Download - Dissertacao Nayara Emerick Lamb
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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro de Cincias Sociais
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas
Nayara Emerick Lamb
Histria de Farrapos: biografia, historiografia e cultura histrica
no Rio Grande do Sul oitocentista
Rio de Janeiro
2012
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Nayara Emerick Lamb
Histria de Farrapos: biografia, historiografia e cultura histrica no Rio Grande do
Sul oitocentista
Dissertao apresentada como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre ao Programa de Ps-Graduao em Histria da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, rea de concentrao: Histria Poltica.
Orientadora: Prof. Dra. Marcia de Almeida Gonalves.
Rio de Janeiro
2012
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CATALOGAO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/ BIBLIOTECA CCS/A
Autorizo, apenas para fins acadmicos e cientficos, a reproduo total ou parcial desta Dissertao. _____________________________________ ___________________________ Assinatura Data
L218h Lamb, Nayara Emerick Histria de Farrapos: biografia, historiografia e cultura
histrica no Rio Grande do Sul oitocentista / Nayara Emerick Lamb. 2012.
169 f. Orientadora: Maria de Almeida Gonalves. Dissertao (mestrado) - Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. Bibliografia. 1. Brasil Histria Guerra dos Farrapos, 1835-1845 -
Teses. 2. Rio Grande do Sul Histria - Teses . I. Gonalves, Maria de Almeida. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.Instituto de Filosofia e Cincias Humanas. III. Ttulo.
CDU 981 1835/1845
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Nayara Emerick Lamb
Histria de Farrapos: biografia, historiografia e cultura histrica no Rio Grande do
Sul oitocentista
Dissertao apresentada, como requisito parcial para obteno do Ttulo de Mestre ao Programa de Ps-Graduao em Histria, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro rea de concentrao: Histria Poltica.
Aprovada em 4 de abril de 2012.
Banca Examinadora:
_____________________________________________ Prof. Dra. Marcia de Almeida Gonalves (Orientadora)
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas - UERJ
_____________________________________________ Prof. Dra. Lcia Bastos Pereira das Neves
Instituto de Filosofia e Cincias Humanas - UERJ
_____________________________________________ Prof. Dr Ilmar Rohloff de Mattos
Departamento de Histria PUC-RJ
Rio de Janeiro
2012
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DEDICATRIA
minha me e famlia pelo carinho e apoio nesses anos
de estudo.
s minhas orientadoras Marcia e Regina pela pacincia e
incentivo.
Ao professor Temstocles Czar que, mesmo sem saber
deu o impulso principal deste trabalho.
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AGRADECIMENTOS
Agradecimentos... T ai... Talvez a parte mais difcil de um trabalho. Voc
senta, faz uma longa lista das pessoas que voc acha que no deve esquecer (ou porque no
quer esquecer ou porque acha que ficaro magoadas), pensa, repensa, tem aquela sensao
terrvel na boca do estomago de que est esquecendo algum fundamental, por fim desiste
e parte para a escrita. Da olha para o computador e... E... E no sai nada... rsrsr...
Vamos comear pelo bsico ento:
Mame (aquela que sempre resmunga de no ter nome e ser sempre a mame),
nem sei o que lhe dizer para agradecer. Podia falar da vida que me deu ou da fora que fez
para me (nos) criar, mas pouco. Prefiro falar dos castigos em que me ps sentada naquela
velha poltrona lendo: s levanta da quando acabar!. Agradeo por eles todos os dias de
manh. No fossem as minhas eternas travessuras de infncia, eu no teria esse gosto
maravilhoso de ler compulsivamente e no estaria nem perto de onde estou hoje. Por isso:
obrigada!!
Pai. A vida foi estranha conosco por muito tempo, mas hoje eu sou to feliz com
voc que no posso reclamar de nada. Obrigada pela vida e por me ensinar tanto, mesmo
sem perceber.
Irmos: Marcio, Willian, Daniel. Separados como estamos, sinto falta de todos em
cada passo da minha vida. Marcinho foi pro cu, mas ajudou a formar meu carter e o
senso de responsabilidade com o mundo. Willian, meu Lila, at hoje, mesmo de longe me
faz lembrar que as pessoas so diferentes mesmo e nem por isso no podem se amar. Dani,
meu caula, obrigada pelo carinho de quem quase no se v, mas que sente falta. Aos trs:
obrigada pela convivncia de infncia que me fez crescer uma garota forte e durona que
hoje sabe se defender da vida e lutar pelo que quer. Ser a nica menina entre vocs fez toda
a diferena.
Tias Luclia, Clara e Marlene. Nem sei o que dizer. Vocs me abriram a casa e o
corao me deixando fazer uma bela baguna por muitos anos. Nem sei onde estaria se
vocs no me dessem aquele abrigo e tantos abraos. Na distancia da mame, vocs foram
as melhores mes do mundo! Tenho que agradecer principalmente por me deixarem com
aquela pulguinha atrs da orelha quanto s origens riograndenses. Um impulso
fundamental!
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Famlia uma coisa cumprida e estranha que nem sempre a gente quer ou
conhece. Avs e avs, tios e tias, primos e s deus sabe mais quem entra nesse balaio. Se
amo todos? Provavelmente no, mas respeito cada um pela herana imaterial que me
legaram. Obrigada gentica por me deixar fazer parte de todos vocs mesmo sem querer.
Conhecidos tenho muitos e amigos tenho poucos. Grupos distintos: amigos de
infncia, amigos de colgio, amigos de faculdade e amigos que a vida te d mesmo sem
voc querer.
s minhas amigas de infncia Daniele, Fernanda e Carolina agradeo por me
conhecerem to bem, mas no fazerem a mnima ideia sobre o que fao para viver. Me
amam de qualquer jeito e isso fantstico. Nos nos vemos mais que uma vez ao ano e
elas nunca vo saber que constam nesse agradecimento, mas eu as quis aqui, bem pertinho.
Beijos!
Amigos de colgio tenho aqueles que ajudaram a formar minha viso poltica de
mundo. Amigos do grmio horizontal do CEJE com quem convivo sempre ou esbarro na
rua quando volto para casa. Mariana e sempre ser a pessoa mais importante que conheci.
Ela parte do que sou e me sinto honrada toda vez que posso fazer parte da sua vida: no
seria ningum se no nos conhecssemos. Daniel Cruz inesquecvel e mantenho um
espao no corao para guardar as coisas que vivemos juntos: todo dia uma novidade. O
palhao ainda esta sobre a minha cama. De alguns no lembro o nome, outros sei at o
telefone: 3 Taveiras (Rafael, Daniel, David) que me seguiram no Rio de Janeiro, Rodrigo
Incio que no perde a chance de me chamar de anarquista, mas que esta sempre l em
casa perturbando minha me, JC que nem sei por onde anda, Moreth, Sandrinho, Isadora,
etc... Gente demais...
Dos amigos de faculdade uma histria eterna de tdio em algumas aulas e
histrias infinitas para contar de outras. Ivan, Pedro Muoz, Pedro Vetter, Gabi, Thiago
Passos, Vicente. Amigos que at hoje mantenho contato e aonde busco alegria e conforto
quando posso. A vida insiste em separar o que eu luto para manter unido. Bem que vocs
podiam cooperar um pouquinho e aparecer mais... Dois se destacam Bia e Ciro: gosto de
pensar (nunca falei isso para eles) que so os irmos que eu escolhi ter. Esto comigo todo
dia e eu amo pensar que vamos nos ver... No conseguiria passar pelo que passei nos
ltimos anos sem vocs. Obrigada por tudo. MESMO!!!
Andrea Camila de Faria. Essa merece o nome todo porque a companheira que a
vida me deu no mundo acadmico. A amiga que te acompanha, literalmente, aonde a vida
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te leva. Sem ela esse trabalho (mais uma vez: literalmente) no sairia. Obrigada pela
pacincia comigo, desculpa as grosserias de todo dia e valeu mesmo pelas MILHARES de
horas da sua vida desperdiadas nas eternas correes que esse, e muitos outros trabalhos,
precisaram!!
Carlos (meu paixo), Rafael Cupello (o amigo chato), Z (grande companheiro de
telefone), Thiago Dargains (amigao), Carol (lindinha), Rodrigo Basile (marido de amiga
favorito), Lvias (nem comento ambas), Julinha, Thas/Sara e Fernanduxa (nica coisa
legal que a arquivologia trouxe para minha vida). A vida trouxe a gente at aqui e vamos
ver se conseguimos manter tudo como est, certo? Vocs foram uma luz nesses anos e
obrigada pela pacincia comigo (vocs precisaram) nesses ltimos tempos. Sei que estive
insuportvel ou desaparecida!!! Mas amo vocs demais!!
A vida te d bons amigos e leva outros com o passar do tempo. A esses amigos
que se vo, um eterno obrigada pelos dias que passamos juntos. Onde quer que estejam
cuidem-se e faam com que a vida de vocs valha a pena todos os dias. Quem sabe um dia
ainda nos encontramos e tenhamos boas histrias para contar sobre o que a vida fez
conosco e o que fizemos da vida?
Orientao uma coisa difcil, complicada e requer pacincia. Comigo,
certamente, isso tudo teve que vir em dobro! Professora Doutora Marcia de Almeida
Gonalves: s vezes te detesto sabia? Mas SEMPRE te amo mais em seguida. Mais que me
orientar nesses anos voc me deu carinho e afeto, por isso te chamo de me postia. Titulo
importante e que deixa minha me enciumada, mas que a vida permitiu. Obrigada pelas
longas discusses, esporos, conversas, carinhos e pizzas! Foi tudo maravilhoso! Vamos
fazer de novo??
Se orientao difcil, com amizade pior! Professora Doutora Regina Maria
Martins Pereira Wanderley, onde eu estaria sem voc esses anos todos?? De 2005 at hoje
a senhora s fez cuidar de mim. Brigamos, discutimos, conversamos e nos ajudamos (ou
pelo menos a senhora me ajudou muito!!). Aprendi mais com a senhora do que em
qualquer livro, obrigada por isso! Trate de se cuidar porque ainda temos muito o que fazer
nessa vida!!!
Queria agradecer aos professores que tive nessa vida, a comear pelo Paolo no
colgio, que levou a srio quando disse que queria fazer faculdade de histria. Aos
professores da UERJ Lucia Bastos, Lorelay Kury, Andr Azevedo, Edmilson, Francisco
Palomanes, Mirian Lourdes, um imenso obrigada por me trazerem at aqui. Destaque ao
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professor Manoel Luis Salgado Guimares, que no sabia direito quem era eu, mas que
mudou minha vida de tantas formas que ele nem imaginava. Obrigada pela oportunidade e
espero que o cu seja lindo para aqueles que o merecem.
J est imenso, no? Bom, falta agradecer vida que existe, ao sol que brilha
(mais do que eu gostaria nessa cidade maldita) e ao vento que refresca, mas acho que
exagero e no vale a pena. Agradeo ento mim, que me permiti acordar, dormir,
caminhar, ler, estudar e crescer muito mais do que eu (e muitos outros) imaginei ser
possvel. Meu trabalho foi impressionante e tenho muito orgulho disso todos os dias. A
estrada de tijolos dourados ainda no chegou a OZ e eu ainda no posso voltar ao Kansas,
mas bom chegar a um ponto em que a gente pode olhar para trs e ficar feliz de ser quem
.
II
Recorrentemente ouo a pergunta: Porque voc estuda o Rio Grande do Sul?.
Recorrentemente a nica resposta que consigo dar um sorriso largo e um Porque no
estudar o Rio Grande do Sul?. De 2006 para c venho chafurdando cada vez mais nessa
questo e nos estudos sobre o RS e mais especificamente sobre a Farroupilha, mas
continuo sem uma boa resposta para dar aos questionadores.
H uma certa origem nessa busca? Sim. Meu pai gaucho, ainda que to
naturalizado no Rio de Janeiro que durma de meia a qualquer vento bobo que bata em sua
janela. No tive uma infncia gaucha e s estive no estado uma vez na vida (ANPUH de
2007 em So Leopoldo). Portanto, o tema busca pelas origens no se aplica.
Tem relao com trabalho? Sim, claro. Em 2006 j estagiava no Projeto Coluso
(Comisso Luso-Brasileira para Salvaguarda e Divulgao do Patrimnio Documental) do
Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro (IHGB) sob a superviso da Prof Dr Regina
Wanderley. J no inicio do trabalho me dei envolvida com um vasto acervo de cartas e
documentos referentes aos rebeldes gachos de 1835 e por eles fiquei apaixonada. Como a
professora Regina maravilhosa quando se trata da paixo alheia, fiquei incumbida de
levantar e catalogar toda essa coleo para a organizao de um ndice analtico (que se
tudo der certo estar disponvel at o fim desse ano). Desde ento no largo o Rio Grande.
Parte desse conjunto foi alvo do meu trabalho monogrfico de concluso do curso de
Histria na UERJ em 2009, sob o titulo: No Esgotamento da Palavra: o Papel do Projeto
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Poltico Farroupilha na Emergncia da Identidade Riograndense. Mas s essa paixo no
explica o trabalho que hoje voc leitor tem em mos. Houve um breve, mais importante,
evento em 2008.
Entre os dias 29 e 31 de outubro de 2008, ocorreu na Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (UERJ) o I Seminrio Nacional de Histria da Historiografia Brasileira.
Ainda no dia 29, na parte da tarde, ocorreu a mesa de nmero 2, intitulada Historiografia e
Identidades: o local e o regional, composta pelos professores Rui Aniceto Fernandes,
Durval Muniz de Albuquerque e Raquel Glezer. O intuito da mesa era discutir justamente a
questo da produo da histria em nvel regional.
Transcorrida as apresentaes dos convidados, o coordenador da mesa, o
professor Luiz Reznik, abriu a discusso para perguntas vindas da platia. Nesse momento
o professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Temstocles Czar,
pediu o direito de palavra para levantar, de forma muito bem humorada, um ponto
inquietante.
Para o professor gacho soava muito estranho que em meio a uma mesa sobre o
papel da historiografia na construo de identidades regionais, no houvesse um nico
trabalho sobre/do Rio Grande do Sul. Para ele, era impressionante que uma mesa com esse
enfoque reproduzisse a posio de Pernambuco (Durval Muniz de Albuquerque), Rio de
Janeiro (Rui Aniceto Fernandes) e So Paulo (Raquel Glezer) os dois ltimos grandes
centros de produo historiogrfica e reconhecidamente produtores de verses tidas como
oficias da Histria Nacional , mas que no constasse um nico trabalho sobre como o
estado gacho, que se v como o mais segregado da cultura e feio nacional (seja pelo
clima, pela populao, pelos referencias platinos ou mesmo pela histria), pensa e discute a
questo da construo de sua identidade. Se a alteridade o elemento pelo qual a
populao gaucha tende (ainda que essa viso no possa ser generalizada) a se inserir nos
debates nacionais, era impossvel para o professor que essa alteridade no fosse comentada
numa mesa desse porte, afinal, eles eram os nicos em solo nacional a comemorar uma
guerra que haviam perdido!
Como era de se esperar, o comentrio no passava de uma grande provocao do
professor Temstocles para com a mesa e os organizadores do seminrio e, como tal, foi
levada de modo cmico por todos os presentes, gerando muito riso e descontrao. No
entanto, sentada como estava eu na platia desse seminrio e, tendo em vista meu histrico,
no pude deixar de me inquietar com aquele estranhamento do professor e compartilh-lo.
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No mesmo momento, em brincadeira com uma amiga comentei: Em breve, estarei ali
resolvendo esse problema.
Se no incio de 2009 meu trabalho monogrfico, fruto de questes pessoais
somadas ao caminho que a vida acadmica me deu, foi aprovado na UERJ, importante
indicar que o questionamento jocoso do professor Temstocles Czar foi vital para que esse
trabalho que hoje voc tm em mos, viesse luz. Se, passado o processo de produo
monogrfica, obrigatrio para a concluso do curso universitrio, ainda estou aqui,
encaminhando estudos sobre o Rio Grande do Sul em nvel do mestrado, por que aquela
brincadeira despertou em mim uma sede de entender mais e mais aquela populao que se
v diferente do resto do Brasil e que busca em sua histria o maior diferencial de sua
identidade. E por isso agradeo ao professor Temstocles Czar, que no sabe quem sou eu,
mas que provocou em mim aquilo que a Histria, como disciplina, suscita naqueles que a
ela recorrem como profisso: um estranhamento e uma vontade de entender. E a ele (o
comentrio e o professor) que culpo, em parte por estar aqui (no podendo esquecer das
orientadoras, Marcia e Regina, que me deixaram embarcar nessa loucura mesmo sabendo o
trabalho que eu daria).
Logo, meu bom leitor, se a voc tambm veio a recorrente pergunta Porque ela
estuda o Rio Grande do Sul?, saiba que os motivos so muitos, pessoais, acadmicos,
reveladores, mas, principalmente, eu estudo o Rio Grande do Sul porque acho que devo e
gosto muito!
Um longo abrao e boa leitura.
Nayara Emerick Lamb
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Escuta o que vou lhe dizer, amigo. Nesta provncia a gente s pode ter como certo uma coisa: mais cedo ou mais tarde rebenta uma guerra ou uma revoluo. Atirou ambos os braos para o lado num gesto de despreocupao. Que que adianta plantar, criar, trabalhar como burro de carga? O direito mesmo era a nossa gente nunca tirar o fardamento do corpo nem a espada da cinta. Trabalhar fardado, deitar fardado, comer fardado, dormir com as chinocas fardado... O castelhano est ai mesmo. Hoje Montevidu. Amanh, Buenos Aires. E ns aqui no Continente sempre acabamos entrando na dana. Hai gente que gosta de paz. No entanto sempre temos guerra ou revoluo... Verissimo
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O passado como parte da construo do presente e como desejo de projeo para o futuro, como projeto social, portanto, inscreve necessariamente a investigao de natureza historiogrfica numa teia em que o dialogo com outros campos da pesquisa histrica se faz necessrio. Nossa prpria disciplina tem sua histria, fruto de embates e tenses, disputas por memria, uma memria disciplinar que, uma vez instituda, tende a canonizar autores e obras constituindo o panteon dos nossos clssicos. Interrog-lo tarefa da historiografia, procurando deslindar as tramas que tornam operativas e necessrias essas escolhas num leque de outras possveis. Reconstituir esses cenrios de disputas e tenses em que aes eletivas so acionadas nos ajuda a compreender o trabalho de escrita da histria como parte de um esforo maior de construo social da vida humana, reafirmando aquilo que nos humaniza como condio incontornvel para uma vida entre humanos.
Manoel Luis Salgado Guimares
Se, como afirma Walter Benjamim, fazer a histria dar sua fisionomia s datas, podemos dizer que uma histria de vida consiste em dar uma fisionomia aos acontecimentos considerados pelo individuo como significativos do ponto de vista de sua identidade. Quando opera, o acontecimento rememorado est sempre em relao estreita com o presente do narrador, quer dizer, com o tempo de instncia da palavra enquanto na enunciao histrica o acontecimento que constitui o marco temporal pelo sujeito da enunciao (quer dizer, o historiador). Se posso me permitir uma interpretao pessoal de Bemveniste, todo acontecimento ter nesse momento uma forma de realizao, no sentido de que ser evocado em memria com o estatuto de um momento particular em uma sequencia biogrfica cuja lgica e cujo fim provisrio se supe possvel encontrar na identidade do narrador, tal como ele se apresenta no momento mesmo da enunciao.
Jel Candau
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RESUMO
LAMB, Nayara Emerick. Histria de Farrapos: biografia, historiografia e cultura histrica no Rio Grande do Sul oitocentista. 2012. 169 f. Dissertao (Mestrado em Histria) Instituto de Filosofia e Cincias Humanas, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
Este trabalho procura conhecer os caminhos pelos quais a histria do movimento poltico-militar Farroupilha (1835-1845) foi escrita. Situando essa busca na produo historiogrfica do sculo XIX, optamos por enfatizar o papel da obra biogrfica Histria do General Osrio, nesse processo. Escrita por Fernando Luis Osrio sobre seu pai, o marqus do Herval, Manoel Luis Osorio e publicada em 1894, o primeiro volume da narrativa biogrfica da vida do General Osorio possu 7 captulos sobre sua participao nos conturbados quase 10 anos do movimento Farroupilha. nesses captulos que concentramos nossa analise, buscando estabelecer o como essa narrativa participou do processo que delegou Farroupilha um local de destaque na cultura histrica riograndense como experincia histrica valorosa, que lhe permite ser lembrada, narrada e comemorada em festa patritica at hoje. Dessa forma, procurou-se estabelecer as bases dessa cultura histrica e o papel da Farroupilha junto ela. Da mesma maneira, visitamos a produo historiogrfica do XIX na inteno de compreender seu papel no estabelecimento de valor para o movimento. Analisamos as possibilidades historiografias da obra e as caractersticas principais da narrativa como o uso documental, o narrador, as discusses historiogrficas e o personagem General Osorio que ali construdo. Identificamos na obra de Fernando Luis Osrio impulsos historiogrficos caractersticos do XIX, buscamos relaes entre a narrativa ali desenvolvida e a histria da Farroupilha e pensamos a participao da mesma no estabelecimento do espao valoroso dado ao movimento na cultura histrica riograndense de fins do oitocentos.
Palavras-chaves: Biografia. Escrita da histria. Narrativa. Rio Grande do Sul. Cultura histrica. Tradio. Farroupilha. General Osorio.
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ABSTRACT
This paper seeks to understand the ways in which the history of the political military movement known as Farroupilha (1835-1845) was written. Situating this research in the historiography production of the 19th century, we opt to emphasize the role of the biographical work Histria do General Osrio in the process. This work was written by Fernando Luis Osrio about his own father, the marquis of Herval, Manoel Luis Osorio being published in 1894. The first volume of biographical narrative of the life of General Osorio is composed of 7 chapters about his participation in the almost 10 year long movement Farroupilha. It is in these chapters that we focus our analysis in order to establish the role of this narrative in the process that positioned the Farroupilha in a prominent place in riograndense cultural history as a valuable historical experience. This, in turn, allows it to be remembered, recounted and celebrated in patriotic party to present day. Thus, we tried to establish the foundations of this particular historic culture and the role of Farroupilha in her. Likewise, we visited the historiographical production of the 19th century in an attempt to understand its role in establishing value for the movement. We analyzed the historiographical possibilities of this work and ist main characteristics such as the use of documentary narrative, the narrator, the historiographical discussions and the character General Osrio that was built. We identified in the work of Fernando Luis Osrio historiographical impulses characteristic of the 19th century, sought the relationships between the narrative developed in his work and the history of the Farroupilha movement. Finally we tried to understand its role in the establishment of the valuable place given to the movement in riograndense historical culture of the late 19th century.
Keywords: Biography. Writing of history. Narrative. Rio Grande do Sul. Historical culture. Tradition. Farroupilha. General Osorio.
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SUMRIO INTRODUO . 16
1 IMAGENS DA FARROUPILHA: HISTORIOGRAFIA E CULTURA
HISTRICA .........................................................................................................
26
1.1 Cultura histrica: o passado e a tradio do decnio heroico............................ 27
1.2 Experincia lembrada, experincia narrada ....................................................... 33
1.3 Memrias de lutas: poltica e sociedade em fins dos oitocentos ........................ 39
1.4 A historiografia no debate dos ideais Farroupilhas ........................................... 44
1.4.1 Guerra Civil no Rio Grande do Sul (1881).............................................................. 46
1.4.2 Histria da Repblica Rio-Grandense (1882) ......................................................... 55
1.5 Poltica e historiografia: usos e funes da memria ......................................... 62
2 NARRANDO VIDAS, CONTANDO HISTRIA .............................................. 66
2.1 A ausncia da palavra: tenses e conflitos no Rio Grande do Sul
Republicano ...........................................................................................................
67
2.2 Possibilidades historiogrficas da obra Histria do General Osrio................. 77
2.3 Histria em narrativa: documentos e autoria na construo da narrativa...... 92
2.3.1 Um autor, uma vontade ........................................................................................... 96
2.3.2 Viso documentada: crtica corroborada ................................................................ 103
2.4 Passado e presente na memria da Farroupilha ............................................... 106
3 A CRUZADA IMORTAL DOS VARES DO SUL ......................................... 108
3.1 Historiografia e biografia na construo da disciplina histrica .................. 109
3.2 Biografia e narrativa na escrita da histria da Farroupilha .......................... 119
3.3 Narrativa, memria e tradio na escrita da Farroupilha ............................. 131
3.4 Num juzo, uma ideia para um futuro .............................................................. 142
3.5 O valor do biogrfico .......................................................................................... 150
4 CONCLUSO ....................................................................................................... 152
REFERNCIAS .................................................................................................... 159
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INTRODUO
O que o gaucho finalmente? Desenrolar de um verdadeiro processo histrico ressemantizado, tradio inventada, produto da criativa imaginao de autores rio-grandenses e platinos ou um pouco dessa encruzilhada entre a histria, a literatura e a memria? (BOSAK, 2010, p. 22)
De posse dessas indagaes, Joana Bosak discute a identidade do gacho. Como essa
identidade teria se formado? A seu ver a identidade de uma populao pode ser definida como
uma construo negociada a partir da associao entre a cultura local e a questo nacional,
perpassando fronteiras culturais, lingusticas e territoriais, sendo uma mescla produzida por
extratos internos e externos sua prpria herana. Para a autora: Nessa visada atual, a noo de identidade, seja ela definida por padres culturais ou locais, vinculada questo nacional, regional ou local, passa a ter uma nova elaborao de seus conceitos. Antes tomadas como algo dado, atvico e que se forjava conjuntamente formao dos Estados nacionais, as identidades passaram a ser percebidas como construes, fruto do desenvolvimento dos bens simblicos ao longo de um processo histrico muito mais longo e complexo, em grande parte independente das variveis meramente polticas, porque anteriores existncia desses Estados. Hoje em dia, alm dessa noo, pode-se pensar e discutir a identidade como negociao, tanto nas fronteiras culturais, como nas lingsticas e territoriais. Se a identidade uma negociao, porque passa por um processo que se desenvolve a partir da noo da existncia do Outro, da idia de alteridade e do embate que sofre nesse jogo entre o prprio e o alheio para se constituir, como exemplificam Umberto Eco e Carlo Ginzburg. [grifos da autora] (BOSAK, 2010, p. 23)
A tradio, como vnculo entre o passado e o presente de uma populao, possibilita,
a partir tambm dessa negociao entre o Eu e o Outro, a construo de uma identidade.
Permitindo-nos crer que o estabelecimento de uma identidade impossvel sem o acesso ao
passado, enquanto [...] uma dimenso permanente da conscincia humana, um componente
inevitvel das instituies, valores e outros padres da sociedade humana (HOBSBAWN,
1998, p. 22). No entanto, assim como a identidade e a tradio, este passado deve ser
construdo e resignificado para que possa ser acessado pela populao que dele faz uso no
presente. Para Eric Hobsbawn [...] o que definido oficialmente como passado e deve ser
claramente uma seleo particular da infinidade daquilo que lembrado ou capaz de ser
lembrado. (HOBSBAWN, 1998, p. 23), indicando-nos o valor da seleo na composio do
passado. Acreditamos que , em parte, a partir dessa seleo consciente do passado que uma
populao pode buscar as origens e os mitos que estabelecem o universo simblico que ser
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experimentado a partir de sua cultura histrica. O conceito de cultura histrica definido por
Fernando Snchez Marcos, nos seguintes termos: El concepto de cultura histrica (...) expresa una nueva manera de pensar y comprender la relacin efectiva y afectiva que un grupo humano mantiene con el pasado, con su pasado. (...) La perspectiva de la cultura histrica propugna rastrear todos los estratos y procesos de la conciencia histrica social, prestando atencin a los agentes que la crean, los medios por los que se difunde, las representaciones que divulga y la recepcin creativa por parte de la ciudadana. [grifo do autor] (MARCOS, 2009, p. 1)
Como conceito associado s relaes entre uma populao e seu passado, a cultura
histrica se vincula historiografia apontando esta como um dos vetores principais para seu
estabelecimento junto a uma populao humana. Em especial com o advento da modernidade,
a cultura histria permite, a partir da historiografia, o acesso esse passado construdo e o
estabelecimento desses vnculos. Nas palavras de Manoel Luis Salgado Guimares: [...] pensamos que a historiografia como campo especifico e peculiar de investigao histrica deve ser compreendida como parte de uma cultura histrica que supe inmeros outros dispositivos coletivos de produo de sentido e significado para o passado. (GUIMARES, 2010, p. 9)
Elemento base da construo da nao, a escrita da histria encontraria no sculo
XIX sua temporalidade por excelncia. No caso do Brasil, coube aos letrados do XIX o papel
de buscar no passado o espao de valorizao do presente e da nao que almejavam
construir, selecionando entre os eventos vividos por uma populao aqueles que seriam
dignos de participar do processo de construo da nao brasileira.
No entanto, a escrita da histria nacional no foi um processo calmo. Houveram
diversos embates e conflitos entre projetos e propostas. Em termos de mtodo ou de enfoque,
os projetos para a escrita da histria nacional marcaram o sculo XIX tanto quanto os embates
polticos para a construo da nao. Dentre esses desacordos e enfrentamentos, a elaborao
de narrativas sobre os eventos considerados valorosos foi um dos espaos em que as propostas
para o Brasil se fizeram notar. Nesse embate pela escrita da historia nacional que podemos
acompanhar a histria da escrita da histria da Farroupilha (1835-1845) e onde localizamos
nosso objeto, a narrativa biogrfica Histria do General Osorio, produzida por Fernando Luis
Osorio sobre seu pai, o marqus do Herval, Manoel Luis Osorio.
Publicado o primeiro volume em 1894, a narrativa biogrfica de Fernando Luis Osorio
seria completada em 1915, com a publicao do segundo volume da obra por seus filhos,
Fernando Lus Osorio e Joaquim Luis Osorio, dando conta assim da vida do General Osorio,
nascido em 1808 e falecido em 1879. No primeiro volume, encontramos 162 pginas e 7 dos
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28 captulos ali escritos, dedicados narrativa da participao do General Osorio nos
conturbados quase 10 anos do conflito civil Farroupilha. Conturbados para a nao, mas mais
ainda para a provncia de So Pedro do Rio Grande do Sul. Nessas pginas, Fernando Lus
Osorio sobrepe a vida de seu pai sequencia dos eventos do conflito, fragmentando a vida
do indivduo Manuel Lus Osorio entre tais eventos, de forma a articular a construo de sua
vida naquela temporalidade, ao mesmo tempo em que constri os fatos em funo da vida de
seu personagem. Sendo riograndense de nascimento, Fernando Luis Osrio tambm o era de
causa, e dedicou toda a sua vida a servir o Rio Grande do Sul, poltica e socialmente. Este
ponto demarca o valor dado participao de seu pai em eventos na regio, em especial na
ateno dada Farroupilha e nos valores positivos que vincularia ao evento ao longo de sua
narrativa.
Declarada em 1835 e finda em 1845, o movimento da Farroupilha seria o mais longo
conflito civil poltico-militar ocorrido em solo nacional. Enquanto processo poltico e militar,
acreditamos que o movimento Farroupilha desencadeou na populao local um processo de
formao de interesses e questes sociolgicas que serviram formao de uma identidade
regional. Benedict Anderson afirma que s h comunidade quando h reconhecimento e
conhecimento (ANDERSON, 2005, p. 94). Acreditamos que a longa durao do processo
permitiu quela populao o desenvolvimento de fatores de conhecimento e reconhecimento,
possibilitando que a identidade daquela populao se forjasse no jogo de fora entre os
interesses dos grupos dirigentes locais e o conflito dos projetos para a construo da nao1.
Dos muitos conflitos ocorridos nas fronteiras do Brasil com a regio platina,
defendemos que a Farroupilha acabou por tornar-se o marco de entendimento daquela
populao sobre si mesma. Caracterizada pelo choque entre os projetos dos grupos dirigentes
da Corte e os interesses defendidos pelos grupos dirigentes sulistas, a Farroupilha pode ser
entendida como um diferencial na formao da identidade da populao local por ter
proporcionado a criao de situaes limite, em que a redefinio de uma comunidade veio a
se constituir. Segundo Benedict Anderson (2005), somente a criao de um elo afetivo
proporcionado por uma memria comum seria capaz de requerer e conseguir de um povo to
extraordinrio sacrifcio como este conflito imps quela populao. E somente a lembrana
1 Cf: LAMB, Nayara Emerick. No Esgotamento da Palavra: o Papel do Projeto Poltico Farroupilha na Emergncia da Identidade Riograndense. Trabalho monogrfico de fim de curso apresentado UERJ em abril de 2009.
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deste sacrifcio comum poderia proporcionar a uma populao a criao de um imaginrio
sentimental capaz de vigorar por tantos anos e ainda manter-se vivo dentro das tradies
daquela sociedade. Podemos dizer ento, que a memria do processo Farroupilha, a longo
prazo, proporcionou a formao daquela comunidade imaginada regional.
Beatriz Sarlo afirma que em condies subjetivas e polticas normais, o passado
sempre chega ao presente (SARLO, 2007, p. 10), no caso especfico da Farroupilha e do Rio
Grande do Sul, a re-presentificao do passado e suas co-memoraes interferem e
conformam as possibilidades de significar essa experincia de forma a sensibilizar as opinies
coletivas (CATROGA, 2001). Sua consequncia mais imediata justamente a formao de
uma memria que exerce uma forte influncia sobre aquela populao, principalmente no
modo de pensar em relao a si e ao restante do pas. Uma memria que se propaga a partir de
sua atividade junto a uma determinada cultura histrica regional, que, por sua vez, ocupa
espao considervel dentro do modo daquela sociedade se referenciar e identificar sua prpria
histria. Para Jol Candau, a memria de certos eventos, ao ser compartilhada por um
determinado grupo, permite o estabelecimento de uma unidade, no s da forma de ver o
evento, mas tambm na forma de se auto-identificar a partir dele. Segundo o autor: No quadro da combinao complexa entre histria memorizada, reencontrada e inventada, uma memria supostamente compartilhada que selecionada, evocada, invocada e proposta celebrao em um projeto integrador que busca forjar uma unidade: aquela imaginada do acontecimento comemorado e do grupo que o comemora. (CANDAU, 2011, p. 149)
Dessa forma, acreditamos que o movimento da Farroupilha represente para a
populao do Rio Grande do Sul um espao de identificao principalmente a partir dos
ideais associados ao movimento com uma tradio combativa de luta pela liberdade que
cristaliza esse movimento como uma experincia histrica valorosa para aquela populao a
partir da disseminao de uma memria. Essa liberdade, que na temporalidade da Farroupilha
se associava busca por autonomia provincial, posteriormente ser associada liberdade
poltica, social e econmica da nao como um todo. Tal associao dar-se-ia, em especial
pela participao ativa dos homens do sul nos conflitos militares e polticos brasileiros2. A
nosso ver, para aquela populao, essa liberdade estar associada busca de seu prprio
espao de atuao junto comunho nacional, nos mbitos poltico, social e econmico.
2 Leia-se: Guerra do Paraguai, o movimento republicano, a proclamao da Repblica, o movimento poltico da Federalista, o movimento do Estado Novo, o combate Ditadura Militar, etc.
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Dentre os vrios elementos que poderiam servir de objeto para reflexo e anlise da
questo da escrita da histria da Farroupilha, apostamos na fora da produo historiogrfica,
por seu papel na formao e perpetuao de uma memria que consolidaria a Farroupilha
como experincia histrica valorosa para aquela populao, pensando que (...) a reconstruo
do passado e sua fixao em uma escrita so partes da cultura da lembrana. (GUIMARES,
2010, p. 11), tal qual Manoel Luis Salgado Guimares argumenta. E ainda que: O trabalho historiogrfico nos impe uma interrogao da memria e de suas artimanhas voltadas para a sacralizao dos objetos sobre os quais essa memria se debrua. Interrog-la, no entanto, tambm flagrar as articulaes que enredam histria e memria; a produo de conhecimento sobre o passado no deve ser percebida sem suas articulaes com o presente em que se realiza. Escrever sobre o passado igualmente silenciar sobre aspectos do presente, erigir referncias cannicas para adentrar esse passado. , da mesma forma, silenciar sobre a memria que conduz o leitor, lembrana que o guia em direo a um pretenso porto seguro localizado nesse passado. (GUIMARES, 2010, p. 10-11)
No caso especifico da Farroupilha, a historiografia sobre o movimento em especial
a historiografia do XIX corresponde a um objeto privilegiado para pensar a construo do
mesmo e de seus ideais, por representar um dos espaos que aquela sociedade disponibilizou,
no caso da produo local, para pensar o evento ainda em tempo recente. Enquanto
representao do passado, a historiografia tambm nos permite verificar a forma como o
movimento poltico-militar da Farroupilha foi difundido para alm do perodo do conflito. E,
nesse sentido, acreditamos tornar-se fundamental compreender a obra de Fernando Luis
Osorio, no contexto da produo historiogrfica oitocentista.
Trabalho de natureza biogrfica, a obra de Fernando Luis Osorio ganharia
notoriedade, ainda em fins do XIX, por sua associao inaugurao da esttua equestre do
General Osrio, esculpida por encomenda pblica ao artista Rodolpho Bernardelli e fixada na
Praa XV de Novembro, na cidade do Rio de Janeiro. Mais tarde, quando da comemorao do
centenrio do conflito Farroupilha, em 1935, os captulos concernentes ao movimento seriam
reeditados pela editora Livraria Globo de Porto Alegre, num volume extra intitulado Guerra
Civil dos Farrapos, nos indicando um esforo de vincular essa narrativa memria
historiogrfica daqueles eventos. Ao longo da primeira metade do sculo XX, a publicao de
Osorio constaria na bibliografia das mais afamadas obras sobre a temtica, nos indicando,
mais uma vez, a vinculao da narrativa escrita da histria do movimento Farroupilha.
Nesse sentido que vemos um espao valoroso de anlise do movimento poltico-
militar Farroupilha na narrativa produzida por Fernando Luis Osrio. Do mesmo modo como
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identificamos, no esforo de construir sua narrativa historiogrfica a partir do uso da vida do
pai como eixo central da anlise, um diferencial dentre as obras produzidas sobre o tema.
Acreditamos que sua natureza biogrfica d obra uma caracterstica mpar frente s demais
produes, aumentando o interesse por compreender o lugar dela na associao da
Farroupilha a uma tradio valorizadora da liberdade, tal qual existente na cultura histrica do
Rio Grande do Sul. Do mesmo modo, acreditamos que buscar a histria da escrita da histria
desse movimento ainda no sculo XIX seja vital para que possamos acompanhar seu
desenvolvimento e a influncia da historiografia sobre o tema na construo da cultura
histrica regional. Uma cultura histrica traada a partir de uma forte tradio que se
construiu, segundo Joseph Love, a partir do culto da liberdade (LOVE, 1975). Essa tradio
tambm nomeada por Eunice Maria Maciel como tradicionalismo ou gauchismo, um
movimento difuso e amplo que se baseia no estabelecimento de vnculos identitrios entre o
cidado riograndense do presente e o gaucho idlico do passado rural provinciano. Segundo a
autora, O gauchismo algo difuso, contendo tambm aqueles que se intitulam nativistas, que no aceitam o tradicionalismo e tentam manter uma independncia em relao a este. Dentro do gauchismo h, portanto, no apenas o tradicionalismo de maneira geral, como o MTG [Movimento Tradicionalista Gaucho], sua parte organizada e a que consegue impor sua perspectiva em relao ao gacho e s tradies como legtima e oficial, mais todas as manifestaes, estruturadas ou no, que operam com um processo identitrio relacionado ao Rio Grande do Sul e ao gacho. (MACIEL, 2004, p. 243)
Para o poeta, compositor e msico riograndense Vitor Ramil, em sua obra A Esttica
do Frio (RAMIL, 2004), escrita para ser apresentada em uma conferncia em Genebra na
Sua no ano de 2003, os riograndenses: [...] aparentam sentir-se os mais diferentes em um pas feito de diferenas. Isso deve-se, em grande parte, sua condio de habitantes de uma importante zona de fronteira, com caractersticas nicas, a qual formaram e pela qual foram formados (o estado possui duas fronteiras com pases estrangeiros de lngua espanhola); forte presena do imigrante europeu, principalmente italiano e alemo, nesse processo de formao; ao clima de estaes bem definidas e ao seu passado de guerras e revolues, como os embates durante trs sculos entre os imprios coloniais de Portugal e Espanha por aquilo que hoje nosso territrio e a chamada Revoluo Farroupilha (1835-1845), que chegou a separar o estado do resto do Brasil, proclamando a Repblica Rio-Grandense (RAMIL, 2004, p. 07).
Vitor Ramil complementa suas anlises destacando tambm que as relaes entre a
populao riograndense e o restante da populao nacional so construdas a partir de um
estranhamento. Um estranhamento que ser a base do auto-reconhecimento local e que,
segundo Sandra Jatahi Pesavento, formar uma dicotomia sentimental entre o ufanismo e o
ressentimento. Nas palavras da autora:
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[...] espcie de binmio ambivalente na construo da identidade regional, estes dois sentimentos esto na base de uma comunidade simblica de sentido que proporciona a coeso social e d a sensao de pertencimento. Eles, de certa forma, presidem a cristalizao de uma atitude no caso de um sentimento -, de que houve perdas, desprestgios, isolamentos, excluses, provocados por terceiros que so vagamente designados como centro, eles, os outros, processo de percepo este que se encontra em violento contraste com a auto-imagem do estado super valorizada e mesmo glamourizada. (PESAVENTO, 2004, p. 223)
A nosso ver, a compreenso do estabelecimento da estrutura na qual se baseia o
reconhecimento identitrio presente dos riograndense e sua tradio s pode ser compreendida
se voltarmos nossos olhos para as narrativas sobre as experincias passadas daquela
populao. Em especial as experincias que, em nvel local ou nacional, foram construdas, no
presente, como valorosas. Identificamos que nessas narrativas sobre o passado que residem
os smbolos para compreendermos o desencadear das questes mais profundas dessa
populao presente, e que nessas mesmas narrativas sobre o passado que encontraremos a
base de sua tradio. Para Jeanne Marie Gagnebin, a histria, quando busca lembrar o passado
a partir de uma narrativa fidedigna, escrita no presente e para o presente. Nas palavras da
autora: Se o lembrar do passado no for uma simples enumerao oca, mas a tentativa, sempre retomada, de uma fidelidade quilo que nele pedia um outro devir, a estes signos dos quais o futuro se esqueceu em nossa casa como as luvas ou o regalo que uma mulher desconhecida, que nos visitou em nossa ausncia, deixou numa cadeira, ento a histria que se lembra do passado tambm sempre escrita no presente e para o presente. A intensidade dessa volta/renovao quebra a continuidade da cronologia tranquila, imobiliza seu fluxo infinito, instaura o instante e a instancia da salvao [...] (GAGNEBIN, 2007, p. 97)
Tais consideraes nos possibilitam acreditar que, caso posamos identificar na
narrativa de Fernando Luis Osorio uma viso do passado (SARLO, 2007, p. 12) elaborada em
consonncia com o presente de sua produo critrios historiogrficos do XIX, mtodos
cientficos, usos polticos e demandas scias , e construda sobre uma intencionalidade de
fidedignidade aos acontecimento, a lembrana ali contida permitir ao presente, de sua
produo e de sua difuso, a associao com o passado, numa perspectiva de futuro que
cristalizar o movimento como experincia histrica valorosa para aquela populao.
Nesse sentido, para o recorte deste trabalho, objetivamos pensar qual o papel da obra
Histria do General Osorio, na escrita da histria do movimento poltico-militar Farroupilha,
no intuito de compreender sua participao na significao que foi dada ao evento nos
quadros da formao da populao riograndense e da histria nacional nas dcadas finais do
XIX. Interessa-nos buscar compreender como esta narrativa contribuiu para a insero do
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movimento Farroupilha na escrita da histria de fins do oitocentos, seu papel na construo de
relaes entre a populao da sociedade riograndense com seu passado e na formao de uma
memria do evento que seria, a nosso ver, uma das bases da cultura histrica regional. A
opo do recorte aqui apresentado produto de um questionamento quanto natureza desta
produo e sua funcionalidade, tendo em vista o debate sobre o porqu e para que deveria
servir a produo historiogrfica do sculo XIX.
Para dar conta deste projeto, dividimos a redao da dissertao em trs captulos. O
primeiro captulo ter por objetivo formalizar a existncia de um espao valoroso do
movimento Farroupilha junto populao da sociedade do Rio Grande do Sul. Para tal,
analisaremos a participao da memria do movimento poltico-militar Farroupilha na cultura
histrica do Rio Grande do Sul e suas comemoraes, dando enfoque produo
historiogrfica das dcadas finais do sculo XIX no intuito de identificar a forma como este
movimento era apresentado e os usos dados a sua narrativa por aquela historiografia.
Para tal, faremos uso das obras Guerra Civil no Rio Grande do Sul, de Tristo de
Alencar Araripe, publicada em 1881 pelo IHGB e Histria da Repblica Rio-Grandense,
escrita por Joaquim Francisco de Assis Brasil, a pedido do clube republicano Club 20 de
Setembro e publicada no ano de 1882, cotejando-as na inteno de identificar possveis
dilogos entre elas, assim como caracterizar o processo de incluso da Farroupilha nos
quadros da histria nacional.
No segundo captulo apresentaremos e analisaremos as caractersticas principais da
obra Histria do General Osrio, dando enfoque para o momento de sua publicao,
simultaneamente inaugurao da estatua equestre do General Osrio. Acreditamos que
situar o contexto republicano do perodo, nos permitir compreender particularidades da obra
e o dado precioso de sua publicao, se pensarmos no valor desta histria de vida para a
construo de uma identidade regional, em especial se tivermos em mente a importncia que o
conflito da Federalista (1893-1895) representou para o Rio Grande do Sul, ao constatarmos
que sua publicao deu-se no ano de 1894.
Buscaremos apresentar e analisar as possibilidades historiogrficas particulares a esta
narrativa, assim como problematizaremos a questo biogrfica intrnseca a este trabalho e o
espao da obra dentro dos quadros da historiografia. Apresentaremos e analisaremos a posio
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do autor, o uso documental e as discusses historiogrficas presentes na narrativa, buscando
identificar na obra particularidades da escrita da histria no oitocentos.
No terceiro e ltimo captulo da dissertao buscaremos apresentar e analisar a
narrativa do movimento poltico-militar Farroupilha contida na obra, dando destaque para a
incluso da narrativa no processo de escrita da histria do XIX (e da virada poltica do final
do sculo) e no estabelecimento do espao desta narrativa na construo de um espao
valoroso para a Farroupilha na tradio que compe a cultura histrica riograndense.
Empreenderemos tambm uma anlise das caractersticas dessa narrativa no sentido
de identificar as influncias na construo da memria do conflito, com a inteno de
perceber as contribuies da narrativa produzida pelo autor e sua insero na produo
historiogrfica de fins do sculo XIX.
Neste cenrio um ponto no pode ser perdido de vista: uso de uma narrativa
biogrfica num trabalho precisamente de historiografia, tal qual o desenho aqui apresentado.
Resignificada a partir da guinada subjetiva, como identifica Beatriz Sarlo (SARLO, 2007), a
produo biogrfica tem sido cada vez mais alvo dos questionamentos e trabalhos
historiogrficos. Essa resignificao nos apresentada por Manoel Luis Salgado Guimares
da seguinte forma: Certamente se trata de outro regime de escrita biogrfica, diferente das demandas tanto por exemplos para a ao quanto das fundadas na idia de um personagem que explique a histria de uma comunidade poltica. Os tempos presentes talvez formulem escrita biogrfica demandas diferenciadas: no campo disciplinar, a possibilidade de alargar a compreenso do passado a partir da ao revalorizada dos atores histricos, os quais, se por um lado, conduzem-se segundo condies que lhes so dadas, por outro, so capazes de ressignific-las, ao agir e ao alter-las, alertando o historiador da necessidade de compreender os atores em ao sem que o sentido final j esteja previamente inscrito em sua prpria ao. Em outras palavras, a valorizao da ao e dos atores se contrape ao projeto de uma histria teleolgica, quando a narrativa das vidas desses atores adquire outro sentido para a compreenso do passado. (GUIMARES, 2008, p. 22)
Atualmente as narrativas de vida, por suas particularidades, tm ganhado destaque
em especial nos estudos da escrita da histria no sculo XIX e incio do XX. No entanto,
vemos um movimento de buscar na produo biogrfica os meios de encontrar questes mais
profundas da psique humana e das facetas particulares dos indivduos membros da
coletividade. Tal busca tem repercutido no crescente nmero de obras historiogrficas que, ou
fazem uso do mtodo biogrfico para traar sua narrativa (sem perder, obviamente o enfoque
da questo central: o problema historiogrfico), ou buscam na produo biogrfica a resposta
para seus questionamentos, usando a produo como objeto de trabalho. Nosso trabalho
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encontra-se nesse limiar. Buscamos utilizar essa narrativa como meio de acessar um processo
maior que o da escrita da histria da Farroupilha, nesse sentido, a obra nos servir como
fonte. No a produo biogrfica geral, mais essa obra em particular, principalmente pelas
particularidades que identificamos em sua narrativa, publicao, autoria e produo de modo
geral. Acreditamos dessa forma, que no s a produo como um todo, mas tambm a anlise
das narrativas biogrficas, em particular, sirvam como forma no s de acessar o passado da
produo, mas tambm de alcanar um processo maior, o processo da escrita da histria de
um evento caracterstico, no nosso caso, a Farroupilha.
A partir disso, vital informar que as alteraes sofridas pelo projeto apresentado
inicialmente ao Programa de Ps-Graduao da Universidade do Estado do Rio de Janeiro em
Histria Poltica, como poder ser visto pelo cotejamento entre o projeto apresentado quando
da seleo e o traado nesta breve introduo, visam atender aos questionamentos levantados
pela banca de qualificao.
Vale apontar tambm que o objetivo principal desse trabalho demonstrar como o
processo Farroupilha possibilitou o desencadear de questes muito alm das levantadas no
manifesto inicial do conflito, nos idos de setembro de 1835, permitindo que a populao
consolidasse seus interesses comuns em um nico sentimento regional, que perduraria por
geraes sob a forma de uma cultura histrica que enxergaria tambm na Farroupilha um
espao valoroso para aquela comunidade. Cumpriu-se assim, por meio da historiografia, o que
Gilberto Velho descreve como o incessante trabalho de apreciao do passado feito pelos
homens do presente (VELHO, 1994, p. 49).
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1 IMAGENS DA FARROUPILHA: HISTORIOGRAFIA E CULTURA HISTRICA
Compreender a historiografia nos apresenta possibilidades de analisar as estratgias
de conservao do passado e a forma como com ele se relacionam os indivduos de uma
sociedade, pensando-a como um veculo da cultura histrica na relao entre os indivduos,
seu passado e a memria que se formar nesse processo3. E, por conseguinte, inserindo-se na
cultura poltica local por permitir a construo de um determinado [...] clima cultural em que mergulha cada individuo pela difuso de temas, de modelos, de normas, de modos de raciocnio que, com a repetio, acabam por ser interiorizados e que o tornam sensvel recepo de ideias ou adoo de comportamentos convenientes. (BERSTEIN, 1998, p. 357)
No entanto, a produo historiogrfica do sculo XIX representa um espao de
debate do processo de formao da nao brasileira ao caracterizar um movimento de
construo, no s da histria nacional, mas tambm do que deveria ser a ela associado.
Manoel Luiz Salgado Guimares nos auxilia ao apontar que um olhar sob os textos
historiogrficos do XIX [...] nos permite visualizar uma interessante disputa em torno do passado desejado para a nao brasileira e das formas necessrias para uma adequada escrita da histria nacional. [...] Percebe-se que tal momento foi marcado por tenses e disputas, j que no se havia afirmado ainda um modelo cannico para a escrita da histria [...] (GUIMARES 2009, p. 10-11)
Dentro deste universo, o objetivo principal deste captulo compreender a
participao da historiografia sobre o processo poltico-militar Farroupilha na construo de
um status valoroso dado ao movimento a partir das dcadas finais do sculo XIX, mas
especificamente as dcadas de 1880 e 1890. Enxergamos nesse perodo um momento de
transformao da sociedade brasileira com a ampliao do espao pblico e abertura de novos
canais e espaos de sociabilidade para novos grupos polticos poderem expressar sua
satisfao ou insatisfao com o regime poltico imperial e assim posicionarem-se frente a
essas transformaes. Maria de Lourdes Janotti argumenta que Nos momentos histricos em que a dominao contestada, surgem novos instrumentos tericos que estimulam o aparecimento de obras comprometidas com a denncia da situao, introduzindo novas formas de ver o passado, pois as classes ascendentes buscam sempre suas origens com a finalidade de definir seu papel social atual.
3 importante esclarecer que a historiografia no representa o nico meio de acesso dos indivduos de uma sociedade ao passado, mas sim um desses meios, existindo no seio da cultura uma vastido de possibilidades, onde a sociedade pode buscar referncias e relaes com o seu passado. No entanto, no mbito deste trabalho, teremos a historiografia como objeto de entrada neste universo vasto da cultura histrica de um povo e, por conseguinte, da cultura poltica.
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Essas revises crticas pulsionam o conhecimento, abrindo caminhos para novas interpretaes. Representam, sem dvida, estgios da conscincia poltica de determinadas classes ou segmentos sociais sobre a Histria do seu pas. (JANOTTI, 2010, p. 122)
Pretendemos ter nas obras produzidas e publicadas nas dcadas finais do sculo XIX
precisamente as obras de Tristo Alencar Araripe, Guerra Civil no Rio Grande do Sul:
memria acompanhada de documentos lida no Instituto Histrico e Geogrfico do Brasil,
publicada em 1881 e a de Francisco Joaquim de Assis Brasil, Histria da Repblica Rio-
Grandense, publicada em 1882 o ponto chave para a construo de valores. Buscaremos
tambm construir um quadro de intenes e usos do movimento Farroupilha, onde possamos
mais tarde cotejar os valores desenvolvidos aqui com os que vieram a ser apresentados na
obra biogrfica de Fernando Luis Osorio, Histria do General Osorio, publicada em 1894.
Acreditamos tambm que tal compreenso nos permitir identificar a escrita da histria como
espao de construo do que viria a ser a cultura histrica daquela sociedade, tendo em mente,
principalmente, a existncia de embates entre essas narrativas e as ideias expressas nas
mesmas, onde acreditamos poder identificar o choque de concepes distintas e a disputa pela
viso do passado (SARLO, 2007: 12) que prevaleceria.
1.1 Cultura histrica: o passado e a tradio do decnio heroico
Art. 1 - oficializada a SEMANA FARROUPILHA no Rio Grande do Sul, a ser comemorada de 14 a 20 de setembro de cada ano, em homenagem e memria aos heris farrapos. - Lei n 4.850/64, por Francisco Solano Borges, presidente da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul.
Em 11 de Dezembro de 1964, por assinatura de Francisco Solano Borges, presidente
da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul, oficializada a comemorao da
Semana Farroupilha. A semana farroupilha um momento especial de culto s tradies gachas, transcendendo o prprio movimento tradicionalista gacho. Ela envolve praticamente toda a populao do estado, se no fisicamente nos locais organizados para festejos, participando das iniciativas do comrcio, dos servios pblicos, das instituies financeiras ou das indstrias. [...] Durante a semana farroupilha so relembrados os feitos dos gachos no decnio heroico (1835-1845), atravs de palestras, espetculos, lanamento de livros, entre outras atividades. (Festejos Farroupilhas4)
4 Festejos Farroupilhas. Apresenta o histrico e temtica das comemoraes dos festejos da Semana Farroupilha. Disponvel em: www.semanafarroupilha.com.br./historico_semana. ph (acesso em: 04/04/2008).
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Implantada em 1964, as comemoraes do movimento Farroupilha, sob a forma da
Semana Farroupilha, restringiam-se ao ponto facultativo nas reparties pblicas estaduais e
ao feriado municipal em algumas cidades do interior at 1994. Em 1995 ganharam novo
incentivo. Definida pela Constituio Estadual de 1989 com a data magna do estado, em 1995
o dia 20 de setembro, data que marca o incio do movimento poltico-militar Farroupilha,
passou a ser feriado estadual. O decreto estadual 36.180/95, amparado na lei federal 9.093/95,
de autoria do deputado federal Jarbas Lima (PPB/RS), especifica que "[...] a data magna
fixada em lei pelos estados federados feriado civil" (Decreto n. 36.180, de 18 de setembro
de 1995). A comemorao, organizada inicialmente pelo Movimento Tradicionalista do Rio
Grande do Sul (ou MTG, Movimento Tradicionalista Gacho), passava, ento, a ser regulada
por uma lei estadual e regulamentada por um decreto.
Surgida no ano de 1947, a partir da criao do departamento tradicionalista
organizado por estudantes da famosa escola pblica estadual Jlio de Castilhos em Porto
Alegre, a Semana Farroupilha, a partir de 1995 passa a ser organizada em duas instncias: em
nvel estadual so definidas as diretrizes gerais, escolha do tema bsico e atividades que
envolvem as distncias pblicas estaduais, e em nvel local, onde, na prtica, ocorrem os
festejos, as manifestaes culturais, artsticas e onde se realizam as mostras e os desfiles, com
destaque aos realizados a cavalo. Na capital gacha, neste perodo, se ergue, no parque
Maurcio Sirotsky Sobrinho, entre prdios residenciais e pblicos, uma espcie de vila, com
barracas e galpes de madeira, denominada "Ronda Crioula"5.
Para Maria Eunice Maciel, o Movimento Tradicionalista Gacho inscreve-se a partir
de diversas prticas em que se pretende vivenciar um passado tido como tradicional: Movimento urbano, o tradicionalismo gacho nasceu e implantou-se nas cidades, recriando, porm, um modelo rural. Expandindo-se como gauchismo, indo alm dos limites do MTG, exprime-se por um grande nmero de prticas e manifestaes culturais nas quais a figura do gacho vivenciada, ou seja, os participantes personificam, quase que encarnam uma figura (o gacho), um tempo o passado e um espao o pampa imaginrios. Os participantes procuram reconstituir determinados usos e costumes ditos tradicionais e, assim, viver o gacho vive-se um outro e vive-se em um outro.[grifo da autora] (MACIEL, 2004, p. 254)
A nosso ver, a institucionalizao da comemorao da Semana Farroupilha em 1964
representa tambm a institucionalizao do movimento poltico-militar Farroupilha (1835-
5 O nome Ronda Crioula foi buscado na campanha, onde, quando se cuida do gado nas tropeadas, os gachos ficam sempre em redor deles, cantarolando, assobiando, tocando violo, para acalmar os bois. In: Viver no Campo. Apresenta a histria do movimento Tradicionalista Gaucho. Disponvel em: http://www.vivernocampo.com.br/tradicoes/sema_farr2.htm. (acesso: 04/04/2008).
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1845) como experincia a ser lembrada e relembrada todos os anos por aquela populao,
estabelecendo um uso que pressupe um vnculo direto entre a populao riograndense e
aquele passado, agora sob a forma de memria, ponto que fica claro j no texto descritivo do
sitio oficial: As comemoraes da Revoluo Farroupilha - o mais longo e um dos mais significativos movimentos de revoltas civis brasileiros, envolvendo em suas lutas os mais diversos segmentos sociais - relembra a Guerra dos Farrapos contra o Imprio, de 1835 a 1845. (Festejos Farroupilhas) 6
O carter das comemoraes - feriado estadual - exprime tambm o carter regional
dado ao prprio movimento como espao de reconhecimento daquela populao em
particular, mas tambm demonstra uma necessidade de no deixar que aqueles eventos
cassem no esquecimento dentro da conjuntura nacional, delimitando assim um espao para
aquela sociedade dentro da nao como um todo.
Marcada como dever de lembrana para toda a populao riograndense, a
Farroupilha passa a configurar um espao privilegiado de acesso ao passado, onde os usos do
tempo e da histria demarcam o valor desses eventos no presente. Tal concepo
caracterstica do que Fernando Snchez Marcos chama de Cultura Histrica, conceito que
para o autor [...] expresa una nueva manera de pensar y comprender la relacin efectiva y
afectiva que un grupo humano mantiene con el pasado, con su pasado. (SNCHEZ
MARCOS, 2009, p. 01). A esta nova maneira de pensar e compreender as relaes dos
indivduos com seu passado, Snchez Marcos define como [...] la elaboracin social de la
experiencia histrica y su plasmacin objetiva en la vida de una comunidad. (SNCHEZ
MARCOS, 2009, p. 01), indicando que a cultura histrica se estabelece justamente a partir da
reelaborao do passado no presente com o uso da experincia histrica sob a forma de
memria histrica.
A partir disso, podemos pensar que a Semana Farroupilha, atravs da imerso dessa
comunidade na experincia histrica do movimento, permite a fixao da Farroupilha como
locus simblico em que a sociedade riograndense pode experimentar e vivenciar um passado
considerado valoroso. O estabelecimento deste locus gera, segundo Jrn Rusen, conexes
entre o passado, o presente e o futuro, assim como estabelece vnculos entre os demais
6 Festejos Farroupilhas. Apresenta o histrico e temtica das comemoraes dos festejos da Semana Farroupilha. Disponvel em: www.semanafarroupilha.com.br./historico_semana. ph (acesso em: 04/04/2008).
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membros daquela comunidade que experimentam tal imerso a partir da organizao desta
experincia histrica coletiva em forma de uma memria. Para o autor, as relaes com o
passado e sua permanncia no presente e as experincia do tempo, praticadas pelos indivduos
de uma sociedade, esto vinculadas s questes de memria, por que esta se configura como
[..] un procedimiento mental de la conciencia histrica. [grifo do autor] (RUSEN, 1994, p.
07) que se evidencia no ato de rememorar. La accin memorativa (el recuerdo) se realiza con un concepto de tiempo que integra las tres dimensiones de la temporalidad (pasado, presente y futuro) en una representacin global del transcurso temporal, tal como queda patente en la actualizacin del pasado a travs del acto rememorativo. La rememoracin cambia el estatus temporal del pasado de tal manera que no deja de ser pasado, sino al contrario se hace presente en cuanto que pasado y abre al mismo tiempo una perspectiva al futuro. (RUSEN, 1994, p. 08)
Enxergar que a partir das comemoraes da Semana Farroupilha a populao local
disponibiliza um determinado valor para o evento dentro daquela sociedade, nos permite
verificar a existncia de um conjunto de normas e prticas, que, a partir do uso da histria
como algo valoroso, estabelece o universo simblico daquela populao. Este conjunto de
normas e prticas se organiza a partir da cultura histrica, mas disponibilizado populao
por uma srie de vetores que permitem a difuso de um determinado ideal que se conforma no
uso especfico do passado e da histria no presente. Ao difundir um determinado conjunto de
normas e prticas, estes vetores conformam um campo muito mais vasto de influncia sobre a
sociedade que se dirige, por inseri-la no quadro das normas e dos valores que determinam a
representao que uma sociedade faz de si mesma, do seu passado, do seu futuro
(BERSTEIN, 1998, p. 352-353). Esse quadro, ou conjunto de normas e valores, Serge
Berstein classifica como Cultura Poltica. Conceito que se apresenta como explicao dos
comportamentos polticos no decorrer da histria humana, e se caracteriza como um sistema
de representao integrante da cultura global de uma sociedade, ainda que possua um vnculo
mais estreito com as questes da esfera do poltico (BERSTEIN, 1998). Enquanto sistema de
representao, a cultura poltica compe-se de [...] uma leitura comum e normativa do passado histrico com conotao positiva ou negativa com os grandes perodos do passado, uma viso institucional que traduz no plano da organizao poltica do Estado os dados filosficos ou histricos precedentes, uma concepo da sociedade ideal tal como a veem os detentores dessa cultura e, para exprimir o todo, um discurso codificado em que o vocabulrio utilizado, as palavras-chave, as formulas repetitivas so portadoras de significao, enquanto ritos e smbolos desempenham, ao nvel do gesto e da representao visual, o mesmo papel significante. (BERSTEIN, 1998, p. 350)
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A cultura poltica descrita por Serge Berstein inclui a apropriao da cultura histrica
definida por Snchez Marcos, onde os valores, ideias e prticas referentes s maneiras de ver
e significar o passado e, por conseguinte, as figuraes do tempo histrico, encadeiam-se aos
projetos de ao poltica. Para Berstein, a cultura poltica adquirida ao longo da vivncia e
da experincia que o individuo experimenta quando em contato direto com os parmetros que
regem a sociedade, compondo-se de aspectos que a relacionam, identificam e que a tornam
um todo coeso. A ao variada, por vezes contraditria, e a composio de influncias diversas que acaba por dar ao homem uma cultura poltica, a qual mais uma resultante do que uma mensagem unvoca. Esta adquire-se no seio do clima cultural em que mergulha cada individuo pela difuso de temas, de modelos, de normas, de modos de raciocnio que, com a repetio, acabam por ser interiorizados e que o tornam sensvel recepo de ideias ou adoo de comportamentos convenientes (BERSTEIN, 1998, p. 357).
Dessa forma, a cultura poltica se apresenta como uma chave de leitura do real
(BERSTEIN, 1998, p. 360) que define a forma como uma sociedade compreende e identifica
o mundo que o cerca, partilhando coletivamente desta viso comum do mundo, a partir de
representaes que se do no nvel dos smbolos, gestos e principalmente do discurso.
Torna-se importante, portanto, lembrar que a cultura poltica no nica no interior
de uma nao. Existe uma pluralidade de culturas polticas, cada qual com uma zona de
abrangncia que corresponde a uma srie de valores partilhados coletivamente. Valores que
definem um conjunto coerente em que todos os elementos esto em estreita relao uns com
os outros, permitindo definir uma forma de identidade do individuo que dela se reclama
(BERSTEIN, 1998, p. 362-363).
Dentro deste universo de valores e relaes entre os indivduos, suas histrias e seu
passado em nvel pessoal e/ou coletivo a cultura poltica esta imbricada das representaes
e elaboraes da cultura histrica no que concerne aos usos do passado pelos indivduos no
presente. No entanto, Jrn Rusen afirma que El pensamiento histrico es una parte importante de la cultura poltica, pero no es absorbido por Ella [...] 'Historia' es algo principalmente propio y particular, que se emparenta con casi todas las actividades y formas de la cultura, pero que queda igualmente visible como algo particular. Expresando lo comn y lo diferente, la expresin 'cultura histrica' se convierte en un trmino con un significado igual al de una categora. (RUSEN, 1994, p. 03)
Nesse sentido, a cultura histrica seria um conceito que se insere e ao mesmo tempo
se destaca dentro do universo de possibilidades da cultura poltica assinalada por Berstein.
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Insere-se por permitir a apropriao do passado pelo presente e se destaca como veiculo dessa
apropriao. Desta forma, Fernando Snchez Marcos aponta que Es imposible acceder al pasado en cuanto que pasado. Para aproximarnos a l, debemos representarlo, hacerlo presente a travs de una reelaboracin sinttica y creativa. Por ello, el conocimiento del pasado y su uso en el presente se enmarcam siempre dentro de unas praticas socieales de interpetacin y reproducin de la histria. La conciencia histrica de cada individuo se teje, pues, en el seno de um sistema scio-comunicativo de interpretacin, objetivacin y uso publico del pasado es decir, en el seno de una cultura histrica. (SNCHEZ MARCOS, 2009, p. 01)
Desta forma, acreditamos que no s as festas e comemoraes servem construo
e institucionalizao de experincias histricas como espaos privilegiados de acesso ao
passado. Acreditamos que a veiculao do passado no presente passa por negociaes e
embates onde projetos e propostas so apresentados e postos prova frente os interesses da
sociedade, antes que uma determinada viso do passado seja efetivamente consumada.
Principalmente no que tange ao sculo XIX e ao Imprio do Brasil, como nos aponta Marcia
Gonalves A prpria ideia de imprio j pressupunha uma escolha, diga-se de antemo, em nada tranquila. Melhor seria, se quisermos frisar um caminho de interpretao historiogrfica, entender a emergncia de tal ideia como resultado de embates e conflitos entre projetos polticos distintos naquilo que se referiria a edificao do Estado e da ordem institucional e administrativa que esse deveria corporificar, ao romper com as Cortes de Lisboa. (GONALVES, 2009b, p. 439)
E, nesse sentido, entender que a cultura histrica do Rio Grande do Sul hoje aponta
para um valor dado experincia histrica do movimento Farroupilha como evento a ser
lembrado, nos indica que em determinado momento a histria daqueles sucessos teve de ser
narrada e construda para que alcanasse tal status. E nesse sentido, acreditamos que, como
argumenta Fernando Sanches Marcos: Ascultar la negociacin sobre el pasado lleva a comprender los dilemas sociales del presente y revela cules son las problemticas axiolgicas y polticas presentes en el espacio pblico. La histria es la arena donde se debate la identidade presente y futura de la comunidad. (SNCHEZ MARCOS. 2009, p. 03)
Tais consideraes nos possibilitam compreender o processo de construo deste
status valoroso por meio do estudo e da anlise das temporalidades e dos locais em que esses
projetos e seus embates foram construdos, encaminhados e/ou consumaram-se.
Nesse sentido, acreditamos na fora da produo historiogrfica como
encaminhamento dessa discusso e do seu valor como espao privilegiado de construo e
debate desses projetos e planos que viriam a permitir a construo do status referencial
concedido Farroupilha. Enquanto interpretao do passado, a historiografia aponta para
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possibilidades de compreender as aes humanas no mundo se a pensarmos no papel de
metfora-fundadora de nossa concepo de memria e de lembrana: a escrita, este rastro
privilegiado que os homens deixam de si mesmos (GAGNEBIN, 2006, p. 111), nas palavras
de Jeanne Marie Gagnebin. Escrever o passado, para alm do registro, permite a construo e
a permanncia de representaes sobre esse mesmo passado, fixando o que Beatriz Sarlo
categorizou como viso do passado. Uma representao que disputa e se entrelaa com a
memria, permitindo uma construo da verdade dos fatos, que ganha corpo a partir de sua
incluso na forma de narrativa escrita no quadro da histria.
1.2. Experincia lembrada, experincia narrada
Pensar a produo historiogrfica como palco para o embate de projetos pressupe a
elaborao narrativa destes eventos e pressupe tambm que o uso e o desenvolvimento da
linguagem e seus elementos possam alterar significativamente as formas de apreenso de um
evento. Reinhart Koselleck pondera que a linguagem referencia a realidade, esclarecendo e
significando o entendimento do homem em relao ao mundo. Afirma que ela nos faz
lembrar a fora peculiar s palavras, sem as quais o fazer e o sofrer humanos no se
experimentam nem tampouco se transmitem (KOSELLECK, 2007, p. 97).
A nosso ver, compreender a participao da produo historiogrfica brasileira sobre
a Farroupilha, na significao que foi dada ao evento nos quadros da formao da nao
brasileira e da histria nacional nas dcadas finais do sculo XIX, buscar compreender como
estas obras participaram da construo da memria que se formou do evento. Do mesmo
modo, procurar compreender o papel que esta memria desempenha na cultura histrica
daquela populao e sua insero na cultura poltica. Dessa forma, tentar compreender esta
cultura histrica e sua imerso na sociedade riograndense de fins dos oitocentos a partir da
historiografia apostar em sua fora, pensando-a como uma entre outras possveis formas de
as sociedades humanas produzirem uma relao com o tempo decorrido [...] um dos
procedimentos coletivos de reconstruo do passado (GUIMARES, 2007, p. 96), nas
palavras de Manoel Luiz Salgado Guimares.
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Em investigaes anteriores7, constatamos que a produo historiogrfica sobre o
tema teve seu auge na primeira metade do sculo XX. Acreditamos que tal interesse fruto do
valor atribudo possibilidade de uma experincia republicana vivenciada j no incio do
sculo XIX, ponto que concedia a Farroupilha importncia redobrada naquele comeo de
Repblica no Brasil. No entanto, a produo historiogrfica do sculo XIX caracteriza um
espao de debate do processo de formao da nao brasileira ao representar um movimento
de construo, no s da histria nacional, mas tambm do que deveria ser a ela associado.
Reconhecemos o valor da produo historiogrfica sobre a Farroupilha no sculo XIX
principalmente ao constatarmos que sua presena recorrente nas bibliografias, mesmo das
obras mais recentes sobre a temtica8.
No caso especifico da Farroupilha, a historiografia sobre o movimento em especial
a historiografia do XIX corresponde a um objeto privilegiado para pensar a construo do
mesmo e de seus ideais por representar um dos espaos que aquela sociedade disponibilizou
para pensar o evento. Por expressar representaes do processo poltico-militar Farroupilha,
essa historiografia passa a conformar um campo muito mais vasto de influncia sobre a
sociedade que se dirige, inserindo-se na cultura histrica e, consequentemente, na cultura
poltica local, atravs da construo de narrativas sobre aquela experincia histrica.
Jrn Rusen, afirma que os vnculos estabelecidos entre os indivduos e seu passado,
dentro da cultura histrica, esto diretamente ligados experincia e interpretao do tempo
praticada por estes mesmo indivduos. La cultura histrica sera as esa esfera o parte de la percepcin, de la interpretacin, de la orientacin y del establecimiento de una finalidad, que toma el tiempo como factor determinante de la vida humana. El tiempo es experimentado e interpretado, y la actividad y el padecimiento humanos son orientados en el marco del transcurso del tiempo, y se sealan sus finalidades de acuerdo a su extensin temporal. [...] La cultura histrica se refiere por tanto a una manera particular de abordar interpretativamente el tiempo, precisamente aquella que resulta en algo como historia en cuanto contenido de la experiencia, producto de la interpretacin, medida de orientacin y determinacin de la finalidad. (RUSEN, 1994, p. 06)
7 No trabalho monogrfico de concluso do curso de bacharelado em histria pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), sob o titulo: Do Esgotamento da Palavra: o Papel do Projeto Poltico Farroupilha na Emergncia da Identidade Riograndense, no ano de 2009, apresentamos uma anlise da produo historiogrfica sobre o tema, ao longo do sculo XX, juntamente com analise da difuso e das influncias dos ideais do grupo dirigente local farroupilha na formao da identidade riograndense.
8 Cf.: ALBUQUERQUE, Edu Silvestre de. A Revoluo Farroupilha (1835-1845). So Paulo: Editora Saraiva, 2003; HARTMAN, Ivar. Aspectos da Guerra dos Farrapos. Novo Hamburgo: Feevale, 2002; FLORES, Moacyr. A Revoluo Farroupilha. 4.ed. Porto Alegre: Editora da Universidade - UFRGS, 2004; ALVES, Francisco das Neves. Revoluo Farroupilha: estudos histricos. Rio Grande: FURG, 2004.
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Tendo em mente que, como dito anteriormente, a cultura histrica conforma o como
uma sociedade se relaciona com o seu passado e que a histria e principalmente a sua
produo so a base das prticas sociais que imprimem o conhecimento do passado no
presente da sociedade, podemos afirmar que a historiografia se caracteriza como meio da
sociedade se relacionar com seu passado e como veculo da conscincia histrica de um povo,
que segundo Rusen, se opera a partir da conscincia histrica (RUSEN, 1994, p. 04),
formadora e propagadora da memria dos eventos narrados.
Podemos concluir ento que a cultura histrica um sistema de representaes que
permite que uma sociedade, e os indivduos que a compem, relacionem o passado e o
presente numa perspectiva coletiva de futuro, e que fornece valores definidos e definidores de
um determinado espao-tempo que se somam forma como esses indivduos enxergam a si
mesmos, e logo, como constroem sua identidade.
Os debates quanto a identidade ganham corpo nos debates de cultura poltica, cultura
histrica e principalmente nos debates sobre memria. Enquanto conceito amplo, a identidade
normalmente identificada como a perspectiva de identificao que os sujeitos de uma
determinada sociedade estabelecem entre si e para si, circunscrevendo aspectos pelos quais os
indivduos acessam seu passado e dele fazem uso no presente. Mais uma vez Rusen nos
auxilia, estabelecendo o vnculo desse conceito amplo aos debates de memria e aos usos do
passado no presente. La identidad es una relacin autointerpretativa de los sujetos consigo mismos, en la que estos deben procurar conciliar las aspiraciones personales del valor propio con las atribuciones de otros, de tal modo que puedan manejarse en el mbito social. Esta identidad tiene una extensin temporal. Se conforma una y otra vez a travs del recuerdo y se perdera sin la memoria. Una y otra vez el pasado ha de ser usado, mediante actividades de la conciencia histrica, en el esfuerzo social por obtener reconocimiento; sobre las historias se estabilizan y desestabilizan identidades, se afirman y critican, se cambian y confirman, - y eso a todos los niveles de la existencia de una persona: del individuo singular, pasando por el grupo y la comunidad poltica, al mbito cultural ms extenso, hasta la humanidad; porque la humanidad (no entendida como especie biolgica, sino como comunidad de seres provistos de una capacidad cultural) es un aspecto esencial para la formulacin de la identidad. (RUSEN, 1994, p. 12)
Compreender a identidade depende fundamentalmente de compreender os processos
que a formam e conformam e dentro deste quadro de formao, e como j apontado por
Rusen, o papel da memria toma destaque e relevncia.
Michael Pollack, pensando a interseo entre a memria e o passado, defende que
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[...] perfeitamente possvel que, por meio da socializao poltica, ou da socializao histrica, ocorra um fenmeno de projeo ou de identificao com determinado passado, to forte que podemos falar numa memria quase que herdada.. (POLLACK, 1992, p. 02)
Tal ponto de vista indispensvel, j que, na configurao que apresentamos da
temtica, a historiografia em anlise serviria como espao de socializao histrica, como
caracterizado pelo autor, dada sua proximidade ao evento e dada a configurao singular
daquela populao, marcada por eventos militares desde os primrdios de sua ocupao,
perpassando por sua elevao ao status de provncia, a Guerra Cisplatina, a Farroupilha e
culminando com a Guerra do Paraguai, o Rio Grande do Sul esteve em estado de guerra ou
espera desta9. Mas tambm enquanto estratgia de socializao poltica, tendo em vista que a
produo historiogrfica do sculo XIX se enquadra dentro de uma chave em que a histria se
configura como espao indispensvel para pensar, escrever e classificar a nao que se quer
construir.
Fernando Catroga, ao discutir o carter coletivo e/ou individual da memria, nos
aponta que [...] a conscincia do eu se constri em correlao com camadas memoriais adquiridas, tem de se ter presente que estas s se formam a partir de narraes contadas por outros, o que prova que a memria um processo relacional e intersubjectivo. (CATROGA, 2011, p. 18)
Aqui nos deparamos com o ponto fundamental: a historiografia como espao para a
construo e difuso de uma memria. No qualquer memria, mas a memria de eventos
traumticos. No qualquer trauma, mas o trauma de uma longa e profunda guerra at hoje
experimentada e interiorizada por aquela populao. Perseguir esta memria comum
desencadeada pelo processo poltico-militar da Farroupilha buscar compreender a forma
como esta vem sendo narrada atravs do tempo e do espao, e como a seleo, consciente ou
inconsciente, de eventos e pontos de vista destes autores conformaram certas vises do
passado que se impem e se fixam num determinado imaginrio poltico e social. Isso nos
permite compreender que o como se constri a representao de determinada sociedade passa
pela anlise de como os historiadores apresentam o passado atravs da escrita da histria e
9 Cf: CARDOSO, Fernando Henrique. Disperso e Unidade. In: HOLANDA, Sergio Buarque de (org). Histria Geral da Civilizao Brasileira: Brasil Monrquico. 8 Ed. 4 v. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004; GOLIN, Tau. A Fronteira: governos e movimentos espontneos na fixao dos limites do Brasil com o Uruguai e a Argentina. Porto Alegre: L&PM, 2002. v. 01; LAYTANO, Dante de. Historia da Republica Rio-Grandense (1835-1845). Porto Alegre: Sulina/ARI, 1983; OSRIO, Helen. O Imprio Portugus no Sul da Amrica: estancieiros, lavradores e comerciantes. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2007.; PICCOLO, Helga. O processo de Independncia no Rio Grande do Sul. In: MOTA, Carlos Guilherme. 1822: Dimenses. So Paulo: Ed. Perspectiva, 1972; entre outros.
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retratando a concepo que uma sociedade tem sobre si mesma em um determinado
momento vivido (MACHADO, 200, p.1 15), como afirma Ironita Policarpo Machado.
Experincia lembrada, experincia narrada, assim se coloca o problema que aqui
temos a nossa frente. Construir para uma experincia histrica um espao valoroso na cultura
histrica, e consequentemente na cultura poltica, de uma sociedade, pressupe, em primeiro
lugar, sua construo enquanto narrativa. Uma narrativa to forte que possibilitasse
sociedade riograndense de fins do XIX a criao de uma identificao com os eventos daquele
processo poltico-militar que permitiria sua perpetuao. Esta identificao forjaria
posteriormente um sentimento que se manteve vivo no s entre a populao geral, mas
tambm entre os letrados e intelectuais da regio, como nos mo