com isso recompor
detalhadamente todas as características desta época ou retratar a forma específica como
suas principais tendências atuam sobre as diferentes nações. Para os propósitos do
presente trabalho, basta que sejam resgatadas especialmente aquelas particularidades
relacionadas à manifestação fenomênica das leis gerais apresentadas no capítulo
anterior. Feito isso, dedicamos a segunda seção do capítulo ao contraste entre a “Era de
Ouro” e o período posterior à crise dos anos 1970.
Seção 3.1. A assim chamada “Era de Ouro do capitalismo”
Muitos analistas, de diversas procedências teóricas, em diversos campos do
pensamento, científico ou não, reconheceram a peculiaridade do desenvolvimento
capitalista nas aproximadamente três décadas que sucederam o pós-guerra. E a
característica desse período que imediatamente salta aos olhos, responsável em grande
medida pela invocação de um metal tão sublime como o ouro, é, sem dúvida, a forma
como a economia capitalista mundial passava por um período ímpar de expansão e
prosperidade. Como ilustram os dados abaixo:
41
Entre 1950 e 1975 a renda per capita nos países em desenvolvimento teve
um aumento médio de 3% ao ano, acelerando-se de 2% na década de 1950
para 3,4% na década de 1960. Essa taxa de crescimento foi historicamente
sem precedentes nesses países e ultrapassou a que fora alcançada pelos países
desenvolvidos em sua fase de industrialização (Banco Mundial, 1978). Nos
próprios países desenvolvidos [...] o PIB e o PIB per capita cresceram quase
duas vezes mais depressa do que em qualquer período anterior desde 1820. A
produtividade do trabalho aumentou duas vezes mais depressa do que em
qualquer época, e houve uma aceleração extraordinária na taxa de
crescimento do estoque de capital. O aumento desse estoque representou uma
explosão de investimentos de duração e vigor sem precedentes históricos.
(Glyn et alli, 1990: 41-42)
Diante desses resultados, alguns chegaram a acreditar que o capitalismo havia
finalmente entrado em uma nova era de expansão ininterrupta. Como ressalta o
historiador Eric Hobsbawm (1995: 262) em sua consagrada análise sobre o século XX:
“todos os problemas que perseguiam o capitalismo em sua era da catástrofe pareceram
dissolver-se e desaparecer” e vozes mais otimistas “começaram a supor que, de algum
modo, tudo na economia iria para a frente e para o alto eternamente”. (Ibid: 254)
Segundo as previsões feitas por um destacado político britânico em 1956, tudo levava a
crer que, em cerca de cinquenta anos, a economia inglesa teria triplicado sua produção
nacional. (Crosland apud Hobsbawm, 1995: 263) Ou ainda, segundo relatório da ONU
publicado em 1972: “Não há motivo especial para duvidar que as tendências subjacentes
de crescimento no início e meados da década de 1970 continuarão em grande parte
como nas de 1960”. (Glyn et alli, 1990: 39) E sobre esta crença na possibilidade de uma
expansão contínua e sustentada, David Landes (1994: 554) declara: “essa é uma
expressão de fé, revestida da aparência de uma previsão. Mas é esse tipo de fé que ajuda
a fazer com que as previsões se realizem”.
As afirmações sobre a natureza deste período não são, no entanto, de todo
consensuais. Giovanni Arrighi (1996: 307), por exemplo, faz a seguinte avaliação: “Não
há dúvida de que, nessa época, o ritmo de expansão da economia mundial capitalista
como um todo foi excepcional, segundo os padrões históricos. Se foi também a melhor
de todas as épocas para o capitalismo histórico, de modo a justificar sua denominação
de „a idade de ouro do capitalismo‟, é uma outra questão”. Mais do que isso, em poucos
anos aquelas grandes expectativas tornaram-se verdadeiras frustrações, pois, fosse ou
não a melhor de todas as épocas, por detrás da nova roupagem o capitalismo ainda
continuava sendo o mesmo, regulado pelas mesmas determinações gerais, que
“necessariamente implicam crises, exploração, pobreza, desemprego, destruição do
meio ambiente e da natureza, entre tantas formas destrutivas”. (Antunes, 2003: 34)
42
Conforme se entende aqui, é precisamente essa convicção, a certeza de que se
trata ainda do modo de produção capitalista, que permite observar esse período a partir
da operação das leis gerais identificadas anteriormente e, ao mesmo tempo, enxergar a
existência de particularidades. Dizer que não há qualquer diferença, como afirma David
Harvey, é o mesmo que
[...] dar ao capitalismo um tratamento anistórico, considerando-o um modo de
produção desprovido de dinâmica, quando todas as evidências (incluindo-se
aí as explicitamente arroladas por Marx) apontam para o fato de ser o
capitalismo uma força constantemente revolucionária da história mundial,
uma força que reformula de maneira perpétua o mundo, criando
configurações novas e, com frequência, sobremodo inesperadas. (Harvey,
2005: 176)
De fato, o modo de produção capitalista experimenta substantivas reorientações
no período posterior à Segunda Guerra Mundial, cujas linhas gerais se definem
aproximadamente entre 1929 e 1948. Essas reorientações que, em seu conjunto, ficaram
conhecidas como fordista-keynesianas, incluem mudanças que vão da estrutura
produtiva ao plano político-ideológico e, quando articuladas, produzem uma curiosa
combinação de crescimento da produção, crescimento da capacidade de consumo da
classe trabalhadora e manutenção de lucros altos, influenciando decisivamente a
manifestação fenomênica da lei geral da acumulação capitalista.28
Considerando os objetivos dessa seção, organizaremos nossa exposição em torno
desses dois eixos fundamentais, começando pelas mudanças no plano político-
ideológico e seguindo para as mudanças ocorridas na estrutura produtiva. Esperamos
com isso poder finalmente esclarecer os impactos dessas reformas sobre as tendências
gerais do desenvolvimento capitalista.
Sobre as mudanças no plano político-ideológico, pode-se afirmar que o primeiro
aspecto digno de nota está relacionado à substantiva perda de espaço do liberalismo
econômico e ascensão do ideário intervencionista. Essa ruptura com o liberalismo, e
posterior consolidação de um “novo padrão de gerenciamento da sociedade do capital”,
no entanto, não pode ser compreendida sem que se faça uma referência àquela que
talvez tenha sido a maior crise do modo de produção capitalista: a Grande Depressão
dos entreguerras.29
Não pretendemos, e nem mesmo seria possível, recompor o conjunto
de fatores que conduziram à crise ou apresentá-la em todos os seus detalhes, mas apenas
28
Esse mesmo argumento pode ser visto, ainda que com algumas nuanças, em Harvey (2005: 117pp.),
Bihr (1998: 35pp.) e Hobsbawm (1995: 253pp.), por exemplo. 29
Hobsbawm (1995: 99) chega a caracterizar este como “[...] o mais trágico episódio da história do
capitalismo”. Como afirma o autor: “[...] entre as guerras, a economia mundial capitalista parecia
desmoronar e ninguém sabia exatamente como se poderia recuperá-la”. (Ibid: 91)
43
chamar atenção para a sua profundidade e “sua incrível capacidade de abalar os valores,
crenças e estruturas sociais do século XIX de forma praticamente instantânea e tão
intensamente a ponto de torná-los todos uma lembrança ameaçadora e indesejável por
cerca de cinquenta anos”. (Medeiros, 2007: 154)
Observando as estatísticas do período, percebemos que, apesar do indiscutível
impacto sobre a produção e sobre os “homens de negócios”, a crise tem uma capacidade
particular de afetar aqueles que, por pressuposto, não possuem o controle sobre os
meios de produção: a classe trabalhadora. Para estes, ou seja, para a maior parcela da
população, o principal e primeiro significado da Grande Depressão foi o desemprego
em massa, “em escala inimaginável e sem precedentes, e por mais tempo do que
qualquer um já experimentara”. (Hobsbawm, 1995: 97) Como mostram os assustadores
dados sobre o comportamento do emprego: “no pior período da Depressão (1932-3),
22% a 23% da força de trabalho britânica e belga, 24% da sueca, 27% da americana,
29% da austríaca, 31% da norueguesa, 32% da dinamarquesa e nada menos que 44% da
alemã não tinha emprego. [...] Não houvera nada semelhante a essa catástrofe
econômica na vida dos trabalhadores até onde qualquer um pudesse lembrar”. (Ibid)
No que diz respeito especificamente ao papel desempenhado pela crise no
descrédito sofrido pela ideologia liberal, Hobsbawm (1995: 99) sintetiza em uma única
frase: “a Grande Depressão destruiu o liberalismo econômico por meio século” e isso se
deve a pelo menos dois motivos fundamentais. Em primeiro lugar, depois de certo
tempo já não havia mais dúvidas de que a Grande Depressão foi em parte resultado do
fracasso das políticas de livre mercado. Voltaremos a esse argumento mais adiante,
ainda nessa seção. Por ora, basta ressaltar que, independentemente do grau de
responsabilidade sobre a crise, a aplicação do receituário tipicamente liberal também
não se mostrou capaz de oferecer uma saída à depressão.30
Em segundo lugar, como já havia sido mencionado no capítulo anterior, é
preciso lembrar que o desemprego em larga escala, e o consequente aumento da
quantidade de pobres e miseráveis, representa uma ameaça à estabilidade social e
política. Por um lado, havia a possibilidade de radicalização à direita, cujo exemplo
mais emblemático talvez fosse a Alemanha nazista, que conseguiu superar a Grande
30
Como propõe Hobsbawm (1995: 106-107): “Até onde se podia confiar nos economistas, por mais
brilhantes que fossem, quando demonstravam, com grande lucidez, que a Depressão em que eles mesmos
viviam não podia acontecer numa sociedade de livre mercado propriamente conduzida, pois (segundo
uma lei econômica com o nome de um francês do início do século XIX) não era possível nenhuma
superprodução que logo não se corrigisse?”
44
Depressão de maneira mais rápida e mais bem-sucedida que qualquer outro país. Por
outro lado, havia a possibilidade de radicalização à esquerda: “afinal, as previsões do
próprio Marx pareciam estar concretizando-se [...] e, de maneira ainda mais
impressionante, a URSS parecia imune à catástrofe”.31
(Ibid: 111) Por fim, é preciso
lembrar que o relativo sucesso da resposta à crise alcançado nesses dois modelos
alternativos de sociedade estava ancorado no planejamento e na aberta intervenção do
Estado na economia, contribuindo, também por esse motivo, para o descrédito do
liberalismo e a crença na virtude do planejamento.
Assim, fosse para afastar o perigo de retorno à grande depressão, ou para conter
o avanço do comunismo ou do nazifacismo, consolidava-se a convicção de que um
retorno ao laissez-faire estava fora de questão. Como ressalta Hobsbawm:
É um engano supor que as pessoas jamais aprendem com a história. A
experiência do entreguerras e, sobretudo, a Grande Depressão tinham sido tão
catastróficas que ninguém podia sonhar [...] em retornar à época anterior [...].
E se a memória econômica da década de 1930 não fosse o bastante para
aguçar seu apetite por reformar o capitalismo, os riscos políticos de não fazê-
lo eram patentes para todos os que acabavam de combater a Alemanha de
Hitler, filha da Grande Depressão, e enfrentavam a perspectiva do
comunismo e do poder soviético avançando para oeste sobre as ruínas de
economias capitalistas que não funcionavam. (Hobsbawm, 1995: 266)
É nesse contexto que, com base em argumentos tanto econômicos quanto
políticos, o mercado livre é substituído pela maior intervenção do Estado na economia.
A consequência disso, na prática, é a emergência de um “capitalismo reformado”, tanto
no âmbito nacional, quanto internacional, com o propósito central de manter o
crescimento, o pleno emprego, evitar flutuações bruscas e minimizar as incertezas
inerentes ao funcionamento dos diversos mercados.
No plano internacional, a regulação do capitalismo visava basicamente
estabelecer uma nova ordem mundial que evitasse as fortes instabilidades econômicas
ocorridas no período precedente, promovendo um crescimento controlado do comércio
internacional. Os termos dessa nova ordem supranacional, estabelecidos, em linhas
gerais, na conferência de Bretton Woods (1944), eram basicamente os seguintes: (i)
criação do padrão dólar-ouro, que transforma a moeda norte-americana em moeda de
31
Ainda sobre o desempenho da URSS durante esse período, afirma Hobsbawm (1995: 100): “O trauma
da Grande Depressão foi realçado pelo fato de que um país que rompera clamorosamente com o
capitalismo pareceu imune a ela: a União Soviética. Enquanto o resto do mundo, ou pelo menos o
capitalismo liberal ocidental, estagnava, a URSS entrava numa industrialização ultra-rápida e maciça sob
seus novos Planos Quinquenais. De 1929 a 1940, a produção industrial soviética triplicou, no mínimo dos
mínimos. Subiu de 5% dos produtos manufaturados do mundo em 1929 para 18% em 1938, enquanto no
mesmo período a fatia conjunta dos EUA, Grã-Bretanha e França caía de 59% para 52% do total do
mundo. E mais, não havia desemprego”.
45
curso internacional e conversível em ouro; (ii) instituição de um regime de câmbios
fixos atrelados ao padrão dólar; e (iii) a criação de organismos multilaterais como o
Banco Mundial (originalmente chamado Banco Internacional para a Reconstrução e
Desenvolvimento) e o Fundo Monetário Internacional. (Coggiola, 2002: 371)
No âmbito nacional, testemunha-se a emergência e a disseminação dos primeiros
Estados de Bem-estar Social, preocupados fundamentalmente com a administração
keynesiana da demanda agregada, provisão de serviços públicos essenciais (como
educação, saúde, transportes etc.) e universalização da seguridade social (garantindo ao
cidadão benefícios como aposentadoria, auxílio desemprego, entre outros).32
O
resultado, como confirmam diversos analistas, foi a “incomum combinação keynesiana
de crescimento econômico numa economia capitalista baseada no consumo de massa de
uma força de trabalho plenamente empregada e cada vez mais bem paga e protegida”.
(Hobsbawm, 1995: 276)
Sobre as mudanças na estrutura produtiva, observamos que o pós-guerra foi
marcado pela disseminação de dois princípios gerais de organização do trabalho,
princípios esses que começaram a ser introduzidos ainda no final do século XIX e início
do século XX. O primeiro deles, conhecido como taylorista, baseia-se na nítida
separação entre “as tarefas de concepção e execução, acompanhada de uma parcelização
das últimas, devendo cada operário, em última análise, executar apenas alguns gestos
elementares”. (Bihr, 1998: 39) O segundo, conhecido como fordista, define-se
essencialmente pela mecanização do processo de trabalho, ou seja, pela criação de “um
verdadeiro sistema de máquinas que garante a unidade (a recomposição) do processo de
trabalho parcelado, ditando a cada operário seus gestos e sua cadência (sendo sempre a
cadeia de montagem a forma extrema desse princípio)”. (Ibid) A combinação desses
dois princípios acentua as seguintes tendências: (i) a perda do controle direto sobre o
processo de produção pelo trabalhador e (ii) aumento da intensidade e produtividade do
trabalho.33
32
Apesar de trabalharmos aqui com uma definição bastante ampla de Estado de Bem-estar, existem
inúmeras controvérsias a respeito de sua origem, periodização e principais características. Para uma
exposição detalhada das diferentes interpretações, conferir Gough (1989) e Esping-Andersen (1990). 33
Uma caracterização semelhante pode ser vista em Antunes (2006: 25), que entende o fordismo,
fundamentalmente, “como a forma pela qual a indústria e o processo de trabalho consolidaram-se ao
longo deste século, cujos elementos constitutivos básicos eram dados pela produção em massa, através da
linha de montagem e de produtos mais homogêneos; através do controle dos tempos e movimentos pelo
cronômetro taylorista e da produção em série fordista; pela existência do trabalho parcelar e pela
fragmentação das funções; pela separação entre elaboração e execução no processo de trabalho; pela
46
Como visto no capítulo anterior, essas seriam características de um período de
acumulação predominantemente intensiva, no qual diminui a participação relativa do
capital variável na totalidade do capital. Esse mecanismo seria ainda responsável pela
produção de uma superpopulação relativa e, ao privar parte da população da capacidade
de consumo, salienta o caráter contraditório da dinâmica capitalista. Para muitos
autores, um dos elementos importantes para explicar a eclosão da crise em 1929 seria
justamente a inexistência de um aumento da demanda compatível com a expansão da
produção durante a década de 1920. Segundo Bihr (1998: 41), nessa primeira onda de
expansão dos métodos tayloristas e fordistas, a produtividade do trabalho cresceu, nas
economias capitalistas ocidentais, em média 6% ao ano, os lucros chegaram a atingir
picos históricos de 35%, enquanto o crescimento médio dos salários não ultrapassou os
2% ao ano. Ou seja:
[...] o que acontecia, como muitas vezes acontece nos booms de mercados
livres, era que, com os salários ficando para trás, os lucros cresceram
desproporcionalmente, e os prósperos obtiveram uma fatia maior do bolo
nacional. Mas como a demanda de massa não podia acompanhar a
produtividade em rápido crescimento do sistema industrial nos grandes dias
de Henry Ford, o resultado foi superprodução e especulação. Isso, por sua
vez, provocou o colapso. (Hobsbawm, 1995: 104)
No período que tratamos aqui, ao contrário, apesar dos significativos aumentos
de produtividade e utilização de técnicas cada vez mais intensivas em capital, a
velocidade de expansão da economia foi suficiente para aumentar o nível de emprego,
em termos absolutos e relativos (ao menos no “centro” do sistema capitalista e em parte
da “periferia”). Em diversos países, inclusive, o esgotamento do contingente de
trabalhadores disponíveis teve de ser compensado pela incorporação crescente de
mulheres ao mercado de trabalho, da migração interna (da zona rural para as cidades) e
até mesmo da migração estrangeira. (Hobsbawm, 1995: 262)
Além disso, o crescimento do emprego foi acompanhado por contínuos
aumentos de salário real, obtidos, em grande medida, por meio das profundas
transformações na própria relação salarial. Essas transformações incluíram o
estabelecimento de salários mínimos atrelados aos níveis de preços e produtividade da
empresa, instituição de práticas e procedimentos de negociação coletiva e crescimento
dos salários indiretos (benefícios sociais). (Bihr, 1998: 43) O resultado, em muitos
países, foi uma melhoria geral nas condições de vida da classe trabalhadora e ampliação
existência de unidades fabris concentradas e verticalizadas e pela constituição/consolidação do operário-
massa, do trabalhador coletivo fabril, entre outras dimensões”.
47
do seu poder de compra, criando exatamente aquela compatibilidade entre produção
ampliada e a necessidade de consumo crescente não conseguida no período anterior: à
produção em massa um correspondente consumo em massa.34
É claro que a realização de lucros altos durante esse período foi essencial à
manutenção desse arranjo. Como mostram os dados apresentados por Brenner (2003:
46), a taxa média de lucro líquido do grupo de países conhecido como G7 (Estados
Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, França, Itália e Canadá) foi de 26,2% durante o
período 1950-1970, em comparação com a taxa de 15,7% no período posterior (1970-
1973). Ou seja, o aumento dos salários não chegou a comprometer os lucros presentes
ou afetar as perspectivas futuras de lucros, pois era com base nessas expectativas que se
efetuavam os “enormes investimentos, sem os quais o espetacular crescimento da
produtividade da mão-de-obra da Era de Ouro não poderia ter ocorrido”.35
(Hobsbawm,
1995: 276)
Vale notar, no entanto, que as condições do problema são relativamente mais
complexas. Apesar de depender, em parte, da manutenção de taxas elevadas de lucro, as
possibilidades de expansão da economia capitalista não podem ser concebidas
exclusivamente em termos de uma única determinação. Partindo dos motivos
anteriormente explicitados e da análise desenvolvida por Marx especialmente nos
Livros II e III de O Capital, percebemos que a capacidade de expansão do capital
depende de inúmeros outros fatores. Voltaremos a tratar mais detalhadamente desse
assunto adiante, em Apêndice ao capítulo. Por ora, basta ressaltar que, assim como o
progresso do capital na “Era de Ouro” não pode ser explicado somente pela taxa de
lucro, também a crise da década de 1970 não pode ser entendida somente por sua queda,
como será mostrado na próxima seção.
34
Esse aumento na capacidade de consumo estendia-se, muitas vezes, inclusive para os bens de luxo:
“[...] o compromisso político de governos com o pleno emprego e – em menor medida – com redução da
desigualdade econômica, isto é, um compromisso com a seguridade social e previdenciária, pela primeira
vez proporcionou um mercado de consumo de massa para bens de luxo que agora podiam passar a ser
aceitos como necessidades. Quanto mais pobres as pessoas, maior a proporção da renda que têm de gastar
em produtos essenciais, como comida (uma observação sensata conhecida como “Lei de Engel”). Na
década de 1930, mesmo nos ricos EUA, cerca de um terço dos gastos domésticos ainda se destinava à
comida, mas no início da década de 1980 esse índice era de apenas 13%. O resto ficava disponível para
outras despesas. A Era de Ouro democratizou o mercado”. (Hobsbawm, 1995: 264) 35
O historiador Robert Brenner (2003: 47) chega mesmo a afirmar que “[...] a chave para o longo boom
pós-guerra do final da década de 1940 até inícios da de 1970 foi a trajetória da taxa de lucro. O que
propiciou a expansão econômica sem precedentes do período pós-guerra foi a capacidade das economias
capitalistas avançadas de realizarem e sustentarem altas taxas de lucro”.
48
Seção 3.2. A crise dos anos 1970 e a contra-revolução conservadora
Findada a Segunda Guerra Mundial, a economia capitalista passa por um grande
ciclo expansivo fundado sobre um arranjo histórico peculiar que impediu, por certo
período, a manifestação de determinadas contradições e tendências características desse
modo de produção. Apenas para recordar, essas contradições, que tornam as crises
inerentes à dinâmica de funcionamento do capitalismo, podem ser rapidamente
apreendidas a partir da já mencionada lei geral da acumulação capitalista. Vimos ali
que, ao mesmo tempo em que produz riqueza em escala crescente, a própria dinâmica
capitalista cria obstáculos à realização dessa riqueza, na medida em que priva parcela
significativa da população da capacidade de consumo. No período tomado aqui como
objeto de estudo, no entanto, a capacidade de realização dos valores produzidos foi
garantida pela transferência de parte do excedente para a classe trabalhadora (na forma
de salários diretos e indiretos), sem que isso comprometesse a lucratividade e as
condições de valorização do valor. Nos termos de Coggiola:
Nos primeiros 20 anos de pós-guerra, apesar de uma forte expansão da
produção, a reconstituição contínua do exército de reserva industrial permitiu
a manutenção de uma taxa de mais-valia bastante elevada. Os salários reais
aumentaram com mais lentidão que a produtividade física. Os lucros seguiam
sendo elevados apesar do aumento da composição orgânica do capital. Tudo
parecia caminhar no melhor dos mundos. (Coggiola, 2002: 385)
Como dito anteriormente, não era difícil encontrar os que, durante os “anos
gloriosos”, chegaram a pensar que aquele estado de coisas seria uma tendência
estrutural do capitalismo, bastando, para tanto, que fosse garantida a aplicação das
políticas “corretas”. Economistas de orientação keynesiana e tomadores de decisão em
geral vangloriavam-se por finalmente haver encontrado a forma adequada de
gerenciamento da sociedade do capital. Mas, não tardou muito, a história encarregou-se
de demonstrar o equívoco dessa interpretação. A partir da década de 1970, a economia
mundial entra inegavelmente em uma longa fase de recessão e, na tentativa de oferecer
respostas à crise, observa-se uma série de reorientações importantes, tanto no plano
político-ideológico quanto na estrutura produtiva. Assim como no caso da “Era de
Ouro”, acredita-se aqui que essas reorientações influenciaram a forma de manifestação
das principais tendências da dinâmica capitalista e não podem ser entendidas sem que se
faça uma referência aos motivos que conduziram a economia a esse longo período de
recessão.
49
Em retrospectiva, é possível afirmar que os primeiros sinais de crise já começam
a manifestar-se em meados da década de 1960, mas, “até a década de 1980 não estava
claro como as fundações da Era de Ouro haviam desmoronado irrecuperavelmente”.
(Hobsbawm, 1995: 393). Durante certo período, não havia sinais claros de catástrofe,
pois “o crescimento no mundo capitalista desenvolvido continuou, embora num ritmo
visivelmente mais lento do que durante a Era de Ouro”. (Ibid: 395). Como nos dados
apresentados por Brenner (2003: 93): a média de crescimento do produto interno bruto
(PIB) no “grupo dos sete” passou de 5,1%, no intervalo entre 1960-1969, para 3,6% em
1969-1979, 3,0% em 1979-1990 e 2,5% em 1990-1995.
Parecia, portanto, apenas uma onda de leves recessões temporárias, nada
comparáveis à Grande Depressão dos anos 1930, decorrentes, em grande medida, da
inusitada conjunção de fatores exógenos e inesperados. Ou seja, para os mais otimistas,
a economia havia saído dos trilhos devido ao “incomum acúmulo de perturbações
infelizes, sem probabilidade de se repetir na mesma escala, cujo impacto foi agravado
por alguns erros inevitáveis”. (McCracken, 1977: 14) E a mais mencionada das
“perturbações infelizes”, que normalmente ocupa papel de destaque nas explicações
sobre a crise, foi, sem dúvidas, a elevação no preço do barril de petróleo, que passou de
aproximadamente US$ 3,5 para US$ 11,5 em 1973-1974.
É claro que não duvidamos aqui do importante papel desempenhado pelo
aumento no preço do petróleo no aprofundamento da crise (e, para compreender este
ponto, basta lembrar que durante a “Era de Ouro” houve uma explosão no uso do
petróleo e derivados e que este representa ainda hoje um dos principais componentes da
matriz energética de vários países). Mais do que o aumento nos preços de um produto
específico, esse período também foi marcado por inflação generalizada que, quando
combinada com o baixo crescimento do produto, produziu um fenômeno que se tornou
quase uma marca registrada dessa crise: a estagflação.36
No entanto, diferentemente das explicações que privilegiam os choques
exógenos, entendemos que a crise é resultado do desenvolvimento das próprias tensões
36
Como mostram os dados sistematizados por Carcanholo (2010: 3): “A inflação mundial média, medida
pelos preços ao consumidor, é de 10% ao ano no período 1973-1979 e 8,1% no período 1979-1984, sendo
que em 1950-1973 havia sido de apenas 4%”. Se observarmos atentamente as médias anuais de
crescimento dos preços e do produto nos EUA e Reino Unido, por exemplo, vemos ainda que os períodos
de inflação mais acentuada coincidiram com os períodos de queda mais acentuada no produto: 1974-1975
e 1980-1981. (Banco Mundial, 2010) Analisando também a relação entre inflação e desemprego,
percebemos que, para o período 1961-1987, tanto nos EUA quanto nos países da Europa, os anos de
aumentos mais significativos da inflação foram precisamente os anos de aumento mais significativo do
desemprego. (Harvey, 2005: 141)
50
internas ao modo de produção capitalista, do desenvolvimento de suas próprias
contradições; “não resulta da negação das tendências do período de expansão, mas do
seu desenvolvimento exacerbado”. (Coggiola, 2002: 385) Como indicado
anteriormente, essas contradições acabam gerando uma produção excessiva de capital
frente às suas possibilidades de valorização, e é por esse motivo que as “duas formas
clássicas de manifestação desse fenômeno no capitalismo” são “reduções das taxas de
lucro e superacumulação/superprodução de capital”. (Carcanholo, 2010: 2)
Vale notar que não são poucas as teorias, dentro e fora da tradição marxista, que
enxergam a queda na lucratividade e a superprodução como manifestações mais gerais
da incapacidade do capitalismo em manter o padrão de acumulação responsável pelo
crescimento do período anterior.37
Por vezes, no entanto, parte dessas teorias acaba, em
suas explicações sobre a dinâmica capitalista, reduzindo a complexidade do problema
ao movimento da taxa de lucro, especialmente em momentos de crise. Uma análise mais
detalhada do papel efetivo da taxa de lucro, bem como dos diversos outros fatores que
podem influenciar as condições de acumulação, será realizada adiante, em Apêndice.
Por ora, interessa-nos particularmente fazer dois registros. Em primeiro lugar, a despeito
das diferenças pontuais, concorda-se no geral que os primeiros sinais da crise começam
a manifestar-se antes mesmo de 1973 (o que nos permite com alguma facilidade
descaracterizar as explicações que tomam o choque do petróleo como ponto de partida).
Em segundo lugar, ainda que haja divergências sobre a profundidade das
reorientações experimentadas após a crise e a dimensão de suas consequências, não há
dúvidas de que as reorientações existiram e geraram impactos sobre a dinâmica
capitalista. Na medida em que a crise aparecia fundamentalmente como uma crise do
“compromisso fordista-keynesiano”, testemunha-se o declínio do keynesianismo e
ascensão do neoliberalismo e a substituição dos métodos de trabalho fordistas por
métodos mais flexíveis. Como afirma Carcanholo (2008a: 252), “reestruturação
produtiva e neoliberalismo são duas interfaces de uma mesma resposta do capital à sua
própria crise nos anos 1970” e, em linhas gerais, essas duas reorientações atuaram da
seguinte maneira:
[...] enquanto o processo de reestruturação produtiva se encarregou da
rotação do capital, o neoliberalismo, como aspecto político, ideológico e
37
No caso específico da crise dos anos 1970, destacam-se, por exemplo, aquelas interpretações veiculadas
pela Escola da Regulação (Glyn et alli, 1990), por Brenner (1999, 2003), Arrighi (1996), Harvey (2005,
2010), Antunes (2003), entre outros. Um apanhado crítico de algumas dessas teorias sobre o mundo
contemporâneo pode ser visto em Postone (2008).
51
econômico, teve o papel de garantir as condições de lucratividade interna
(desregulamentação e flexibilização dos mercados – principalmente o de
trabalho) e externa (pressão por desregulamentação e abertura dos mercados
comerciais e financeiros). (Ibid)
No que tange às mudanças no plano político-ideológico, é preciso deixar claro
de antemão que o neoliberalismo surge, ainda no imediato pós-guerra, como reação
teórica e política contra o Estado intervencionista (seja em sua versão social-democrata
ou “comunista”).38
Mas como as aproximadamente três décadas da “Era de Ouro” não
ofereceram condições favoráveis à disseminação desses ideais (afinal de contas, o
capitalismo passava por uma fase de auge sem precedentes, tornando muito pouco
críveis as advertências neoliberais), “esse movimento permaneceu à margem tanto da
política, quanto da influência acadêmica até os conturbados anos da década de 1970”.
(Harvey, 2008: 31)
De acordo com o argumento neoliberal, as raízes da crise estavam
evidentemente “[...] localizadas no poder excessivo e nefasto dos sindicatos e, de
maneira geral, no movimento operário, que havia corroído as bases da acumulação
capitalista com suas pressões reivindicativas sobre os salários e com sua pressão
parasitária para que o Estado aumentasse cada vez mais os gastos sociais”. (Anderson,
1995: 10) Para recompor as condições de acumulação, seria necessário, portanto,
reverter este quadro, principalmente através da implementação de reformas “pró-
mercado”. Sobretudo era necessário criar um ambiente favorável aos investimentos e à
lucratividade do setor privado através da estabilização da economia, do saneamento das
contas públicas (via corte de impostos, corte de gastos, privatizações etc.) e das já
mencionadas flexibilização do mercado de trabalho, abertura comercial e a
desregulamentação e liberalização do mercado financeiro.
Diante da crise, portanto, os neoliberais viram não apenas o que julgavam ser a
comprovação de suas profecias, mas também encontraram terreno fértil para
disseminação de suas ideias e práticas. Como afirma explicitamente Milton Friedman,
definindo, ainda em 1962, as linhas gerais da agenda neoconservadora no seu
consagrado Capitalismo e Liberdade:
Somente uma crise – atual ou previsível – provoca uma real mudança.
Quando ocorre tal crise, as decisões tomadas dependem das ideias existentes
38
Vale notar que este movimento foi formado, inicialmente, por um grupo seleto de economistas,
historiadores e filósofos, defensores fervorosos do liberalismo, que se agruparam em torno de Friedrich
von Hayek para criar a Sociedade Mont Pèlerin. O nome do grupo é uma referência ao local na Suíça
onde ocorreu a primeira reunião (em 1947) e entre os mais notáveis membros destacam-se Ludwig von
Mises, Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins, Michael Polanyi, entre outros.
52
no momento. Esta, creio eu, é nossa função fundamental: desenvolver
alternativas para os programas existentes, conservá-las vivas e disponíveis,
até que o politicamente impossível se torne politicamente inevitável.
(Friedman, 1988: 7)
Segundo os registros de Naomi Klein (2008), assim poderia se resumir quase
toda a história de implementação do receituário neoliberal nas mais distintas e distantes
regiões do globo ao longo das últimas décadas. Como comprovam inúmeras
experiências posteriores à crise dos 1970, a perspectiva neoliberal encara os momentos
de crise (inclusive as grandes catástrofes) como oportunidades para atacar a esfera
pública e impor as reformas pró-mercado. Assim, argumenta a autora, enquanto
“algumas pessoas costumam estocar alimentos enlatados e água para enfrentar grandes
desastres, os seguidores de Friedman estocam ideias em defesa do livre mercado”. (Ibid:
16) Perante a instalação de uma crise, “era essencial agir rapidamente, impondo
mudanças súbitas e irreversíveis, antes que a sociedade abalada pela crise pudesse voltar
à „tirania do status quo‟”. (Ibid). É precisamente essa tática que Klein denomina
doutrina do choque.
Ainda que os países latino-americanos tenham oferecido, durante os anos 1970,
os primeiros “laboratórios” para a aplicação dessa doutrina,39
a efetiva consagração do
programa neoliberal demoraria aproximadamente uma década e não pode ser
compreendida sem que se faça referência a ao menos três eventos significativos. O
primeiro foi a eleição quase simultânea de dois governos declaradamente empenhados
em pôr em prática o programa neoliberal, em duas grandes potências mundiais: Reino
Unido e Estados Unidos. De fato, as vitórias de Margareth Thatcher em 1979 e de
Ronald Reagan no ano seguinte cumpriram um papel fundamental na penetração do
neoliberalismo na América do Norte e em quase toda a Europa ocidental. Como afirma
Anderson (1995: 12), “os anos 1980 viram o triunfo mais ou menos incontrastado da
ideologia neoliberal nessa região do capitalismo avançado”.
O segundo evento digno de nota, particularmente importante para compreender a
consolidação do neoliberalismo nas regiões “menos afortunadas”, foi a construção, no
final dos anos 1980, daquilo que ficou conhecido como Consenso de Washington. Após
39
Dentre as primeiras experiências de implementação do receituário neoliberal na América Latina,
destacam-se particularmente os casos chileno e boliviano. O primeiro é bastante emblemático não apenas
pelo pioneirismo, mas também pelo fato de comprovar que “a democracia em si mesma – como explicava
incansavelmente Hayek – jamais havia sido um valor central do neoliberalismo”. (Anderson, 1995: 19-
20) O segundo, por sua vez, nos mostra que “há um equivalente funcional ao trauma da ditadura militar
como mecanismo para induzir democrática e não coercitivamente um povo a aceitar políticas neoliberais
das mais drásticas. Este equivalente é a hiperinflação”. (Ibid: 21) Para mais sobre estas experiências
conferir Klein (2008).
53
o fracasso das experiências neoliberais nos países da América Latina (que ainda não
haviam conseguido conter o processo inflacionário e estavam mergulhados em
gigantescas dívidas externas), membros dos organismos multilaterais, funcionários do
governo americano e economistas desses países reuniram-se para discutir e redefinir os
rumos de sua estratégia. Como resultado dessa conferência, o economista John
Williamson (1990) apresenta, de maneira bastante didática, uma lista com dez
instrumentos de política econômica considerados indispensáveis à saúde daquelas
economias e que, como disse o autor alguns anos depois, constituem “o núcleo comum
de sabedoria aceito por todos os economistas sérios”. (Williamson, 1994: 18)
A partir de então, os organismos multilaterais (especialmente FMI e Banco
Mundial) são explicitamente transformados em “centros de propagação de
implementação do „fundamentalismo do livre mercado‟ e da ortodoxia neoliberal”,
(Harvey, 2008: 38) oficialmente colonizadas pela Escola de Chicago. Ou seja, aquelas
instituições que haviam sido criadas como parte do acordo de Bretton Woods, baseadas
na convicção de que a regulação da economia deveria ir além do plano nacional,
condicionavam agora a concessão de auxílio financeiro à aplicação das reformas pró-
mercado, ampliando significativamente o poder de expansão do receituário neoliberal,
não apenas na América Latina, mas também sobre o continente africano.40
Como
sintetiza Klein:
Friedman pode ter sido contrário às duas instituições, em termos filosóficos,
mas na prática, não havia organizações mais bem posicionadas para
implementar sua teoria das crises. Quando os países mergulharam em graves
desequilíbrios nos anos 1980, não havia a quem recorrer a não ser ao Banco
Mundial e ao FMI. Ao chegarem lá, esses países deram de cara com o muro
de ortodoxia dos Garotos de Chicago, que tinham sido treinados para encarar
aquelas catástrofes econômicas não como problemas a serem resolvidos, mas
como oportunidades preciosas a serem aproveitadas para expandir as
fronteiras do livre mercado. Agora, o oportunismo das crises estava
embasando a lógica das instituições financeiras mais poderosas do mundo.
Isso representava uma traição fundamental de seus princípios fundadores.
(Klein, 2008: 196)
Por fim, mas não menos importante, destaca-se a sequência de eventos históricos
que se inicia com a queda do Muro de Berlim em 1989 e se encerra com a dissolução da
União Soviética em 1991, marcando o fim do socialismo real no Leste europeu. Esse
episódio é particularmente importante, em primeiro lugar, pois abriu um novo e
40
“O princípio era simples: os países que estavam em crise precisavam desesperadamente de ajuda
emergencial para estabilizar suas moedas. Quando a privatização e as políticas de livre-comércio são
empacotadas junto com o socorro financeiro, os países têm pouca escolha além de aceitar o pacote
completo”. (Klein, 2008: 198)
54
promissor campo para a expansão da doutrina neoliberal.41
Como ressalta Anderson
(1995: 18), “os novos arquitetos das economias pós-comunistas do Leste [...] eram e são
seguidores convictos de Hayek e Friedman, com um menosprezo total pelo
keynesianismo e pelo Estado de bem-estar, pela economia mista e, em geral, por todo
modelo dominante do capitalismo ocidental do período pós-guerra”. Seguras de seus
ideais, as novas lideranças realizaram reformas ainda mais amplas do que as feitas no
ocidente, fazendo com que se chegasse à conclusão de que “não há neoliberais mais
intransigentes no mundo do que os „reformadores‟ do Leste”. (Anderson, 1995: 18)
Além disso, embora de muitas formas as crises do Leste e do Oeste corressem
paralelas e estivessem ligadas numa única crise global, pode-se dizer que o impacto
sobre a parcela capitalista e não capitalista do mundo foi significativamente diferente:
enquanto, para os primeiros, a crise representava o triunfo do neoliberalismo sobre o
keynesianismo, para os segundos, parecia confirmar o triunfo do capitalismo (em sua
versão liberal) sobre qualquer possibilidade de um projeto alternativo de sociedade.42
Não por acaso, é desse período a disseminação das teses conservadoras sobre o fim da
história, que enxergavam na derrota do socialismo as condições para a eternização do
capitalismo.43
A partir de então, pode-se dizer que, no plano político-ideológico, “[...] o
neoliberalismo alcançou êxito num grau com o qual seus fundadores provavelmente
jamais sonharam, disseminando a simples ideia de que não há alternativas para os seus
princípios, que todos, seja confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas.
Provavelmente nenhuma sabedoria convencional conseguiu um predomínio tão
41
Esse entusiasmo com as oportunidades abertas pelo fim do socialismo real pode ser vista, por exemplo,
no Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial publicado em 1996, inteiramente dedicado aos países que
estavam, durante aquele período, “fazendo a transição do planejamento central [...] para a economia de
mercado”. (Banco Mundial, 1996: iii) Além de realizar um primeiro balanço dos resultados dessa
transição, o relatório insiste no caráter inevitável e necessário das reformas, argumentando que, se os
benefícios não foram sentidos de imediato, tratava-se de uma questão de tempo: os resultados finais
seriam necessariamente positivos. Como afirmado explicitamente: “a clara lição das reformas executadas
nos últimos anos é a de que, independentemente do seu ponto de partida, uma reforma decisiva e
consistente dá bons resultados”. (Ibid: 9) 42
Um interessante contraponto a essa perspectiva é apresentado, por exemplo, por Robert Kurz (1993).
Partindo da análise do sistema mundial de produção de mercadorias em seu conjunto, sistema do qual os
países do Leste eram parte constitutiva, Kurz entende que, ao contrário de marcar a vitória do capitalismo
sobre o socialismo, a derrocada do Leste Europeu foi parte da própria crise do capitalismo em escala
global, que se iniciou no Terceiro Mundo, atingiu de maneira avassaladora os países do Leste Europeu e,
finalmente, penetrou no centro do “sistema mundial produtor de mercadorias”. Para mais sobre esse
argumento, conferir também Antunes (2006: 107pp.). 43
Essa tese foi disseminada, sobretudo, a partir do trabalho de Francis Fukuyama, cujas ideias centrais
foram apresentadas pela primeira vez, em 1989, em palestra proferida na Universidade de Chicago e
aprofundadas três anos depois no livro “O fim da história e o último homem”.
55
abrangente desde o início do século como o neoliberal hoje”. (Anderson, 1995: 18) As
consequências desse predomínio sobre a dinâmica capitalista serão analisadas mais
adiante. Por ora, vejamos como a ascensão do neoliberalismo combina-se com as
transformações na estrutura produtiva.
De acordo com a sistematização feita por Bihr (1998: 87), essa reestruturação
envolveu a incorporação de novas tecnologias, novos métodos de organização do
processo de trabalho, novos tipos de contrato de trabalho e, consequentemente, novas
formas de envolvimento e integração da força de trabalho na atividade produtiva. Em
seu conjunto, essas reestruturações deram origem a uma “nova ordem produtiva”, cujas
características básicas seriam difusão, fluidez e flexibilidade.
A primeira característica está relacionada à inversão do processo de
concentração produtiva originado pelo fordismo, que, depois de ultrapassado certo
limite, ao contrário de garantir as economias de escala previstas, passou a gerar custos
excedentes.44
Assim, assiste-se ao “enxugamento” das unidades produtivas e ao
surgimento de fábricas mais difusas, que externalizam parte das funções produtivas e/ou
administrativas, mantendo apenas uma “unidade central que coordena, planifica,
organiza a produção de toda uma rede de unidades periféricas, que podem atingir o
número de várias centenas, e até de vários milhares”.45
(Ibid: 88)
Por um lado, aproveitando a já mencionada flexibilização do mercado de
trabalho e do desmantelamento do sistema de benefícios conquistados pela classe
trabalhadora no período anterior, o esquema de “subcontratação” ou “terceirização”
possibilita a utilização de formas precarizadas de trabalho, como, por exemplo, o
trabalho em domicílio, trabalho clandestino, trabalho temporário, em tempo parcial etc.
Como destaca Harvey (2005: 145), “a subcontratação organizada abre oportunidades
para a formação de pequenos negócios e, em alguns casos, permite que sistemas mais
44
Vale notar que a “inversão do processo de concentração” aqui mencionada não significa uma inversão
da tendência à concentração de capital identificada por Marx e apresentada no capítulo anterior. Ao
contrário, os processos de difusão, fluidez e flexibilização reforçaram, em conjunto, as tendências à
concentração e centralização do capital, ainda que isso ocorra, por vezes, por meio da descentralização
das operações. Sobre o tema conferir, por exemplo, Chesnais (1996). Também é importante ressaltar que
essa “inversão” é apenas parcial, pois os processos de produção do tipo fordista continuaram a existir em
determinados setores. 45
De acordo com Antunes (2003: 50), este processo também ficou conhecido na literatura econômica
como liofilização e, em termos quantitativos, pode ser apresentado da seguinte maneira: “enquanto na
fábrica fordista aproximadamente 75% da produção era realizada no seu interior”, a nova fábrica difusa
“é responsável por somente 25% da produção, tendência que vem se intensificando ainda mais. Essa
última prioriza o que é central em sua especialidade do processo produtivo (a chamada “teoria do foco”) e
transfere a “terceiros” grande parte do que antes era produzido dentro de seu espaço produtivo”. (Ibid: 54-
55)
56
antigos de trabalho doméstico, artesanal, familiar (patriarcal) e paternalista [...] revivam
e floresçam, mas agora como peças centrais, e não mais apêndices do sistema
produtivo”.46
E esse, evidentemente, é um processo que se retroalimenta: ao mesmo
tempo em que “[...] os patrões tiraram proveito do enfraquecimento do poder sindical e
da grande quantidade de mão-de-obra excedente (desempregados e subempregados)
para impor regimes e contratos de trabalho mais flexíveis”, a “redução do emprego
regular em favor do crescente uso do trabalho em tempo parcial, temporário ou
subcontratado” diminui significativamente a capacidade de mobilização e resistência da
classe trabalhadora. (Ibid: 143)
Por outro lado, beneficiando-se do processo de abertura comercial e financeira, e
da rápida redução dos custos de transporte e comunicação, a “indústria, que
tradicionalmente dependia de restrições locais no tocante a fontes de matérias-primas e
a mercados, pôde se tornar muito mais independente”. (Ibid: 156) Com isso, algumas
das atividades “externalizadas” puderam ser transferidas para as regiões onde as
legislações são mais “frouxas” e a mão-de-obra mais barata, criando condições ainda
mais favoráveis à acumulação capitalista. De acordo com o argumento desenvolvido por
Chesnais (1996), a intensificação desse processo marcaria uma fase específica da
internacionalização do capital, chamada por ele de mundialização. Nessa fase, o
investimento direto externo teria suplantado o comércio exterior como vetor principal
do processo de internacionalização, aumentando significativamente a “importância do
intercâmbio intracorporativo (40% do comércio dos EUA e do Japão), e sobretudo do
nível dos suprimentos internacionais em produtos semi-elaborados e produtos acabados,
organizados com base em terceirização internacional”. (Ibid: 26) Oferecendo um
contraponto à perspectiva veiculada pelos ideólogos da globalização, que acreditam que
esse processo é tanto inevitável quanto bom, Chesnais argumenta ainda que essas
mudanças na forma de internacionalização são fruto das próprias políticas de abertura
comercial, liberalização e desregulamentação financeira e das transformações no modo
predominante de organização do trabalho, e geram consequências trágicas sobre a classe
trabalhadora, especialmente dos países pobres, como veremos adiante.
46
Segundo as estatísticas apresentados por Harvey (2005: 144), “na Inglaterra, os „trabalhadores
flexíveis‟ aumentaram em 16 por cento, alcançando 8,1 milhões entre 1981 e 1985, enquanto os empregos
permanentes caíram em 6 por cento, ficando em 15,6 milhões. Mais ou menos no mesmo período, cerca
de um terço dos dez milhões de novos empregos criados nos EUA estavam na categoria „temporário‟”.
57
O segundo processo, de aumento da fluidez, está ligado ao crescimento da
“gestão informatizada dos fluxos produtivos”, cujo objetivo central é “otimizar a
combinação, no espaço e no tempo, das matérias-primas, das energias, dos
equipamentos, dos homens, da informação etc., reduzindo ao mínimo os tempos mortos
no encadeamento das operações produtivas”. Isso assegura ao capital, “além de novos
ganhos de intensidade e de produtividade, economia de capital constante (tanto fixo
quanto circulante) por unidade produzida”. (Bihr, 1998: 89) Mas a introdução desse tipo
de tecnologia avançada, depende, em parte, também de mudanças significativas na
organização do trabalho, com o “abandono da organização do trabalho em postos fixos e
especializados”. Assim, em lugar da “relação operário especializado/máquina
especializada, célula da organização fordista”, predomina na fábrica fluida “a relação
equipe polivalente/sistema de máquinas automatizadas (e, portanto, também
polivalentes)”, onde cada trabalhador deve ser capaz de intervir em várias máquinas
diferentes ao mesmo tempo. (Ibid) As “responsabilidades de elaboração e controle de
qualidade da produção, anteriormente realizadas pela gerência científica”, são agora
“interiorizadas na própria ação dos trabalhadores”. (Antunes, 2003: 56)
Como ressalta Antunes (Ibid: 48), na medida em que este tipo de organização
exige um “trabalhador mais qualificado, participativo, polivalente, dotado de maior
realização no espaço de trabalho”, algumas leituras mais otimistas chegaram a encarar
esta como uma superação da própria contradição capital-trabalho. Esse envolvimento
maior do trabalhador no processo de trabalho, no entanto, “preserva, na essência, as
condições do trabalho alienado e estranhado”. (Ibid: 52) Mais do que isso, o processo de
produção fluido vem acompanhado de uma “intensificação da exploração do trabalho,
quer pelo fato de os operários trabalharem simultaneamente com várias máquinas
diversificadas, quer pelo ritmo e a velocidade da cadeia produtiva”. (Ibid: 56)
Por fim, assiste-se ao processo de flexibilização da unidade produtiva, com a
substituição das economias de escala (grande marca da produção fordista de massa)
pelas economias de escopo: produção de uma variedade crescente de bens em uma
mesma linha, a preços baixos e em pequenos lotes, ajustáveis às variações na demanda,
mais flutuante e diversificada. (Harvey, 2005: 148) Essa maior flexibilidade dependia,
em grande medida, da própria existência de difusão que, como visto anteriormente, está
associada ao “afrouxamento das condições jurídicas que regem contrato de trabalho,
implicando especialmente a possibilidade de se recorrer facilmente ao trabalho em
58
tempo parcial e ao trabalho temporário”. (Bihr, 1998: 92) Como reforça Bihr (Ibid):
“aqui, flexibilidade rima diretamente com instabilidade”. Além disso, o sucesso desse
tipo de produção dependia da organização mais flexível do trabalho, associada
diretamente ao aumento da fluidez também mencionado anteriormente. Por fim, a
utilização de métodos mais flexíveis esteve significativamente articulada às próprias
mudanças no mercado consumidor. Como destaca Harvey:
[...] a acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo, portanto,
por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos
os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso
implica. A estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu lugar
a todo fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós-
moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a
mercadificação de formas culturais. (Harvey, 2005: 148)
Em linhas gerais, muitas dessas características da “nova ordem produtiva” são
encaradas como assimilação e incorporação no ocidente de características próprias ao
modelo japonês de produção (também conhecido como toyotismo).47
Em seu conjunto,
essas mudanças permitiram, em certa medida, recompor as condições de acumulação
capitalista, agora apoiada fundamentalmente na “flexibilidade dos processos de
trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo, [...] no
surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento
de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de
inovação comercial, tecnológica e organizacional”. (Harvey, 2005: 140)
De fato, através de todos esses mecanismos, neoliberalismo e reestruturação
produtiva criaram as condições para o surgimento de uma combinação particular das
estratégias de extração de mais-valia absoluta e relativa, fosse pelo aumento da jornada
de trabalho, aumento da intensidade, aumento da produtividade (obtidos através das
mudanças tecnológicas ou organizacionais), pelo rebaixamento do valor da força de
trabalho ou pela transferência do capital para regiões onde os salários são mais baixos.
(Ibid: 174-175) Aliado a isso, o tempo de rotação do capital – uma das variáveis-chave
da lucratividade capitalista, como pode ser visto em mais detalhes no Apêndice – foi
reduzido substancialmente.
Importante também para a acumulação de capital foi o crescimento da esfera
financeira, absorvendo grande parte do excesso de capital incapaz de se valorizar
através da produção e realização de mercadorias. Por um lado, pode-se dizer que este
47
Como ressalta Antunes (2003: 57), “o processo de ocidentalização do toyotismo mescla, portanto,
elementos presentes no Japão com práticas existentes nos novos países receptores, decorrendo daí um
processo diferenciado, particularizado e mesmo singularizado de adaptação desse receituário”.
59
processo foi funcional à acumulação de capital, na medida em que possibilitou uma
aceleração das atividades produtivas, permitindo a maior acumulação global de capital,
a redução do tempo de rotação e, portanto, o aumento da taxa de lucro por período.
(Carcanholo, 2008a: 260) Por outro lado, no entanto, a expansão desenfreada de sua
lógica gerou uma série de disfuncionalidades e aumento da instabilidade, que explicam
em parte, por exemplo, o fato de a recomposição nas condições de acumulação não ter
sido acompanhada por uma recuperação no ritmo de crescimento das economias. Como
ressalta Anderson (1995: 16), “a desregulamentação financeira, que foi um elemento tão
importante do programa neoliberal, criou condições muito mais propícias para a
inversão especulativa do que produtiva”, de modo que,
[...] apesar de todas as novas condições institucionais criadas em favor do
capital – a taxa de acumulação, ou seja, da efetiva inversão em um parque de
equipamentos produtivos, não apenas não cresceu durante os anos 80, como
caiu em relação a seus níveis – já médios – dos anos 70. No conjunto dos
países de capitalismo avançado, as cifras são de um incremento anual de
5,5% nos anos 60, de 3,6% nos anos 70, e nada mais do que 2,9% nos anos
1980. Uma curva absolutamente descendente. (Anderson, 1995: 15-16)
Nesse quesito, portanto, os resultados foram particularmente desanimadores.
Como ressalta Anderson (1995: 15), “no final das contas, todas essas medidas haviam
sido concebidas como meios para alcançar um fim histórico, ou seja, a reanimação do
capitalismo avançado mundial, restaurando taxas altas de crescimento estáveis, como
existiam antes da crise dos anos 1970”. No entanto, “entre os anos 1970 e 1980 não
houve nenhuma mudança – nenhuma – na taxa de crescimento, muito baixa nos países
da OCDE [Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico]. Dos ritmos
apresentados durante o longo auge, nos anos 1950 e 1960, restam somente uma
lembrança distante”. (Ibid)
No que diz respeito aos impactos sobre a classe trabalhadora, pode-se dizer que
os resultados são efetivamente nefastos e não podem ser de modo algum desprezados.
Em primeiro lugar, destacam-se as já mencionadas transformações na relação salarial e
suas principais consequências: “[...] instabilidade de emprego e, portanto, de renda;
desregulamentação mais ou menos forçada de suas condições jurídicas de emprego e de
trabalho (em relação às normas legais ou convencionais); conquistas e direitos sociais
em regressão; com frequência, ausência de qualquer benefício convencional; a maior
parte do tempo, ausência de qualquer proteção e expressão sindicais”. (Bihr, 1998: 86)
Além disso, como ressalta Hobsbawm (1995: 403), “as décadas de crise começaram a
dispensar mão-de-obra em ritmo espetacular, mesmo nas indústrias visivelmente em
60
expansão”, de forma que o aumento do desemprego, a princípio visto como uma
questão conjuntural, “anomalia passageira”, rapidamente se mostrou situação estrutural.
De acordo com os dados disponíveis em Brenner (2003: 93), a taxa média de
desemprego no “grupo dos sete” passou de 3,1% no período 1960-1973, para 4,9% em
1973-1979 e 6,8% em 1979-1990. Tomando a média dos países da Europa, a situação se
mostra ainda mais crítica, com a taxa de desemprego subindo de 2,3% em 1960-69, para
4,6% em 1969-1979 e 9,1% em 1979-1990.
Em uma sociedade capitalista, fundada no trabalho assalariado, essas mudanças
no “mundo do trabalho” vêm acompanhadas de uma inegável e persistente deterioração
nas condições de vida da população, que se expressa diretamente em aumento da
desigualdade de renda, pobreza, “exclusão social”, deterioração do meio ambiente etc.,
fenômenos esses reconhecidos, em alguma medida, dentro e fora do âmbito acadêmico,
por diversos comentadores, dos mais aos menos críticos.48
Conforme entendemos aqui,
esses fenômenos são um reflexo das próprias contradições inerentes ao
desenvolvimento capitalista, apresentadas no capítulo anterior e sintetizadas no
enunciado da lei geral. Ou seja, enquanto durante a “Era de Ouro” a manifestação
empírica de tendências gerais foi obstada por determinações particulares (discutidas ao
longo da primeira seção), mudanças nas próprias condições particulares no período
posterior aos anos 1970 abriram o caminho para que essas mesmas tendências gerais
predominassem na produção de eventos.
Seção 3.3. O desenvolvimento capitalista e suas particularidades: considerações finais
A partir do exposto acima, podemos extrair algumas conclusões importantes
para o argumento do presente trabalho. Em primeiro lugar, observamos que, se as
tendências gerais continuam em ação (ainda que atravessadas por arranjos sociais
diversos), recompor a dinâmica do desenvolvimento capitalista na transição entre
períodos distintos significa recompor as mudanças, mas também as permanências,
48
No caso específico do pensamento conservador, a preocupação crescente com as chamadas “mazelas
sociais” se evidencia, por exemplo, na proliferação de estudos e relatórios publicados pelos organismos
multilaterais, preocupados em encontrar a melhor estratégia para “atacar a pobreza” e minimizar os
crescentes danos causados ao meio ambiente, respeitando o status quo. Como ressalta Medeiros (2007:
179), “não seria exagero, de fato, retratar a circulação de estudos econômicos do „bem-estar‟ social entre
instituições e autores assumidamente conservadores no último quarto de século como uma febre
compulsiva, uma verdadeira fixação com o altruísmo”.
61
demonstrando como o capital modifica-se num determinado momento para preservar
sua lógica geral. Nos termos sugeridos por Postone (2008: 94), trata-se de compreender
que a própria dinâmica capitalista produz variadas configurações históricas, que o
capitalismo “não pode ser identificado completamente com nenhuma das suas
configurações” e que a “emergência de uma nova configuração [...] envolve um
processo de mudança (nova configuração) e de continuidade (capitalismo)”. Mais do
que isso, a “dialética complexa, de mudança e reprodução, pela qual os elementos
centrais do capitalismo produzem mudança e, ao mesmo tempo, reproduzem-se” baseia-
se “na distinção entre superfície e estrutura profunda no capitalismo e torna acessível a
possibilidade de um futuro para além do capital, mesmo ao reproduzir o núcleo básico
do presente e, por meio disso, obstruir a realização do futuro”. (Ibid)
Em segundo lugar, a análise aqui sugerida nos permite afirmar, mais uma vez,
que estudar o desenvolvimento capitalista, desde uma perspectiva marxista, significa (i)
ter consciência da processualidade que caracteriza esse sistema, (ii) apreender as leis
gerais de movimento da sociedade e (iii) conhecer as condições concretas de
manifestação de tais leis. Nesse sentido, independentemente das consequências dessas
leis gerais e de suas condições concretas (sejam elas detestáveis ou adoráveis), o que
importa para a análise do desenvolvimento em si é saber se, na passagem de um período
a outro, o funcionamento do capitalismo tornou-se mais ou menos adequado à lógica
interna do capital.
Dentro dessa perspectiva, portanto, podemos dizer que o capital é tanto mais
desenvolvido, quanto mais ampla a sua atuação. Ou seja, por mais contra-intuitivo que
pareça, o fato de o capital ampliar seu alcance territorial (tendência à formação do
mercado mundial), penetrar nas mais distintas esferas da vida social (como, por
exemplo, as artes, esportes, relações familiares, de afeto etc.) e atuar em um número
maior de setores (como, por exemplo, aqueles originalmente conduzidos pelo Estado,
nos quais a lucratividade é relativamente diminuta e o retorno é mais demorado),
imprimindo, em todos esses casos, a sua lógica de funcionamento, significa que o
capital se desenvolveu. (Marx, 2011: 438pp.)
Por fim, temos clareza de que essa não é a forma como as teorias do
desenvolvimento analisam o capitalismo. Em lugar do desenvolvimento em si da
sociedade, tais teorias em geral se atêm a determinadas expressões empíricas, utilizadas
como critério para julgar o desenvolvimento capitalista como bom ou ruim. No primeiro
62
caso, de julgamento positivo, as teorias aparecem não raramente como apologia do
capital. No segundo, de julgamento negativo, as teorias soam como uma denúncia sobre
o caráter desumano do capital (esquecendo, por vezes, que o capitalismo não tem
sentido humano!). Como as teorias não são inócuas, mas, ao contrário, são formas
refinadas de conceber a vida humana, formas que movem a prática social, que têm
efeitos práticos, a questão que se coloca é: como e por que tais teorias adquiriram ou
perderam legitimidade? É precisamente essa a pergunta que pretendemos responder ao
longo da próxima parte que compõe o presente trabalho.
63
Apêndice III. Notas sobre a complexidade da dinâmica capitalista
Neste terceiro e último apêndice da Parte I, esperamos acrescentar alguns
elementos à análise da dinâmica do desenvolvimento capitalista, especialmente
relacionados à sua complexidade. Como buscamos demonstrar ao longo do capítulo, o
desenvolvimento capitalista é permeado por tendências particulares que influenciam a
forma concreta de manifestação das leis gerais de movimento da sociedade. Assim,
além das determinações gerais, em si complexas e por vezes contraditórias, os eventos
causados por essas determinações dependem ainda de tendências particulares, fatores
institucionais, história de cada local e cada época, tradições, costumes etc. De modo que
tomar o desenvolvimento capitalista como objeto de estudo significa, em última
instância, reconhecer a complexidade de sua dinâmica.
Essa complexidade, no entanto, nem sempre é reconhecida e corretamente
trabalhada, não sendo difícil encontrar aqueles que, independentemente de orientação
político-ideológica, analisam o desenvolvimento capitalista de maneira unidimensional.
Ao longo da próxima parte que compõe o presente trabalho, teremos a oportunidade de
verificar como esse tipo de equívoco está presente em grande parte das teorias do
desenvolvimento. Por ora, interessa-nos particularmente registrar o equívoco cometido
por aquelas teorias que tentam explicar a dinâmica capitalista, seja em seus momentos
de auge ou declínio, exclusivamente a partir da taxa de lucro.
Não pretendemos, com isso, negar a relevância da categoria. Como se sabe, a
taxa de lucro é um importante indicador de rentabilidade, revelando o grau de
valorização do capital em relação ao total antecipado, e de fato ocupa um lugar de
destaque na determinação da dinâmica capitalista, centrada fundamentalmente na
necessidade incessante de valorização do valor. No entanto, qualquer tentativa de
explicar a capacidade de expansão do capital a partir de uma relação direta e exclusiva
com a taxa de lucro é necessariamente reducionista. A expansão do valor depende de
inúmeros fatores, dos quais citaremos apenas alguns mais evidentes.
Em primeiro lugar, é preciso lembrar, como advertido por Marx ainda no Livro I
de O Capital (2002: 657), que o lucro é apenas uma fração da mais-valia e que a
fragmentação da mais-valia em lucro, juros, ganhos comerciais, aluguéis, impostos etc.
influencia as condições de desenvolvimento do capital. Essa relação entre lucro e mais-
valia vai depender, entre outros fatores, da relação entre os diferentes capitalistas que
64
exercem diferentes funções no conjunto da produção social (representantes do capital
produtivo, capital mercantil, capital usurário, proprietários de terra etc.) e da relação
desses capitalistas com o Estado, como explorado mais sistematicamente pelo autor ao
longo do Livro III.
Em segundo lugar, também devemos recordar que, além da taxa de lucro,
importa para a dinâmica capitalista a sua massa. Dessa forma, assim como um
decréscimo na taxa de mais-valia pode ser compensado pelo aumento na massa de mais-
valia (possibilitado por uma expansão extensiva do capital que supere a lógica de
acumulação intensiva), também um decréscimo na taxa de lucro pode ser compensado
por um acréscimo na massa de lucro, bastando, para tanto, que o decréscimo relativo da
parcela variável do capital total venha acompanhado de um acréscimo em termos
absolutos. (Marx, 1974: 219pp.)
Em terceiro lugar, além das massas de mais-valia e lucro produzidas por período
de rotação, importa sua massa anual, isto é, o quanto um capital é capaz de gerar de
lucro nos sucessivos períodos de rotação em que é empregado. Esse tempo de rotação
do capital, por sua vez depende tanto do tempo de produção (determinado por fatores
organizacionais e tecnológicos) quanto do tempo de circulação (determinado por
condições de oferta e demanda, pelo tamanho dos mercados, grau de desenvolvimento
dos meios de comunicação, de transporte etc.). Assim, quanto maior a velocidade de
rotação do capital, ou seja, quanto menor o tempo entre o adiantamento do capital em
forma dinheiro e seu retorno à figura primitiva, mais favoráveis as condições de
acumulação. (Ibid, 2000: 337pp.)
Por fim, além dos fatores “econômicos”, ligados fundamentalmente à produção e
circulação, há ainda a influência de fatores “extraeconômicos” sobre a acumulação de
capital, pois, como as determinações “econômicas” não existem fora do contexto social
mais amplo, as tendências que lhe são próprias em meio a esse contexto
necessariamente são atravessadas por determinações particulares e mesmo gerais não
ligadas ao campo econômico propriamente dito. Assim, além da influência de
determinações próprias à esfera econômica sobre as tendências e suas formas de
manifestação, é preciso considerar que, apesar de Marx ter centrado as atenções nos
processos de produção e circulação (abstração necessária para estudar uma sociedade
cuja dinâmica emana da economia), o fato de a economia, no capitalismo, adquirir uma
65
hipertrofia não significa que não possa ser decisivamente atravessada por determinações
“extraeconômicas”.
Partindo ainda da análise da questão tal como apresentada por Marx, é preciso
deixar claro que, assim como a taxa de lucro não figura como a única categoria na
explicação da dinâmica capitalista, a sua queda não deve, tampouco, ser imediatamente
identificada com a necessidade de crises. Como Marx adverte diversas vezes ao longo
do capítulo em que trata da tendência à queda na taxa de lucro, esta queda decorre do
decréscimo relativo (e não absoluto!) da parte variável do capital em relação à parte
constante. Isso significa que “o número de trabalhadores que o capital emprega, ou seja,
a massa absoluta de trabalho que mobiliza e por conseguinte a massa absoluta de
trabalho excedente que suga, ou de mais-valia ou de lucro que produz podem portanto
crescer, e crescer de maneira contínua, apesar da queda progressiva da taxa de lucro”.
Não só podem crescer, como tendem a: “no regime de produção capitalista, isto é mais
que uma possibilidade, é uma necessidade, se abstraímos das flutuações temporárias”.
(Marx, 1974: 219)
Assim, tomando como exemplo o período posterior à crise dos anos 1970 e o
comportamento decrescente da taxa de lucro nas últimas três ou quatro décadas (em
contraponto às décadas posteriores à crise de 1929, marcadas pelo crescimento
significativo da taxa média de lucro), poderíamos ser levados a concluir (não sem
propósito) que o capitalismo vem passando por uma longa fase de estagnação. No
entanto, considerando tudo o que foi dito até o momento, também temos motivos para
acreditar que, apesar da possível compressão das taxas de lucro, as particularidade desse
período (extensamente analisadas ao longo do capítulo terceiro) possibilitaram a
redução significativa dos tempos de produção e circulação, aumentando a velocidade de
rotação do capital e, portanto, a valorização anual por unidade de capital aplicado.
Também não podemos ignorar os processos de concentração e centralização do capital e
o papel desempenhado pelo crédito durante esse período.
Enfim, não pretendemos transformar esta em uma lista interminável de
particularidades ou realizar uma análise minuciosa de todas elas. Considerando os
propósitos do presente trabalho, esperamos apenas ter chamado a atenção para a
complexidade da dinâmica capitalista, mostrando, a partir do estudo desses casos
concretos, como, além da taxa de lucro, são inúmeros os fatores que podem influenciar
o desenvolvimento capitalista e que as condições específicas desse desenvolvimento vão
66
depender de determinações particulares, que favorecem algumas causas em detrimento
de outras.
67
Parte II. Teorias do desenvolvimento: por uma crítica ontológica
Uma vez apresentado o sentido geral da teoria ontológica do desenvolvimento
aqui defendida, dedicamos a Parte II do presente trabalho à inspeção crítica daquelas
formulações que, no âmbito da ciência econômica, buscaram dar um tratamento mais
refinado à temática: as chamadas teorias do desenvolvimento. Ainda que, passando em
revista a evolução do pensamento econômico, seja possível encontrar incontáveis
referências à questão do desenvolvimento, tomamos como ponto de partida as
formulações produzidas nos anos 1940/1950, momento no qual se registra o nascimento
da Economia do Desenvolvimento como uma disciplina relativamente autônoma e
especificamente dedicada à temática.
Como retratado anteriormente,49
esse período, que coincide com o fim da
Segunda Guerra Mundial, foi marcado por uma série de reorientações (especialmente no
plano político-ideológico) e transformações significativas na configuração mundial (em
virtude das inúmeras descolonizações e revoluções), que oferecem importante auxílio à
compreensão das principais características daquele conjunto teórico. Um aspecto
comumente ressaltado, e recorrentemente utilizado como critério para reunião dessas
teorias em um mesmo grupo, diz respeito ao fato de compartilharem todas uma mesma
preocupação: diante do reconhecimento de que os diferentes países sustentam trajetórias
históricas de crescimento distintas, as teorias do desenvolvimento são identificadas
como aquelas que se ocupam de explicar a existência dessas trajetórias particulares e
sugerir possíveis soluções para os “menos favorecidos” (ou subdesenvolvidos).
O aspecto geralmente utilizado para distinguir essas teorias, portanto, é a
preocupação com a ausência de desenvolvimento, ou seja, com o subdesenvolvimento –
termo que, como indica a própria etimologia da palavra, é normalmente utilizado para
designar uma condição de baixo grau (ou mesmo ausência) de desenvolvimento. Nesse
período, passaram a ser chamadas de subdesenvolvidas aquelas regiões materialmente
menos favorecidas (também conhecidas como Terceiro Mundo), que não foram capazes
de acompanhar determinado padrão de desenvolvimento sócio-econômico, atribuído aos
países capitalistas pioneiros no processo de industrialização (também conhecidos como
Primeiro Mundo).
49
Ver capítulo 3, seção 1.
68
Apesar da diversidade de teorias que marca esse período de grande efervescência
do debate sobre desenvolvimento, algumas características gerais ainda podem ser
identificadas. Em primeiro lugar, ainda que a origem do subdesenvolvimento fosse
explicada de maneiras distintas, o desenvolvimento foi entendido predominantemente
como sinônimo de crescimento do produto (per capita), associado à crença de que o
crescimento do produto é também capaz de gerar melhores condições de vida para a
população, em geral. Em segundo lugar, ainda que não tenha havido de fato um
consenso em torno da estratégia para a superação do subdesenvolvimento (se
capitaneada pelo Estado ou deixada ao sabor das forças do mercado), a ênfase recaía,
também predominante, na necessidade de industrialização das economias ainda agrárias
ou mercantis.
Naquele contexto, portanto, as teorias do desenvolvimento surgem como
formulação científica de compreensão e administração da dinâmica social capitalista,
consolidando o argumento segundo o qual, somente através deste expediente, seria
possível promover uma convergência (ou, no mínimo, uma aproximação) entre as
trajetórias de crescimento das diferentes nações (ou conjunto de nações). Como se
pretende argumentar, tratava-se de transformar o progresso presumidamente automático
que caracteriza esta sociedade num projeto presumidamente dirigido (pelo Estado).
Pode-se dizer que esta foi a visão dominante até meados dos anos 1970, quando,
acompanhando a crise econômica que se espalhou pelo mundo durante esta década e a
seguinte, a pretensão de dirigir o capitalismo entrou em colapso. Além disso, assiste-se
durante esse período à proliferação de denúncias sobre a devastação do meio ambiente
resultante do processo de industrialização e crescentes exigências de que os benefícios
do aumento da riqueza sejam apropriados e distribuídos de modo mais equitativo. Nesse
contexto, portanto, as teorias do desenvolvimento vestem uma nova roupagem,
geralmente associada à incorporação de novos critérios à definição do desenvolvimento
e redefinições estratégicas. Que se trata de novas teorias, no sentido de teorias diversas,
não resta qualquer dúvida. Mas é possível e necessário indagar se essas teorias, a
despeito de sua diversidade interna e com relação ao conjunto teórico que lhe antecede,
constituem, de fato, uma novidade. Ou seja, se são novas teorias, no sentido de delinear
de fato uma nova visão de desenvolvimento (i.e., uma imagem efetivamente diferente
da sociedade em seu estágio “desenvolvido”).
69
Na tentativa de responder a essas questões, a Parte II encontra-se dividida em
quatro capítulos. Considerando a estreita relação entre as temáticas do desenvolvimento
e do crescimento (especialmente no período que antecede a crise dos anos 1970), inicia-
se, no quarto capítulo, com um panorama geral dos modelos de crescimento econômico
no período pré-1970. Para tanto, utiliza-se como ilustração as formulações pioneiras de
Harrod e Domar, seguidas do contraponto sugerido por Solow. O exame das teorias
“clássicas” do desenvolvimento, produzidas no mesmo período, encontra-se no capítulo
cinco, que resgata algumas formulações (especialmente aquelas produzidas por
Rosenstein-Rodan, Nurkse, Myrdal, Hirschman e Rostow) que tratam das regiões
subdesenvolvidas, em geral; o capítulo seis resgata, ainda, formulações que tratam
especificamente do caso latino-americano (especialmente gestadas no âmbito da
CEPAL). O sétimo capítulo, por fim, busca apresentar as principais reorientações
observadas no debate sobre desenvolvimento no período posterior à década de 1970.
Em linhas gerais, espera-se ao longo desses capítulos reunir elementos comuns
que permitam comprovar que tais teorias geralmente abordam a questão do
desenvolvimento de forma maniqueísta e positiva: maniqueísta na medida em que o
desenvolvimento é lido como algo necessariamente bom e o subdesenvolvimento (ou
seja, a ausência de desenvolvimento) como algo necessariamente ruim, clivagem essa
que pressupõe a eleição ad hoc de determinados critérios (crescimento da renda per
capita, expectativa de vida, nível de escolaridade etc.); e positiva porque a temática do
desenvolvimento sempre se refere às condições imediatamente dadas e às possibilidades
que podem se pôr (também imediatamente) a partir dessas condições (a crítica das
condições e das possibilidades não é realizada).
70
Capítulo 4. Os modelos “prototípicos” de crescimento econômico:
Harrod, Domar e Solow
Quando observamos os desenvolvimentos teóricos mais significativos do
imediato pós-guerra, salta aos olhos o grande interesse dos cientistas em geral pela
temática do crescimento econômico. Isso não significa, evidentemente, que a busca
pelos determinantes do crescimento da riqueza tenha sido um tema ausente em
formulações teóricas de épocas anteriores. Se nos voltamos, por exemplo, para o
período de nascimento da ciência econômica, observamos que os primeiros economistas
clássicos estavam particularmente preocupados em compreender os principais
mecanismos de funcionamento da sociedade emergente (capitalista), que conduziam ao
nunca antes visto crescimento da riqueza e avanço das forças produtivas do trabalho.
Foram os primeiros, mas não os únicos: passando em revista a evolução da análise
econômica, encontramos inúmeras e distintas interpretações sobre os determinantes do
crescimento da riqueza (como por exemplo, aquelas oferecidas por Marshall, Keynes e
Schumpeter), algumas das quais serviram posteriormente como fundamento para as
teorias do crescimento e do desenvolvimento econômico, stricto sensu.
No entanto, ainda que tenham buscado amparo em teorizações anteriores, as
formulações sobre crescimento características do século XX estão mais intimamente
associadas, pelos motivos já apresentados, à necessidade de explicar por que os
diferentes países possuem trajetórias de crescimento distintas. Assim, ainda que não
tenham sido formuladas com o propósito de explicar as particularidades por detrás do
baixo crescimento do produto nos países pobres (ou subdesenvolvidos) – tarefa
reservada para as teorias do desenvolvimento, analisadas nos próximos capítulos –, as
teorias do crescimento também são capazes de oferecer uma resposta para a
desigualdade de renda no plano mundial.
Em segundo lugar, não podemos deixar de notar que as teorias do crescimento
produzidas durante esse período ficaram conhecidas pela formalização matemática, de
inspiração neoclássica. Assim, mesmo quando buscam inspiração em fontes diversas
(i.e. seja em Keynes ou em Ricardo), os modelos de crescimento pressupõem um modo
particular de se fazer ciência, que se tornou hegemônico na ciência econômica apenas
depois da chamada “revolução marginalista”, no final do século XIX.
71
Por fim, observamos que, seguindo o mesmo critério de cientificidade, os
modelos de crescimento pretendem ser um “corpo de conhecimento sistematizado
referente ao que é”, e não um “corpo de conhecimento sistematizado relativo ao critério
do que deveria ser e referido, portanto, ao ideal como algo distinto do atual”. (Neville
Keynes, 1999: 22) No entanto, mesmo que não tenham sido formulados com conteúdo
explicitamente normativo, os modelos de crescimento podem ser (e são, geralmente)
utilizados como base para prescrições e formulação de políticas econômicas.
Na tentativa de oferecer um panorama geral dos modelos de crescimento
econômico no período pré-1970, o presente capítulo encontra-se dividido em três
seções. Na primeira, apresentamos as linhas gerais dos modelos pioneiros de Harrod e
Domar, formulados em 1939 e 1946, respectivamente. Considerando que são ambos
modelos de inspiração keynesiana, dedicamos a segunda seção à exposição do modelo
de Solow, construído em 1956 como contraponto aos modelos anteriores e tomado aqui
como representante dos modelos de inspiração neoclássica. Por fim, encerramos o
capítulo com algumas considerações gerais sobre os modelos discutidos.
Vale destacar, desde já, que não pretendemos com isso analisar os pormenores
dos modelos em questão, discutir o modo como o grau de sofisticação foi aumentando
ao longo do tempo, que hipóteses foram “relaxadas” ou abandonadas etc. Considerando
os objetivos do presente trabalho, interessa-nos mostrar, em primeiro lugar, como esses
modelos acabam por dar inteligibilidade científica a um dos principais elementos da
dinâmica capitalista (seu caráter inerentemente expansivo). Em segundo lugar,
pretendemos explicar também como, naquele contexto histórico específico, os modelos
de crescimento terminam por responder a questões levantadas pela própria dinâmica de
acumulação de capital em nível global e oferecer, a despeito da sua pretensa
neutralidade, um instrumental útil à reprodução dessa dinâmica.
Seção 4.1. Crescimento equilibrado e instabilidade nos modelos de Harrod e Domar
Como indicado anteriormente, com a presente seção buscamos apresentar as
linhas gerais dos modelos de crescimento de Harrod e Domar, cujas características
centrais encontram-se delineadas já nos artigos de 1939 (An essay in dynamic theory) e
1946 (Capital expansion, rate of growth and employment), respectivamente,
72
considerados precursores nesse campo.50
Além do pioneirismo, os modelos de Harrod e
Domar ficaram conhecidos pela orientação teórica explicitamente keynesiana e pelo fato
de terem chegado a conclusões semelhantes, ainda que por caminhos diferentes e
relativamente independentes, como esperamos mostrar adiante.51
Começando com o modelo proposto por Harrod, observamos que seu objetivo
inicial era dar um tratamento dinâmico a alguns conceitos básicos e ideias-chave da
macroeconomia inaugurada por Keynes. Mais especificamente, as preocupações de
Harrod podem ser resumidas em três questões fundamentais: qual a taxa de crescimento
da renda capaz de manter a igualdade entre os planos de investimento e os planos de
poupança (condição de um equilíbrio estático) ao longo do tempo? Esse equilíbrio é
necessariamente um equilíbrio a pleno emprego dos fatores? Existe alguma garantia de
que essa taxa de crescimento, uma vez atingida, se sustente no longo prazo?
Para responder a essas questões, Harrod (1939: 14) toma como ponto de partida
três hipóteses básicas: (i) “o nível de renda de uma comunidade é o determinante mais
importante de sua oferta de poupança”; (ii) “a taxa de crescimento dessa renda é um
determinante importante da demanda por poupança”; e, (iii) “a demanda é igual à
oferta”. Em termos formais:
(i) S = sY
(ii) I = C∆Y
(iii) S = I
Onde S é a poupança, s a propensão marginal a poupar, Y o nível de renda, I o
investimento e C o incremento “de capital requerido para a produção de uma unidade de
produto adicional”.52
(Ibid: 16) A partir de uma manipulação simples das equações
acima apresentadas, chegamos à “equação fundamental” do modelo de Harrod (Ibid:
17), que apresenta a taxa garantida de crescimento (warranted rate of growth) como:
C
sGW
50
Para a apresentação das concepções de Harrod e Domar nos valemos, além dos textos originais, das
sistematizações elaboradas por Jones (1979) e Thirlwall (2005). 51
Em virtude das semelhanças entre os modelos, é bastante comum encontrar nos livros-texto de
Economia a referência a um único modelo “Harrod-Domar”. 52
De acordo com Jones (1979: 58), haveria ainda no modelo de Harrod uma hipótese sobre o
comportamento da função de produção (“do tipo proporções fixas”), a partir da qual o autor buscava
registrar a existência de certa rigidez tecnológica limitando as possibilidades de substituição entre os
fatores de produção (capital e trabalho). Em última instância, essa rigidez da relação capital-trabalho
levaria a uma rigidez da relação capital-produto “efetiva” (Cp), que, como veremos adiante, será um dos
pontos centrais da crítica de Solow ao modelo “Harrod-Domar”.
73
Segundo o autor (Ibid: 16), taxa garantida (GW) deve ser entendida como “[...] a
taxa de crescimento que, caso aconteça, satisfará todas as partes envolvidas, de maneira
que não produzirão nem mais nem menos do que o montante correto”. Em outras
palavras, a taxa garantida é aquela capaz de colocar os empresários “em um estado de
espírito que os levará a tomar decisões no sentido da manutenção do mesmo ritmo de
crescimento”. No entanto, não necessariamente será essa a taxa verdadeira de
crescimento (actual rate of growth), i.e. a taxa efetivamente verificada. Utilizando o
mesmo conjunto de equações anteriormente apresentadas, Harrod define a taxa
verdadeira de crescimento (GA) como:
p
AC
sG
Onde s é a propensão marginal a poupar e Cp o incremento do estoque de capital
no período dividido pelo incremento total do produto YK , ou ainda, o incremento
de capital por unidade adicional de produto efetivamente produzido.
De acordo com essa formulação, portanto, só seria possível alcançar uma
trajetória de crescimento equilibrado quando a taxa verdadeira coincidisse com a taxa
garantida de crescimento (GA = GW).53
Como sintetizado por Jones (1979: 62-63), “se o
produto na verdade cresce à taxa garantida, então o verdadeiro estoque de capital vai ser
igual ao estoque de capital desejado e uma grande gama de hipóteses sobre as respostas
comportamentais dos empresários implica que, assim sendo, eles estariam preparados
para continuar a implementar a mesma taxa de crescimento no futuro”.
No que tange à segunda questão, Harrod afirma que a trajetória de crescimento
equilibrado não necessariamente corresponde ao pleno emprego dos fatores de
produção. Segundo Harrod (1939: 30), para que isso aconteça, é preciso não só que a
taxa verdadeira iguale-se à taxa garantida, mas também que ambas igualem-se à taxa
natural de crescimento (GN), definida como “a taxa máxima de crescimento permitida
pelo crescimento populacional, acumulação de capital, progresso tecnológico e pela
alocação das preferências entre trabalho e lazer, supondo sempre a existência de algum
53
Como advertido por Harrod (1939: 16), é preciso aqui tomar cuidado com a utilização da palavra
“equilíbrio”, pois, “ainda que cada ponto da trajetória do produto descrita por Gw seja um ponto de
equilíbrio no sentido de que os produtores, permanecendo nela, estarão satisfeitos e serão induzidos a
manter a mesma taxa de crescimento em curso, o equilíbrio é, pelas razões a serem explicadas, altamente
instável”.
74
tipo de pleno emprego”. Portanto, a condição para que haja um crescimento equilibrado
com pleno emprego é:
GA = GW = GN
No entanto, ainda que a igualdade entre as taxas de crescimento verdadeira,
garantida e natural fosse possível, ela seria pouco provável. Isso porque as variáveis que
determinam as diferentes taxas de crescimento seriam reguladas por fatores distintos,
não havendo qualquer mecanismo que garantisse essa coincidência – se ela de fato se
verificasse, seria por razões meramente casuais. De acordo com Jones (1979: 65), essa
conclusão, também conhecida como primeiro problema de Harrod, pode ser entendida
como “uma versão dinâmica da alegação central keynesiana de que o equilíbrio com
desemprego é possível numa economia capitalista”.
Dando sequência ao argumento, Harrod (1939: 22) busca mostrar como, além de
pouco provável, o crescimento equilibrado a pleno emprego dos fatores é altamente
instável. Isso porque desvios da trajetória de equilíbrio (dinâmico), ao contrário de
“autocorretivos”, são “autoagravantes” (conclusão também conhecida como segundo
problema de Harrod). De acordo com o autor (Ibid), se a taxa verdadeira for menor que
a taxa garantida (GA < GW), a relação capital-produto efetiva será maior que a requerida
(Cp > C), induzindo os empresários a reduzir os investimentos, reduzindo ainda mais a
taxa de crescimento. Por outro lado, se a taxa verdadeira for maior que a taxa garantida
(GA > GW), a relação capital-produto efetiva será menor que a requerida (Cp < C),
induzindo os empresários a aumentar os investimentos, aumentando ainda mais a taxa
de crescimento. Assim, no que tange à terceira questão, ao invés da reaproximação entre
as taxas GA e GW, o que se verifica é o crescente distanciamento entre elas.
Como indicado anteriormente, Domar também chegou a conclusões similares
àquelas encontradas por Harrod, ainda que por caminhos ligeiramente diferentes.
Tomando como ponto de partida a afirmação de que determinada economia estará em
equilíbrio quando sua capacidade produtiva igualar-se à renda nacional, Domar (1946:
138) está particularmente preocupado em, aplicando os princípios da análise dinâmica,
“descobrir as condições sobre as quais esse equilíbrio pode ser mantido”, ou ainda, “a
taxa de crescimento à qual a economia deve se expandir para que se mantenha em um
estado contínuo de pleno emprego”.
Em linhas gerais, para que o nível verdadeiro da renda ou produto (Y) e o nível
máximo potencial da renda ou produto (P) permaneçam em igualdade é preciso que
75
ambos cresçam à mesma taxa (∆Y e ∆P, respectivamente), definidas pelo autor da
seguinte maneira:
IP
Is
Y
1
Onde s é a propensão marginal a poupar, I o fluxo de investimento e σ a
“produtividade social potencial média do investimento” (que, como veremos adiante,
aproxima-se em certo sentido da relação capital-produto requerida (C) de Harrod).
Combinando de maneira simples as equações acima apresentadas, temos que:
Is
I
1
Ou ainda:
sI
I
Tem-se aí a “equação fundamental” do modelo de Domar. Segundo Jones (1979:
74), “se s e σ são considerados constantes, a taxa de crescimento do investimento que
vai manter a renda verdadeira igual ao nível de renda máximo potencial, é a taxa
constante proporcional sσ”. Ora, se σ (∆P/I) é o crescimento potencial do produto por
unidade de investimento, enquanto C é o número de unidades de novos investimentos
necessários para produzir uma unidade extra de produto, σ = 1/C, e a substituição
demonstra que as equações fundamentais de Harrod e Domar são formalmente iguais.
(Ibid: 75) Considerando também os termos propostos por Domar, ainda que seja
possível, não há qualquer garantia de que os investimentos cresçam efetivamente a essa
taxa.
Em suma, os modelos de Harrod e Domar ficaram conhecidos (especialmente o
primeiro) por descrever uma dinâmica tumultuada de crescimento econômico.
Elaborados sob a atmosfera de duas guerras entremeadas por uma grande depressão,
suas conclusões mostravam-se razoavelmente compatíveis com as próprias evidências
do período. Por outro lado, as experiências bem sucedidas de crescimento econômico
76
que teriam lugar nas décadas posteriores seriam igualmente utilizadas por parte dos
críticos como prova da incompatibilidade entre o modelo Harrod-Domar e os “fatos”.54
Assim, como geralmente observado nas disputas teóricas internas à ciência
econômica, o critério de adequação empírica foi determinante na reorientação dos
modelos de crescimento econômico. Construídos como contraponto direto aos trabalhos
de Harrod e Domar, os principais desenvolvimentos teóricos posteriores caminharam
justamente no sentido de demonstrar que o crescimento econômico estável com pleno
emprego era não apenas possível, mas também provável.
No campo keynesiano, os esforços constituídos especialmente através dos
trabalhos de Robinson, Kaldor, Pasinetti, entre outros, concentraram-se na análise dos
fatores determinantes da formação de poupança, do ponto de vista da dinâmica
econômica. Sugeria-se que, por um lado, a poupança dependia mais dos lucros que dos
salários e que, por outro, os lucros cresciam como proporção da renda nacional em
período de expansão econômica e decresciam durante as recessões. O resultado era que
se, por exemplo, a taxa de crescimento fosse superior à garantida, a própria expansão,
na medida em que permitisse lucros maiores, favoreceria a elevação da taxa de
poupança e mudaria a própria taxa garantida de crescimento, aproximando novamente
as duas – o inverso ocorrendo caso, ao invés, a taxa natural se encontrasse aquém da
taxa garantida. (Thirlwall, 2005: 26-27)
Alternativamente, no campo neoclássico, um dos principais problemas
apontados pelos críticos foi a já mencionada hipótese de uma relação capital-produto
constante (que indicaria a impossibilidade de substituir os fatores de produção, capital e
trabalho). De acordo com esse argumento, levantado inicialmente por Solow e Swan, a
hipótese das “proporções fixas” seria não apenas incompatível com um modelo que
pretende realizar análises de longo prazo, como também seria fator determinante na
conclusão a respeito da instabilidade do crescimento. Portanto, como pretendemos
mostrar na seção seguinte, é tomando como ponto de partida a flexibilização dessa
hipótese que os modelos neoclássicos pretendem demonstrar a existência de estabilidade
no crescimento econômico.
54
De acordo com Jones, esse tipo de crítica poderia ser rebatido pela utilização do seguinte argumento:
“os problemas de Harrod não emergiram no período do pós-guerra por causa da aplicação sistemática das
políticas keynesianas de estabilização econômica”. (Jones, 1979: 79)
77
Seção 4.2. A estabilidade do crescimento no modelo de Solow
Para tratar dos desenvolvimentos teóricos no campo neoclássico, tomamos como
referência a versão mais simples do modelo de Solow, apresentada em 1956 no artigo A
contribution to the theory of economic growth.55
Como indicamos ao final da seção
anterior, esse modelo toma como ponto de partida uma crítica ao modelo Harrod-
Domar, focada principalmente na hipótese das “proporções fixas”. Mesmo deixando de
lado a discussão a respeito da correção ou incorreção dessa hipótese – sob a justificativa
de que “toda teoria depende de hipóteses que não são totalmente verdadeiras” – Solow
(1956: 65) acredita que o modelo em questão também não está de acordo com a “arte de
bem teorizar” (entendida por ele como a arte de “fazer as inevitáveis hipóteses
simplificadoras de tal maneira que os resultados finais não sejam muito sensíveis”).
Segundo o autor, “a oposição fundamental entre as taxas garantida e natural de
crescimento deriva da hipótese crucial de que a produção acontece sob condições de
proporções fixas”, de tal modo que, “se essa hipótese é abandonada, a noção de „fio da
navalha‟ de crescimento instável parece ter o mesmo destino”.56
(Ibid)
Assim, tratando do mesmo conjunto de problemas levantados pelos modelos
anteriores (a busca da condição de equilíbrio dinâmico e dos mecanismos que
conduziriam a economia a tal estado), Solow (Ibid: 66) pretende formular um “modelo
de crescimento de longo prazo que aceita todas as hipóteses de Harrod-Domar, exceto
aquela de proporções fixas”. Para tanto, o modelo é construído a partir de duas equações
fundamentais: (i) uma função de produção, que apresenta os diferentes níveis de
produto compatíveis com diferentes combinações dos fatores de produção (capital e
trabalho) e (ii) uma equação que descreve a dinâmica da acumulação de capital,
determinada pelo investimento bruto e pelo do montante da depreciação ocorrido
durante o processo produtivo. Em termos formais:
(i) 1),( LKLKFY
55
No intuito de facilitar a apresentação deste modelo, utilizamos também as sínteses realizadas por Jones
(1979) e Jones (2000). 56
A noção de “fio da navalha”, utilizada por Solow (1956: 65) para descrever “a conclusão característica
e poderosa da linha de pensamento Harrod-Domar”, foi explicitamente rejeitada por Harrod (1973) anos
depois. Segundo o autor, essa nomenclatura “soa profundamente irrealista e, mesmo, um tanto ridícula”,
(Ibid: 33) sendo mais apropriada a comparação do sistema econômico com “uma bola sobre uma
declividade gramada. É necessário um chute forte para movê-la. Mas, uma vez movida, ela pode ir bem
mais longe – especialmente se a encosta é abrupta – do que um chute inicial de igual força a faria ir sobre
um campo plano”. (Ibid: 32)
78
(ii) dKsYK
Onde Y é a renda, K o capital, L o trabalho, α é qualquer número entre 0 e 1,
K
é a variação no estoque de capital, s a propensão marginal a poupar e d a taxa de
depreciação do capital. Na primeira equação, um α maior ou menor nos diz se a
tecnologia utilizada é mais ou menos intensiva em capital. Na segunda equação,
observamos que quando maior o nível de investimento e quando menor a depreciação,
maior a taxa de variação do capital.
Como os fatos que o modelo de Solow busca explicar envolvem também o
produto por trabalhador ou o produto per capita (y = Y/L), podemos dividir ambos os
lados das equações (i) e (ii) por L e obter os seguintes resultados:
(iii) ky
(iv) kdnsyk
Onde n representa a taxa de crescimento da população (considerada, por
hipótese, igual à taxa de crescimento da força de trabalho), que também passa a atuar
como fator redutor da taxa de variação do estoque de capital.
Uma vez apresentadas as “equações fundamentais” do modelo, Solow afirma
que uma economia qualquer estará em equilíbrio quando o investimento per capita for
do tamanho necessário para manter constante o montante de capital por trabalhador,
compensando os efeitos negativos da depreciação e do crescimento da força de trabalho
– situação na qual a taxa de crescimento do capital per capita iguala-se a zero. Assim,
combinando as equações (iii) e (iv), e supondo a condição de equilíbrio, temos que:
(v)
1
1
*
dn
sk
Substituindo (v) na função de produção por trabalhador (iii), chegamos,
finalmente, ao produto por trabalhador na situação de equilíbrio, y*:
(vi)
1*
dn
sy
Assim construído, o modelo conduz à conclusão de que o produto per capita no
equilíbrio de longo prazo depende apenas das variáveis s, n e d e do parâmetro α. Essa
79
situação de equilíbrio, na qual o montante de capital por trabalhador permanece
constante, será chamada por Solow de estado estacionário.57
A figura 8.1, baseada em
Solow (1956: 70), sintetiza as conclusões até aqui apresentadas. Sendo as curvas
expressões dos dois termos da equação (iv), o ponto (y*, k
*) denota a situação de
equilíbrio, que anula a taxa de crescimento do capital per capita.
Figura 8.1: Gráfico de Solow
Uma vez definida a condição de equilíbrio, Solow busca demonstrar a existência
de mecanismos geradores de uma tendência ao crescimento equilibrado. Analisando
graficamente, fica fácil observar que em qualquer ponto à esquerda de k* o montante de
investimento por trabalhador (representado pela curva sy) supera o decréscimo de
capital por trabalhador advindo da depreciação e do crescimento populacional
(representado pela curva (n+d)k). Essa situação implicaria, portanto, o crescimento do
capital por trabalhador (k), até o ponto em que k = k*. A situação seria inversa em
qualquer ponto à direita de k*, em que o investimento está aquém do necessário para
compensar o decréscimo de capital, determinando a redução de k novamente até o ponto
k*. Em suma, qualquer que sejam os valores iniciais das variáveis básicas do modelo, a
economia sempre se move em direção ao estado estacionário – único ponto capaz de
manter a estabilidade do crescimento.
57
Vale enfatizar: a situação descrita como estado estacionário não implica a inexistência de crescimento
econômico. Implica, sim, que o produto cresça à mesma taxa que a população, garantindo uma relação
“produto/trabalho” estável.
80
Seção 4.3. Considerações finais
A partir da inspeção dos modelos de Harrod, Domar e Solow, buscamos com as
seções acima apresentar os principais elementos constitutivos dos modelos de
crescimento econômico formulados no período pré-1970. Esse exercício faz-se
necessário, pois, apesar das diferenças nada desprezíveis existentes entre os modelos de
crescimento aqui apresentados e as teorias do desenvolvimento discutidas nos três
próximos capítulos, essas formulações têm em comum o fato de serem dirigidas à
compreensão dos fatores determinantes da disparidade de renda entre os diferentes
países. Uma vez que durante o período pré-1970 o desenvolvimento das nações foi
entendido, predominantemente, como sinônimo de crescimento da renda (per capita), os
modelos de crescimento podem ser enquadrados no conjunto mais amplo de
formulações que, no âmbito da ciência econômica, buscaram dar tratamento à temática
do desenvolvimento naquele contexto histórico específico.
Considerando ainda que este consiste no primeiro dos três capítulos destinados à
inspeção crítica das concepções sobre o desenvolvimento dominantes no período pré-
1970, talvez seja prudente chamar atenção, mais uma vez, para o tipo de crítica que
pretendemos realizar aqui. Dados os diferentes rumos possíveis de uma análise crítica e
o conteúdo das formulações acima apresentadas, o leitor talvez seja induzido, por
exemplo, a acreditar que temos a pretensão de partir para uma discussão sobre o caráter
restritivo das hipóteses utilizadas como fundamento dos modelos, ou ainda sobre o tipo
de método por eles empregado no estudo das relações econômicas.
Ainda que a importância de considerações desse tipo não esteja sendo colocada
em questionamento, não é esse o caminho que buscamos trilhar. Partindo da concepção
de que a autêntica crítica científica deve dirigir-se não apenas às ideias em si, mas
também às formas de existência que tornam aquelas ideias correntes e necessárias,
interessa-nos aqui fornecer elementos que permitam explicar por que, apesar de todos os
problemas relacionados à descrição da dinâmica de funcionamento da economia
sugerida pelos modelos de crescimento, aquelas são concepções atrativas, de ampla
circulação e aceitação. Para tanto, faz-se imperativo olhar não apenas para as
formulações teóricas em si, mas também para a relação dessas teorias com o modo de
produção capitalista, em geral, e com o contexto histórico em que são produzidas, em
particular.
81
Falando mais diretamente sobre os modelos de crescimento, vimos nas seções
anteriores que um dos seus principais objetivos era explicar, com recurso à lógica
formal ou matemática, os fatores determinantes do crescimento da riqueza (medida pelo
crescimento do produto ou produto per capita). Isso é, indubitavelmente, apropriado
(útil até) à descrição de um modo de produção que possui como determinante central o
impulso ao aumento da riqueza (ou seja, que tem o não-crescimento como um
problema), riqueza esta homogeneizada em termos de valor (pressuposto fundamental
que torna possível o tratamento exclusivamente quantitativo das relações econômicas).
Em que pese essa nítida “adequação empírica”, a aceitação automática do
crescimento como critério central ao juízo das condições socioeconômicas dos países e
regiões deixa de lado uma questão fundamental, levantada por críticos de diversos
matizes teóricos: qual o sentido humano de tal crescimento? Como veremos no último
capítulo, a partir da crise dos anos 1970 e do reconhecimento de problemas associados
ao padrão de crescimento/desenvolvimento defendido ao longo das décadas anteriores,
questionamentos desse tipo tornaram-se ainda mais frequentes, da esquerda à direita. E
mesmo quando levantada no campo conservador – como, por exemplo, no trabalho de
Amartya Sen, Desenvolvimento como Liberdade (2000) –, tal questionamento tem o
mérito de despertar a atenção para a possibilidade de uma existência social na qual
normalidade ou crises econômicas não sejam sinônimo de aumento ou diminuição do
produto.
Quando observamos os modelos de Harrod-Domar e Solow em conjunto, no
entanto, percebemos que ambos reduzem a condição da economia (e, por seu
intermédio, da sociedade) ao crescimento do produto; ambos concebem o crescimento
como dependente da poupança; ambos associam o crescimento do produto ao
crescimento populacional (numa reedição da lógica de Malthus e Ricardo), entre outras
semelhanças. As principais diferenças entre essas formulações residem basicamente nas
conclusões sobre o caráter estável ou não do crescimento e sobre a possibilidade de que
a economia equilibre-se ou não em condições de pleno emprego.
Em termos mais amplos, essa distinção pode ser entendida como resultado da
filiação a uma de duas posições: a posição liberal clássica, que considera que o mercado
é capaz de atingir, por si mesmo, uma situação econômica não apenas ordenada, como
produtiva, e a posição identificada com a crítica de Keynes, que nega essa possibilidade
e reclama uma participação mais ativa do Estado na vida econômica. O discurso oscila,
82
então, entre a defesa, em geral implícita, do capitalismo liberal ou a defesa, em geral
aberta, do capitalismo “regulado”. Livre ou “regulado”, é sempre o capitalismo que se
projeta para o futuro. Veremos nos capítulos seguintes como as teorias do
desenvolvimento reeditam, de algum modo, esse debate pendular entre configurações
diversas da mesma formação social.
83
Capítulo 5. Teorias clássicas do desenvolvimento (i): estratégias de
industrialização para as regiões subdesenvolvidas, em geral
Realizada a análise crítica dos principais modelos de crescimento, passamos
agora ao estudo das teorias clássicas do desenvolvimento, produzidas no período
imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. Como indicado anteriormente, esse
período marca o nascimento de um campo relativamente autônomo dentro da ciência
econômica, também conhecido como Economia do Desenvolvimento, que,
diferentemente dos modelos de crescimento, tem por objetivo central explicar os
determinantes do subdesenvolvimento e apontar saídas para essa condição. Para além
desse aspecto geral, algumas características particulares podem ainda ser identificadas
nesse período de grande efervescência do debate sobre desenvolvimento.
Como pretendemos deixar claro ao longo do presente capítulo, em primeiro
lugar, o desenvolvimento é tomado como sinônimo de aumento da riqueza, medida pela
renda per capita (acompanhado, em alguns casos, da noção de que esse aumento de
riqueza deve ser capaz de gerar melhorias nas condições de vida da população).
Consequentemente, por contraposição, o subdesenvolvimento é associado à baixa renda
per capita (e, por vezes, à incapacidade de garantir condições dignas de vida para a
população). Além disso, o que se observa nesse período é a predominância da ideia de
que o desenvolvimento deve ser promovido através da industrialização. Assim,
utilizando uma combinação de argumentos teóricos (de inspiração clássica, keynesiana
e/ou schumpeteriana) e históricos (amparados nas experiências bem sucedidas de
industrialização da Europa ocidental, Estados Unidos e União Soviética), essas teorias
procuram defender e justificar a necessidade da industrialização.
Por outro lado, as principais divergências entre as teorias clássicas do
desenvolvimento giram em torno de dois pontos fundamentais. O primeiro, diz respeito
aos determinantes do subdesenvolvimento e, portanto, à tentativa de explicar a baixa
renda per capita – nesse caso, veremos que, enquanto algumas teorias apontam a baixa
poupança e ausência de recursos como o determinante em última instância do
subdesenvolvimento, outras acreditam que se trata apenas de uma má utilização dos
recursos disponíveis. O segundo ponto refere-se à estratégia de industrialização
defendida pelas diferentes teorias (mais ou menos intensiva em capital, com ou sem
intervenção do estado, equilibrado ou desequilibrado etc.).
84
Para dar conta de todos esses aspectos, o capítulo encontra-se divido em quatro
seções. Na primeira, tratamos de algumas teorias que explicam o subdesenvolvimento a
partir da inexistência de recursos e/ou defendem uma estratégia de crescimento
equilibrado.58
Na segunda, serão analisadas as críticas à noção de crescimento
equilibrado realizadas por Gunnar Myrdal e Albert Hirschman. A terceira seção será
dedicada exclusivamente ao trabalho de Walt Rostow, que, como pretendemos
argumentar, melhor simboliza toda esta geração de estudos. Por fim, dedicamos a seção
de encerramento do capítulo ao apontamento de algumas conclusões críticas que podem
ser extraídas da análise das teorias do desenvolvimento.
Seção 5.1. Círculo vicioso da pobreza e estratégia de crescimento equilibrado
Como indicado anteriormente, a caracterização do desenvolvimento como
crescimento da riqueza (medida pelo produto per capita), e a noção de que esse objetivo
só pode ser alcançado por meio da industrialização, é uma das principais marcas das
teorias do desenvolvimento produzidas no período anterior à crise dos anos 1970.
Dentre as contribuições mais significativas desse período, destaca-se o trabalho de
Rosenstein-Rodan, publicado em 1943, sobre os Problemas de industrialização da
Europa do leste e do sudeste. Compartilhando a definição de desenvolvimento acima
apresentada (com ênfase, inclusive, no debate sobre a convergência da riqueza
mundial), Rodan afirma que, além de interessar às “áreas deprimidas” em geral, a
industrialização desses países é conveniente para o mundo como um todo, visto ser o
único “meio para que se alcance uma distribuição de renda mais equitativa entre
diferentes partes do mundo pela elevação da renda nas regiões deprimidas a uma taxa
mais alta que nas regiões ricas”. (Rosenstein-Rodan, 2010: 265)
Além do pioneirismo e do fato de ser um dos representantes fiéis da perspectiva
dominante do período, resgatamos aqui o trabalho de Rodan por diversos outros
motivos. Em primeiro lugar, Rodan inaugura uma série de teorias que, partindo do
arcabouço teórico clássico ou keynesiano, irão caracterizar o subdesenvolvimento (e
explicar as baixas taxas de crescimento nessas regiões) a partir do “excesso de
58
A seleção dos textos a serem analisados nessa primeira seção tomou como base a famosa coletânea de
artigos organizada por Agarwala e Singh (2010), A economia do subdesenvolvimento, publicada pela
primeira vez em 1958 e que se tornou referência mundial para o debate sobre desenvolvimento.
85
população agrária” e consequente subemprego rural. Diante dessa constatação,59
Rodan
apresenta duas soluções alternativas: (i) levar a mão-de-obra excedente até o capital
através da emigração ou (ii) levar o capital até onde há excesso de trabalho por meio da
industrialização. Considerando que ambas são equivalentes “do ponto de vista da
maximização da renda mundial” e que a primeira é difícil de realizar-se em grande
escala, “em sua maior parte o problema terá de ser resolvido pela industrialização”.
(Ibid)
Em segundo lugar, no que diz respeito à estratégia de industrialização, é bastante
emblemático que Rodan tenha escrito, ainda durante a Segunda Guerra Mundial,
especificamente sobre aqueles países situados entre a União Soviética e a Europa
Ocidental e que posteriormente passariam a compor o conjunto de “países socialistas”
(também conhecidos como Segundo Mundo). Nesse contexto, Rodan foi um dos autores
a defender explicitamente uma estratégia de desenvolvimento que se contrapõe
diretamente ao chamado “modelo russo” (ou “autárquico”) de industrialização.60
De
acordo com o autor, essa modalidade de industrialização caracteriza-se pela busca da
auto-suficiência (via integração vertical), envolvendo uma série de sacrifícios que
poderiam ser evitados caso os países optassem por uma industrialização “ajustada” à
economia mundial. Nesse caso, os países deveriam seguir os “sólidos princípios da
divisão internacional do trabalho [que] postulam técnicas intensivas de mão-de-obra –
isto é, indústrias leves para as regiões subdesenvolvidas” (Ibid: 267), suprindo o
restante das necessidades (especialmente daqueles bens produzidos por “indústrias
pesadas”) através da importação. Segundo o autor, essa estratégia de industrialização
“preservaria as vantagens da divisão internacional do trabalho, produzindo, portanto,
mais riqueza para todos ao final do processo”. (Ibid: 266)
Assim, para Rodan, a superação do subemprego rural (característico das
economias subdesenvolvidas) deve passar pela adoção de uma estratégia de
industrialização integrada, que insira a região na economia mundial, preservando as
vantagens da divisão internacional do trabalho. Além do respeito aos desígnios das
vantagens comparativas, o sucesso da estratégia depende, em primeiro lugar, do
59
Constatação empírica, tomada como hipótese inicial do trabalho. Nas palavras do autor: “As hipóteses
no caso em estudo são as seguintes: existe um „excesso de população agrária‟ na Europa do Leste e do
Sudeste, que corresponde a 20 a 25 milhões de habitantes para uma população total de 100 a 110 milhões;
ou seja, cerca de 25% da população se encontra total ou parcialmente desempregada („desemprego
disfarçado‟)”. (Rosenstein-Rodan, 2010: 265) 60
Embora não tenha sido o único. Veremos adiante o exemplo mais emblemático e explícito: Rostow e
seu manifesto não-comunista.
86
treinamento e habilitação da mão-de-obra (que permita transformar camponeses em
trabalhadores industriais), e, em segundo lugar, do planejamento em grande escala que
possibilite a criação de um sistema de indústrias complementares (especialmente
aquelas que produzem a maioria dos bens adquiridos com salários). (Ibid: 268)
Essa estratégia de industrialização, posteriormente conhecida como estratégia de
crescimento equilibrado, teria ainda outra grande vantagem: “a criação planejada de um
sistema de indústrias complementares desse tipo reduziria o risco de insuficiência de
procura e, visto que o risco pode ser considerado um custo, reduziria os custos. É, nesse
sentido, um caso especial de „economias externas‟”.61
(Ibid: 269) Considerando que os
trabalhadores não gastam seus salários em um único produto, o emprego de toda a mão-
de-obra excedente em uma única indústria produziria um desequilíbrio nesse setor e nos
demais (excesso de oferta no primeiro e de demanda nos demais).
Tais desequilíbrios poderiam, eventualmente, ser corrigidos pelo mecanismo de
mercado (via movimento de preços, como previsto pela Lei de Say), mas poderiam ser
evitados através do investimento maciço em diversas indústrias complementares, de
modo coordenado.62
Essa coordenação faria com que o aumento da oferta em diversas
indústrias criasse sua própria demanda, promovendo “uma expansão da produção
mundial com um mínimo de perturbação do mercado internacional”. (Ibid) Como, para
Rodan, nos países subdesenvolvidos é mais fácil prever a demanda da população,
também o planejamento em larga escala seria facilitado. (Ibid)
Uma abordagem bastante similar, e, em grande medida, inspirada no antecessor,
também pode ser vista nos trabalhos de Ragnar Nurkse, que apresenta a formação de
capital como o fator capaz de diferenciar países desenvolvidos e subdesenvolvidos.63
61
Rodan (Ibid: 269) cita ainda dois outros tipos de “economias externas” que podem surgir a partir da
criação de um sistema de indústrias complementares: (i) as economias externas à firma e internas à
indústria e (ii) as economias externas à indústria. Por esse motivo, o autor ficou conhecido como um dos
primeiros a utilizar a divergência entre “retorno privado” e “retorno social” dos investimentos como
justificativa para a coordenação de projetos integrados de industrialização. Mais adiante, no entanto,
veremos como o mesmo argumento será utilizado para defender a estratégia de crescimento
desequilibrado. Uma síntese do debate pode ainda ser vista nos textos de Fleming (As economias externas
e a doutrina do crescimento equilibrado) e Scitovsky (Dois conceitos de economias externas), também
presentes na coletânea de Agarwala e Singh (2010). 62
Como aparece na sistematização realizada por Scitovsky (2010: 324): “Daí a ideia de que falta um
planejamento centralizado do investimento ou algum sistema de comunicação adicional que suplemente o
sistema de preços como dispositivo de sinalização”. 63
Ou seja, “as chamadas „áreas subdesenvolvidas‟, em confronto com as avançadas, são aquelas que se
encontram subequiparadas de capital em relação à sua população e recursos naturais”. (Nurkse, 1957: 3)
Vale notar que a palavra capital comparece na frase, e na concepção do autor em geral, no sentido
limitado (e mistificador, como demonstrou Marx) de máquinas, equipamentos e materiais indispensáveis
à produção. (Ibid: 4)
87
Segundo o autor, esta formação de capital estaria sujeita à ação de forças circulares
(tanto do lado da oferta, quanto do lado da demanda) que manteriam as economias em
um “estado de equilíbrio de subdesenvolvimento”.64
Esse mecanismo, também
conhecido como círculo vicioso da pobreza, foi exemplificado por Nurkse da seguinte
maneira:
Um homem pobre não tem o bastante para comer; sendo subalimentado, sua
saúde é fraca; sendo fisicamente fraco, sua capacidade de trabalho é baixa, o
que significa que ele é pobre, o que, por sua vez, quer dizer que não tem o
bastante para comer; e assim por diante. Tal situação, transposta para o plano
mais largo de um país, pode ser resumida nesta proposição simplória: um
país é pobre porque é pobre. (Nurkse, 1957: 7)
Deixando de lado a excentricidade desse raciocínio ímpar (que, aplicado à
medicina, resultaria no diagnóstico de que um homem doente tem uma doença ou na
constatação de que um morto não está vivo!), o que efetivamente importa são as
relações de causalidade aludidas na explicação da escassez de capital. No caso de um
país, Nurkse observa que, por um lado, há baixa oferta de capital, em virtude da
“pequena capacidade de poupar, resultante do baixo nível da renda real”. Por outro, a
baixa demanda por capital, reflexo do baixo estímulo para investir, seria derivada “do
pequeno poder de compra da população, consequência de reduzida renda real”. Em
síntese, “o ponto em comum em ambos os círculos é o baixo nível de renda real”.
(Nurkse, 1957: 8)
Ainda assim, para o autor, nem tudo estaria perdido: “a constelação circular do
sistema estacionário é bastante real, mas, felizmente, o círculo não é intransponível”.
(Ibid: 14) Exatamente como na formulação de Rodan, o rompimento com o círculo
vicioso da pobreza dependeria de uma estratégia de crescimento equilibrado, também
conhecida como “grande impulso” (ou big push), possível apenas através “de uma
aplicação de capital mais ou menos sincronizada numa ampla gama de indústrias
diferentes”. (Nurkse, 2010: 278) O resultado desse investimento “sincronizado” também
seria mais ou menos o mesmo:
[...] ampliação geral do mercado e, portanto, uma saída para o impasse. Os
indivíduos que trabalham com mais e melhores equipamentos em certo
número de projetos complementares se tornam clientes mútuos. As indústrias
que abastecem o consumo das massas são em sua maioria complementares,
no sentido de que ao mesmo tempo proporcionam um mercado e se
sustentam mutuamente. Essa complementação básica resulta da diversidade
dos desejos humanos. No caso do “crescimento equilibrado”, baseia-se, em
última análise, na necessidade de uma “dieta equilibrada”. (Ibid)
64
Em relação aos fundamentos teóricos dessa formulação, o próprio Nurkse (1957: 14) faz questão de
enfatizar que o estado de equilíbrio de subdesenvolvimento seria “um tanto análogo ao „equilíbrio de
subemprego‟, cuja possibilidade nos países industrialmente avançados nos foi apontada por Keynes”.
88
Ainda que semelhante na proposta, Nurkse, por um lado, acredita que a defesa
do crescimento equilibrado, ao implicar diversificação da economia doméstica, rompe
em parte com a teoria das vantagens comparativas. Por outro, este autor é bem menos
definitivo a respeito dos meios para atingir o desenvolvimento (se obtido através da
participação do Estado ou deixado ao sabor das forças do mercado, ou seja, dos
empresários). Em suas palavras: “seja o crescimento equilibrado sustentado por
planejamento governamental ou levado a cabo espontaneamente pela iniciativa privada
trata-se, no fim das contas, de uma questão de método”. (Ibid: 279) Mais que isso,
segundo Nurkse (1957: 20), “O economista, como técnico, não tem imperativos
categóricos a levantar sobre o assunto”.
Apesar da repercussão que tiveram estes primeiros trabalhos, pode-se dizer que a
ênfase no subemprego rural como característica principal do subdesenvolvimento
encontrou sua expressão mais efetiva no trabalho de Arthur Lewis, intitulado
Desenvolvimento econômico com oferta ilimitada de mão-de-obra, de 1954.65
Diferentemente dos teóricos anteriores, no entanto, Lewis é mais explícito ao afirmar
que, enquanto uma teoria inspirada no arcabouço teórico keynesiano prevê a
possibilidade de equilíbrio com subemprego dos diversos fatores de produção, em uma
situação de subdesenvolvimento somente a mão-de-obra é excedente.66
Se o contingente
populacional não oferece, portanto, nenhuma restrição objetiva ao crescimento, o
“problema do desenvolvimento econômico” estaria na “escassez de capital”.
Tomando como ponto de partida a análise de uma “economia fechada”, Lewis
procura demonstrar como o desenvolvimento, na medida em que está sujeito à
quantidade de capital disponível, depende, em última instância, da quantidade de
poupança (aceitando, em grande medida, um dos postulados que sustentam a Lei de
Say, ou seja, a ideia de que a poupança deve preceder o investimento). Nesse sentido,
Lewis define o “problema central da teoria do desenvolvimento econômico” da seguinte
maneira:
65
Assim como outros teóricos do desenvolvimento, Lewis viria a receber (25 anos após essa publicação)
o prêmio Nobel de Economia, “pela pesquisa pioneira sobre desenvolvimento econômico com particular
atenção aos problemas dos países em desenvolvimento”. (www.nobelprize.org) 66
Por esse motivo, como o próprio Lewis faz questão de enfatizar nas páginas iniciais de seu artigo, a
perspectiva por ele defendida estaria mais próxima da teoria clássica, utilizada explicitamente como
fundamento da sua formulação. Nas palavras do autor: “Este artigo foi escrito segundo a tradição clássica,
aceitando suas suposições e formulando suas questões”. (Lewis, 2010: 413) E mais adiante: “O propósito
desse artigo é, portanto, descobrir o que se pode aproveitar do marco clássico para resolver os problemas
da distribuição, acumulação e crescimento, em primeiro lugar numa economia fechada e, depois, numa
economia aberta”. (Ibid: 414)
89
O problema central da teoria do desenvolvimento econômico é a
compreensão do processo pelo qual uma comunidade que anteriormente não
poupava nem investia mais que 4 ou 5% de sua renda nacional, ou ainda
menos, transforma-se numa economia em que a poupança voluntária se situa
por volta de 12 ou 15% da renda nacional, ou mais. Este é o problema central
porque a questão principal do desenvolvimento econômico é a rápida
acumulação de capital (incluindo aí os conhecimentos e especializações).
Nenhuma revolução “industrial” pode ser explicada (como pretendiam alguns
historiadores econômicos) enquanto não se puder explicar por que aumentou
relativamente a poupança em relação à renda nacional. (Ibid: 428)
Para que a poupança aumente, no entanto, não basta haver um aumento da renda
nacional per capita. (Ibid: 429) Isso porque, como se sabe, pouca ou nenhuma poupança
é feita pelos trabalhadores assalariados, sendo essa tarefa exclusiva dos capitalistas (e
proprietários, em geral), remunerados por lucros e rendas, e retratados como verdadeiros
heróis sociais. Sem muita cerimônia, Lewis extrai desse ponto a seguinte conclusão:
para que o problema do desenvolvimento seja resolvido, é preciso haver uma alteração
na distribuição da renda em benefício da classe poupadora (isto é, da classe capitalista)
e isso é tanto mais possível quanto menores os salários (ou seja, quanto mais os níveis
salariais de subsistência se estendem para a totalidade do sistema).
Apresentando ainda um argumento muitíssimo similar àquele defendido por
Ricardo,67
Lewis tenta mostrar como esse processo não pode prosseguir
indefinidamente. Em determinado momento, a demanda crescente por mão-de-obra
(ainda que não chegue a superar a oferta) gera uma pressão positiva sobre os salários e
uma pressão negativa sobre os lucros, ou seja, “os salários começam a subir acima do
nível de subsistência e o excedente capitalista vê-se afetado de modo desfavorável”
(Ibid: 448) e isso, na medida em que diminui o incentivo a novos investimentos, gera
problemas para o desenvolvimento da economia.
No entanto, é precisamente nesse ponto que a análise da “economia fechada”
deve, segundo Lewis, ser substituída pela “economia aberta”, a partir da qual se torna
possível vislumbrar uma saída para o problema. Isso porque “os países que atingiram a
escassez de trabalho se veem cercados por outros que têm trabalho em abundância”
(Ibid), e enquanto continuar a existir excedente de mão-de-obra disponível a salário de
subsistência, em outros países, o problema pode ser resolvido de duas formas diferentes:
67
Estamos nos referindo aqui, mais especificamente, à noção ricardiana de estado estacionário, descrita
pelo autor como a situação na qual deixa de haver incentivo a novos investimentos. No caso de Ricardo
(1996), no entanto, essa tendência está associada a duas premissas básicas: (i) a teoria malthusiana do
crescimento populacional e (ii) a ideia de que preço dos produtos agrícolas é regulado pelo trabalho
necessário à produção nas terras menos férteis. Assim, na medida em que o crescimento populacional
fosse tornando necessária a produção em terras menos férteis, geraria um aumento no preço dos alimentos
com consequente aumento de salários e queda dos lucros.
90
incentivando a imigração ou exportando o capital. Após analisar as duas alternativas,
Lewis chega a uma conclusão similar àquele defendida por Rosenstein-Rodan: a
segunda solução (exportação de capital) é muito mais factível que a primeira, “visto que
os sindicatos trabalham eficientemente contra a imigração, sendo, no entanto, muito
menos eficazes no controle à exportação de capital”. (Ibid: 449)
Antecipando possíveis críticas, Lewis se apressa em afirmar que esse não é o
único fator que explica a exportação de capital: “O que dá origem à exportação de
capital não são, inevitavelmente, os lucros descendentes dentro do país, ou os salários
em elevação, mas simplesmente o fato de que os países estrangeiros possuem diferentes
recursos em diferentes graus de utilização, havendo, portanto, algumas oportunidades
rentáveis para o investimento no exterior”. (Ibid: 452) No entanto, naqueles países em
que existe escassez de trabalho, “o efeito será a redução da demanda por trabalho,
impedindo, assim, que os salários aumentem tanto como aumentariam de outro modo”.
(Ibid)
Seção 5.2. Causação circular acumulativa e estratégia de crescimento desequilibrado
A teoria do desenvolvimento acima apresentada recebeu inúmeras críticas,
dentre as quais obtiveram grande repercussão as oferecidas por Gunnar Myrdal (1957 –
Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas) e Albert Hirschman (1958 – A estratégia
de desenvolvimento econômico). O primeiro, ganhador do Nobel de economia em 1974
“pela análise penetrante da interdependência dos fenômenos econômicos, sociais e
institucionais”, estava particularmente interessado em oferecer um contraponto à
concepção de circulo vicioso da pobreza formulada por Nurkse, criticando
especialmente a ideia de equilíbrio por detrás dessa formulação. Nesse sentido, Myrdal
(1972: 33) apresenta a tese da causação circular acumulativa, buscando mostrar que, se
não controlado, o processo de mudanças sociais tende a provocar desequilíbrios
crescentes.68
Começando com a defesa do caráter circular dos processos sociais, o autor
utiliza como ilustração um estudo seu sobre a situação dos negros norte-americanos. Os
leitores, naturalmente, não devem se prender aqui na explicação superficial e
68
Segundo o autor, “essa ideia contém em poucas palavras o método mais objetivo de análise da mudança
social, portanto, uma visão da teoria geral do desenvolvimento e do subdesenvolvimento pela qual todos
estamos esperando”. (Myrdal, 1972: 33)
91
maniqueísta da condição de vida dos “negros norte-americanos”,69
mas na lógica da
analogia pretendida por Myrdal:
Em sua forma mais simples, o modelo explanatório se reduz a dois fatores: „o
preconceito do branco‟, que causa a discriminação contra os negros em vários
aspectos, e o „baixo padrão de vida da população negra‟. Esses dois fatores se
relacionam mutuamente; o baixo padrão de vida dos negros é mantido pela
discriminação dos brancos, enquanto, por outro lado, a pobreza, a ignorância,
a superstição, as más condições de habitação, as deficiências sanitárias, a
sujeira, o mau cheiro [sic], a indisciplina, a instabilidade das relações
familiares e a criminalidade dos negros estimulam e alimentam a antipatia
dos brancos. (Myrdal, 1972: 38)
Nesse aspecto, portanto, a “causação circular” não se diferencia muito da noção
de “círculo vicioso” apresentada por Nurkse: ambas explicam, no máximo, um aspecto
do processo de reprodução de condições previamente causadas (caso contrário, seria
preciso imaginar que os brancos e negros encontram-se em disparidade de condições
por sua constituição genética, isto é, brancos teriam nascido ricos e cheirosos e os
negros pobres e mau-cheirosos). No entanto, diferentemente do que foi defendido por
Nurkse, Myrdal (1972: 39) afirma que “essa „acomodação‟ estática é inteiramente
fortuita, e não provoca, absolutamente, uma posição de equilíbrio estável”. Isso porque,
Se qualquer um dos dois fatores se modificasse, haveria mudança no outro e,
também, desencadearia um processo acumulativo de interação mútua, no qual
a mudança em determinado fator seria continuamente apoiada pela reação do
outro. Assim, sucessivamente, [...] todo o sistema se moveria na direção da
mudança primária, de maneira cada vez mais ampla. Mesmo que o impulso
original cessasse, depois de algum tempo, ambos os fatores se teriam alterado
para sempre, ou, o que também poderia suceder, o processo de mudanças
recíprocas persistiria, sem possibilidade de neutralização imediata. (Ibid)
Assim, enquanto Nurkse oferece uma imagem circular do funcionamento da
economia, a imagem oferecida por Myrdal estaria mais próxima de um espiral, para
cima ou para baixo, dependendo do caráter da “mudança primária” (se positiva ou
negativa). Segundo o autor, a noção de que o processo de mudança social é acumulativo
e opera em ambas as direções faz parte da própria sabedoria popular e é utilizada, ainda
que de modo implícito, por “todo homem de negócio bem sucedido [...] na sua forma de
resolver problemas práticos; de outro modo não obteria êxito”. (Ibid: 44)
Também no campo da política econômica, os “efeitos cumulativos” deveriam ser
levados em conta e poderiam ser aproveitados em benefício público caso houvesse um
bom conhecimento da relação entre as variáveis.70
Para tanto, partindo de uma
69
Como ignorar, por exemplo, o passado escravocrata dos EUA e as escassas possibilidades de ascensão
social no capitalismo, mesmo num país conhecido por difundir ideologicamente a esperança de
enriquecimento como um seu valor fundante? 70
“Quanto mais conhecermos a maneira pela qual os diferentes fatores se inter-relacionam – os efeitos
que a mudança primária de cada fator provocará em todos os outros – mais seremos capazes de
92
concepção particular de “ideal científico”, Myrdal (1972: 42) defende que esse
conhecimento deva assumir a forma “de um conjunto de equações quantitativas
interdependentes, que descrevessem o movimento do sistema estudado sob as várias
influências em jogo, e as mudanças internas”, ainda que uma formulação desse tipo,
“completamente quantitativa e verdadeira”, esteja além de suas pretensões.
Para dar fundamento à sua formulação, Myrdal recorre ainda aos estudos
empíricos realizados pela Comissão Econômica das Nações Unidas para a Europa
durante a década de 1950, que extraem das análises dos dados as seguintes conclusões:
(i) as desigualdades são maiores nos países ricos do que nos países pobres e (ii) as
desigualdades tendem a se tornar menores nos países ricos e maiores nos países pobres.
(Ibid: 61-62) Segundo o autor, esse fenômeno explica-se, pois, quanto mais alto o nível
de desenvolvimento de um país, mais fortes são os “efeitos positivos” e maior a
capacidade de neutralizar os “efeitos negativos”, enquanto nos países subdesenvolvidos
observa-se o contrário. Assim, a afirmação tautológica de Nurkse de que “um país é
pobre porque é pobre” teria que ser substituída pelas seguintes proposições: (i) um país
rico tende a tornar-se mais rico e (ii) um país pobre tende a tornar-se cada vez mais
pobre.
Para impedir, ainda que temporariamente, a continuidade dessa tendência, o
Estado deveria atuar através da coordenação e planejamento, proteção do mercado
interno e das indústrias nascentes etc. Além disso, os países deveriam trabalhar, sempre
que possível, para transformar seus Estados nacionais em Estados de bem-estar social.
Nas palavras do autor:
Quanto mais um Estado Nacional se transforma, efetivamente, em um
“Estado de Bem-Estar” – quanto mais se aproxima de uma democracia
perfeita, tendo à sua disposição recursos nacionais, em tal magnitude, que
seja possível o emprego, em grande escala, de políticas igualitárias, como
sacrifícios toleráveis pelas regiões e grupos cujos padrões de vida são
relativamente melhores – tanto mais fortes serão a necessidade e a capacidade
de combater as forças cegas de mercado que tendem a provocar
desigualdades regionais. Esse fato por sua vez impulsionará o
desenvolvimento econômico e assim, sucessivamente, em processo de
causação circular. (Ibid: 72)
Uma ideia semelhante pode ser encontrada no trabalho de Hirschman (1961),
que constrói seu argumento como contraponto direto à noção de crescimento
equilibrado. Para o autor, em primeiro lugar, essa perspectiva seria marcada por uma
espécie de esquizofrenia, na medida em que “combina uma atitude derrotista acerca das
estabelecer os meios de obter a maximização dos resultados de determinado esforço político, destinado a
mover e alterar o sistema social”. (Myrdal, 1972: 43)
93
possibilidades das economias subdesenvolvidas com esperanças inteiramente fictícias
sobre o seu poder de criação”. (Ibid: 87) Em outras palavras, “se um país estivesse em
condições de aplicar a doutrina do desenvolvimento equilibrado”, investindo em uma
grande quantidade de indústrias novas ao mesmo tempo, “então, preliminarmente, não
seria um país subdesenvolvido”. (Ibid: 88)
Em segundo lugar, a teoria do crescimento equilibrado poderia ser vista, na
melhor das hipóteses, como um exercício de “estática comparativa retrospectiva”, que,
ao observar a existência de certo equilíbrio entre os diferentes setores em uma economia
desenvolvida, supõe que os setores cresceram efetivamente na mesma proporção
durante o período revisto. Para o autor, ao contrário, “o desenvolvimento equilibrado,
que se revela nos dois instantes fotográficos, tirados em dois períodos de tempo
diferentes, representa o resultado final de uma série de avanços desiguais de um setor,
seguido pelos outros setores que o procuram alcançar”. (Ibid: 102)
Assim, essa teoria não seria capaz de explicar o processo através do qual as
economias transitam do estado inicial de “equilíbrio do subdesenvolvimento” ao
“equilíbrio de desenvolvimento” nem de oferecer uma solução prática para o problema.
Como comprova a experiência (empírica), a “solução simultânea” se mostraria
“especialmente inaplicável pelo fomentador de decisões, nos países subdesenvolvidos”,
(Ibid: 9) impraticável e antieconômica, quer ou não o Governo viesse em auxílio. Sobre
esse ponto, ressalta o autor:
A última cláusula é importante, pois a doutrina do desenvolvimento
equilibrado é geralmente invocada como justificativa para o sentido de
governo centralizado e coordenador do processo de desenvolvimento. Mas tal
justificativa dificilmente convence. Uma tarefa que o empreendimento
privado ou que os valores do mercado sejam incapazes de realizar não se
torna, ipso facto, idealmente adequada à execução pelas autoridades públicas.
Temos de reconhecer que obras há que simplesmente excedem a capacidade
de um grupo social, não importa a quem sejam confiadas. O desenvolvimento
equilibrado, no sentido de desenvolvimento simultâneo, múltiplo, parece ser
uma delas. (Ibid: 90)
Na tentativa de dar fundamento a sua formulação, Hirschman (1982: 11)
procura, em primeiro lugar, generalizar o diagnóstico do subemprego como traço
característico do subdesenvolvimento, argumentando que, ao contrário do que
normalmente afirmam os teóricos do desenvolvimento, “os países subdesenvolvidos
[possuem] efetivamente reservas ocultas [...] não apenas de mão-de-obra, mas de
poupanças, capacidade empresarial e outros recursos”. Assim, se o problema não
consiste na falta de recursos, a solução não deve ser procurada na “importação” dos
recursos faltantes (seja capital, conhecimento técnico, espírito empreendedor etc.): trata-
94
se, na verdade, de “provocar e mobilizar, com propósito desenvolvimentista, os recursos
e as aptidões, que se acham ocultos, dispersos ou mal empregados”. (Ibid: 1961: 19)
Para mobilizar esses recursos de forma “eficiente”, Hirschman defende, ao
contrário de Rodan e Nurkse, uma estratégia de crescimento desequilibrado, que
determine “pontos estratégicos básicos”, assinalando “prioridades de áreas ou setores ou
a modalidade de esforço de industrialização a ser conseguido”. (Ibid: 9) E, assim como
sugerido por Myrdal em sua tese da causação acumulativa, Hirschman acredita que um
impulso inicial em determinados setores tenderia a se espalhar para os demais,
produzindo “progressos adicionais”. (Ibid: 102)
Seção 5.3. Rostow e o manifesto não-comunista: uma síntese do debate?
Como indicado anteriormente, reservamos a terceira seção do presente capítulo
ao tratamento da teoria do desenvolvimento formulada por Rostow, especialmente em
seu clássico As etapas do desenvolvimento econômico: um manifesto não-comunista,
publicado em 1952. Essa opção justifica-se, em primeiro lugar, pelo grande número de
polêmicas suscitadas pelo trabalho, não apenas entre economistas, mas também entre
historiadores e cientistas sociais, em geral.71
Em segundo lugar, entendemos que, apesar
das inúmeras críticas, a teoria de Rostow não dista muito das anteriormente
apresentadas: sustentando uma mesma concepção de desenvolvimento, o autor
incorpora elementos da teoria do crescimento equilibrado e antecipa argumentos
posteriormente defendidos pelos teóricos do crescimento desequilibrado. Mais do que
isso, entendemos que o tratamento dado por Rostow à temática do desenvolvimento é
bastante emblemático e sintetiza a noção de toda essa geração de trabalhos produzidos
no período anterior à crise dos anos 1970.72
Em termos bastante sumários, Rostow (1974: 16) busca nesse trabalho oferecer
uma teoria geral da história, tomando como ponto de partida a observação e
generalização de diversos casos e experiências nacionais de industrialização. Com isso,
o autor chega a um conjunto de cinco etapas de desenvolvimento, dentro das quais
71
Parte das polêmicas foi sistematizada e respondida pelo autor no prefácio e no apêndice (Os críticos e
as evidências) incorporados à segunda edição do livro, dez anos depois. 72
Como pretendemos mostrar no capítulo 7, alguns aspectos da noção de desenvolvimento aqui
apresentada foram, inclusive, recentemente resgatados como base para a formulação de alternativas à
estratégia neoliberal de desenvolvimento, dominante no período pós-1970, sendo uma das mais
conhecidas tentativas de resgate aquela proposta por Ha-Joon Chang (2004) no livro Chutando a escada.
95
qualquer formação social poderia ser enquadrada: a sociedade tradicional, as pré-
condições para o arranco, o arranco, a marcha para a maturidade, e, por fim, a era de
consumo em massa.73
De acordo com essa formulação, o subdesenvolvimento seria uma
simples imagem do passado das economias desenvolvidas, sendo o trânsito de uma
etapa a outra acessível a qualquer país que reunisse as condições necessárias para
tanto.74
Começando com a primeira etapa, Rostow define a sociedade tradicional como
“aquela cuja estrutura se expande dentro de funções de produção limitadas, baseadas em
uma ciência e tecnologia pré-newtonianas, assim como em atitudes pré-newtonianas
diante do mundo físico.” (Ibid) Porém, o ponto central capaz de caracterizar qualquer
uma destas sociedades tradicionais é o fato de estarem todas sujeitas a um teto máximo
de produção per capita – e isto se justifica pelo não conhecimento das potencialidades
que ciência e tecnologia viriam desvendar mais tarde.75
As pré-condições para o arranco são definidas como “a era de transição em que
a sociedade se prepara – ou é preparada por forças externas – para o desenvolvimento
sistemático”. (Ibid: 30) As mudanças que então operam sobre as economias decorrem
fundamentalmente da influência sobre o processo produtivo da ciência moderna em
avanço, em paralelo à expansão do mercado mundial e, consequentemente, da
concorrência internacional. Nas palavras do autor:
Dissemina-se a ideia de que não só é possível o progresso econômico, mas
também que ele é condição indispensável para uma outra finalidade
considerada benéfica: seja ela a dignidade nacional, o lucro privado, o bem-
estar geral, ou uma vida melhor para os filhos. Aparecem novos tipos de
homens de empresa – na economia privada, no governo ou em ambos –
dispostos a mobilizar economias ou a correr riscos visando ao lucro ou à
73
Com essa formulação, Rostow (Ibid: 14) pretende oferecer “uma alternativa à teoria de Karl Marx
sobre a História”, dividida em quatro etapas: o feudalismo, o capitalismo burguês, o socialismo e o
comunismo. Uma apresentação sistemática das semelhanças e diferenças entre as duas perspectivas foi
realizada pelo autor e pode ser vista no capítulo intitulado marxismo, comunismo e etapas do
desenvolvimento. 74
Embora essa supersimplificação do processo histórico, característica do etapismo defendido por
Rostow, tenha sido negada por grande parte dos teóricos do período, uma versão mais branda do etapismo
encontra-se presente, ainda que não explicitamente, em toda a teoria clássica do desenvolvimento (na
medida em que o subdesenvolvimento é encarado, em última instância, como uma etapa prévia ao
desenvolvimento). Uma apresentação crítica desse argumento pode ser vista, por exemplo, em Marini
(1992: 72). 75
“Em termos de História, pois, com o nome „sociedade tradicional‟ nós englobamos todo o mundo pré-
newtoniano; as dinastias da China; a civilização do Oriente Médio e do Mediterrâneo; o mundo da Europa
medieval. E ainda adicionamos as sociedades pós-newtonianas que, por certo tempo, permaneceram
intatas ou indiferentes à nova capacidade do homem para manipular regularmente o meio ambiente tendo
em vista seu proveito econômico”. (Rostow, 1974: 18) Nessa definição de “sociedade tradicional”,
podemos observar um exemplo claro de anacronismo, comum a diversas teorias do período, do qual
falaremos mais detalhadamente na próxima seção.
96
modernização. Despontam bancos e outras instituições destinadas à
mobilização de capital. Crescem os investimentos, notadamente em
transportes, comunicações e matérias-primas em que outras nações possam
ter um interesse econômico. Alarga-se a órbita do comércio interna e
externamente. (Ibid: 19)
Porém, ressalta Rostow, muito tempo se passa até que estejam postas estas
condições, e essa lentidão deve-se ao fato de as economias permanecerem limitadas
pelos métodos tradicionais, pela estrutura social, valores e instituições políticas ainda
remanescentes do período anterior. Principalmente sobre esse aspecto político, Rostow
afirma ser imprescindível ao arranco a constituição de um Estado nacional centralizado,
“aspecto decisivo do período das precondições”. (Ibid: 20)
Terminado este estado transitório, estaria posto, portanto, o arranco, momento
“decisivo da história de uma sociedade em que o desenvolvimento passa a ser sua
condição normal”.76
(Ibid: 52) Apresentando uma noção de desenvolvimento
plenamente compatível com aquela defendida pelos demais autores do período, Rostow
(2010: 181) define esta fase como “o intervalo durante o qual a taxa de investimento
cresce de tal modo que aumenta o produto real per capita, proporcionando esse aumento
inicial transformações radicais nas técnicas de produção e na disposição dos fluxos de
renda que perpetuam a nova escala de investimentos e, assim, perpetuam também a
tendência crescente do produto per capita”. Seria, portanto, uma espécie de “revolução
industrial ligada diretamente a transformações radicais nos métodos de produção e que
obtém resultados decisivos num prazo relativamente curto”.77
(Ibid: 205)
Observamos, portanto, que assim como defendido por Lewis, Rostow (1974: 65)
acredita que o sucesso da estratégia depende não apenas do aumento da renda per
capita, mas também de uma mudança na “disposição dos fluxos de renda” em favor da
“classe poupadora”, sendo essa “uma das ideias mais antigas e básicas da Economia”.
Além disso, defendendo uma estratégia de desenvolvimento um tanto similar à
estratégia de crescimento desequilibrado, Rostow (Ibid: 55-56) insiste que o aumento
expressivo da taxa de investimento com relação ao produto nacional (até 10% do
produto nacional líquido, aproximadamente) deve ser direcionado especialmente para
alguns setores manufatureiros básicos, com elevados índices de crescimento, capazes de
76
Note-se que esta etapa, também conhecida como decolagem (ou take-off), é bastante similar ao grande
impulso (ou big push) de Nurkse: enquanto, para Nurkse, uma economia, ao libertar-se das amarras do
círculo vicioso da pobreza, ingressa em uma situação de crescimento equilibrado, para Rostow, o
estímulo que detona o arranco faz com que o crescimento passe a ser o estado normal da economia. 77
Um quadro com os registros dos períodos de decolagem de alguns países que chegaram à etapa do
crescimento auto-sustentado pode ser visto em Rostow (2010: 187; 1974: 54).
97
gerar estímulos sobre os demais setores da economia. Esses setores, chamados pelo
autor de “líderes”, “devem ser tais que sua expansão e sua transformação técnica
induzam, para o aumento de sua capacidade, uma cadeia de necessidades [...] e o
potencial de novas funções de produção em outros setores, ao que a sociedade deve
responder progressiva e eficazmente”. (Ibid, 2010: 205) Em síntese:
[...] o crescimento rápido de um ou mais novos setores manufatureiros é uma
força poderosa e essencial de transformação econômica. Sua potência deriva
da multiplicidade de formas que seu impacto pode ter, desde que a sociedade
esteja disposta a responder positivamente a ele. O crescimento nesses setores,
com novas funções de produção de elevada produtividade, tende, por si
mesmo, a aumentar o produto per capita, colocando rendas em poder de
gente que não só poupa uma porção mais elevada da renda crescente como
também a empregará em investimentos altamente produtivos; estabelece uma
cadeia de demanda efetiva para outros produtos manufaturados; provoca a
necessidade de maiores áreas urbanas, que podem ter custos de capital
elevados, mas cuja população e organização de mercado contribuem para
fazer da industrialização um processo continuamente em marcha; e,
finalmente, abre um conjunto de economias externas que contribuem, em
última análise, para criar novos setores líderes quando começa a diminuir o
impulso inicial dos setores líderes na decolagem. (Ibid)
Passado esse momento, a capacidade de expansão da riqueza produzida se
tornaria mais ou menos automática e as economias poderiam seguir uma trajetória quase
natural rumo aos limites de suas potencialidades produtivas, até chegar à era do
consumo em massa: “uma fase de que os norte-americanos estão principiando a sair;
cujas alegrias, nem sempre nítidas, a Europa ocidental e o Japão estão começando a
experimentar, e com a qual a sociedade soviética está flertando meio contrafeita”.
(Rostow, 1974: 23) Nessa etapa, possível apenas depois de atingida a maturidade
tecnológica, as sociedades poderiam reconsiderar suas finalidades, valores etc., e
transferir sua atenção da “oferta para a procura, dos problemas de produção para os de
consumo e para os do bem-estar, na mais ampla acepção”. (Ibid: 96)
Em primeiro lugar, as nações poderiam aproveitar o nível elevado de recursos
para aumentar, política e/ou militarmente, seu “poderio e influência no exterior”. (Ibid)
Em segundo lugar, poderiam empregar os “poderes do Estado, inclusive o de
redistribuir a renda por meio de impostos progressivos, para alcançar objetivos humanos
e sociais (abrangendo, nisso, o lazer crescente) que o processo do mercado livre, em sua
forma menos adulterada, não conseguiu”. (Ibid: 96-97) Por fim, “a expansão dos níveis
de consumo para além das necessidades fundamentais de alimentação, habitação e
vestuário” permitiria que essas sociedades chegassem “à órbita do consumo em massa
de bens duráveis de consumo e serviços, que as economias amadurecidas do século XX
podem proporcionar”. (Ibid: 97)
98
A partir daí, a questão levantada por Rostow (Ibid: 114) é a seguinte: o que
esperar para além do consumo em massa? O que aconteceria no momento em que os
indivíduos tivessem acesso a literalmente tudo o que poderiam desejar com a renda que
possuem? Que sentido dariam a suas próprias vidas? Será que a humanidade cairia “em
uma estagnação espiritual, não encontrando nenhuma aplicação digna para suas
energias, talentos, e o instinto para atingir a imortalidade?”
Tomando por referência a última questão, a resposta de Rostow é não, por
enquanto. Antes que os “habitantes de países bem governados e bem administrados”
sejam acometidos pelo tédio, os países desenvolvidos deveriam se empenhar na
resolução de dois problemas diferentes: o primeiro, relacionado à “existência de armas
modernas de destruição em massa que, se não forem domadas e controladas, poderão
solucionar este e todos os outros problemas da raça humana, de uma vez por todas”, e o
segundo, relacionado ao “fato de que toda a metade austral do globo, mais a China, está
envolvida ativamente na etapa das precondições para o arranco ou no arranco
propriamente dito”. (Ibid: 115) Assim,
Estes dois problemas – o da corrida armamentista e o das novas nações
cheias de aspirações – intimamente relacionados no mundo da diplomacia
contemporânea, apresentam, para as sociedades setentrionais tecnicamente
mais amadurecidas, uma ordem do dia das mais trabalhosas, para o que, a
despeito das doçuras dos bens duráveis de consumo dos serviços, e até
mesmo das famílias maiores, devemos voltar nossa atenção se quisermos ter
uma oportunidade de ver se poderá ser vencida a estagnação espiritual
secular – ou o tédio. (Ibid)
Observamos, portanto, que, levadas ao extremo, as projeções feitas por Rostow
para o futuro do capitalismo se aproximam significativamente daquelas realizadas por
Smith: uma vez que as nações mais pródigas são agraciadas com os benefícios do
desenvolvimento, este se espalha progressivamente para os demais, “até o dia em que
[toda a humanidade possa] partilhar as opções abertas na etapa do consumo em massa e
além dela, mas também no processo da marcha para aquela etapa”.78
(Ibid: 198) Aqui,
novamente, Rostow oferece uma versão radicalizada do ideal de desenvolvimento
compartilhado por grande parte das teorias do pós-guerra.
Como veremos no capítulo 7, a possibilidade de realização desse ideal de
sociedade, e consequente expansão do padrão de consumo norte-americano para as
78
Mesmo não havendo uma referência explícita ao trabalho de Smith, o caráter marcadamente etapista da
teoria de Rostow também pode ser visto como uma herança dos autores clássicos. Em A Riqueza das
Nações, por exemplo, tratando das despesas com a defesa nacional, Smith (1996:173pp.) apresenta e
compara a sociedade de caçadores, de pastores, de agricultores e, finalmente, a sociedade comercial. Para
mais sobre o tema, conferir ainda Brewer (2008).
99
demais regiões do globo, foi questionada no próprio âmbito das teorias do
desenvolvimento (que, particularmente preocupadas com a evidente degradação
ambiental decorrente desse modelo de desenvolvimento, passaram a dar tratamento
mais sistemático a questões de cunho ecológico). Mas antes de falar sobre o surgimento
dessa e de outras novas perspectivas, encerramos o capítulo com algumas conclusões
que podem ser extraídas da análise das teorias clássicas do desenvolvimento.
Seção 5.4. Considerações finais
Vale notar de antemão que, assim como nos demais capítulos, as proposições
dessa seção conclusiva não pretendem esgotar o conjunto de considerações críticas
dirigidas às teorias aqui examinadas, sequer no que diz respeito ao argumento do
próprio trabalho. O principal, neste momento, é demonstrar que as teorias sob análise
neste capítulo encontram-se no interior do amplo conjunto de formulações ao qual se
pretende dirigir uma crítica conjunta, fundamentada no desenvolvimento teórico da
parte I e apresentada ao final do trabalho. Neste sentido, o que importa são os elementos
destacados a seguir, identificáveis, de modo diverso, nas interpretações anteriormente
apresentadas.
Em primeiro lugar, observamos que essas teorias compartilham uma mesma
concepção de desenvolvimento, entendido como sinônimo de crescimento do produto
(per capita). Considerando que o produto só adquire homogeneidade, tornando-se
passível de agregação, quando considerado em termos de valor, o desenvolvimento
significa porções crescentes de valor produzido. Como só mercadoria tem valor, essa
noção de desenvolvimento pressupõe que o produto tenha forma mercantil, ou seja,
pressupõe a mercadoria como forma elementar da riqueza.
Mais do que isso, como destacado no apêndice ao capítulo 2, a generalização da
forma mercadoria e, consequentemente, da articulação de unidades produtivas por meio
da troca coloca a necessidade da produção de riqueza material e valor em escala
crescente. As teorias do desenvolvimento, portanto, terminam por projetar sobre toda a
história e sociedades as formas de riqueza e trabalho que são historicamente específicas
do capitalismo, dando inteligibilidade científica ao impulso ao aumento da riqueza (uma
das determinações mais importantes da dinâmica capitalista).
100
Em segundo lugar, observamos que essas teorias compartilham um mesmo ideal
de desenvolvimento (i.e., de crescimento do produto, associado ao aumento da
capacidade de consumo e do bem-estar da população), profundamente influenciado pelo
período de prosperidade e expansão posterior à Segunda Guerra Mundial, também
conhecido como “Era de Ouro” do capitalismo. Como discutido na primeira seção do
capítulo 3, as particularidades desse período (associadas a reorientações de cunho
político-ideológico e no âmbito da estrutura produtiva, posteriormente conhecidas como
fordista-keynesianas) permitiram aos países capitalistas desenvolvidos manter índices
elevados de crescimento do produto, da produtividade, do emprego, dos salários etc.,
garantindo melhorias nas condições de vida da população, em geral. Não é estranho,
portanto, que, diante desse contexto, tenha se disseminado entre a opinião pública, em
geral, e entre os cientistas, em particular, a crença na possibilidade de levar as condições
privilegiadas das nações mais ricas para as nações mais pobres (e que a própria
condição de pobreza tenha sido associada não ao capitalismo em si, mas a um momento
ainda não desenvolvido desse sistema).
Por fim, também não causa estranheza que o anúncio das práticas “corretas”
necessárias à realização de tal projeto fosse plenamente compatível com o (e, por vezes,
uma cópia fiel do) padrão de intervenção e planejamento adotado pelos países “bem
sucedidos”. Por mais difícil que a tarefa tenha parecido a alguns, a convicção de que
seria possível levar o conjunto de práticas “corretas” (juntamente com os recursos, em
alguns casos) para os países subdesenvolvidos pode ainda ser explicada, em parte, pelo
evidente sucesso do Plano Marshall no que tange à reconstrução da Europa Ocidental
arrasada pelas guerras.79
Ainda que o esforço de reconstrução fosse evidentemente
reconhecido como uma situação particular, acreditava-se que os países
subdesenvolvidos poderiam, ao menos, aproveitar o aparato institucional disponível e,
combinando ajuda externa e planejamento, obter o almejado crescimento da riqueza –
assim como se fez, em muitos casos. Essa tarefa mostrava-se ainda mais urgente por
causa da “ameaça” (suposta ou concreta, pouco importa) de avanço do “bloco
comunista” sobre os países que seriam objeto das políticas de desenvolvimento.
Como, de fato, a disparidade entre os níveis de desenvolvimento (tal como
definido anteriormente) das nações capitalistas tem o potencial de provocar
contraditórios e não raramente perniciosos efeitos econômicos e políticos – tais como
79
Sem falar no verdadeiro espanto provocado pela acelerada modernização da Rússia e dos demais países
que compuseram a União Soviética.
101
crises econômicas internacionais, acirramento da competição, guerras, ocupação
colonialista, seria surpreendente se a consciência científica permanecesse alheia aos
problemas trazidos por tal disparidade. Num mundo em que há países considerados
pobres e outros considerados ricos, a ciência não pode se furtar a discutir por que uns
são pobres e outros ricos, nem deixar de lado a pergunta a respeito da melhor maneira
de fazer dos pobres ricos. E como visto ao longo do capítulo, a resposta oferecida pelas
teorias em análise – exatamente como a resposta das teorias apresentadas no capítulo
anterior e no que se segue – foi basicamente a seguinte: recriando nos países pobres as
estruturas das sociedades afluentes, como quer que elas sejam concebidas.
102
Capítulo 6. Teorias clássicas do desenvolvimento (ii): em defesa da
industrialização na América Latina
Além das teorias do desenvolvimento que tratam das regiões subdesenvolvidas
em geral, apresentadas no capítulo anterior, também se destacam no período pré-1970
aquelas teorias que se dedicaram especificamente ao estudo do caso latino americano,
gestadas, em sua maioria, no âmbito da Comissão Econômica para América Latina
(CEPAL). Fundada em 1948 como uma agência regional da Organização das Nações
Unidas (ONU),80
a CEPAL tem como principal objetivo “contribuir para o
desenvolvimento econômico da América Latina, coordenar as ações destinadas a sua
promoção e reforçar as relações econômicas dos países entre si e com as demais nações
do mundo”.81
Assim, apesar do foco na formulação de propostas que orientem os
policy-makers da região, a CEPAL terminou por produzir um entendimento particular a
respeito das causas do subdesenvolvimento, consolidado e refinado durante as décadas
seguintes, mas cujas características gerais são reveladas no seu primeiro documento de
grande repercussão: Estudio económico de la America Latina, publicado em 1949.82
Como explicitado já nas páginas iniciais desse documento, a teoria do
desenvolvimento produzida pela CEPAL, diferentemente das anteriormente
apresentadas, toma como ponto de partida uma crítica explícita à teoria ricardiana das
vantagens comparativas – utilizada, ainda hoje, como base do entendimento
convencional sobre as relações de comércio entre países. Amparados em evidências
empíricas, a CEPAL procurou demonstrar como, ao contrário de gerar benefícios para
todos, a troca entre países desenvolvidos (exportadores de manufaturas) e
subdesenvolvidos (exportadores de produtos primários) gerava resultados positivos para
os primeiros e negativos para os últimos. Nesse sentido, tanto em virtude das diferenças
na estrutura produtiva, quanto em função dos diferentes papéis desempenhados na
divisão internacional do trabalho, a CEPAL passou a chamar esses países de centrais e
periféricos, respectivamente.
80
Que no mesmo período criou Comissões Econômicas para a Europa, Ásia, Extremo Oriente e,
posteriormente, para a África. 81
Para mais informações sobre os propósitos e atividades realizadas pela CEPAL, conferir o sítio da
instituição (www.eclac.org). 82
A seção introdutória do documento, escrita por Raúl Prebisch (2000), que ganhou circulação
independente sob o título O desenvolvimento econômico da América Latina e alguns de seus problemas
principais, tornou-se uma referência do pensamento cepalino do período e também será aqui utilizada
como base para a exposição do argumento.
103
Apesar das inegáveis peculiaridades da teoria cepalina, destrinçadas adiante, é
possível também identificar algumas semelhanças entre o entendimento veiculado pela
instituição e aquele encontrado nas demais teorias do desenvolvimento produzidas no
imediato pós-guerra. Em primeiro lugar, observamos que a noção de desenvolvimento
compartilhada (embora nem sempre explicitada) por essas teorias é essencialmente a
mesma: aumento da renda per capita, na medida em que contribui para o aumento do
“padrão de vida das massas”, ou ainda, do “bem-estar mensurável da coletividade”.
(Prebisch, 2000: 72; 110) Também na teoria cepalina veremos como, ainda que por
motivos distintos, a promoção do desenvolvimento deve necessariamente passar pela
industrialização (tida, nesse caso, como o único mecanismo através do qual seria
possível alterar a estrutura da divisão internacional do trabalho, responsável pela
perpetuação do estado de subdesenvolvimento).
Voltado exclusivamente à apreciação crítica da teoria do desenvolvimento
formulada pela CEPAL no período pré-1970, o presente capítulo encontra-se dividido
em três seções. A seção a seguir busca esclarecer como o subdesenvolvimento é
caracterizado a partir do “sistema centro-periferia” e da tendência à “deterioração dos
termos de troca”. Na segunda, trataremos do papel desempenhado pela industrialização
na estratégia de superação do subdesenvolvimento proposta pela CEPAL. Na terceira e
última seção, resgatamos alguns pontos indispensáveis à compreensão do argumento
aqui defendido, chamando atenção, mais uma vez, para o vínculo existente entre as
teorias do desenvolvimento, o modo de produção capitalista em geral e o contexto
histórico em particular.
Seção 6.1. O “sistema centro-periferia” e a deterioração dos termos de troca
Como indicado anteriormente, o principal objetivo dos estudos pioneiros
produzidos pela CEPAL é encontrar explicações para o atraso dos países latino-
americanos, e, consequentemente, apontar a melhor forma de superá-lo. Nesse sentido,
utilizando uma metodologia de análise posteriormente conhecida como “histórico-
estruturalista”,83
a CEPAL busca explicar o subdesenvolvimento fundamentalmente a
partir do “sistema centro-periferia”, capaz de revelar não apenas as diferenças nas
83
Segundo Bielschowsky (2000: 21), este método de análise tornar-se-ia uma das marcas distintivas do
pensamento da CEPAL. Uma descrição minuciosa do estruturalismo latino-americano pode ser vista
ainda em Rodríguez (1981, 2009).
104
estruturas socioeconômicas, mas também a sua perpetuação ao longo do tempo
(determinada, basicamente, pelo mecanismo de difusão do progresso técnico e de
distribuição dos ganhos desse progresso entre os diferentes países).
De acordo com essa formulação, a diferença entre economias centrais e
periféricas teria sua origem, antes de tudo, no longo processo de consolidação e
expansão do modo de produção capitalista, ocorrido, fundamentalmente, a partir da
Revolução Industrial.84
Assim, os países centrais seriam aqueles pioneiros no processo
de industrialização e incorporação das técnicas capitalistas de produção, em torno dos
quais vai se formando, progressivamente, uma periferia “vasta e heterogênea”, com
“participação escassa no aperfeiçoamento da produtividade”. (CEPAL, 2000a: 139)
Além disso, enquanto os países centrais seriam caracterizados pela grande capacidade
de absorção e difusão do progresso técnico para as mais distintas atividades, na
periferia, ao contrário, “o progresso técnico só se dá em setores exíguos de sua imensa
população, pois, em geral, penetra unicamente onde se faz necessário para produzir
alimentos e matérias-primas a custo baixo, com destino aos grandes centros
industrializados”. (Ibid)
Tanto em função da posição relativamente privilegiada de que partem os países
centrais, quanto em função do mecanismo de difusão do progresso técnico no interior
dos países, consolidam-se estruturas produtivas bastante diferentes nos países centrais e
periféricos: diversificadas e homogêneas nos primeiros e especializadas e heterogêneas
nos últimos.85
Associado a isso, assiste-se também à consolidação de uma estrutura de
divisão internacional do trabalho dentro da qual caberia “à América Latina, como parte
da periferia do sistema econômico mundial, o papel específico de produzir alimentos e
matérias-primas para os grandes centros industriais”. (Prebisch, 2000: 71)
84
Como consta no documento de 1949, a formação dos grandes centros industriais teria sido resultado de
um movimento que se iniciou “na Grã-Bretanha, prosseguiu com graus variáveis de intensidade no
continente europeu, adquiriu um impulso extraordinário nos Estados Unidos e finalmente abrangeu o
Japão, quando este país se empenhou em assimilar rapidamente os modos de produção ocidentais”.
(CEPAL, 2000a: 139) Uma análise similar sobre o marco histórico do processo desenvolvimento-
subdesenvolvimento também pode ser vista em Sunkel (1973). 85
Apenas para enfatizar, a estrutura produtiva periférica era entendida como especializada porque se
amparava, quase que exclusivamente, no setor ligado aos produtos de exportação, “com baixo grau de
diversificação e com complementariedade intersetorial e integração vertical extremamente reduzidas”.
(Bielschowsky, 2000: 32) Uma vez que apenas aquele setor (e alguns poucos a ele associados) conseguia
absorver tecnologias modernas, configurava-se igualmente uma fratura da estrutura produtiva, marcada
pela coexistência de setores modernos e atrasados, conformando a chamada heterogeneidade estrutural.
Como observam Bielschowsky (Ibid) e Rodriguez (1981: 50), no entanto, ainda que se aplique à
formulação cepalina dos anos 1950, o conceito de “heterogeneidade estrutural” só seria utilizado pela
primeira vez por Aníbal Pinto, na década de 1960.
105
De acordo com a interpretação dominante, compartilhada por grande parte das
teorias do desenvolvimento e amparada, ainda que nem sempre de modo explícito, na
teoria ricardiana das vantagens comparativas, essa especialização seria benéfica para
todas as partes envolvidas. Isso porque, se cada país se especializasse naquela atividade
em que possui vantagens relativas, o comércio internacional terminaria por distribuir os
frutos do progresso técnico pelos diferentes países, de maneira equitativa, através da
queda dos preços (e correspondente aumento do poder de compra), promovendo uma
convergência da riqueza das nações.
Assim, se as variações nos preços efetivamente acompanhassem as variações de
produtividade, um aumento de produtividade mais intenso nas indústrias dos países
centrais do que nos setores primários periféricos deveria vir acompanhado de uma
queda nos preços dos produtos manufaturados superior à queda nos preços dos produtos
primários. Nesse caso, “a relação de preços entre ambos teria melhorado
persistentemente em favor dos países da periferia, à medida que se desenvolvesse a
disparidade das produtividades”, (Ibid: 80-81) indicando que, com a mesma quantidade
de produtos primários, seria possível adquirir uma quantidade maior de produtos
manufaturados. Não haveria, portanto, qualquer incentivo à industrialização na América
Latina: “antes, haveria uma perda efetiva, enquanto não se alcançasse uma eficiência
produtiva igual à dos países industrializados”. (Ibid)
No entanto, não era esse o comportamento revelado pelos dados sobre a relação
entre os preços dos produtos primários e os preços dos artigos finais da indústria,
divulgados em um dos relatórios publicados pela ONU, também em 1949, extensamente
utilizados pela CEPAL. Ao contrário da variação de preços em favor da periferia, os
dados mostraram que entre o final do século XIX e meados do século XX houve uma
variação de preços em benefício dos países centrais – fenômeno também conhecido
como deterioração dos termos de troca.86
Assim, além de não receber parte do fruto da
maior produtividade dos países centrais, os países periféricos não teriam sido capazes de
“reter para si todo o benefício do seu próprio progresso técnico, por terem tido que
ceder uma parte dele aos produtores industriais”. (CEPAL, 2000a: 143-144) De acordo
com argumento defendido pela instituição, portanto, o que se observa ao longo do
tempo é uma transferência dos ganhos de produtividade das regiões periféricas para as
86
Uma ideia muito similar foi apresentada de modo independente, também em 1949, por Hans Singer no
artigo The distribution of gains between investing and borrowing countries.
106
regiões centrais, promovendo disparidades crescentes, ao invés de homogeneização da
riqueza mundial.
Apesar da tendência geral à deterioração dos termos de troca, também era
possível perceber que o movimento de cessão dos benefícios do progresso técnico não
seguia um padrão uniforme, mudando de direção e intensidade, em função de diversos
fatores explorados pela CEPAL ao longo do relatório. Para compreender esse ponto, no
entanto, é preciso ter em mente as já mencionadas diferenças das estruturas produtivas
centrais e periféricas, os diferentes papéis desempenhados por essas economias na
divisão internacional do trabalho e, a partir disso, observar a forma como cada uma
delas se comporta diante das flutuações cíclicas.
Como visto anteriormente, os países centrais seriam aqueles dotados de
estruturas produtivas diversificadas e homogêneas, exportadores de produtos
industrializados, e os países periféricos caracterizados pela estrutura produtiva
especializada e heterogênea e pela exportação de produtos primários. Considerando
ainda que produção industrial e primária possui efeitos dinâmicos bastante distintos –
ou seja, que o aumento da atividade industrial é capaz de fomentar a atividade primária,
enquanto o inverso não se verifica (argumento que também será utilizado na defesa da
industrialização), as fases ascendentes do ciclo, de aquecimento das atividades
econômicas no centro terminariam por aumentar a demanda por produtos primários
(alimentos e matérias-primas). Durante essa fase, portanto, o crescimento da demanda
em relação à oferta geraria uma pressão “altista” sobre preços, lucros e salários, tanto no
centro, quanto na periferia. Quando, nesse processo, o aumento dos preços dos produtos
primários superasse o aumento dos preços dos produtos finais (tendência que, de acordo
com a CEPAL, poderia ser efetivamente observada nas fases cíclicas ascendentes),
teríamos uma transferência de lucros do centro para a periferia. (Prebisch, 2000: 86)
Ainda segundo esse argumento, os desajustes nos termos de intercâmbio
aconteceriam no momento de reversão do ciclo. Isso porque, se os “preços primários
sobem com mais rapidez do que os finais na fase ascendente, [...] também descem mais
do que estes na fase descendente, de tal forma que os preços finais vão se distanciando
progressivamente dos primários através dos ciclos”. (Ibid) Tal fenômeno seria, em
termos gerais, um reflexo da rigidez à baixa dos preços dos produtos industrializados
nas fases descendentes dos ciclos, determinada, fundamentalmente, pela resistência à
queda dos salários. Essa resistência à queda dos salários, por sua vez, seria resultado do
107
maior poder de organização da classe trabalhadora nos países centrais, capaz não só de
conseguir ganhos salariais significativos nas fases ascendentes, mas também de impedir
a queda do seu padrão de vida nas fases descendentes.
Na periferia, ao contrário, “a desorganização característica das massas
trabalhadoras na produção primária, especialmente na agricultura [...], impede-as de
conseguirem aumentos salariais comparáveis com os que vigoram nos países
industrializados, ou de mantê-los com amplitude similar”. (Ibid: 87) Assim,
considerando a menor resistência à contração de renda (sejam lucros ou salários) nos
países periféricos e o fato de ser a própria demanda por produtos primários dependente
da demanda por produtos industrializados, os países centrais acabariam encontrando
maior facilidade para “deslocar a pressão cíclica para a periferia, obrigando-a a contrair
sua renda mais acentuadamente do que nos centros”. (Ibid) Em suma:
[...] durante os ciclos, as relações de preços deslocam-se em favor dos
produtos primários, nas fases crescentes; mas, em geral, nas fases
decrescentes, perdem mais do que tinham ganhado durante o curso das
primeiras. Assim, ao cair a relação de preços a cada depressão, mais do que
havia melhorado na prosperidade, desenvolve-se através dos ciclos a
tendência contínua ao agravamento dos termos de intercâmbio. (CEPAL,
2000a: 157-158)
Com isso, a CEPAL acredita ter mostrado como a dinâmica do capitalismo no
plano internacional seria responsável não apenas pela produção de países ricos e países
pobres, centrais e periféricos, mas também pela perpetuação dessa desigualdade. Como
esperamos mostrar na próxima seção, no entanto, essa não seria, para a CEPAL, uma
situação de todo irremediável: a superação do subdesenvolvimento e da condição
periférica poderia, a despeito de todas as dificuldades, ser alcançada por meio da
industrialização.
Seção 6.2. Em defesa da industrialização na América Latina
Como procuramos mostrar ao longo da seção anterior, além de ressaltar os
fatores socioeconômicos inerentes às economias subdesenvolvidas, a interpretação
proposta pela CEPAL sugeria que a forma específica de inserção dessas economias no
sistema de trocas internacionais, como exportadora de produtos primários, determinava,
em última instância, sua incapacidade de reter e acumular internamente os frutos de seu
progresso técnico mantendo, assim, esses países em uma condição periférica. Diante
dessa caracterização geral, a estratégia de superação do subdesenvolvimento deveria
108
passar, necessariamente, pela mudança da inserção latino-americana na divisão
internacional do trabalho, e a única forma de operar essa alteração, segundo a CEPAL,
seria através da industrialização. Nos termos de Prebisch (2000: 72): “Daí a importância
fundamental da industrialização dos novos países. Ela não constitui um fim em si, mas é
o único meio de que estes dispõem para ir captando uma parte do fruto do progresso
técnico e elevando progressivamente o padrão de vida das massas”.
Na verdade, como afirmado explicitamente pelo próprio Prebisch (1983: 1079),
anos depois, as análises realizadas durante aquele período tratavam de apresentar
justificativa teórica para o processo de industrialização já em curso em alguns países da
América Latina, estimular aqueles que ainda não haviam iniciado tal processo e oferecer
a todos um plano de ação. E esses esforços de reflexão e proposição (que davam sentido
à existência da própria CEPAL) mostravam-se tanto mais necessários, pois, ao mesmo
tempo em que a industrialização apresentava-se como uma alternativa para a promoção
do desenvolvimento na América Latina, tornavam-se cada vez mais evidentes as
dificuldades envolvidas nesse processo.
Sobre os primeiros passos no caminho da industrialização trilhados pelos países
latino-americanos, é preciso chamar atenção, em primeiro lugar, para o fato de terem
sido impulsionados, grosso modo, pelas restrições ao comércio internacional impostas
pelas duas Grandes Guerras e pela grande depressão dos anos 1930. Diante desses
eventos, portanto, países até então marcados por uma dinâmica de desenvolvimento
voltada para fora, i.e., estimulada predominantemente pelo crescimento das
exportações, foram impelidos a adotar um novo padrão de desenvolvimento voltado
para dentro, i.e., marcado pela ampliação e diversificação da atividade industrial e pelo
fortalecimento do mercado interno. Essa primeira etapa de industrialização espontânea,
resultado da reação das economias periféricas aos sucessivos desequilíbrios no balanço
de pagamentos, também ficaria conhecida como industrialização via substituição de
importações (expressão presente já nos primeiros documentos produzidos pela CEPAL,
mas consagrada a partir da publicação do trabalho de Maria da Conceição Tavares
(1973), no início dos anos 1960).
Em segundo lugar, a industrialização via substituição de importações não deve
ser confundida com um ataque à produção primária, com a busca da auto-suficiência ou
repúdio ao comércio internacional. Ao contrário, na medida em que o crescimento da
produção primária voltada para a exportação era responsável pelo fornecimento de parte
109
dos recursos necessários ao crescimento da indústria, em um contexto de escassez de
divisas internacionais, o aperfeiçoamento desse setor deveria ser visto, nos termos de
Prebisch (Ibid: 73), como “uma das condições essenciais para que o desenvolvimento da
indústria [pudesse] ir cumprindo o objetivo social de elevar o padrão de vida”. Apenas
para reforçar o entendimento da perspectiva acima apresentada: “a solução não está em
crescer à custa do comércio exterior, mas em saber extrair, de um comércio exterior
cada vez maior, os elementos propulsores do desenvolvimento”. (Ibid)
Na formulação proposta por Tavares (1973: 34), a mesma questão poderia ser
colocada nos seguintes termos: ainda que o processo de industrialização tenha sido
responsável por um deslocamento do eixo dinâmico da economia – da variável exógena
“exportação”, para a variável endógena “investimento”, setor exportador e comércio
internacional continuariam a desempenhar um papel relevante, contribuindo para a
diversificação da estrutura produtiva através das importações. No entanto, de acordo
com Tavares (Ibid), seria preciso ainda chamar atenção para o caráter parcial e fechado
das transformações operadas nos países periféricos durante esse período: parcial, pois a
sobrevivência de uma “base exportadora precária e sem dinamismo” foi responsável, em
grande medida, pela manutenção do estrangulamento externo; e fechado, pois as
mudanças na divisão social do trabalho não foram em absoluto acompanhadas por
simultânea transformação na divisão internacional do trabalho. Nos termos da autora, o
processo de substituição de importações deve ser entendido, portanto, “como um
processo de desenvolvimento „parcial‟ e „fechado‟ que, respondendo às restrições do
comércio exterior, procurou repetir aceleradamente, em condições históricas distintas, a
experiência de industrialização dos países desenvolvidos”. (Ibid: 35)
Sobre esse último ponto, é importante ressaltar que o reconhecimento dos
contrastes e disparidades entre o processo tardio de industrialização na América Latina e
aquele experimentado pelos países hoje centrais, quando consolidaram suas indústrias
no final do século XIX, desempenharam um papel central na definição da estratégia de
industrialização e serviram, em conjunto com outros motivos, como amparo para a
defesa da intervenção do Estado na economia proposta pela CEPAL.
Apenas para oferecer um panorama geral, os principais contrastes e disparidades
poderiam ser agrupados em torno de um problema fundamental: a dificuldade de
incorporação das técnicas modernas de produção pelos países latino-americanos. Entre
as dificuldades mais ressaltadas nos documentos produzidos pela instituição, destaca-se,
110
em primeiro lugar, aquela relacionada à escassez de poupança.87
Isso porque, enquanto
no período inicial do processo de industrialização dos países centrais a pouca
disponibilidade de recursos (determinada pela baixa renda per capita) mostrava-se
compatível com a quantidade (também baixa) de capital exigida para o emprego das
técnicas existentes, a incorporação das técnicas modernas pelos países da América
Latina, na medida em que exige uma quantidade considerável de recursos, tropeça
constantemente na escassez de poupança (decorrente do baixo nível de renda per
capita). (CEPAL, 2000a: 163)
Além disso, no caso dos países periféricos, a produção em grande escala também
esbarraria em limites impostos pelo lado da demanda. Isso porque, enquanto nos países
centrais “a renda originalmente exígua coincidiu com formas de produção de escala
proporcionalmente reduzida” – havendo tempo para que o aumento da renda
acompanhasse o aumento de produtividade e garantisse a absorção do aumento de
produção – nos países que incorporam tardiamente as técnicas industriais modernas, “a
demanda é baixa porque a produtividade é pequena, e esta o é porque a demanda exígua
se opõe, por sua vez, juntamente com outros fatores à utilização de elementos de técnica
mais avançada”.88
(Ibid: 164) Sobre o lado da demanda, poderia ser mencionado ainda o
conhecido “efeito demonstração”, que produz na população periférica o desejo de
manter um padrão de consumo equivalente ao padrão de consumo dos países centrais e
gera impactos negativos sobre a poupança e o balanço de pagamentos.
Por fim, a incorporação de técnicas modernas também esbarraria, no caso dos
países periféricos, no excesso de população. Como se sabe, o progresso técnico implica
normalmente a substituição de técnicas mais intensivas em mão-de-obra por técnicas
mais intensivas em capital (e poupadoras de mão-de-obra), tanto nos países centrais,
quanto nos países periféricos. Nos países centrais, no entanto, o florescimento das
indústrias de bens de capital acabaria servindo como “poderoso elemento de absorção
da mão-de-obra desempregada”. Como nos países periféricos geralmente o setor de bens
87
Não poderia deixar de notar com certa estranheza o fato de a CEPAL ter incorporado em sua
formulação, nesse ponto particular, um dos axiomas fundamentais de toda teoria ortodoxa: a ideia de que
o investimento tem por pressuposto a poupança. Vale ressaltar, inclusive, que esse talvez tenha sido um
dos pontos centrais da crítica dirigida por Tavares e Serra (1973: 159pp.) a Celso Furtado, evidenciado
quando afirmam que “Furtado parece ter vestido a „camisa de força‟ de um modelo neoclássico de
equilíbrio geral – elegante, mas ineficaz para explicar a dinâmica de uma economia capitalista”. 88
Essa é uma tese muito difundida a partir do trabalho clássico de Alexander Gerschenkron (1962) sobre
o perfil diferenciado dos países de industrialização retardatária. No caso da industrialização brasileira, um
estudo clássico sobre a especificidade que explica e provoca o “atraso” no processo de industrialização é
aquele oferecido por João Manuel Cardoso de Mello (1982).
111
de capital é incipiente (ou inexistente), não apenas o mecanismo de absorção de mão-
de-obra deixaria de funcionar, mas também a demanda por bens de capital “passa a
provocar efeitos na economia dos centros industrializados, onde esses bens de capital
são produzidos”. (Ibid: 167) Além disso, considerando o nível baixo de salários
encontrado nos países periféricos, nem sempre a introdução da novas tecnologias se
mostraria economicamente interessante. (Ibid: 168)
Nesse sentido, ainda que a CEPAL (Ibid: 164) tenha reconhecido as vantagens
de “encontrar nos grandes centros uma técnica que custou a estes muito tempo e
sacrifício”, as inúmeras “desvantagens inerentes ao fato de acompanharem tardiamente
a evolução dos acontecimentos” tornavam a atuação deliberada do Estado na promoção
do desenvolvimento ainda mais importante no caso dos países periféricos. Além de
produzir a já mencionada deterioração dos termos de troca (responsável pela
manutenção da condição periférica), no plano internacional, o livre jogo das forças de
mercado também não seria capaz de corrigir os problemas acima enunciados. Nos
termos de Prebisch (1983: 1083), “as mudanças estruturais inerentes à industrialização
requerem racionalidade e visão de uma política governamental e investimento em
infraestrutura para acelerar o crescimento econômico, obter uma relação adequada entre
a indústria e a agricultura e outras atividades, e reduzir a vulnerabilidade externa.
Portanto, [há] fortes razões em favor do planejamento”.
Seção 6.3. Considerações finais
Uma vez apresentadas as linhas gerais da teoria do desenvolvimento produzida
no âmbito da CEPAL, dedicamos esta seção de encerramento do capítulo à indicação de
alguns elementos que permitam reunir a formulação cepalina no conjunto mais amplo
de concepções que encaram o desenvolvimento exclusivamente em termos da
reprodução, em escala universal, das relações sociais capitalistas. Iniciamos, portanto,
resgatando alguns pressupostos fundamentais compartilhados pela teoria cepalina e as
demais teorias do desenvolvimento formuladas no período: a despeito das
particularidades, compartilham todas uma mesma noção de desenvolvimento (que toma
como pressuposto a forma elementar de riqueza característica do capitalismo), uma
mesma estratégia de desenvolvimento (que toma como pressuposto o modo industrial de
112
produzir) e um mesmo ideal de desenvolvimento (espelhado nos países capitalistas
desenvolvidos).
Com a indicação desses elementos comuns às teorias analisadas nos três últimos
capítulos, não pretendemos, no entanto, negar a existência de especificidades – sejam
elas determinadas por fatores de origem histórica, geográfica, teórica, ideológica etc. No
que diz respeito ao referente histórico-geográfico, por exemplo, vale recordar que as
reflexões produzidas pela CEPAL estavam particularmente direcionadas para a situação
dos países latino-americanos. Do mesmo modo, no que tange aos fatores teórico-
ideológicos, também não podemos deixar de reconhecer o fato de que todo o conjunto
de teorias associadas à CEPAL, ou ao estruturalismo de modo mais amplo, é construído
como crítica do ideário liberal-conservador. Nesse sentido, é preciso perceber que o
ideal de desenvolvimento projetado pela CEPAL efetivamente difere, em certos
aspectos, da imagem veiculada pelas teorias de inspiração liberal – basta lembrar, por
exemplo, a visão cepalina sobre o funcionamento do mercado no plano internacional ou
sobre a necessidade do planejamento, cientificamente amparado – e, por esse motivo,
reclama o estatuto de “teoria crítica”.
Considerando, no entanto, que a CEPAL articulava uma imagem de futuro que
tinha também como contraponto o ideal construído em torno do “socialismo realmente
existente”, não fica difícil concluir que se trata de mais uma instância de uma visão de
mundo conservadora. Enquadrando essas ideias no contexto mais amplo do mundo
bipolarizado do pós-guerra, não fica difícil perceber o papel desempenhado por parte
das comissões regionais (criadas todas naquele mesmo período) na “domesticação
ideológica” do Terceiro Mundo. (Marini, 1992: 73-74) Como já havíamos indicado, o
objetivo da CEPAL e das demais comissões era estudar os problemas específicos de
cada uma das regiões e propor políticas para a promoção do desenvolvimento
capitalista, respondendo, com isso, às inquietações provocadas pela emergência de
inúmeros novos Estados nacionais e à percepção das enormes desigualdades de renda no
plano internacional.
Portanto, o fato de se constituir como crítica do ideário liberal-conservador não
deve levar à conclusão de que as ideias cepalinas conformam uma crítica da sociedade
capitalista enquanto tal. Como já ressaltado, a crítica científica pode assumir diversas
feições e se expressar em diversos planos – sendo possível até mesmo afirmar que todas
as teorias, inclusive as mais conservadoras, constroem-se como críticas (seja do senso
113
comum formado sobre um determinado objeto, seja de interpretações científicas
concorrentes). No entanto, quando nos referimos a alguma perspectiva autenticamente
“crítica” neste trabalho, tomamos por referência teorias que dirigem suas colocações
explicitamente não apenas contra outras ideias, mas também contra as formas de
existência objetiva que as reclamam como ideias correntes, necessárias.89
Se a teoria cepalina atende ao primeiro critério, pois recusa as concepções
econômicas ortodoxas e procura demonstrar sua falsidade, não se pode afirmar que
atende ao segundo, porque jamais se pergunta se as concepções ortodoxas são ou foram
concepções necessárias à reprodução do capitalismo num período determinado. Não é
por outra razão que os autores inspirados nas ideias cepalinas tomam as teorias
ortodoxas como produção científica de menor valor, mesmo quando a ortodoxia
demonstra-se de fato ortodoxa, isto é, hegemônica.
Para quem observa os dois conjuntos teóricos desde uma perspectiva externa,
entretanto, suas divergências no plano teórico, e mesmo no plano político-ideológico,
podem ser tomadas como a expressão de condições concretas da reprodução sistêmica,
que se alteram ao longo do tempo. Por isso, podem ser minimizadas, ainda que não
negligenciadas, na compreensão do processo de desenvolvimento das próprias ideias.
Essa é justamente a perspectiva assumida neste trabalho, razão pela qual julgamos
pertinente dirigir à CEPAL e ao seu antagonista direto (a explicação convencional do
desenvolvimento) uma única e mesma crítica.
89
O melhor exemplo de crítica científica autêntica, tomada como referência no presente trabalho, é
certamente aquela dirigida por Marx à ciência econômica, que aparece em diversos dos seus trabalhos,
mas ganha forma mais bem acabada em O Capital. Uma explicação sintética do caráter peculiar da crítica
de Marx pode ser encontrada em Duayer (2001).
114
Capítulo 7. As tendências do debate sobre desenvolvimento no pós-1970
Apresentadas as principais contribuições à teoria do desenvolvimento
produzidas em seu período de nascimento e proliferação (i.e., entre as décadas de 1940
e 1960), dedicamos o presente capítulo à indicação das mudanças mais substantivas
sofridas pela temática do desenvolvimento no período posterior à década de 1970. Esse
recorte justifica-se, como já indicado, pois a crise dos anos 1970 – conhecida pela
“inusitada” combinação de estagnação (baixo crescimento) e inflação – marca uma série
de profundas transformações na economia mundial que não poderiam deixar de refletir-
se no estudo sobre desenvolvimento econômico. Como reconhecido por diversos
comentadores (e mesmo por alguns teóricos do desenvolvimento),90
a crise dos anos
1970, aliada à posterior ruína do socialismo real, refletiu-se inicialmente em uma crise
para a disciplina, seguida de substantivas reorientações.
Em primeiro lugar, a crise na disciplina assume a forma de um crescente
ceticismo quanto à possibilidade de superação do subdesenvolvimento e promoção da
tão almejada convergência da riqueza das nações. Assim, as décadas de 1960 e 1970 são
marcadas pelo surgimento de inúmeros trabalhos questionando a possibilidade de
realização do ideal de desenvolvimento compartilhado pelas concepções “clássicas” do
desenvolvimento, mesmo entre autores profundamente identificados com aquelas
teorias. No caso latino-americano, por exemplo, é bastante emblemática a inflexão
ocorrida no âmbito da CEPAL e o aparecimento do conjunto de formulações conhecido
como teorias da dependência – que, apesar da não homogeneidade, compartilham o
entendimento de que o sistema econômico mundial, por sua própria constituição, produz
desenvolvimento de alguns às custas do subdesenvolvimento de outros.91
90
Cf.: Hirschman (1982). 91
Além da saída de Prebisch, em 1963, a inflexão ocorrida no âmbito da CEPAL se faz sentir,
especialmente, nos trabalhos de Anibal Pinto (Chile, um caso de desenvolvimento frustrado, de 1962),
Celso Furtado (Subdesenvolvimento e estagnação, de 1966) e Oswaldo Sunkel (Mudança social e
frustração no Chile, de 1965), considerados representantes do debate sobre dependência formado no seio
da instituição. Para além dessas contribuições, as teorias da dependência podem ser divididas em duas
grandes vertentes: a primeira, de declarada orientação marxista, descendente direta da tradição leninista
da teoria do imperialismo, é inaugurada com os trabalhos de André Gunder Frank (Capitalismo e
Subdesenvolvimento na América Latina, de 1967), Theotonio dos Santos (A Estrutura da Dependência,
1970) e Ruy Mauro Marini (Dialética da Dependência, de 1972); e a segunda, comumente caracterizada
como a vertente weberiana da teoria da dependência, foi elaborada a partir do trabalho pioneiro de
Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto (Dependência e Desenvolvimento na América Latina, de
1970). As teorias da dependência, no entanto, não serão aqui tomadas como objeto de estudo por se
proporem, ao menos na sua vertente marxista, como crítica externa das teorias de desenvolvimento
115
Por outro lado, observa-se o surgimento de toda uma nova literatura decidida a
provar que o fracasso na promoção do desenvolvimento não deriva da impossibilidade
de realização do projeto em si, mas das estratégias adotadas para promovê-lo
(especialmente aquelas focadas na industrialização com intervenção do Estado na
economia). Na verdade, esse expediente crítico pode ser visto como reflexo de uma
mudança mais ampla no plano político-ideológico, marcada pelo enfraquecimento do
keynesianismo e ressurgimento da ideologia liberal (renovada sob a roupagem do
neoliberalismo). Nesse sentido, além da tentativa de demonstrar os equívocos das
estratégias de desenvolvimento baseadas na intervenção e no planejamento, as
principais contribuições nesse campo entendem que a resolução de problemas
característicos dos países subdesenvolvidos depende, fundamentalmente, da ampliação
da liberdade de mercado.
Finalmente, esse contexto também é marcado pelo surgimento de teorias que
acreditam que o problema do desenvolvimento não está no seu caráter “mitológico” ou
nos equívocos estratégicos, mas na própria definição de desenvolvimento. Assim,
embora diversos autores continuem a tratar o desenvolvimento econômico como
sinônimo de crescimento do produto – como pode ser visto, por exemplo, nos novos
modelos de crescimento que utilizam aparatos matemáticos e estatísticos cada vez mais
sofisticados –, ganha força durante esse período a perspectiva segundo a qual o
desenvolvimento não pode ser entendido como sinônimo de crescimento do produto.
Uma reorientação bastante significativa no debate sobre desenvolvimento,
portanto, está relacionada à alteração mais profunda na noção de desenvolvimento. Com
a constatação de que o processo de intensa industrialização do período anterior, além de
produzir evidentes danos ambientais, não foi capaz de conduzir a uma situação
considerada suficientemente igualitária e promover a desejada convergência da riqueza
das nações, novas dimensões foram sendo progressivamente incorporadas à ideia de
desenvolvimento, que se torna mais “fragmentada”: não bastaria mais falar naquele
“desenvolvimento econômico” medido somente em termos da produção nacional
(preferencialmente a produção per capita, incapaz de revelar as desigualdades
distributivas) e que teria como meta diminuir as disparidades de renda entre as nações,
mas de um desenvolvimento que é sustentável em sentido amplo, ou seja, baseado em
convencionais (i.e., daquelas formuladas no interior da ciência econômica). Investigar se essa alegação de
externalidade é justificada exigiria um trabalho à parte.
116
uma sustentabilidade física (ecológica), econômica (de durabilidade ao longo do tempo)
e social (inclusiva).
Além da incorporação das novas temáticas (especialmente da equidade e da
sustentabilidade) no debate sobre desenvolvimento, é possível perceber também que a
derrocada do “socialismo” real fez praticamente desaparecerem as discussões sobre o
caráter histórico do capitalismo e as possibilidades de pensar o desenvolvimento para
além dos marcos desse modo de produção. O resultado é que, nas formulações mais
recentes, o grau de confiança no poder dos mercados e do Estado passa a ser o alvo
exclusivo das disputas. Ou seja, enquanto as teorias dominantes sustentam a
precedência do irrestrito funcionamento do mercado sobre o dirigismo estatal (sem
ignorar a eventual necessidade do Estado, especialmente na garantia do bom
funcionamento dos mercados), as teorias heterodoxas defendem uma participação mais
ativa do Estado (sem negar, no entanto, a importância do mercado forte). O debate,
enfim, gira em torno do grau de intervenção do Estado necessário para objetivar a
sociedade projetada pelas diferentes teorias do desenvolvimento.
Na tentativa de oferecer um panorama geral da forma como o desenvolvimento é
tratado a partir da década de 1970, o presente capítulo divide-se em duas seções. Na
primeira, serão apresentadas algumas das principais temáticas incorporadas ao debate
sobre desenvolvimento, com especial ênfase na contribuição de Amartya Sen para a
redefinição do conceito. Na segunda, trataremos das tentativas de redefinição das
estratégias de desenvolvimento centradas no debate Estado x Mercado. Para tanto,
começamos com a ofensiva neoliberal sistematizada na agenda do Consenso de
Washington, seguida de perspectivas mais “conciliadoras”, como aquelas contidas na
agenda do Pós-Consenso e da Nova CEPAL, por exemplo. Feito isso, utilizamos a
contribuição de Ha-Joon Chang como ilustração de um movimento mais recente de
surgimento de perspectivas que, partindo de uma crítica às “boas políticas” prescritas
pelo Consenso de Washington, resgatam as teorias “clássicas” do desenvolvimento e,
junto com elas, a velha noção de desenvolvimento (associada ao planejamento e
industrialização).
117
Seção 7.1. A requalificação do debate sobre desenvolvimento
Como visto nos três capítulos anteriores, uma das principais semelhanças entre
as teorias do desenvolvimento produzidas no período pré-1970 é o fato de tomarem o
desenvolvimento como sinônimo de aumento da riqueza (medida pelo crescimento do
produto per capita) e compartilharem, de modo quase unânime, o entendimento de que
a realização desse objetivo deve passar pela industrialização das economias
subdesenvolvidas, o que quer dizer que todas aquelas colocações, a despeito de sua
diversidade, projetam para o futuro de todas as nações uma sociedade capitalista num
formato determinado. Isso não significa, evidentemente, que as teorias “clássicas” do
desenvolvimento tenham desprezado a necessidade de o crescimento econômico ser
acompanhado por uma melhoria nas condições de vida da população, por vezes
explicitamente mencionada como o objetivo último do desenvolvimento. No entanto,
considerando as experiências “bem sucedidas” dos chamados países desenvolvidos e a
disseminação da crença segundo a qual o aumento na qualidade de vida seria um
resultado quase inexorável do crescimento do produto, a renda per capita serviu durante
aqueles anos como o principal critério de mensuração e avaliação dos diferentes graus
de desenvolvimento das nações.
Diante dos resultados pouco animadores decorrentes da implementação de
estratégias de superação do subdesenvolvimento, das inúmeras denúncias sobre a
devastação do meio ambiente resultante do processo de industrialização e da
constatação de que esse processo não havia se traduzido em uma distribuição mais
equitativa da renda, assiste-se à proliferação de questionamentos sobre o caráter positivo
do processo de desenvolvimento, tal como concebido até então. Assim, especialmente
durante as décadas de 1980 e 1990, entram subitamente em cena novas formulações
argumentando que o desenvolvimento deve envolver a realização de objetivos mais
amplos, como, por exemplo, equidade, sustentabilidade, melhoria no acesso a bens
como saúde, educação etc. Essas formulações não chegam a negar a importância do
crescimento econômico para o desenvolvimento, mas tratam o primeiro como apenas
um aspecto do último (ou ainda, como condição necessária, mas não suficiente).
Uma das tentativas mais emblemáticas de redefinir a noção de desenvolvimento,
utilizada aqui para ilustrar essa importante tendência do debate no período pós-1970,
talvez tenha sido aquela promovida por Amartya Sen, laureado Nobel de Economia em
118
1998. Isso porque, além da significativa produção teórica voltada à exposição do seu
enfoque das capacidades e à defesa do desenvolvimento como liberdade (cujos
contornos pretendemos delinear adiante), Sen atuou como colaborador direto do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), sendo um dos
responsáveis pela elaboração do índice de desenvolvimento humano (IDH).
Construído com base na convicção de que desenvolvimento deve ir além do
simples aumento da renda per capita, o índice foi apresentado no primeiro Relatório de
Desenvolvimento Humano (RDH) em 1990, cuja mensagem central representa fielmente
a mudança de perspectiva característica do período: “enquanto o crescimento da
produção nacional (PIB) é absolutamente necessário para alcançar todos os objetivos
humanos essenciais, o importante é estudar como esse crescimento se traduz – ou falha
em se traduzir – em desenvolvimento humano em várias sociedades”. (PNUD, 1990: iii)
Nesse sentido, na tentativa de oferecer uma forma de mensuração do desenvolvimento
que não se restrinja apenas ao rendimento nacional per capita, mas que também
incorpore elementos relacionados às condições de vida da população, o IDH conjuga
indicadores de renda, esperança de vida e nível de escolaridade, cujos dados se
encontram disponíveis para a maioria dos países.
Como explicitamente reconhecido pelos formuladores do IDH já no momento de
sua criação, e reafirmado no balanço realizado no vigésimo RDH, publicado em 2010, a
simplicidade do novo indicador poderia ser vista, ao mesmo tempo, como uma virtude e
um defeito. Por um lado, a simplicidade do IDH poderia ser encarada como um “ponto
forte”, pois permitiria que o indicador fosse utilizado como uma alternativa ao PIB per
capita e despertasse o interesse do público em geral pelas outras variáveis analisadas ao
longo do relatório. Por outro lado, o fato de basear-se em médias nacionais tornava o
indicador insensível às assimetrias distributivas, não havendo também uma “medida
quantitativa de liberdade humana” que pudesse ser a ele incorporada. (PNUD, 2010: iv)
Nos termos de Sen (2010: vi), portanto, “os limites estreitos do IDH” não devem ser
confundidos com a “enorme amplitude da abordagem do desenvolvimento humano” ou
com a reorientação por ele proposta (ainda que, carregado de méritos, o indicador sirva
como uma boa aproximação).
Como pode ser visto, por exemplo, no artigo publicado por Sen no início dos
anos 1980 e intitulado Development: which way now?, o autor busca, por um lado,
oferecer um contraponto ao ceticismo que naquele momento declarava morta e
119
enterrada a discussão sobre desenvolvimento e, por outro, opor-se àquelas perspectivas
preocupadas em retomar o debate sobre desenvolvimento exclusivamente com base em
reformulações estratégicas. Diferentemente de ambas, a formulação proposta por Sen
toma como ponto de partida uma reafirmação das principais teses e estratégias
defendidas pelas teorias “clássicas” do desenvolvimento (exercício realizado pelo autor
por meio da análise de algumas experiências concretas), acompanhada da tentativa de
agregar a essas teorias novas dimensões e responder, com isso, aos anseios de
ampliação da noção de desenvolvimento.
Nesse sentido, assim como a perspectiva defendida no RDH reafirma a
importância do crescimento econômico para o desenvolvimento (refletida na própria
manutenção da renda per capita como um dos elementos componentes do IDH), o
ponto central do argumento de Sen não consiste na negação do crescimento ou na
rejeição dos meios propostos pelas teorias “clássicas” do desenvolvimento com vistas a
esse objetivo. A “real limitação da economia do desenvolvimento tradicional” residiria,
segundo Sen (1983: 753), no “reconhecimento insuficiente de que o crescimento
econômico não é mais que um meio para outros objetivos”. Ou seja, “o ponto não é
dizer que o crescimento não importa. Ele pode ter grande relevância, mas, se tem, é por
causa de alguns benefícios a ele associados, que se realizam no processo de crescimento
econômico”. (Ibid)
De acordo com Sen (Ibid: 754), portanto, ao contrário do foco na “produção
nacional, renda agregada ou oferta de determinados produtos”, as teorias do
desenvolvimento deveriam preocupar-se com os intitulamentos [entitlements] e com as
capacidades [capabilities] geradas por esses intitulamentos. Os intitulamentos devem
ser entendidos como o “conjunto de diferentes pacotes de mercadorias que uma pessoa
pode comandar em uma sociedade, utilizando a totalidade de direitos e oportunidades
que estão diante dela”. (Ibid) O conceito de funcionamento, por sua vez, expande o
campo da avaliação do bem-estar para além dos limites da reprodução material
(economia), refletindo “as várias coisas que uma pessoa pode considerar valioso fazer
ou ter. Os funcionamentos valorizados podem variar dos elementares, como ser
adequadamente nutrido e livre de doenças evitáveis, a atividades ou estados pessoais
muito complexos, como poder participar da vida da comunidade e ter respeito próprio”.
(Sen, 2000: 95)
120
As capacidades, finalmente, são entendidas como o conjunto de funcionamentos
disponíveis aos indivíduos dada a totalidade de seus recursos. Em termos mais detidos,
a capacidade de uma pessoa “consiste nas combinações alternativas de funcionamentos
cuja realização é factível para ela. Portanto, a capacidade é um tipo de liberdade: a
liberdade substantiva de realizar combinações alternativas de funcionamentos (ou,
menos formalmente expresso, a liberdade para ter estilos de vida diversos)”. A ideia é
que, se se considerar todo o conjunto de combinações de funcionamentos disponíveis
aos indivíduos (o que Sen denomina “conjunto capacitário”), pode-se formar um juízo
dos estilos de vida à sua disposição e da liberdade que alcançaram para escolher a vida
que se deseja levar. (Sen, 2001: 80)
Em linhas gerais, portanto, a teoria do desenvolvimento proposta por Sen
defende que, ao contrário do crescimento do produto, o processo de desenvolvimento
deve envolver a ampliação das liberdades individuais (capacidades). Considerando
ainda a “relação funcional entre os intitulamentos das pessoas sobre bens e suas
capacidades, uma caracterização útil – ainda que derivada – do desenvolvimento
econômico é em termos da expansão dos intitulamentos”. (Sen, 1983: 755) Como
sistematizado, sobretudo, no ciclo de palestras proferido no Banco Mundial nos anos de
1996/1997 e posteriormente publicado no livro Desenvolvimento como liberdade, a
“expansão da liberdade é vista, por essa abordagem, como o principal fim e o principal
meio do desenvolvimento”. (Ibid, 2000: 10)
Ainda que tenham sido poucas as categorias aqui recolhidas do trabalho de Sen,
acredita-se que já são suficientes para delinear sua concepção de desenvolvimento e,
portanto, deixar clara a sua diferença em relação às teorias do desenvolvimento do
período anterior. Já as convergências entre a teoria seniana e todas as demais (abordadas
neste capítulo e nos últimos) serão tratadas no momento oportuno (i.e., na conclusão
deste capítulo e na conclusão geral do trabalho). Seria um desperdício, no entanto, se
não fossem indicados de pronto os elementos de seu raciocínio que expõe de modo
relativamente claro a perspectiva político-ideológica a que se filia.
Em primeiro lugar, no que diz respeito à forma como Sen trata a relação entre as
liberdades substantivas (fins) e instrumentais (meios), é preciso notar que, assim como
os intitulamentos não significam apenas as rendas reais disponíveis para os sujeitos, a
expansão dos intitulamentos, entendida pelo autor como um dos meios para alcançar o
desenvolvimento, não deve ser confundida com a simples melhoria na distribuição de
121
renda.92
Isso porque os usos que os indivíduos podem “dar a um dado pacote de
mercadorias ou, de um modo mais geral, a um dado nível de renda” são bastante
distintos e “dependem crucialmente de várias circunstâncias contingentes, tanto pessoais
como sociais”. (Ibid: 90)
De acordo com Sen, portanto, existiriam ao menos “cinco fontes distintas de
variação entre nossas rendas reais e as vantagens – o bem-estar e a liberdade – que delas
obtemos”: (i) heterogeneidades pessoais, (ii) diversidades ambientais, (iii) variações no
clima social, (iv) diferenças de perspectivas relativas, (v) distribuição na família. Em
primeiro lugar, as “heterogeneidades pessoais” seriam aquelas “características físicas
díspares relacionadas a incapacidade, doença, idade ou sexo” que fazem com que as
necessidades dos indivíduos sejam diferenciadas. As “diversidades ambientais”
incluiriam, por exemplo, “circunstâncias climáticas (variações de temperatura, níveis
pluviométricos, inundações etc.)” que também “podem influenciar o que uma pessoa
obtém de determinado nível de renda”. As “variações no clima social”, por sua vez,
incluiriam “os serviços públicos de educação” e/ou a “prevalência ou ausência de crime
e violência na localidade específica”. No que diz respeito às “diferenças de perspectivas
relativas”, Sen afirma que “as necessidades de mercadorias associadas a padrões de
comportamento estabelecidos podem variar entre comunidades, dependendo de
convenções e costumes”. Finalmente, a “distribuição na família” trataria do fato de que
“as rendas auferidas por um ou mais membros de uma família são compartilhadas por
todos – tanto por quem a ganha como por quem não a ganha”. (Sen, 2000: 90-91)
Considerando os propósitos do presente trabalho, a análise da forma como Sen
refere-se às “características distintivas dos seres humanos” (misturando diferenças
individuais e sociais) é particularmente importante, pois, como sugere Medeiros (2007:
72), é nesse momento que “Sen fornece os primeiros indícios para revelar um aspecto
marcante – e raramente explicitado – de sua abordagem: o seu caráter aistórico, restrito
ao âmbito da ordem social vigente”. Isso porque, na medida em que “características
pessoais irredutíveis (genotípicas e fenotípicas)” e “aspectos históricos (resultantes do
desenvolvimento social)” são colocados no mesmo plano (“o das diversidades dos seres
humanos, [...] como se a diversidade entre estas diversidades inexistisse ou fosse
92
Ainda que reconheça méritos nas tentativas, bastante comuns no período pós-1970, de mudar o foco
para as questões distributivas, Sen (1983: 760) entende que “suplementar dados sobre o PNB per capita
com informação sobre distribuição de renda é bastante inadequado para dar conta dos requerimentos da
análise do desenvolvimento”.
122
absolutamente irrelevante”), características inerentemente sociais como, por exemplo, a
divisão de classes são naturalizadas “e a crítica dirigida a qualquer distinção herdada da
história (entre escravos e libertos, por exemplo), passa a ter o mesmo estatuto de ataques
criminosos à diversidade humana (como o nazismo e o racismo)”. (Ibid)
No que diz respeito ao caráter instrumental da liberdade (ou seja, ao fato de que
a liberdade em uma determinada dimensão, digamos política, seja meio para ampliar a
liberdade em outra dimensão, digamos econômica), Sen (Ibid: 55) lista cinco tipos
diferentes de liberdade que teriam esse caráter pronunciado: (i) liberdades políticas, (ii)
facilidades econômicas, (iii) oportunidades sociais, (iv) garantias de transparência e (v)
segurança protetora. Para os propósitos do presente argumento, concentremos as
atenções nas “facilidades econômicas”, que, segundo o autor, são “as oportunidades que
os indivíduos têm para utilizar recursos econômicos com propósitos de consumo,
produção ou troca”. (Ibid) Trata-se, enfim, para dizê-lo resumidamente da “liberdade de
participar irrestritamente de todos mercados”. (Medeiros, 2007: 219)
Mesmo a um leitor distraído chamaria a atenção o fato de que a liberdade de
mercados seja considerada não apenas constitutiva do desenvolvimento (liberdade), mas
um meio poderoso para alcançá-lo. Essa é sem dúvidas uma defesa do livre mercado
não apenas explícita, mas talvez ainda mais contundente do que a realizada por autores
de renome do pensamento liberal, inclusive Smith, pois, embora muitos liberais tenham
afirmado que o laissez faire é condição para alcançar o desenvolvimento (instrumento),
poucos chegaram a afirmar que ele é por si mesmo um atributo definidor da nação
desenvolvida. Trata-se, em suma, não apenas de uma proposição conservadora, mas, em
tempos neoliberais, de uma proposição radicalmente conservadora, como o autor parece
fazer questão de deixar claro na passagem abaixo:
Ser genericamente contra os mercados seria quase tão estapafúrdio quanto
ser genericamente contra a conversa entre as pessoas (ainda que certas
conversas sejam claramente infames e causem problemas a terceiros – ou até
mesmo aos próprios interlocutores). A liberdade de trocar palavras, bens ou
presentes não necessita de justificação defensiva com relação a seus efeitos
favoráveis mais distantes; essas trocas fazem parte do modo como os seres
humanos vivem e interagem na sociedade (a menos que sejam impedidos por
regulamentação ou decreto). A contribuição do mecanismo de mercado para
o crescimento econômico é obviamente importante, mas vem depois do
reconhecimento da importância direta da liberdade de troca – de palavras,
bens, presentes. (Sen, 2000: 21)
123
Seção 7.2. O dilema “Estado x Mercado”
Além da tentativa de incorporar novas temáticas ao debate sobre
desenvolvimento, a década de 1970 foi marcada pela retomada da hegemonia neoliberal
nos planos teórico, político e ideológico. Como retratado anteriormente,93
o projeto
neoliberal ganha força com base no argumento de que a crise vivenciada por diversos
países nos anos 1970 tinha origem no excesso de intervenção do Estado na economia.
Assim, enquanto nos países “desenvolvidos” essa concepção traduziu-se especialmente
em um ataque ao Estado de bem-estar social e das instâncias de organização e
representação da classe trabalhadora (sindicatos e partidos de esquerda), no caso dos
países “subdesenvolvidos” o diagnóstico neoliberal entendia a crise como manifestação
da suposta falência do modelo de desenvolvimento implementado nesses países durante
os anos anteriores.
Na medida em que o debate sobre política econômica passou a ser dominado,
predominantemente, por questões de curto prazo (particularmente voltadas para a
necessidade de estabilização macroeconômica), a virada neoliberal foi repetidamente
rotulada como o “fim do debate sobre desenvolvimento”. No entanto, apesar de aparecer
inicialmente de maneira dispersa, como um simples conjunto de políticas de curto
prazo, é possível identificar no projeto neoliberal tanto um ideal de desenvolvimento,
quanto uma estratégia para alcançá-lo. Do ponto de vista do ideal de desenvolvimento,
pode-se dizer que as mudanças não foram muito significativas: assim como no caso das
teorias “clássicas”, o desenvolvimento seguia sendo encarado fundamentalmente como
sinônimo de crescimento do produto. Do ponto de vista da estratégia, no entanto,
tratava-se de resgatar “velhos” argumentos clássicos e neoclássicos em favor da
liberdade de mercado.
De modo geral, a estratégia de desenvolvimento neoliberal pode ser dividida em
três momentos de uma mesma lógica: o ponto de partida seria a estabilização
macroeconômica (primeiro momento), pré-condição para as reformas estruturais
(segundo momento), necessárias à retomada do investimento e crescimento (terceiro
momento). A estabilização seria, assim, um dos pilares da estratégia (mas não o maior,
conforme comumente se afirma) e a forma de se alcançar a estabilidade e operar a
sequência das reformas dependeriam das especificidades de cada país. No entanto, a
93
Ver capítulo 3, seção 2.
124
lógica seria sempre a mesma: a estabilidade aparece como uma pré-condição para as
reformas e as reformas como uma pré-condição para a retomada do investimento e do
crescimento.
Esse projeto de desenvolvimento foi sistematizado, sobretudo, na agenda do
chamado Consenso de Washington – resultado de um encontro realizado no fim da
década de 1980 que buscava averiguar o andamento das reformas neoliberais já em
curso na América Latina e, mesmo diante dos resultados pouco animadores, enfatizar a
necessidade de dar prosseguimento a sua implementação. Embora tenha sido construído
com vistas especificamente às circunstâncias latino-americanas, o Consenso apresentava
um conjunto de reformas que se supunha necessário a quaisquer países e amplamente
aceito por todos os “economistas sérios”.94
(Williamson, 1994: 18) As reformas assim
propostas deveriam, de modo geral, estar voltadas para a abertura comercial, a
desregulamentação e liberalização do sistema financeiro e a mudança do papel do
Estado na economia. Em suma, tratava-se de implementar reformas “pró-mercado” que
garantissem a esta instituição o papel principal na alocação dos recursos econômicos.
Por isso seria necessário garantir o saneamento das contas públicas (via corte de gastos,
privatizações etc.) para criar um ambiente favorável aos investimentos e à lucratividade
do setor privado. (Williamson, 1990)
No que diz respeito ao debate sobre desenvolvimento, essa proposta recebeu
inúmeras (e acertadas) críticas, especialmente após a avaliação do desempenho
econômico dos países subdesenvolvidos na década de 1990 (conhecida, no caso latino-
americano, como a “década mais que perdida”). De um lado, parte dos críticos tentava
ressaltar a necessidade de resgatar o Estado como agente promotor do desenvolvimento,
sem com isso negar a relevância do mercado. De outro, os defensores da agenda
neoliberal tratavam de afirmar (i) a necessidade de completar as “reformas de primeira
geração” (especialmente promovendo a desregulamentação do mercado de trabalho), (ii)
a necessidade de implementar as “reformas de segunda geração” (voltadas
especialmente para o fortalecimento das instituições) e (iii) a necessidade de combinar
crescimento e equidade social.
94
Diante das controvérsias suscitadas pelo caráter pretensioso da expressão Consenso de Washington,
Williamson (2004b: 285) observa ainda que: “Um dos debatedores de meu trabalho, Richard Feinberg,
argumentou que ela deveria ter sido chamada „convergência universal‟, porque (1) a mudança no
pensamento econômico que ela resumia era de âmbito mundial, em lugar de confinado a Washington; e
(2) a extensão do acordo ficava muito aquém do consenso. É claro que Feinberg estava correto em ambos
os pontos, mas era tarde demais para mudar o nome de marca”.
125
Em linhas gerais, portanto, a agenda focada especialmente nos pontos (ii) e (iii)
(também conhecida na literatura econômica sob o título de Pós-Consenso de
Washington) não propõe a reversão das reformas, mas uma espécie de gerenciamento e
direcionamento dos efeitos da abertura comercial e da liberalização financeira externa,
obtidos particularmente através do fortalecimento das instituições, necessário à
retomada do crescimento acelerado e de melhorias na distribuição de renda.95
Nas
palavras de Williamson:
Um papel importante para as instituições é perfeitamente consistente com o
mainstream econômico que coloca o papel crucial do Estado para a criação e
manutenção da infraestrutura institucional de uma economia de mercado, na
provisão de bens públicos, internalizando as externalidades e, dependendo de
visões políticas, corrigindo a distribuição de renda (observe que nenhum
desses papéis serve para racionalizar uma responsabilidade governamental a
fim de movimentar usinas siderúrgicas, geradoras de eletricidade, ou bancos).
(Williamson, 2004a: 10)
Uma postura que se pretende alternativa à proposta neoliberal foi defendida no
âmbito da CEPAL explicitamente a partir da década de 1990. Esse período ficou
conhecido por uma mudança de rumos no pensamento cepalino, desde então
identificado com a postura neoestruturalista, e que tem como marco a publicação do
documento Transformação produtiva com equidade: a tarefa prioritária do
desenvolvimento da América Latina e do Caribe nos anos noventa. Tomando como
ponto de partida a constatação de que os anos 1980 não foram muito generosos com as
economias latino-americanas e os desafios postos para a década de 1990,96
a perspectiva
neoestruturalista busca definir uma nova estratégia de desenvolvimento para a região
que se situe no meio termo entre os argumentos neoclássicos, em favor dos benefícios
advindos de uma economia de mercado, e o argumento das teorias “clássicas” do
desenvolvimento, particularmente da teoria “clássica” cepalina, em favor da adoção de
uma estratégia de desenvolvimento com recurso à intervenção do Estado na economia.
Assim, a postura adotada pela CEPAL após a década de 1990 pode ser encarada
como um exemplo de propostas conciliadoras, bastante em voga nos dias de hoje, e que
se apóiam sobre um diagnóstico de que os “novos tempos de abertura e globalização”
95
Um detalhamento das “reformas de segunda geração” constitutivas do Pós-Consenso pode ser visto em
Williamson e Kuczynski (2004). 96
Como consta no documento: “o produto real per capita no final de 1989 não retrocedeu ao que fora
registrado dez anos antes, mas ao nível de treze anos antes, e até mais do que isso, no caso de algumas
economias. Por conseguinte, os países da região estão iniciando a década de 1990 com o peso da inércia
recessiva dos anos 1980, com o passivo representado por sua dívida externa, e com a presença de uma
inadequação fundamental entre estruturas da demanda internacional e a composição das exportações
latino-americanas e caribenhas”. (CEPAL, 2000b: 889)
126
não deixam espaço para pensar o desenvolvimento fora de uma economia de mercado.97
Não obstante, o mercado é também enxergado como uma instituição que, mesmo
quando funcionando em completa liberdade, pode ser pouco sensível aos chamados
“problemas sociais” (e também ambientais), sobretudo no curto prazo. Dessa forma, as
propostas neoestruturalistas (e correlatas) passam a defender a ideia de que o Estado
deveria atuar como gerenciador de políticas e reformas pró-mercado, de modo a ampliar
a concorrência, garantir a eficiência econômica e estimular a incorporação de novas
tecnologias (i.e., realizar uma transformação produtiva), e atuar como instância
responsável pela distribuição mais equitativa (e ambientalmente responsável) dos frutos
dessa transformação.
Apesar de se pretender alternativa, portanto, essa postura guarda diversas
semelhanças com a proposta neoliberal, particularmente na versão do Pós-Consenso de
Washington – quando se torna claro, mesmo para certas alas mais conservadoras, a
necessidade da atuação do Estado no gerenciamento e administração das condições de
reprodução sistêmica.98
Para encerrar a presente seção, gostaríamos de mencionar ainda um tipo de
intervenção relativamente recente que, partindo de uma crítica às “boas políticas”
prescritas pelo chamado Consenso de Washington, busca construir uma estratégia de
desenvolvimento alternativa ao projeto neoliberal através de um resgate mais incisivo
das teorias do desenvolvimento formuladas nos anos 1940/1950. Como indicado na
introdução, um exemplo bastante emblemático de reorientação nesse sentido é oferecido
pelo economista sul-coreano Ha-Joon Chang, especialmente no livro Chutando a
escada: a estratégia de desenvolvimento em perspectiva histórica – um título que alude
à expressão utilizada por Friedrich List, economista alemão do século XIX, defensor da
proteção à indústria nascente.
97
Essa seria, em parte, uma das características de inúmeras intervenções identificadas como novo-
desenvolvimentistas, que tem como fundamento a tentativa de atribuir novamente um papel mais ativo do
Estado nas estratégias de desenvolvimento, mas que, por outro lado, não consegue se desvencilhar da
retórica pró-mercado. Como pode ser visto, por exemplo, no texto de apresentação do livro Novo-
desenvolvimentismo – um projeto nacional de crescimento com equidade social: “Os termos novo-
desenvolvimentismo e neo-estruturalismo retomam a ideia da necessidade de um desenvolvimento
endógeno, mas não deixam de lado a necessidade do livre comércio para alcançar competitividade
internacional e, assim, um crescimento sustentado. Da mesma forma que a economia social de mercado, o
novo-desenvolvimentismo é um caminho do meio entre dois extremos, este entre o livre comércio
incondicional e o protecionismo econômico, aquele entre o liberalismo e o socialismo”. (Sicsú, Paula e
Michel, 2005: xxxi) 98
Para mais sobre a relação entre a também chamada Nova CEPAL e as proposições neoliberais
(geralmente negada pelos membros da instituição) conferir, por exemplo, Almeida Filho (2003),
Carcanholo (2008b) e Corrêa (2007).
127
Com o debate pautado, mais uma vez, em evidências empíricas, autores como
Chang questionam o sucesso das políticas neoliberais na promoção do desenvolvimento
e, em movimento semelhante ao da década de 1970, atribuem aos adversários a culpa
pelo desempenho econômico pífio de parte das economias subdesenvolvidas nas últimas
décadas. Particularmente no caso de Chang, o argumento utilizado no ataque ao
liberalismo e defesa do intervencionismo também toma como base o resgate histórico
das políticas e instituições efetivamente adotadas pelos “países atualmente
desenvolvidos”, “quando se achavam em processo de desenvolvimento” (Chang, 2004:
13) – expediente analítico que, segundo Chang, seria bastante comum entre os teóricos
do desenvolvimento dos anos 1940/1950.99
De acordo com o autor, portanto, ao observar historicamente a forma como os
“países ricos enriqueceram de fato”, é possível chegar à conclusão de que “eles não
seriam o que são hoje se tivessem adotado as políticas e as instituições que agora
recomendam às nações em desenvolvimento”. (Ibid: 13) Ou seja, ao contrário do que
normalmente se afirma, “o fomento à indústria nascente [especialmente por meio de
políticas industrial, comercial e tecnológica intervencionistas] foi a chave do
desenvolvimento da maioria das nações” (Ibid: 26) – constatação essa que leva o autor a
acreditar que os “países atualmente desenvolvidos” estariam agora “„chutando a escada‟
pela qual subiram ao topo, impedindo as nações em desenvolvimento de adotarem as
políticas e instituições que eles próprios adotaram”. (Ibid)
Para utilizar a própria metáfora sugerida por Chang, não se trata de (i) questionar
a existência de uma escada (ou seja, questionar a possibilidade de se reproduzir nos
países subdesenvolvidos os padrões de desenvolvimento dos países desenvolvidos,
como presente nas formulações mais céticas) ou (ii) perguntar para onde leva a escada
(ou seja, questionar o próprio padrão de desenvolvimento dos países desenvolvidos,
movimento característico das tentativas de requalificação do debate sobre
desenvolvimento, apresentadas na seção anterior). Ao contrário, parte-se do pressuposto
de que a escada existe (“intervenção direta do Estado, sobretudo na forma de políticas
industrial, comercial e tecnológica”, ainda que não seja negada a importância, por
99
Citando autores como Lewis, Rostow, Kuznets, Gerschenkron e Hirschman, que “formularam suas
teorias dos „estágios‟ do desenvolvimento econômico com base num conhecimento profundo da história
da industrialização nos países desenvolvidos”, Chang (2004: 20) procura mostrar como uma das marcas
distintivas do período de “auge da economia do desenvolvimento” foi a proliferação de “ensaios
explicitamente destinados a transmitir aos países em desenvolvimento as lições extraídas da experiência
histórica das nações desenvolvidas” – perspectivas essas “abafadas pela predominância da economia
neoclássica, que rejeita categoricamente esse tipo de raciocínio indutivo”. (Ibid: 21)
128
exemplo, de políticas para manutenção da estabilidade macroeconômica) (Ibid: 210) e
leva ao caminho correto (“crescimento econômico”, entendido como “a chave do
desenvolvimento econômico mais amplamente definido”) (Ibid: 24), restando aos
teóricos do desenvolvimento apenas a tarefa de colocá-la em pé novamente.
Seção 7.3. Considerações finais
Como viemos enfatizando ao longo dos capítulos que compõem a Parte II do
presente trabalho, a análise das teorias do desenvolvimento aqui realizada não tem como
objetivo avaliar os graus de correção ou incorreção dessas formulações. Mais distante
ainda de nossos objetivos está o questionamento sobre a adequação das diferentes
estratégias de desenvolvimento à realização dos ideais de desenvolvimento carregados
por essas teorias, seja nos anos 1950 ou nos dias atuais. Trata-se, na verdade, de indicar
como tanto as estratégias (meios) quanto os ideais (fins) veiculados pelas teorias do
desenvolvimento, corretos ou equivocados, respondem, em cada contexto histórico
específico, às necessidades de reprodução das relações capitalistas em nível global.
Ao longo dos três capítulos anteriores, tratamos mais detidamente das teorias do
crescimento/desenvolvimento formuladas no período de nascimento e auge da chamada
Economia do Desenvolvimento, da relação existente entre essas formulações e o
contexto no qual foram formuladas e, finalmente, da relação dessas teorias com o modo
de produção capitalista em geral. Nessa inspeção, vimos que o desenvolvimento foi
tratado durante aquele período fundamentalmente como sinônimo de crescimento do
produto, que a estratégia de desenvolvimento foi associada à industrialização das
economias subdesenvolvidas, e o ideal de desenvolvimento, inspirado nas experiências
das economias capitalistas ditas desenvolvidas.
No presente capítulo, buscamos mostrar através de alguns exemplos como o
período posterior à crise dos anos 1970 foi marcado por inúmeras tentativas de
redefinição dos objetivos e estratégias de desenvolvimento. Do ponto de vista dos
objetivos, a constatação de que o crescimento do produto vinha, não raramente,
acompanhado de efeitos perniciosos (como, por exemplo, a má distribuição de renda e a
degradação do meio ambiente), lançou sobre as teorias do desenvolvimento a
necessidade de incorporar novos critérios à definição de desenvolvimento (que
permitissem ir além do simples crescimento da renda). Ou seja, ainda que o fim da
129
experiência do socialismo real tenha sido entendido como a prova definitiva de
superioridade do capitalismo em relação a projetos alternativos de sociedade, as teorias
do desenvolvimento permanecem desempenhando um papel importante na sustentação
da crença na possibilidade de que o desenvolvimento capitalista não submeta a maioria
da população a condições subumanas de vida e (contrariando as previsões mais
catastróficas) seja compatível com própria a manutenção da vida no planeta.
Interessante também é notar como essas mudanças na concepção de
desenvolvimento se refletem nas distintas tentativas de redefinição das estratégias de
desenvolvimento, resumidamente expressas no debate liberalismo x intervencionismo.
Ou seja, salvo raríssimas exceções, é possível perceber como as diferentes estratégias de
promoção do desenvolvimento e/ou superação do subdesenvolvimento, com maior ou
menor intervenção do Estado, com maior ou menor liberdade de mercados, acabam por
incorporar as temáticas da equidade e sustentabilidade. Como já indicado, portanto, o
debate termina girando em torno do grau de liberdade de mercado e intervenção do
Estado necessário para objetivar a sociedade projetada pelas teorias do
desenvolvimento.
Quando observamos mais atentamente os pressupostos por detrás das
formulações aqui apresentadas, no entanto, percebemos que as mudanças são menos
significativas do que parecem à primeira vista. Mesmo no caso de propostas de
reorientação consideradas “radicais”, como, por exemplo, a sugerida por Sen em seu
Desenvolvimento como liberdade, as teorias do desenvolvimento não abandonam o
critério crescimento do produto e não deixam de tratar o desenvolvimento
exclusivamente em termos da reprodução, em escala universal, das relações sociais
capitalistas. Socialmente justo, ambientalmente responsável, livre ou regulado: trata-se
apenas de projetar para o futuro configurações diversas de uma mesma formação social
(o capitalismo).
130
Conclusão
Em uma passagem pouco citada do Grundrisse, Marx examina as condições
histórica e logicamente necessárias para que o capital encarregue-se de investimentos de
vulto na construção de estradas, canais, pontes etc. (obras de infraestrutura em geral),
que exigiam, até o período moderno, um esforço coletivo usualmente capitaneado pelo
Estado. Trata-se de um momento do texto, portanto, no qual Marx aborda
explicitamente a oposição entre Estado e mercado no que tange ao provimento dos
assim-chamados (atualmente) bens públicos. Tal argumento não teria nenhuma relação
com o conteúdo desse trabalho, não fosse o fato de Marx – numa colocação que
certamente surpreenderia os desavisados e despertaria a ira de posições pseudo-
dogmáticas à esquerda – ter tratado a situação em que o capital atinge condições para
dar conta do investimento em infraestrutura como uma condição de “máximo
desenvolvimento do capital”. Em suas palavras,
O máximo desenvolvimento do capital se dá quando as condições gerais do
processo de produção social não são criadas a partir da dedução da renda
social, dos impostos do Estado – em que a renda, e não o capital, aparece
como fundo de trabalho e o trabalhador, embora seja trabalhador assalariado
livre como qualquer outro, economicamente se encontra em uma outra
relação –, mas pelo capital como capital. Isso mostra, de um lado, o grau em
que o capital já submeteu a si todas as condições da produção social e, por
essa razão, de outro lado, a extensão com que a riqueza reprodutiva social
está capitalizada e todas as necessidades são satisfeitas sob a forma da
troca.100
(Marx, 2011: 439)
É nítido nesta passagem que Marx emprega o termo desenvolvimento não para
designar uma situação em que a sociedade capitalista atinge uma condição “mais
humana” ou “melhor” em qualquer sentido, mas sim para caracterizar um momento da
história dessa formação social no qual o capital adquiriu extensão e força suficientes
para dominar todos os momentos da existência social, inclusive, no caso, o provimento
de infraestrutura. Ainda que fosse – como parece ser – possível demonstrar que o
monopólio privado, capitalista, do fornecimento de bens e serviços públicos essenciais
100
Um pouco antes, no mesmo parágrafo, Marx (2011: 438) afirma ainda: “Todas as condições gerais de
produção, tais como estradas, canais etc., seja as que facilitam a circulação ou as que a tornam possível,
seja igualmente as que aumentam a força produtiva (como irrigações etc. realizadas pelos governos na
Ásia e, de resto, também na Europa), tais condições, para serem levadas a cabo pelo capital, em lugar do
governo, que representa a comunidade enquanto tal, supõem um elevado desenvolvimento da produção
fundada no capital. A desvinculação das obras públicas do Estado e sua passagem ao domínio dos
trabalhos executados pelo próprio capital indica o grau em que se constituiu a comunidade real na forma
do capital”.
131
cria toda sorte de infortúnios àqueles que não podem dispensar o seu uso, ainda assim
tal situação poderia ser tida como um indício do caráter desenvolvido do capitalismo.
Nessa passagem, como em muitas outras em sua obra, Marx utiliza a categoria
desenvolvimento para tratar tanto de uma forma específica de sociedade (o capitalismo,
por exemplo), quanto de qualquer objeto portador de um processo de mudança e
permanência (ou permanência na mudança, como diria Lukács), incluindo o ser em
geral. Falar em desenvolvimento, portanto, significa antes e acima de tudo reconhecer o
processo de transformação de determinado objeto ao longo do tempo, seu movimento
para diante, sua dinâmica de funcionamento.
Esse “movimento para diante”, como se procurou demonstrar, é governado por
leis/tendências que regulam a dinâmica de funcionamento do objeto e podem ser
apreendidas cientificamente, de maneira objetiva. No caso da nossa existência como
seres naturais, por exemplo, sabe-se que (a despeito das fábulas que descrevem um
mundo no qual se pode ser eternamente jovem ou dos próprios avanços na ciência que
possibilitaram à humanidade aumentar significativamente sua expectativa de vida) essa
existência é regulada por ao menos uma determinação geral: independentemente de
classe, credo ou cor, todos devemos nascer, crescer e morrer. Por menor que seja o
desejo dos sujeitos de se render diante dessa determinação geral, essa é uma
lei/tendência que regula o nosso desenvolvimento como seres naturais e que pode ser
objetivamente reconhecida, a despeito das particularidades que fazem com que a vida de
um sujeito A seja diferente (melhor ou pior) que a vida de um B qualquer.
Essa não é, no entanto, a dinâmica que regula a nossa existência como seres
sociais. Para fazer uma brevíssima recapitulação, identificamos ao menos três
tendências que regulam o desenvolvimento da sociedade, abstratamente considerada: a
crescente sociabilidade, a diminuição do tempo de trabalho necessário à produção e
reprodução das condições de vida humana e a constituição da consciência genérica. No
caso da sociedade em forma especificamente capitalista, destacamos especialmente
aquelas tendências que, quando articuladas, determinam o caráter expansivo e
contraditório dessa formação social. Como isso, procuramos mostrar que, no modo de
produção capitalista, a esfera econômica (do trabalho) apresenta-se como a principal
esfera de sociabilidade, a partir da qual emana a dinâmica (de ampliação do trabalho)
que subordina os demais momentos e esferas da existência.
132
Por fim, buscamos mostrar como essas tendências gerais manifestam-se de
maneira distinta, em condições históricas distintas, tomando como exemplo dois
períodos nos quais o desenvolvimento capitalista foi claramente atravessado por
determinações particulares: as quase três décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial
e os anos posteriores à década de 1970. A opção por resgatar elementos dessas duas
conjunturas não foi meramente casual: esteve também relacionada ao fato de serem
esses os períodos nos quais se registram as produções no campo das teorias do
desenvolvimento econômico (servindo, em ambos os sentidos, como bons contrastes).
Em suma, esperamos ter demonstrado, nos capítulos que conformaram a Parte I
do trabalho, que, desde uma perspectiva marxista, estudar o desenvolvimento capitalista
significa, em primeiro lugar, ter consciência da historicidade e processualidade que
caracterizam a sociedade; em segundo lugar, apreender as leis de movimento da
sociedade em geral e em sua forma especificamente capitalista; e, em terceiro lugar,
conhecer as condições concretas de manifestação dessas leis. Na análise do
desenvolvimento em-si, portanto, o importante é saber se (e de que forma), na passagem
de um período a outro, o funcionamento do capitalismo tornou-se mais ou menos
adequado à lógica interna do capital. Pode-se dizer, então, que uma sociedade capitalista
é tanto mais desenvolvida quanto mais ampla – e, considerando a sua lógica interna de
funcionamento, mais bem-sucedida – for a atuação do capital (seja em termos setoriais,
territoriais, ou em sua capacidade de penetrar nas mais distintas esferas da vida social).
Em contraponto a essa perspectiva, buscamos, ao longo da Parte II, traçar um
panorama geral do modo como a questão é encarada no campo da ciência econômica,
especialmente no interior das chamadas teorias do desenvolvimento. Nesse caso,
observamos que a análise do “desenvolvimento” envolve, recorrentemente, a eleição de
determinados critérios e parâmetros (“empiricamente observáveis”) que permitam
quantificar a condição de países ou regiões em momentos diversos de sua história. Além
disso, é normalmente com base na extrapolação de um desses critérios que se afirma ou
nega a superioridade de povos e/ou países com relação a outros. Por fim, o conceito de
“desenvolvimento” é tratado, via de regra, como um juízo de valor subjetivo: ou seja, o
“desenvolvimento” é visto como algo bom, viável e desejável (e que, portanto, deve ser
promovido) e a sua ausência como algo ruim (e que, seguindo a mesma lógica, deve ser
superado).
133
Tomando como ponto de partida o período de surgimento e proliferação das
teorias do desenvolvimento, vimos como o critério central utilizado na comparação
entre distintos graus de “desenvolvimento” (ou “subdesenvolvimento”, por
contraposição) foi predominantemente o aumento da riqueza, medido pelo crescimento
do produto per capita. Por esse motivo, a inspeção crítica desse conjunto de teorias
iniciou pelos chamados modelos de crescimento, que, a seu modo, estiveram
preocupados com os determinantes do crescimento do produto ou da renda (oferecendo
uma explicação possível para a desigualdade de renda no plano mundial), expressando
de maneira bastante emblemática a orientação geral do período.
No caso das teorias do desenvolvimento propriamente ditas, mais focadas na
tentativa de explicar as particularidades por detrás do baixo crescimento do produto nos
países subdesenvolvidos e mais explicitamente propositivas, vimos como, além da
associação do “desenvolvimento” ao crescimento do produto, as estratégias para a
promoção do “desenvolvimento” (ou superação do “subdesenvolvimento”) estiveram
associadas predominantemente à industrialização. A despeito das especificidades – que
impuseram, inclusive, a divisão dessas teorias “clássicas” do desenvolvimento em dois
grandes grupos (aquelas que tratam das regiões “subdesenvolvidas” em geral e aquelas
que tratam particularmente do caso latino-americano) –, podemos perceber que todas
compartilham, em linhas gerais, as características acima apresentadas.
Já no período posterior à década de 1970, vimos como, diante da crise e do
reconhecimento cada vez mais amplo de “efeitos colaterais” (sobre a natureza ou sobre
os seres humanos) associados ao crescimento do produto, as teorias reagiram pela
incorporação de novos critérios à definição de “desenvolvimento” (ainda que o
crescimento do produto não tenha sido totalmente abandonado). Essa “mudança” na
concepção de desenvolvimento (que talvez fique mais bem caracterizada como
“ampliação”) também se refletiu nas tentativas de redefinição de estratégias para a
promoção do “desenvolvimento” (ainda que o centro das controvérsias tenha sido a
participação do Estado na economia).
Diante dessa caracterização geral, portanto, não podemos deixar de reconhecer
que uma das dificuldades de tomar as teorias do desenvolvimento como objeto de
estudo reside justamente na diversidade de formulações, seja essa diversidade
determinada pelo fato de terem sido produzidas em contextos históricos muito distintos
ou pelo fato de carregarem consigo orientações teóricas diversas (liberal, keynesiana,
134
schumpeteriana etc.). Essa diversidade, como se buscou ressaltar ao longo da Parte II,
também se manifesta de variadas maneiras, seja (i) na noção de desenvolvimento, (ii) no
ideal de desenvolvimento ou (iii) na estratégia de desenvolvimento.
No entanto, a inspeção crítica dessas teorias demonstrou-se capaz de revelar que
todas, sem qualquer exceção digna de nota, tomam o capitalismo como pressuposto de
suas formulações. Considerando, por exemplo, a convergência em torno da redução do
desenvolvimento ao “crescimento do produto”, só episodicamente rompida, fica
bastante nítido o modo como as teorias do desenvolvimento projetam sobre o passado e
sobre o futuro as formas de riqueza e trabalho que são específicas do capitalismo, sem
jamais indagar quais são os pressupostos objetivos de um trabalho que adquire esse
caráter de permanente expansão. Com isso, as teorias não apenas naturalizam processos
históricos altamente complexos, não apenas se apresentam como instrumentos a serviço
dessa história “naturalizada”, mas também, ao lhe fornecer inteligibilidade, comparecem
objetivamente como formas de consciência indispensáveis à sua reprodução.
Comparecem, portanto, como a ciência deste desenvolvimento.
Mesmo as teorias usualmente encaradas como teorias “críticas” (ou seja, aquelas
capazes de reconhecer problemas associados à dinâmica capitalista, especialmente seu
caráter “desumano”), acabam por admitir acriticamente os limites impostos ao exercício
teórico e prático pelo objeto, em sua forma imediatamente dada. Nesse caso,
percebemos que, apesar da preocupação “humanitária” assegurar um acento crítico,
essas teorias hipostasiam a forma de trabalho correspondente a essa forma de sociedade
e podem, na melhor das hipóteses, almejar uma “organização mais „humana‟ do
trabalho no capitalismo”. (Duayer, 2010: 2) Em síntese, para empregar a expressão
difundida por Duayer, podemos dizer que se trata, quando muito, de uma crítica
positiva. Nas palavras do autor:
A crítica positiva, como se sabe, toma o mundo tal como ele se apresenta
como um dado insuperável, incontornável. E é nesse quadro de um mundo
por princípio inalterável em sua estrutura e constituição essencial que a
crítica positiva comparece, primeiro descrevendo o mundo – positivamente –
e, segundo, em conformidade com tal descrição, prescrevendo as atitudes e
práticas possíveis dos sujeitos. E a crítica positiva, é preciso não se iludir,
pode ser de fato crítica à sua maneira. Pode se insurgir sinceramente contra as
infâmias desse mundo incontornável. E mobiliza instrumentos teóricos
sempre mais sofisticados para consertar os erros do mundo, ou para
desentortar o mundo, como imaginava fazer Quixote. E arregimenta paixões,
sinceras paixões, sem as quais tais instrumentos restariam inertes, para a
reparação do mundo. Todavia, recorde-se, a crítica positiva e as práticas que
alimenta são sempre prisioneiras desse mundo, do mundo imediato,
anistórico. (Duayer, 2010: 7)
135
No caso de Marx, bem ao contrário, percebemos que a crítica dirigida ao
capitalismo pode ser mais bem caracterizada como uma crítica negativa: “crítica do
trabalho no capitalismo, crítica do trabalho como atividade socialmente mediadora, ou
seja, crítica da sociabilidade fundada no trabalho”.101
(Duayer, 2010: 7) Em outras
palavras, trata-se de uma crítica que reconhece, desde o início, o caráter histórico do seu
objeto de estudo. De uma crítica que indaga sobre as condições históricas que fizeram
emergir esse objeto. Uma crítica que procura, na organização interna do objeto, na
forma como ele veio a se constituir estruturalmente, as condições do seu
desenvolvimento no tempo e no espaço. Uma crítica que, por fim, expressa esse
movimento causalmente determinado em leis de tendência.
Uma crítica como essa não tem qualquer compromisso a priori com o seu objeto
de estudo, a sociedade capitalista, pois não o toma por antecipação como uma forma de
existência insuperável, que, portanto, deve ser reparada ou amparada a qualquer custo
quando sua linha evolutiva geral demonstra-se desumana (ou ameaçadora em termos
ecológicos). Ao contrário, justamente por não perder de vista a transitoriedade histórica
possível dessa formação social, por um lado, e por demonstrar o caráter necessário de
sua desumanidade, por outro, é que pode converter o conhecimento de suas leis de
tendência numa proposta de práxis orientada em favor da transição concreta para uma
sociedade dotada de outra dinâmica evolutiva, de outra linha de desenvolvimento
interno. Esse nexo entre a crítica social de Marx e a sua proposta de práxis
transformadora é enfatizado na passagem de Postone, que nos permitimos citar
extensamente abaixo:
[...] a análise de Marx implica uma idéia de superação do capitalismo que não
acarreta nem a afirmação sem crítica de que a produção industrial seja
condição de progresso humano, nem a rejeição romântica do progresso
tecnológico per si. Ao sugerir que o potencial do sistema de produção
desenvolvido sob o capitalismo poderia ser usado para transformar o próprio
sistema, a análise de Marx supera a oposição entre essas instâncias e mostra
que cada uma significa um momento de um desenvolvimento histórico muito
mais complexo para se constituir a totalidade. Isto é, a abordagem de Marx
abrange a oposição entre a fé no progresso linear e sua rejeição romântica,
como expressando uma antinomia histórica que, em ambos os termos, é
característica da época capitalista. Mais abrangentemente, sua teoria crítica
não defende nem a simples conservação, nem a destruição daquilo que foi
historicamente constituído no capitalismo. Ao contrário, sua teoria mostra a
possibilidade de que, o que foi constituído de forma alienada, seja apropriado
101
Postone (993: 63-64) também reconheceu e salientou a negatividade da crítica de Marx: “Ao formular
uma crítica do trabalho no capitalismo tomando como base da análise sua especificidade histórica, Marx
transformou a natureza da crítica social baseada na teoria do valor trabalho de uma crítica “positiva” em
uma crítica “negativa” [...] – aquela que critica o que é sob as bases do que poderia ser – que aponta para
a possibilidade de outra formação social”.
136
e, em consequência disso, fundamentalmente transformado. (Postone, 1993:
36)
Se, enfim, o esforço empreendido neste trabalho é capaz de confirmar a hipótese
de que as concepções autointituladas “teorias do desenvolvimento” constituem a ciência
da preservação do desenvolvimento capitalista, por outro lado, o mesmo esforço parece
ser capaz de demonstrar que a intervenção crítica de Marx rompe com o vínculo entre
produção teórica e prática conservadora não por se tornar mais “ideológica”, menos
científica. Justo ao contrário, esse vínculo é rompido porque a teoria marxiana consegue
projetar seu olhar para além dos determinantes imediatos de seu objeto e encarar seu
desenvolvimento como aquilo que efetivamente é: a expressão do modo de
funcionamento de um objeto dinâmico.
Por isso, podemos concluir esse trabalho com uma constatação que, embora
evidente, raramente é trazida à consciência e/ou devidamente enfatizada: se há um autor
que escreveu uma autêntica teoria do desenvolvimento capitalista, esse autor foi Marx;
se há uma obra que fala do desenvolvimento capitalista, essa obra é O Capital. Isso,
aliás, Marx fez questão de patentear já no prefácio da primeira edição, que citamos na
introdução e recordamos novamente neste encerramento: “o objetivo final desta obra é
descobrir a lei econômica do movimento da sociedade moderna”. (Marx, 2002: 18) Se
Marx descobriu ou não essa lei, isso é uma questão que estará sempre em aberto. Mas
que Marx procurou descobri-la, não é, de fato, possível negar.
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