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UFSM
Dissertao de Mestrado
HISTRIA E MITO
EM CADA HOMEM UMA RAA,
DE MIA COUTO
Alcione Manzoni Bidinoto
PPGL
Santa Mar ia, RS, Brasil
2004
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HISTRIA E MITO
EM CADA HOMEM UMA RAA,
DE MIA COUTO
por
Alcione Manzoni Bidinoto
Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Letras, rea de
Concentrao em Estudos Literrios, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito
parcial para a obteno do grau de Mestre em Letras.
PPGL
Santa Mar ia, RS, Brasil
2004
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Universidade Federal de Santa Mar ia Centro de Ar tes e Letras
Programa de Ps-Graduao em Letras
A Comisso Examinadora, abaixo assinada,
aprova a Dissertao de Mestrado
HISTRIA E MITO EM CADA HOMEM UMA RAA,
DE MIA COUTO
elaborada por Alcione Manzoni Bidinoto
como requisito parcial para obteno do grau de Mestre em Letras
COMISSO EXAMINADORA:
Slvia Carneiro Lobato Paraense (Presidente/Orientadora)
Ivete Lara Camargos Walty
Tania Celestino de Macdo
Santa Maria, 03 de setembro de 2004
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Maheli ,
aos meus pais,
Nona.
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Agradeo
professora Slvia Paraense,
pela dedicao e pelo estmulo na orientao deste trabalho;
ao Programa de Ps-Graduao em Letras da UFSM,
pelas oportunidades concedidas;
CAPES,
pela bolsa que possibilit ou a realizao deste mestrado.
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SUMRIO
RESUMO.....................................................................................................vi
ABSTRACT................................................................................................vii
RSUM...................................................................................................viii
INTRODUO.............................................................................................1
1 LEITURAS DA OBRA DE MIA COUTO .......................................5 1.1 Novidades da linguagem ....................................................................7 1.2 Anlises comparatistas .....................................................................12 1.3 Utopia, sonho, mito e histria ..........................................................16 1.4 Algumas contribuies da crtica......................................................20
2 HISTRIA E MITO..........................................................................22 2.1 Relaes entre histria e mito...........................................................22 2.2 Situao colonial e descolonizao...................................................24 2.2.1 Motivao realista.............................................................................30 2.3 Transfigurao do real e transformao pela palavra .......................33 2.3.1 Inslito e categorias literrias ...........................................................36 2.4 Identidade cultural.............................................................................49
3 AMBIVALNCIA DA FICO......................................................52 3.1 A Rosa Caramela...........................................................................52 3.1.1 Desenredando a trama ......................................................................52 3.1.2 A condio mineral...........................................................................56
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3.1.3 Rituais de vida e morte .....................................................................58 3.2 O Apocalipse privado do tio Gegu .............................................59 3.2.1 O histrico e o mtico........................................................................59 3.2.2 Motivao realista e humor ..............................................................64 3.2.3 Escatologia e cosmogonia ................................................................66 3.3 O embondeiro que sonhava pssaros ............................................69 3.3.1 Dois planos da leitura da trama.........................................................69 3.3.2 Linguagem criadora ..........................................................................75 3.3.3 Dialtica colonizador x colonizado ..................................................79 3.4 Os mastros do Paralm ..................................................................82 3.4.1 Metamorfoses da palavra..................................................................82 3.4.2 Ambigidades do espao..................................................................84 3.4.3 Ambigidades das personagens........................................................87 3.4.4 Mito e histria...................................................................................89 3.5 Sidney Poitier na barbearia de Firipe Beruberu.............................94 3.5.1 O iterativo natural.............................................................................94 3.5.2 O singular inslito.............................................................................98 3.6 Recorrncias e singularidades.........................................................102 4 TTICAS DE RESISTNCIA .....................................................106 4.1 Possibili dades.................................................................................108 4.2 Sobrevivncia.................................................................................111 4.3 Astcias e tticas............................................................................113 4.4 Vitrias momentneas....................................................................117 4.5 Narrao ttica................................................................................120 4.6 Astcias da linguagem....................................................................124 CONCLUSO..........................................................................................132 BIBLIOGRAFIA.......................................................................................138
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RESUMO
Dissertao de Mestrado
Programa de Ps-Graduao em Letras
Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil
HISTRIA E MITO EM CADA HOMEM UMA RAA, DE MIA COUTO
AUTOR: ALCIONE MANZONI BIDINOTO
ORIENTADOR(A): SLVIA CARNEIRO LOBATO PARAENSE
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 03 de setembro de 2004
O objeto deste trabalho so os contos de Cada homem uma raa, do escritor
moambicano Mia Couto, cuja obra marcada pela confluncia de elementos dspares.
Suas narrativas apresentam, de uma parte, um fundo histrico, em que figuram
episdios relacionados independncia e guerra civil moambicana; de outra parte,
ocorre a presena acentuada de elementos inslitos, relativos ao mito e ao imaginrio.
Alm disso, existem dois mundos diferentes: o do europeu colonizador e o do africano
colonizado. Procurou-se descobrir qual o lugar e a funo das dualidades presentes de
maneira muito marcada nos textos. Para isso, partiu-se de uma considerao dos contos
a partir do estranhamento provocado pelo seu carter ambivalente . Realizou-se uma
anlise detalhada das narrativas, e apontou-se uma possibili dade de interpretao, com
base em teorias que tratam do comportamento das comunidades diante de situaes de
dominao e opresso. Foi possvel perceber que as formulaes ambivalentes se
encontram nos trs nveis principais (da narrao, das personagens, da linguagem),
configurando recursos (semelhantes aos do realismo maravilhoso latino-americano) que
funcionam como tticas de resistncia cultural. Isso pode ser observado, com relao s
personagens, nos modos de pensar e agir astuciosos; quanto narrao, na maneira
como, em uma estrutura narrativa consagrada no Ocidente, so introduzidos elementos
de outra ordem cultural; no que se refere linguagem, no uso de um instrumento
outro (a Lngua Portuguesa), ou antes, de um espao alheio, para expressar uma
condio prpria. Desse modo, a fico de Cada homem uma raa funcionaria como
um modo de resistncia a um pensamento hegemnico e opressor.
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ABSTRACT
Dissertao de Mestrado
Programa de Ps-Graduao em Letras
Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil
HISTRIA E MITO EM CADA HOMEM UMA RAA, DE MIA COUTO
(HISTORY AND MYTH IN CADA HOMEM UMA RAA, DE MIA COUTO)
AUTOR: ALCIONE MANZONI BIDINOTO
ORIENTADOR(A): SLVIA CARNEIRO LOBATO PARAENSE
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 03 de setembro de 2004
The object of this work are the tales of Cada homem uma raa,, of
Mozambican writer Mia Couto, whose prose is marked for the confluence of dissimilar
components. His narratives show a historical support figuring episodes about the
independence and the Mozambican civil war; but there is also the strong presence of
unusual elements concerning the myth and the imaginary. Moreover, there are two
different worlds: the European colonizers world and the African colonizeds world.
The objective of this research was to discover the place and the function of the dualiti es
presents in the texts. We departed of a tales appreciation, considering their double
aspect . Then, the narratives were analyzed, and a possibilit y of interpretation was
indicated, with base in theories that discuss the behavior of communities in situations of
domination and oppression. It was possible to perceive that the double constructions
are find at the three main levels (narration, characters, language), configuring
expedients - similar to the magic (or marvelous) realism - that work like tactics of
cultural resistance. This can be observed in the characters astute way of thinking and
acting; in the mode like, in a form narrative occidental, elements of another order
cultural are introduced; in the language, in the use of an instrument other (the
Portuguese Language) to express a self condition. Then, the fiction of Cada homem
uma raa should work like a way of resistance to a hegemonic and oppressor thought.
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RSUM
Dissertao de Mestrado
Programa de Ps-Graduao em Letras
Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil
HISTRIA E MITO EM CADA HOMEM UMA RAA, DE MIA COUTO
(HISTOIRE ET MYTHE EN CADA HOMEM UMA RAA, DE MIA COUTO)
AUTOR: ALCIONE MANZONI BIDINOTO
ORIENTADOR(A): SLVIA CARNEIRO LOBATO PARAENSE
Data e Local da Defesa: Santa Maria, 03 desetembro de 2004
Lobjet de ce travail sont les contes de Cada homem uma raa, du
mozambicain Mia Couto, dont loeuvre est marque par la confluence delements
diffrents. Ses rcits prsentent un fond historique, o ce sont figurs pisodes relatifs
l indpendance et la guerre civile mozambicaine; mais il existe, aussi, la prsence
dlments insoli tes, relatifs au mythe et au imaginaire. Par ail leurs, il y a un monde de
leuropen colonisateur et un autre de lafrican colonis qui se mlangent. On a essay
de trouver la place et la fonction des ambivalences dans les textes. On a commenc par
une considration des contes, a partir de ce quon appele leur caractre ambivalent .
On a analis les narratives, et on a indiqu une possibilit d interprtation base en
theories qui traitent du comportement des communauts dans des situations de
domination et oppression. Il a t possible de percevoir que les formulations
ambivalentes se trouvent dans trois niveaux principaux (narration, personnages,
langage) configurant ressources (semblables aux du realisme merveil leux americain)
qui fonctionnent comme tatiques de rsistance culturelle. Cela peut tre observ, par
rapport aux personnages, dans les modes astucieux de penser et dagir; au niveau de la
narrration, dans l introduction, dans une forme narrative occidentale, dlments dune
autre ordre culturelle; en ce qui concerne le langage, dans lusage dun instrument
autre (la Langue Portugaise), pour expresser une condition particulire. De cette
faon, la fiction de Cada homem uma raa fonctionnerait come un moyen de
rsistance une pense hgmonique et opresseuse.
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INTRODUO
O presente texto constri-se como uma tentativa de abordagem dos
contos de Cada homem uma raa1, de Mia Couto, escritor nascido na
cidade da Beira, Moambique, em 1955. Antnio Emlio Leite Couto
filho de portugueses emigrados para a frica no comeo da dcada de 50.
Sua infncia foi vivida entre o bairro de cimento, dos colonos brancos, e o
de madeira e zinco, dos negros moambicanos. Acrescente-se a essa dupla
vivncia - entre duas culturas diferentes - os estudos de medicina em
Loureno Marques, as atividades jornalsticas, a participao na guerra de
independncia, e a atual condio de bilogo e professor universitrio, e
tem-se uma perspectiva bastante ampla e diversificada do pas e de sua
gente.
No domnio da escrita, encontra-se um aspecto da prosa de Mia
Couto que a torna interessante, principalmente entre os leitores de
Literatura Brasileira: o intenso processo de inveno lexical nela operado.
A norma padro da lngua transgredida, criam-se novas palavras, altera-se
a sintaxe para exprimir novos sentidos; a Lngua Portuguesa trabalhada
para se adequar a uma realidade cultural especfica. Devido a esse trabalho
com a linguagem, tm sido apontadas, pelos crticos, vrias semelhanas
1 COUTO, Mia. Cada homem uma raa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998. (Edio uti li zada neste trabalho)
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entre a obra do escritor moambicano e a do brasileiro Joo Guimares
Rosa.
Apesar da existncia de um nmero considervel de artigos, ensaios,
dissertaes e teses voltadas produo literria de Mia Couto, acredita-se
ser possvel fornecer alguma contribuio crtica dessa produo. Por se
tratar de uma obra que ainda est sendo construda, as anlises tendem a ser
mais instveis, ou menos definitivas, que no caso de obras acabadas. Desse
modo, pertinente que se procure estabelecer mais uma perspectiva de
leitura da fico de autor to significativo para a literatura de Lngua
Portuguesa.
Cada homem uma raa, segundo livro de narrativas curtas de Mia
Couto, constitudo por onze contos, cuja ao desenvolve-se em
diferentes momentos histricos, desde os tempos coloniais at os anos
posteriores independncia do pas. Desperta a ateno, logo em uma
primeira leitura, o fato de essas narrativas apresentarem, simultaneamente,
uma feio realista perceptvel na narrao de eventos histricos
relacionados com a guerra de libertao e com a guerra posterior
independncia, bem como a situao decorrente dessas lutas e uma outra
feio em que aparecem acontecimentos inslitos, alm das crenas e mitos
pertencentes ao imaginrio africano .
O objetivo deste trabalho compreender a modalidade ficcional e a
funo desempenhada por essa fico, produzida no entrecruzamento de
motivos realistas e motivos mticos ou simblicos. Colocam-se, ento, duas
questes fundamentais para se chegar a essa compreenso: 1) ser possvel
constatar, tambm nos nveis das personagens e da lngua utili zada, a
ambivalncia que se observa no nvel da narrao? 2) tero essas
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dualidades um papel fundamental na constituio dos sentidos das
narrativas?
Esta dissertao divide-se em quatro captulos. O primeiro deles
centra-se no exame de trabalhos sobre romances e contos de Mia Couto.
Pretende-se, com isso, proporcionar uma viso geral da crtica que vem
sendo produzida a respeito das obras desse autor, assim como elencar os
aspectos mais relevantes dessas anlises, os quais devero ser considerados
quanto definio dos caminhos a serem seguidos e das posies a serem
assumidas neste trabalho. Parte-se da reviso de textos que tm como foco
as inovaes lingsticas e o efeito de oralidade produzido; passa-se por
aqueles que realizam anlises comparativas (sobretudo entre o escritor
moambicano e Guimares Rosa, devido ao parentesco da escrita dos
dois); e chega-se leitura dos textos que trabalham, principalmente, a
interpretao das narrativas a partir de temas como sonho, utopia, mito e
histria.
O segundo captulo dedicado explorao das relaes entre
elementos histricos e elementos mticos, na composio dos contos, o que
se poderia denominar seu carter ambivalente. Principia-se por uma
teorizao a respeito da coexistncia de historicismo e mitologismo nas
literaturas de alguns pases, no sculo XX. Em seguida, apresentam-se
questes fundamentais para o entendimento do sistema colonial e dos
processos de descolonizao em frica, procurando, ainda, mostrar de que
modo essas situaes histricas se mostram no universo diegtico. Em um
terceiro momento, trata-se do problema das manifestaes inslitas,
decorrentes de uma viso do mundo mtica, nos textos: so mostradas as
maneiras de aparecimento do inslito (transfigurao do real e
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transformao pela palavra) e, ento, so discutidas as categorias literrias
mais apropriadas para se entender esse tipo de fico. Por fim, esboado o
problema da figurao da identidade cultural - formada a partir do
entrelaamento das conjunes histricas coloniais e ps-coloniais e de um
tipo de pensamento que se diferencia da racionalidade europia e ocidental
- nos contos de Cada homem uma raa.
No captulo terceiro, realiza-se a anlise de alguns contos, com o
objetivo de proceder a um levantamento das maneiras de organizao das
narrativas nos nveis da narrao, das personagens e da linguagem. s
vezes, trabalha-se, de preferncia, um desses aspectos em detrimento dos
outros, conforme as peculiaridades do texto estudado. Procura-se, alm
disso, com essa anlise, verificar se existe correspondncia, nos trs nveis,
quanto s ambigidades notadas na trama das narrativas, em decorrncia
das motivaes realista e mtica. A escolha dos cinco contos deve-se sua
representatividade dentro da obra e sua afinidade com o tema abordado
nesse trabalho: as relaes entre histria e mito.
O captulo final uma tentativa de atribuio de sentido s narrativas
estudadas. A primeira parte dedicada a uma breve exposio de teorias
que tratam de comportamentos alternativos de sujeitos e comunidades
diante de situaes de opresso e dominao. A partir da, procura-se
mostrar como esse tipo de comportamento se apresenta nos contos de Cada
homem uma raa, a partir das ambivalncias encontradas nos nveis da
narrao, das personagens e da lngua(gem), constituindo formas de
resistncia cultural.
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1. LEITURAS DA OBRA DE MIA COUTO
Representante de uma literatura que comea a se firmar no panorama
das literaturas de Lngua Portuguesa, Mia Couto tem publicada uma obra
considervel. Tendo iniciado com um volume de poemas, Raiz de Orvalho
(1983), dedicou-se narrativa, a partir dos contos de Vozes Anoitecidas
(1986). Ento, vieram os livros tambm de narrativas curtas Cada homem
uma raa (1990), Cronicando (1991), Estr ias Abensonhadas (1994),
Contos do nascer da terr a (1997), Mar me quer (1998), Na berma de
nenhuma estrada e outros contos (2001) e O fio das missangas (2004), e
os romances Ter ra sonmbula (1993), A varanda do frangipani (1996),
Vinte e Zinco (1999), O ltimo vo do flamingo (2000), e Um r io
chamado tempo, uma casa chamada terr a (2002).
Sua obra est inserida em uma fase na qual os escritores africanos
assumem a nacionalidade literria por inteiro, o que Pires Laranjeira
denomina euforia descomplexante.2 Nesse momento, h uma tentativa de
se abandonar os resqucios mais resistentes das marcas do colonialismo e
passar incorporao da temtica nacional. certo que a literatura
2 LARANJEIRA, Pires. De letra em r iste- identidade, autonomia e outras questes nas l iteraturas de Angola, Cabo Verde, Moambique e S. Tom e Prncipe. Porto: Afrontamento, 1992. p.48.
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moambicana - como diferente da literatura colonial3 produzida em
Moambique j vinha desde, pelo menos, os anos 50 dando mostras de
autonomia e de um sentimento de nao. Dessa poca, a primeira
publicao que se pode considerar, de acordo com Manuel Ferreira,
legitimamente moambicana, Godido e outros contos (1952), de Joo
Dias.4 No se pode esquecer, alm disso, da poesia de Jos Craveirinha, na
qual aparece a afirmao dos valores locais em detrimento dos traos
europeus . De acordo com Jos Miguel de Souza Lopes, a literatura de
feio nacionalista produzida por Craveirinha e outros autores de sua
gerao uma literatura comprometida com Moambique e com o povo
de um pas por inventar. Ela antecipa a nao e o Estado moambicano...5.
O autor de Cada homem uma raa escreve em um tempo no qual o
pas no mais se submete ao domnio colonial e conta com um sistema
literrio formado, com autores de bastante relevncia, como Ungulani ba ka
Khosa, Paulina Chiziane, Suleiman Cassamo e Jorge Viegas. Ainda assim,
preocupa-se com os problemas locais e parece querer inventar uma nao, a
seu modo. Talvez por isso tenha alcanado um lugar de destaque em um
perodo relativamente curto.
Se a produo literria de Mia Couto importante, tanto em termos
qualitativos como quantitativos, o mesmo se pode afirmar com relao aos
textos crticos a ela dedicados. Pretende-se, neste captulo, fazer um
levantamento das anlises realizadas sobre a narrativa do escritor
moambicano, com o propsito de destacar os tipos principais de estudo e
3 Salvato Trigo afirma que a literatura nacional surge como uma reao l iteratura colonial, esta sendo caracterizada pelo exotismo esttico ou ideolgico. TRIGO, Salvato. Ensaios de li teratura comparada afro-luso-brasileira. Lisboa: Vega, 198[-]. Literatura colonial l iteraturas africanas. p. 129-146. 4 FERREIRA, Manuel. Literaturas afr icanas de expresso portuguesa. So Paulo: tica, 1987. p. 195. 5 LOPES, Jos de Souza Miguel. Literatura moambicana em Lngua Portuguesa: na praia do oriente a areia nufraga do ocidente. In: Scr ipta, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, 1. sem. 1998, p. 269-285.
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as concluses mais importantes, as quais podero ser aproveitadas neste
trabalho.
1.1. Novidades da linguagem
Um dos motivos por que se destaca a narrativa de Mia Couto no
cenrio atual da literatura escrita em Lngua Portuguesa o uso inovador
que o escritor moambicano faz dessa lngua. Esse um dos aspectos mais
estudados em sua obra. Fernanda Cavacas uma das pesquisadoras
interessadas nos elementos morfossintticos da linguagem do autor de
Cada homem uma raa, tendo publicado mais de um livro sobre o
assunto.6 Tomando emprestado o termo ao prprio escritor, ela denomina
brincriao o processo de criao verbal e inveno lexical de Mia
Couto. Segundo a autora, as fontes das novidades do discurso so a sua
forma oralizante, a organizao sinttica, os recursos estilsticos variados e
o lxico criado; e as razes que justificam esse uso inovador da lngua so a
influncia de outras lnguas, o grande domnio da Lngua Portuguesa, a
vivncia de aspectos ontolgicos e sociolgicos das comunidades
moambicanas e o carter ldico da obra7. Antnio Barreto Hildebrando,
em um texto que funciona como uma introduo um tanto quanto ldica
(como que imitando o estilo) leitura das crnicas de Mia Couto, louva as
6 CAVA CAS, Fernanda. Mia Couto: acreditesmos. Lisboa: Mar Alm, 2001. CAVACAS, Fernanda. Mia Couto: passatempos e improvrbios. Lisboa: Mar Alm; Instituto Cames, 2000. 7 Essas consideraes so feitas no texto Mia Couto: brincriao vocabular . In.: DUARTE, Llia Parreira et al. Veredas de Rosa. Belo Horizonte: PUC-Minas; CESPUC, 2000. p. 235-241.
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invenes realizadas pelo autor e seu papel no revigoramento da lngua,8
sem, entretanto, aprofundar-se na busca de um sentido para essas
inovaes.
No que se refere linguagem propriamente dita, algumas outras
abordagens, um pouco diferenciadas, existem. Perptua Gonalves, em um
artigo denominado Linguagem literria e linguagem corrente no portugus
de Moambique ,9 aps fazer um levantamento das principais
caractersticas da variedade moambicana do portugus, procura comparar
essa variedade com a linguagem da obra de Mia Couto, na qual
sobressaem, segundo a autora, as invenes lexicais, no tanto as mudanas
gramaticais. Ela conclui que as inovaes nos dois domnios, o da
linguagem corrente e o da linguagem literria, originam-se de causas e
motivaes diferentes, pois a obra de Mia Couto, expresso de uma
individualidade, no reflete as transformaes ocorridas na linguagem
corrente da comunidade de Moambique.
Inocncia Mata, em A alquimia da lngua portuguesa nos portos da
expanso de Moambique, com Mia Couto ,10 extrapola os limites de uma
anlise centrada exclusivamente nas novidades linguageiras para inscrever
a discusso no domnio da ideologia, trabalhando aspectos relacionados ao
conflito colonizador/colonizado. Mata comea seu texto resgatando a
metfora de Caliban e Prspero: ela afirma que se a lngua um veculo
privilegiado de dominao, tambm um veculo de libertao, referindo-
se ao caso dos pases africanos de Lngua Portuguesa. Segundo a autora,
8 HILDEBRANDO, Antnio Barreto. Crnica de um elefante poeta. In: DUARTE, Llia Parreira et al, 2000. p. 70-73. 9 GONALVES, Perptua. Linguagem li terria e linguagem corrente no portugus de Moambique. In: Estudos Portugueses e Africanos, Campinas, n. 33/34, jan/dez 1999. p. 115-121. 10 MATA, Inocncia. A alquimia da lngua portuguesa nos portos da expanso de Moambique, com Mia Couto. In: SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 1, n. 2, 1. sem. 1998. p. 262-268.
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em Mia Couto a artesania do verbo aliada de uma reflexo histrica,
poltico-social e ideolgica. Essa artesania exemplo da criatividade e
inventividade lingsticas caractersticas de literaturas que querem afirmar
sua diferena com relao do colonizador. O interesse de seu artigo est
centrado no fato de que a atualizao do processo de criatividade
lingstica no apenas da lngua, mas sobretudo da nova ideologia de
expresso .11 Outro aspecto interessante a ser considerado nesse texto a
afirmao de que na fico de Mia Couto produz-se um efeito de oralidade
capaz de captar as diferentes formas de estar e ser do homem moambicano
hoje.
A questo da oralidade, estreitamente relacionada com os recursos de
linguagem, tambm um assunto muito pesquisado na obra do autor de
Cada homem uma raa. De acordo com Jos de Souza Miguel Lopes,
Mia Couto recria esse efeito utili zando-se de uma lngua literria fundada
numa criatividade lexical exuberante e numa sintaxe que funciona como
elemento de transio entre a oralidade e a pura inveno, em que o
contexto comunicativo, esttico, possibilit a a partilha da mensagem de
ruptura .12 As frases proverbiais, de sentido obscuro na maioria das vezes
em que ocorrem, tambm seriam responsveis por essas marcas de
oralidade.
Rita Chaves, num texto de apresentao da narrativa curta de Mia
Couto aos leitores brasileiros, indica como um de seus aspectos importantes
a utili zao das matrizes da oralidade na tentativa de revitalizao da
11 Id., ib., p. 264. 12 LOPES, Jos de Souza Miguel. Cultura acstica e cultura letrada: o sinuoso percurso da li teratura em Moambique. In: Metamorfoses, Rio de Janeiro, n. 2., 1999. p. 52.
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soberania da tradio oral.13 Magda Mrcia Borges, na dissertao de
mestrado Ter ra Sonmbula: identidade e memr ia nos (des)caminhos
do sonho, considera a tenso entre oralidade e escrita um instrumento de
acesso a outras tenses desveladas pelo romance , assim como um
processo de resistncia cultural .14
Um outro trabalho importante, nessa linha, a dissertao de
mestrado de Maura Eustquia de Oliveira, O lugar da oralidade nas
nar rativas de Mia Couto, na qual a autora procura refletir sobre os modos
como, na fico de Mia Couto, podem ser reconhecidos sinais da
PALAVRA que resiste aos processos de descaracterizao impostos pelos
diferentes processos de descolonizao .15 Procura mostrar ainda como as
narrativas do escritor moambicano resguardam a memria das vrias
etnias do mosaico de culturas de Moambique, ao preservarem a palavra da
tradio ancestral. So meios utilizados para alcanar o efeito de oralidade
quatro elementos que se destacam na sua escrita: dois no nvel do
enunciado (as lendas e os provrbios) e dois no nvel da enunciao (a
fratura da sintaxe e a inveno de palavras)".16 Embora trabalhe esses
quatro elementos, Oliveira d um destaque maior aos dois do nvel do
enunciado. A autora chama a ateno, ainda, para aquilo que denomina
aspecto fantstico das narrativas estudadas e afirma ser este um dos
elementos responsveis pela transgresso da lgica narrativa do Ocidente
operada pelo texto. 13 CHAVES, Rita de Cssia Natal. Mia Couto: voz nascida da terra. In: Novos Estudos CEBRAP, So Paulo, n. 49, 1997. p. 243-247. 14 BORGES, Magda Mrcia. Terra Sonmbula: identidade e memria nos (des)caminhos do sonho. Belo Horizonte: Puc-Minas, 1996. (Dissertao de Mestrado do Curso de Ps-Graduao em Literaturas de Lngua Portuguesa do Departamento de Letras da Puc-Minas). p. 17. 15 OLIVEIRA, Maura Eustquia de. O lugar da oralidade nas narrativas de Mia Couto. Belo Horizonte: Puc-Minas, 2000. (Dissertao de Mestrado do Curso de Ps-Graduao em Literaturas de Lngua Portuguesa do Departamento de Letras da Puc-Minas). p. 17. 16 Id., ib., p. 89.
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inegvel a importncia, na obra de Mia Couto, desse elemento aqui
chamado fantstico, marca de uma diferena com relao a um grande
nmero de textos da literatura contempornea. Entretanto, esta ltima
afirmao da autora problemtica (ao menos duvidosa) e pode ser
questionada. A transgresso da lgica narrativa do Ocidente no
justificada com clareza ao longo do trabalho. Esse um ponto que deve ser
explorado, nesta dissertao, atravs da anlise dos recursos formais das
narrativas.
Laura Cavalcante Padilha, fazendo uma leitura comparada de Ter ra
Sonmbula e Partes de fr ica, no artigo Por terras de frica com Helder
Macedo e Mia Couto17, procura mostrar, em uma parte do texto chamada
Era, porque sempre ser, uma vez , como os dois romances transitam
entre a voz e a letra , e que mecanismos fazem com que o escrito seja
enlaado pelo oral, e vice-versa. Padilha conclui aps passar pela
considerao da tcnica gritica, das repeties, do jogo de adivinhas
utili zados como recursos que remetem s ancestrais estrias contadas
beira da fogueira18 - que em Partes de fr ica parte-se da letra em direo
voz. No caso da narrativa de Mia Couto, o percurso se d de modo
inverso: existe a recomposio da cena organizadora da cultura ancestral,
com a noite, a fogueira, o velho e a criana; no entanto, a palavra nasce da
letra, dos cadernos, e o pequeno quem faz o papel de gri. H, nesse
caso, um entrelaamento da voz e da letra.
17 PADILHA, Laura Cavalcante. Por terras de frica com Helder Macedo e Mia Couto. In: Veredas, Porto, Fundao Engenheiro Antnio Almeida, v. 1, 1998. p. 243-259. Tambm no livro de PADILHA, L. C. Novos pactos, outras fices: ensaios sobre li teraturas afro-luso-brasileiras. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2002. 18 Id., ib., p. 249.
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1.2. Anlises comparatistas
J que foi mencionado esse trabalho de anlise comparada,
interessante notar a tendncia de estudos comparatistas em relao obra
de Mia Couto. Em congresso realizado na PUC - Belo Horizonte sobre
Guimares Rosa em 1998, foram vrios os trabalhos a apresentar uma
anlise que relacionava aspectos da fico dos dois escritores.19 O prprio
Mia Couto esteve presente ao evento, e falou sobre a importncia da obra
do escritor brasileiro em sua produo literria.20 No texto Entre margens
Guimares Rosa e Mia Couto, o encontro possvel ,21 Cludia Mrcia
Vasconcelos da Rocha busca estabelecer um dilogo entre o brasileiro e o
moambicano atravs da anlise dos contos A terceira margem do rio (G.
Rosa) e Nas guas do tempo (Mia Couto). Ela explora a questo da
linguagem nova (tema j abordado) e dos sentidos da margem nos dois
textos. Rocha afirma caber ao conto de Mia Couto a atribuio, a mgica
funo de conferir atravs das geraes (av, neto) a unidade que
contingncias histricas procuraram desacreditar .22
J Ana Cludia da Silva, em sua dissertao de mestrado intitulada A
infncia da palavra: um estudo comparado das personagens infantis em
Mia Couto e Guimares Rosa,23 analisa o tema da infncia como
estruturador em algumas narrativas dos dois escritores. Nas guas do
19 Trabalhos publicados em: DUARTE, Llia Parreira et al: 2000. 20 COUTO, Mia. Nas pegadas de Rosa. In: SCRIPTA, Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 11-13, 2. sem. 1998. 21 ROCHA, Cludia Mrcia Vasconcelos da. Entre margens Guimares Rosa e Mia Couto, o encontro possvel In: DUARTE, Llia Parreira et al, 2000. p. 144-148. 22 Id., ib. p. 148. 23 SILVA, Ana Cludia da. A infncia da palavra: um estudo comparado das personagens infantis em Mia Couto e Guimares Rosa. Ribeiro Preto, 2000. (Dissertao de Mestrado em Estudos Comparados de Literaturas de Lngua Portuguesa FFLCH-USP).
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tempo um dos textos de Mia Couto cuja personagem infantil estudada;
os outros so o conto O poente da bandeira e o romance Ter ra
Sonmbula. As narrativas de Guimares Rosa so As margens da
alegria , A menina de l e Campo Geral . Silva afirma ser a
personagem infantil portadora de uma lgica especial, um modo especial de
conhecer o mundo, de relacionar-se com os seres. Segundo a autora, em
Guimares Rosa, essa relao se d na forma de um contato direto com a
realidade, sem mediao, conforme a maneira ocidental de conceber a
infncia. Essa afirmao, entretanto, bastante discutvel, pois simpli fica
demasiadamente a funo das personagens infantis na narrativa rosiana. J
em Mia Couto, a relao mediada por um adulto, o qual detm a
autoridade e responsvel pela transmisso de um saber e de uma tradio.
Apesar das diferenas, as crianas desses dois mundos teriam em comum
trs tipos de conhecimento: o intuitivo, a percepo sensorial e o potico.
Segundo Silva, a poesia o instrumento com o qual Rosa e Couto
procuram expressar o indizvel, a essncia do real que se encontra na
origem dos seres .24
Samba de amores dispersos: pequenas melodias compostas por Joo
Guimares Rosa e Mia Couto ,25 de Jussara Santos, a anlise da temtica
amorosa nos contos O grande samba disperso, de Rosa, e O perfume ,
de Couto. Os dois contos so entendidos como peas musicais (sambas), e
as aes das personagens, como movimentos. Em Escritores africanos nas
veredas rosianas,26 Maria Nazareth Soares Fonseca trata das transgresses
operadas pela obra de Mia Couto e do angolano Luandino Vieira e do 24 Id., ib., p. 97. 25 SANTOS, Jussara. Samba de amores dispersos: pequenas melodias compostas por Joo Guimares Rosa e Mia Couto In: DUARTE, Llia Parreira et al, 2000. p. 332-336. 26 FONSECA, Maria Nazareth Fonseca. Escritores africanos nas veredas rosianas In: DUARTE, Llia Parreira, et al, 2000. p. 482-488.
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dilogo que estabelecem com a escrita de Guimares Rosa. Para Fonseca,
em Mia Couto so importantes os processos criativos em que a lngua
portuguesa expe suas possibili dades de inveno. atravs dessa lngua
que o escritor apreende o cotidiano de sua cultura, mediada por uma
escrita que transgride em dilogo explcito com o pulsar vibrante da
oralidade.27 A preocupao da autora est voltada para a transgresso da
linguagem, tema bastante explorado.
Carmen Lucia Tind Ribeiro Secco, no texto As margens do
inefvel: a significao potica dos velhos e aleijados em Guimares,
Luandino e Mia Couto ,28 tambm busca estabelecer pontos de contato
entre as narrativas dos trs escritores. Secco observa o papel positivo
conferido aos velhos na obra dos trs: a velhice um tempo privilegiado
(Rosa); os velhos so os detentores da sabedoria, os guardies da memria
(Couto e Vieira). Os personagens loucos e/ou aleijados tm a funo
potica de promover a denncia dos valores convencionais vigentes nas
sociedades e das oposies binrias que contrapem o normal ao anormal,
afastando aqueles que no correspondem aos modelos estabelecidos da
normalidade. De acordo com a crtica, na obra desses escritores, so
afirmadas as diferenas de suas respectivas culturas, mas os trs atingem o
universal, recuperando as figuras dos excludos, atribuindo-lhes sentidos
poticos profundos que os dimensionam para alm dos limites da razo
convencional.
Realizar uma leitura comparada da presena dos rios nos romances
Grande Serto: Veredas, Terra Sonmbula e A Verdadeira Vida de
27 Id., ib., p. 486. 28 SECCO, Carmen Lucia Tind Ribeiro. As margens do inefvel: a significao potica dos velhos e aleijados em Guimares, Luandino e Mia Couto In.: DUARTE, Llia Parreira, et al, 2000. p. 117-121.
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Domingos Xavier o que se prope Tania Celestino de Macdo, no texto
Os rios e seus (dis)cursos em Guimares Rosa, Mia Couto e Luandino
Vieira .29 Nas narrativas estudadas, os rios tm caractersticas marcadas
pela antropoformizao, confundem-se com as personagens dos textos.
Segundo Macdo, em Guimares Rosa, o rio, como projeo de vontades
humanas, constri no apenas uma nova geografia do imaginrio , como
tambm uma reflexo sobre as veredas da lngua portuguesa. Em Mia
Couto e Luandino Vieira, os rios, indo alm dos projetos humanos,
mostrariam que preciso edificar narrativas nas quais os (dis)cursos em
lngua portuguesa fossem engrossados pelos afluentes das lnguas
nacionais , enquanto fossem construdas tambm, de maneira utpica, a
paz e as margens da nao no exerccio cotidiano do escrever, de contar
estrias exemplares .30 Note-se, mais uma vez, como a preocupao com a
lngua e sua renovao aparece constantemente nas anlises.
Interessa, tambm, nesse estudo, a considerao da importncia da
utopia no romance de Mia Couto. Macdo afirma que, em Ter ra
Sonmbula, os rios nascem das vontades humanas; o curso do rio feito
pelo homem, que nele projeta suas esperanas. A narrativa busca resgatar,
pela fantasia, o amor terra em um mundo desencantado e desenraizado,
onde os rios criados apontam para a necessidade de reconstruir o elo entre o
homem e a terra. Nesse contexto, o rio metfora da utopia, do sonho
acordado.31 A afirmao da permanncia de um vis utpico na fico do
escritor moambicano tambm uma constante nos textos crticos
analisados.
29 MACDO, Tania Celestino de. Os rios e seus (dis)cursos em Guimares Rosa, Mia Couto e Luandino Vieira In.: DUARTE, Llia Parreira et al, 2000. p. 671-675. 30 Id., ib., p. 674. 31 Id., ib., p. 673.
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1.3. Utopia, sonho, mito e histr ia
A nica voz discordante com relao existncia de um sentimento
utpico nas narrativas de Mia Couto a de Paloma Vidal. No artigo A
mise en abyme de Ter ra Sonmbula ,32 ela afirma que o romance uma
crtica guerra civil , na qual a fico e a histria se entrelaam, e a utopia
fica afastada.
A posio de Tania Macdo corroborada por outros crticos que se
dedicaram ao estudo desse romance. Rejane Vecchia da Rocha e Silva, em
um artigo chamado Ter ra Sonmbula: a sobrevivncia da utopia 33 (uma
parte de sua tese de doutorado Romance e Utopia: Quarup, Ter ra
Sonmbula e Todos os nomes) aborda a questo da manuteno da
esperana em um tempo futuro, mesmo diante de um contexto
extremamente desfavorvel: a guerra civil moambicana. Segundo ela,
atravs de uma linguagem que confunde prosa e poesia, Mia Couto recria a
realidade de Moambique, apresentando-o no apenas como espao de
perdas, de abandono e da ausncia do humano, mas tambm como lugar
de sonhos e utopias .34 Nessa anlise, embora d uma importncia grande
ao sonho e tradio oral como elementos que ajudam a sustentar a
memria do passado e, desse modo, a possibili dade de um futuro, Rejane
32 VIDAL, Paloma. A mise en abyme de Terra Sonmbula. Disponvel em . Acessado em 10/11/2002. 33 SILVA, Rejane Vecchia da Rocha e. Terra sonmbula: a sobrevivncia da utopia. In: CANIATO, Benilde Justo; MIN, Elza (coord.) Abrindo Caminhos homenagem a Maria Aparecida Santil l i. Coleo Via Atlntica n. 2. So Paulo, 2002. p. 491-497. 34 Id., ib., p. 496.
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Silva enfoca preferencialmente episdios de cunho realista, os quais dizem
respeito ao universo emprico da situao histrica da guerra. A parte
concernente imaginao, compreendendo os mitos, crenas e eventos
inslitos, fica um pouco esquecida, sendo caracterizada como absurdo.
A posio de Leonor Simas-Almeida com relao questo da
utopia semelhante. Embora no util ize esse termo, ela vai defender em
seu ensaio a tese de que, num presente em desintegrao, insere-se a
esperana no futuro, subtilmente entretecida em todos os fios da
narrao...35 Tomando como tema norteador, o sonho, e a capacidade de
transformao do mundo atravs da fantasia e da criao potica, Simas-
Almeida procura estudar algumas estratgias narrativas e retricas
(particularmente a alegoria) do romance de Mia Couto em cuja polissemia
parece possvel identificar o pessimismo esperanoso de seu autor .36
Ela considera o modo alegrico dominante no romance do escritor
moambicano, e trabalha com um conceito de alegoria redefinido por
nomes como Quilli gam e Van Dyke. Para esses tericos, o texto alegrico
polissmico, existindo a possibili dade de que ele contenha dois sentidos ou
mais. O sentido literal no obliterado em benefcio de um segundo, e no
existe uma hierarquizao vertical de significaes. De acordo com Simas-
Almeida, Ter ra Sonmbula constitui um paradigma perfeito de
cruzamento e simultaneidade de sentidos no verticalmente
hierarquizados .37 Isso pode ser notado na estrutura bsica do romance pela
constatao da plurivocidade materializada na multiplicao de narradores
e contos, o que sugere acumulao e no hierarquizao de sentidos, pois
35 SIMAS-ALMEIDA, Leonor. A redeno pela palavra em Terra Sonmbula de Mia Couto. In: Revista da Faculdade de Letras. Lisboa, n. 19/20, 1995-1996. p. 159-169. 36 Id., ib., p. 163. 37 Id., ib., p. 164.
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se representa uma realidade mltipla e complexa. Tambm se pode
observar a predominncia do modo alegrico , segundo a autora, no nvel
da linguagem em que se combinam sentidos prprios e figurados em
linha horizontal e no plano da diegese na associao e reciprocidade
constantes da dimenso mimtica e da dimenso potica da narrativa, de
acordo com leis de probabili dade e necessidade estabelecidas pelo(s)
narrador(es) . Desse modo, equiparam-se ao longo da narrativa tempo
histrico constantes aluses histricas guerra, corrupo, fome,
doena... e tempo mtico contos fantsticos, aparies e prodgios...
- , refletindo um ao outro.
Simas-Almeida, diferentemente de Rejane Silva, afirma a
equivalncia dos planos realista (representao do real emprico) e mtico
(representao do simblico, do imaginrio). Esse parece ser um caminho
mais adequado para a compreenso e interpretao da fico de Mia Couto,
conquanto ocorram alguns problemas de denominao (contos
fantsticos ) e uma certa indefinio quanto aos elementos narrativos desse
plano mtico. A autora afirma, por exemplo, haver uma interpenetrao do
real e do mgico ou fantstico .
O estudo de Laura Cavalcante Padilha citado anteriormente por
ocasio do tema da oralidade tambm uma reflexo sobre a
manifestao da utopia no texto literrio. Segundo Padilha, Helder Macedo
e Mia Couto constroem seus romances a partir da certeza da runa dos
utpicos sonhos que marcaram o passado . Desse modo, pensam ambos a
devastao, mais que a dilatao.38 (Servem de epgrafe ao ensaio os
versos de Os lusadas: E tambm as memrias gloriosas / Daqueles reis
38 PADILHA, Laura Cavalcante: 1998, p. 246.
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que foram dilatando / A F, o Imprio, e as terras viciosas / De frica e
sia andaram devastando, os quais so analisados a partir do quadrado
semitico de Greimas). Padilha faz a anlise das trs epgrafes do romance
de Mia Couto, mostrando como elas so partes desdobradas do percurso do
romance: parte-se do mtico, ou das origens ancestrais autctones
(Crena dos habitantes de Matimati e Fala de Tuahir ), ampliando-se
na direo do canonicamente ocidental (Plato), fala tambm ancestral e
mtica. Nota-se, desse modo, a valorizao do papel do simblico no
romance.
A autora procura entender o funcionamento das estrias
encaixantes no sentido das narrativas e conclui que os dois romances (nos
quais a experincia e a memria so os elementos responsveis pelo
mover-se das engrenagens do relato) apresentam em comum o gosto pelo
suplemento, no sentido derridiano do termo .39 Cada uma dessas vrias
narrativas traz algo a mais, num desdobramento ili mitado; elas so
responsveis pelo excesso imprescindvel para a prtica da decifrao .
Ento, afirma Padilha, se num primeiro momento Mia Couto e Helder
Macedo parecem estar de acordo com a idia do fracasso dos ideais
libertrios, a partir da considerao desses suplementos, possvel notar
que os dois romancistas no deixam de sonhar, esforando-se para manter
vivo um ltimo reduto de utopia, existindo neles um pacto de esperana.
Essa viso de Padilha se assemelha de Simas-Almeida, quando esta faz
referncia ao pessimismo esperanoso.
39 Id., ib., p. 252.
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1.4. Algumas contr ibuies da cr tica
Os textos escolhidos, embora nem sempre tratem diretamente de
Cada homem uma raa, so representativos no inventrio da crtica da
obra de Mia Couto, sobretudo daquela produzida na mesma poca deste
livro - Cronicando (1991), Ter ra sonmbula (1993), Estr ias
abensonhadas (1994). Por isso, so importantes para o estabelecimento de
novos caminhos de anlise e de interpretao dos contos estudados.
Procura-se, com essa reviso, menos descobrir os significados especficos
atribudos a cada narrativa, do que investigar os sentidos e as formas da
fico de Mia Couto de uma maneira ampla. Esse procedimento permite
depreender alguns pontos bsicos a respeito da crtica da produo literria
desse autor:
1) So em grande nmero as anlises que tratam de problemas
especficos da linguagem literria das obras tanto quanto aquelas cujo tema
oralidade. Entretanto, afirmar que esse um terreno sobejamente
explorado no significa dizer que esses aspectos devem ser excludos das
anlises;
2) Considera-se que as inovaes e transgresses da linguagem de
Mia Couto, assim como o efeito de oralidade produzido em suas narrativas,
representam uma forma de resistncia cultural, na medida em que tratam de
aspectos ontolgicos e sociolgicos das comunidades moambicanas. Essa
relao no se d, no entanto, de maneira direta, e sim mediada pelos
elementos prprios da esttica literria;
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3) Os estudos comparativos so bastante numerosos e relacionam
preferencialmente a fico de Mia Couto do brasileiro Guimares Rosa,
devido ao parentesco da escrita dos dois;
4) Parece existir uma indefinio conceitual no que diz respeito aos
elementos inslitos presentes nos textos;
4) A utopia e o sonho so tomados como elementos fundamentais
das narrativas estudadas;
5) A maioria das leituras considera ponto essencial para a
compreenso da fico do escritor moambicano a representao dos mitos,
lendas e crenas do povo africano. Esses elementos relacionados ao
imaginrio africano ganham, todavia, tratamento diferenciado. H, por
um lado, a tendncia quase generalizada de entender essa fico como uma
manifestao legtima do mundo africano , tradicional, em contraponto a
uma narrativa ocidental. Existem, por outro lado, algumas vozes apontando
para o carter hbrido dessa manifestao literria.
fundamental, para levar adiante uma anlise de Cada homem
uma raa, a considerao especial de alguns dos aspectos revelados pela
crtica da obra de Mia Couto. Assim, a abordagem dos recursos do nvel da
linguagem e do efeito oralizante da escrita imprescindvel para a
compreenso dos contos. Merece ateno, tambm, a relao estabelecida
entre elementos histricos e elementos de carter mtico, bem como a
relevncia e a funo desses elementos nos textos.
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2. HISTRIA E MITO
2.1. Relaes entre histr ia e mito
O terico russo E. M. Mielietinski, em um texto sobre o mitologismo
no sculo XX, afirma que a utili zao do mito, seja como procedimento
artstico ou como viso do mundo que fundamenta esse procedimento,
um fenmeno significativo da literatura desse sculo.40 A partir dos anos
50-60, a potica da mitologizao comea a ser observada nas literaturas
latino-americanas e afro-asiticas. No caso dessas literaturas, podem
coexistir as tradies folclricas arcaicas e a conscincia folclrico
mitolgica [...] com o intelectualismo modernista de tipo puramente
europeu.41 Essa situao histrica e cultural possibilita que elementos de
historicismo e mitologismo estejam presentes ao mesmo tempo nos
romances. Mielietinski observa ainda que, embora o mito e a histria
apresentem-se sempre como opostos, por outro lado, no podem ser
separados na literatura mitologizante do sculo XX.
Em todas as obras das literaturas latino-americanas e afro-asiticas
(por ele analisadas), por mais intensas que sejam a crtica social e a stira
no plano realista, o mitologismo vai estar ligado, de maneira direta e em
40 MIELIETINSKI, E. M. A potica do mito. Rio de Janeiro: Forense-Universitria, 1987. p. 350. 41 Id., ib., p. 433.
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menor ou maior grau, s tradies locais e nacionais. A problemtica
poltica revolucionria tambm aparece com freqncia, na combinao
entre elementos da potica modernista da mitologizao com a valorizao
neo-romntica do folclore e da histria nacionais.
A utili zao da linguagem do mito, por parte de escritores africanos,
fundamenta-se no fato de que a sobrevivncia do pensamento folclrico-
mitolgico uma realidade histrica no meio cultural desses escritores.
Entretanto, como salienta o terico, no se deve esperar uma coincidncia
entre a linguagem do mitologismo do sculo XX e a dos mitos antigos,
pois no se pode colocar sinal de igualdade entre a inseparabil idade do
indivduo face sua comunidade e a sua degradao na sociedade
industrial .42
Sero levados em conta esses pressupostos bsicos, os quais
afirmam a importncia do mito para a literatura do sculo XX e a
coexistncia dos aspectos mitolgicos e histricos nas narrativas das
literaturas da Amrica Latina, frica e sia, para se buscar a abordagem
dos contos de Mia Couto. Entende-se mito, neste trabalho, de acordo com a
concepo do historiador das religies Mircea Eliade, como histria
verdadeira , narrativa extremamente preciosa por seu carter sagrado,
exemplar e significativo".43 Refletindo sobre essas observaes, deve-se
lembrar que os textos de Mia Couto so escritos a partir de um lugar
cultural onde o mito muitas vezes sobrevive no interior das comunidades,
ou na sua forma primitiva, ou travestido em uma nova manifestao.
Entretanto, como afirma Mielietinski, impossvel a correspondncia entre
a mitologia arcaica e a simbologia presente nas narrativas modernas. Um
42 Id., ib., p. 440. 43 ELIADE, Mircea. Mito e realidade. 6.ed. So Paulo: Perspectiva, 2002. p. 7.
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dos fatores a serem considerados como decisivos para tratar dessas
questes o colonialismo na frica, a ocupao e dominao dos
territrios do continente desde o sculo XVI, processo cuja intensificao
se deu realmente na segunda metade do sculo XIX.
2.2. Situao colonial e descolonizao
Nos contos de Cada homem uma raa, nota-se a recorrncia de
situaes confliti vas, resultantes da imposio de uma cultura europia
opressora sobre uma cultura africana dominada e sufocada, na sociedade
colonial estabelecida. A situao colonial tratada de maneira bastante
detalhada por Albert Memmi, na obra Retrato do colonizado precedido
pelo retrato do colonizador.44 Embora o autor considere o problema
principalmente a partir do referencial das colnias francesas, as reflexes a
respeito dos dois sujeitos envolvidos no processo podem servir para pensar
a situao da colonizao portuguesa em frica. O texto, como indica seu
ttulo, divide-se em duas partes: na primeira, pintado o retrato do
colonizador; na segunda, o do colonizado.
No captulo dedicado ao colonizador, Memmi expe os sentidos da
viagem colonial , cujas motivaes so, sobretudo, econmicas. Segundo
o autor, inevitvel que o europeu emigrado para a colnia se torne um
colonizador. Ele tem ento duas opes: ou recusar a sua condio de
privilegiado, esse o colonizador de boa vontade ; ou aceitar-se como
44 MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizado. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
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25
senhor de direito das vantagens oferecidas a ele, esse o colonialista . A
primeira alternativa, no entanto, no uma possibili dade vlida, uma vez
que no se d a identificao (por uma srie de fatores) entre o europeu que
recusa a situao colonial e o africano vivendo sob o jugo do dominador.
Desse modo, o mecanismo quase fatal: a situao colonial fabrica
colonialistas, como fabrica colonizados .45
A relao do colonizador com a metrpole e os metropolitanos
ambgua: se, por um lado, ele tem o seu pas de origem como um lugar de
perfeio, e idealiza-o no seu discurso; por outro, sabe que l no existe
mais lugar para ele. Com a volta, o colonizador perderia o estatuto de
superior, seria um igual entre os homens de sua nao ou, at mesmo, seria
rebaixado para uma posio inferior, pois as acusaes dos estrangeiros
contra o colonialismo, e as de seus compatriotas por vezes diretas, por
vezes insinuadas , lanam sobre ele uma culpa pela situao do
colonizado, fazendo dele um aproveitador de facili dades. Do mesmo modo
que louva a glria da nao, nutre contra a metrpole e os metropolitanos
um profundo ressentimento .46
O colonizador procura a desvalorizao sistemtica do colonizado.
No tenta se aproximar do outro, rompendo o exlio, mas, de modo inverso,
procura acentuar as diferenas, buscando razes para a recusa da
aproximao. Assim, o racismo surge como um elemento fundamental,
pois serve para tornar legtima uma situao que, vista friamente,
insustentvel.
O colonizador se auto-absolve das culpas que lhe so imputadas
pelos outros e por ele mesmo, afirmando a legitimidade da colonizao. As
45 Id., ib., p. 59. 46 Id., ib., p. 65.
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vantagens e o respeito recebidos so justos, na sua viso, j que ele,
portador dos valores da civili zao e da histria, cumpre uma misso47:
tem o grande mrito de iluminar as trevas infamantes do colonizado .48
Agindo desse modo, outorgando-se o ttulo de protetor e provedor, explica
a servido do colonizado, cujo carter escandaloso poderia ser admitido at
mesmo por ele.
O escritor de origem tunisiana comea a segunda parte de seu livro
tratando do retrato mtico do colonizado produzido pelo colonizador o
qual desempenha importante papel na dialtica entre enobrecimento do
segundo/aviltamento do primeiro. Essa imagem se fundamenta numa srie
de traos atribudos pelo europeu ao africano: preguia, debili dade,
perversidade, sadismo, inaptido, maus instintos, astcia, atraso. Esses
traos, marcados pelo sinal negativo, so fundamentais para as exigncias
afetivas e econmicas do estrangeiro. Alguns dos atributos se excluem uns
aos outros. No entanto, eles justificam todas as atitudes do colonizador,
desde o protetorado at a violncia policial. Para o dominador, no importa
ver o colonizado como ele , mas transform-lo em outra coisa. Ento,
comea por negar todas as qualidades que podem fazer do autctone um
homem: desumaniza-o. interessante notar o eco suscitado por essa
construo no africano: ele acaba, de certo modo, aceitando essa imagem
proposta pelo outro, a qual ganha assim certa realidade e contribui para o
retrato real do colonizado .49
47 Barthes, no seu li vro Mitologias, em que trata dos discursos que se tornaram mticos na modernidade, apresenta um verbete denominado Gramtica africana. Nesse tpico, entre outros vocbulos, destaca misso, termo que funciona, segundo ele, no discurso do colonialismo, tal como coisa ou troo na linguagem ordinria. uma palavra util izada para as situaes mais variadas, sempre justificando a colonizao. BARTHES, Roland. Mitologias. 8. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil , 1989. 48 MEMMI, Albert: 1977, p. 72. 49 Id., ib., p. 83.
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Pode-se, aqui, lembrar Homi Bhabha, no texto em que trata das
formas e funes do discurso colonial. O crtico indo-britnico mostra
como o esteretipo do outro , construdo pelo sujeito colonial, uma
necessidade de autoconservao, de defesa e reflete seu medo em relao
ao diferente. O esteretipo tambm evidencia as estruturas rgidas do
sujeito do discurso colonial, alm de fixar a imagem do outro . Essa
imagem no necessariamente falsa, mas , de qualquer modo, uma
imagem difundida e transmitida, vindo a cumprir uma funo. Lembre-se,
ainda, que a identidade ou, antes, uma imagem de identidade constri-se
em (e atravs de) um discurso.50
Diante dessa construo de linguagem que o mostra a si mesmo
como inferior, o colonizado obrigado, para viver, a aceitar-se como tal.
Como conseqncia, sofre de uma carncia total, j que a colonizao o
reduz privao, e todas as deficincias se combinam e fazem crescer
umas s outras: negao de uma posio no mundo da histria;
impossibili dade de retorno aos valores tradicionais; amnsia cultural,
provocada pela reproduo da situao colonial no seio da famlia. Para
essa carncia, duas respostas so possveis. A primeira a tentativa de
assumir a posio do colonizador. No entanto,
O candidato assimilao, quase sempre, acaba se cansando do preo exorbitante que por ela preciso pagar, e do qual jamais chega a desobrigar-se. Descobre tambm com assombro todo o sentimento de sua tentativa. dramtico o momento em que descobre que retomou por sua conta as acusaes e as condenaes do
50 BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. A outra questo o esteretipo, a discriminao e o discurso do colonialismo. p. 103-128.
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colonizador; que se habitua a olhar os seus com os olhos do seu procurador.51
A outra resposta possvel a revolta. Porque sua condio absoluta,
existe a necessidade de uma reao em termos absolutos, uma ruptura
significativa. Para isso necessrio que o colonizado se aceite e se afirme,
o que um processo ambguo, pois a afirmao de si passa pela aceitao
da diferena, a qual definida pelo colonizador. Mesmo assim, a revolta
inevitvel, pois chega sempre o dia, em que o colonizado levanta a cabea
e faz oscilar o equilbrio sempre instvel da colonizao .52
Uma anlise semelhante da situao colonial feita por Frantz
Fanon.53 O escritor nascido na Martinica destaca, porm, no seu texto, as
tenses produzidas na iminncia e no desenrolar do processo de
descolonizao. Ele preconiza, igualmente, a necessidade do fim da
situao estabelecida nos territrios africanos, e apresenta a tese de que o
colonialismo uma violncia em estado bruto que s pode inclinar-se
diante de uma violncia maior .54
Num texto permeado pela nfase nas causas e conseqncias da
violncia nas guerras de libertao dos pases africanos (mais
especificamente no caso da Arglia, cujo conflito ele acompanhou, como
mdico psiquiatra), Fanon aponta para as diferenas existentes entre as
posies ocupadas pelos diferentes agentes no processo: o povo, o
intelectual, os polticos. Para a massa do povo colonizado, existe a
necessidade de transformao total, a substituio de uma espcie de
homens por outra, sem transio. Isso apenas pode se dar de modo violento. 51 MEMMI, Albert. 1977, p. 108. 52 Id., ib., p. 125. 53 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civil izao Brasileira, 1979. 54 Id., ib., p. 46.
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A descolonizao representa, ento, a destruio de uma de suas partes.
No possvel a convivncia. Ocorre um maniquesmo ao inverso nessa
fase: o colonizador representa tudo o que h de ruim. Antes, o africano,
desumanizado e animalizado, era o mal absoluto; os seus mitos, a marca de
sua indigncia.
A posio do intelectual vai ser diferente, pelo menos no comeo.
Ele questiona a validade da independncia e procura a paz entre as duas
partes: uma impossibil idade. Segundo Fanon, ele tende a comportar-se
como um oportunista vulgar durante o conflito; atenta para o culto do
detalhe, perde de vista a unidade do movimento, em vez de agir como o
povo, para quem o modelo operativo mais eficaz [] a posse da terra e do
po.55 Nas regies onde os intelectuais no se desfazem do pensamento
colonialista, aps a libertao, ocorre a pilhagem total dos recursos da
nao.
interessante notar, ainda, a atitude dos polticos frente luta de
independncia. De modo semelhante s eli tes intelectuais, os partidos
polticos so violentos nas palavras, reformistas nas atitudes [...] querem
mais poder, no a destruio radical da ordem .56 Esses partidos no
rompem o contato com o colonialismo, e pretendem manter o sistema
colonial, atravs de negociaes.
Pode-se afirmar que, de uma maneira geral, os dois processos
colonizao e descolonizao ocorreram, em Moambique, de modo
semelhante ao descrito por Memmi e Fanon. Uma conjuntura histrica
instvel e confli tuosa como essa acaba por se manifestar tambm na
literatura produzida nesse pas. Assim, muitas obras literrias so
55 Id., ib., p. 37. 56 Id., ib., p. 45.
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produzidas tendo como tema problemas relativos ao colonialismo e suas
conseqncias. So poemas, contos e romances que figuram desde a
segregao e discriminao do perodo anterior libertao, at a situao
de desigualdade e opresso do ps-independncia.
2.2.1. Motivao realista
Moambique esteve sob domnio e influncia de Portugal desde o
final do sculo XV. A sua Libertao, assim como a das demais colnias
portuguesas na frica - Angola, So Tom e Prncipe, Guin-Bissau e
Cabo Verde - ocorreu somente na metade da dcada de 1970. A Revoluo
dos Cravos, com a queda de Salazar e a instaurao do regime socialista em
Portugal, em abril de 1974, acelerou o processo que vinha se
desenvolvendo desde, pelo menos, o comeo da dcada anterior nos
territrios africanos. Moambique foi reconhecido como nao
independente em 25 de junho de 1975. Antes, porm, transcorreram quase
quinze anos de luta anticolonial, levada a cabo por guerrilheiros do
movimento revolucionrio de fundo marxista da FRELIMO (Frente de
Libertao de Moambique). Posteriormente, em 1977, o pas mergulhou
numa devastadora guerra civil ,57 que se estendeu por vrios anos, at 1992.
A exposio dos dois sujeitos principais do colonialismo e das
motivaes e conseqncias da libertao das colnias oferece subsdios
importantes para a compreenso da fico de Mia Couto. Os motivos
realistas de suas narrativas esto ligados aos momentos crticos da histria
57 O termo guerra civi l no aceito por algumas correntes crticas .
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recente do pas; as situaes da diegese esto, muitas vezes, relacionadas
realidade emprica de Moambique. Portanto, ignorar os elementos
histricos presentes nos textos estudados recusar a possibili dade de uma
interpretao mais adequada para Cada homem uma raa.
Observa-se que muito forte o substrato histrico dos textos. So
freqentes as referncias a situaes crticas do passado colonial, bem
como a momentos cruciais da luta e das contingncias ps-coloniais.
Tratando desse temas, Mia Couto realiza uma leitura crtica da histria, na
qual aparece sempre uma denncia, explcita ou velada. Entretanto,
conforme nota Rita Chaves, a cena no comporta bandidos e mocinhos;
no se trata de radicalizar pontos de vista opostos e estanques.58 No
existe um maniquesmo na figurao dos acontecimentos. Tanto o
portugus inescrupuloso quanto o moambicano aproveitador podem ser
alvo de crticas.
A partir dessa perspectiva pode-se considerar, por exemplo, o conto
"O Apocalipse privado do tio Gegu". Em um determinado momento diz-se
a propsito de uma bota encontrada pela personagem Gegu: "A botifarra
estava garantida pela histria: tinha percorrido os gloriosos tempos da luta
pela independncia".59 Existe a localizao da narrativa em um tempo
posterior ao 25 de junho de 1975. No entanto, se os tempos da luta foram
"gloriosos", os do presente no o so. Por obra de Gegu e seu sobrinho -
cuja posse da "braadeira vermelha" de vigilante assegurava a autoridade e
os desmandos - "nascera" uma guerra no povoado:
58 CHAVES, Rita: 1997, p. 245. 59 COUTO, Mia: 1998, p. 30. (A partir daqui as referncias aos nmeros de pgina dessa obra sero feitas no corpo do texto, entre parnteses, para evitar excesso de notas).
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Casa, carro, propriedades: tudo se tinha tornado demasiado mortal. To cedo havia, to cedo ardia. Entre os mais velhos j se espalhava a saudade do antigamente. - Mais valia a pena... [...] Alguns se amargavam, fazendo conta aos sacrifcios: - Foi para isso que lutmos? (p. 45)
A situao do povoado nesse conto representa o estado do pas nos
anos subseqentes libertao do domnio portugus, em que se instalou
uma grande desordem devido guerra. Essa guerra, figurada na narrativa,
pode ser entendida como o conflito iniciado algum tempo depois da
descolonizao, e que envolveu principalmente a FRELIMO e a RENAMO
(Resistncia Nacional de Moambique) grupo formado por dissidentes do
regime, apoiado por portugueses que haviam sido destitudos do poder,
rodesianos e sul-africanos. De acordo com Fanon, quando a independncia
ocorre, ela traz a dignidade, mas no h tempo suficiente para elaborar uma
sociedade a partir dos destroos da anterior.60 Alm disso, a violncia no
se extingue logo aps a libertao. O conflito continua, motivado pela
competio entre socialismo e capitalismo (leve-se em conta o fato de que
Fanon escreve em plena Guerra Fria). Assim, para a grande maioria da
populao, a independncia no traz mudana imediata.
Conforme o terico indiano Aijaz Ahmad, em alguns pases como os
do sul da frica, que venceram suas guerras de libertao na metade da
dcada de 1970, foi possvel ver com clareza a dinmica de uma luta
anticolonial transformando-se numa luta socialista.61 Entretanto, afirma
Ahmad, os movimentos revolucionrios de independncia dos pases
africanos e asiticos do sculo XX que tentaram substituir as sociedades
60 FANON, Frantz: 1979, p. 63. 61 AHMAD, Aijaz. Linhagens do presente. So Paulo: Boitempo, 2002. p. 26.
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coloniais por sociedades socialistas no tiveram xito. Ocorreu, ao
contrrio, o fortalecimento da burguesia nacional, com conseqncias
funestas para esses pases.62
No fragmento do conto citado na pgina anterior, notvel o
sentimento de desiluso diante de uma realidade que no corresponde
quela sonhada e buscada em anos de lutas motivadas pelos ideais
socialistas. Uma realidade perante a qual o "antigamente" dos tempos
coloniais se afigura como algo menos desditoso e, at mesmo, mais
desejvel.
2.3. Transfigurao do real e transformao pela palavra
...a arte o equivalente moderno do rito e da festa: o poeta e o romancista constroem objetos simblicos, organismos que emitem imagens. Fazem o que faz o selvagem: convertem a linguagem em corpo. As palavras j no so coisas e, sem deixar de ser signos se animam, ganham corpo.
Octavio Paz. Conjunes e disjunes.
As narrativas de Mia Couto figuram, de uma parte, de maneira
realista, fatos e momentos histricos importantes do pas; de outra parte,
apresentam um forte contedo mtico, cuja expresso pode ser a narrao
do acontecimento inslito (a transfigurao do real) ou a criao de
62 Id., ib., p. 42-43.
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imagens metamorfoseadoras, atravs da linguagem. Os elementos
relacionados com o mito ou com uma viso mtica do mundo so muito
freqentes em Cada homem uma raa.
um procedimento recorrente a narrao de eventos nos quais
ocorre a subverso das leis naturais do modo como elas so concebidas
pelo pensamento racional. No conto "O pescador cego", por exemplo,
Maneca Mazembe arranca seus prprios olhos para utili z-los como isca,
numa ocasio em que fora acometido de terrvel fome, estando perdido em
pleno mar. Graas aos peixes fisgados, ele se mantm vivo at chegar de
volta praia de sua aldeia. Esses j so acontecimentos cujo tom de
estranhamento e desconformidade com as leis da realidade se fazem notar.
Quando Salima, sua mulher, manifesta a vontade de sair com o barco
para pescar, Maneca probe-a, arrasta o barco para longe da gua e passa a
viver dentro dele. Um dia, malgrado as advertncias de Salima quanto
desgraa que isto provocaria, o pescador ateia fogo embarcao. A
mulher e os filhos o abandonam, deixando-o na praia. Um tempo depois,
ocorre algo inusitado:
Certa noite [...], se confirmou o pressgio de Salima: aquele fogo voara demasiado alto, incomodando os espritos. Porque, do topo dos coqueiros, o vento se deu de uivar. Mazembe se afligiu, o cho mesmo se arrepiou. Sbito, o cu se rasgou e grossas pedras de gelo tombaram em toda a praia. O pescador corria no vazio, procura de abrigo. O granizo, implacvel, lhe castigava. Maneca desconhecia explicao. Nunca ele se cruzara com tais fenmenos. A terra subiu para o cu, pensou. Virado do avesso, o mundo deixava tombar seus materiais. (p. 103)
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inconcebvel para uma racionalidade dita cientfica aceitar que tais
eventos possam realmente ter lugar: como pode uma tempestade to grande
e avassaladora ser desencadeada pela fumaa do incndio de um barco?
impossvel, porm, deixar de notar a relao de causa e efeito estabelecida
entre a queima da embarcao e os fenmenos meteorolgicos. No h
dvida de que se trata de uma punio por um ato reprovado pelos
espritos. No seria esse fato um exemplo de revelao da causalidade
onipresente do realismo maravilhoso conforme teorizado por Chiampi
que provoca um efeito de encantamento do leitor pela percepo da
contigidade entre as esferas do real e do irreal?63
Pode-se considerar, ainda, um segundo modo pelo qual o inusitado
entra na narrativa; dessa vez, no atravs da transfigurao do real, mas
pela maneira de nomear as coisas. leitura do fragmento anterior,
prestando ateno s aes atribudas aos elementos naturais presentes,
nota-se que, na prpria descrio da situao, na caracterizao da
paisagem, produz-se um efeito de estranhamento, seno de encantamento.
Esse efeito provavelmente se deve utili zao de um processo de
personificao. Mas a seleo lexical operada no visa construo de uma
simples figura, e sim criao de um novo modo de apreenso da realidade
e de seus sentidos. Tampouco parece correto falar em personificao, nesse
contexto, embora alguns dos elementos do espao descrito sejam investidos
de caractersticas e atitudes humanas.
Mais adequado seria afirmar que esses elementos vento, cho,
granizo, terra - ganham vida e passam categoria de seres animados. Esse
tipo de representao do espao entra em conflito e , at mesmo,
63 CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso: forma e ideologia no romance hispano-americano. So Paulo: Perspectiva, 1980. p. 61.
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incompatvel com uma lgica racionalista e uma concepo objetivista do
mundo: expressaria e, ao mesmo tempo, seria resultado de uma viso
mtica do mundo.
2.3.1. Insli to e categor ias li terr ias
O objetivo desta parte do trabalho discutir qual modalidade de
sobrenatural existe nas narrativas e descobrir de que tipo de categoria
ficcional essas narrativas esto mais prximas. Conforme j foi notado
anteriormente, existe uma indefinio quanto nomeao do tipo de
manifestaes presentes na fico do escritor moambicano. Essa
indefinio, na verdade, no se torna fator determinante nas anlises dos
textos. De maneira geral, os crticos tm chegado a importantes resultados
na compreenso e interpretao dos sentidos da obra de Mia Couto.
Entretanto, procura-se, neste trabalho, seguir as recomendaes de Roman
Jakobson a respeito da necessidade de um certo rigor na nomeao dos
fenmenos artsticos, considerando o carter cientfico atribudo aos
estudos da linguagem e da literatura.64
A discusso a respeito desse tema foi iniciada no sub-captulo
Utopia, sonho, mito e histria , em que foram consideradas algumas
anlises da obra de Mia Couto. A fim de retomar essa questo, cita-se
novamente Rejane Vechia da Rocha e Silva, para quem a utopia surge
dentro de uma narrativa que, s vezes, recorre ao fantstico para mostrar a
64 JAKOBSON, Roman. Do realismo artstico. In: EIKHENBAUM, B. et al. Teor ia da l iteratura formalistas russos. 4. ed. Porto Alegre: Globo, 1978. p. 119-127.
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brutalidade da realidade frente aos maiores absurdos criados pela fico 65
(grifos nossos). Aceitando esse ponto de vista, admite-se que a funo
desempenhada por esse elemento chamado de fantstico seria
simplesmente a de expor as mazelas da realidade do pas. Silva fornece um
exemplo desse mecanismo: Seria absurdo os mortos voltarem para
reclamarem e discutir com os vivos a sua prpria existncia? Mais
fantstica foi a submisso a que o povo moambicano foi submetido... 66
Alm da simpli ficao da funo desse outro plano, existe o problema de
sua denominao, pois absurdo e fantstico so usados como
expresses equivalentes. Ademais, a afirmao de que a narrativa, s
vezes , utili za-se do fantstico , tambm suscita problemas. Primeiro
deve-se perguntar: o que seria esse fantstico? Pelos exemplos fornecidos
pelo texto, pode-se afirmar que so os acontecimentos inslitos, os quais se
opem s leis do mundo natural. Admitida essa hiptese, deve-se concordar
que o carter espordico atribudo a essas manifestaes, pelo uso do
adjunto adverbial s vezes , um tanto quanto inadequado, tendo em vista
a freqncia do aparecimento e o lugar ocupado dentro da narrativa por
esses acontecimentos.
Outros crticos que se dedicaram ao estudo da obra de Mia Couto
tambm tm preferido analis-la sob a tica do fantstico, de acordo com a
concepo de Torodov. Maria Aparecida Santilli , ao analisar contos do
livro Vozes Anoitecidas, afirma que o timbre do inslito [...] advm do
maravilhoso, ou do sobrenatural .67 Ela trata, ainda, como fantsticas, as
narrativas estudadas. Esse tipo de abordagem, no entanto, pode ser revista.
65 SILVA, Rejane Vechia da Rocha e: 2002, p. 494. 66 Id., ib., p. 495 67 SANTILLI, Maria Aparecida. O fazer-crer, nas histrias de Mia Couto. In: Via Atlntica, So Paulo, n. 3, 1999. p. 98-109.
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Numa considerao preliminar, para relativizar esse ponto de vista bastaria
afirmar que nos textos de Mia Couto no ocorre a hesitao entre dois tipos
de explicao para um acontecimento o que seria, de acordo com
Todorov, condio principal para a existncia do fantstico.
Aqui se faz necessrio um parntese para a discusso dessa
categoria. De acordo com Todorov, o fantstico a hesitao
experimentada por um ser que s conhece as leis naturais, face a um
acontecimento aparentemente sobrenatural.68 O terico torna essa
definio mais precisa ao afirmar que, para ser considerado fantstico, um
texto deve atender a trs condies. A primeira delas fazer com que o
leitor considere o mundo das personagens como regido por leis naturais e
hesite entre uma explicao natural e uma explicao sobrenatural para
acontecimentos que, num primeiro momento, no podem ser entendidos a
partir das leis desse mundo. A segunda condio a de que a hesitao do
leitor tambm seja sentida por uma personagem. A terceira a recusa, por
parte do leitor, da interpretao alegrica, bem como da interpretao
potica do texto. O fantstico constitudo realmente pela primeira e
terceira condies; no existe a obrigatoriedade de que a segunda seja
satisfeita.
Nas narrativas de Mia Couto, assim como no ocorre a hesitao,
no existe tampouco um questionamento sobre a realidade dos fenmenos
por parte das personagens, embora possa haver uma indagao dos motivos
de tais ocorrncias. No conto "O Apocalipse privado do tio Gegu", aps
retomar a bota que seu sobrinho no quisera calar, Gegu resolve livrar-se
dela: Pegou na bota e atirou para longe. O estranho ento sucedeu: lanada
68 TODOROV, Tzvetan. Introduo li teratura fantstica. So Paulo: Perspectiva, 1975. p. 31.
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no ar a bota ganhou competncia voltil. A coisa voejava em velozes
rodopios. O tio Gegu desafiara os espritos da guerra? (p. 31)
Na pergunta do narrador, l-se a afirmao da possibili dade da
existncia de tais eventos: num mundo em que se acredita na interveno
dos espritos dos antepassados, possvel que coisas "estranhas"
aconteam. Conforme Santilli , as personagens dos contos de Mia Couto
remetem a um locus cultural onde determinados hbitos e posturas do
pertinncia ao tipo de eventos e crenas em que tais eventos se
abeberam .69 De maneira semelhante caracterizao do continente
americano, por Alejo Carpentier, como o territrio do "real maravilhoso
americano",70 poder-se-ia caracterizar a frica71 como um espao cultural
em que determinados eventos, "maravilhosos" para a concepo do
europeu, so "reais" para o africano. Carpentier - em um texto
originalmente escrito como prlogo a El reino de este mondo no qual
ataca o superficialismo e convencionalismo da utili zao do maravilhoso
pelos escritores surrealistas - forja a expresso real maravilhoso para
designar a realidade vivenciada no continente americano, em que a histria
se mescla s lendas e crenas dos povos autctones. Estas ltimas tomadas
como verdadeiras, pois a f vem a ser um dos elementos fundamentais para
a existncia do maravilhoso.72
69 SANTILLI, Maria Aparecida: 1999, p. 107. 70 CARPENTIER, Alejo. Tientos y diferencias. Buenos Aires: Calicanto, 1976. De lo real maravilhoso americano. p. 83-99. 71 preciso, entretanto, levar em conta o perigo de uma generalizao, conforme alerta Appiah. APPIAH, Kwame A. Na casa de meu pai a frica na filosofia da cultura. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. p. 122. 72 CARPENTIER, Alejo: 1976, p. 96.
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No despropositado apontar semelhanas entre a fico produzida
nos dois continentes73 - semelhanas j atestadas por Mielietinski em suas
consideraes sobre o entrecruzamento de mitologismo e historicismo nas
literaturas do terceiro mundo .74 O crtico moambicano Nataniel
Ngomane, em um texto sobre o romance Ualalapi, de Ungulani ba ka
Khosa, refere este ficcionista, juntamente com Mia Couto, como
paradigmtico da apropriao dos modelos da narrativa hispano-
americana.75 Ngomane afirma ser a narrativa de Ualalapi caracterizada
pela mistura de verdades factuais, passveis de comprovao documental,
com verdades mticas, sobrenaturais .76 Embora no denomine esse tipo de
fico a qual se assemelha de Mia Couto de realismo maravilhoso, o
crtico utili za-se de noes de Chiampi, como a de contigidade entre as
esferas do real e do irreal, para explicar o procedimento de Ungulani.
Em artigo sobre o mesmo autor, o tambm moambicano Gilberto
Matusse aponta igualmente a contribuio do modelo de fico hispano-
americana na simulao ou construo de uma nova lgica, baseada, quer
na viso mitolgica da tradio africana, quer no encontro, no cruzamento
desta com os modelos do pensamento europeu .77 Segundo Matusse,
73 vlido mencionar o artigo de Zil Bernd sobre a relao entre histria e mito em romances brasileiros e caribenhos. Ela analisa a presena do maravilhoso americano em narrativas desses dois espaos geogrficos. BERND, Zil. O maravilhoso como ponto de convergncia entre a literatura brasileira e as li teraturas do Caribe. Disponvel em Acessado em 20/01/2004. 74 Termo util izado sem pretenses tericas, servindo apenas para designar os chamados pases em desenvolvimento. Ahmad, no captulo Teoria dos trs mundos: o fim de um debate, mostra as dificuldades tericas na formulao e uti li zao desse termo, cujo significado inicial era o de mundo do no-alinhamento mili tar (EUA e URSS), chegando at a verso maosta da expresso: o Terceiro Mundo era composto dos pases predominantemente agrcolas e pobres, a qual acabou vigorando por mais tempo. AHMAD, Aijaz: 2002, p. 167-195. 75 NGOMANE, Nataniel. Palavras si lenciadas, vozes emergentes: o resgate da Histria em Ualalapi de Ungulani ba ka Khosa. Maderazinco Revista Literria Moambicana. Disponvel em: . Acessado em 15/01/2004. 76 Id., ib. 77 MATUSSE, Gilberto. O modelo da narrativa fantstica hispano-americana e a construo da imagem da moambicanidade em Ungulani ba ka Khosa. In: CRISTVO, Fernando; FERRAZ, Maria de
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recorrendo a esses modelos, o autor moambicano aproveita um esquema
e uma tcnica literria consagrados, que lhe propiciam a incorporao da
viso mitolgica e do simbolismo do imaginrio das sociedades
tradicionais africanas .78
Carmen Lcia Tind Ribeiro Secco faz uma leitura comparada de
um conto de Mia Couto e de um romance de Mario Vargas Llosa. Para a
autora, esses escritores entendem a literatura como um espao atravs do
qual o reservatrio das culturas locais, sufocado pela colonizao europia,
pode ser recuperado. Afirma, ainda, que as narrativas fantsticas latino-
americanas e africanas fazem interagir o natural e o sobrenatural, o real e o
supra-real como expresses singulares das prprias culturas locais .79
Os dois ltimos crticos, assim como Maria Aparecida Santilli ,
utili zam a categoria do fantstico. Matusse, porm, chega a questionar a
validade do uso desse termo para os contextos hispano-americano e
africano. Ele afirma que tal utili zao deve ser tomada com reservas, pois o
conceito de fantstico formulado a partir de uma viso do mundo
fundamentada no modelo racionalista ocidental, enquanto as obras literrias
estudadas so produzidas dentro de um contexto onde vigoram outros
modelos de pensamento.80 Por semelhante razo, Carmen Lucia Tind
Secco declara que as narrativas de Mia Couto e Vargas Llosa se afastam
dos modelos europeus: elas deixam ler, nos interstcios do discurso
Lourdes; CARVALHO, Alberto (coord). Nacionalismo e regionalismo nas li teraturas lusfonas. Lisboa: Cosmos, 1997. p. 313. 78 Id., ib., p. 313. 79 SECCO, Carmen Lcia Tind Ribeiro. Fantstico latino-americano: nas malhas da li teratura e da histria (uma abordagem comparatista com o fantstico africano).In: VII Congreso Internacional de la Fiealc, Instituto de Postgrado de Estudios Latinoamericanos, Universidad de Tamkang, 1995. (Texto fornecido pela autora, por meio eletrnico). 80 MATUSSE, Gilberto: 1997, p.