Gonçalo Alves Viana
Do Cinema ao Segredo
Orientador: Professor Doutor Manuel José Carvalho Almeida Damásio
Vogal: Professor Dr. Gonçalo Laidley Melo Galvão Teles
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Coordenação Pedagógica do Departamento de Cinema e Artes dos Media
Lisboa
2019
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Nome: Gonçalo Alves Viana
Título da Tese: Do Cinema ao Segredo
Relatório Técnico defendido em provas públicas na Universidade Lusófona de Humanidades e
Tecnologias no dia 07/ 05/ 2019, perante o júri, nomeado pelo Despacho de Nomeação n.º:
105/2019, para obtenção do grau de mestre em Estudos Cinematográficos perante o júri com a
seguinte composição:
Presidente: Professor Doutor Paulo Renato da Silva Gil Viveiros (ULHT);
Arguente: Professor Doutor Nelson Agostinho Marques Araújo (ESAP);
Orientador: Professor Doutor Manuel José Carvalho Almeida Damásio (ULHT);
Vogal: Professor Dr. Gonçalo Laidley Melo Galvão Teles (ULHT).
Escola de Comunicação, Arquitetura, Artes e Tecnologias da Informação
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
Lisboa, 2019
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer ao meu vogal Professor Dr. Gonçalo Galvão Teles pelo apoio durante toda
a fase de escrita e produção da curta-metragem, bem como em ter acreditado no projecto ao longo
do seu desenvolvimento.
Agradeço também a toda a excelente equipa que me ajudou na pré-produção, na pós-produção e
durante as filmagens. Todos os elementos ajudaram-me no seu tempo livre sem receberem nada
em troca, dando uma esperança à colaboração e à dedicação pela arte.
Agradeço a todos os apoios que obtive para a realização do filme, desde do Hospital IPO, ao Meu
Super, à Farmácia Varela em Moscavide, à produtora Untold – Stories of places e a todos aqueles
que contribuiram para a campanha crowdfounding da plataforma PPL.
Agradeço à minha família, amigos e, em especial, à Giulia Di Battista pelo apoio em fases mais
complicadas do processo.
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RESUMO
Todas as narrativas cinematográficas propôem-se a desvendar algo novo, a contar uma história que
nunca foi contada, ou a retratá-la de uma forma diferente. No fundo, todas elas consistem numa
passagem de informação do ecrã para o espectador.
Algumas dessas histórias englobam ainda uma busca, uma procura no seu interior, um mistério que
não é desvendado à partida. Estas narrativas trazem-nos segredos. E como é contada uma história
com um segredo? Deve este ser desvendado imediatamente? Ou pode tornar-se parte formal do
próprio conto?
Como parte integrante do estudo central teórico, serão aprofundadas diferentes representações do
segredo em diversas histórias. Como é trabalhado este aspecto fulcral de cada filme, em que nível
é colocado o espectador e quando ou a que ritmo decide o realizador desvendar a informação oculta.
Tratando-se de um estudo algo específico, são poucas as fontes onde podesse basear esta tese e a
metodologia aplicada. Renira Gambarato, estudiosa brasileira, douturada em Design de
Informação, lançou em 2010 um artigo sobre a metodologia para análise de filme, tendo em conta
os objectos. Adaptando o segredo a um “objecto” do filme, esta foi a metodologia usada.
Compreende-se que o segredo é uma parte integrante do filme que pode ser representada de várias
formas e originar diferentes interpretações na audiência. Enquanto o segredo revelado proporciona
a espectativa de confronto entre personagens; a suspeita do segredo constrói uma tensão até à sua
descoberta; e um segredo surpreendente origina um choque dramático e uma mudança drástica na
compreensão da história.
São estas pequenas variáveis que proponho analisar e, consequentemente, aplicar numa curta-
metragem produzida e aliada a esta tese teórica, intitulada Qualquer um pinta.
PALAVRAS CHAVE
- Segredo
- Representação
- Objecto cinematográfico
- Confiança
- Mentira
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ÍNDICE GERAL
Introdução........................................................................................................................................3
Motivação pessoal............................................................................................................................4
Questões de Investigação.................................................................................................................6
Metodologias....................................................................................................................................6
Estado da arte .................................................................................................................................11
Relatório.........................................................................................................................................16
Contributo.......................................................................................................................................21
Pistas Futuras..................................................................................................................................25
Bibliografia.....................................................................................................................................26
Filmografia.....................................................................................................................................27
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INTRODUÇÃO
Desde das primeiras experiências dos irmãos Lumiere no final do século XIX que a realidade
adquiriu um “parceiro” com o qual partilhava muitas semelhanças, o Cinema. Mais que a literatura,
a fotografia ou mesmo o teatro, o cinema cria uma realidade paralela que transporta a sua audiência
de tal modo que o espectador deixa a sua cadeira e vive a história da personagem durante um
respectivo período. Os primeiros espectadores confundiam-se com a imagem projectada de um
comboio a vir na sua direção dentro de uma “janela gigante”. Mas hoje, é intuitivo perceber-se que
aquela história não é real nem está a acontecer no presente. O cinema mente aos seus espectadores,
não mostra tudo, esconde-nos um segredo, conta-nos só o que a câmara e a montagem decidem
mostrar. Mas esse segredo é público, qualquer espectador percebe hoje que o dinossauro gigante é
feito em computador e que as bicicletas não voam, muito menos com um alien dentro do cesto.
Existe uma grande equipa a trabalhar atrás da câmara que em nenhum momento (salvo raras
excepções propositadas) é revelada, mas é conhecida. Todo o filme ficcional acarreta este segredo
e não é necessário um truque genial para o esconder.
Mas é quando a própria história engloba um segredo que a creatividade é estimulada. A audiência
pode abdicar do seu papel exclusivamente passivo e tornar-se parte da história, interagindo com o
ambiente e a tensão das personagens, quer seja detentora do segredo ou não. O filme, como conceito
narrativo, não se resume apenas a uma constatação das imagens e sons projectados, mas abrange
também o próprio intelecto do espectador. Toda a percepção, especulação e previsão do desenlace
da narrativa é imaginada na mente de cada membro da audiência. O filme ganha, assim, uma
dimensão que transcende o próprio objecto. E esta consequência depende fortemente da maneira
como é contada a história, como o realizador decide guiar o espectador, como é expresso o segredo.
É precisamente neste panorama que eu pretendo inserir o estudo da minha tese. Avaliando as
diversas formas de representacão do segredo, será possível adaptar cada uma delas em função da
intenção pretendida e da reação do espectador. Ainda que considere claramente que o cinema, como
outro tipo de arte, não se insere no campo das ciências exactas, do efeito-consequência e, por tanto,
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a utilização de uma determinada técnica representativa do segredo não implica forçosamente uma
reacção especulada previamente. Pretendo apenas focar o estudo deste objecto cinematográfico e
concluir quais as reacções que podem resultar de algumas formas diferentes de representar o
segredo. Em último âmbito, a tese servirá para um conhecimento e um olhar mais aprofundado
sobre o tema.
MOTIVAÇÃO PESSOAL
Tal como um contador de histórias, um cineasta cria e inventa. Deve possuir uma imaginação fluída
que suporte todo esse novo mundo existente apenas na sua mente. E esse mundo interno deve ser
tão real para si quanto o externo que partilha com outros. Mesmo quando questionado, deve haver
uma rápida e coerente resposta que não coloque em causa a integridade dessa sua criação.
A mentira e o segredo são muito semelhantes. E todos nós (acredito eu) temos mentiras e segredos.
E só nós sabemos como é lidar com eles. A frustração, a angústia, o receio de ser posto em causa
e o dilema de ser confrontado, em milésimos de segundo, com uma situação de hipotética revelação
do segredo ou continuação da defesa dessa realidade interior. Ou ainda a angústia da situação em
que é pretendido desvendar-se o segredo, mas existem fortes razões que não o permitem.
A minha intenção passa por analisar como são tratadas essas situações em diferentes filmes, cada
um dos seus intervenientes e a própria audiência. Como é transposto para o cinema o conjunto de
emoções e sentimentos que invadem um indíviduo enquanto esconde um segredo, bem como o
indivíduo que sente algo a ser-lhe ocultado. E ainda a moral e as consequências dessa decisão, que
nos levam a esconder factos tão facilmente, por vezes, e de maneira tão sofrida, noutras tantas.
Além disso, como manobra terapéutica, exploro estes fortes sentimentos que advém de todas as
difíceis situações de segredo que já passei, ainda que adopte claramente uma posição impessoal.
Espero poder também contribuir para outros que sintam de alguma forma empatia e compaixão
pelos intervenientes da história e, de forma humilde e sincera, gostaria que este olhar servisse de
introspeção e auto-avaliação das próprias decisões futuras em episódios de mentiras e segredos.
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Através deste foco mais profundo e conciso, posteriormente sintetizarei as diferentes técnicas
utilizadas e colocarei paralelamente ao meu filme. Desta maneira, não só consigo adquirir um maior
leque de ideias, como posso adaptar uma das técnicas que faça mais sentido para mim e para a
história
A decisão do formato de produção de uma curta-metragem foi tomada de uma maneira muito
natural. Sempre tive uma paixão pelo cinema e sonhei um dia estar sentado numa grande sala,
rodeado de pessoas influentes da arte a visualizar um filme da minha autoria. Mas quando
finalmente comecei a fazer cinema, percebi algo um pouco diferente.
A fase de planeamento e pré-produção, apesar de muito trabalhosa, é ainda mais entusiasmante, já
que engloba a fase de construção do filme, onde tudo é possível e imaginável. O filme perfeito é
planeado e as ideias são todas consideradas. Mais tarde, no final do projecto, quando é visto o
resultado pela primeira vez, é gratificante materializar todo o esforço e dedicação, todos os meses
de preparação numa determinada duração de imagens em movimento.
Contudo percebi que a fase mais apaixonante desta relação com o cinema é a fase das próprias
rodagens. A ansiedade e o nervosismo aglomerado da pré-produção antecipa o extâse das
filmagens. Mas assim que o set está montado e a “película a rodar”, uma estranha sensação de
conforto e simultâneamente adrenalina invade qualquer receio. A pura diversão toma conta da
concentração e os takes são às dezenas. E com a oportunidade proporcionada pela Universidade,
optei por sentir esta satisfação uma vez mais e produzir uma curta-metragem que podesse conter
um segredo na sua narrativa, de forma a aplicar uma determinada maneira de representar o segredo
no cinema.
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QUESTÕES DE INVESTIGAÇÃO
Como um realizador, no seu papel criativo, conta um segredo dentro de um segredo?
Como vai ele/a, usando as suas ferramentas técnicas e conceptuais, contar uma história à sua
audiência, que inclua informação muito importante, mas que nem todas as personagens a
conheçam? Por vezes, informação que nem a própria audiência adquiriu?
Será explícito e directo na abordagem, ou poderá ser mais subtil na maneira como se refere ao
segredo?
Onde é colocada a sua audiência? É omnipresente conhecedora de tudo, ou é colocada a par das
personagens que procuram desvendar o segredo?
METODOLOGIAS
Tal como já referi anteriormente, a metodologia que me proponho a abordar é “O papel dos objectos
no cinema”, desenvolvida por Ranira Gambarato (. Porém, antes de explicar o motivo da minha
escolha, começo por justificar a razão de não ter optado pelas outras metodologias.
Análise de Conteudo
Método quantitativo para análise de material qualitativo.
À partida, tratando-se de uma análise rigorosa, científica e seguindo diversas regras, a Análise de
Conteúdo não será a mais adequada para aplicação sobre uma obra de arte. Apesar de podermos
atingir resultados interessantes através desta metodologia, enquanto estudante de arte, existem
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muitos outros aspectos importantes que são ignorados, como a subjectividade de cada um e os
contributos sensoriais e emocionais da obra a ser analisada.
Mais especificamente, para o meu caso, o estudo do segredo no cinema não deve ser analisado
quantitativamente, já que em casos como Oldboy (Park Chan-wook, 2003) o segredo é uma parte
fundamental da narrativa mas é apenas expressa uma única vez, no final do filme.
Análise de Discurso
O discurso é caracterizado pelo conjunto de afirmações que estruturam a maneira como se pensa
sobre algo e como se actua em função desse pensamento.
Esta metodologia também poderia ser uma hipótese a aplicar no meu caso, já que possibilita uma
análise do segredo de uma forma eclética, recorrendo a intertextualidade. Conseguiria obter várias
perspectivas, não só dos intervenientes numa determinada situação de segredo, mas de várias outras
situações em diferentes contextos.
Porém, o problema reside mesmo nesses textos, nessas fontes. Mesmo quando o segredo é o centro
do diálogo, este nem sempre o refere, ou seja, o texto no qual está latente um segredo, não discursa
sobre o segredo enquanto conceito. Teria muitas situações de discursos onde há um segredo, mas
teria pouca matéria para o trabalhar.
Análise Crítica do Discurso
A crítica como momento de investigação, como análise das contradições nos discursos, é orientada
para a resolução de problemas sociais concretos.
Também poderia adoptar esta abordagem da crítica ao discurso se fosse interessante analisar o
discurso moral, religioso, ético, político, cultural e social de agentes-chave no discurso do segredo.
Seria uma metodologia adequada se o meu objectivo passasse por desmontar esses discursos, por
vezes falaciosos, da temática da mentira, do oculto, da confidência.
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Mas ainda assim, não é essa a abordagem que tenho interesse em tomar. Pretendo focar a luta
interna, o conflicto entre dois intervenientes, a situação do segredo em si e como esse é trabalhado
no cinema, não o discurso sobre este.
Análise Etnográfica e de Audiências
Esta metodologia estuda a aplicação da cultura popular na satisfação de necessidades de cada
indivíduo. Propõe-se a investigar um determinado tópico no seio de uma, relativamente, pequena
amostra de indivíduos, através da observação, participação, entrevistas, sondagens, etc.
Esta metodologia seria a minha escolha alternativa, já que me interessa também a análise do
segredo associada a diferentes grupos sociais, sejam eles diferenciadados por gerações, geografia,
classes sociais, grau de proximidade, etc. Como é perceptível nos exemplos que me propus a
estudar, o segredo é tratado de diferentes maneiras quando circula em meios de alta classe, como
Stoker (Park Chan-wook, 2013) e Eyes Wide Shut (Stanley Kubrick, 1999), e noutros meios mais
populares, como Just le fin du monde (Xavier Dolan, 2016) e I, Tonya (Craig Gillespie, 2017). Tal
como seria interessante, também estudar as reacções e opiniões de diferentes grupos de audiências
quando confrontados com o visionamento de uma situação de segredo, numa posição próxima da
sua situação social ou completamente distante.
Ainda assim, este caminho continua a não ser o mais motivante. Eu tenciono explorar a arte do
esconder e a sua representação, o seu núcleo central, como é transmitida essa ideia. Que metáforas,
que elipses, que técnicas e práticas estão associadas ao segredo, dentro de um filme.
Metodologia escolhida: Análise dos objectos no cinema
Eisenstein refere muitas vezes como os objectos no cinema ajudam a influenciar a percepção da
audiência de acordo com os propósitos do realizador (Eisenstein, 1991, p.22). Alain Fleischer
coloca o objecto numa posição fulcral para a progressão da narrativa, é o objecto que vai despoletar
a demanda do personagem (Fleischer, 2004, p.87-103).
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Gambarato vem introduzir, pela primeira vez, um método de análise do papel dos objectos no
cinema através de parâmetros quantitativos e qualitativos (Gambarato, 2010, p.107). A autora
procura destacar a relevância de diferentes objectos e como os realizadores a expressam, como
comunicam determinada ideia usando o respectivo objecto. Enumera então alguns critérios que
devem ser aplicados. Os critérios de relevância, expressividade e funcionalidade.
Desta forma, os objectos podem adquirir diferentes facetas. Conseguem transparecer o estado de
mente de uma personagem, seja por métodos explicítios ou implícitos. Representam uma ideia e
ainda “traduzem-na” para uma linguagem universal (Gambarato, 2010, p.106).
No meu caso, o meu “objecto” de estudo não se insere completamente no campo dos objectos
estudados por Gambarato. Ainda que se possa denominar de “objecto”, eu focar-me-ei num objecto
conceptual, abstracto, mas que, apesar de não se integrar totalmente nos objectos de Gambarato,
insere-se em algumas categorias desta metodologia. Mais concretamente, será uma adaptação da
Análise de objectos no cinema, de objectos físicos do quotidiano, para um objecto conceptual, o
segredo.
Desde dos pioneiros aos contemporâneos, vários realizadores usaram objectos como forma de
representação de uma ideia. Um relógio representando a passagem do tempo, a porta como
travessia para o outro lado, o espelho como um olhar introspectivo, etc.
Tal como na poesia, o cinema, como obra de arte, não retrata os seus temas de maneira directa, ou
seja, as ideias e intenções do realizador são passadas subtil e implicitamente. Tal poderá surgir da
quantidade de dados que o cinema partilha com o seu espectador. Enquanto a música transmite
ideias e emoções apenas através de som e texto, a fotografia através de imagem, e a literatura
apenas texto. Um leitor ou um ouvinte de música possui uma maior “liberdade imaginária” que um
espectador de cinema, envolvido em texto, imagem e som.
Por opção estética e artística, mas também pela vontade em criar narrativas interessantes e
apelativas, alguns cineastas começaram a recorrer a metáforas, comparações, ligações entre
diferentes campos semânticos para articular as suas história. Mas essas ligações nem sempre
procuram ser óbvias e racionais.
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Um dos grandes cineastas que usa intensivamente os objectos, significados e símbolos, metáforas
e analogias, é o americano David Lynch. Os seus filmes conseguem transparecer diferentes ideias
e emoções usando objectos banais em contextos e significados alterados.
O segredo como “objecto” do cinema já pode possuir uma utilização. Não se trata necessariamente
de um objecto que significa algo. O segredo já é um significado. É a maneira como cada realizador
representa esse significado que nos traz ideias e emoções diferentes.
Analisarei as características chave que definem a presença de um segredo num filme. Estudarei a
posição da audiência em relação ao conhecimento do segredo e à aproximação da personagem
principal. Como é introduzido o segredo na narrativa, qual a sua importância e o seu impacto. As
técnicas de montagem e de som associadas. As pistas apresentadas e a sua credibilidade. E o
resultado da revelação do segredo para todas as personagens.
O segredo pode constituir uma parte da narrativa, sendo apenas mais um objecto trabalhado pelo
autor, trazendo mistério e dinâmica ao filme, suspense e alguma interação da audiência. Pode ser
um objecto desnecessário ao filme, no qual a narrativa poderia ser contada sem esse recurso. Neste
caso, podemos observar o segredo de um ponto de vista mais superficial e relacionado com o
entretenimento. Possui geralmente uma representação clássica onde a audiência é detentora de toda
a informação, ao contrário das personagens (método muito utilizado em novelas e séries
televisivas)
Mas também se encontram narrativas onde o segredo está incluído na sua essência, onde a história
trata o próprio segredo como parte integrante. É geralmente nestes casos que a criatividade de cada
realizador é trabalhada, bem como a interação com a audiência. Aqui, o “objecto” do segredo ganha
uma dimensão cinematográfica tal, que todos os outros objectos do filme remetem para este. O
segredo vira o filme e o filme é o próprio objecto trabalhado em si.
De uma forma igualmente válida, também pode ser considerada uma narrativa em que não será
necessário o recurso ao segredo, em que o realizador decide contar a sua história como uma simples
narrativa linear, como se um narrador apresentasse cada acontecimento de uma forma sequencial e
clara. Mas a inclusão do segredo abre as portas a uma diferente abordagem, para um filme diferente
que origina uma experiência da audiência igualmente diferente.
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ESTADO DA ARTE
O cinema usa com frequência o factor “tensão” na audiência. Nomeadamente nos filmes de terror,
o que não é mostrado, o fora-de-campo, é presumido. Esta característica cria uma tensão no
espectador que aguarda a qualquer momento o impacto de uma aparição.
Um segredo confidenciado funciona de forma semelhante. No momento em que a audiência
conhece o segredo, surgem várias situações de tensão das quais se pode esperar um confronto a
qualquer momento. Mas tal como no terror, essas situações são trabalhadas de maneiras diferentes
em cada filme. E, dependendo da história e do realizador, o espectador pode também tomar várias
posições. Em filmes como Just la fin du monde, a audiência conhece o segredo a partir do início e
permanece constantemente aguardando a sua revelação. Noutros filmes como Stoker, a audiência
vai conhecendo a verdade simultâneamente com a personagem principal.
No cinema clássico americano, em cumplicidade com a literatura e o teatro, a audiência era
detentora de toda a informação, o espectador geralmente passava por todas as cenas importantes
para perceber claramente a narrativa. Desta forma, os segredos seriam sempre expostos à audiência,
restando-lhe apenas aguardar o confronto.
No cinema contemporâneo, algumas partes da narrativa começaram a ser deliberadamente confusas
ou mesmo ocultas à audiência. Alguns realizadores optam por dar uso a diversas técnicas
cinematográficas para realçar o segredo no meio da narrativa, como a música ou a montagem. Este
é o facto que permite o papel mais interactivo da audiência. Não só assiste, como também pensa,
deduz, raciocina e tira conclusões que, posteriormente, pode verificar a sua veracidade.
Após uma pesquisa acerca de artigos publicados relevantes ao estudo do segredo e da sua
representação, os resultados foram escassos. Existem várias obras relativas às diferentes
representações de géneros, de raças, de profissões, mas não foi encontrado nenhum estudo em que
o segredo fosse o principal foco. Apenas uma obra referente, de alguma forma, à relação entre o
segredo e a narrativa: The Genesis of Secrecy on the interpretation of narrative, Frank Kermode
(1979). Ainda que seja um pouco ambígua e distante do meu foco mais condicionado.
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É, pois, um estudo muito específico de um objecto maioritariamente usado como ferramenta para
alcançar um resultado. Seria como um carpinteiro estudar exactamente o que é uma espátula e não
o resultado que obteve ao utilizá-la. Mas podem ser tiradas algumas conclusões se o carpinteiro
estudar diferentes peças de madeira que foram trabalhadas com diferentes espátulas.
Desta forma, como estudo do estado da arte, proponho-me a analisar 5 filmes, de diferentes
realizadores e épocas, que tratam o segredo/mentira/rumor popular também de diferentes maneiras.
Alguns destes filmes foram escolhas minhas de visualizações prévias e que considerei bastante
relevantes para o meu propósito. Outros filmes foram sugestões de pessoas que conheciam a minha
intenção e proposeram correctamente os títulos. Optei por filmes de diferentes décadas para uma
análise mais rica do ponto de vista das inovações técnicas e da imersão narrativa. Pela mesma
razão, também decidi optar por realizadores de diferentes nacionalidades e culturas, de modo a
estudar a transversalidade da representação do segredo, as semelhanças e diferenças entre eles,
comparadas com os seus contextos sociais. Para me auxiliar nessa análise e reflexão, baseio-me na
já referida metodologia de análise cinematográfica: O papel dos objectos no cinema, de Renira
Gambarato (2010).
1 - Começemos por um clássico de um dos maiores mestres do cinema mundial, Eyes wide shut
(Stanley Kubrick, 1999). Podemos considerar este um filme com alguns aspectos clássicos e
revolucionários do ponto de vista do trabalho do realizador no segredo. Temos situações em que o
segredo é-nos revelado enquanto é narrado e outras onde a suposição do espectador faz parte da
interpretação diferente de cada um.
O casamento e traição começam por ser introduzidos no início de forma misteriosa e através de um
jogo de metáforas. Uma das personagens que esconde um segredo olha-se ao espelho, como se o
seu reflexo a julgasse. Por momentos, sente-se um confronto entre a personagem e o seu reflexo,
sobre a revelação ou continuação de ocultação do segredo.. Quando o segredo é revelado, o tom
do filme fica claramente mais sério e surge uma música tensa de fundo, enquanto a cara do receptor
do segredo é focada na sua expressão de surpresa e confusão. Neste momento, a audiência empatiza
com o receptor e toda aquela informação é novidade.
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Mais tarde, quando é contado outro segredo ao personagem principal, mas por outra personagem,
a audiência, tal como a personagem principal, é conhecedora de alguns pontos e apenas necessita
conectá-los. Mas nem tudo parece ser verdade, e o realizador opta por esse discurso
propositadamente dúbio para uma verdade menos clara.
No final, quando uma das personagem descobre a máscara da personagem principal, a audiência
pode antecipar o confronto. Mas Kubrick opta por nem incluir essa confissão no filme, mostrando
que isso não importa.
2 – Outro filme que explora igualmente duas facetas diferentes da inovação do segredo no cinema
é Stoker (Park Chan-wook, 2013). O realizador coloca-nos na pele de uma jovem personagem que
pouco desconfia o que está para acontecer. A audiência segue cada passo a seu lado, sentindo o
suspense e mistério com a progressão da narrativa. Esta confusão e desconfiança vai aumentando
consoante o descobrimeto de novas pistas. Mas mesmo a veracidade destas é posta em causa através
de uma edição brusca e não linear que baralha o espectador.
Mais uma vez, é focada a expressão facial do mentiroso quando questionado, sugerindo algo de
estranho para a audiência, fazendo-a duvidar da personagem.
Alguns elementos externos como a personagem da tia e as cartas descobertas dão origem a outras
pistas confusas acerca da verdade escondida.
Tudo culmina num momento de elucidação e confissão total, recorrendo a um flashback, para que
a personagem principal, juntamente com a audiência, compreenda todo o segredo.
3 – Num estilo mais independente e vanguardista, Vinterberg trabalha também o segredo e o seu
poder no cinema, com o filme The Celebration (Thomas Vinterberg, 1998). Como um dos filmes
pertencentes ao famoso grupo de cineastas dinamarqueses Dogma 95, gira em torno das
performances e diálogos, trabalhando pouco os aspectos mais técnicos.
De início, mesmo seguindo a personagem principal, não são dadas pistas sobre a revelação do
segredo, a audiência é surpreendida tal como todas as outras personagem. Alguns detalhes subtis,
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como a personagem pensativa ou o facto de olhar com desdém sobre a personagem do pai, podem
antecipar algum confronto.
Quando é revelado o segredo, nenhuma personagem acredita, o que também causa alguma
confusão ao espectador. Mas a personagem principal volta a revelar outro segredo e as reações
começam a indicar alguma credibilidade. Mesmo quando confrontado por todos os outros
personagens, o filho, personagem principal, continua a defender a sua verdade. Á medida que mais
verdades vão sendo reveladas e a credibilidade do filho aumenta, o caos vai sendo instaurado e a
audiência, tal como o resto dos convidados, abandona toda a empatia pela personagem do pai.
No final, o pai admite tudo e o filho permanece pensativo, como se estivesse arrependido de ter
revelado o segredo.
Para os dois últimos filmes, decidi escolher um cinema mais recente.
4 – Um dos grandes destaques desta década como jovem realizador, Xavier Dolan, fez um filme
sobre um segredo que nunca chegou a ser revelado, Just la fin du monde (Xavier Dolan, 2016).
O filme inicia-se com a personagem principal a anunciar o segredo à audiência e a revelar que
deseja anunciá-lo aos restantes personagens.
Em todos os momentos em que é colocada a questão acerca da razão da visita, música não-diegética
é introduzida, camâra lenta, pormenores da expressão da personagem principal são focados. O
realizador leva-nos ao íntimo da personagem, ao seu espaço introspectivo que só o espectador e a
própria personagem conhecem, quando parece existir, por momentos, uma consideração sobre a
revelação do segredo. O tempo passa a ter um peso ofegante sobre o filme.
Existem algumas elipses que levam a audiência a questionar o que terá sido falado. Tudo isto serve
para a construção do climax do filme, quando surgem várias questões e confusões que deixam
alguns assuntos em aberto.
No final, o segredo nunca foi revelado directamente, mas algumas pistas deixadas conceptualmente
dão a entender uma cumplicidade entre o segredo, as personagem que o conhecem e a audiência.
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5 – Por fim, escolhi um filme que nos traz uma história real mas com diferentes versões: a versão
da heroina Tonya, a versão do seu marido Jeff e a versão dos Media. O filme é I, Tonya (Craig
Gillespie, 2017). De todos os filmes analisados, este é o que se assemelha mais ao meu projecto
por duas razões. Primeiro, a audiência é colocada numa posição em que não consegue concluir
nada com certeza. E segundo, existe uma mistura homogénea entre segredo, mentira e rumor
popular.
O segredo começa por ser apresentado sob a forma de notícia nacional, com uma linguagem
documental a orientar entrevistas entre os intervenientes da história. Cada um conta a sua versão,
iniciando a confusão que se estabelece durante todo o filme.
A audiência é omnipresente, ou seja, está sempre no acontecimento. Contudo, não pode tirar
conclusões finais, pois os próprios dados fornecidos no filme são confusos. Como exemplo, uma
das personagens a meio do filme diz: “Esta próxima parte não é verdade”. Isto indica ao espectador
que, na versão daquela personagem, aquele facto não aconteceu. Mas isso é apenas na versão
daquele personagem em específico. Ou pode também signifcar que acontece, mas a personagem
prefere pensar que não.
Numa das cenas do filme, um criminoso agride uma patinadora e foge. Mas, mais tarde, a nossa
personagem principal acusa o marido de o ter feito e este reage mal. Ou seja, nas imagens vemos
A acontecer, mas, posteriormente, as personagem discutem sobre se foi A mesmo o que aconteceu,
ou se foi B.
Ao longo de todo o filme são partilhadas confissões de acontecimentos passados que nem sempre
correspondem de forma coerente em todas as versões de cada personagem. A própria audiência da
historia verídica nunca soube ao certo o que se passara. E o espectador do filme, à sua semelhança,
também carece de factos suficientes e credíveis que possam aferir exactamente o que se passou.
Mas o filme não se propõe a esclarecer ninguém. Envolvendo todos esses diferentes rumores sobre
a história verdadeira, o filme retrata a luta das personagens dentro da sua própria vida privada,
popular e social. Sem menosprezar a verdade do que aconteceu, I, Tonya segue a história da
protagonista independentemente.
O filme é terminado com a frase: “Todos têm a sua própria verdade e a vida faz o que lhe apetece”
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RELATÓRIO
Ainda que a parte teórica do cinema, à semelhança de todas as outras formas de arte, seja bastante
importante para o desenvolvimento do próprio formato, são os trabalhos práticos que o
exemplificam. A teoria constitui a base onde a prática assenta. Desta forma, desde do início do
mestrado, e como já foi referido na motivação pessoal, sempre foi minha intenção produzir uma
curta-metragem como resultado final.
Sendo meu o conceito e a intenção e querendo praticar a minha aptidão para realizar, foi-me
incutida, naturalmente, a tarefa de pensar a história e escrever o guião. Além disso, por razões
organizacionais, acabei por assumir também o papel de Produtor Executivo. Sendo um trabalho
individual no seio do mestrado, tive de reunir uma equipa de produção constituída por amigos e
voluntários da universidade que ofereceram o seu tempo livre para me auxiliar na produção, mas
sendo eu o coordenador geral das tarefas.
Explorando o campo da dôr e do sofrimento que envolve uma mentira, cheguei à sua forma mais
profunda, a privação da verdade e/ou revelação de uma realidade diferente da que é conhecida.
Esta conclusão aproximou-me também de uma outra parte integrante da nossa sociedade, o rumor
popular, o mexerico, “diz-se”, que muitas vezes envereda por esta vertente de revelar uma realidade
um pouco diferente daquela que foi recebida previamente. E pareceu-me interessante associar esta
nova perspectiva também à minha narrativa. Deste modo, aglomerando estes aspectos num só,
alcancei o meu objecto de estudo final, o segredo. Este esclarecimento conclusivo ajudou-me a
contextualizar o mote da história e a desenvolver a narrativa num sentido.
Novamente, tomando como base a minha motivação, tive a intenção de explorar uma história onde
a mentira fosse parte integrante da narrativa. Mas não procurava uma mentira simples, tencionava
encontrar uma situação em que poderia ser legítimo, independentemente do ponto de vista, mentir.
Procurava um episódio em que não fosse tão claro para o espectador condenar a mentira como algo
moral e eticamente errado. Não queria abordar o típico conflicto entre amantes nem entre relações
paternais. Então, decidi optar por uma ligação familiar igualmente forte onde a mentira podesse
provocar pesadas consequências nos seus intervenientes: a relação entre irmãos. Optei por dois
irmãos masculinos pois é um ponto de vista que, obviamente, domino melhor e também pareceu-
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me adequado ao âmbito da história, ter dois indivíduos do mesmo sexo para contrastar entre
semelhanças e diferenças. E o assunto da mentira teria de ser algo muito importante para os dois
irmãos, algo que levaria um irmão a mentir ao outro mas por motivos de sacrifício, por esconder
uma situação em prole de protecção. Uma mentira legítima.
Rapidamente surgiu a figura maternal como fonte de elevada importância para os dois irmãos e
ainda como provocadora de igual sofrimento. Algo relacionado com a morte da mãe poderia
despoletar uma mentira muito forte entre os irmãos. E, assim, a narrativa foi sendo construída em
volta desta premissa inicial. A história moldou-se numa mentira que o irmão mais velho contou ao
mais novo para protegê-lo de sentimentos de culpa.
Sinopse Inicial: A história envolve-se em torno de 3 personagens: dois irmãos, Vítor (honesto),
Filipe (mentiroso) e a sua mãe Margarida. Vítor volta a casa para encontrar a sua mãe muito doente
enquanto Filipe trata dela. A mãe começa a alucinar e não quer viver mais. Numa manhã, Vítor
descobre a mãe morta. Filipe parece esconder algo que Vítor não sabe. Mesmo depois de este
insistir, Filipe parece mentir na sua resposta. Vítor acusa Filipe de ter morto a mãe pela ganância
da sua miserável herança, os irmãos discutem, ambos deixam a cidade e a sua relação para trás por
uma briga sobre verdade e mentira.
Com o contributo fundamental do meu orientador, vogal e algumas pessoas próximas, a história
foi crescendo, adquirindo alguns detalhes que naturalmente funcionavam para alimentar a premissa
inicial. Alguns pormenores foram adicionando mistério em volta da condição da mãe e acentuando
a culpa do irmão mentiroso. Além disso, surgiu a história secundária do casal que abordava a ideia
da exploração do rumor popular. Trata-se de uma história paralela que inicia e finaliza o filme, mas
que vai sendo referenciada pelo meio em tom de rumor. Tom esse que é usado no final do filme
quando o casal se refere à história principal.
Enquanto a história dos irmãos continuava a ganhar coesão, senti necessidade de desenvolver a
doença da mãe e o seu historial. Procurei doenças que podessem acrescentar mais drama à narrativa
com períodos de delírio. Optei por uma doença oncológica, um tumor cerebral, que justificaria os
momentos de lucidez e outros de paranóia e, além disso, é uma patologia que pode provocar morte
repentina, trazendo alguma credibilidade à hipótese de morte natural.
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Para acentuar esta dualidade entre as personagens dos irmãos e as diferentes emoções relacionadas
com quem emite e quem recebe a mentira, pensei em dividir o filme em duas partes, com cada uma
delas focando cada irmão. Este aspecto é fundamental para o filme, mas também para a forma como
abordo o segredo. A ideia principal é guiar o público entre as sensações de cada personagem, de
cada lado da mentira, mas sem focar o próprio assunto da mentira. Ou seja, a minha própria
expressão do segredo no cinema pretende centrar as fortes emoções de cada interveniente, deixando
o conteúdo da mentira para segundo plano. Esta opção estética da narrativa está fortemente
relacionada com o objecto de estudo da tese.
Desta forma, inicialmente seguimos o irmão mais novo e a sua descoberta da situação em que se
encontra a familía, com alguns detalhes escondidos da cumplicidade entre o irmão mais velho e a
mãe doente. No centro do filme está o momento da inesperada morte da mãe. Na segunda metade,
o filme foca-se no irmão mais velho que sofre duplamente com a perda da mãe e acusação de ser
o responsável pelo que se sucedeu.
Noutros detalhes estéticos, a própria côr e música que envolve cada irmão é diferente. O irmão
mais novo é envolvido em tons mais quentes e nostálgicos, enquanto o irmão mais velho carrega
tons mais pesados e frios. Mais um detalhe cinematográfico que ajuda a acentuar as duas diferentes
partes do filme e relaciona-se com as emoções sentidas por cada personagem.
A opção de planos maioritariamente fechados na cara dos personagens é simultâneamente
propositada, mas também forçada. Como grande referência estética, o filme James White (Josh
Mond, 2015) capta muito bem a componente psicológica interna do personagem principal ao
evidenciar as suas expressões faciais em grande plano e com uma câmara ao ombro muito orgânica
e viva, seguindo cada situação muito próxima do personagem. É perceptível para o espectador não
só o que é facilmente lido nas expressões externas, mas também é fortemente subentendido as
próprias emoções que o personagem tenta esconder internamente. E este formato robusto adaptava-
se perfeitamente à minha intenção narrativa. Outra consequência relevante desta opção é o facto
de usar planos muito fechados na casa, acentuando a claustrofobia e a sensação de não haver opções
optimistas para o futuro da família. Por outro lado, tendo um espaço bastante reduzido para filmar
e curto tempo para a direcção de arte trabalhar, estes planos fechados eram a melhor opção para
evitar mostrar a totalidade do espaço.
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Ainda outro pormenor técnico que evidencia as duas diferentes histórias são os movimentos de
câmara. Na história principal temos um estilo orgânico com câmara ao ombro, e na história paralela
do casal, temos uma câmara mais estável no tripé ou na dolly.
Tratando-se de uma história muito real e concreta, com personagens de traços muito humanos,
procurei também um cinema nesse sentido. Pensei então em reunir uma pequena mas versátil
equipa que conseguisse dirigir, procurando focar-me mais na performance dos actores e deixar para
segundo plano pormenores técnicos. Com a adição de alguns elementos de produção a equipa
cresceu e chegámos a contar com vários assistentes que não tinha considerado inicialmente. Mas,
por destino, ou pela clássica fatalidade do cinema, poucos dias antes das rodagens, vários elementos
da equipa viram-se forçados a abandonar o projecto, voltando a contar com uma pequena produção,
tal como tinha planeado de início.
A pré-produção do filme foi um pouco atribulada. Inicialmente, contactei duas pessoas que me
afirmaram estar aplicadas em apoiar, mas que acabaram por nunca demonstrá-lo. Contactei então
alunos da universidade, dos quais voluntariaram-se nove. Alguns mantiveram-se, outros desistiram
a meio. Com cerca de mês e meio de antecedência das rodagens, contava com uma equipa bem
composta e a maioria dos locais garantidos. E este estado manteve-se até uma semana antes das
rodagens. Em primeiro lugar, o assistente de realização teve de abandonar o país. Depois foram
alguns assistentes de som, imagem e produção. E, por último, o maior obstáculo da pré-produção
surgiu quando a dona da casa onde estavam já todos os detalhes confirmados, contactou a produção
para avisar que já não podiamos filmar no local. Felizmente, a excelente equipa de produção
conseguiu rapidamente encontrar uma nova casa, muito menor e sem aparência de casa. Este facto
não só obrigou a equipa de arte a reconsiderar tudo, como obrigou-me a repensar todos os planos,
movimentos de câmara, de actores, de décors, etc. Tudo isto quatro dias antes do início das
rodagens.
Ainda que esteja muito orgulhoso e grato pela minha equipa, pelo seu esforço e dedicação e
reconhecendo o excelente trabalho que realizaram dentro das condições apresentadas, sinto que o
filme possa ter perdido algo com esta forçada alteração de última hora. Alguns planos e ideias de
movimento alteraram-se improvisadamente e talvez tenha afectado o produto final.
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Sem ser inesperado (ou não fosse este o ramo do cinema), ainda surgiram vários obtáculos durante
as rodagens. Entre eles, uma quase expulsão do IPO onde tinhamos algumas cenas para filmar,
faltaram alguns props importantes em algumas cenas e algum som teve de ser recuperado em pós-
produção. Contudo, a adrenalina, a emoção e o êxtase de estar em rodagens tornaram todos estes
problemas em algo insignificante perante toda a magia de fazer cinema. Como é frequente, também
houve alguns pontos do guião que foram ligeiramente alterados nas rodagens. Alguns menos
intrusivos como pequenas mudanças de falas propostas pelos actores. Outros mais
comprometedores que me fizeram repensar a história e o seu seguimento. E, como também é muito
frequente, o tempo voltou a ser inimigo da quantidade de planos filmados por cena.
Foi também na demorada pós-produção que o filme foi-se moldando de uma maneira mais afastada
daquela pensada no guião. Ainda assim, inicialmente, a premissa seria montar o filme completo,
com todas as cenas filmadas tal como previsto no guião. E, posteriormente, consoante o
desenvolvimento natural da montagem, haveria uma segunda versão mais curta que se focaria na
narrativa do filme, sem forçosamente ligar-se à premissa considerada pela narrativa do guião.
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CONTRIBUTO
Tendo em conta o formato optado para a tese, os resultados prendem-se com a versão final do
filme. Apesar do estudo aprofundado do segredo em diversas obras e do olhar crítico focado nas
suas representações, o contributo desta tese gira maioritariamente em torno da curta-metragem e
da consequente influência que o estudo teve no seu planeamento narrativo. Como tal, esta última
parte do relatório técnico, apoiar-se-á nas conclusões retiradas da montagem final do filme.
Inicialmente focarei-me nas minhas próprias conclusões relacionadas com o planeamento do filme
e com a sua eventual produção e montagem. E posteriormente, como referência de visualizações
de alguns espectadores, construirei uma reflexão geral da pequena amostra de comentários sobre o
filme e a envolvência da audiência com o segredo.
Este segundo ponto será essencial nas conclusões da tese, pois a própria representação do segredo
está fortemente ligada à experiência da audiência e ao nível de conhecimento que é apresentado no
filme. Alguns pontos mais claros, outros mais ocultos, proporcionam ao espectador diferentes
campos de conhecimento da informação disponível no filme. Tal é observável na própria análise
ao Estudo da arte, onde diferentes filmes me proporcionaram diferentes percepções acerca da
informação assimilada. E, certamente, para outro espectador, essas percepções teriam uma
diferente interpretação. Mas devemos admitir que a decisão da representação do segredo por parte
do realizador, envolve-nos num mesmo mistério, numa busca semelhante pela conclusão, pela
descoberta dos detalhes ocultos.
Dessa forma, a conclusão deverá ser suficientemente geral para abranger a maioria da audiência. E
assim, conseguirei obter uma conclusão mais fiel sobre o resultado que espero nas reacções do
espectador, sendo este mais, ou menos, aproximado do especulado.
Seguirei então com a minha visão pessoal do filme. Como resultado final da montagem, surgiram
então as duas versões ligeiramente diferentes. A primeira versão tem aproximadamente 19 minutos.
A versão longa contém quase todas as cenas do guião e transmite uma ideia mais fiel à premissa
inicial, com pormenores que ajudam a perceber a omissão de algo a Vitor, ajudam a traçar um perfil
mais nítido de Filipe e, tendo em consideração o trabalho desta tese, adiciona alguns elementos que
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contribuem para a prentendida especulação do espectador em relação ao segredo que não se revela
no filme.
A versão mais curta, com 15 minutos, funciona melhor como filme, mas a ausência de alguns
elementos pensados no guião, transforma um pouco a minha intenção de expressão do segredo e a
questão da mentira legítima. Ou seja, existem menos pistas e dicas para o espectador tirar as suas
conclusões. Contudo, o segredo continua a ser expresso de uma determinada maneira que suporta
a premissa inicial em seguir as emoções dos irmãos sem revelar o que realmente aconteceu. Coloca-
se o espectador no lugar de observador das atitudes e comportamentos de cada irmão, tirando as
suas próprias conclusões, mas sem saber o que aconteceu na verdade. Assim, o próprio espectador,
ao falar sobre a história, poderá assumir o papel de comentador sem certezas, tal como o casal da
história paralela, interpretando a sua versão, “pintando” tal como os personagens, tal como todos
nós quando partilhamos uma realidade que pode não ser a verdadeira.
Para além deste jogo de certezas e suposições, referindo uma outra parte da minha motivação
pessoal com este projecto, ambiciono colocar a audiência no papel emocional dos personagens,
desconhecendo o segredo, mas, ainda assim, sentindo o que as personagens sentem. Pretendo
colocar o espectador no papel de procura pela verdade e, no momento a seguir, de ocultação da
mesma. Passando momentaneamente pelas fortes tensões emocionais de quem está enquadrado
numa situação de mentiras e segredos.
Como segunda parte desta conclusão, focarei os comentários de espectadores que pouco ou nada
conheciam a história do filme e a sua relação com o segredo oculto.
Com uma amostra de 11 pessoas que assistiram à versão mais curta de 15 minutos, registaram-se
alguns pontos em comum, outros distantes entre si e ainda algumas outras questões levantadas que
não esperaria. Mas facilmente foi notável que a montagem da versão mais curta deixou de parte
alguns detalhes que sugeriam uma linha narrativa mais fiél à ideia inicial. Ainda que esse não tenha
sido obstáculo suficiente para despistar o filme dos seus contornos base.
Passando à descrição dos resultados, todos concordaram que o Filipe (irmão mais velho) matou
realmente a sua mãe. Divergiram sim nas suas intenções. Alguns afirmaram que o Filipe exagerou
na quantidade de calmantes que deu à mãe e matou-a negligentemente. Outros apoiam-se no
argumento que Filipe quis matar a mãe propositadamente para vender a casa e os terrenos. E já que
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estava farto da situação, pensou que seria benéfico para todos este desenlace. Mas mesmo tendo
como referência este último caso, é observável uma empatia pelo personagem do irmão mais velho
que levou o espectador a duvidar das suas intenções puramente egoístas e gananciosas.
No caso do irmão mais novo, o Vítor, existe um consenso maior acerca da sua personagem, pois é
a ele que lhe é ocultado o segredo. Alguns espectadores adiantaram que não seria justo o seu
comportamento e atitude perante o Filipe, já que é uma pessoa ausente e que parece apenas
preocupar-se quando volta a casa durante um curto período.
Por fim, outro aspecto relacionado com o primeiro discutido, é a história paralela do casal. Alguns
entenderam a ligação com o primeiro plano, outros não. Mas tendo em conta as referências a esta
história espalhadas ao longo do filme, a cena no quarto do hospital é suficiente para ligar os pontos.
A maioria dos espectadores percebeu então o propósito da colocação desta última cena, construindo
uma metáfora em volta do rumor popular, do boato. Apesar desta conclusão ter sido entendida e a
conexão paralela entre ambas as histórias, a maioria dos espectadores não interpretou a última fala
como sendo também um rumor ao qual não se deve acreditar. Houve uma confiança maior por esta
última descrição, fazendo o espectador acreditar que o Filipe efectivamente “...vendeu a casa e os
terrenos e fugiu com o dinheiro todo para o estrangerio.” Esta observação pode prender-se ao facto
de ser a última fala, de ser a conclusão auditiva do filme e de visualizar em simultâneo o Filipe a
sair da cidade com uma mala circular, que poderia estar cheia de dinheiro.
É, portanto, óbvio que as conclusões esperadas a partir do guião inicial tenham sido um pouco
diversificadas e menos próximas das especuladas.
Algumas cenas iniciais cortadas como a conversa dos perfumes no bar ou a chegada ao prédio
ajudavam a perceber melhor a intenção do Filipe em arranjar esquemas financeiros lucrativos e a
esconder algo do irmão, acentuando assim a desconfiança entre os irmãos.
Outro elemento retirado foi o frasco a ser escondido e a ser recolhido mais tarde, o que enfraquece
a acusação do irmão mais velho, ainda que este tenha sido um dos pontos que continuou presente
no filme.
E por fim, uma das cenas cruciais que foi cortada e que provavelmente originaria uma diferente
conclusão, mais próxima da esperada na fase da construção da narrativa, é a cena de diálogo entre
o Filipe e o seu amigo António. Aqui, sente-se fortemente a tristeza e talvez algum arrependimento
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do Filipe quando menciona o seu irmão. Além disso, a sua convicção em sair da cidade prende-se
com o facto de estar farto e desta situção que ocorreu, não para simplesmente fugir do que fez. Este
pormenor pode auxiliar o espectador a concluir que a última frase do casal trata-se apenas de mais
um rumor e não do verdadeiro destino e intenção do Filipe.
Alguns destes cortes na fase de montagem relacionam-se com a performance dos actores, outros
com a minha própria direcção e outros condicionados pela redução do tempo total da curta-
metragem. No entanto, o filme continua com o seu forte carácter de narrativa inclusiva de um
segredo. Apesar de auxiliar, algumas cenas cortadas poderiam afunilar mais as conclusões dos
espectadores. Mas deixando estas cenas de fora, pode surgir um maior espaço para a compreensão
das intenções e do desenvolvimento de cada personagem. Como se a sua caracterização tivesse
ganho mais liberdade para poder ser interpretada.
Existem ainda algumas cenas que, por razões de tempo e escolha, não possuem muitos planos para
escolha na montagem. Sendo também editor, visualizei o filme já montado antes de sequer começar
as filmagens e, o que por um lado pode ter ajudado a ganhar mais tempo, por outro limitou e
condicionou a montagem final do filme.
Recolhendo a minha conclusão e aquelas partilhadas pelo público, posso adiantar que o meu
objectivo com a curta foi parcialmente cumprido. Por um lado consegui criar uma narrativa que
envolvesse um segredo, representá-lo de uma maneira que as personagens demonstrassem, a
audiência sentisse, mas o segredo não se revelaria e, no final, houvesse conclusões diferentes que
se prenderiam ao facto do segredo não ter sido revelado. Apesar de não terem sido mostradas
certezas, a totalidade dos espectadores considerou o Filipe como único responsável pela morte da
mãe o que demonstra que o segredo foi percebido através da performance do actor. Adianto
“parcialmente”, já que a ideia de conclusão inicialmente era diferente, envolvendo também mais
pistas que “pintavam” o filme de outra forma.
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PISTAS FUTURAS
Com este estudo aprofundado de várias técnicas de conceptualização do segredo nas narrativas
cinematográficas, é adquirido um leque variado, mas claro, do que já foi feito e do que ainda pode
ser explorado.
O segredo na narrativa cinematográfica pode ganhar dimensões diferentes daquelas da realidade.
O trabalho da mentira pode tornar-se introspectivo e terapéutico. Ao contrário do que se pode
presumir, uma mentira revela mais verdades sobre o seu locutor do que um facto. Mas uma mentira
não é mais do que uma imaginação, uma criação, uma inovação. E essa é uma das necessidades
mais essenciais à vida do Homem: a criação.
Desta feita, o próprio segredo faz parte da vida, tal como do cinema. Ao aproximarmos cada vez
mais realidade e ficção, conheceremos melhor o mundo à nossa volta e isso permite-nos perceber
a vida, os seus intervenientes e todas as emoções consequentes desta procura.
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BIBLIOGRAFIA
Eisenstein, Serguei (1991) Vol. II: Towards a Theory of Montage. Londres, British Film Institute,
Inglaterra
Fleischer, Alain (2004) Une dramaturgie des objets. Paris, Éditions Léo Scheer, França
Gambarato, Renira (2010) Methodology for film analysis: The role of objects in films. Montreal,
Canada
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FILMOGRAFIA
CHAN-WOOK, P. (2003) Oldeuboi, Coreia do Sul, 120min, Show East
CHAN-WOOK, P. (2013) Stoker, EUA, 99min, Fox Searchlight Pictures
DOLAN, X. (2016) Just la fin du monde, Canadá, 97min, Entertainment One
GILLESPIE, C. (2017) I, Tonya, EUA, 117min, Neon/30 West
KUBRICK, S. (1999) Eyes wide shut, EUA, 159min, Warner Bros
MOND, J. (2015) James White, EUA, 85min, The Film Arcade
VINTERBERG, T. (1998) The Celebration (Festen), Dinamarca, 105min, Nimbus Film