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7efmais! São Paulo, domingo, 9 de maio de 2010

+ Marcelo Gleiser

N a famigerada guerra entreciência e religião, uma distin-ção comum é afirmar que a

ciência explica “como” as coisas são enão o “porquê”. Mas vale a pena pen-sar: será que esse é realmente um mo-do eficiente de discriminar entre ciên-cia e religião? Ou será que confunde ascoisas ainda mais?

Para chegar a uma conclusão, talvezseja uma boa ideia começar ilustrandoessa distinção com alguns importan-tes exemplos históricos.

Quando Galileu afirmou que objetosem queda livre são acelerados em dire-ção ao chão independentemente desuas massas, não estava preocupadoem questionar o “porquê” de os obje-tos caírem, mas sim o “como”.

Através de experimentos detalha-dos, mostrou que a distância percorri-da por um objeto em queda é propor-cional ao quadrado do tempo que elegasta no percurso, obtendo assim aprimeira relação matemática descre-vendo um movimento que acontece

por causa da gravidade terrestre.Cerca de 80 anos mais tarde, Isaac

Newton elaborou sua importante leida gravitação universal. Ele mostrouque dois objetos com massa se atraemcom uma força que se reduz com oquadrado da distância entre eles.

Logo após a publicação do livro, al-gumas pessoas fizeram críticas a New-ton. Elas afirmavam que essa miste-riosa “ação à distância” entre o Sol e aTerra ou entre a Terra e a Lua (ou en-tre você e seu computador ou jornal)tinha algo de sobrenatural, algumacoisa meio fantasmagórica.

Newton, então, respondeu: “Aindanão pude descobrir a causa dessas pro-priedades da gravidade a partir de fe-nômenos, e não arrisco qualquer hipó-tese, pois o que não é deduzido de fe-

nômenos deve ser chamado de hipóte-se, e hipóteses não pertencem à filoso-fia experimental.”

Ou seja, hipóteses que não podemser testadas não são científicas. Por-tanto, se não temos nada testável a di-zer sobre o porquê da atração gravita-cional entre duas massas, é suficienteusar a teoria da gravidade para descre-ver a atração entre as massas sem ex-plicar por que ela ocorre.

Newton usou sua teoria para prever

o retorno do cometa Halley, explicaras marés, entender o formato achata-do da Terra, calcular a precessão dosequinócios, e muito mais.

Essa abordagem de Newton acaboupor definir a ciência do “como”. Real-mente, é difícil contemplar a ciênciaoperando de uma forma diferente.Atribuir causas ocultas a fenômenosnaturais, eventos que não podem serverificados experimentalmente, nãoacrescenta nada à descrição científicadesses fenômenos.

Podemos incluir também a teoria darelatividade geral de Albert Einstein.Ele mostrou que a atração entre cor-pos com massa pode ser interpretadacomo consequência da curvatura doespaço em torno deles.

Mas, mesmo aqui, não sabemos por

que os objetos encurvam o espaço àsua volta. Porém, resolvendo as equa-ções da teoria, podemos descrever oquanto ele é encurvado e como objetosse comportam nessa geometria.

Será que a ciência poderia explicar oporquê das coisas? Focando na física,me aventuro a dizer que não poderia.Arrisco até dizer que questões do tipo“por que” sequer conseguem chegar aser científicas.

Se o porquê significa propósito, a fí-sica tem pouco a colaborar. Podemosvalidar experimentalmente as leis danatureza, como “energia é conserva-da”, mas não sabemos por que ela é,afinal, conservada.

Se você afirmar que caso contrárionão estaríamos aqui, não estará dizen-do muita coisa. A ciência já é bemcomplexa se ocupando só com o “co-mo” das coisas. Para o porquê, temostodo o resto.

MARCELO GLEISER é professor de física teórica no Dart-mouth College, em Hanover (EUA) e autor do livro “CriaçãoImperfeita”

O porquê e o comoSerá que a ciência

pode explicaro propósitodas coisas?

A reforma da naturezaFrance Presse/Instituto J. Craig Venter

................................................................................................REINALDO JOSÉ LOPESDA REPORTAGEM LOCAL

Q uem ainda se arre-pia só de pensarem soja transgêni-ca talvez devesser e p e n s a r s u a s

preocupações. Em vez de umou outro gene estranho inseri-do em vegetais que, de resto,são prosaicos, que tal organis-mos transformados da cabeçaaos pés, otimizados para fazertodo tipo de serviço industrialou médico? A ideia não tem na-da de impossível. Aliás, tais or-ganismos já estão por aí.

Temores um tanto luddistasà parte, é nesse tipo de iniciati-va, conhecido pelo nome debiologia sintética, que algumasdas grandes esperanças deavanço econômico e melhoradas condições ambientais doplaneta estão sendo deposita-das. E, embora ainda haja mui-to a ser feito, é indiscutível quea abordagem já esteja dando re-sultados viáveis economica-mente, afirma Gonçalo Ama-rante Guimarães Pereira, pes-quisador da Unicamp (Univer-sidade Estadual de Campinas)que trabalha no ramo.

“Eu estive numa empresanos Estados Unidos recente-mente, e o plástico de que é fei-ta a caneta que eu trouxe de láfoi produzido via biologia sinté-tica”, diz Pereira. “Então, a res-posta é sim, já é uma realidade”,enfatiza ele.

Um artigo recente na revistacientífica “Nature Reviews Ge-netics” confirma a tendência.Para os autores, Ahmad Khalile James Collins, da Universida-de de Boston (EUA), o campo“chegou à maioridade”. Para adupla, uma das principais utili-dades dos organismos sintéti-cos —por enquanto, micróbioscomo bactérias e leveduras— é

realizar operações lógicas, co-mo se fossem computadoresbiológicos. Pereira, no entanto,prefere outra forma de explicara área: trata-se de fazer comque os organismos de interessese comportem de maneira quejamais seria “programada” ne-les pela evolução.

Só para elas“Um exemplo são as levedu-

ras com que trabalho. Elas pro-duzem etanol, claro, que nósusamos como combustível,mas elas fazem isso para com-bater bactérias, não pelas ra-zões que nos interessam.”

É nesse ponto que as diferen-

ças entre biologia sintética esimples criação de transgêni-cos ficam mais claras. “Vocêusa as mesmas técnicas de bio-logia molecular, mas o propósi-to é diferente”, diz o pesquisa-dor da Unicamp.

Em vez de inserir um ou doisgenes na espécie que se quermodificar (o DNA que determi-na a bioluminescência de umaágua-viva para fazer um ca-mundongo brilhar no escuro,por exemplo), a ideia é embutirna criatura-alvo os genes deuma ou mais vias metabólicasinteiras. Tais vias correspon-dem a um conjunto de genes(ou melhor, das proteínas codi-

ficadas por eles) atuando emcascata, como um sistema, mo-dificando de forma significativao metabolismo do organismo.

Glicerol à vontadePereira dá outro exemplo de

seu próprio trabalho: as mes-mas leveduras que produzemetanol também fazem glicerol,mas em quantidades diminutas—apenas 2 gramas por litro.Uma mexida geral nas vias me-tabólicas do fungo microscópi-co, “desligando” alguns genes eaumentando a ativação de ou-tros, permite aumentar a pro-dução de glicerol para 46 gra-mas por litro, algo que prova-

velmente nem a seleção naturalmais feroz seria capaz de pro-duzir em milhões de anos.

Um dos sonhos de quem tra-balha com biologia sintética édar um passo além e permitirque os organismos de escolhaproduzam substâncias total-mente alheias a seu metabolis-mo natural —coisa que o plásti-co da caneta americana já mos-trou ser possível, entre outrosexemplos. A longo prazo, seriapossível criar uma “petroquí-mica biológica”, na qual deriva-dos de petróleo seriam total-mente substituídas por produ-tos de leveduras ou bactériasengenheiradas, diz Pereira.

Outro grande objetivo é oti-mizar a produção de biocom-bustíveis —em seu artigo, Kha-lil e Collins apontam, porexemplo, que seria possívelbuscar uma escala industrialpara formas mais energéticasde álcool que o etanol, como obutanol, modificando os orga-nismos fermentadores maisutilizados hoje. E, claro, já háprogressos na área médica, co-mo protótipos de vírus modifi-cados para atacar de forma es-pecífica células cancerosas oubactérias no organismo.

Apesar do fascínio dessesavanços, não seria exagero falarem “vida sintética”? Afinal,poucos pesquisadores falamem montar criaturas totalmen-te artificiais, compostas, porexemplo, de aminoácidos quehoje não são encontrados nanatureza. “Não acho que issoseja necessário. Ninguém deixade escrever um livro novo porfalta de letras no alfabeto, massim por falta de ideias. É a mes-ma coisa: os elementos básicosque temos na mão são mais doque suficientes para fazermoscoisas fantásticas”, diz Pereira.Para ele, a cadeia produtiva doetanol no Brasil deve dar aopaís vantagens competitivaspara avançar na área.

Área da biologiasintética, queprevê alterar

radicalmenteorganismos,

começa a trazerdividendosindustriais

Colônias alteradas da bactéria Mycoplasma mycoides, que passaram por um ‘transplante de genoma’ nos Estados Unidos

+ Marcelo Leite

P or uma dessas coincidênciassintomáticas que a época pro-duz, duas frases que abrem a re-

portagem de capa da presente ediçãodo caderno Mais! —“No Brasil todomundo é índio, exceto quem não é” e“Só é índio quem se garante”— estãono centro de um bate-boca entre seuautor, o antropólogo Eduardo Vivei-ros de Castro, e a revista “Veja”.

A abertura foi escrita antes do qui-proquó, mas pouco importa. Se ela etodo o texto sobre educação indígenaforem recebidos como tomada de po-sição, tanto melhor.

De qualquer maneira, é instrutivoler a reportagem da revista que deuorigem a tudo, assim como as réplicase tréplicas que se seguiram (veja linksno blog Ciência em Dia). Permite vis-lumbrar a profundidade dos precon-ceitos anti-indígenas e da estridênciajornalística que turvam essa vertentede discussão no país.

Preconceitos, estridência, falácias,invenções e estatísticas, aliás, trans-

formam todo o debate público numabacia amazônica de turbidez. Não éprivilégio da questão indígena. Tomea usina hidrelétrica de Belo Monte.Ou o tema explosivo da disponibilida-de de terras para o agronegócio, epi-centro da indigitada reportagem darevista “Veja”.

“Áreas de preservação ecológica, re-servas indígenas e supostos antigosquilombos abarcam, hoje, 77,6% daextensão do Brasil”, afirmam seus au-tores, sem citar a fonte. “Se a conta in-cluir também os assentamentos de re-forma agrária, as cidades, os portos, asestradas e outras obras de infraestru-tura, o total alcança 90,6% do territó-rio nacional.”

É provável que a origem omitida se-ja o estudo “Alcance Territorial da Le-

gislação Ambiental e Indigenista”, en-comendado à Embrapa Monitora-mento por Satélite pela Presidênciada República e encampado pela Con-federação Nacional da Agricultura ePecuária do Brasil (CNA, leia-se sena-dora Kátia Abreu, DEM-TO).

Seu coordenador foi o então chefeda unidade da Embrapa, EvaristoEduardo de Miranda. A estimativaterminou bombardeada por vários es-pecialistas, inclusive do Instituto Na-

cional de Pesquisas Espaciais (Inpe).Nesta semana veio à luz, graças às

repórteres Afra Balazina e AndreaVialli, mais um levantamento quecontradiz a projeção alarmante. O no-vo estudo foi realizado por Gerd Spa-rovek, da Escola Superior de Agricul-tura Luiz de Queiroz (Esalq-USP), emcolaboração com a Universidade deChalmers (Suécia).

Para Miranda, se toda a legislaçãoambiental, fundiária e indigenista fos-se cumprida à risca, faltariam 334 milkm2 —4% do território do Brasil— pa-ra satisfazer todas as suas exigências.O valor dá quase um Mato Grosso doSul de deficit.

Para Sparovek, mesmo que houves-se completa obediência ao CódigoFlorestal ora sob bombardeio de rura-

listas, sobraria ainda 1 milhão de km2,além de 600 mil km2 de pastagenspoucos produtivas usadas para pecuá-ria extensiva (um boi por hectare). Dá4,5 Mato Grosso do Sul de superavit.

A disparidade abissal entre as cifrasdeveria bastar para ensopar as barbasde quem acredita em neutralidadecientífica, ou a reivindica. Premissas,interpretações da lei e fontes de dadosdiversas decerto explicam o hiato.Mas quem as examina a fundo, en-trando no mérito e extraindo conclu-sões úteis para o esclarecimento dopúblico e a tomada de decisão?

Faltam pessoas e instituições, noBrasil, com autoridade para decantarespuma e detritos, clarificando aságuas para que se possa enxergar ofundo. De blogueiros e bucaneiros jáestamos cheios.

MARCELO LEITE é autor de “Darwin” (série Folha Explica,Publifolha, 2009) e “Ciência — Use com Cuidado” (Editorada Unicamp, 2008).Blog: Ciênciaem Dia(cienciaemdia.folha.blog.uol.com.br)E-mail: [email protected]

Águas turvasDisparidade entre

cifras sobre áreas deconservação no país

requer reflexão

+(c)iência

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