Seminário Formação Jurídica e Povos Indígenas
Desafios para uma educação superior 21, 22 e 23.03.2007 Belém-Pará-Brasil
Educação superior para indígenas no Brasil – sobre cotas e algo mais Lima, 2007
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EDUCAÇÃO SUPERIOR PARA INDÍGENAS NO BRASIL
SOBRE COTAS E ALGO MAIS Antonio Carlos de Souza Lima1
O objetivo do presente texto é destacar alguns aspectos que vêm se demonstrando de
significativa importância quando pensamos em políticas de ação afirmativa considerando os
povos indígenas no Brasil como seus destinatários. Para tanto, procurarei em um primeiro
momento recuperar, ainda que brevemente, um pouco da história da ação do Estado
republicano brasileiro sobre os povos indígenas no país. Em um segundo momento destacarei
como os povos indígenas passaram a demandar formação no nível superior. E, por fim, procuro
indicar certos contornos de ações afirmativas que se adequem aos desafios da formação
superior de indígenas.
Antes dessa breve incursão histórica, porém, é preciso dizer que o perfil da população
indígena brasileira é totalmente diferente da mexicana: segundo dados oficiais do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) os povos indígenas no Brasil totalizam 734.127
indivíduos indígenas, o equivalente a algo em torno de 0,2% da população total brasileira. Essa
minoria numérica encompassa porém uma riqueza ímpar no planeta: são mais de 230 povos, 1 Antonio Carlos de Souza Lima é Antropólogo, professor de Etnologia do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/UFRJ, bolsista de produtividade em pesquisa 1C do CNPq, e Bolsista Cientista do Nosso Estado/FAPERJ. É Co-coordenador do Laboratório de Pesquisas em Etnicidade, Cultura e Desenvolvimento (LACED)/Departamento de Antropologia-Museu Nacional-UFRJ, onde desenvolve o projeto Trilhas de Conhecimentos: o ensino superior de indígenas no Brasil, com recursos da Pathways to Higher Education Initiative/Fundação Ford. A primeira versão deste texto resultou de uma entrevista realizada com o autor por Renato Ferreira do Programa Políticas da Co (PPcor)/Laboratório de Políticas Públicas-UERJ, entrevista que uma vez transcrita me foi enviada para revisão e transformou-se no que aqui está apresentado. Agradeço ao PPcor pelo convite e em especial a Renato Ferreira pelas perguntas pertinentes, pela gentileza e paciência. Agradeço ainda à Profa. Maria Barroso-Hoffman, co-coordenadora de Trilhas de conhecimentos, e à Profa. Mariana Paladino, pesquisadora do mesmo projeto, Doutora em Antropologia Social pelo Museu Nacional que, respectivamente, da Noruega e da Argentina fizeram observações importantes sobre as questões aqui apresentadas, cuja formulaçao final são de única responsabilidade do autor.
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falando 180 línguas – fora aqueles que falam apenas o português, tendo perdido suas línguas de
origem em função da violência assimilacionista do processo de colonização –, constituindo-se
no maior leque da diversidade humana contido num país. Distribuem-se por entre 582 terras
indígenas cujo direito lhes é reconhecido constitucionalmente, e que se situam em quase todos
os estados da federação brasileira. Na região da Amazônia Legal habitam 60 % dos indígenas
habitantes no Brasil, e por volta de 15% estão em cidades.
As terras indígenas, todavia, perfazem em torno de 13% de todas as terras brasileiras,
sendo das mais ricas em recursos naturais (biodiversidade e recursos minerais): raras áreas
preservadas num país cada vez mais devastado pelo extrativismo selvagem, pelo agronegócio,
pela exploração mineral. Na prática, muitas delas estão invadidas e os povos indígenas, nelas
encerrados, não têm contado com políticas governamentais de suporte a sua exploração em
moldes sustentáveis. É a partir exatamente do direito às suas terras tradicionalmente ocupadas
que veremos surgir um dos vetores da demanda indígena por formação superior, mas por uma
formação que considere seus conhecimentos tradicionais, seus saberes, e sua história
diferencial, sem folclorizá-los ou subsumi-los em uma falsa imagem de multiculturalidade em
que ocuparão sempre os estratos mais inferiores. Vejamos como a isso se chegou.
O ESTADO BRASILEIRO REPUBLICANO E SUAS POLÍTICAS INDIGENISTAS
O Brasil republicano (1899) emergiu de um recente passado colonial, trazendo consigo
os legados institucionais e simbólicos da monarquia, da escravidão, e da fusão entre a Igreja e o
Estado. Em que pese o afã modernizador do Segundo Império brasileiro, as elites mestiças
governantes da República tinham grandes desafios a enfrentar: um heteróclito e enorme
território, mitificado desde a chegada dos colonizadores portugueses como a sede de inúmeros
eldorados e quimeras, dotado de um vasto litoral; um contingente humano composto por
populações múltiplas - imigrantes vindos da Europa do Norte, negros de origem africana,
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negros crioulos, as populações indígenas dessa porção das Américas e uma massa de mestiços
que consistiria nos quadros da burocracia de um Estado nacional em expansão. Em suma, o
mapa de um país, entidade jurídica, em que a palavra “desconhecido”, tarjada sobre grandes
extensões, era dos mais freqüentes termos. Como, de tal caleidoscópio, forjar um povo, que se
sentisse pertencente a uma pátria brasileira? Como fazer este povo brasileiro ocupar, em nome
de uma soberania nacional, e tornar-se guardião de tão vastos espaços, seguindo o dístico da
bandeira republicana, ordem e progresso? Seria possível conceber que de tal emaranhado saísse
uma civilização? Seria possível conservar íntegro um território apenas juridicamente brasileiro,
mas em realidade incógnito, agora que o emblema imperial esvanecera-se enquanto signo de
uma forma de totalização, evitando-se o fantasma da fragmentação das colônias espanholas na
América, fantasma permanente dos militares brasileiros curiosamente ainda hoje? Como
defender esta vastidão da entrada de estrangeiros? Que métodos utilizar para tanto? Como fixar
as “fronteiras da nação”?
Para dar conta da implementação dessas tarefas nos quadros de um Estado em expansão
e de atividades econômicas que penetravam em regiões ocupadas por povos indígenas, foi
criado em 1910, o Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais
(SPILTN), depois apenas SPI, e sua direção foi entregue a Cândido Mariano da Silva Rondon,
um militar do Exército brasileiro que já teria mantido, por conta de trabalhos de extensão de
linhas telegráficas, contatos pacíficos com indígenas em guerra com as frentes de expansão .
Tendo os “selvícolas” sido incluídos entre os “relativamente incapazes”, junto a maiores
de dezesseis/menores de vinte um anos, mulheres casadas e pródigos, através do artigo 6º do
Código Civil brasileiro, em vigor desde 1917, os correligionáios de Rondon formularam e
encaminharam o texto aprovado como lei nº 5.484, em 27 de junho de 1928, que atribuiu ao
SPI a tarefa de executar a tutela de Estado sobre o status jurídico genérico de índio, sem deixar
claros os critérios que definiam a categoria sobre a qual incidia. Inaugurou-se então o regime
tutelar sobre os povos indígenas, marcado pelas mesmas idéias assimilacionistas de nosso
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arquivo colonial, em que os indígenas são categoria transitória pois uma vez expostos à
civilização, deixariam de sê-lo. Por isso a idéia era reconhecer-lhes pequenas reservas de terras,
o básico para se sustentarem, de acordo não com seus reais modos de vida, mas sim com aquilo
que se pretendia ser seu futuro – pequenos produtores rurais ocupando o território brasileiro,
isto é trabalhadores nacionais.
O SPI, órgão controvertido cuja extinção foi proposta inúmeras vezes, existiu até o ano
de 1967, quando já sob a ditadura militar foi criada a Fundação Nacional do Índio (FUNAI)
que se responsabilizaria pela acentuada invasão das terras indígenas da Amazônia nos quadros
do desenvolvimentismo brasileiro.
Ao longo dos anos 1950, a experiência da ação indigenista do SPI rondoniano somou-se
à visão de jovens profissionais envolvidos com as questões de sua disciplina, a Antropologia
Social e Cultural, e o mundo do pós-guerra, com a consciência das doutrinas racialistas sob a
forma do holocausto, a crítica dos nacionalismos e dos colonialismos que transpassados do
século XIX, marcaram o século XX, revelando-se nas descolonizações, nas ex-capitais de
impérios europeus que tornariam-se, pouco a pouco, as grandes cidades multiculturais
européias e norte-americanas. Os jovens Darci Ribeiro, Eduardo Galvão e Roberto Cardoso de
Oliveira, etnólogos do SPI, viram surgir a Declaração Universal de Direitos do Homem, de
10/12/1948, da quail também redundaria a Convenção nº 107, de 26 de junho de 1957, da
Organização Internacional para o Trabalho (OIT), sobre a “Proteção de Populações Indígenas
e Tribais”, de cujo processo de discussão participou o SPI. O Brasil só a ratificaria nove anos
após, pelo Decreto nº 58.824, de 14 de julho de 1966. Assim, durante os anos 1950 esses
jovens antropólogos, indigenistas, médicos, biólogos envolvidos na exploração da região
central do Brasil, elaboraram uma nova visão, uma utopia, num país que historicamente
primou por construir sua auto-imagem de unidade homogênea.
Desse momento surgiria a idéia de que as terras ocupadas pelos indígenas deveriam lhes
assegurar uma transformação social auto-gerida e paulatina, em harmonia com o seu modo de
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relacionamento com a natureza. Disso surgiu a proposição e posterior criação de três parques
indígenas, dos quais o mais conhecido nacional e internacionalmente é o Parque Indígena do
Xingu (hoje chamado terra indígena), regulamentados após muita luta, em 1961, na região
central do país. Passamos, assim, mais ao nível da ideologia que das práticas, da imagem das
terras diminutas para uma assimilação forçada num tempo curto, para a de uma aculturação
paulatina em amplas porções do território brasileiro.
Como todos os países da América Latina, o Brasil da ditadura militar foi palco da ação
intensa do establishment desenvolvimentista internacional, notadamente do Banco Mundial,
fortemente criticado pelos movimentos de defesa dos direitos humanos e pelos primeiros
organismos internacionais de defesa dos povos indígenas, críticas que repercutiram nos
dispositivos financiadores da expansão governamental brasileira rumo à Amazônia, ameaçando
cortar os recursos financeiros ao regime ditatorial militar, moldando-se um padrão de interação
conflitiva entre Estado brasileiro, movimentos internacionais e agências multilaterais de
financiamento que marcaria a década posterior. No âmbito latino-americano, a anteceder este
momento, as críticas dos efeitos etnocidas das políticas desenvolvimentistas encontraram na
Reunião de Barbados, em 1971, e depois na “Reunião de Peritos sobre Etnodesenvolvimento e
Etnocídio na América Latina”, promovida pela articulação entre UNESCO e FLACSO, em
dezembro de 1981, em San José de Costa Rica Costa, momentos especiais na formulação de
propostas para um “desenvolvimento alternativo”, marcado pelos projetos de futuro próprios
aos povos indígenas, o etnodesenvolvimento, proposta da qual o antropólogo mexicano Rodolfo
Stavenhagen foi um dos principais formuladores.
Por outro lado, constituiu-se em 1972 no Brasil, um aparelho eclesiástico - o Conselho
Indigenista Missionário -, órgão assessor da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB), uma das poucas vozes que se pôde erguer contra a ditadura. O CIMI dedicou-se a
atuar em áreas indígenas consoante com as propostas do Concílio Vaticano II e seus corolários
latino-americanos (com desenvolvimentos missiológicos stricto sensu brasileiros), promovendo
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assembléias indígenas, dando campo a um tipo de associativismo pan-indígena que seria
enfatizado, no plano retórico, como via privilegiada para a autodeterminação indígena.
Esboça-se assim, aquele que é o elemento a questionar mais fortemente as tradições de
conhecimento de nosso arquivo colonial: o movimento indígena, onde o porta-voz branco, tutor
seja oficial ou não, deve ser ultrapassado, e dê curso à polifonia indígena em nosso país. No meio dessa conjuntura, um pouco para dar satisfação aos credores internacionais
do “desenvolvimento brasileiro”, o regime militar aprovou o chamado Estatuto do Índio, Lei
6001/1973, de teor assimilacionista e tutelar, mas que ainda assim, lançou as bases que
permitiram a luta por um novo direito, sobretudo às terras que ocupavam os povos indígenas,
em meio à desenfreada corrida às terras amazônicas. É sempre bom frisar que os financiadores
de hoje da “luta pela inclusão social” dos desprivilegiados, como o Banco Interamericano de
Desenvolvimento, os “financiadores”/geradores da dívida pública que ainda nos assola, são
aqueles mesmos que financiaram o “milagre econômico” dos anos 70 e inícios dos anos 80,
anos de grande afluxo dos recursos canalizados pelo Banco Mundial para ações infra-
estruturais na Amazônia: estradas, grandes projetos de desenvolvimento rural integrado.
Como em tantos outros casos, a década de 1980 em seus finais viu a chamada
“redemocratização” do Brasil e, como em outros países da América Latina, uma Assembléia
Nacional Constituinte e uma nova Constituição em 1988 .
Se podemos reconhecer sem dificuldades que o modelo tutelar instituinte do SPI e da
Funai, em que estão gravadas alguns dos piores aspectos dos estereótipos anti-indígenas que
seguem uma longa linha de continuidade desde o período colonial, encontrou seu fim
legalmente com o texto constitucional de 1988 e seus desdobramentos, não podemos nos
orgulhar de ter gerado, desde então, alternativas consistentes que o ultrapassassem. A
Constituição de 1988 reconheceu os direitos dos dos indígenas e de suas comunidades de
entrarem em juízo sem um tutor, às terras que tradicionalmente ocupam – o que ensejou uma
luta pela ação adminsitrativa de reconhecimento das terras indígenas nas bases atuais – e aos
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seus usos e costumes, dentre elas as suas línguas e formas tradicionais de transmissão de
conhecimentos.
Reconhecer o “fim jurídico” da tutela da União não basta: não acabaram de fato as
formas tutelares de poder, de moralidades e de interação; a Funai continua a existir segundo o
modelo tutelar sem um novo projeto das funções de Estado para o relacionamento entre povos
indígenas, poderes públicos e segmentos dominantes da sociedade brasileira, delineado e
pactuado por todos os envolvidos, sobre pelos povos indígenas. A crença em certas palavras de
ordem, muitas delas coincidentes com a agenda da cooperação técnica técnica internacional
para o desenvolvimento, segundo as regras neo-liberais, e uma dada destilação dos ideais de
uma “democracia participativa”, implementados sobre o solo da desigualdade social
brutalizante do país, acabaram por gerar um certo glossário de palavras de ordem significantes
mais ou menos vazias.
Estamos longe do ideal. Há toda uma “luta pelos direitos” a ser enfrentada, uma parca
regulação jurídica de inúmeros aspectos relativos às diferenças sócio-culturais, ao meio-
ambiente e ao patrimônio dessas populações que deve ser enfrentada como matéria de estudo e
intervenção, apesar do maior acúmulo existente hoje2. Há ainda, e mais importante, um imenso
trabalho a ser feito cotidianamente contra os preconceitos e pelo direito de se dizer indígena
sem se subsumir aos estereótipos mais freqüentes que a ignorância dos brasileiros em geral,
repetida a cada novela de televisão, música e imagem jornalística, fora os textos de cientistas
sociais e textos legais, insiste em ratificar. Afinal, se com a polêmica em torno da demanda de
afro-descendentes por cotas nas vagas de acesso às universidades “o Brasil se descobre
racista”, ainda falta muito para os brasileiros – sobretudo os das grandes cidades - descobrirem
que não “amam” e nem “admiram” os “nossos ancestrais indígenas”, muito menos se sentem
2 Para conhecimentos fundamentais dos direitos indígenas, inclusive na visão de advogados indígenas, ver Araujo, Ana Valéria et alii. Povos Indígenas e a lei dos “brancos”. O direito à diferença. Rio de Janeiro; Brasília: Trilhas de Conhecimentos/LACED; MEC/SECAD; UNESCO, 2006 (Coleção Educação para Todos – Série Vias dos Saberes).
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descendentes dos índios reais que hoje habitam o país, tão longe que estão do lugar a eles
reservado nessa representação mental que vem desde a colônia: a de viverem nus, enfeitados
com penas, dançando no meio de uma “floresta” que no cotidiano concreto está em progressiva
dizimação, ainda que nem todos os índios tenham jamais vivido em florestas. A desinformação
é enorme e por vezes a simpatia é tão perigosa quando a agressão aberta3.
Só para mencionar, temos a pensar pela frente o enorme desafio da migração indígena:
há muitos indígenas que estão nas cidades. A população indígena urbana no Brasil é muito
grande mesmo porque há aldeias e aldeias na Amazônia que se transformaram em vilas, estão
se urbanizando e têm problemas pelas suas dimensões de lixo e saneamento, por exemplo,
idênticos aos das cidades e vilas do interior, embora não tenham esse Estatuto. O próprio
movimento indígena, que tem tido de se conformar e lidar com a imagem do “índio aldeado”
não sabe o que fazer quando se defronta com situações em que estão mais próximos do “índio-
descendente”, para usar duas categorias que assomaram – como muitas outras – junto com as
cotas e que atrapalham, distorcem e escondem a falta de reflexão de nossa própria ciência
social (antropologia inclusive) sobre esses problemas sociais, conquanto a temática da
migração e da urbanização de povos tribais seja clássica na disciplina...mas na África! E tudo
isso continua ficando de fora da ação indigenista do Estado: para o bem e para o mal continua a
se confundir autoctonia e direitos coletivos com modo de vida camponês.
3 Para uma visão especialmente atualizada dos povos indígenas no Brasil e de seus desafios, escrita por um indígena antropólogo e pensador dos mais importantes do movimento indígena organizado, ver Baniwa, Gersem. O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre o índio brasileiro de hoje. Rio de Janeiro; Brasília: Trilhas de Conhecimentos/LACED; MEC/SECAD; UNESCO, 2006 (Coleção Educação para Todos – Série Vias dos Saberes).
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ENSINO SUPERIOR E POVOS INDÍGENAS NO BRASIL – POR QUE OS ÍNDIOS
QUEREM ESTAR NAS UNIVERSIDADES?
Nesse quadro mais amplo, há dois vieses diferentes, mas historicamente entrelaçados,
que têm sido percebidos de modo separado e que, todavia, confluem na busca dos povos e
organizações indígenas por formação superior. O primeiro deles tem a ver com a educação
escolar que foi imposta aos indígenas, e que redundou na formação de professores indígenas. O
segundo viés passa pela necessidade de se ter profissionais indígenas graduados em saberes
científicos ocidentais, capazes de articular esses saberes e os conhecimentos tradicionais de
seus povos, pondo-se à frente da resolução de necessidades surgidas com o processo de
territorialização contemporâneo a que estão submetidos e que redundaram nas demarcações de
terras a coletividades, processo que se incrementou ponderavelmente após a constituição de
19884.
No que diz respeito ao primeiro viés, desde o início do SPI instalou-se uma rede de
escolas para educação de índios – ensino de “primeiras letras” e, sobretudo, de ofícios que os
situassem como futuros trabalhadores (corte e costura para mulheres, carpintaria para os
homens, por exemplo) – que se tornaria uma rede nacional de escolas indígenas sob a gestão da
Funai, teoricamente orientada para uma educação bilíngüe calcada no modelo do Summer
Institute of Linguistics, organização missionária que implantou a educação bilíngüe nas
Américas, usando um método de descrição de línguas indígenas muito eficaz para traduzir a
Bíblia pretensamente para todos os idiomas do planeta5. Outro vetor de influências foi a ação
4 O conceito de processo de territorialização como instrumento explicativo de distintos momentos em que ao longo da história da colonização do Brasil os povos indígenas foram sendo circunscritos a espaços geográficos administrativamente fixados foi desenvolvido por João Pacheco de Oliveira em “Uma etnologia dos ‘índios misturados’? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais” (Mana, 4(1), 1998). O texto está disponível em :<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131998000100003&lng=pt&nrm=iso:> )
5 Acerca da “dimensão pedagógica” da ação tutelar do Estado Brasileiro junto aos povos indígenas, ver Souza Lima, Antonio Carlos. Um grande cerco de paz: poder tutelar, indianidade e formação de Estado no Brasil.
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missionária, especialmente intensa no caso de certas ordens religiosas, como a dos Salesianos,
muito influentes no trabalho missionário no Alto Rio Negro, no Amazonas, e no Mato Grosso.
Também algumas outras confissões protestantes foram fundamentais na formação de indígenas
em outros pontos do país. Muitas das primeiras lideranças indígenas que assomaram à mídia
escrita e televisiva passaram por esses canais de formação.
Ao longo das décadas de 80 e 90, ONGs fundadas por antropólogos e o Conselho
Indigenista Missionário e a Operação Anchieta (hoje Operação Amazônia Nativa) passaram a
contestar a ação educativa da Funai e das missões tradicionais, propondo modelos alternativos
de escolarização6. Essas novas proposições integraram o leque mais abrangente da crítica à
tutela de Estado, em especial na área da educação escolar, e ao mesmo tempo sua ação se
potencializa com a ruína progressiva do monopólio tutelar. A partir dessas as iniciativas no
campo da educação escolar indígena passariam a estar marcadas pelas orientações em favor de
práticas diferenciadas e interculturais para os povos indígenas instituídas pela Constituição de
1988. O decreto n. 26/1991, que atribuiu ao Ministério da Educação as responsabilidades
principais na formulação e coordenação de uma política nacional de educação escolar indígena,
Petrópolis: Vozes, 1995. Ver também Leitão, Rosani M. Educação e Tradição: o significado da educação escolar para o povo Karajá de Santa Isabel do morro da Ilha do Bananal, To. (Dissertação de Mestrado) Goiânia: FE/UFG, 1998; Tsupal, Nancy Antunes. Educação Indígena bilíngüe, particularmente entre os Karajá e Xavante: alguns aspectos pedagógicos, considerações e sugestões (Dissertação de Mestrado). Brasília: FE/UnB, 1978); Barros, Maria Cándida D. M. Lingüística missionária: Summer Institute of Linguistics.”. Campinas:UNICAMP, 1993 (Tese de Doutorado).. 6 Cf. LOPES DA SILVA,Aracy (Coord.). A questão da Educação Indígena In: Cadernos da Comissão Pró- Ìndio. São Paulo. Editora Brasiliense, 1981; MELIÁ, Bartomeu. Educação indígena e alfabetização. São Paulo: Edições Loyola, 1979; OPAN. A conquista da escrita indígena. Encontros de educação. São Paulo: Editora Iluminuras, 1989; Para uma amostra no cenário global, ver Levinson, Bradley A.; Foley, Douglas & Holland, Dorothy C., eds. The cultural production of the educated person. Critical ethnographies of schooling and local practice. New York: Suny Press, 1996; Simpson, Anthony (ed.) The labours of learning. Education in the postcolony. University of Adelaide. 1999.
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ficando a sua execução na esfera municipial e estadual, não pôs fim às ações da Funai nesse
setor específico, mas foi do MEC que partiram as grandes transformações do período7.
Apesar de algumas ações terem se iniciado no período de 1991-1994, só no período de
1995-2002 a Coordenação Geral de Apoio às Escolas Indígenas (CGAEI)/Secretaria de
Educação Fundamental/MEC efetivamente deslanchou uma atividade que resultou, em
números do final da gestão de Fernando Henrique Cardoso, no atendimento de mais de 100 mil
estudantes indígenas, em uma rede de cerca de 1.392 escolas indígenas, assistidas por mais de
4.000 professores que trabalham em elevada percentagem (mais ou menos 75%) junto a seus
próprios povos. Em 1996, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (nº.9.394 de 20 de
Dezembro de 1996), particularmente através de seus artigos 26, 32, 78 e 79, fixou as bases que
documentos como Diretrizes para a Política Nacional de Educação Escolar Indígena (1993), do
Comitê de Educação Escolar Indígena, criado no MEC para subsidiar a formulação dessa
política, delinearam, e o posterior Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas -
RCNEI ampliaram, sobretudo através do Programa Parâmetros em Ação de Educação Escolar
Indígena, lançado em abril de 2002. Outros diplomas legais, como o Parecer 14/99 e a
Resolução n. 3/99, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação deram
continuidade à normatização da educação escolar indígena em território nacional; o item 9 do
Plano Nacional de Educação de 2001, sobre a educação escolar indígena, e particularmente sua
meta 17, que estabeleceu a formulação, em dois anos, de um plano para a implementação de
programas especiais para a formação de professores indígenas em nível superior, através da
colaboração das universidades e de instituições de nível equivalente; e a aprovação, em 2002,
pelo Conselho Pleno do Conselho Nacional de Educação, do parecer do relator Carlos Roberto 7 Sobre a ação da Funai nessa política setorial, ver Fialho, Maria Helena. A Funai e o novo contexto de políticas públicas em educação Escolar Indígena: uma questão de direito à cidadania. In: Marfan, Marilda Almeida, (org.). Congresso Brasileiro de Qualidade na Educação – Formação de Professores: Educação Escolar Indígena. Brasília: MEC/SEF, 2002, pp.25-28. Sobre a atuação do MEC nesse período, ver: Grupioni, Luís D. B. “De alternativo a Oficial: sobre a (im)possibilidade de Educação Escolar Indígena no Brasil”. In: Veiga, J. e D’Angelis, W. (org.) Leitura e Escrita em Escolas Indígenas. Campinas: Mercado das Letras. 1997.
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Jamil Curi sobre a formação de professores indígenas em nível universitário, atendendo à
solicitação da Organização dos Professores Indígenas de Roraima – OPIR por meio da Carta de
Canauanin8. De modo muito diferenciado da política tutelar da Funai, cujas bases da formulação até
hoje não se colocam à discussão e ao debate democrático, a forma como foi estruturada a ação
do MEC surgiu de amplo diálogo em que participaram intensamente índios e não-índios
referidos ao campo da educação, havendo ampla participação de ONGs indigenistas,
organizações de professores indígenas, universidades, que constituíram desde cedo um campo
com relativa autonomia e pouco referido, no nível federal e na escala nacional do campo
indigenista, às questões mais abrangentes enfrentadas pelos povos indígenas9. O comitê foi
posteriormente desativado (para queixas de muitos, que vêem nisso um retrocesso),
estruturando-se a Comissão Nacional de Professores Indígenas.
Para se ter uma idéia do escopo dessas ações é preciso que se saiba que a CGAEI, e o
MEC apoiaram, de 1995 a 2002, 65 projetos de escolas indígenas, atingindo em torno de 2.880
professores indígenas. A CGAEI/MEC promoveu, também, importante política editorial (51
títulos de 1995 a 2002), publicando materiais didáticos e livros que serviram, dentre outras
coisas, para ações de valorização da identidade étnica. Autores de 25 povos viram seus títulos
publicados. Foram promovidos também processos de capacitação de por volta de 820 técnicos
de secretarias estaduais e municipais de educação. Estes, por sua vez, tinham em 2002 por
clientela um total estimado de mais de 1.392 escolas em terras indígenas. 8 Cf. SILVA, Rosa H. Dias de. A autonomia como valor e articulaçao de possibilidades: o movimento dos professores indígenas do Amazonas, de Roraima e do Acre e a construção de uma política de educação escolar indígena. In: MORI, Angel Corbera e NASCIMENTO, Adir Casaro. Educação Indígena e interculturalidade. Cadernos CEDES. Nº 49. 1ª ed. Campinas: CEDES, 2000. 9 Para uma análise ampla da ação federal no tocante à educação escolar indígena, ver Matos, Kleber Gesteira. Educação escolar indígena In: BRASIL. Ministério da Educação. Políticas de qualidade da educação: um balanço institucional. Brasília: Mec/SEF, 2002, p.235-283. Para período mais recente, ver BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada. Alfabetização e Diversidade. Departamento de Educação para a Diversidade e Cidadania. Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena. Dados e indicadores a respeito da Educação Escolar Indígena no país. Brasília: CGEEI/SECAD/MEC, [ano].
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Se dos 93.037 estudantes indígenas em 1999, 80,6% estavam no ensino fundamental,
em 2002 uma margem estimada importante de alunos que concluíram o ensino médio e
reivindicam a entrada no ensino superior, na esteira dos cursos de magistério indígena
específico, surgidos em diversos pontos do país. Mas é fundamental dizer que os dados do
censo escolar são frágeis e que o acompanhamento a sério da questão (inclusive das
possibilidades de acesso e possível demanda pelo ensino superior) deveriam ser matéria de
pesquisa nacional realizada em bases mais sólidas. É sempre bom lembrar que em matéria de
povos indígenas as estatísticas brasileiras estão engatinhando.
No tocante à formação de professores indígenas, porém, nada foi feito na esfera do
MEC pelo governo Fernando Henrique Cardoso. Os cursos pioneiros de licenciatura
intercultural indígena – e o termo intercultural mereceria um artigo em si - surgidos na
Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat – ver http://www.unemat.br/~indigena),
coordenado pelo Professor Elias Januário, e o Núcleo Insikiran de Formação Superior Indígena
da Universidade Federal de Roraima (http://www.insikiran.ufrr.br/), concebido pela Professora
Maria Auxiliadora de Souza Mello, já falecida, e hoje coordenado pelo Professor Fabio
Carvalho, estruturaram-se por iniciativas autônomas apoiadas, sobretudo, pela Funai por meio
de um dos seus núcleos mais consistentes de servidores e implementadores de ações, aqueles
que estão exatamente voltados para a educação escolar indígena.
No caso de Roraima, a presença das organizações indígenas no conselho do Núcleo
Insikiran torna-as co-autoras desse processo, e faz dessa experiência um caso singular que pode
apontar rumos muito inovadores nas relações entre universidade e movimentos sociais. Seja
destinando recursos, seja dando bolsas de estudo a alunos em universidades e faculdades
particulares a Funai tem fomentado a formação superior indígena, ainda que de modo pouco
transparente e assistemático.
Com a entrada do governo Lula, ainda sob a gestão de Cristovam Buarque à frente do
Ministério da Educação, na tentativa de estruturar mais amplamente as ações de governo para a
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educação escolar indígena, o imperativo da formação de professores indígenas gerou a
composição de um grupo de trabalho ao nível da Secretaria de Educação Superior, com ampla
participação de organizações indígenas, ONGs, da Funai, e de universidades. Mas foi apenas
com a entrada de Tarso Genro na gestão da pasta que de fato houve um encaminhamento mais
orgânico e preciso quanto à questão. Por um lado, o convite a Nelson Maculan para a SESU
propiciou uma maior sensibilidade às questões indígenas, com a contratação como consultora
via UNESCO de Renata Gérard Bondim, que estruturou um programa de ações para a educação
superior de indígenas, enfocando em especial, mas não só, a meta governamental de formar
professores indígenas10.
Por outro lado, a reestruturação do MEC, com a criação da Secretaria de Educação
Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD), dirigida por Ricardo Henriques, retirou a
educação escolar indígena da esfera da educação fundamental, organizando-a sob a forma de
uma Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena, tendo por titular Kleber Gesteira e
Matos. A subseqüente reestruturação da Comissão Nacional de Professores Indígenas
enquanto Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, ampliando seu escopo e esfera de
ação, e uma renegociação do componente indígena no programa Diversidade na Universidade
(também realocado na SECAD) foram duas ações fundamentais levadas a cabo pela CGEEI.
Os recursos do “Diversidade” conjugaram-se a recursos orçamentários da SESU para permitir
uma ação conjunta SESU-SECAD: o lançamento do primeiro edital de apoio a iniciativas de
formação de indígenas no nível superior. O Programa de Formação Superior e Licenciaturas
Indígenas – PROLIND, fortemente marcado pela necessidade de formar e titular professores
indígenas no terceiro grau, mas com uma abertura para pensar na formação de profissionais
indígenas em outros cursos que respondam ao segundo viés mencionado antes.
Mas, apenas para se ter uma dimensão do que isso significa hoje, segundo dados do
Censo Escolar de 2005 processados pela CGEEI/SECAD eram no ano passado 2.324 escolas 10 Ver www.laced.mn.ufrj.br/trilhas/producoes/arquivos/DESAFIOS.pdf pp. 25-27.
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em terras indígenas, com 9.100 professores, dos quais 88% são indígenas, freqüentadas por
uma população de 164 mil alunos indígenas. Dessas escolas, 46,6% são estaduais, 52,5% são
municipais e 0,9% são particulares. São muitas as precariedades, pois a dedicação dos estados e
municípios à questão é muito variável. Mas é importante marcar um ponto – dos 164 mil
alunos indígenas, 11,3% cursam a educação infantil, 63,8% estão nas séries iniciais do ensino
fundamental; 14,8% estão nas quatro séries finais do ensino fundamental; 7,2% estão cursando
a educação de jovens e adultos e apenas 2,9 % cursam o ensino médio em terras indígenas. Na
sua maior parte os jovens indígenas que cursam o ensino médio o fazem com grandes
sacrifícios pessoais e de suas famílias, sofrendo grande discriminação e o que é muito próprio
das áreas próximas às terras indígenas – um tipo muito peculiar de invisibilidade que os torna
pouco perceptíveis aos olhos de professores e diretores de escolas, que sem má fé, mas
imbuídos dos preconceitos intensos nessas regiões os tomam por “caboclos” pouco letrados. A
SECAD está por divulgar um diagnóstico do ensino médio que cursam os indígenas no Brasil,
e tudo leva a crer que os resultados não têm como ser positivos.
É bom repetir, todavia, que se uma grande dinâmica se deu no nível federal, responsável
por normatizar, planejar e supervisionar a educação escolar indígena, nos níveis estadual e
municipal, responsáveis pela execução, foram freqüentes o preconceito, a ignorância, o
despreparo, o descumprimento ou a aplicação tacanha das normas mais gerais da educação,
pouco aplicáveis aos imperativos da educação escolar indígena. Do mesmo modo, o controle
social dessa política, através dos conselhos locais e estaduais, foi tosco ou limitou-se a medidas
administrativas, perdendo o seu caráter eminentemente político. Avaliar essa dimensão
demandaria um tipo de investimento e de produção de dados em corte nacional que ainda não
foi feito.
O segundo viés de demandas dos indígenas por formação superior surgiu com a
demarcação de boa parte das terras indígenas, o que se intensificou no período pós-
constitucional e, sobretudo, após a entrada, nas gestões de Fernando Collor de Mello e de
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Fernando Henrique Cardoso, da cooperação técnica internacional para o desenvolvimento,
financiando e normatizando a definição de terras indígenas no Brasil. Há muito escrito sobre
isso e alguns que integraram equipes que produziram sobre terras indígenas para permitir que
esse processo de instaurasse, ultrapassando a ação tutelar da FUNAI, hoje toma parte do
LACED, como João Pacheco de Oliveira, co-coordenador do nosso Laboratório e um dos
principais artífices da crítica à ação do Estado no tocante às terras indígenas11.
No período imediatamente pós-constituinte Ailton Krenak, importante liderança
indígena, organizou um centro de formação em Goiânia, visando enfrentar os desafios à
formação de indígenas em áreas desde a agronomia até a advocacia, pensando exatamente no
cruzamento dos conhecimentos tradicionais indígenas e dos saberes ocidentais e na necessidade
de terem quadros indígenas que construíssem novos relacionamentos com o Estado brasileiro e
com redes sociais nos contextos locais, regionais, nacional e internacional sem a mediação de
profissionais técnicos não-indígenas. Alguns dos formados estão hoje em ação, um ao menos
concluindo pós-graduação, mas a experiência foi descontinuada. O centro, em si, foi desativado
por sua pouca sustentabilidade e por se ter notado que dificilmente o intento de ter
profissionais, formados tão longe de suas aldeias de origem para atuarem entre seus povos,
dificilmente seria alcançado.
O fato é que a quebra do monopólio tutelar, a capacidade processual reconhecida às
organizações indígenas, o surgimento de políticas (não apenas a de educação, pois) como a de
saúde indígena, estruturada a partir da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA) em 1999
colocaram os povos indígenas e suas organizações como protagonistas de processos para os
quais se faziam necessários conhecimentos que não lhes pertenciam nem chegavam com
11 Para uma coletânea de textos críticos ação estatal no tangente às terras indígenas, que remontam a 1983 acerca e ao Projeto Estudo sobre terras Indígenas no Brasil (PETI), ver Pacheco de Oliveira, João, org. Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 1998; Disponível em: http://lacemnufrj.locaweb.com.br/produtos/banco_dados/peti.htm e http://lacemnufrj.locaweb.com.br/produtos/textos/textos_online/publicacoes_peti.htm.
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facilidade. Apesar de muita coisa escrita sobre educação escolar indígena, e de uma espécie de
consenso (não majoritário e nem absoluto) sobre a “educação escolar intercultural, bilíngüe e
diferenciada” como é a proposta encampada pela política federal, sabemos muito pouco sobre
quem está fazendo o que nesse campo.
Em levantamento de 1998/1999 realizado por João Pacheco de Oliveira e Antonio
Carlos de Souza Lima, e que informaria a realização do seminário Bases para uma nova
Política Indigenista, constatava-se que uma das maiores preocupações de diversos segmentos
governamentais e não-governamentais envolvidos em todos esses processos de constituição de
“políticas da diferença”, em que a territorialização é um eixo fundamental era com a
necessidade de “capacitar” – termo caro ao jargão desenvolvimentista – os povos indígenas e
suas organizações para concorrerem a recursos de diversos mecanismos de fomento, para
coadjuvarem numerosos processos dos quais idealmente eram os destinatários e deveriam ser
os protagonistas. Para tanto deveriam proliferar (e proliferaram) os cursos de treinamento em
métodos de montagem de projetos, em técnicas de gestão de organizações, que se impuseram
pela via dos formatos em que operam as agências internacionais e nacionais de fomento.
Naquele momento, já muitos indígenas propunham que além de treinamentos tópicos
era necessário que se formassem nas universidades, que adquirissem os conhecimentos dos
“brancos” para lidar com os brancos. Muitos conseguiram, e ainda conseguem, por esforço
pessoal – e hoje por política assumida por muitas organizações indígenas, que financiam ou
apóiam estudantes indígenas para que estudem nas cidades e adquiram conhecimentos que
revertam a suas comunidades – entrar em universidades públicas, mas manter-se tem sido o
maior desafio.
As bolsas fornecidas pela FUNAI, como já mencionado, têm sido um suporte quase
único para isso. Mas não há um programa de bolsas transparente e estabelecido para isso. Boa
parte dos recursos assim recebidos vão com freqüência para o pagamento de mensalidades em
universidades particulares de qualidade muito duvidosa, mas situadas em cidades próximas às
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terras indígenas. Criado pelo Governo Lula para criar vagas gratuitas no ensino superior
privado em troca de isenções fiscais ao governo federal o Programa Universidade para Todos -
PROUNI foi praticamente inútil para isso: a maioria dos estudantes indígenas com ensino
médio não passou pelo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), condição de acesso ao
programa nunca flexibilizada para os estudantes indígenas. Ele realmente não é para todos.
Urge, portanto, que a mesma atenção que foi dedicada ao ensino fundamental, reverta
na estruturação do ensino médio e do superior. As políticas de ação afirmativa, instituídas ao
apagar das luzes do segundo mandato FHC, e de fato implementadas na gestão de Lula,
enfrentam hoje o desafio de conhecer esse mundo específico da educação escolar indígena,
adequando-se mais amplamente às especificidades da situação indígena, criando mecanismos
de acesso à universidade que não reproduzam pura e simplesmente as alternativas pensadas
para o contexto das populações afro-descendentes, levando em consideração a necessidade de
instituir uma política voltada para povos, isto é, capaz de beneficiar, mais do que indivíduos
embora que por meio deles, coletividades que pretendem manter-se culturalmente
diferenciadas.
SOBRE COTAS E ALGO (MUITO) MAIS
É importante marcar que as organizações indígenas pensaram pouco sobre a questão do
ensino superior, pois estiveram e estão muito preocupadas em manter as terras de seus povos e
assegurar bases para a subsistência. Em diversas regiões do país essa demanda tem surgido com
mais força nos últimos tempos e iniciativas no sentido de formar quadros profissionais da
etnogestão, como o recém-criado Centro Amazônico de Formação Indígena, uma iniciativa da
Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) têm se
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estruturado12. Por outro lado, um importante conjunto de pesquisadores indígenas portadores de
títulos de mestrado e doutorado, intelectuais destacados do movimento indígena acabam de
criar o CINEP – Centro Indígena de Estudos e Pesquisas, cujas metas principais estão no
campo da pesquisa e da formação de quadros técnico-intelectuais13. Os intelectuais indígenas
têm bastante clareza de que se o acesso às universidades é importantíssimo e que as cotas
podem servir como um instrumento valioso tanto para a situação de povos territorializados –
ainda que muitos de seus integrantes estejam em trânsitos permanentes entre esses territórios e
ambientes urbanos deles próximos ou distantes, ou que nesses territórios suas aldeias muitas
vezes estejam adquirindo o perfil de cidades –, quanto para aqueles que, muitas vezes
motivados pela busca da educação, se deslocaram para os centros regionais ou mesmo para
cidades distantes, como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Afinal, salvo pelos cursos
específicos de formação de professores que vêm surgindo, foram pouquíssimos os indígenas
que acessaram universidades públicas antes de em algumas delas existirem cotas. Em geral, até
então, os indígenas acessavam (e continuam na sua maioria acessando) faculdades e
universidades particulares, de qualidade muito duvidosa14.
12 Sobre o CAFI, ver http://www.coiab.com.br/jornal.php?id=427. Em momento anterior a idéia de treinar pessoal capacitado em etnodesenvolvimento instigou-nos a estruturar propostas de cursos de de especialização (ver em http://lacemnufrj.locaweb.com.br/produtos/cursos/index.htm os sumários), dirigidos e freqüentados por indígenas e não-indígenas, em parceria com as Universidades Federal do Amazonas e de Roraima. Iniciativa próxima a essas foi pensada e executada pela Universidade Católica Dom Bosco, também com participação indígena. 13 “O Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (CINEP) é uma organização indígena criada em novembro de 2005 por 33 lideranças do movimento indígena brasileiro, por ocasião do I Encontro Nacional das Organizações Indígenas do Brasil, com objetivo de se constituir como uma entidade indígena de apoio e assessoria às organizações e comunidades indígenas, focado na pesquisa e serviços técnicos. Seu quadro de sócios está formado por lideranças de organizações indígenas regionais e por pesquisadores e acadêmicos indígenas. Sua atuação prioritária está voltada para o campo dos estudos e pesquisas de interesse do movimento social indígena e para prestação de serviços e assessorias técnicas às organizações e comunidades indígenas. Para cumprir essas tarefas, o principal desafio é formar seu próprio quadro e o das organizações indígenas.” (CINEP. Primeiro projeto institucional do CINEP – Centro Indígena de Estudos e Pesquisas – Biênio 2007/2008. Brasília: CINEP, 2006). 14 Para um levantamento da presença de indígenas em universidades desse perfil, ver Souza, Hellen Cristina de. Ensino superior para indígenas no Brasil (mapeamento provisório). Tangará da Serra: IESALC/Unemat, 2003.
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Mas cotas, no caso dos indígenas, sem mudanças muito mais amplas nas estruturas
universitárias, de modo a que estas reflitam sobre sua prática a partir da diferença étnica, de um
olhar sobre quem se desloca de um mundo sócio-cultural e, em geral, lingüístico totalmente
distinto, ainda que os estudantes indígenas pareçam e sejam – uns mais outros menos –
conhecedores de muito da vida brasileira. Não se trata stricto sensu de um único e mesmo
preconceito, nem de uma única e mesma forma de discriminação que também no meio
universitário atinge os indígenas, os afro-descendentes e os estudantes classificados como
“pobres” rurais e urbanos, negros ou não (e regionalmente muito distintos). Não se trata,
tampouco, como no caso dos afro-descendentes e da população de baixa renda, de incluir uma
minoria (em termos de poder) de excluídos no acesso e controle dos mesmos instrumentos que
historicamente têm servido à manutenção dos poderes das elites governantes no país, mas sim,
de rever as estruturas universitárias muito mais radicalmente. Ao incluir os indígenas nas
universidades há que se repensar as carreiras universitárias, as disciplinas, abrir novas (e
inovadoras) áreas de pesquisa, selecionar e repensar os conteúdos curriculares que têm sido
ministrados, e testar o quanto estruturas, que acabaram se tornando tão burocratizadas e
centralizadoras, podem suportar se colocar ao serviço de coletividades vivas, histórica e
culturalmente diferenciadas.
As universidades devem estar prontas para se indagarem sobre o quanto podem
beneficiar-se da presença indígena, vivificando-se a ampliando-se, na construção de um mundo
de tolerância e riqueza simbólica em que não bastará mais a repetição ampliada dos paradigmas
do horizonte capitalista contemporâneo. Nada disso é ou será rápido. Nada disso se resolverá
com dinâmicas exemplares e demonstrativas, com experiências piloto, ou projetos sementes,
nem com a criação de castas de “empoderados” que nos mitiguem o fato de que pertencemos a
um dos países de maiores contrastes e desigualdades sócio-econômicas, mas que singularmente
contém dentro de seus limites jurídico-políticos um dos maiores espectros da experiência
humana. Não se reverte 500 anos de colonalismo e dizimação nem a baixos custos nem da noite
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para o dia. Nestes termos, ao invés de pobres excluídos – ainda que vivam em condições
materiais que eles desejam ver melhorar – os povos indígenas deveriam ser vistos como
dotados de uma riqueza própria, de uma capacidade especial de se manter diferentes e
conservarem seus valores sob tanta pressão colonialista e tanta violência, cujas histórias
interconectadas às do Brasil, devem ser conhecidas e divulgadas por entre todos os
brasileiros15.
É preciso ter muito claro que os acadêmicos indígenas são jovens que podem ser
fenotipicamente muito parecidos com os habitantes regionais com que convivem. Chegam ao
ponto de, como dito antes, serem até mesmo invisíveis enquanto integrantes de coletividades
etnicamente diferenciadas para seus professores e para a estrutura universitária em que se
inserem. Mas o fato é que diferem dos outros estudantes regionais, pobres, negros, brancos, por
seus sistemas de valores e de pensamento, por seus conhecimentos, por sua visão de mundo em
última instância, fora de por suas redes de parentesco e relacionamento e, não esqueçamos,
saberem-se portadores de identidades diferenciadas hoje apoiadas em direitos coletivos. São,
também, portadores da consciência acerca do peso do sistema de preconceitos que incide sobre
eles indígenas – muito distinto do relativo aos afro-descendentes – ainda quando essas tramas
de estereótipos, verdadeiras narrativas historicamente construídas ao seu redor, transformando
a rica diversidade de seus modos de viver em um ente único e genérico, que todos nós
brasileiros, negros, brancos, filhos de imigrantes, supomos conhecer – “o índio”16.
Há aqui um ponto bastante delicado que as cotas trouxeram à consciência pública faz
pouco tempo, mas que os indígenas conhecem desde há muito: o da identificação de quem é ou
15 Para uma reconsideração das relações entre a história que se conta do Brasil e a presença indígena, veja Pacheco de Oliveira, João & Rocha Freire, Carlos Augusto da. A presença indígena na história do Brasil. Rio de Janeiro; Brasília: Trilhas de Conhecimentos/LACED; MEC/SECAD; UNESCO, 2006 (Coleção Educação para Todos – Série Vias dos Saberes). 16 Para saber mais acerca da complexidade da situação lingüística dos povos indígenas no Brasil, ver Maia, Marcus. 2006 – Manual de lingüística. Subsídios para a formação de professores indígenas na área da linguagem. Rio de Janeiro; Brasília: Trilhas de Conhecimentos/LACED; MEC/SECAD; UNESCO. (Coleção Educação para Todos – Série Vias dos Saberes).
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quem não é indígena, logo de quem tem ou quem não tem direitos diferenciados. Como dito
acima, o Estado brasileiro republicano, teve sempre historicamente, uma atitude etnocida frente
aos povos indígenas e aos demais grupos culturalmente diferenciados – imaginou os indígenas
como seres transitórios, que se transformariam em pequenos proprietários ou trabalhadores
rurais17. Assimilar, como resultado de integrar sempre foi o imperativo.
Juntando-se essas posturas com as imagens mentais que se tem no Brasil de quem é e
quem não é índio, e mais, com os interesses por expropriar os indígenas de suas terras e usar
seu trabalho a baixos custos, dá para entender não só o porquê, como dito, a ação do SPI no
Nordeste começou depois de em todo o país, mas porque nos anos 1980, sob a gestão na Funai
do coronel da reserva João Carlos Nobre da Veiga (1979-1981), o Coronel da Aeronáutica e
especialista em estratégia Ivan Zanoni Hausen propôs que fossem estabelecidos critérios de
indianidade que permitiriam determinar quem era e quem não era índio. A ampla reação contra
mais esse movimento de instrumentalizar a administração pública para excluir mais e mais
indígenas de seus direitos e eximir-se de suas obrigações conseguiu afastar o perigo imediato,
mas não resolveu o problema que as cotas de certa forma estão servindo para açular: iludimos
cotidianamente e estudamos pouco – embora as representações oficiais do país consagradas nos
livros didáticos, o que hoje ficou simploriamente reduzido a “bater” ou “salvar” a “ideologia da
democracia racial” – o fato de que não podemos desconhecer a realidade da mestiçagem
biológica que no caso indígena foi mesmo matéria de políticas da Coroa portuguesa, que
estimulou-a inclusive pecuniariamente.
Por muito tempo, e em muitas regiões do país, termos como caboclo, bugre e outros
ocultaram a presença indígena, e o movimento indígena, dos anos 1980 para diante, procurou
lutar para, assumindo o termo genérico índio como status jurídico e (re)afirmando auto-
17 Para intervenções sobre populações imigrantes, ver, por exemplo, Seyferth, Giralda. Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo. In: Pandolfi, Dulce, org. 1999 – Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Ed. Fundação Getulio Vargas, 1999. p.199-228.
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designações pouco referenciadas quer no cotidiano desses povos quer na literatura
antropológica. Em suma, seriam aqueles “índios que não são mais (os nossos) índios”.
Mas o termo caboclo, ao menos, também dá conta de outras realidades que hoje vêm
sendo recobertas por termos variados, como os de populações tradicionais, ribeirinhos (no caso
amazônico) etc. Essas coletividades, fenotipicamente e mesmo culturalmente, se distinguem
muito pouco das coletividades indígenas, mas não se percebem como tais nem outras
coletividades indígenas as vêm assim. Não são casos de “má-consciência”, nem de não terem
“assumido” sua indianidade. Há, portanto, que se ter cuidado, muito cuidado quanto a este
ponto: no cenário de grande pressão sobre terras em regiões de colonização antiga continua-se
hoje a negar o reconhecimento oficial da indianidade a diversas coletividades (também na
gestão atual da FUNAI, do antropólogo Mércio Pereira Gomes), sendo este um ponto sensível
na agenda do movimento indígena, do Ministério Público Federal e da Associação Brasileira de
Antropologia.
Afirmar ou não, e reconhecer ou não uma identidade diferenciada culturalmente
diferenciada se coloca diante de um cenário em que a administração pública continua a se
afirmar como “O Estado” brasileiro, arbitrariamente deliberando com enorme poder no
cotidiano quem tem acesso a que direito. No cenário do debate sobre cotas essa questão se
(re)coloca, e, lamentavelmente, os mais envolvidos no debate, militantes ou intelectuais, têm
demonstrado conhecer muito pouco da experiência dos indígenas e as políticas indigenistas
brasileiras, caindo muitas vezes em posições muito próximas aos interesses anti-indígenas
(esses regados ao ranço da retórica desenvolvimentista tão presente no cenário atual) ou numa
defesa de posições que passam pela falta de discussão sobre o tema. Afinal, no país da mistura
reconhecer a discriminação é sempre confuso, difícil e sutil. Mas o próprio movimento
indígena organizado tem pontos importantes de debate neste terreno, e têm sido questionadas as
interpretações simplórias da Convenção 169 da Organização Mundial do Trabalho (OIT), da
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qual só em 2003 o Brasil se tornou formalmente signatário, como, por exemplo, o uso
exclusivo da idéia de auto-identificação individual enquanto critério de acesso a direitos18.
Na prática das universidades com políticas de acesso diferenciado para indígenas, ou
que mantêm cursos de formação de professores indígenas, as soluções adotadas não parecem se
livrar do peso da administração tutelar na história da relação entre povos indígenas e o Estado
brasileiro: algumas universidades exigem para a inscrição dos indígenas em vestibulares a
“carteira da FUNAI” – um documento emitido pela Fundação para indivíduos indígenas, que
equivocadamente alguns pensam que tem o mesmo valor de uma cédula de registro geral, a
carteira de identidade - ou uma carta dela proveniente.19 Em alguns casos, pede-se também
uma carta da comunidade ou da liderança da comunidade onde se reconheça o portador como
um candidato da coletividade signatária. Este também é um ponto polêmico: para alguns alunos
indígenas (especialmente para aqueles cujas famílias acham-se afastadas das aldeias de origem
há mais tempo) a indicação vira matéria de “política” e não é “universal” ou dada a todos pelo
critério (alheio aos povos indígenas) do mérito escolar. Afinal, a importância do parentesco
18 A convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho diz, em seu artigo 1º.: [a] presente convenção aplica-se: (a) aos povos tribais em países independentes, cujas condições sociais, culturais e econômicas os distingam de outros setores da coletividade nacional, e que estejam regidos, total ou parcialmente, por seus próprios costumes ou tradições ou por legislação especial; (b) aos povos em países independentes, considerados indígenas pelo fato de descenderem de populações que habitavam o país ou uma região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas. Em artigo subseqüente dispõe que “[a] consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção. “A utilização do termo "povos" na presente Convenção não deverá ser interpretada no sentido de ter implicação alguma no que se refere aos direitos que possam ser conferidos a esse termo no direito internacional”. Para download no site da OIT ver: www.oitbrasil.org.br /info/downloadfile.php?fileId=131. Sobre a questão do reconhecimento étnico, ver Santos, Ana Flávia Moreira & Pacheco de Oliveira, João. Reconhecimento étnico em exame: dois estudos sobre os Caxixó. Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria, 2003. 19 Encontra-se, no site do projeto Trilhas de conhecimentos, um levantamento (ora sendo reatualizado) das ações afirmativas desenvolvidas em universidades públicas que pode ser consultado em: http://www.laced.mn.ufrj.br/trilhas/producoes/arquivos/Levantamento%20ações%20afirmativas%20índios%20universidades%20FINAL.pdf.
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entre os povos indígenas é amplamente reconhecida – e cá entre nós na sociedade brasileira
(mutatis mutandis), também. Para alguns intelectuais defensores das ações afirmativas a crítica
também segue nessa direção, supondo-se um pendor à universalidade da fruição dos direitos
que nossa sociedade mesma não tem e nunca teve senão no discurso e na lei escrita – e dela são
esses valores como mostra do “mundo ocidental”. Demonstra-se mais uma vez o
desconhecimento dos circuitos de poder próprios às coletividades indígenas, suas tradições e
usos, o desrespeito aos modos de ser diferenciados dos “nossos”, esquecendo-se o se percebe
pela ótica dos valores democráticos para uns pode ser a quebra dos esquemas de solidariedade e
reciprocidade para outros.
Algumas dessas universidades, por vias variadas (governo estadual, Funai, fundos
próprios) concedem bolsas aos alunos indígenas. No caso da Universidade Estadual do Mato
Grosso do Sul (UEMS), a IES que abriga o maior número de alunos indígenas cotistas, eles
ficam obrigados a trabalhar em atividades administrativas, funcionando como mão-de-obra
remunerada por “bolsas de trabalho”, tendo parte de seu tempo roubado da possibilidade de
superar dificuldades de adaptação. A administração superior da universidade não tem sido
sensível aos pedidos de docentes envolvidos com o acompanhamento dos alunos indígenas de
que estes tenham a carga horária das bolsas voltadas para a sua própria formação e para
trabalhos de ação afirmativa20.
Há, pois, todo um enorme conjunto de problemas e polêmicas a ser enfrentado quando
pensamos em políticas de acesso, permanência e sucesso no ensino superior para indígenas
partindo do princípio de são diversos os indígenas e suas situações no Brasil. Tampouco os
problemas da maioria dos indígenas quanto a essa questão são os mesmos que os de afro-
descendentes e estudantes de baixa renda.
20 A UEMS e a Universidade católica Dom Bosco (UCDB) formam um consórcio em um núcleo de ações afirmativas, intitulado Programa Rede de Saberes (ver em http://www.rededesaberes.org/) financiado através de recursos da Pathways to Higher Education Initiative/Fundação Ford, sob a supervisão do LACED/Museu Nacional dentro do projeto Trilhas de Conhecimentos.
Seminário Formação Jurídica e Povos Indígenas
Desafios para uma educação superior 21, 22 e 23.03.2007 Belém-Pará-Brasil
Educação superior para indígenas no Brasil – sobre cotas e algo mais Lima, 2007
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Certas soluções podem, contudo, ser muito semelhantes em aparência às ações
afirmativas decorrentes da implantação de cotas para afro-descendentes e/ou para egressos de
camadas de baixa renda. Assim, a necessidade de bolsas de manutenção que permitam aos
alunos dedicarem-se aos cursos, deslocarem-se e alimentarem-se, terem acesso ao material
necessário aos estudos; a de terem tutores acadêmicos especialmente qualificados é uma
necessidade (e uma demanda) mais geral, embora os tutores de certo precisem de informações e
treinamento muito diferente caso trabalhem com alunos afro-descendentes, indígenas ou de
baixa renda.
Mas vejamos um exemplo da diferença impactante entre as situações mencionadas - o
deslocamento de estudantes indígenas pode significar mudanças não só dentro de perímetros
urbanos ou de periferias para zonas centrais de cidades; podem significar, por exemplo, cruzar
distâncias de suas áreas até centros urbanos onde estão unidades universitárias equivalentes a
toda extensão do estado do Rio de Janeiro. A mudança pode significar ainda, que o aluno não
se deslocará sozinho, mas irá junto com sua família, pois mesmo sendo um jovem de idade
próxima à dos que entram para universidades em grandes centros, pode estar casado, dados os
costumes de seus povos.
A moradia nas cidades vem sendo, pois, por todo o Brasil indígena um problema crucial
quanto se toca no tema ensino superior. Nesses termos, mais que criar cotas é muito importante
que exista uma política de interiorização das universidades orientada para perceber e dialogar
com a realidade dos povos indígenas, que a partir dela surjam campi universitários dotados, por
exemplo, de alojamentos, bibliotecas, acesso à internet etc; e docentes equipados com
treinamento intelectual – e formação cultural – capazes de reverter os preconceitos que em
geral avultam em regiões interioranas.
É preciso que surjam, também, outros modelos de cursos específicos em outras áreas do
saber. A Universidade Católica Dom Bosco (UCDB) tem discutido, por exemplo, a criação de
um curso de agroecologia para alunos indígenas, a ser ministrado de maneira semelhante ao de
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formação de professores que está iniciando na Universidade Federal da Grande Dourados, uma
iniciativa que pode impulsionar uma reflexão muito própria e singular numa área de
importância estratégica no futuro da humanidade, e que para a qual sem dúvida os
conhecimentos tradicionais indígenas têm muito a aportar. Mas é importante destacar que uma
iniciativa dessa natureza, tem custos altos econômicos na mentalidade dos planejadores da
educação superior e que aí está um ponto que precisa ser superado e enfrentado.
Por outro lado, levar a sério a presença de alunos indígenas dentro das universidades
implicaria em criar interfaces para o diálogo, por exemplo, incorporando cursos sobre Direito
indígena nos curricula das universidades e ter profissionais capazes de ministrá-los.
Significaria oferecer cursos de línguas indígenas, mas ministrados por indígenas que não
necessariamente precisariam ser portadores de graus universitários, ou contar com xamãs
dentro de faculdades da área de saúde, reconhecendo a autoridade intelectual dos portadores de
conhecimentos tradicionais.21 Temos um longo caminho pela frente a percorrer, mas exemplos
de aproximações e possibilidades existem em outros países das Américas.
As cotas têm sido importantes, tanto quanto a demanda do movimento indígena por
espaços de formação. Mas não basta, no caso indígena, criar cotas e esperar que os estudantes
indígenas façam por si todo o trabalho que um sistema de ensino inteiro precisaria fazer, ou
jogá-los em escolas de péssima qualidade fabricantes de títulos, nem escolher 3 ou 4 indígenas
para serem objeto de um assistencialismo rançoso. Sem dúvida isso criará números mágicos em
nossas estatísticas educacionais e santificará ainda muito mais os paladinos das ações
afirmativas. Do contrário, passar no vestibular o que muitas vezes, e sem cotas, os indígenas
têm conseguido, de nada servirá. Paladinos ou detratores das cotas têm demonstrado pouco
perceber o que esse debate significa em termos das realidades indígenas: no plural mesmo –
21 Experiências pioneiras nessa interlocuação intercultural no Brasil têm sido feitas no Centro de Pesquisa Leônidas e Maria Deane/Fiocruz/AM, sob a liderança da Dra. Luiza Garnello, trabalhando junto com especialistas nativos do povo Baniwa.
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pois essa é uma das grandes questões! É isso que precisa mudar. Trata-se de reconhecer a
pluralidade dos povos indígenas e o que agregam à pluralidade da sociedade brasileira!