Determinismo tecnológico e autoria no contexto pós-conflitos timorense
RAQUEL FOLMER CORRÊA
IRLAN VON LINSINGEN
Resumo
A sociedade timorense tem vivido um período de transições relevantes desde o ano de 1975.
Ocasião na qual ocorreu o término oficial da colonização portuguesa e o início da ocupação por
parte da Indonésia, que durou até 1999. A partir da restauração da independência do país e das
primeiras eleições presidenciais, em 2002, foram firmados acordos internacionais em diferentes
áreas, como a educacional. Desde 2005, o Brasil envia professores/as brasileiros/as para
trabalhar em Timor-Leste com o objetivo de colaborar na formação, em Língua Portuguesa, de
docentes timorenses em diferentes níveis de ensino. Nesse contexto, estivemos em Timor-Leste
em 2014 para investigar sentidos sobre educação, ciências e tecnologias na coletividade
acadêmica timorense cooperante com o Brasil. Os debates gerados naquela ocasião
confirmaram algumas percepções inicias de que tanto educação quanto tecnologias são
comumente entendidas genericamente, de modo linear e determinista do incremento econômico
e social do país, cujo lema fundamental pós-conflitos é “paz e desenvolvimento”. Ao mesmo
tempo, surgiram demandas sobre possibilidades e limites nas articulações entre a produção de
conhecimentos tradicionais timorenses com a produção científica atual. Tendo em vista a
perspectiva educacional dos ECTS latino-americanos, apontamos um caminho possível para
estabelecer tais articulações, que contemple um exame crítico sobre tecnologias sociais,
problematize a inclusão, considere a cidadania sociotécnica e mobilize para a autoria em
ambientes educacionais.
Palavras-chave: determinismo tecnológico; autoria; tecnologias sociais; educação CTS;
Timor-Leste
Considerações gerais sobre Timor-Leste e a cooperação educacional com o Brasil
A República Democrática de Timor Lorosa’e (que significa “terra do sol nascente” em
língua local) se localiza no Sudeste Asiático, entre outras ilhas da Indonésia. Fica ao norte da
Austrália e ocupa a parte oriental da Ilha de Timor, em uma região de limite entre o Oceano
Índico e o Pacífico. Timor-Leste, cuja capital é o distrito de Díli, é menor que o estado brasileiro
de Sergipe e tem cerca de 1 milhão de habitantes, que são, em sua maioria, de religião católica.
Suas línguas oficiais são a Língua Tétum e a Língua Portuguesa e os principais produtos de
exportação são o petróleo, o gás natural e o café. Ele está classificado entre os 10 países com
menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do planeta, sendo a nação mais pobre da
Universidade Federal de Santa Catarina, doutoranda, CAPES.
** Universidade Federal de Santa Catarina, doutor.
2
Ásia (PEREIRA; CASSIANI; LINSINGEN, 2015).
Timor-Leste é um dos países que teve a sua independência mais recentemente, após
uma longa história de conflitos, resistências e conquistas. Na historiografia1, encontramos
relatos de que portugueses (em busca de sândalo) ocuparam territórios timorenses desde o
século XVI, sendo que Timor-Leste foi colônia de Portugal oficialmente até o ano de 19752.
Em 28 de novembro daquele ano, a FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste
Independente), após disputas com outros dois principais grupos políticos (APODETI:
Associação Popular Democrática Timorense, pró integração com a Indonésia e UDT: União
Democrática Timorense, pró manutenção portuguesa), declarou a independência de Timor-
Leste. Contudo, poucos dias depois, em 07 de dezembro do mesmo ano, a Indonésia invadiu o
país.
O período indonésio em Timor-Leste (1975-1999) foi marcado por genocídios em série
e tentativas ostensivas de imposição da cultura e história daqueles sobre esses. Houve proibição
de utilização da Língua Portuguesa, a Língua Indonésia (Bahasa Indonesia) tornou-se oficial
no território timorense e estabeleceu-se uma política sistemática que ignorava as
especificidades timorenses (PEREIRA, 2014). Estima-se que tenham ocorrido cerca de 350 mil
mortes (mais de 1/3 da população timorense) devido à ocupação. Dessas, aproximadamente 50
mil teriam acontecido apenas nos 3 primeiros meses de invasão. Depois, uma concentração
grande de assassinatos ocorreu em 1979, 1984 e 1999.
Nos anos 1990, relatos de violações de Direitos Humanos em Timor-Leste ganharam
destaque nas mídias internacionais. O que gerou pressão para um posicionamento do governo
indonésio em relação à ocupação e, também, chamou a atenção de Portugal para a situação do
país. Em 1999, após mais de vinte anos de ocupação violenta por parte da Indonésia e resistência
timorense, ocorreu o referendo no qual mais de 78% da população de Timor-Leste decidiu por
1 Muitas informações aqui apresentadas sobre Timor-Leste provêm de nossas experiências no país com docentes
e discentes timorenses e são fruto de nossos diários de campo. Por isso, não apresentamos rigorosamente
referências bibliográficas para esses dados. 2 Para além do contexto local, da divulgação de descoberta de petróleo em Timor-Leste, em 1974, lembremos de
alguns contextos internacionais naquele período. Na Europa, em Portugal, houve a Revolução dos Cravos, em abril
de 1974, que ao buscar depor o regime ditatorial vigente, tinha, entre seus objetivos o lema
“democratizar, descolonizar, desenvolver”, que de certo modo pode ser visto como propício à independência de
Timor-Leste. Na Ásia, a formação de partidos ditos com viés comunista na região do Sudeste Asiático, com forte
influência chinesa e vietnamita na região (o Vietnã venceu a guerra contra os EUA, em 1975), estaria relacionada
com a ocupação de Timor-Leste para evitar um possível avanço comunista.
3
sua independência daquele país. Entre 1999 e 2002 a Organização das Nações Unidas (ONU)
administrou um governo de transição e em 20 de maio de 2002 foi restaurada a independência
(idem). Naquele ano, os timorenses foram pela primeira vez às urnas para eleger o presidente
da nação. Timor-Leste é parlamentarista.
Dentro de uma estratégia de política internacional (manifestar soberania através de
uma política robusta de relações internacionais, obter uma cadeira permanente no Conselho de
Segurança da ONU e efetivar contratos comerciais, entre outros), o Brasil, já em 2002, firmou
acordos de cooperação com Timor-Leste (PEREIRA; CASSIANI; LINSINGEN, 2015). O
acordo de interesse aqui é o Programa de Qualificação de Docente e Ensino de Língua
Portuguesa no Timor-Leste3 (PQLP), materializado pelo Decreto Nº 5.274, de 18 de novembro
de 2004 e gerido pelo Ministério da Educação (MEC) e pela Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior (CAPES) (idem).
A partir de 2005, o PQLP enviou anualmente até 50 professores/as brasileiros/as para
trabalharem em Timor-Leste em diferentes áreas do sistema educacional timorense. Os
objetivos do programa buscavam contemplar desde a formação inicial e contínua de docentes,
passando pelo fomento ao ensino da Língua Portuguesa, até o apoio ao ensino superior e a
promoção linguístico cultural (idem). Conforme dados do relatório anual do PQLP, de
novembro de 20144, as ações desenvolvidas nesses três objetivos do programa atingiram,
naquele ano, mais de 4.700 timorenses (idem). Pereira (2014) e Pereira, Cassiani e Linsingen
(2015) examinaram dados5 segundo os quais o PQLP representou 37% dos recursos para bolsas
de estudos de estrangeiros oferecidas pela CAPES entre 2005 e 2009.
Para além de estudos sobre o trabalho desses/as docentes brasileiros/as em Timor-
Leste, nossas reflexões, nesse momento, envolvem a investigação que realizamos naquele país,
no ano de 2014. A saber, examinamos sentidos sobre educação, ciências e tecnologias na
coletividade acadêmica timorense cooperante com o Brasil. Nessa inserção, convivemos com
docentes e discentes timorenses, basicamente da Universidade Nacional Timor Lorosa’e
(UNTL). Contexto no qual os debates realizados, especificamente sobre tecnologias sociais e
produção de conhecimentos, mostraram que tanto educação quanto tecnologias são comumente
3 Em 2002, a Língua Portuguesa foi escolhida como língua oficial, juntamente com a Língua Tétum. 4 Disponível em http://www.pqlp.pro.br 5 Do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e da Agência Brasileira de Cooperação (ABC).
4
entendidas genericamente, de modo linear e determinista do desenvolvimento econômico e
social do país6.
A partir dessas percepções, a seguir, consideramos alguns aspectos sobre o
determinismo tecnológico e suas relações com processos educacionais tendo em vista o
contexto timorense pós-conflitos, ou, pós-independência.
Perspectivas deterministas sobre tecnologia e processos educacionais
Sentidos deterministas sobre tecnologia são comumente debatidos em discussões sobre
relações entre tecnologias e sociedade. Ellul (1964) destaca a origem do termo em obras do
sociólogo e economista americano Thorstein Veblen, no início do século XX, em textos nos
quais esse autor trata de relações entre automatismo técnico e mercados capitalistas. Mesmo
que o desenvolvimento dessas ideias tenha acontecido desde a modernidade, juntamente com a
perspectiva de progresso, diferentes estudos7 têm mostrado que o determinismo tecnológico se
refere a linhas de pensamento ainda influentes em diferentes sociedades.
Nas perspectivas deterministas sobre tecnologia, busca-se explicar fenômenos sociais
e históricos de acordo com um fator principal: a tecnologia. Considera-se que o
desenvolvimento tecnológico condicionaria essencialmente as mudanças e as estruturas sociais.
Conforme Chandler (1995), esse tipo de pensamento considera que as tecnologias afetariam
inexoravelmente todos os âmbitos sociais. Feenberg (1991) esclarece que o determinismo se
baseia na suposição de que as tecnologias teriam uma lógica funcional autônoma que poderia
ser explicada sem se fazer referência à sociedade.
De modo bastante resumido, destacamos que, segundo concepções deterministas sobre
tecnologia, consideram-se as relações entre tecnologias e sociedade como unidirecionais, das
tecnologias tendo “impacto” na sociedade, ou seja, como algo fora desta. Sustenta-se, também,
6 Um exemplo que pode ilustrar essa nossa percepção é a fala do Primeiro Ministro timorense, Rui Maria Araújo,
durante a I Reunião Extraordinária de Ministros da Educação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa
(CPLP), realizada em abril de 2015, em Díli. Ocasião na qual ele destacou que a educação “e uma prioridade para
todos e encerra em si, pelo seu potencial, a promessa de progresso e inclusão para todas as sociedades. (...) Ela é
tanto uma condição essencial se de fato se aspira a um progresso que beneficie a todos quanto um elemento
estratégico potencializador de valor econômico para os países. (...) A educação e essencial para a emergência de
setores privados mais inovadores e empreendedores, capazes de se adaptarem aos desafios do mundo globalizado”.
Informações disponíveis em: http://www.cplp.org/id-
3534.aspx?Action=1&NewsId=3632¤tPage=2&M=NewsV2&PID=9040 7 Ver, por exemplo, Bimber (1994), Chandler (1995), Corrêa (2010), Dagnino (2008) e Wyatt (2008).
5
que o desenvolvimento social, em seus aspectos econômicos, políticos e culturais seja uma
consequência direta e linear do desenvolvimento tecnológico. Assim, a tecnologia seguiria um
curso particular, como se fosse um fenômeno natural, que responderia aos seus próprios
princípios (CHANDLER, 1995; FEENBERG, 1991).
Nossas críticas a perspectivas deterministas sobre tecnologia, já enunciadas em
estudos anteriores, pretendem chamar a atenção para o fato de que esse tipo de pensamento
pode representar uma visão redutora dos relacionamentos entre o desenvolvimento social e o
tecnológico. Supor que as tecnologias, por si mesmas, são capazes de determinar os
comportamentos dos sujeitos, seus hábitos e instituições, pode encobrir as possibilidades de
resistência e transformação de contingências históricas e de modos com que diferentes
coletividades se relacionam diariamente com as tecnologias (CORRÊA, 2010; LINSINGEN;
CORRÊA, 2015).
Existem diversos modos de olhar a questão do determinismo tecnológico. Destacamos
que há uma dimensão cultural significativa que pode ser considerada nesse debate. Os
sociólogos Trevor Pinch e Wiebe Bijker (2008), por exemplo, têm defendido uma orientação
contrária à perspectiva determinista, qual seja, a da Construção Social da Tecnologia (CST)8.
Esses autores trabalham com a ideia de que as forças sociais e culturais também determinam a
mudança técnica. Em múltiplos estudos, eles têm mostrado como a tecnologia é uma construção
social e, para isso, desenvolvem o conceito de marco tecnológico (idem).9
De nossa parte, debatemos sobre os problemas envolvidos com o determinismo
tecnológico tendo em vista processos educacionais. Para isso, além do foco em dimensões
culturais, consideramos possibilidades de superar esse tipo de visão determinista, que
interpretamos como limitadora dos entendimentos sobre as inter-relações entre diversos
conhecimentos, técnicas e coletivos. Compreendemos que a problematização dessas inter-
relações é algo fundamental para a elaboração e execução de processos educativos que
contemplem uma formação humana crítica, integral e permanente.
Tal problematização está presente nos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia
(ECTS) latino-americanos em perspectiva educacional (educação CTS), em autores como
8 Do inglês, Social Construction of Technology, também conhecida como SCOT. 9 Tal conceito se centra nos significados que os grupos sociais atribuem a um artefato e na gramática que se
desenvolve ao redor desses para explicar como o ambiente social estrutura o desenho de um artefato.
6
Linsingen (2007), por exemplo. Em nossas investigações, propomos a incorporação de debates
sobre determinismo tecnológico nas pesquisas sobre processos educacionais. Entendemos que
a superação das premissas do determinismo tecnológico passa, também, pelos planos
educacionais, de modo que seja possível problematizar questões sociotécnicas de maneira
crítica, participativa e colaborativa em diferentes espaços educativos.
Consideramos que uma abordagem educacional CTS possa ser contextualizada, em
sintonia com os aspectos sociais e comprometida em termos curriculares (idem). A educação
CTS pode atender, também, a “questões que envolvem os variados aspectos das relações sociais
e econômicas regionais, abarcando o campo das políticas públicas de C&T com suas percepções
de relevância” (idem, p. 02). Assim, reforçamos a intenção presente em Cassiani e Linsingen
(2010) de que os ECTS se abram cada vez mais aos temas educacionais.
Destacamos que não há muita novidade no fato de que percepções deterministas sobre
tecnologias possam ser herdadas e desenvolverem-se juntamente com as diferentes
sociedades10. Contudo, problematizar tal percepção parece-nos relevante quando discutimos de
modo colaborativo sobre diferentes rumos que a educação CTS pode seguir em Timor-Leste.
Sobretudo em um momento histórico no qual a coletividade acadêmica timorense busca planos
de ações para desenvolver seus currículos11 de maneira autônoma e conectada aos contextos
locais.
Além disso, e do mesmo modo que Pereira, Cassiani e Linsingen (2015, p. 04),
intencionamos que em nossas cooperações com Timor-Leste “busquemos reduzir, quiçá
eliminar, o caráter assistencialista e de colonialidade inevitavelmente existentes em relações
interculturais ou em processos de cooperação internacional”. Para tal feito, consideramos,
sobretudo, as discussões propostas por Santos (2010) e Quijano (2010) acerca da ecologia de
saberes e da colonialidade do poder, respectivamente.
Nesse momento, apontamos um caminho para refletirmos conjuntamente com a
coletividade acadêmica timorense sobre processos educacionais que articulem a produção de
seus conhecimentos tradicionais com a produção científica atual. Esse caminho passa por uma
10 Como destaca Chávarro (2004), o determinismo tecnológico tem seu início relacionado ao auge da ideia de
progresso, pois até o final do século XIX, a crença nos avanços tecnológicos e sua determinação no bem-estar
humano já havia se tornado um dogma. 11 Verificar o estudo de Barbosa e Cassiani (2015) sobre questões curriculares em Timor-Leste. Disponível em:
http://proxy.furb.br/ojs/index.php/dynamis/article/view/5168
7
perspectiva crítica sobre tecnologias sociais, que problematize a inclusão, considere a cidadania
sociotécnica e mobilize para a autoria em ambientes educacionais (LINSINGEN; CORRÊA,
2015), como mostramos a seguir.
Tecnologias sociais e autoria em contextos de educação CTS
Ao propormos debates acerca de concepções deterministas sobre tecnologia,
destacamos possibilidades de resistência e de enfrentamento a tais abordagens. Uma dessas
possibilidades é o desenvolvimento de perspectivas críticas sobre tecnologias sociais, sobretudo
em âmbito educacional. Não estamos sozinhos. De modo geral, existem sujeitos articulados em
movimentos sociais, em coletivos da economia solidária e em ativismo em prol de alternativas
à globalização do capital, que propõem ações em torno de tecnologias tendo em vista outra
lógica de desenvolvimento.
Nessa lógica alternativa, consideramos criticamente tecnologias sociais como
produtos, processos e metodologias capazes de solucionar algum tipo de problema sociotécnico
a partir de necessidades e carências sociais, com a participação efetiva das coletividades
atingidas e que atenda aos quesitos de simplicidade, baixo custo, fácil reaplicabilidade e
resposta social. A partir dessa ideia geral, refletimos sobre possibilidades de articulações entre
conhecimentos tradicionais e conhecimentos científicos em Timor-Leste.
Para tal feito, e em consonância com nossa linha de estudos em educação CTS,
buscamos retomar a temática da tecnologia em relação aos contextos e às condições de sua
produção e utilização, de modo a considerar seu caráter histórico e coletivo, que inclui
contradições, interesses políticos e econômicos, bem como valores sociais e morais. Ou seja,
destacamos a ideia de tecnologia (e de tecnologias sociais) como produção humana inerente a
processos educacionais e políticos e não circunscrita apenas ao domínio de técnicas.
Assim, tentamos articular uma perspectiva crítica de tecnologias sociais com a questão
da autoria. Em termos educacionais, as questões que envolvem a noção de autoria são
atualmente bastante debatidas, sobretudo aquelas que se relacionam com educação à distância
e hipertextos. Em nosso caso, fazemos uma distinção entre autor e usuário. Ou seja, um usuário
de tecnologia social, por exemplo, comumente está inserido em uma política pública para
resolução de problemas sociais que foi pensada de modo vertical, que reproduz soluções
8
utilizadas em diferentes contextos e não participa, necessariamente, de alguma etapa dos
processos de identificação e resolução dos seus problemas (LINSINGEN; CORRÊA, 2015).
Contrária à noção de usuário, consideramos que através da ideia de autoria seja
possível relacionar posições dos sujeitos em processos educacionais com os sentidos
produzidos a partir dessas posições (GIRALDI, 2010; CASSIANI; GIRALDI; LINSINGEN,
2012). Concordamos com Giraldi (2010) quando a autora afirma que “ao assumir a posição de
autor o sujeito situa-se em uma determinada posição social, filiando-se a uma rede de sentidos.
Assim, para a assunção da autoria é preciso que os processos de ensino/aprendizagem escolar
permitam a abertura de um espaço de dizer” (p. 136).
Pensamos que sujeitos que fazem parte de processos educacionais em um contexto de
construção de autoria podem ter possibilidades de ler e interpretar criticamente a realidade
social na qual estão inseridos, produzir visões e experiências próprias sobre seus problemas
sociotécnicos, além de serem capazes de aprender autonomamente. De modo que seja
possibilitada uma “maior inserção social das pessoas no sentido de se tornarem aptas a
participarem dos processos de tomadas de decisões conscientes e negociadas em assuntos que
envolvam ciência e tecnologia” (LINSINGEN, 2007, p. 13).
Tais participações não são aqui compreendidas como mecanismos de inclusão social.
Consideramos que esse termo, assim como exclusão social, se refere a perspectivas
eurocêntricas, que não contemplam estudos das condições sociais de países periféricos do
capitalismo, em sociedades que não conheceram a plena integração social (MTE, 2007).
Optamos por utilizar o termo vulnerabilidade social (maior ou menor capacidade de diferentes
grupos sociais controlarem as forças que afetam o seu bem-estar) para buscar apreender o
dinamismo dos processos de desigualdade de maneira mais ampla, considerando a existência
de zonas de vulnerabilidade com tendência à precarização e as diferentes estruturas de
oportunidades existentes na atualidade (LINSINGEN; CORRÊA, 2015).
Acreditamos que ao problematizar a inclusão possa ser possível favorecer a construção
de novos sentidos de participação social em processos de co-construção sociotécnica de
tecnologias sociais, favorecendo a consolidação de uma cidadania sociotécnica12. Ao
12 Os termos co-construção sociotécnica e cidadania sociotécnica são aqui adotados com os mesmos sentidos
apresentados por Thomas (2012).
9
explorarmos a configuração sociotécnica da sociedade (particularmente na perspectiva de
tecnologias sociais) podemos abrir a caixa preta das tecnologias e expor suas redes
constitutivas. Seus resultados podem passar a ser percebidos como decorrência da participação
indelével e interessada de diferentes grupos sociais (idem).
E é nesses aspectos que refletimos sobre a cooperação com Timor-Leste. Nossas
articulações com docentes e discentes timorenses vai justamente no sentido de pensarmos
coletivamente uma educação CTS: (i) preocupada com uma abordagem educacional que
questione conteúdos e contextos; (ii) que problematize a noção de transferência de
conhecimentos e (iii) que possa mobilizar para a autoria. Assim, consideramos diálogos
possíveis entre conhecimentos estabelecidos e conhecimentos tradicionais/tácitos tendo em
vista que podemos produzir outros/novos conhecimentos.
Contudo, tanto em Timor-Leste como no Brasil ou em outros contextos,
compreendemos que existem potencialidades e limites a serem considerados na discussão (e até
mesmo na elaboração) de tecnologias sociais. Acreditamos que o desenvolvimento de
perspectivas críticas de tecnologias sociais poderá, em alguma medida, e de modos a serem
elaborados em cada contexto, estruturar possibilidades de maior autonomia dos sujeitos
envolvidos. Isso significa pensar em modos de mobilização para a autoria em diversos
ambientes educacionais, tendo em vista possibilidades de participação (cidadania sociotécnica)
nos processos que envolvem questões sociotécnicas.
Assim, refletimos sobre potencialidades relacionadas a tecnologias sociais com
cautela, pois não pretendemos pensá-las de modo determinista. A falta de divulgação de
conhecimentos sociais sobre ciência e tecnologia, que permitam um debate informado e
consciente sobre o tema também merece consideração. Sem ignorarmos os desafios inerentes
a qualquer processo educativo (e em diferentes locais), apostamos no potencial pedagógico das
tecnologias sociais e apresentamos como passos iniciais nesse processo a crítica à noção estrita
de usuário e um exame menos ingênuo (problematizar determinismos) das relações CTS.
Considerações finais
Neste artigo, examinamos possíveis articulações entre diferentes conhecimentos em
Timor-Leste através de uma perspectiva crítica de tecnologias sociais. Para isso, consideramos
o histórico recente de lutas e resistências com o qual o povo timorense esteve envolvido e sua
10
atual cooperação educacional com o Brasil. Nesse caminho, refletimos sobre a promoção de
autoria e destacamos possibilidades de participação crítica e informada dos sujeitos em
processos que envolvem ciência e tecnologia (cidadania sociotécnica).
Compreendemos que há um longo caminho a ser trilhado nesse sentido, mas
acreditamos que a abordagem teórica CTS em perspectiva educacional que estamos adotando é
promissora, sobretudo a crítica às noções de usuário em relação à autoria e a determinismos
(tecnológico e social). Com isso, visamos contribuir para debates sobre os temas aqui
apresentados e para a formulação de agendas de pesquisas colaborativas com docentes
timorenses nas quais se considerem as relações entre tecnologias e processos educacionais
tendo em vista possibilidades da efetiva transformação de diferentes realidades sociais.
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