Download - Enseñanza de la historia en Brasil
ISSN: 2177-0786
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
ISSN: 2177-0786
UNIVERSIDADE DE PERNAMBUCO
REITOR: Carlos Fernando de Araújo Callado
VICE-REITOR: Rivaldo Mendes de Albuquerque
CAMPUS PETROLINA
Diretor: Moisés Diniz de Almeida
Vice-Diretora: Marta Solange Albuquerque Guimarães
COLEGIADO DE HISTÓRIA
Coordenadora: Profª Drª Janaína Guimarães da Fonseca e Silva
REVISTA HISTORIEN
Conselho Editorial
Colegiado de História – UPE – Campus Petrolina
Prof. Ms. Moisés Diniz de Almeida (Presidente do Conselho – Biênio 2013/2014)
Profª Drª Andréa Bandeira Silva de Farias
Profª Drª Janaína Guimarães da Fonseca e Silva
Prof. Ms. Harley Abrantes Moreira
Profª Ms. Tatiana Silva de Lima
Profª Ms. Ana Clara Farias Brito
Prof. Ms. Carlos Eduardo Romeiro Pinho
Prof. Ms. Reinaldo Carvalho Forte
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
Membros Externos
Profª Ms. Sheyla Farias Silva (UNILA)
Prof. Ms. Luiz Severino da Silva Junior (UNIVASF)
Prof. Ms. José Felipe Rangel Gallindo (SEE-PE)
Prof. Dr. Nilton de Almeida Araújo (UNIVASF)
Prof. Ms. Gian Carlo de Melo Silva (UFAL)
Prof. Ms. Lúcio De Franciscis dos Reis Piedade Filho (UEMG)
Prof. Dr. Maciel Henrique Carneiro da Silva (IFPE)
Profª Drª Maria Cecília Patrício (FADE)
Profª. Ms. Cristiane Batista da Silva Santos (UNEB)
Profª. Ms. Cristiane Soares de Santana (UFBA)
Profª Ms. Elainne Cristina da Silva Mesquita (UFBA)
Prof. Ms. Marcus Vinícius Santana Lima (USS)
Conselho Consultivo
Profª Drª Alcileide Cabral do Nascimento (UFRPE)
Profª Drª. Ana Carolina Eiras Coelho Soares (UFG)
Profª Drª Ana Maria Colling (UFGD)
Prof. Dr. Antonio Lindvaldo Sousa (UFS)
Profª Drª Elizete da Silva (UEFS)
Profª Drª Flávia de Sá Pedreira (UFRN)
Prof. Dr. Henrique Alonso de Albuquerque Rodrigues Pereira (UFRN)
Prof. Dr. José Nascimento de França (UFAL)
Profª Drª Lina Maria Brandão de Aras (UFBA)
Prof. Dr. Lyndon de Araújo Santos (UFMA)
Profª Drª Margarida Maria Dias de Oliveira (UFRN)
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
Profª Drª Maria do Socorro de Abreu e Lima (UFPE)
Profª Drª Nazira Correia Camely (UFF)
Prof. Dr. Ricardo Luiz Silveira da Costa (UFES)
Profª Drª. Teresa Maria Malatian (UNESP)
Secretaria Executiva
Equipe de Revisão e Editoração
Prof. Esp. Rafael de Oliveira Cruz
Prof. Christoval Araújo Santos Junior – Editoração
Prof. Esp. Cleber Roberto Silva de Carvalho – Editoração
Profª Juliana Rodrigues Alves – Revisão
Prof. Nivaldo Germano dos Santos – Revisão
Profª Esp. Alinne Suanne Araújo Silva Torres – Revisão
Maria do Socorro Fonseca de Oliveira (Graduação – UPE) – Revisão
Dielson da Silva Vieira (Graduação – UPE) – Revisão
Lucas Matheus Viana da Silva (Graduação – UPE) – Revisão
Paulo Henrique Carneiro Barbosa (Graduação – UPE) – Revisão
Janilly Santos de Carvalho (Graduação – UPE) – Revisão
OBJETIVO DA REVISTA
A Historien é um periódico científico-acadêmico mantido pelo Colegiado de
História da UPE – Campus Petrolina, disponível em versão eletrônica. A nossa
proposta é o incentivo à produção textual dos alunos do curso de História, visando
a expansão do conhecimento em história por meio da produção dos próprios
acadêmicos. Assim como, a difusão e divulgação dos resultados das atividades das
produções desenvolvidas na instituição ou em outras instituições parceiras.
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
HISTORIEN Revista Eletrônica Universitária
Petrolina – PE, ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013.
SUMÁRIO
EDITORIAL ............................................................................................................................11
DOSSIÊ:
O ensino de História na concepção de alunos jovens e adultos: uma análise
sobre objetivos e relações com a vida prática ..........................................................17
Wilian Junior Bonete (UEL)
O ensino de História à distância: dificuldades e potencialidades ......................37
Bárbara Figueiredo Souto/ Rafaella Araujo Duarte Mello Vieira (UFV)
Formar profissionais de História no século XXI: O que dizem as diretrizes
curriculares nacionais para formação de historiadores ......................................56
José Antonio Gabriel Neto (UFC)
Ensino de História e Educação Não-Formal: Conceitos e Encontros .................68
Juliana da Costa Ramos (UFRPE)
Ensino de História: Reflexões sobre o Estágio Supervisionado e a sua prática
...................................................................................................................................................86
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
Joedson da Silva Andrade/Regina Lúcia Meneses de Souza (Graduandos UPE)
Escola, Ensino e Tecnologia: a oficina pedagógica “Comunicação tem História:
muito além do bate-papo” ...............................................................................................98
Marcella Albaine Farias da Costa/ Maria Perpétua Baptista Domingues (UFRJ/UERJ)
Interações entre o ensino de História Regional e Local e a preservação do
patrimônio local ...............................................................................................................113
Moisés Amado Frutuoso (UFBA)
Museu Pedagógico de História e Ensino de História: a construção de um
museu em sala de aula ...................................................................................................130
Tatiana Polliana Pinto de Lima (UFRB)
O jornal como suporte documental e/ou recurso didático para aliar
transmissão e produção de conhecimento no ensino de História ..................143
Luciano Everton da Costa Teles (UEAM)
A manipulação de saberes na construção de uma História Local ...................158
Iranilson Pereira de Melo (UERN)
Fazendo História: A militância como traço identitário dos estudantes de
história ................................................................................................................................170
Jackeline Silva Lopes (UNEB)
O Ensino de História Antiga: a educação patrimonial através de oficinas
pedagógicas .......................................................................................................................185
Beatriz Moreira da Costa (Graduanda UFRJ)
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
Ensino de História: Justiça social em Roma ............................................................199
Filipe dos Santos Vieira/Alex Aparecido da Costa (UEM)
Conteúdos e abordagens do ensino de História Regional: um estudo de caso
dos livros “Viagem ao engenho de Santana” e “Memória viva dos Tupinambá
de Olivença” .......................................................................................................................214
Jaqueline dos Santos Souza (Graduanda UESC)
O ensino de História da África e da Cultura afro-brasileira: Desafios e
possibilidades ...................................................................................................................232
Franciel Coelho Luz de Amorim (Graduando UPE)
Às margens do esquecimento: retratação dos africanos nos livros didáticos
de História ..........................................................................................................................241
Geferson Santana (Graduando UFRB)
Equívocos da visão eurocentrista em livros didáticos brasileiros sobre a
África e os africanos ........................................................................................................256
Rubens Nunes Moraes (Graduando UPE)
ARTIGOS LIVRES:
Cultura, representação e literatura na pesquisa histórica.................................270
Melissa Rosa Teixeira Mendes (UFMA)
O sertão real e imaginário nas construções historiográficas regionalistas .283
Weverson Cardoso de Jesus (Graduando UFT)
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
Combater vícios, ensinar virtudes: o ideal católico tridentino em Sermões de
auto-de-fé da Inquisição Portuguesa (1563-1618) ..............................................296
Luís Fernando Costa Cavalheiro (UFPR)
Representações historiográficas: Cristãos novos e Inquisição na América
Portuguesa .........................................................................................................................310
Juarlyson Jhones Santos de Souza (UFRPE)
O poder tem cor: a implementação da produção da cochonilha no Império
Português Setecentista ..................................................................................................329
Pamela Sue Zaroski (UFPR)
Mercadores da Inquisição. Notas sobre estratégias de ascensão social.
(Alagoas Colonial, c. 1674 – c. 1820) .........................................................................346
Alex Rolim Machado (UFAL)
Limites do federalismo e da Constituição: A ação oficial de Abraham Lincoln
sobre a integração de tropas negras na Guerra Civil Americana (1861-1865)
.................................................................................................................................................367
Lara Taline dos Santos (UFPR)
A Feminização do Magistério em Pernambuco (1872-1890): Crise Econômica,
o fim do Império e o Ensino Público ..........................................................................381
Flávia Bruna Ribeiro da Silva Braga (Graduanda UFPE)
A relação entre a imprensa soteropolitana com o golpe de 1889: Uma análise
dos discursos jornalísticos sobre a Proclamação da República ......................402
Matheus Berlink Fonseca (Graduando UNIJORGE)
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
As ações do governo pernambucano voltadas para a qualificação de
trabalhadores na cidade do Recife, entre os anos de 1889 e 1930 .................416
Estevam Henrique dos Santos Machado (Graduando UFPE)
Breve incursão teórico-jurídica sobre o crime passional na Primeira
República (1890-1940) .................................................................................................431
Antonio Carlos Lima da Conceição/Lina Maria Brandão de Aras (UFBA)
Discursos normatizadores do jornal Cruzeiro na formação da família ideal
.................................................................................................................................................448
Jakson dos Santos Ribeiro (UFMA)
Menores e criminalidade na década de 1940 e 50 no Rio de Janeiro: As
medidas e interesses governamentais na assistência aos desfavorecidos ..459
Raphael Nemésio Costa dos Santos/ Marco Antonio Correia de Carvalho (Graduandos
UFRRJ)
O Rambo soviético: a desmonumentalização do herói americano e a
monumentalização do herói soviético através do cinema ................................470
Moisés Wagner Franciscon (UEM)
Reação em cadeia: o descobrimento da fissão nuclear e a criação de
armamentos atômicos ....................................................................................................490
Suâmi Abdalla-Santos (UFBA)
O papel da Educação no contexto da Crise Estrutural do Capital ....................499
Débora dos Santos Silva (Graduanda UECE)
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
RESENHAS:
SALLES, Catherine. Nos submundos da antiguidade. 3.ed. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987 ................................................................................................................511
Francisco Fabrício Pereira da Silva (Graduando UECE)
SILVA, Eduardo; REIS, João J. . Negociação e Conflito: a Resistência Negra no
Brasil Escravista. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009 .............................524
Arthur Rodrigues Fabrício/Liliane Tereza Pessoa Cunha (Graduandos UFRN)
HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2011 ...............................................................................534
Luiz Henrique Bonifácio Cordeiro (UERJ)
CHEVITARESE, André Leonardo; FUNARI, Pedro Paulo A. Jesus Histórico. Uma
brevíssima introdução. Rio de Janeiro: Kliné, 2012 ....................................................543
Juliana B. Cavalcanti (Graduanda UFRJ)
ENTREVISTA:
Conversando sobre Ensino de História – Entrevista com Carlos Augusto Lima
Ferreira ...............................................................................................................................550
Rafael de Oliveira Cruz (UFBA)
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
Caros leitores,
Desde a Semana de História promovida em maio de 2013 pelo Colegiado de
História da UPE – Campus Petrolina com o tema “Ensino de História: desafios e
possibilidades”, pensamos em ampliar o debate para uma nova edição da Historien.
E o resultado se faz presente na nona edição.
Quatro anos após o lançamento da primeira edição de nossa revista, e
profundamente mais amadurecidos, a Historien se reinventa, mas sem deixar de
lado a ideia primordial de nela fazer um amplo espaço de divulgação da produção
científica dos alunos das graduações em História, e mais que isso, proporcionar um
amplo debate entre pesquisadores de diversas instituições espalhadas pelo país.
Nesse processo de evolução, nada melhor que debater mais sobre o
processo de formação e as diversas possibilidades na construção e transmissão do
conhecimento histórico, por isso o tema “Ensino de História: trajetórias, desafios e
possibilidades”. O nosso Dossiê inicia com O ensino de História na concepção de
alunos jovens e adultos: uma análise sobre objetivos e relações com a vida prática, de
Wilian Junior Bonete em que discute as concepções sobre o ensino de História,
seus objetivos e relações com a vida prática, a partir das narrativas de um grupo de
alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) da cidade de Guarapuava, situada no
estado do Paraná. Logo em seguida, Bárbara Figueiredo Souto e Rafaella Araújo
Duarte Mello Vieira em O ensino de História à distância: dificuldades e
potencialidades analisam os problemas e possibilidades do ensino à distância,
focando na experiência concreta do curso de Licenciatura em História –
modalidade à distância – da Universidade Federal de Viçosa.
Depois, em Formar profissionais de História no século XXI: O que dizem as
diretrizes curriculares nacionais para formação de historiadores, José Antonio
Gabriel Neto faz uma discussão sobre o conteúdo das Diretrizes Curriculares
Nacionais para cursos de História e quais são os novos parâmetros que devem
orientar as construções curriculares nesse início de século XXI. Juliana da Costa
Ramos em Ensino de História e Educação Não-Formal: Conceitos e Encontros se
propõe a discutir os conceitos relacionados à distinção realizada entre o saber
histórico escolar e o conhecimento histórico de modo a perceber como esses
termos são relevantes à prática pedagógica do ensino de história. Em seguida,
Joedson da Silva Andrade e Regina Lúcia Meneses de Souza com Ensino de História:
Reflexões sobre o Estágio Supervisionado e a sua prática discutem como a disciplina
Estágio Supervisionado é uma ferramenta eficaz na superação de modelos
engessados de ensino.
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
Marcella Albaine Farias da Costa e Maria Perpétua Baptista Domingues no
texto Escola, Ensino e Tecnologia: a oficina pedagógica “Comunicação tem História:
muito além do bate-papo” discutem a interface entre a escola, o ensino de História
na educação básica e as novas tecnologias da informação e da comunicação, tendo
como pano de fundo as demandas contemporâneas de um mundo marcado pelo
avanço tecnológico. Já em Interações entre o ensino de História Regional e Local e a
preservação do patrimônio local, Moisés Amado Frutuoso discute como o ensino da
história regional e local pode contribuir no ambiente escolar para a preservação do
patrimônio cultural, a partir da construção da memória social e da elaboração das
identidades coletivas. Logo após, Tatiana Polliana Pinto de Lima com o texto Museu
Pedagógico de História e Ensino de História: a construção de um museu em sala de
aula faz um relato e uma reflexão sobre uma experiência desenvolvida com alunos
da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia: a construção do museu
pedagógico de história, as transformações e permanências na cidade de Amargosa
na Bahia ao longo do século XX e início do século XXI.
No texto O jornal como suporte documental e/ou recurso didático para aliar
transmissão e produção de conhecimento no ensino de História, Luciano Everton da
Costa Teles analisa como os jornais podem ser utilizados no processo de
ensino/aprendizagem como suporte documental e/ou recurso didático para
promoção de um ensino de história inovador. Posteriormente, Iranilson Pereira de
Melo em A manipulação de saberes na construção de uma História Local discute as
abordagens e construção de uma historiografia “oficial” em uma cidade do Rio
Grande do Norte. Em Fazendo História: A militância como traço identitário dos
estudantes de história, Jackeline Silva Lopes analisa a militância como traço
identitário dos estudantes da primeira turma de Licenciados em História da
Universidade Estadual de Feira de Santana.
Beatriz Moreira da Costa nos traz o trabalho O Ensino de História Antiga: a
educação patrimonial através de oficinas pedagógicas explora os campos da
educação patrimonial e oferecer métodos de ensino de História Antiga a partir da
oficina pedagógica “Cozinhando para o deus Osíris”. Ainda debatendo sobre ensino
de História Antiga, Filipe dos Santos Vieira e Alex Aparecido da Costa apresentam
uma proposta de aula para alunos do Ensino Médio acerca da situação social em
Roma na segunda metade do século II a. C., no texto Ensino de História: Justiça
social em Roma.
Jaqueline dos Santos Souza no artigo Conteúdos e abordagens do ensino de
História Regional: um estudo de caso dos livros “Viagem ao engenho de Santana” e
“Memória viva dos Tupinambá de Olivença” discute as transformações ocorridas nas
reformulações do conceito de região e a importância de se refletir sobre a história
regional e local nos currículos escolares e nos materiais didáticos. Em seguida,
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
Franciel Coelho Luz de Amorim em O ensino de História da África e da Cultura afro-
brasileira: Desafios e possibilidades debate questões sobre o ensino de História da
África e da cultura afro-brasileira, passando por uma discussão nos problemas do
nosso ensino, sobre a importância e ao mesmo tempo as dificuldades de inclusão
da temática Africanidades em sala de aula.
Ainda na trilha sobre ensino de História da África, o trabalho Às margens do
esquecimento: retratação dos africanos nos livros didáticos de História de Geferson
Santana reflete sobre os silêncios nos livros didáticos de História do terceiro ano
do Ensino Médio referente à participação dos africanos na Segunda Guerra
Mundial, em especial os africanos do chifre da África e da África setentrional.
Encerramos o nosso Dossiê com o texto de Rubens Nunes Moraes intitulado
Equívocos da visão eurocentrista em livros didáticos brasileiros sobre a África e os
africanos em que aborda como se apresenta a história da África e dos africanos em
alguns livros didáticos de Ensino Médio de História, utilizados em escolas públicas
e privadas do Brasil.
A seção de Artigos livres inicia com o texto de Melissa Rosa Teixeira Mendes
intitulado Cultura, representação e literatura na pesquisa histórica em que a autora
busca um possível entendimento de como a narrativa histórica, a Historiografia,
apresenta-se na atualidade. Em seguida, o texto O sertão real e imaginário nas
construções historiográficas regionalistas de Weverson Cardoso de Jesus, relaciona
aspectos presentes na escrita das questões regionais, a fim de compreendermos
como a imagem de sertão foi construída e tornada uma abstração. Em seguida, Luís
Fernando Costa Cavalheiro em Combater vícios, ensinar virtudes: o ideal católico
tridentino em Sermões de auto-de-fé da Inquisição Portuguesa (1563-1618) analisa a
recomendação tridentina era pregada em Portugal, no início do século XVII, a
partir dos sermões de um padre jesuíta.
Ainda sobre a Inquisição Portuguesa, Juarlyson Jhones Santos de Souza com
o texto Representações historiográficas: Cristãos novos e Inquisição na América
Portuguesa, discute mutabilidade do conhecimento histórico operado a cada
geração de historiadores sobre a presença dos cristãos novos e da Inquisição na
América Portuguesa. Já no trabalho de Pamela Sue Zaroski, O poder tem cor: a
implementação da produção da cochonilha no Império Português Setecentista,
vemos como se deu a implementação da cochonilha no Império Português. Ainda
sobre a América Portuguesa, Alex Rolim Machado em Mercadores da Inquisição.
Notas sobre estratégias de ascensão social. (Alagoas Colonial, c. 1674 – c. 1820), faz
uma análise sobre as elites da região que hoje compreende o estado de Alagoas,
tentando observar os diferentes mecanismos de poder utilizados pela sociedade
para ascender socialmente dentro do quadro agrário, escravista e periférico da
Capitania de Pernambuco.
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
Adentrando na América oitocentista, o texto Limites do federalismo e da
Constituição: A ação oficial de Abraham Lincoln sobre a integração de tropas negras
na Guerra Civil Americana (1861-1865) de Lara Taline dos Santos estabelece alguns
apontamentos acerca da atuação da administração Lincoln com relação à
integração de tropas compostas por negros no exército americano, bem como
identificar nos atos a base de uma política de emancipação gradual e compensada
dos escravos. Saindo dos Estados Unidos para o Brasil, o texto de Flávia Bruna
Ribeiro da Silva Braga, intitulado A Feminização do Magistério em Pernambuco
(1872-1890): Crise Econômica, o fim do Império e o Ensino Público traz novas
perspectivas à feminização do magistério em Pernambuco, conseqüência do
período econômico do final do Império e o crescimento das escolas mistas em
finais do século XIX.
Matheus Berlink Fonseca em A relação entre a imprensa soteropolitana com
o golpe de 1889: Uma análise dos discursos jornalísticos sobre a Proclamação da
República analisa os discursos jornalísticos utilizados pelos jornais que circulavam
da cidade de Salvador durante a primeira quinzena após a Proclamação da
República no Brasil. Já no texto As ações do governo pernambucano voltadas para a
qualificação de trabalhadores na cidade do Recife, entre os anos de 1889 e 1930, de
Estevam Henrique dos Santos Machado, tem como objeto a educação para o
trabalho no período conhecido como Primeira República. Em seguida, Antonio
Carlos Lima da Conceição e Lina Maria Brandão de Aras em Breve incursão teórico-
jurídica sobre o crime passional na Primeira República (1890-1940) buscam
examinar as concepções jurídicas sobre os crimes passionais ocorridos entre
casais com vínculos amorosos e/ou sexuais em Salvador no início da República.
Em seguida, Jakson dos Santos Ribeiro com Discursos normatizadores do
jornal Cruzeiro na formação da família ideal nos apresenta discussão acerca da
representação da família sobre a ótica do periódico religioso Jornal Cruzeiro entre
as décadas de 1940 a 1950 em uma cidade do interior do Maranhão. Ainda
tratando do mesmo período temporal, o texto Menores e criminalidade na década
de 1940 e 50 no Rio de Janeiro: As medidas e interesses governamentais na
assistência aos desfavorecidos, Raphael Nemésio Costa dos Santos e Marco Antonio
Correia de Carvalho analisam as medidas desencadeadas que intentavam
acrescentar às políticas reguladoras do Estado a assistência aos menores
infratores.
O texto O Rambo soviético: a desmonumentalização do herói americano e a
monumentalização do herói soviético através do cinema de Moisés Wagner
Franciscon faz uma análise das representações no cinema soviético dentro do
contexto da Guerra Fria. Em seguida, Suâmi Abdalla-Santos aborda o contexto
científico e tecnológico em meados do século XX, com foco nas pesquisas que
15
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
resultaram na criação das primeiras bombas atômicas no texto Reação em cadeia: o
descobrimento da fissão nuclear e a criação de armamentos atômicos. E encerramos
a seção de Artigos com Débora dos Santos Silva em O papel da Educação no
contexto da Crise Estrutural do Capital buscando compreender o verdadeiro papel
da educação dentro de nossa realidade.
Nossa edição consta com quatro trabalhos para a seção de Resenhas:
Francisco Fabrício Pereira da Silva nos trouxe a resenha de Nos submundos da
antiguidade de Catherine Salles. A resenha de Negociação e conflito, de João José
Reis e Eduardo Silva, foi realizada por Arthur Rodrigues Fabrício e Liliane Tereza
Pessoa Cunha. O trabalho de François Hartog, Evidência da História, foi resenhado
por Luiz Henrique Bonifácio Cordeiro. E por fim, Juliana B. Cavalcanti nos brinda
com a resenha do livro Jesus Histórico, de André Leonardo Chevitarese e Pedro
Paulo Funari.
A nona edição encerra com uma entrevista gentilmente concedida pelo Prof.
Dr. Carlos Augusto Ferreira Lima, da Universidade Estadual de Feira de Santana.
Esperamos imensamente que essa edição proporcione uma gama variada de
interesses e debates, e que outros pesquisadores venham a colaborar com o
crescimento da Revista Historien.
Boa leitura!
16
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
DOSSIÊ
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013:17-36.
O ENSINO DE HISTÓRIA NA CONCEPÇÃO DE ALUNOS JOVENS E ADULTOS: UMA
ANÁLISE SOBRE OBJETIVOS E RELAÇÕES COM A VIDA PRÁTICA1
Wilian Junior Bonete2
Resumo: Com base nos pressupostos teórico-metodológicos do campo da Didática da História e Educação Histórica, sobretudo no conceito de consciência histórica tal como JörnRüsen e Agnes Heller propõem, este artigo analisa as concepções sobre o ensino de História, seus objetivos e relações com a vida prática, a partir das narrativas de um grupo de alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) da cidade de Guarapuava, PR. Com a pesquisa aqui relatada sugere-se uma alternativa de trabalho para o ensino de História que aponta a necessidade do conhecimento sistemático das ideias, dos conceitos e dos saberes históricos dos alunos por parte dos professores. Palavras-chave: Ensino de História; Didática da História; Educação histórica; Consciência Histórica.
Abstract: Based on the theoretical and methodological assumptions of the field of Didactics of History and History Education, especially in the concept of historical consciousness as JörnRüsen and Agnes Heller propose, this paper analyzes the conceptions about History teaching, your goals and relationships with life practice, through the narratives of a group of students Youth and Adults of Guarapuava, PR. With this research, we indicate an alternative job for History teaching which indicates the need of systematic knowledge of ideas, concepts and historical knowledge of students by teachers.
Keywords: History teaching; Didatics of history; History Education; Historical
consciousness.
1 Recebido em 12/10/2013. Aprovado em 16/11/2013.
2Graduado em História (UNICENTRO). Mestre em História Social (UEL). Professor de História da
Rede Particular de Ensino na cidade de Guarapuava, PR., Professor/Tutor dos cursos de História da
Universidade do Norte do Paraná (UNOPAR – pólo de Guarapuava). E-mail: [email protected]
O ensino de história na concepção...
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 17-36.
Introdução
Os sistemas de ensino enfrentam atualmente novas demandas formativas.
Para Flávia Caimi (2009), a sociedade, com o seu ritmo acelerado de mudança,
requer conhecimentos e habilidades em diferentes domínios, o que por sua vez,
exige dos professores e alunos uma capacidade de integração e relativização do
conhecimento que vai além da assimilação mecânica de informações.
Desse modo, ocorre uma evolução naquilo que o aluno deve aprender e
pela forma como deve aprender. Flávia Caimi afirma ser isso algo extremamente
necessário, porém, de uma maneira diferente das formas tradicionais de
aprendizagem reprodutiva ou memorística. No plano das discussões sobre o
ensino de História essas preocupações estão cada vez mais presentes e partem de
uma importante definição acerca dos objetivos de ensinar e aprender História na
educação básica. (CAIMI, 2009, p.66).
Ao longo das últimas três décadas o ensino de História tem se estabelecido
como um fértil campo de pesquisa que contempla investigações sob diferentes
ângulos teórico-metodológicos. Construindo-se numa zona fronteiriça entre
História e Educação, tem desenvolvido reflexões direcionadas a diversos temas
como, por exemplo, formação de professores, práticas de ensino, currículos,
aprendizagem, construção do saber histórico escolar, linguagens, cultura, tempo e
livro didático. Pela identidade e diferença com a ciência histórica (MESQUITA,
2011, p.4), os pesquisadores dessa área tem buscado novas perspectivas de
interpretação e produção de saberes.
Ernesta Zamboni (2005, p.37) ao fazer um balanço bibliográfico sobre as
temáticas que surgiram nos encontros e seminários especializados dos grupos de
trabalhos (GTS) nacionais e internacionais, destaca, além do crescimento
quantitativo e qualitativo da produção científica sobre o ensino de História, a
multiplicidade de conhecimentos que envolvem essa produção. Segundo a autora,
entrecruzam-se nessa produção diferentes saberes e áreas do conhecimento como
História, Educação, Antropologia, Comunicação, Geografia, dentre outras.
Wilian Junior Bonete
19 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 17-36.
Ao rever o panorama apresentado por Ernesta Zamboni é possível
reconhecer a existência de diferentes comunidades de pesquisadores que tomam
como objeto de suas análises o ensino e aprendizagem da História. As diversas
vertentes investigativas partem do princípio da necessidade de constituir
parâmetros claros que respondam a pragmática pergunta rotineira que se
apresenta no cotidiano intra e extraescolar: afinal, para que seve a História?
Conforme Ronaldo Cardoso Alves (2011, p.21) essa pergunta revela a necessidade
de se transformar a realidade instrumental ideológica da História em um
instrumento que permita as pessoas a construírem suas identidades e se
colocarem de forma autônoma diante dos problemas de orientação temporal na
sociedade.
Nesse contexto, os estudos sobre ensino de História,principalmente aqueles
ligados diretamente as áreas da Didática da História e Educação Histórica,
apontam que uma intervenção transformadora da qualidade da aprendizagem
histórica demanda um conhecimento sistemático das ideias e dos saberes
históricos dos alunos por parte dos professores. (SCHMIDT; BARCA, 2009). Os
alunos que chegam até a escola, independente da idade, possuem uma bagagem
cultural, uma visão de mundo, um conjunto de ideias, opiniões, concepções, valores
e experiências de vida que não devem ser desconsideradas, tampouco devem ser
vistas como obstáculos no processo da aprendizagem. Assim, conhecer as ideias
históricas dos alunos, bem como a forma pela qual elaboram o pensamento
histórico acerca de si mesmos e do mundo que os cerca, é um passo fundamental
para a construção de um ensino de História com sentido para a vida.
Compartilhando desse entendimento, o presente artigo se propõe a analisar
as concepçõesacerca do ensino de História e seus objetivos, na visão de um grupo
de 66 alunos jovens e adultos de uma escola pública na cidade de Guarapuava,
Paraná.Em outros termos, busca-se identificar e refletir sobre quais sentidos são
atribuídos por esses alunos a História e se os mesmos conseguem estabelecer uma
relação prática do conhecimento histórico com suas vidas.3
3 O texto se origina de nossa dissertação de mestrado intitulada Ensino de História, consciência
histórica e a Educação de Jovens e Adultos defendida em 2013 junto ao Programa de Pós-Graduação
O ensino de história na concepção...
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 17-36.
Visando melhor exposição do tema, esse texto divide-se em duas partes. A
primeira parte apresenta uma breve caracterização sobre os fundamentos teórico-
metodológicos do campo da Didática da História e Educação Histórica que
permitiram a análise das questões aqui presentes. A segunda parte contempla a
análise sobre as concepções dos alunos jovens e adultos sobre o ensino de História,
seus objetivos e relações com a vida em sociedade.
Didática da História e Educação Histórica: breve caracterização
A Didática da História – Geschichtsdidaktik – é um campo de estudos que
surgiu na Alemanha e tem influenciado diretamente as pesquisas brasileiras sobre
o ensino de História. Ao contrário de ser entendida como uma “mera facilitadora
da aprendizagem” ou como um “conjunto de técnicas pedagógicas”, a Didática da
História é uma disciplina científica que se preocupa com a formação histórica dos
indivíduos. Embora possua fortes relações com a História escolar, não investiga
apenas as situações de ensino e aprendizagem da História dentro da sala de aula,
mas todas as expressões da cultura e da consciência histórica dentro e fora da sala
de aula. (CARDOSO, 2008, p.165).
De acordo com Jörn Rüsen (2012), a Didática da História considera a
subjetividade dos alunos, os processos de recepção da História e os interesses
desses alunos como tema essencial de suas reflexões didáticas. Entretanto, o seu
objeto principal de análise é a consciência histórica (em todas as suas formas e
funções) e o seu papel na vida prática humana. Nas palavras do autor:
Com esta expansão da área de competência do ensino de História, para a análise global de todas as formas e funções da consciência histórica, a didática da história desenvolveu um auto-entendimento com o qual ela se apresenta como relativamente autônoma, como uma sub-disciplina da ciência da história, com a sua própria área de pesquisa e ensino, com seus próprios métodos e com a sua própria função. Isso ocorre devido a função de orientação que o conhecimento histórico tem na vida prática
em História Social da Universidade Estadual de Londrina – UEL. A pesquisa contou integralmente
com financiamento da CAPES.
Wilian Junior Bonete
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humana e a didática da história pode contribuir com suas pesquisas para controlar esta função. Esta afirmação é inquestionável quando se trata da função prática que o conhecimento histórico desempenha na educação e formação, especialmente no ensino de história. (RÜSEN, 2012, p.70).
Jörn Rüsen define a consciência histórica como sendo um conjunto de
operações mentais pelas quais os homens orientam e interpretam sua experiência
no tempo e no espaço, nas diversas circunstâncias da vida prática. (RÜSEN, 2001,
p.57). De maneira convergente, Agnes Heller (1993, p15), autora também de
referência no campo da Didática da História, entende que a consciência histórica é
uma forma pela qual os homens buscam respostas as diversas situações que o
tempo e a experiência do cotidiano lhes impõem.
Na concepção dos autores a consciência histórica não é única, mas múltipla.
A forma como o indivíduo interpreta e lida com sua experiência no tempo, ao passo
que é levado a tomar atitudes ou decisões, é passível de mudança conforme as
condições do contexto social e sua realidade. Nesse sentido, Jörn Rüsen (2010)
aponta quatro “dimensões da consciência histórica”, ou “formas de geração de
sentido histórico” que podem ser manifestadas no ser humano: tradicional,
exemplar, crítica e genética. Agnes Heller (1993), por sua vez, propõe um quadro
teórico denominado de “estágios da consciência histórica”4 que mostra o
desenvolvimento da consciência histórica desde os primórdios da humanidade até
a atualidade. Entretanto, esses estágios não correspondem a níveis ou etapas, mas
sim, diferentes modos pelo qual o homem buscou encontrar respostas as suas
necessidades (ou carências) de orientação no tempo e no espaço, nas diferentes
sociedades.
As perspectivas de Jörn Rüsen e Agnes Heller são privilegiadas no que tange
ao ensino de História porque ambos mostram que a consciência histórica é 4 Heller elabora um exercício especulativo com base na história dos povos que nos antecederam
procurando sistematizar o quanto sua consciência se difere dos modelos preponderantes na
atualidade. A autora chama de “estágios da consciência histórica” essas diferenças nas formas de
responder a questão “de onde viemos, quem somos e para onde vamos”. Esses estágios são
pensados em termos de generalidade (referência a parte dos humanos) e universalidade
(referência a todos os seres humanos). Em suma, a autora divide as diferentes condições e
características da consciência histórica no tempo em estágios. (CERRI, 2011, p.85-86). Para uma
análise mais detalhada ver: Silva (2007); Cerri (2011) e Bonete (2013).
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necessariamente um fator humano, que emerge do cotidiano. Isso abre espaço para
o entendimento de que os alunos são dotados de uma consciência histórica, visto
que todos são levados a lidar com diversas situações diárias que exigem reflexão e
interpretação da realidade e do mundo contemporâneo. Parte-se do pressuposto
de que a História e o conhecimento histórico, como elementos da consciência
histórica, exercem um papel decisivo na vida dos alunos.
Todavia, é útil ressaltar que “consciência histórica” é um conceito que não
tem relação apenas com o ensino de História, mas cobre todas as formas do
pensamento histórico. É através dela que se experiencia o passado e o interpreta
como História. Sua análise cobre os estudos históricos, bem como o uso e a função
da História na vida pública e privada. (RÜSEN, 2006, p.14).
Jörn Rüsen (2012) explicita que a consciência histórica não foi
aleatoriamente escolhida como categoria central na Didática da História. Pelo
contrário, sua orientação disciplinar como objeto para esta área é muito
consistente diante da questão de como a História é ensinada e aprendida. Nesse
caso, leva em consideração que a consciência histórica é direcionada a organização
dos fatores do ensino e aprendizagem e divide-se em dois aspectos:
(...) em primeiro lugar trata-se de trazer o lado subjetivo que todos os professores e alunos de história têm, a tal ponto que ele não possa apenas ser transportado ou transmitido, mas referem-se sempre, e ao mesmo tempo, a processos determinados de individualização e socialização, nos quais a autocompreensão histórica do sujeito afetado forma sua identidade, por meio de experiências históricas seletivas, normativas e de uma apropriação significativa. Ao mesmo tempo, trata-se de deixar aparecer sobre a folha da vida prática humana, um principio organizador (principalmente do ponto de vista escolar), do ensino e a aprendizagem de história. Isso significa reconhecer sua constituição por meio da presença e orientação objetiva da memória histórica não-organizada, que desempenha um papel importante no equilíbrio mental e cultural de um indivíduo. (RÜSEN, 2012, p.71. Grifos nosso).
A Didática da História, por meio da consciência histórica, direciona seu foco
para o significado da História na sociedade, isto é, para a produção, circulação e
utilização social dos conhecimentos históricos. Segundo Klaus Bergmann (1990,
Wilian Junior Bonete
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p.30-33), esse campo se subdivide em três aspectos: empírico, reflexivo e
normativo:
O aspecto empírico é a investigação dos conteúdos históricos que são
transmitidos, sejam eles nas escolas, nas mídias ou em qualquer outro setor
da cultura dos grupos e sociedades. A preocupação maior é, no entanto, com
a História e a formação da consciência histórica em um determinado
contexto histórico-social.
O aspecto reflexivo expõe sistematicamente os processos de ensino e
aprendizagem, a formação dos indivíduos, dos grupos e sociedades a partir
da e pela História. Nessa direção, investiga e reflete acerca dos conteúdos
que poderiam ser transmitidos ou ensinados.
O aspecto normativo investiga sistematicamente todas as formas da
mediação intencional e representação da História, sobretudo do ensino de
História.Em outras palavras, propõe os conteúdos a serem ensinados, bem
como os métodos, às categorias e possibilidades da estruturação dos
conteúdos históricos tanto na escola, como fora dela. Nesse contexto, a
Didática da História estabelece uma interface com a Pedagogia, Psicologia e
as Ciências Sociais.
Mesmo possuindo fortes vínculos com a História escolar, é importante
considerar que a Didática da História não visa apenas compreender o contexto
escolar isolado (CARDOSO, 2008, p.158), uma vez que os processos de aprendizado
ocorrem em diversos e complexos contextos da vida cotidiana. (RÜSEN, 2007,
p.91). Esse campo investigativo busca a compreensão do papel da cultura e da
consciência histórica na sociedade.
Outra área de estudo que reflete sobre os fenômenos do ensino e
aprendizagem da História é a chamada Educação Histórica – History Education –
que atualmente, nas palavras de Ronaldo Cardoso Alves (2011, p.24), é
reconhecidamente campo do conhecimento no Reino Unido e tem se espalhado sob
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essa denominação em países como Portugal, Espanha, inclusive Brasil. Esse campo
investiga as ideias históricas dos sujeitos em contextos necessariamente de
escolarização e parte do pressuposto de que intervenções didáticas significativas
na aprendizagem histórica exigem o conhecimento das ideias históricas de alunos
e professores tendo como principal referência à epistemologia da História.
(GERMINARI, BARBOSA, 2012).
De acordo com Isabel Barca,
“[...] essa linha investigativa tem alimentado um conjunto de pesquisas em torno de concepções acerca de explicação, objectividade, evidência, significância, mudança, narrativa e, mais recentemente, consciência histórica, dentro do quadro epistemológico debatido por Jörn Rüsen.” (BARCA, 2007, p.27).
Partindo dos referenciais propostos por Jörn Rüsen, dentre outros autores,
os estudos da Educação Histórica têm contribuído para a superação da dicotomia
entre o “saber” e o “fazer”, isto é, entre teoria da História e práticas escolares, visto
que os problemas didáticos são questões circunstanciais na ciência da História. Em
outros termos, toma-se a vivência escolar como ponto de partida para a construção
do conhecimento histórico mediada por uma reflexão epistemológica construtora
de metodologias que dotem alunos e professores de habilidades e competências
históricas que os permitam ler e interpretar o mundo que vivem.
O Ensino e aprendizagem da História na visão de alunos jovens e adultos:
concepções e objetivos
As duas questões que serão analisadas na sequência, fazem parte do
instrumento de pesquisa foi utilizado em nossa dissertação de mestrado. A análise
pautou-se pelo referencial teórico proposto por Jörn Rüsen e Agnes Heller sobre a
consciência histórica que, como visto anteriormente, é central na Didática da
História e Educação Histórica, pois revela as ideias e os saberes históricos dos
alunos. Como metodologia de análise, fez-se uso da “Análise de Conteúdo”
proposta por Lawrence Bardin (1977) e Roque Moraes (2003) que procura,
Wilian Junior Bonete
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através da organização, categorização e interpretação, revelar às minúcias e os
sentidos manifestados, e/ou ocultos, nos diversos tipos de discursos, tanto em
fontes existentes como aquelas produzidas.
Assim, a questão 10 de nosso instrumento de pesquisa procurou identificar
a valorização dos objetivos do estudo da História pelos alunos jovens e adultos.
Para tanto, foi lhes apresentado o seguinte enunciado:
10. Em sua opinião, qual é o principal objetivo no estudo de se estudar História? Marque apenas uma alternativa.
a) Conhecer o passado. ( )
b) Compreender o presente. ( )
c) Buscar orientação para o futuro. ( )
d) As três alternativas. ( ).
Explique a resposta que você escolheu:
Entre essas alternativas, 65% dos alunos assinalaram a alternativa “(d) As
três alternativas” das quais se obteve o seguinte resultado geral:
Gráfico 1 - Opinião dos alunos jovens e adultossobre os objetivos de se estudar História
Para a reflexão sobre a escolha dessas alternativas, foi solicitado aos alunos
que a explicassem. Das explicações acerca da questão mais assinalada – “(d) As três
alternativas” – a análise apontou para a seguinte categorização5:
5 As porcentagens relativas a todas as categorizações apresentadas nos gráficos não se referem ao número de participantes da pesquisa, mas sim ao número argumentações.
Questão 10
a) 21% - Conhecer o passado
b) 8% - Compreender o presente
c) 6% - Buscar orientação para o futuro
d) 65% - As três alternativas
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Gráfico 2 - Categorização das respostas
Como pode ser observado, foram várias as temáticas argumentativas
levantadas. No entanto, a linha argumentativa predominante foi identificada na
categoria “Orientação para a Vida Prática” (43%). No Quadro 1 abaixo,
apresentam-se alguns fragmentos das argumentações dos alunos:
As três alternativas
(Questão 10, alternativa d )
43% - Orientação para a Vida Prática [subcategoria:
"Passado", "Presente", "Vida Prática" e "Futuro"]
19% - Passado como meio de orientação para o futuro
19% - As três dimensões temporais como explicação e
entendimento da vida humana
5% - Passado como entendimento do presente
5% - História como fonte de conhecimento
8% - Argumentações diversas
Wilian Junior Bonete
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Quadro 1 - Argumentações6 GM24 L1-4: “(...) temos de saber o que aconteceu no passado para que não cometamos os erros deles no presente e nem no futuro para que continue evoluindo nosso planeta.” GM 14 L1-3: “(...) história faz parte da nossa vida por isso nos precisamos saber como era a história no passado para compreender o presente e buscar orientação para o futuro.” GM12 L1-3: “conhecer a história esta ligado ao passado como podemos compreender o presente e também como buscar orientação para o futuro”. GM9 L1-3: “estudamos a história para estudar o que aconteceu no passado e tentar compreender o que esta acontecendo no presente e tentar entender como será no futuro.” GM7 L1-3: “(...) é importante saber o passado, é interessante para saber o que mudou até agora e para saber também o futuro o que vai faltar que é água.” GM1 L1-3: “porque você conhecendo a história você aprende o passado e compreende o presente e te auxilia no futuro”. GM2 L1-4: “no meio em que vivemos nos temos que estar atento em tudo o que se passa em nosso meio. A história quem faz somos nós mesmos, pois a cada dia a nossa vida se torna uma história diferente e diversificada.” MM2 L1-3: “porque nosso modo de viver depende muito de conhecer a nossa história, a vida dos nossos ancestrais.” MM3 L1-3: “é uma maneira de conhecermos o que aconteceu la atrás e através de certos acontecimentos compreender o presente e ter orientação para muitas coisas”. MM5 L1-3: “o que serei amanhã é resultado do que somos hoje e fomos ontem. Tudo está envolvendo o passado.” MM7 L1-2: “porque eu acho que a história é capaz de nos ensinar quase tudo na vida.” MM16 L1-3: “Uma coisa completa a outra, conhecendo o passado eu vou entender o presente e poderei me preparar para o futuro”. MM20 L1-3: “porque quando eu olhar para o passado, certamente terei alguma lição para o presente e terei escolhas para o futuro”. MM21 L1-3: “porque temos que conhecer a história do passado, para viver o presente e construir um futuro com menos erro”. PM5 L1-4: “(...) porque ficamos conhecendo o passado, sabendo o que levou a estarmos assim e tentar apontar os erros e termos um futuro mais livre da política suja”. PM 10 L1-2: “A história tem para mim como objetivo conhecer o passado, assim explica lá, entender como viviam, assim compreender o presente e nessa mistura nos orientar para o futuro”.
6 PM, GM e MM referem-se às nomenclaturas dadas aos alunos participantes da pesquisa no intuito
de preservar suas identidades. Convém destacar que foi privilegiada a escrita original dos alunos, o
que por sua vez justifica eventuais equívocos gramaticais.
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De acordo com a visão dos alunos, o objetivo maior do estudo da História
está diretamente relacionado com as três dimensões temporais: “passado”,
“presente” e “futuro”, e consubstancia-se como uma forma de “Orientação para a
Vida Prática”. Em outros termos, é possível inferir que os jovens e adultos
enxergam um sentido na História que lhes possibilita conhecer o passado e
articulá-lo a interpretação do presente e a expectativa de futuro.
Por outro lado, nesse mesmo quadro de argumentações, é possível
perceber que para alguns a História é considerada apenas como “passado”:
“(...) porque uma coisa completa a outra, conhecendo o passado eu vou entender o presente e poderei me preparar para o futuro” (MM16 L1-3). “A história tem para mim como objetivo conhecer o passado, assim explica lá, entender como viviam, assim compreender o presente e nessa mistura nos orientar para o futuro”. (PM 10 L1-2).
Embora o discurso dos alunos aponte que o objetivo do estudo da História
está relacionado às três dimensões temporais e exerce grande influência na vida
prática, a ênfase recai sobre o passado. A respeito disso, Jörn Rüsen advoga que:
“História” é exatamente o passado sobre o qual os homens têm de voltar o olhar, a fim de poderem ir à frente de seu agir, de poderem conquistar seu futuro. Ela precisa ser concebida como um conjunto, ordenado temporalmente, de ações humanas, no qual a experiência do tempo passado e a intenção com respeito ao tempo futuro são unificadas na orientação do tempo presente. (RÜSEN, 2001, p.74).
Note-se que para o autor, a História é fruto do agir humano (ou dos feitos)
no tempo, no espaço, na experiência de vida. São esses processos concretos que
fundamentam qualquer tipo de representação da História. Há então convergência
e relevância no pensamento histórico daqueles alunos que indicaram que: “(...) A
história quem faz somos nós mesmos” (GM2 L1-4); “a história é capaz de nos
ensinar quase tudo na vida” (MM7 L1-2); ou ainda a afirmação de que o “(...)
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conhecer a história esta ligado ao passado como podemos compreender o
presente e também como buscar orientação para o futuro” (GM12 L1-3).
Essa breve análise traz consigo algumas indagações: até que ponto o
conhecimento histórico se relaciona com a Vida Prática? Em outras palavras,
como os alunos estabelecem relações entre o conhecimento histórico e sua
experiência de vida? A História aprendida na escola é realmente importante para
sua formação? Como?
As indagações acima direcionam o foco para a questão 11 que objetivou
verificar se o pensamento dos alunos a respeito da História, expresso em suas
narrativas, manteria o mesmo sentido da questão anterior e se eles argumentariam
sobre a forma como se relacionam com conhecimento histórico. Para tanto, foi
proposta a seguinte pergunta:
11. Você acredita que o conhecimento sobre a História, adquirido na escola, é importante para a sua vida? Como?
Obteve-se então a seguinte categorização:
Gráfico3 - Categorização das respostas
(Questão 11)18% - Entendimento da atualidade/sociedade
8% - História como fonte de mudança
13% - Passado em comparação com o presente
8% - Para obtenção de conhecimentos
11% - Ampliação da visão crítica de mundo
13% - História inerente ao ser humano
11% - História como passado
5% - História e a busca pela Identidade
3% - História como exemplo
3% - Passado e sua influência no futuro
8% - Argumentações diversas
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Como pode ser observado, novamente houve uma variedade de temas nas
categorizações. Porém, é útil pontuar que todos os alunos (total de 38) que
responderam e argumentaram ao questionamento proposto buscaram apresentar
a relação de suas experiências com o conhecimento histórico, mantendo assim o
mesmo sentido com relação à questão anterior.
Na impossibilidade de analisar todas as respostas dos alunos, convém
destacar que 18% afirmaram que o conhecimento histórico adquirido na escola é
de grande importância, pois proporciona o entendimento da atualidade/sociedade;
13% afirmaram que estudar o passado permite o entendimento (e comparação) da
realidade presente; e para 11% dos alunos a História possibilita a ampliação da
visão crítica de mundo conforme pode ser visto no Quadro 2 abaixo:
Quadro 2 - Argumentações Entendimento da atualidade/sociedade
GM10 L1-2: sim, porque assim consigo entender melhor a sociedade de hoje. GM17 L1-2: para compreender as mudanças na atualidade comparando com o passado, exemplo: política, guerra, paz. GM23 L1: sim, para saber a respeito de como foi criado o país e seus princípios. GM18 L1-2: sim, pois aprendemos muitas coisas da sociedade atual e de antigamente. PM1 L1-2: Sim, pois tendo esse conhecimento podemos discutir e tentar melhorar o mundo de hoje. PM3 L1-2: importante para o conhecimento do passado e o que acontece no mundo inteiro. PM14 L1-3: Sim, sem a história muita coisa como a tecnologia não seria como ela é hoje (...) sem a história ninguém teria ou poucos teriam acesso.
Os alunos indicaram o conhecimento histórico e seu potencial crítico e
transformador como fonte que permite “compreender as mudanças da atualidade
comparando com o passado, por exemplo: política, guerra, paz” (GM17 L1-2).
Retomando Jörn Rüsen (2001, p.57), a consciência histórica pressupõe que o
homem, estando no mundo, deve agir de modo intencional e racional sobre ele, não
o tomando como dado puro. Dessa forma, para essa parcela dos alunos, a
mobilização do pensamento histórico, e, por sua vez, a consciência histórica, é uma
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forma de entender o mundo contemporâneo, refleti-lo em sua historicidade e
também “discuti-lo a fim de melhorá-lo” (PM1 L1-2).
Nessa linha de pensamento, os alunos avançam no posicionamento
rejeitando a ideia da História como algo sem sentido ou como mera disciplina
escolar, procurando relacionar a influência do conhecimento histórico com suas
experiências de vida na sociedade. Isso ficou ainda mais evidente conforme os
quadros 3 e 4:
Quadro 3 - Argumentações Passado em comparação com o presente MM3 L1-3: É importante saber o que aconteceu com quem viveu lá atrás, assim imaginamos hoje e podemos comparar como há diferenças hoje em dia. MM10 L1-2: muito importante conhecer a história do passado e comparar a história de hoje. MM11 L1-2: sim, pois aprendemos como era a vida antes e como está agora. GM22 L1-3: sim, porque você fica conhecendo o que aconteceu no passado que explica muita coisa que esta acontecendo no presente. MM20 L1-2: sim, pois conhecendo a história saberei como agir no presente, e ainda posso falar com as pessoas e trocar idéias.
Nesses fragmentos argumentativos a concepção de História enquanto fonte
de conhecimento do passado continua, mas agora com a indicação de que esse
conhecimento explica “(...) como era a vida antes e como está agora” (MM11 L1-2).
Ou seja, “(...) você fica conhecendo o que aconteceu no passado que explica muita
coisa que está acontecendo no presente” (GM22 L1-3).
Estudar História é, portanto, um paradoxo: ou viaja-se no tempo ou traz-se
o passado ao presente. Esses alunos entendem que é preciso estar conectado com o
mundo da informação, mas por outro lado, entendem que a História ocupa um
lugar privilegiado no que tange a compreensão do mundo, suas transformações e
contradições. Essa realidade traduz-se no quadro abaixo:
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Quadro 4 - Argumentações Ampliação da visão crítica de mundo GM7 L2-4: (...) aqui na escola é estudado apenas só uma parte da história e já dá diferença, porque ate na política ela estuda os presidentes. Seria bom estudar tudo. GM9 L1-2: Sim. Se tornando uma pessoa crítica socialmente, economicamente e politicamente. GM24 L1: sim, através dela entendemos a evolução do mundo. GM15 L1-4: Sim, na história você aprende não só sobre a história, mas de onde viemos, nossos antepassados, cultura, valores, democracia, história do país dos estados, política, uma abertura para uma visão mais diferente de ver a vida e aprender mais.
Os alunos apontaram essencialmente o conhecimento histórico como um
fator preponderante para a ampliação da visão crítica a respeito mundo, já que, por
esse conhecimento, entende-se “(...) de onde viemos, nossos antepassados, cultura,
valores, democracia, história do país, dos estados, da política, uma abertura para
uma visão mais diferente de ver a vida e aprender mais”. (GM15 L1-4).
Holien Gonçalves Bezerra (2009, p.42) lembra que o primeiro objetivo do
conhecimento histórico é a compreensão dos processos e dos sujeitos históricos, o
desvendamento das relações que se estabelecem entre os grupos humanos em
diferentes tempos e espaços. O conhecimento histórico é, portanto, um mecanismo
essencial para que o aluno possa apropriar-se de um olhar consciente para sua
própria sociedade e para si mesmo. O estudo da História em sala de aula leva ao
“(...) entendimento da evolução do mundo” (GM24, L1) e conduz a formação de
uma “(...) pessoa crítica socialmente, economicamente e politicamente” (GM9, L1-
2).
Nesse sentido, a História concebida enquanto um processo que amplia a
visão crítica de mundo e que objetiva aprimorar o exercício da problematização da
vida social como ponto de partida para a investigação produtiva e criativa, busca
identificar as diversas relações sociais que se estabelecem em distintos e variados
grupos humanos; procura perceber as diferenças e semelhanças, os conflitos e
contradições, as solidariedades, igualdades e desigualdades existentes nas
sociedades, comparando problemáticas atuais e de outros momentos; e por fim
posiciona-se de forma crítica no presente buscando relações possíveis com o
passado. (BEZERRA, 2009, p.44).
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Considerações finais
Ao longo desse texto procurou-se abordar uma concepção de consciência
histórica e ensino de História que uma vez articuladas entre si, podem fornecer
referenciais e possibilidades de orientação dos seres humanos no tempo, no
espaço, na sociedade em que vivem. Almejou-se também, por meio dessas
concepções, sugerir uma alternativa para o enfrentamento das dificuldades que
existem no campo do ensino e aprendizagem de História a partir do entendimento
das ideias e conceitos dos alunos sobre a História e sua função social.
Conforme Flávia Caimi (2009, p.79), é importante valorizar os
conhecimentos prévios dos alunos, nesse caso sobre a História, e a maneira como
mobilizam tais conhecimentos. Por meio dessas ideias, aliadas ao ensino enquanto
processo construtivo, os alunos podem apropriar-se do conhecimento e
desenvolver novas formas de pensar historicamente e atribuir sentido as suas
experiências no tempo e no contexto social em que vivem.
Em suma, conhecer o aluno com quem se trabalha, seja ele criança, jovem
ou adulto, é fundamental para que o trabalho docente obtenha sucesso. O
aprofundamento no tipo de pesquisa aqui relatada possui um grande potencial,
uma vez que produz informações privilegiadas, e muitas vezes essenciais, para o
aprimoramento das questões relativas ao ensino e aprendizagem da História.
Desenvolver um trabalho com base nas ideias, conceitos e saberes
históricos de alunos, remete a compreensão de que uma das funções do ensino de
História consiste justamente na possibilidade de alunos e professores intervirem
na realidade em que vivem a partir de diálogos estabelecidos entre o presente e o
passado. Torna-se, pois, necessário compreender a sala de aula como um espaço
propício para o compartilhamento de conhecimentos, ou nas palavras de Maria
Auxiliadora Schmidt (2002, p.57) como um espaço onde “uma relação de
interlocutores constroem sentidos”.
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O ENSINO DE HISTÓRIA À DISTÂNCIA: DIFICULDADES E POTENCIALIDADES1
Bárbara Figueiredo Souto2
Rafaella Araujo Duarte Mello Vieira3
Resumo: Este artigo pretende fornecer uma reflexão sobre os problemas e
possibilidades do ensino à distância, focando na experiência concreta do curso de
Licenciatura em História – modalidade à distância – da Universidade Federal de
Viçosa/MG. Nosso objetivo se concentra no esforço de, além de fornecer um
pequeno panorama sobre o ensino de História e o ensino à distância,
principalmente no Brasil, compartilhar nossa vivência a fim de tornar as
discussões sobre o tema, mais ricas e profícuas. O ensino à distância é uma
modalidade educacional que se encontra em franca expansão atualmente e sua
flexibilidade e grande alcance fazem com que se torne bastante interessante e
propício dentro do contexto físico, econômico e social do Brasil; no entanto, sua
aplicação ainda está cercada de desafios a serem solucionados. Contribuir para a
construção dessas soluções é o principal objetivo deste artigo.
Palavras-chave: Ensino de História – Distância – Lugar Social
Abstract: This article is intended to provide a reflection about the problems,
limitations and possibilities of distance learning, focusing on the concrete
experience of the Bachelor's Degree in History from the distance mode, Federal
University of Viçosa. Our objective is concentrated in effort, beyond provides a
small overview about the history teaching and distance learning especially in
Brazil, share our experiences in order to make the discussions on the topic richest
1 Recebido em 07/10/2013. Aprovado em 15/11/2013.
2 Mestre em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e atualmente atua como tutora do curso de licenciatura em História modalidade EaD da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: [email protected]. 3 Graduada em História pela Universidade Federal de Viçosa e atualmente atua como tutora do curso de licenciatura em História modalidade EaD da Universidade Federal de Viçosa. E-mail: [email protected]
Bárbara Souto/Rafaella Vieira
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
and fruitful. The distance learning is an educational modality that is currently
booming and its flexibility and wide range make it very interesting and suitable
within the context of physical, economic and social development of Brazil.
However its application is still surrounded by challenges to be solved and to
contribute to the construction of these solutions is the main purpose of this article.
Keywords: History Teaching – Distance – Social Place.
Introdução
Desde o século XIX, o Brasil tem desenvolvido métodos de ensino que
objetivam romper fronteiras físicas e levar conhecimento por todo o território
nacional, mesmo que seja preciso percorrer longas distâncias. Pensando nisso,
neste artigo, almejamos discutir questões relacionadas ao ensino de História no
Brasil, passando pelas experiências iniciais em nosso país, pontuando períodos
relevantes e chegando até os dias atuais, com as novas modalidades de ensino da
disciplina em questão.
Devido à experiência na área, focaremos a discussão nos cursos de ensino à
distância, que hoje estão em voga no Brasil. Sentimos a necessidade de
compartilhar alguns aprendizados adquiridos na prática, com o intuito de ajudar a
refletir e a melhorar a qualidade dessa nova modalidade de ensino que, a nosso
ver, é de grande potencial. Mas será que o ensino à distância consegue absorver o
público diverso com o qual precisa lidar? Essa modalidade é uma forma de
democratização do ensino? Os cursos, no Brasil, têm conseguido resultados
positivos? Cursos de graduação à distância devem ter nível de dificuldade inferior
ao presencial? É possível oferecer ensino de qualidade à distância?O “lugar social”
dos alunos influencia na construção do conhecimento oferecido?
Com o intuito de responder a esses questionamentos, o artigo foi
organizado em quatro seções. Na primeira, intitulada “O ensino de História no
Brasil”, esboçaremos um panorama sobre a construção e a prática do ensino da
disciplina História em nosso país. Em seguida, na seção “Ensino à distância”,
O ensino de história à distância
39 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
faremos uma reflexão sobre as tentativas de aplicação desse método no País, bem
como apresentaremos as ideias de autores que já publicaram suas impressões a
respeito dessa modalidade de ensino. Posteriormente, com o título de
“Licenciatura em História à Distância UFV”, escreveremos sobre as dificuldades e
potencialidades do curso em questão que, a nosso ver, poderá servir de base para
reflexão a respeito de outros cursos da modalidade EaD. Por fim, nas
considerações finais, colocaremos algumas sugestões para o aprimoramento da
dinâmica desse tipo de ensino, com o intuito de abrir questões para reflexão e
estimular a prática do ensino de qualidade.
O ensino de História no Brasil
Contar histórias é prática antiga nas sociedades, entretanto, o pensar a
história enquanto disciplina é uma prática que teve início apenas no século XIX.
Podemos atribuir esse fato ao desenvolvimento científico, à consolidação dos
Estados Nacionais e à disseminação das universidades. Segundo Manoel
Guimarães, é nessa época que “O historiador perde o caráter de hommes de lettres e
adquire o estatuto de pesquisador, de igual entre seus pares no mundo da
produção científica”. (GUIMARÃES, 1988, p.5)
Mas como a história foi ensinada nas escolas? A produção historiográfica
ditava o ensino de tal disciplina? Havia influência direta dos governos? E hoje,
quais são as tendências no ensino de História? Inspirados nessas questões é que
almejamos refletir, neste tópico, sobre o ensino de História no Brasil.
Segundo Renato de Souza e João Pires, tanto a historiografia quanto as
mudanças políticas e sociais alteraram significativamente o ensino de História em
nosso país. No século XIX, quando a História adquiriu caráter científico, sua
regulamentação foi favorecida em se tratando de disciplina escolar. Assim,
surgiram os primeiros manuais como os elaborados por professores do colégio
Pedro II, que era um instituto referência para todo o País (SOUZA e PIRES, 2010,
p.1). Apenas da disciplina História, no período de 1841 a 1951, foram encontrados
dezoito programas de ensino referentes às reformas curriculares ocorridas na
época, todos organizados pelo Colégio Pedro II (VECHIA e LORENZ Apud SILVA e
Bárbara Souto/Rafaella Vieira
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
GUIMARÃES, 2010, p.16). Mas quais eram as diretrizes da historiografia na época e
do ensino da História no século XIX e início do século XX?
O projeto de reflexão sobre a história brasileira ocorreu no período de
consolidação do Estado Nacional, portanto, a disciplinarização da História
guardava fortes marcas do debate nacional. Assim, o “lugar social”, ou seja, o
ambiente onde foram construídas as concepções sobre a história, influenciou
diretamente as interpretações sobre a questão nacional. Nas palavras de Manoel
Guimarães:
O lugar privilegiado da produção historiográfica no Brasil permanecerá até um período bastante avançado do século XIX vincado por uma profunda marca elitista, herdeira muito próxima de uma tradição iluminista. E este lugar, de onde o discurso historiográfico é produzido, para seguirmos as colocações de Michel de Certeau, desempenhará um papel decisivo na construção de uma certa historiografia e das visões e interpretações que ela proporá na discussão da questão nacional. (GUIMARÃES, 1988, p.5)
Manoel Guimarães analisa profundamente o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) e suas produções científicas. Para este artigo, é interessante a
ênfase que o autor dá no caráter elitista da instituição e a influência iluminista em
suas produções. Afinal, os trabalhos construídos no IHGB foram fundamentais na
construção da nacionalidade brasileira e no ensino de História.4 A escrita da
história proposta pelos membros do IHGB estava pautada na atuação de um
“Estado iluminado, esclarecido e civilizador”. Portanto, a história era
compreendida como um processo linear, pela ideia de progresso e civilização. Além
disso, a história era vista como “mestra da vida”, ou seja, com ela era possível
aprender lições, compreender o presente e encaminhar o futuro (GUIMARÃES,
1988, p.10-14).
4 Não é objetivo desse artigo aprofundara análise sobre o IHGB, entretanto, indicamos a leitura do artigo de Manoel Luis Salgado Guimarães, devido à relevância do assunto, em se tratando de história e historiografia brasileira no século XIX.
O ensino de história à distância
41 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
O tipo de história desenvolvido pelo IHGB foi ensinado nas escolas,
principalmente a noção de civilização, que relacionava a história do Brasil à
história europeia, com o objetivo de determinar o modelo civilizatório a ser
seguido. Segundo Souza e Pires, a proclamação da República não trouxe mudanças
significativas para o ensino de História, ao menos em seus anos iniciais. Para os
autores, o que houve foi uma ênfase nas biografias, na exaltação dos heróis da
pátria e a valorização do sentimento de nacionalidade. (SOUZA e PIRES, 2012, p.2)
Entretanto, nas décadas de 1930 e 1940, houve centralização das políticas
educacionais. O governo de Getúlio Vargas colocou o ensino de História como
elemento fundamental da “formação da unidade nacional”, por isso, a História foi
definitivamente consolidada enquanto disciplina escolar. (FONSECA Apud SOUZA e
PIRES, 2012, p.2) Apesar dessa intensificação do caráter nacional, a disciplina
escolar de História manteve suas diretrizes tradicionais, não inserindo novas
abordagens historiográficas em sua prática docente. Interessante notar que, nessa
época, estavam em voga as concepções propostas pela Escola dos Annales, que
propunha uma revisão temática e metodológica na pesquisa:
[...] preocupando-se com uma interpretação fundamentada em trabalho conjunto com as demais ciências humanas (filosofia, sociologia, antropologia, etc...) aumentando assim, as oportunidades de ampliar e conhecer novos campos a serem estudados, diversificando o objeto de estudo que poderia estimular o surgimento de uma consciência histórica. (CALDEIRA e CAVALCANTI, s/d, p.2).
O próximo marco que podemos identificar no ensino de História no Brasil se
desenvolveu durante a experiência da ditadura. Podemos observar mudança
significativa no ensino de História no período do regime militar brasileiro (1964-
1984). Para Silva e Fonseca, esse foi um momento de reflexões, de debates, de lutas
políticas e teóricas, afinal, surgiu a disciplina Estudos Sociais, que unia a História e
a Geografia, mas desvalorizando o aspecto crítico das mesmas. O objetivo do
governo era utilizar a disciplina para moldar os cidadãos, ensinando seus deveres
básicos para com a comunidade e a nação. (SILVA e FONSECA, 2010, p.13-14).
Bárbara Souto/Rafaella Vieira
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
Os indivíduos ligados às áreas de História e Geografia se mobilizaram, a
partir do final da década de 1970, e reivindicaram a autonomia das duas
disciplinas. Essa luta foi vitoriosa, refletindo o contexto de redemocratização pelo
qual passava o País. (SOUZA e PIRES, 2010, p.3).
A década de 1990 foi de extrema relevância para o ensino de História no
Brasil, pois:
[...] cresceu a pesquisa científica cujo objeto de estudo é o ensino e a aprendizagem de História; passou-se a valorizar, cada vez mais, a cultura escolar, os saberes e as práticas educativas, desenvolvidos em diferentes lugares por docentes e outros atores do processo educativo. Essa foi uma conquista importante porque rearfimou, entre nós, a concepção de que ensinar História não é apenas repetir, reproduzir conhecimentos eruditos produzidos noutros espaços: existe também uma produção escolar. (SILVA e FONSECA, 2010, p.14).
Com essa ampliação, o ensino de História no Brasil expandiu
significativamente. É nessa onda de rompimento com preconceitos arraigados na
sociedade brasileira e novas formas de se trabalhar o ensino de História que entra
em voga uma nova modalidade de ensino: o ensino à distância. Será possível
ensinar História à distância? Como funcionam os cursos à distância? Quais as
impressões e pareceres que podemos recolher das experiências em andamento?
Ensino à distância
Consideraremos, para fins deste artigo, como ensino à distância toda forma
de ensino em que professor e aluno se encontram separados em termos de espaço
físico. A mediação entre as partes se dá através de meios de comunicação diversos,
como o correio, a televisão, o rádio, o telefone e, atualmente, a internet, que se
tornou, nos últimos anos da História do ensino à distância, o meio de ensino mais
expressivo e, por isso mesmo, o mais discutido e debatido entre os estudiosos do
assunto. Muitos são os cursos que utilizam mais de uma forma de comunicação em
suas atividades, sendo que essas variantes são, muitas vezes, guiadas pelas
diversas necessidades dos alunos que buscam a possibilidade de uma formação à
distância. Essas mesmas necessidades, diversas em algumas situações, acabam por
O ensino de história à distância
43 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
influenciar inclusive o conceito básico de ensino à distância, tornando presente em
sua prática eventos como aulas presenciais, palestras e outros tipos de atividades
que levam professores e tutores para encontros presenciais com seus alunos.
A maior parte da bibliografia sobre o assunto localiza o surgimento do
ensino à distância no século XIX, acompanhando a expansão da imprensa e se
concretizando, principalmente, através de módulos enviados por correio. É
marcante o caráter técnico desses cursos, que visavam principalmente à
qualificação para o exercício de alguma atividade ligada à inserçãono mercado de
trabalho. No início do século XX, a continuidade das iniciativas dentro do ensino à
distância ficava a cargo, principalmente, de universidades americanas, como
Wisconsin, Oregon, Kansas, Minnesota, Nebraska, Texas, Missouri e North Dakota.
É importante destacar que as iniciativas de formação superior a partir do ensino à
distância eram poucas, denunciando certa descrença quanto a essa possibilidade
durante esse período. (FREITAS e ARAÚJO, 2005, p.58,59).
No que diz respeito ao surgimento do ensino à distância no Brasil, alguns
autores localizam seu surgimento ainda na década de 20, do século XX, com a
criação da Rádio Sociedade do Rio de Janeiro que apresentava um plano
educacional vinculado à radiodifusão, com o objetivo de ampliar o acesso à
educação (SARAIVA, 1996, p.17). É possível citar, também, a criação do Instituto
Universal Brasileiro, criado em 1941, como uma das iniciativas brasileira de
educação à distância através de correspondência. A partir da década de 60, as
iniciativas brasileiras de ensino à distância se vincularam a outro meio de
comunicação em massa, em franca expansão no período: a televisão. Diversas
iniciativas surgiram a partir desse momento e encontraram suporte nos meios
televisivos. Podemos elencar, como exemplos dessa tendência, a criação do
Sistema Avançado de Comunicações Interdisciplinares (Projeto Saci), que
pretendia, através de um satélite doméstico, alocar três canais de TV com fins
educativos. O projeto foi abandonado em 1968. Outro exemplo é a TV Escola,
criada em 1995 e que continua em funcionamento atualmente. Nos últimos cinco
anos, pôde-se observar uma expansão considerável do ensino à distância no Brasil,
ancorado, principalmente, no uso da internet e do computador. Nesse novo
Bárbara Souto/Rafaella Vieira
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
contexto, foi fundada a Universidade Aberta do Brasil (UAB), que tem como
principal objetivo articular e integrar as iniciativas de ensino superior à distância
no País. (SARAIVA, 1996, p.20-21).
A estrutura de ensino proposta pela UAB se dá a partir da articulação de
dois elementos: o polo presencial e as universidades, que oferecem os cursos de
formação. O conceito de polo presencial foi delimitado como uma
estrutura para a execução descentralizada de algumas funções didático-administrativas de curso, consórcio, rede ou sistema de educação à distância, geralmente organizada com o recurso de diversas instituições, bem como com o apoio dos governos municipais e estaduais.5
O polo é onde ocorre o contato presencial do aluno com o curso, onde ele
deve ter acesso aos computadores ligados à internet para realização de suas
obrigações do curso, a uma biblioteca que o auxilie na sua formação e aos tutores
presenciais, que têm a função de atender aos alunos e às suas demandas relativas
ao curso. Já, à universidade, cabe a elaboração do curso, do material didático e da
equipe de professores que elaborará o material pedagógico. É importante lembrar
que os agentes educacionais6 também se encontram separados espacialmente;
logo, a comunicação entre eles ocorre através do mesmo meio utilizado para o
contato com os alunos.
Podemos notar que, de forma geral, a educação à distância se tornou um
recurso importante na tentativa de democratização da educação e, no caso
específico deste artigo, da democratização do ensino superior. Essa possibilidade
se tornou bastante interessante para o caso brasileiro devido, entre outras
questões, à grande extensão territorial e à escassez de instituições de ensino
superior em algumas regiões do País. O mote da expansão do ensino foi
5 Disponível em: <http: / / www.Uab.mec.gov.br/polo.php > Acessado em 1 de novembro de 2012.
6São muitos os profissionais envolvidos no processo do ensino à distância. Podemos enumerar
entre eles tutores a distância e presenciais, professores, coordenadores de pólo e do curso e
profissionais e técnicos envolvidos com a produção de aulas e do material didático.
O ensino de história à distância
45 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
acompanhado, diretamente, pelo desafio de oferecer uma formação de qualidade
que, para além das singularidades e especificidades da modalidade, vem sendo
uma das balizas para o que seriam as possibilidades e os limites do seu uso. A
contradição qualidade versus expansão, em grande medida, tem se convertido em
critério para afirmar ou negar o ensino à distância como uma possibilidade
educativa. (ALONSO, 2010, p.1322).
A possibilidade de expansão da educação a partir do ensino à distância está
diretamente ligada ao uso das tecnologias de informação e comunicação, os
chamados TICs. Eles possibilitam que a informação chegue a um número muito
superior de pessoas se comparados, por exemplo, à situação de uma sala de aula.
Lidar de forma eficiente com esse intermédio tecnológico é um dos principais
desafios do ensino à distância. Disponibilizar o material didático de forma
acessível ao aluno não é o suficiente; é preciso se preocupar com a formulação do
material pedagógico e com as avaliações. As descrições devem ser precisas e os
objetivos claros e, mesmo assim, a comunicação pode apresentar problemas ao
longo do processo de aprendizagem.
As discussões sobre as especificidades do ensino à distância apresentam
outro ponto em comum: a ênfase no papel ativo do aluno e o perfil autônomo que
esses devem apresentar. A palavra autonomia parece ser a palavra de ordem das
propostas de ensino à distância. Como o contato com o professor é sempre feito
(ou pelo menos, na maioria das vezes) a partir de um meio de comunicação
intermediário, torna-se necessário o desenvolvimento de uma aprendizagem
autônoma. Entretanto não é esse o ambiente hegemônico do panorama dos
programas de EaD, e os altos índices de evasão são um indicativo da distância que
existe entre o perfil necessário para a efetivação de um curso à distância de
qualidade e o perfil real do público que procura essa possibilidade de formação.
Algumas pesquisas apontam para a predominância da aprendizagem passiva entre
os alunos dos programas de ensino à distância, ávidos a absorver ao invés de
elaborar, e que acabam desestimulados a continuar sua formação nos cursos.
(ZUIN, 2006, p.946).
Bárbara Souto/Rafaella Vieira
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
Alguns estudos já questionam a ênfase dada à necessidade de autonomia,
problematizando se ela é realmente possível no panorama em que a modalidade de
ensino EaD tem se desenvolvido no Brasil. Não é suficiente ter alunos e professores
comprometidos com o exercício da mediação, se a tentativa desse exercício se der
numa relação de 200 alunos para um professor. Nesse contexto, o ensino se torna
problemático, independente de quão eficientes sejam as TICs envolvidas no
processo e de quão qualificados sejam os profissionais envolvidos. Para autores
como Kátia Alonso, é da “ilusão do atendimento massificado que se origina a ideia
de autonomia do aluno na EaD” (ALONSO, 2010, p. 1327).
É nesse ponto que nossa discussão se encontra com a problemática do papel
docente na EaD e o tênue limite entre a função do professor e do tutor. Discutir o
papel do docente na EaD e todos aqueles que o acompanham no processo de
aprendizagem é um passo essencial para a consolidação da modalidade no País. Se
muito já se discutiu sobre as peculiaridades da educação à distância, mediante a
observação dos intermediários tecnológicos envolvidos, pouco ou muito pouco se
discutiu sobre os novos campos profissionais que surgem ao longo do seu processo
de efetivação, principalmente no que diz respeito ao papel e à importância dos
tutores. Citando Kátia Alonso:
Temos assistido, ao menos nos últimos 20 anos, o debate intenso sobre a profissionalização do professor. Embora esse debate tenha como personagem o professor que atua na educação básica, diante do quadro de expansão do ensino superior no Brasil, vale questionar até que ponto, na esteira dessa expansão, o professor de nível superior não sofre do mesmo mal que caracteriza tal fenômeno: a desqualificação. Isso, em decorrência da parcelarização do trabalho docente na EaD. Muitas vezes, no discurso do “trabalho em equipe” tido, supostamente, como uma das bases da modalidade, é possível verificar que, ao tutor, fica destinada a maior parte das atividades de “ensino”. Um dos problemas relacionados a isso é que o tutor não tem, profissionalmente, reconhecimento social/ econômico/ empregatício compatível com suas atribuições, embora seja ele o responsável direto, na maioria dos sistemas constituídos na EaD, pelo atendimento mais próximo aos alunos. (ALONSO, 2010, 1330).
O ensino de história à distância
47 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
Podemos concluir, a partir dessa breve exposição sobre o ensino à distância,
suas peculiaridades e especificidades, que muito já foi produzido sobre o assunto,
mas alguns pontos ainda precisam ser abordados com mais profundidade. Diante
deste panorama, a elaboração de relatos e reflexões sobre as práticas concretas e o
compartilhamento dessas conclusões se tornam essenciais para a consolidação e o
aprimoramento do ensino à distância no Brasil, já que esse se apresenta como uma
realidade posta e em constante expansão.
Licenciatura em História à Distância (UFV)
O curso de Licenciatura à Distância da Universidade Federal de Viçosa/MG
iniciou suas atividades no primeiro semestre de 2011, tendo como polos
presenciais as unidades de Jaboticatubas/MG, Lagoa Santa/MG, Ipanema/MG e
Bicas/MG. Em seu edital, o curso se direcionava para a formação de professores
que já atuavam na rede pública de ensino, mas não possuíam ainda uma formação
superior na área. Isso fica claro quando observamos a distribuição de vagas no
edital: 50 se destinam a professores atuantes na rede de ensino público, e 10
ficaram separadas para pessoas que se encaixam na categoria “demanda social”, ou
seja, pessoas que possuíam ensino médio completo, mas que ainda não atuavam
como professores. Esse caráter inicial fica ainda mais evidente se levarmos em
conta que o tempo de serviços prestados também foi convertido em pontos
classificatórios no processo seletivo.
No entanto, a realidade obtida com o processo de seleção foi outra. Embora
seja possível perceber diferenças entre o público dos polos presenciais, de forma
geral, não foi possível preencher uma grande parcela das vagas destinadas à
formação de professores que atuam na rede do ensino básico, tendo essas, como
previsto no edital, sido preenchidas por pessoas que se encaixavam no grupo das
“demandas sociais”. Isto acabou por gerar turmas muito heterogêneas, compostas,
por exemplo, por profissionais liberais, funcionários públicos, donas de casa que
tentavam retomar seus estudos e, em menor número, por jovens que buscavam a
sua primeira qualificação profissional. Logicamente, o público diversificado que
Bárbara Souto/Rafaella Vieira
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
acabou constituindo o curso teve impacto direto sobre o funcionamento das partes
administrativa e pedagógica.
No que diz respeito à parte de administração e de coordenação, o desafio
passou a ser o dilema de atender a demandas particulares e, ao mesmo tempo,
manter certa coesão institucional. Marcar datas para prova (que são realizadas nos
polos presenciais), estabelecer prazos para entregas das atividades avaliativas,
criar critérios para a realização e autorização de provas de segunda chamada se
tornaram um desafio constante, e logo ficou claro que não seria possível atender a
todas as necessidades individuais. Já no planejamento pedagógico, a
heterogeneidade das turmas se mostrou, rapidamente, como uma questão a ser
enfrentada. É preciso lidar com uma gama de formações, que iam de pessoas que já
estavam fazendo sua segunda graduação, até aqueles que já estavam afastados dos
estudos há muitos anos e que possuíam sérias dificuldades para acompanhar o
ritmo de um curso superior.
Todavia, é preciso também relativizar esses dois extremos: observamos
casos de pessoas que já tinham obtido outras graduações e possuíam sérios
problemas de formação educacional básica (leitura e escrita), ao mesmo tempo em
que encontramos pessoas há muito afastadas dos estudos e com sérias dificuldades
para prosseguir com suas formações (como é o caso dos alunos que residem no
meio rural, afastados inclusive dos polos presenciais), e que acabaram por ter um
excelente desempenho nas disciplinas oferecidas, até o presente momento. Na
primeira situação descrita, é possível perceber como a discussão sobre a expansão
versus qualidade, citada no tópico anterior, ainda se faz presente. Como é possível
ser formado em nível superior se ainda se tem graves problemas de formação
básica? Já no segundo apontamento, fica claro como é válida e importante a oferta
de cursos de formação à distância. Um número significativo dos alunos que
continuam vinculados ao curso, dos que têm apresentado desenvolvimentos
importantes ao longo do processo de formação e dos que têm obtidos bons
resultados nas disciplinas, não teriam oportunidade de concluir um curso
acadêmico de graduação que não fosse oferecido na modalidade EaD.
O ensino de história à distância
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Uma das primeiras soluções para as dificuldades surgidas da
heterogeneidade nasceu da possibilidade de um acompanhamento individual dado
aos alunos. Na estrutura inicial do curso, cada polo possuía um tutor à distância,
responsável por uma disciplina, ou seja, se estavam sendo ministradas 04
disciplinas, cada polo tinha, à sua disposição, 04 tutores, cada um deles
responsável por uma das disciplinas ministradas. Os tutores ficavam disponíveis
durante um período de atendimento fixo e pré-estabelecido de 20 horas semanais
de trabalho. Caberia aos alunos recorrer aos seus tutores, em caso de qualquer
dúvida ou dificuldade. Surge aí a possibilidade de que os tutores atendam os
alunos de forma individual, de acordo com as demandas e dificuldades
particulares. É importante lembrar também que, além da categoria de tutor à
distância, os alunos contavam também com um tutor presencial em cada polo.
A possibilidade de atendimento individual passava por outra questão: a
iniciativa dos alunos de entrarem em contato com seus tutores ou mesmo de
responder aos contatos protagonizados por esses. Embora essa seja uma premissa
óbvia de funcionamento de um curso à distância, na prática, ela não se efetivou de
forma tão clara, e foram vários os aspectos que influenciaram essa situação.
Elencaremos, neste artigo, alguns deles que pudemos perceber. Primeiro, temos a
dificuldade de acesso físico aos meios digitais. Embora todos os polos possuam
computadores ligados à internet, à disposição dos alunos, nem sempre esses
alunos chegam até o polo. Essa foi uma situação não prevista na formulação do
curso e que acabou por se tornar persistente ao longo do seu andamento. Muitos
alunos não residem nas cidades dos polos e não têm acesso a eles, de forma
constante. Soma-se a isso o fato de alguns alunos não possuírem acesso à internet
em suas residências e, em algumas situações, sequer possuírem computadores.
Em outras situações, o aluno possui o meio de comunicação com os tutores
e professores, mas não a realiza. Isto pode advir de uma dificuldade técnica de uso
das tecnologias envolvidas e programas de comunicação online utilizados (o que
acontece em alguns casos), ou do desinteresse de efetivar esse contato. Embora
existam alunos que encontram, no curso à distância, uma oportunidade importante
e a tratam como tal, existem aqueles que buscam essa modalidade como uma
Bárbara Souto/Rafaella Vieira
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
forma mais facilitada de alcançar uma formação superior, de valor igual ao de um
curso presencial. Podemos notar que esse é um estigma que ainda está muito
vinculado aos cursos de modalidade EaD e, por diversas vezes, encontramos
relatos equivocados de que os cursos à distância seriam destinados para aqueles
que “não possuem tempo para estudar”, ou mesmo, que seriam cursos “de fim de
semana”. De fato, a flexibilidade do curso torna possível, por exemplo, que uma
pessoa que trabalha em tempo integral organize seu tempo de estudo de acordo
com suas possibilidades, mas é indispensável que, em qualquer curso com o
mínimo de consistência, esse tempo de estudo exista.
É colocada, mais uma vez aqui, a necessidade da autonomia do aluno do
curso à distância. Além de autonomia, é necessário também disciplina. É necessário
que o aluno seja capaz de se organizar e também de planejar o seu horário de
estudo, já que não existe para esse um cronograma rígido e cotidiano de
atividades; embora esse contato diário deva acontecer, sempre que possível, no
momento mais propício ao aluno. Não estamos defendendo aqui, que o aluno do
ensino à distância tenha que desenvolver uma autonomia que se aproxime do
autodidatismo, já que existe no curso, inclusive, possibilidade de atendimento
individual, mas que esse aluno deve ter a iniciativa de entrar em contato com os
profissionais envolvidos no curso, tirar suas dúvidas, fazer seus questionamentos e
utilizar, da melhor forma possível, os recursos disponíveis para sua formação. A
postura passiva de uma parcela dos alunos acaba por tornar desinteressante o
contato desses com os tutores. Quando um dos alunos que se encontra nesse
recorte de perfil procura um tutor para auxílio de suas dúvidas, e não obtém dele
uma resposta pronta, mas sim, elementos para a elaboração de um raciocínio, ele
acaba por se sentir desestimulado a fazer esse contato. Infelizmente, caso não haja
uma mudança de postura, há pouco a se fazer nesses casos em que o objetivo é um
diploma simplesmente e, não, uma formação consistente.
Ainda dentro da discussão sobre as principais dificuldades pedagógicas
encontradas na experiência relatada neste artigo, podemos apontar também a
resistência que uma parte significativa dos alunos apresenta em relação à leitura
do material disponível. Diferentemente dos cursos oferecidos à distância que se
O ensino de história à distância
51 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
encontram inseridos nas áreas de ciências exatas, grande parte do processo
formador no curso de História se dá a partir do exercício contínuo da leitura. É um
traço comum e esperado que os alunos apresentem dificuldade de leitura no início
do curso, devido ao fato de que muitos estão tendo contato, pela primeira vez, com
uma bibliografia acadêmica. Essa dificuldade tende a diminuir ao longo do curso,
mas, para isso, é preciso contato constante com os textos acadêmicos, o que resulta
num amadurecimento intelectual. No entanto, essa dificuldade e essa resistência se
tornaram, peculiarmente, persistentes entre um grupo significativo dos alunos
matriculados no curso de História à Distância da UFV. Parte desse problema está
vinculada aos apontamentos feitos anteriormente, como falta de organização
pessoal e de disciplina para manter certa rotina de estudos. Fica claro, nas
atividades e provas, que muitos alunos absorvem pouco ou muito pouco do que
leem – quando as leituras de fato ocorrem. Essa dificuldade fica ainda mais
distante de ser resolvida quando não existe a procura pela ajuda dos tutores.
O curso disponibiliza apostilas que têm o intuito de ajudar nas leituras mais
complexas, mas seu efeito não foi o esperado. Muitos alunos acabaram por
abandonar as leituras mais difíceis (e importantes), reduzindo o seu estudo apenas
à leitura da apostila auxiliar e ao contato com as aulas gravadas, que se encontram
online. Fazendo um balanço parcial do uso das apostilas de auxílio, concluímos que
elas auxiliaram mais significativamente, e negativamente, os alunos que mantém
uma postura desinteressada e passiva no curso.
Retomando a questão da comunicação através dos meios tecnológicos e
suas dificuldades, não podemos perder de vista que o contato entre as instâncias
administrativas e pedagógicas também acorre através desses meios, sendo o
principal deles, a internet, já que esses nem sempre ocupam o mesmo espaço físico.
Professores, tutores presenciais, tutores à distância, coordenação do curso e
coordenadores de polo se comunicam, principalmente, pelo meio online. No caso
específico do curso da UFV, é importante salientar que os cursos à distância não se
encontram alocados dentro dos respectivos departamentos (embora esses sejam
responsáveis pela sua elaboração e pela disponibilização dos agentes
pedagógicos), mas se encontram subordinados ao Centro de Ensino à Distância
Bárbara Souto/Rafaella Vieira
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
(CEAD) da instituição, acrescentando ainda mais uma instância a essa cadeia de
segmentos envolvidos. A comunicação precisa entre todas essas partes tem se
mostrado mais um dos desafios do curso. Qualquer desvio de informação ou
desalinhamento de uma dessas partes pode causar uma situação desastrosa no fim
da cadeia. Os principais prejudicados por essas desarmonias estruturais,
geralmente, são os alunos e os profissionais que lidam diretamente com eles; no
caso, os tutores.
Como já apontamos anteriormente, os professores são os responsáveis pela
formulação das aulas e pela atividade pedagógica. Na prática, grande parte dessa
função fica a cargo dos tutores, como já foi apontado anteriormente, através do
trabalho de Ângela Alonso (2010), principalmente dos tutores à distância. Na
experiência alvo deste trabalho, cabe a esses toda uma gama de obrigações
pedagógicas, do atendimento aos alunos, passando por deslocamento para a
aplicação de provas e para a realização de aulas presenciais (que também são
ministradas por esses mesmos tutores, na maior parte das vezes), chegando até a
grande parte do processo de correção das atividades avaliativas. A carga de
trabalho dos tutores à distância se tornou ainda mais efetiva com o processo de
evasão dos alunos. Evasão essa, fruto, em grande parte, do desajuste entre as
expectativas dos alunos e da real concretização do curso, como foi discutido em
vários pontos anteriores. A disponibilização de bolsas para tutoria (à distância e
presencial) é calculada pela UAB a partir do número de alunos matriculados no
curso. Com a evasão, ocorreram cortes do número de bolsas que refletiram, nessa
situação específica, no corte de vagas para tutoria à distância. Como essa é,
exatamente, a parcela dos agentes envolvidos que acumula a maior parte das
funções diretamente ligadas aos alunos, obviamente, esses tutores passaram a
registrar sobrecarga de trabalho.
A repercussão direta dessa sobrecarga é a precarização do trabalho
oferecido por esses profissionais que, como ficou claro, é fundamental para a
formação dos alunos. Fica inviável, por exemplo, fazer comentários mais longos e
detalhados sobre os trabalhos produzidos pelos alunos. Podemos afirmar que a
definição mais nítida e precisa das obrigações de cada parte e a distribuição mais
O ensino de história à distância
53 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
igualitária de funções entre profissionais de mesmo status e, até mesmo, entre
instâncias diferentes, tornou-se uma das demandas principais para o
funcionamento mais eficiente do curso.
Apesar dos problemas existentes nos cursos à distância, acreditamos no
potencial desse tipo de ensino. Nossa experiência na área nos instigou a apresentar
as dificuldades dessa modalidade, que ainda é novidade no nosso país, mas que
tem crescido a passos largos. Por isso, apresentaremos nossas considerações finais,
na qual faremos sugestões de mudanças nos cursos oferecidos, com o intuito de
aprimorar o tipo de ensino em pauta e estimular o ensino de qualidade.
Considerações finais
Segundo Michel de Certeau:
Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção sócio-econômico, político e cultural [...] É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostos, se organizam. (CERTEAU, 2002, p.66-67)
A nosso ver, tal afirmativa também é verdadeira em se tratando do ensino,
por isso reforçamos o quão importante é consolidar as bases do lugar de prática
dos cursos à distância. Após refletirmos sobre o ensino de História à distância,
tendo por base as leituras apresentadas nesse texto e a experiência adquirida no
curso de licenciatura à distância da UFV, nossa primeira proposta para a melhoria
do desenvolvimento dos cursos à distância é o rigor no processo seletivo. A nosso
ver, a prova de seleção não deve ser mais fácil que a avaliação utilizada nos cursos
presenciais, pois defendemos que o curso à distância não tem por objetivo
diminuir o grau de dificuldade da graduação – conforme discutimos nesse artigo.
Sabemos que os processos seletivos também têm suas limitações e problemas, mas
achamos essencial que o curso à distância ocupe o mesmo patamar dos cursos
presenciais nesse quesito.
Bárbara Souto/Rafaella Vieira
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
Outra sugestão é a elaboração de um edital bem detalhado, especificando
claramente o público alvo, os objetivos do curso, a carga horária e, principalmente,
as atividades previstas e como essas serão colocadas em prática, tanto por alunos
como pelos profissionais envolvidos. Se possível, os coordenadores dos cursos
poderiam oferecer palestras sobre a dinâmica empregada nesse tipo de ensino, em
cada polo, antes mesmo da seleção durante o processo de divulgação do curso. O
objetivo é evitar que, por falta de esclarecimentos, os alunos se inscrevam num
curso que não tenham condições de terminar, o que acarreta em evasão e ocupação
de vagas que poderiam ser ocupadas por outras pessoas que possam aproveitar
melhor o curso.
Questão fundamental nos cursos à distância é a definição clara das funções
de cada profissional, como o coordenador, o professor, o tutor à distância, o tutor
presencial e o aluno. A princípio, parece fácil e até obvio, entretanto, na prática,
essa não é tarefa simples. Percebemos que a distância dificulta algumas questões,
principalmente a transmissão de informação. Por isso, as atribuições dos cargos
são muito importantes para que as funções sejam bem executadas, as informações
sejam passadas corretamente, a satisfação da equipe seja completa e o aluno seja
sempre bem atendido e orientado.
A estrutura dos polos merece uma análise mais profunda, antes de se dar
início ao curso. Em um curso de História, o aluno precisa mais do que
computadores e acesso a internet. É fundamental a existência de uma boa
biblioteca, por exemplo. Além disso, muitos polos não têm um espaço autônomo
para estabelecer sua sede; muitos são alocados em escolas do município, gerando
problemas, por exemplo, quando coincidem os calendários das atividades do curso
à distância com o de outras atividades realizadas no espaço do polo, externas a ele.
Portanto, é preciso mais investimento. Ao tocar nesse assunto, não podemos deixar
de dizer que o profissional deve ser mais valorizado, pois exerce função de extrema
importância e, mesmo assim, não possui carteira assinada e nem contrato. Todos
os profissionais são bolsistas, com remuneração baixa que atrasa com certa
freqüência.
O ensino de história à distância
55 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 37-55.
Concluímos então, que os cursos à distância possuem imenso potencial, mas
como a experiência no Brasil é recente, estamos aprendendo a construir cursos de
qualidade. É gratificante discutir essas questões, pois a propagação do
conhecimento só pode contribuir para o melhoramento dessa nova prática de
ensino. Fica claro que grande parte das dificuldades e desafios de implementação
de tal modalidade de ensino decorre do fato de que estamos lidando com espaços
de produção de conhecimentos múltiplos, que precisam estar em ampla
consonância para proporcionar um resultado final satisfatório. Os lugares sociais
envolvidos no andamento do curso e de suas atividades são diversos e distintos, e
criar uma comunicação e um entendimento efetivo entre todas as suas partes se
faz fundamental.
Referências
ALONSO, Kátia Morosov. A expansão do ensino superior no Brasil e a EaD: dinâmicas e lugares. Educ. Soc., Campinas, v.31, n.113, p.1319-1335, out/dez, 2010.
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2ªed. Trad. de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
FREITAS, Kátia Siqueira de; ARAÚJO, Bahumila (Coords). Educação à distância no contexto brasileiro: algumas experiências da UFBA. Salvador (BA): ISP/UFBA, 2005.
GUIMARÃES, Manuel Luís Salgado. Nação e Civilização nos Trópicos: O Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o Projeto de uma História Nacional. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, n.1, p. 5-27, 1988.
SARAIVA, Terezinha. Educação à distância no Brasil: lições da história. Em aberto, Brasília, ano 16, n.79, p.17-27, abr/jun,1996.
ZUIN, Antonio A. S. Educação à distância ou educação distante? O programa universidade aberta do Brasil, o tutor e o professor virtual. Educ. Soc., Campinas, vol. 27, n.96 – Especial, p.935-954, out. 2006.<http://www.Uab.mec.gov.br/polo.php > Acessado em 1 de novembro de 2012.
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 56-67.
FORMAR PROFISSIONAIS DE HISTÓRIA NO SÉCULO XXI: O QUE DIZEM AS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA FORMAÇÃO DE
HISTORIADORES1
José Antonio Gabriel Neto2
Resumo: A partir da promulgação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais
(DCN) para formação de profissionais para as mais diversas áreas, entre elas a
História, novas perspectivas e desafios foram postos aos profissionais formadores.
Objetivamos, no texto a seguir, fazer uma discussão sobre o conteúdo das DCN
para cursos de história e quais são os novos parâmetros que devem orientar as
construções curriculares nesse início de século XXI. O método utilizado foi o de
revisão bibliográfica e pesquisa documental. Como resultado, encontramos que as
diretrizes, embora representem um avanço significativo quanto às questões
relativas aos currículos mínimos dos anos 1980, proporcionando uma maior
liberdade nas construções das matrizes dos cursos de graduação na área, também
pecam em alguns aspectos, como por exemplo, a separação entre saberes
específicos para licenciatura e gerais, trazendo uma dicotomia
licenciatura/bacharelado. Concluímos, portanto, que é preciso um esforço conjunto
da Associação Nacional de História e instituições de ensino superior, no sentido de
trazer uma adequação às novas demandas apresentadas durante a última década.
Palavras-chave: Diretrizes Curriculares. Currículo. Formação docente. Política
Educacional. Ensino de História.
Abstract: From the enactment of the new National Curriculum Guidelines (DCN) to
train professionals for the most diverse areas, including history, new perspectives
and challenges were put to professional trainers. We aim, in the following text, to a
discussion on the content of DCN for history courses and what are the new
1 Recebido em 11/10/2013. Aprovado em 15/11/2013.
2Licenciado e Bacharel em História pela Universidade Federal do Ceará. Mestrando em Educação pela Universidade Federal do Ceará. Bolsista FUNCAP. Contato: [email protected]
José Antonio Gabriel Neto
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parameters that should guide the curriculum construction in the beginning of XXI
century. The method used was the literature review and documentary research. As
a result, we found that the guidelines, although they represent a significant
advance on the questions relating to the minimum curriculum '80s, providing
greater freedom in the construction of arrays of undergraduate courses in the area,
also sin in some aspects, such as the separation of specific knowledge to
undergraduate and general bringing a dichotomy degree/bachelor. We conclude,
therefore, that it takes a joint effort of the National Association of History and
higher education institutions, in order to bring conformity to the new demands
presented during the last decade.
Introdução
A formação de professores é, hoje, um dos principais temas do âmbito
educacional brasileiro. Apresento aqui algumas reflexões sobre como se deu essa
profissionalização docente no Brasil e como a questão da profissionalização do
educador é interpretada na literatura do país.
Os primeiros professores no Brasil foram os jesuítas, advindos de Portugal. Na
época da colônia, o ensino possuía caráter religioso e dominador, centrado na
figura do professor.Docente este que nem sempre produzia o saber que ensinava.
A concepção de um professor reprodutor de conhecimentos vem,
principalmente, dos escritos do francês Yves Chevallard. O pesquisador afirma que
a escola se organiza a partir de uma noosfera, ou seja, agentes externos à sala de
aula (BITTENCOURT, 2008, p. 26).
Ribeiro nos mostra como esse movimento foi mudando:
Com o surgimento e a divulgação do “saber científico”, fundado nas ciências positivas da natureza e com grande influência do discurso pedagógico psicológico, o saber do educador deixa de ser o centro de gravidade das práticas docentes, enquanto o ato
Formar profissionais de História no século XXI
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 56-67.
pedagógico vai centrando-se progressivamente no educando. Este pensamento educacional, concretizando-se no grande movimento da Escola Nova, impulsionou a formação do educador faculdades de filosofia, ciências e letras, a partir de 1930 (RIBEIRO, 2010, p. 105).
Assim, podemos entender que houve uma mudança radical em fins do século
XIX e início do século XX. O educador deveria não apenas possuir boa cultura geral
e sim uma boa postura em relação a seus estudantes. A mudança na prática docente
influencia todo o quotidiano da escola.
Porém, as reformas promovidas no ensino brasileiro pela Ditadura Militar
tornaram o ensino, quase que exclusivamente, um formador de mão de obra fabril.
A reforma universitária de 1968 e a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1971
reforçam esse modelo de ensino. A preocupação quase exclusiva com o modo de
ensinar, de maneira a produzir resultados mais eficazes, passando pelo
planejamento e chegando até a prática docente.
Nesse contexto, surgem em todo o país cursos de licenciatura curta, divididos,
principalmente, em duas áreas principais: Ciências e Estudos Sociais. Todo o
processo formativo levaria, em média, dois anos, mostrando que a preocupação do
governo no período era de formar o máximo possível, mas sem profundidade, de
maneira superficial.
Sobre a formação do professor nesse período, Ribeiro (2010) dispõe:
Para se ensinar, portanto, não seria necessário um maior preparo intelectual, sendo suficiente uma formação rápida e considerada precária, preocupada principalmente com o ensino dos métodos e das técnicas pedagógicas, essencialmente com a definição de metas e objetivos a serem atingidos. Sua consequência foi, evidentemente, um profissional intelectualmente mal preparado, com poucas possibilidades de vir a ser um educador que compreendesse e questionasse a realidade, que perguntasse pelo sentido de sua prática, ou que assumisse uma atitude reflexiva diante da educação e da sociedade. (RIBEIRO, 2010, p.).
Assim, podemos entender que o professor era um mero reprodutor de saberes,
tal qual na época dos jesuítas no Brasil. Mesmo com as mudanças, o ensino nas
universidades continuava menos crítico, menos humanista.
José Antonio Gabriel Neto
59 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 56-67.
Com os cursos de História não foi diferente. Apoiamo-nos em Mesquita (2008)
quando a autora versa sobre a estrutura dos cursos de História nesse momento
histórico. Segundo a historiadora os professores formadores detinham-se em
ensinar as técnicas de trabalho aos futuros professores. O saber deveria ser
deixado apenas com os doutores, produtores do saber produzido pela academia. O
saber escolar inexistia, e mesmo o professor não era sujeito produtor de
conhecimento. O mesmo deveria saber utilizar os instrumentos ditos tradicionais
como: livros didáticos, quadro e giz. Ou seja, o professor repassava,
mecanicamente, o que havia aprendido na universidade.
A História não se via ameaçada apenas pelos problemas advindos da Reforma Universitária, a qual pretendia romper com a potencialidade crítica da produção do conhecimento histórico, mas também se via à beira de sua eliminação como disciplina escolar e como curso de formação de professores pela implantação dos Estudos Sociais. Essas reformas comprometeriam significativamente os campos de atuação dos profissionais de História, portanto, trazia dificuldades para a inserção no mercado de trabalho (MESQUITA, 2008).
Nesse sentido, a Associação Nacional de História (ANPUH) e a Associação dos
Geógrafos do Brasil (AGB) lutaram intensamente contra o movimento dos Estudos
Sociais e as licenciaturas curta e plena da disciplina. Assim, em fins do século XX e
início do XXI, o Ministério da Educação começou a pensar em documentos que
pudessem orientar as construções curriculares dos mais variados tipos de cursos
de graduação. Essas orientações, porém, deveriam permitir que cada instituição de
ensino elaborasse suas matrizes de acordo com necessidades específicas, sem um
currículo único para todos os cursos.
Diretrizes Curriculares Nacionais para cursos de História
De acordo com Coelho (1999), durante as décadas de 1980 e 1990, os currículos
dos cursos de graduação foram duramente criticados, principalmente por sua
rigidez, o que impossibilitava uma flexibilidade na construção da prática docente.
Ficara evidente para o governo federal, através do Ministério da Educação (MEC) a
Formar profissionais de História no século XXI
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 56-67.
necessidade de renovação curricular e mudança da cultura escolar. Desse modo, as
Diretrizes Curriculares deveriam possibilitar que as próprias instituições
reformulassem seus currículos, permitindo, assim, que os cursos de formação
possuíssem autonomia curricular.
Assim, as DCNs vieram substituir os Currículos Mínimos, muito criticados pelo
seu caráter predominantemente disciplinar, por não reconhecerem o valor das
atividades formativas realizadas fora do ambiente acadêmico e por recomendarem
uma elevada carga horária. Ao não abrir mão de um grande elenco de disciplinas,
sobretudo obrigatórias, e de uma pesada carga horária em cada curso, esses
parâmetros curriculares acabavam por transformar o currículo numa grade
curricular, “dentro da qual os alunos deveriam estar aprisionados, submetidos, não
raro, até aos mesmos conteúdos, prévia e obrigatoriamente repassados,
independentemente de contextualização” (BRASIL, 2003, p.2).
Gabriel Neto, Rodrigues e Ribeiro (2013, p. 2) trazem uma discussão sobre a
elaboração das DCN no âmbito do Ministério da Educação. Segundo os autores, o
referido modelo curricular, pela pouca flexibilidade que tinha, tornou-se
anacrônico face às novas demandas socioeconômicas. Tornou-se obsoleto, porque
era incapaz de se adaptar às rápidas transformações contemporâneas. Além disso,
revelou-se “ineficaz para garantir a qualidade desejada”, desencorajando “a
inovação e a benéfica diversificação da formação oferecida” (BRASIL, 1997a, p. 2).
Para superar esse modelo, o MEC, por intermédio da secretaria de Educação
Superior (SESu), lançou, através do Edital nº. 4, de 10 de dezembro de 1997, um
desafio às Instituições de Ensino Superior (IES) para apresentarem propostas para
a elaboração de diretrizes curriculares para a graduação, que seriam analisadas e
sistematizadas por comissões de especialistas da SESu. De acordo com esse edital,
as DCNs teriam como objetivo:
(…) servir de referência para as IES na organização de seus programas de formação, permitindo uma flexibilidade na construção dos currículos plenos e privilegiando a indicação de áreas do conhecimento a serem consideradas, ao invés de estabelecer disciplinas e cargas horárias definidas (BRASIL, 1997b).
José Antonio Gabriel Neto
61 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 56-67.
Portanto, conforme indica à palavra diretrizes, estes normativos constituem
orientações, mas “que devem ser necessariamente respeitadas por todas as
instituições de ensino superior” (BRASIL, 1997a, p. 2).
No que diz respeito à participação no processo de discussão das diretrizes
curriculares, o supracitado edital referia a necessidade das IES envolverem as
sociedades científicas, ordens e conselhos profissionais, associações de classe e o
próprio setor produtivo nesse debate, a fim de consolidar propostas articuladas
tanto às reformas necessárias da estrutura dos cursos quanto ao perfil do
profissional a ser formado.
Posteriormente, em 2001, perante a heterogeneidade das propostas recebidas, a
CES “decidiu adotar uma orientação comum para as diretrizes que começa a
aprovar e que garanta a flexibilidade, a criatividade e a responsabilidade das
instituições ao elaborarem suas propostas curriculares” (BRASIL, 2001, p. 2).
A partir dessa nova orientação, segundo Gabriel Neto; Rodrigues; Ribeiro (
2013), a questão da duração, carga horária e tempo de integralização dos cursos
seria objeto de parecer e/ou resolução específica, devendo as DCNs contemplar os
seguintes itens: (i) perfil do formando / egresso / profissional; (ii) competências /
habilidades / atitudes; (iii) habilitações e ênfases; (iv) conteúdos curriculares; (v)
organização do curso; (vi) estágios e atividades complementares; e, finalmente,
(vii) apresentar as formas de acompanhamento e avaliação das disciplinas e
atividades realizadas ao longo da formação.
Assim, a década de 1990 marcou a política educacional brasileira não só porque
consolidou o ideário neoliberal neste campo, mas porque, precisamente para
realizá-lo, deflagrou um processo de reforma que atingiu todos os níveis de ensino.
Entre as reformas, certamente a reforma para a educação superior foi central. As
mudanças educacionais operadas durante os anos de 1990, no governo do ex-
presidente Fernando Henrique Cardoso atendiam a interesses do Fundo Monetário
Internacional.
A elaboração das Diretrizes mostra a preocupação do estado brasileiro em
Formar profissionais de História no século XXI
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 56-67.
preparar profissionais para as demandas de um mundo globalizado. No entanto, o
modelo de formação de professores adotado pelo Brasil passou a se preocupar, em
primeiro plano, com o diploma, e, em segundo plano, com o ensino.
Seguindo a política de formação docente advinda do governo federal, de junho a
novembro de 1998, a Comissão de Especialistas de História designada pelo MEC,
juntamente com a direção da Anpuh (Associação Nacional de História), elaborou o
documento das Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de história (DCN). Em
abril de 2001, o texto foi aprovado por unanimidade pela Câmara de Educação
Superior do Ministério da Educação.
Primeiramente, as DCN de História situam historicamente a situação da
graduação na área no país. Brasil (2001) explica que as DCN de História vieram
para substituir os currículos mínimos, tão presentes nas décadas de 1970 e 1980.
Depois, explicam de que maneira e baseado em que princípios. A seguir,
apresentam proposta de como devem ser construídos os currículos de história no
Brasil. Por fim, o texto das DCN divide as diretrizes (ou seja, a maneira como os
cursos de história devem ser organizados) em seis itens: perfil dos formandos,
competências e habilidades, estruturação dos cursos, conteúdos curriculares,
estágios e atividades complementares e conexão com a avaliação institucional.
De acordo com o documento:
O graduado deverá estar capacitado ao exercício do trabalho de Historiador, em todas as suas dimensões, o que supõe pleno domínio da natureza do conhecimento histórico e das práticas essenciais de sua produção e difusão. Atendidas estas exigências básicas e conforme as possibilidades, necessidades e interesses das IES, com formação complementar e interdisciplinar, o profissional estará em condições de suprir demandas sociais específicas relativas ao seu campo de conhecimento (magistério em todos os graus, preservação do patrimônio, assessorias a entidades públicas e privadas nos setores culturais, artísticos, turísticos etc).(BRASIL, 2001).
O texto contempla o exercício profissional do historiador, que deve estar
preparado para os desafios que o mundo globalizado lhe impõe. Trabalhar com
novas tecnologias, estar preparado para o exercício do magistério em todos os
José Antonio Gabriel Neto
63 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 56-67.
graus, pesquisa e atuação em instituições diversas.
Para Fonseca (2003), no entanto, os historiadores, de maneira geral, se
preocupam com uma sólida formação para a pesquisa em detrimento de uma
formação voltada para o exercício da profissão docente. Segundo a autora, o
documento silencia quanto à formação do professor de história não preocupando-
se com o ensino de História no Brasil.
Porém, o documento deixa bastante claro em várias passagens quais devem ser
os parâmetros de formação para o licenciado.
“Competências e Habilidades.
Específicas para licenciatura:
a. Domínio dos conteúdos básicos que são objeto de ensino – aprendizagem no ensino fundamental e médio;
b. domínio dos métodos e técnicas pedagógicos que permitem a transmissão do conhecimento para os diferentes níveis de ensino.”(BRASIL, 2001).
Assim, podemos afirmar que o documento não apenas demonstra preocupação
com a formação do professor de história, mas também explicita de que maneira os
cursos de graduação devem preparar o historiador para a função docente. O
documento deixa claro quais são os saberes necessários à formação do professor.
No entanto, as colocações são vagas, permitindo uma variada gama de
interpretações.
Em outra passagem, quando da descrição dos conteúdos curriculares dos cursos
de graduação em história, o documento relata que: “No caso da licenciatura
deverão ser incluídos os conteúdos definidos para a educação básica, as didáticas
próprias de cada conteúdo e as pesquisas que as embasam” (BRASIL, 2001, p. 4).
No entanto, é correto afirmar que existe uma separação clara entre a formação
para a pesquisa e a docência nas DCN. Licenciatura e bacharelado estão separados
na questão de competências, habilidades e conteúdos curriculares. As DCN
mostram que a formação para a pesquisa é, aparentemente, mais importante que a
formação para o exercício da docência.
Formar profissionais de História no século XXI
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 56-67.
Embora o documento explicite preocupação com a formação de professores de
história, os saberes pedagógicos aparentemente são postos em segundo plano. Os
saberes “básicos” aparecem no texto antes dos saberes necessários à docência,
mostrando que, em primeiro lugar, o historiador é um profissional pesquisador. Os
saberes pedagógicos, segundo Fonseca (2003) não se articulam com os saberes
básicos para a formação do historiador, tampouco se constituem apenas em
elementos de instrumentação do trabalho.
Para Caimi, a dualidade de concepções presente nos documentos legais reflete a
diversidade de pontos de vista entre os profissionais da História e os das
Faculdades de Educação dentro das universidades.
Além disso, historicamente, têm-se manifestado tensões e dicotomias entre licenciatura e bacharelado nos cursos de graduação, constituindo-se, de um lado, os que defendem a soberania do conhecimento histórico e, de outro, os que advogam a supremacia da orientação pedagógica na formação do profissional da História, definindo hierarquias de valor e importância entre os conhecimentos ditos “específicos” e os ditos “pedagógicos”. (CAIMI, 2006).
Além disso, o documento não esclarece como deve ser distribuída a carga
horária do estágio e, mais uma vez, separa os conteúdos pedagógicos dos
conteúdos específicos da disciplina de história.
Podemos concluir, portanto, que as DCN englobam toda a formação do
historiador, porém de forma bastante aberta, permitindo a construção de
currículos diferentes entre si, possibilitando às universidades o atendimento de
sua realidade local, sem, necessariamente, fugir de um contexto educacional mais
amplo.
Quanto à formação de professores e prática de ensino, o texto, emboraseja vago,
deixa claro como os cursos de graduação em História devem proceder nesse
sentido. O estágio supervisionado tem papel fundamental por ser a parte onde
teoria e prática mais se relacionam. Isso é possível de ser notado quando o
documento tem, em uma de suas diretrizes principais, o trato que o estágio deve
ter na formação do historiador.
José Antonio Gabriel Neto
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Considerações finais
As diretrizes, embora representem um avanço para a liberdade curricular dos
cursos de graduação em história, sejam eles de licenciatura ou bacharelado,
também possuem antigos vícios que precisam ser superados para que uma maior
qualidade na formação dos profissionais da área seja atingida.
Além disso, o documento foi criado no ano de 2001, sendo assim, portanto,
anterior à lei 10.639/03 e 11.645/08, que torna, respectivamente, obrigatório o
ensino das culturas afro-brasileira e indígena em instituições de ensino, sejam elas
públicas ou privadas.
Nesse sentido, é importante que os órgãos que reúnem os historiadores tenham
papel central na construção de novas orientações para as construções curriculares
dos cursos de graduação.
A partir de uma nova redação, o documento pode adequar-se às novas
demandas impostas aos professores de história durante a última década,
facilitando o contato entre universidades e escolas, maximizando assim, o
aprendizado de formadores, graduandos e professores.
Falar sobre a formação de professores de História é uma tarefa árdua, visto que
a literatura sobre o tema é praticamente inexistente no Brasil. Poucos
pesquisadores do país se dispõem a falar sobre o assunto. Apesar disso, é possível
notar que a produção historiográfica sobre objetos de estudo relacionados à
formação docente em História vem crescendo significativamente nos últimos anos
despertando interesse de muitos historiadores principalmente no âmbito dos
programas de pós-graduação.
Contudo, a formação de professores é um processo contínuo e está em
constante mudança. Não podemos pensar em uma formação única e que não esteja
adequada aos problemas de cada realidade local. Além disso, o estudo da formação
do professor de História deve ser cada vez mais objeto das tensões dos
Formar profissionais de História no século XXI
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 56-67.
pesquisadores do ensino de História.
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José Antonio Gabriel Neto
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coletânea de Artigos. Fortaleza: Editora UFC, 2010.
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 68-85.
ENSINO DE HISTÓRIA E EDUCAÇÃO NÃO-FORMAL: CONCEITOS E ENCONTROS1 Juliana da Costa Ramos2
Resumo: O artigo aqui apresentado se propõe a discutir os conceitos relacionados à distinção realizada entre o saber histórico escolar e o conhecimento histórico de modo a perceber como esses termos são relevantes à prática pedagógica do ensino de história sendo indicativos de determinadas hierarquizações conceituais. Ao cogitar questões que partem da premissa de que o saber histórico não está intrinsecamente vinculado ao saber produzido na academia, por conseguinte, tem se tornado emergente a busca por outros locais de produção de saber histórico, dentre os quais, àqueles referendados pela educação não-formal, pois, estes se apresentam nas últimas décadas, como espaços, que com maior intensidade, refletem a produção que está vinculada à concepções complexas de saberes produzidos, transmitidos e construídos pelos sujeitos envolvidos e imersos nas relações de poder que constituem a construção de saber/conhecimento. Assim, abordaremos a relação entre ensino tradicional de história e as novas abordagens que tem esse modelo como algo a que ser pretende superar, articulando os conceitos e as práticas desenvolvidas no âmbito da educação não-formal, além de problematização sobre a oposição ao conceito de educação formal definida, a priori. Nesse sentido buscamos analisar o desenvolvimento de tais práticas educativas com os diálogos contemporâneos entre o ensino de história e espaços de educação não-formal, tais quais os museus de modo a perceber os desdobramentos desses debates no campo da educação e da produção de conhecimentos e saberes.
Palavras-chave: Ensino de História. Saber histórico escolar. Educação não-formal.
Résumé: L'article présenté ici est de discuter liée à la distinction entre le connaissance historique et savoir de l'école afin de comprendre comment ces termes sont des concepts pertinents pour la pratique pédagogique de l'enseignement de l'histoire indicative de certaines hiérarchies conceptuelles. Lors de l'examen des questions du principe que la connaissance historique n'est pas intrinsèquement liée à la connaissance produite dans l'académie, donc, est devenu la recherche émergentes pour d'autres sites de production de la connaissance historique , parmi lesquels ceux qui sont approuvés par l'éducation non - formelle, parce qu'ils viennent au cours des dernières décennies, tels que les espaces, avec plus d'intensité que reflète la production qui est liée à des conceptions complexes de connaissances produites, transmises et construite par les individus impliqués et
1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 18/11/2013. 2 Graduada no Curso de Licenciatura Plena em História, na Universidade Federal Rural de Pernambuco. Atuou como bolsista de iniciação à docência, fomento: Capes-Cnpq/UFRPE. Atualmente o trabalho desenvolvido permeia os seguintes temas: Ensino de História, Educação em Museus, Patrimônio, Educação Não-Formal, Afetividade e Memória. E-mail: [email protected]
Juliana da Costa Ramos
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immergés dans les relations de pouvoir qui constituent la construction de la savoir/connaissances. Ainsi, nous discutons de la relation entre l'enseignement traditionnel de l'histoire et les nouvelles approches qui ont ce modèle comme quelque chose qui vise à surmonter en articulant les concepts et les pratiques développées dans le cadre de l'éducation non formelle, ainsi que remettre en cause l'opposition à la notion de l'éducation formelle définie a priori. En ce sens, nous analysons le développement de ces pratiques éducatives avec des dialogues contemporains entre l'enseignement de l'histoire et des espaces d'éducation non formelle, de sorte que les musées afin de comprendre les ramifications de ces débats dans le domaine de la production et de la savoir l'éducation et de la connaissance. Mots-clés: Enseignement de l'histoire. Savoir historiques. Éducation non formelle.
O Saber Histórico Escolar e Conhecimento Histórico
Todo conhecimento histórico é produzido imerso em dois substratos
fundamentais: o primeiro é a historicidade na qual toda a ação humana encontra-
se condicionada; o segundo se insere na esfera do conhecimento produzido pela
ciência histórica a partir dos postulados e cânones que determinam o ofício do
historiador. Esse preâmbulo nos indica o que é posto por MARTINS (2005, p.12)
como “caráter relacional do conhecimento histórico”:
O conhecimento é duplamente histórico. De um lado, é histórico porque se dá no tempo humano refletido imerso na historicidade de toda e qualquer existência. [...] De outro lado, é histórico por ser produzido mediante práticas metódicas consagradas de pesquisa, que atendem a requisitos de controle de qualidade e pertinência. Nesse segundo caso, fala-se do conhecimento histórico em sentido estrito. (MARTINS 2005, p. 12)
Partindo do pressuposto de que todo o ser humano é capaz de desenvolver
e possuir conhecimento histórico, verificamos que tal produção ocorre de modo
quase que compulsório, tendo como justificativa a capacidade inata dos seres
humanos de desenvolverem conhecimentos/habilidades ao longo de um período
temporal.
Entretanto, existe outro modo de produzir conhecimento histórico. Este
aspecto diz respeito à produção da história científica, o que implica não apenas o
saber informal, aquele conhecimento adquirido com a experiência ou com o vivido,
Ensino de história e educação não-formal
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 68-85.
mas, sobretudo, o saber produzido pela elaboração sistemática, dogmática e
intencional na qual está circunscrita a operação historiográfica. Assim:
a historiografia produzida como fruto dessa interação entre o vivido e o pensado é elaborada discursivamente na forma narrativa, em que se articulam, argumentativamente, os dados (vividos diretamente ou investigados indiretamente) e a interpretação. Subjazem, pois, a ela, duas pretensões razoáveis: a da racionalidade dialogal e a da possibilidade de produzir um discurso veraz. (MARTINS, 2005, p. 6).
A partir dessas constatações verificamos que toda produção de
conhecimento histórico “científico” se instaura como um campo elaborador de
“verdades”, não absolutas, mas como conjecturas, que são legitimadas pelo
método.
Nesse sentido buscamos aqui analisar as ideias que colocam em oposição, a
priori, os termos saber histórico escolar e conhecimento histórico, na tentativa de
perceber como os teóricos analisam esses conceitos e fundamentam as teorias em
torno do tema Ensino de História.
Epistemologicamente o termo conhecimento se refere à informação
adquirida pelo estudo. Enquanto o saber diz respeito à instrução recebida em
relação a algo através da experiência. Em muitos aspectos esses dois conceitos
aparecem como sinônimos, todavia, quando se referem ao ensino de história os
termos se apresentam numa condição de oposição em que o conhecimento
histórico estaria vinculado à ciência produzida academicamente entre os pares, já
o saber histórico escolar se encontraria relacionado àquilo que é ensinado e
aprendido pelos professores e alunos, dentro do ambiente escolar a partir da
simplificação do conhecimento histórico científico.
Essa dicotomia, que apresento de modo simplista, representa
sucintamente um dos vários panoramas acerca das pesquisas em torno da relação
entre a disciplina acadêmica e a escolar. No estudo sobre as disciplinas
BITTENCOURT (2009, p. 33) afirma, que “a História escolar integra um conjunto de
disciplinas que foram sendo constituídas como saberes fundamentais no processo
de escolarização brasileira [...]”.
Entretanto, CARRETEIRO, 1996 verifica também que se avançou muito
pouco com relação a analise das particularidades da produção do conhecimento
Juliana da Costa Ramos
71 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 68-85.
histórico no âmbito da disciplina escolar, e, do modo pelo qual é ensinada e
aprendida a História.
No que concerne às pesquisas sobre as disciplinas escolares, não apenas a
História, podemos destacar duas fortes correntes, em que a primeira argumenta
que tais disciplinas são frutos, produções simplificadas, das chamadas ciências de
referência. Tal concepção, que tem o ditada da matemática: Yves Chevallard, como
maior expoente é denominada: - teoria da transposição didática.
Chevallard entende ser a escola parte de um sistema no qual o conhecimento por ela produzido se organiza pela mediação da “noosfera”, conceito correspondente ao conjunto de agentes sociais externos à sala de aula – inspetores, autores de livros didáticos, técnicos educacionais, famílias. Esses agentes garantem à escola o fluxo e as adaptações dos saberes provenientes das ciências produzidas pela academia. (BITTENCOURT 2009, p.36)
No Brasil, o debate sobre as pesquisas das disciplinas escolares é
evidenciado a partir dos anos 1990 quando da elaboração dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, as orientações apresentadas em tal documento incidiram
na distinção dos tipos de conhecimento histórico, o que impulsionou cobranças da
sociedade em torno de uma finalidade prática que o conhecimento histórico
deveria produzir. Este panorama reflete o caráter tecnicista no qual se orientou a
educação brasileira nos finais dos anos 80 e sua contribuição para o aumento do
fosso entre o saber escolar e o acadêmico
Ao distinguir tipos de conteúdos históricos: conceituais. procedimentais e atitudinais, estes Parâmetros recorrem à ideia do "saber histórico" utilizável, onde o "saber usar" é a medida e referência para o conhecimento, o qual estaria sempre relacionado ao desenvolvimento de competências (atitudinais, procedimentais, conceituais), além de vinculado aos sistemas e demandas do atual desenvolvimento tecnológico. Nesse sentido “o saber histórico escolar seria um entre outros ‘saberes’ de natureza prática, necessários e imprescindíveis para se viver e sobreviver na era da globalização” (SCHMIDT 2005, p. 35,36).
Verificamos assim o surgimento desse debate na esfera da pesquisa
relacionada à didática das disciplinas, impulsionadas pelos estudos desenvolvidos
no âmbito da supracitada transposição didática. Entretanto, tais reflexões que tem
como problema científico a didática das disciplinas escolares já se apresentam
Ensino de história e educação não-formal
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 68-85.
desde os anos trinta e indicam uma preocupação com relação à chamada “crise do
método” (SCHMIDT, 2005, p. 37).
Revelando assim, o que já era constatado por Piaget e Dewey e denunciado
por CARRETEIRO (1996, p. 15) “as crianças tem claras dificuldades para entender
os conteúdos históricos devido às limitações gerais impostas pelo seu
desenvolvimento cognitivo”. Deste modo, além de problematizar as adaptações
necessárias à prática pedagógica, questiona-se a própria noção de conhecimento
produzido no e pelo ambiente escolar.
Ainda sobre a teoria de Chevallard, autores como LEITE (2004) analisam
de modo profundo a questão da transposição didática e afirmam que para além de
uma vulgarização do “saber do sábio” (IDEM) se encontra uma complexa análise
sobre as estruturas que conjecturam o saber escolar. A respeito dessas questões:
Chevallard propõe o seguinte modelo de interpretação: tal compatibilidade dependeria da sustentação do saber ensinado em um ponto mais ou menos equidistante entre o saber do sábio e o saber “banalizado”, acessível às famílias dos estudantes, sem a mediação escolar. Quando o saber ensinado se afasta demais do saber do sábio, ocorre o que o autor chama de “envelhecimento biológico”, passando a ter a legitimidade questionada pelo entorno social devido à sua obsolência. Paralelamente, ocorreria o “envelhecimento moral”, causado pela perigosa aproximação com “o saber banalizado”, que também se dá quando o saber ensinado se distancia em demasia do saber do sábio: se o saber já é de amplo domínio público, o que justifica a escola? [...] É o momento em que se impõem as reformas do ensino, quando um fluxo de saber, proveniente do saber sábio, torna-se indispensável. (LEITE, 2004, p 39).
No bojo desses debates podemos destacar os pesquisadores que se
posicionam contrários à perspectiva de Chevallard, e que vislumbram a disciplina
escolar como entidade específica produtora de saber autônomo. Entretanto, não
desvinculada das ditas ciências de referências, mas que não se apresenta como
produto derivado das mesmas.
Em oposição à teoria da transposição didática, surge uma segunda
perspectiva, na qual podemos destacar os pensadores Ivon Goodson e André
Chervel. Esses teóricos tecem críticas à teoria da transposição didática e afirmam
que essa hierarquização do conhecimento tem conotações mais amplas e não está
Juliana da Costa Ramos
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limitada apenas a considerações de ordem epistemológica, como havia constatado
Chevallard.
Para tais autores, “a compreensão da disciplina escolar relaciona-se ao
papel do conhecimento como instrumento de poder de determinados setores da
sociedade” (BITTENCOURT, 2009, p. 38). O que revela outro ponto de forte debate
relacionado à hierarquização do conhecimento que coloca o saber escolar como
conhecimento secundário em relação àqueles saberes produzidos pelas chamadas
ciências de referência.
CHERVEL apud BITTENCOURT (2009. Pág. 38), um dos principais críticos
a teoria de Chevallard, afirma que: “o estudo das disciplinas escolares deve ser
contextualizado historicamente, com vias a perceber que contradições, imersas nas
relações de poder”, podem dali ser extraídas com o objetivo de problematizar de
modo mais profundo o conceito que ele denomina como cultura escolar.
Para assim compreender como “as disciplinas escolares formam-se no
interior dessa cultura, tendo objetivos próprios e muitas vezes irredutíveis aos das
ciências de referência” (IDEM 2009, Pág. 38). Chervel questiona o aspecto que diz
respeito ao caráter generalizador da teoria da transposição didática e discute sua
aplicabilidade em outras disciplinas, utilizando outros conceitos que não os da
matemática, disciplina a respeito da qual o Chevallard desenvolveu a teoria da
transposição didática.
Ao definir a escola como produtora de um saber próprio, Chervel
determina que “as disciplinas escolares, nesse contexto, não podem ser entendidas
simplesmente como metodologias.” (IBDEM. 2009, p. 39). O que denota outra
preocupação, que diz respeito à função exercida pelo professor na teoria da
transposição didática. Emerge nesse sentido uma reavaliação sobre o papel do
professor. Pois, seria ele um produtor de saber ou um reprodutor/simplificador do
conhecimento cientifico?
Essas questões suscitam pesquisas sobre como “os professores mobilizam
em seu ofício os saberes das disciplinas, os saberes curriculares, os saberes da
formação profissional e os saberes da experiência. [...] corresponde a um trabalho
profissional que se define como saber docente” (BITTENCOURT, 2009, p. 51). Tal
perspectiva possibilita uma ampliação nos debates em torno da atuação dos
Ensino de história e educação não-formal
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 68-85.
docentes enquanto agentes produtores de saberes e a pesquisa a respeito das
especificidades dessa produção.
Entretanto, na prática ainda verifica-se o hiato entre as pesquisas
psicológicas e educacionais acerca da construção do conhecimento histórico
produzidos pelos indivíduos nas mais diversas esferas educacionais e sociais. O
que deixa muitas lacunas a serem preenchidas, seria, pois, o problema do ensino de
história habitado no método ou os conteúdos, na teoria ou prática, nos currículos,
na escola, nos professores ou os alunos.
Essa dificuldade é fruto de um problema cognitivo, relacionado ao
desenvolvimento natural do ser humano, passível de ser solucionado com o
amadurecimento e desenvolvimento do sujeito? Ou o problema estaria no método,
na didática do ensino de História, ou seja, no modo pelo qual os conteúdo e
problemas da disciplina são apresentados aos alunos desde os anos iniciais de sua
formação.
É obvio que tais indagações só nos indicam que as problemáticas são bem
mais complexas e profundas do que poderíamos debater nesta narrativa. Assim, a
polêmica dos debates acerca da produção do saber histórico escolar, o
conhecimento histórico e as diversas questões que permeiam o tema da
transposição didática, da cultura escolar e do saber docente, a priori são por nós
utilizadas sucintamente para expor ao leitor como tais reflexões influenciam a
produção e definição de conceitos em torno das pesquisas sobre ensino de história
e das práticas didáticas, não podendo nesse sentido passar despercebido por nós
tais considerações.
Acreditamos que ambas as teorias tem pertinência e é por conta disso, que
hoje os principais estudiosos ainda têm problemas em superar ou “tomar partido”
em relação a um local nesse debate. Entretanto, acreditamos que as pesquisas
acerca da transposição didática têm muito a contribuir ao ensino de história, mas é
evidente que um número maior pesquisares brasileiros precisam se deter e
aprofundar a questão no campo da História e dos problemas para o ensino de
história, dentro das especificidades da educação nacional.
As criticas a teoria da transposição didática precisam possibilitar a
construção de projetos de pesquisas concretos e comprometidos como
Juliana da Costa Ramos
75 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 68-85.
alternativas, o conceito de cultura escolar tem nos últimos anos se apresentado
como um tema complexo ao qual se debruçam cada vez mais pesquisadores e
entusiastas com vias a contribuir para um projeto qualitativo no campo do
entendimento da comunidade escolar e suas especificidades.
Assim, nossa escrita busca perceber como tais enunciados relevam
orientações específicas ao Ensino de História e implicam na utilização de métodos
e conceitos chamados inovadores no sentido em que repensam as práticas
didáticas sobre os novos paradigmas que são apresentados cotidianamente.
Para que assim possamos debater a relação entre ensino de História e
educação não-formal e como essa interação pode ser percebida como produtora de
saberes e formas criativas, críticas e inovadoras de ensinar e aprender história a
partir desta aproximação feita entre a educação formal e não-formal, fazendo uma
analise não apenas do método didático de utilização das linguagens alternativas,
mas percebendo que teorias educacionais surgem nesse campo ainda recente de
pesquisa.
Criticas ao modelo “tradicional” de ensino de História
Uma pergunta básica deve ser feita: o que se define como ensino
tradicional de História? O senso comum tende a atribuir ao termo tradição, quando
associado ao ensino, a algo retrógrado, atrasado em sua natureza, no caso
específico do ensino de História observamos que este ensino dito tradicional, está
fortemente vinculado a representação marcada sob a orientação teórica da escola
metódica, e/ou positivista, no que diz respeito ao modo de produzir e difundir o
conhecimento histórico.
Essa corrente a qual todo o professor de História é apresentado, ainda no
início de sua graduação, é marcada pelo uso de fontes oficiais, possui uma
construção narrativa, grosso modo, baseada em fatos de natureza estatal, ou
religiosa, e no século XIX é marcada pela tentativa de legitimação da História e de
modo geral das humanidades no panteão das ciências a partir da apropriação dos
métodos das ciências naturais. Essa tendência permanece no Brasil até meados do
século XX, como base conceitual do que se deve aprender em História.
Ensino de história e educação não-formal
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 68-85.
Outro elemento que deve ser considerado ao problematizar a questão da
tradição no ensino de História diz respeito ao método de ensino. Até meados da
década de 1980 o ensino ainda se estruturava no exercício da repetição e
memorização dos fatos, entretanto alguns elementos já eram amplamente
utilizados em sala de aula, como o uso de produções cinematográficas, de imagens
amplamente difundidas, principalmente nos livros didáticos, as visitas guiadas a
museus e espaços culturais tais como bibliotecas, teatros, espaços voltados à
ciência, entre outros.
Nesse momento verificamos que a utilização desses elementos lúdicos e
motivacionais no ensino ainda não possuía o aporte teórico necessário,
pouquíssimos eram os profissionais e intelectuais que se debruçam em torno do
tema ainda embrionário, sobre o uso de linguagens alternativas ao ensino de
História.
Muitas mudanças também podem ser visualizadas nos currículos
escolares, após o fim do regime militar que instituiu alterações no sistema de
ensino, principalmente no que diz respeito ao ensino de História. Durante o
governo militar as estruturas curriculares visavam castrar desde a base da
educação a formação critica do individuo “descaracterizando as ciências humanas
como um campo de saber autônomo, passando a ser transmitidas como um
mosaico de conhecimentos gerais e superficiais da realidade social” (FONSECA,
2003, p. 20).
Esse quadro sofrerá transformações bruscas em meados da década de
1970, assim, com a revisão historiográfica, a inclusão de elementos da cultura,
também passa a ser inserida nos currículos de história e nas práticas didáticas.
Porém as mudanças nos padrões curriculares só se concretizam de fato na
década de 1980. Nos “tempos do repensar” a escola abandona o caráter
meramente reprodutivo que reporta os “valores e ideias da classe dominante, e o
ensino de história, como mero veículo de reprodução da memória do vencedor”
(IDEM, 2003, p. 20). Passando a ser vista como um lugar social, “um lugar de
produção socioeconômico, político e cultural [...] um meio de elaboração
circunscrito por determinações próprias” (CERTEU, 2007, p. 66).
Juliana da Costa Ramos
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O ensino de História se vincula à preparação dos cidadãos para a vida em
uma sociedade democrática e “o novo ensino de história [...] assume a
responsabilidade de formar o novo cidadão, capaz de intervir e transformar a
realidade brasileira” (FONSECA, 2003, p, 92). Ao se formular um novo modelo de
ensino de História formulam-se também a inclusão de novas práticas e linguagens.
Verificamos assim, a difusão do discurso que legitima a construção de uma
prática de ensino que permita aos indivíduos agirem de maneira crítica e
emancipada e a retomada de propostas já anteriormente realizadas por autores
como Paulo Freire, fazem com que essa aparente necessidade caminhe lado a lado
com pesquisas que buscam problematizar o modo pelo qual os professores
ensinam; já que se formulam novas demandas ao que a educação deve
proporcionar, é necessário repensar o quê e de que maneira está se ensinando.
Sobre isso:
Os estudos sobre os processos do aprender destacam o papel ativo dos sujeitos na aprendizagem, e especialmente, a necessidade dos sujeitos desenvolverem habilidades de pensamento, competências cognitivas. Isto traz implicações importantes para o ensino, pois se o que está mudando é a forma como se aprende, os professores precisam mudar a forma de como se ensina. O como se ensina, em princípio, depende do como se aprende. Para Castells, a tarefa das escolas e dos processos educativos é o de desenvolver em quem está aprendendo a capacidade de aprender, em razão de exigências postas pelo volume crescente de dados acessíveis na sociedade e nas redes informacionais, da necessidade de lidar com um mundo diferente e, também, de educar a juventude em valores e ajudá-la a construir personalidades flexíveis e eticamente ancoradas (HARGREAVES, 2001 p. 16).
Compreendemos assim que o ensinar história faz parte de um processo
acima de tudo político, onde as escolhas realizadas pelo educador e a nível maior,
pelo Estado, irão interferir na maneira pela qual os alunos se relacionam e
produzem o saber histórico. Não se trata de rememorar ou memorizar fatos e
personagens históricos, mas perceber as continuidades e descontinuidades
históricas e qual o papel dos sujeitos nestes contextos, para que o saber histórico,
seja escolar ou acadêmico, permita aos indivíduos atuar criticamente e
politicamente no meio em que vivem.
Ensino de história e educação não-formal
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 68-85.
Educação Não-Formal e Ensino de História
No trabalho com linguagens alternativas para o ensino de história o maior
impasse ainda se encontra na conceituação e definição sobre o que são
efetivamente tais linguagens. No decorrer das leituras percebemos que os
elementos definidos como linguagens alternativas são nomeadas de diversas
maneiras. No campo pedagógico à recorrência do termo recurso didático, em
contraposição ao campo do ensino de história em que percebemos uso do conceito
de “novos documentos”, além do termo “linguagens alternativas” para o ensino de
história. Sobre os recursos didáticos GAGNÉ apud PILETTI (2010 p. 149) os define
como “componentes do ambiente da aprendizagem que dão origem a estimulação
do aluno”.
De maneira geral percebemos que a utilização seja dos recursos didáticos,
seja dos novos documentos, até as linguagens alternativas, são ações sintomáticas
de uma mudança das mentalidades, que nos últimos vinte anos refletem mudanças
paradigmáticas no contexto educacional brasileiro.
Assim, a inclusão de temas transversais, de elementos culturais,
problemáticas do cotidiano e as aproximações entre educação formal e não formal,
durante aulas de História correspondem hoje a demandas vistas como frutos de
inquietações que vislumbram uma preocupação cada vez mais frequente com a
singularidade dos indivíduos e uma prática educativa integral e inovadora.
Tais mudanças conjecturam que o uso dos conceitos, das diferentes
abordagens e metodologias da educação não-formal, ao trazer a tona estímulos que
possibilitem aos estudantes se perceberem como agentes sócio-históricos, permite
diferentes formas de apropriação das problemáticas e conteúdos históricos.
Compreendendo a Educação não-formal como:
Todas as possibilidade educativas no decurso da vida do indivíduo, constituindo um processo permanente e não organizado. [...] a educação não-formal, embora obedeça também a uma estrutura e a uma organização (distintas, porém das escolas) e possa levar a uma certificação (mesmo que não seja essa a finalidade) diverge ainda da educação formal no que respeita à não fixação de tempos e locais e á flexibilidade na
Juliana da Costa Ramos
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adaptação dos conteúdos da aprendizagem a cada grupo concreto. (AFONSO. 1989, p.78).
Através do desenvolvimento de competências que proporcione aos alunos
realizar essa ponte dialógica entre o conteúdo histórico escolar e seu cotidiano, por
meio da apropriação das narrativas históricas vistas sob diversos panoramas. Tais
questões, além de trazer aos estudantes uma concepção mais crítica e mais
próxima a sua própria realidade; sana uma antiga preocupação baseada numa
perspectiva de interpretação histórica distanciada na qual os alunos não se
identificam com a história ensinada e proporciona a construção do conhecimento
histórico baseado na fruição, no prazer, na experiência e na troca.
A aprendizagem é tanto mais eficaz, quanto mais se possa realizar uma
experiência direta. Assim, as justaposições às metodologias e conceitos da
educação não-formal contribuem, ao proporcionar aos alunos, por meio das
experiências e aproximação didática com o cotidiano e com as ideias em sua
concretude, no desenvolvimento das habilidades cognitivas necessárias à
compreensão de conceitos possuidores de um maior grau de abstração e
subjetividade.
Assim, a utilização de produções cinematográficas, quadrinhos, imagens,
linguagens plásticas em diferentes contextos, são formas pertinentes de
abordagens metodológicas baseadas na prática da educação não-formal, pois este
tipo particular de prática educativa:
Considera e reaviva a cultura dos indivíduos nela envolvidos, incluindo educadores e educandos, de modo que a bagagem cultural de cada um seja respeitada e esteja presente [...] a fim de não somente, valorizar a realidade de cada um, mas indo além, levando essa realidade a perpassar todas as atividades. (VON SINSON Et All, 2007, p. 23)
Aprofundando questões referentes à identidade de grupos que por muito
tempo estiveram marginalizados no que se alude a aquisição e o exercício de
cidadania. O enfoque das práticas de ensino de história deve ser possibilitar os
diálogos entre “o saber, saber fazer e saber ser” (FREITAS, 2010, p. 191).
Buscamos, nesse sentido, perceber como as práticas em sala de aula
podem gerar elementos que extrapolem os muros da própria escola, contudo
Ensino de história e educação não-formal
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 68-85.
percebemos que pouco se desenvolve conceitualmente as competências
necessárias e talvez o mais importante, de que modo, a educação e em particular o
ensino de História, podem auxiliar o desenvolvimento de tais competências nos
alunos.
É fato que o papel dos professores mudou, na atualidade eles têm que lidar
não só com os conteúdos da disciplina história e com os aspectos metodológicos,
mas com o cotidiano da clientela escolar, em seus mais diversos contextos. Visto
que os modos de elaboração do saber escolar hoje são fortemente influenciados
pelos diversos meios de comunicação de massa, diferentes abordagens
audiovisuais e a interferência direta da internet. Essa perspectiva é reafirmada por
FONSECA (2003, p. 164):
O professor no exercício cotidiano de seu ofício incorpora noções, representações, linguagens do mundo vivido fora da escola, na família, no trabalho, nos espaços de lazer, na mídia, etc. A formação do aluno/cidadão se inicia e se processa ao longo de sua vida nos diversos espaços de vivência. Logo, todas as linguagens, todos os veículos e materiais, frutos de múltiplas experiências culturais, contribuem com a produção/difusão dos saberes históricos, responsáveis pela formação do pensamento, tais como os meios de comunicação de massa – rádio, TV, imprensa em geral -, literatura, cinema, tradição oral, monumentos, museus, etc.
Como concretamente incentivar o criticismo em sala de aula, ou a
autonomia? É possível algum tipo de avaliação sobre tais questões, quais são os
panoramas de julgamento sobre tais competências? Qual o papel do professor
nesse processo? Onde habita o seu limite? Constatando tais reflexões por meio da
observação da prática docente, verificamos o peso de tais indagações, percebendo
assim que teoria e prática necessitam de muita reflexão e esmero para que possam
se realizar de modo desejável.
As mudanças do conhecimento histórico acadêmico, a partir do trabalho
com novas fontes podem ser expressas nas salas de aulas pelo uso de novas
técnicas didáticas, que segundo ABUD (2005, p. 310) dentro do “processo de
aprendizagem as fontes se transformam em recursos didáticos, na medida em que
são chamadas para responder perguntas e questionamentos adequados aos
objetivos da história ensinada”. Deste modo:
Juliana da Costa Ramos
81 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 68-85.
A educação não formal pode abrir essa possibilidade e esse espaço nas suas relações educacionais [...] essa prática é importante quando se pensa em um processo educacional que priorize a transformação. [...] Não assumimos com isso que a educação não-formal tenha o papel de ensinar a criação, de ensinar a pensar, mas, se tem a intenção de transformar, ela tem o compromisso de favorecer e oferecer diferentes possibilidades de exercício de vivência de diálogos nesse perspectiva de criação de pensamentos divergente, opostos, contraditórios, diferentes, criativos, ousados. (GARCIA, 2005, p. 40)
Assim, os elementos teóricos e práticos no campo educação não-formal
proporcionam a reflexão sobre como a educação acontece de modo generalizado
em diversos ambientes por meio de experiências significativas de interação e
aprendizagem colaborativa. Nesse sentido fizemos uma breve prospecção sobre a
inserção das práticas pedagógicas da educação não-formal desenvolvidas em
instituições museais e como elas podem oferecer ao ensino de história excelentes
contribuições levando em consideração os seus encontros contemporâneos.
Tendo em vistas que os setores educativos nos museus já se encontram
consolidados na grande maioria das instituições, e em muitos casos são referências
pelos trabalhos educacionais desenvolvidos tanto para educação não-formal,
quanto aos setores formais de ensino. O que contribui para a diminuição do abismo
que coloca ensino formal e educação não-formal como conceitos opostos.
Isso nos leva a refletir sobre as práticas educativas que imbricam educação
formal e não-formal e efetivam a perspectiva de uma vivência educacional que
circula em vários espaços e interage com os mais diversos sujeitos a partir das
trocas sociais.
Encurtar, pois, as distâncias entre o ensino formal e o não formal é urgente e necessário. A vida, o conhecimento construído e reconstruído a cada momento na vivência do cotidiano deve ser um referencial essencial para a análise e o enriquecimento da prática pedagógica, proporcionando ganhos significativos para todos os sujeitos envolvidos no processo [...] (SANTOS, 2008, p. 32)
O espaço museal se insere nesse contexto pela sua capacidade de suscitar
experiências visto que ao entrar em contato com objetos musealizados o aluno é
provocado a compreender as dimensões materiais e simbólicas inerentes a esses
Ensino de história e educação não-formal
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 68-85.
bens, entretanto é preciso ter em mente que àquele artefato exposto aos olhares
curiosos é só o ponto de partida para a prática pedagógica.
Afinal, “ninguém vai a uma exposição de relógios antigos para saber as
horas. Ao entrar no espaço expositivo, o objeto perde seu valor de uso [...] quando
perdem suas funções originais [...] tais objetos passam a ter outros valores”.
(RAMOS, 2004, p. 19)
De tal perspectiva emerge o conceito que Francisco Régis Lopes Ramos
(2004) nomina como pedagogia do objeto, prática que utiliza o objeto como
gerador de provocações acerca das mais diversas situações problemas e insere o
museu como “o lugar onde os objetos são expostos para compor argumentos
críticos” (Ramos 2004, p. 20).
Estando atento para a necessidade da prática reflexiva na qual deve se
desenvolver o ato educativo, baseado no conceito Freiriano de leitura de mundo, é
que o autor ressalta a necessidade de aprendermos a leitura dos objetos, assim, “se
aprendemos a ler palavras, é preciso exercitar o ato de ler objetos, de observar a
história que há na materialidade das coisas” (IDEM, 2004, P. 20-21).
Tais reflexões, não só compreendem os espaços culturais, mas o ensino de
história também reformulou suas práticas e seus objetos, o diálogo entre o museu
e o ensino de história é cada vez mais caro a professores e alunos. Dentre tantas
possibilidades didáticas destacamos o uso do patrimônio cultural, em particular
dos museus, no ensino de história por sua contribuição à descentralização da
narrativa história e por oportunizarem, dentro dos conceitos meta-históricos,
aproximações com a história local, aquela vivenciada no e pelo entorno escolar.
O que estimula não só os alunos, mas a comunidade escolar, os pais,
professores, técnicos, e demais profissionais da educação a partilharem e
problematizarem suas experiências culturais e históricas, ligados pelo sentimento
identitário de pertença e de representatividade gerados a partir da experiência
patrimonial/museal.
Juliana da Costa Ramos
83 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 68-85.
Tal como afirma, Ramos (2004, p.24) “estudar a história não significa saber
o que aconteceu e sim ampliar o conhecimento sobre a nossa própria
historicidade”. Essa história que pode ser percebida no primado do olho sobre o
objeto museal, artefato que personifica as práticas sociais desenvolvidas através
do tempo, materializado através da experiência da educação não-formal.
Assim, uma visita ao museu realizada durante as práticas de ensino de
história assume o compromisso meta-histórico, ou seja, extrapola a própria
finalidade da história ensinada dando margem à criação não apenas de um recurso
didático, mas de uma experiência social.
Reiterando-se a atualidade de Paulo Freire e da pedagogia da pergunta, as
questões suscitam reflexões, os sujeitos são instigados a pensar as situações
problemas, e elaborar não só em soluções absolutas, mas os questionamentos que
deslocam o pensamento para abismos onde o conhecimento é produzido a partir
da reflexão e da troca.
Esta aprendizagem provocativa, onde “a partir do vivido, é gerado o “debate
de situações desafiadoras” em que nas próprias “situações existenciais” são
germinadas “situações problemas”.” (Freire apud Ramos, 2000, p. 34).
Ao instituir a dúvida como algo imperativo nas práticas pedagógicas, dessa
reflexão “o que importa para o ensino de história não é “ir ao museu”, mas usar a
pedagogia do objeto no museu e em muitos outros territórios”. (IDEM, 2000, p. 48).
Reafirmando assim, os diálogos contemporâneos possíveis entre o ensino de
história e os espaços de educação não formal tais quais os museus, por estes
contribuírem de modo inexorável na educação integral e provocativa dos
indivíduos.
REFERÊNCIAS
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ENSINO DE HISTÓRIA: REFLEXÕES SOBRE O ESTÁGIO SUPERVISIONADO E SUA PRÁTICA1
Joedson da Silva Andrade2
Regina Lúcia Meneses de Souza3
Resumo: Este artigo visa discutir o ensino de História, sua prática e a importância do estágio supervisionado para construção da pesquisa. A disciplina tem sido constantemente repensada com novas teorias e abordagens. Os novos debates não têm alcançado as salas de aula, razão de constantes críticas dos alunos a disciplina, taxada como “decoreba”, e sem relevância. O ensino de História requer esforço múltiplo e continuado dos profissionais da área. Novas possibilidades tornam-se necessárias, uma vez que a disciplina tem perdido espaço no âmbito escolar. Refletir sobre o papel do profissional de História na escola e na universidade torna-se necessário, uma vez que estas instituições estão intimamente ligadas. Nesta dinâmica permite juntar sujeitos na mesma tarefa: pensar novas práticas em favor da responsabilidade social que exercem. Palavras-chave: Ensino de História. Universidade. Estágio Supervisionado.
Abstract: This article discusses the teaching of history, its practice and the importance for supervised construction of the research. The subject has been constantly reviewed with new theories and approaches. The new debates have not reached the classrooms, because of constant criticism of the student’s subject, billed as "memorize" and irrelevant. The teaching of history requires multiple and sustained effort of professionals. New possibilities become necessary, once the discipline has lost ground in the school. Reflect on the role of the training of history in the school and university becomes necessary, since these institutions are closely linked. Let’s join this dynamic character on the same assignment: to think new practices in favor of the responsibility social that perform an activity.
Key-words: Teaching of History. University. Traineeship Supervised.
O debate sobre o ensino de História requer uma análise reflexiva sobre o
que ocorre nas salas de aula. Nesse contexto, faz-se necessário refletir sobre o
1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 18/11/2013.
2 Graduando em História pela Universidade de Pernambuco – Campus Petrolina. E-mail: [email protected]. Trabalho orientado pela Profª. Esp. Zélia Almeida.
3 Graduanda em História pela Universidade de Pernambuco – Campus Petrolina. E-mail: [email protected].
Joedson Andrade/Regina Souza
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 86-97
papel do professor, sobre como tem se posicionado frente às dificuldades do
ensino. Ser professor exige: dedicação, empenho, formação continuada e amor à
profissão. “Um professor mal preparado e desmotivado não consegue dar boas
aulas nem com o melhor dos livros.”. (KARNAL, 2010, p. 131). Também, “é preciso,
neste momento, mostrar que é possível desenvolver uma prática de ensino
adequada aos nossos tempos (e alunos): rica de conteúdo, socialmente responsável
e sem ingenuidade ou nostalgia”. (PINSKY e PINSKY, 2007, p. 19).
O debate sobre novas práticas de ensino de História é frequente, dentro da
universidade. O professor de História tem à sua disposição múltiplas formas de
abordar o conhecimento histórico. Porém, é preciso que tenha claro o quê e como
ensinar. O professor precisa ter uma meta, pois é comum vermos os discentes
reclamarem que a história, para eles não tem “sentido”. O campo da História é
muito subjetivo, no entanto, tornar a compreensão possível, (com inúmeras
interpretações) é tarefa de um professor preparado para o exercício da função.
Quando o profissional não transforma o conhecimento, não rompe as dificuldades
do ensino, este não exerce seu papel. Um bom mestre, precisa “saber fazer bem”.
(RIOS, 2001, p. 62).
O debate sobre novas abordagens é sugerido de vastas opções. Ensino de
História por conceito, quebra de paradigmas e desconstrutivismo. Pensar História
e desenvolvê-la exige muito mais que teorias. Têm de haver uma inter-relação das
instituições de ensino, assim as possibilidades da doutrina se tornar realidade
serão aumentadas.
A pesquisa torna o ensino vivificado, atuante, num contínuo processo de construção – desconstrução – reconstrução e a extensão é a aplicabilidade do conhecimento, que é fruto desse processo, numa realidade concreta que, ao mesmo tempo, motivou-o e o torna relevante. Em síntese, mesmo compreendendo seu caráter mais teórico-prático, a pesquisa consegue vincular, dialeticamente, pensamento e ação, mantendo um diálogo ativo entre os três pilares acadêmicos: pesquisa – ensino – extensão. (CASTELO BRANCO, 2004, p. 31).
As discussões no meio acadêmico, a cerca da vivência e experiências
adquiridas na sala de aula, no decorrer dos estágios supervisionados, faz menção
as principais dificuldades do ensino, que conflitam com os saberes e práticas
Ensino de história
88 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 86-97
adquiridas na academia. Mais que uma inovação do ensino, é preciso uma escola
apta a receber estas propostas, daí a necessidade das teorias acadêmicas
interagirem nos espaços escolares da educação básica. “O estágio já se encontra
presente em práticas de grupos isolados. No entanto entendemos que precisa ser
assumido como horizonte ou utopia a ser conquistada no projeto dos cursos de
formação” (PIMENTA, 2011, p. 34).
É necessário ter em mente, que não se trata de romper com o modelo
tradicional, ou quebrar paradigmas. A prática do ensino de História perpassa por
muitas reflexões. Não existe um modelo a seguir, é possível transformar a História
Antiga em uma abordagem prazerosa e crítica, porém o professor é um elemento
chave, que deve agir como pesquisador e observador refletindo sobre suas ações
dentro da sala de aula.
Logo, “os professores constroem os seus conhecimentos profissionais,
conhecimentos de ordem prática, quando buscam conexões entre o pensamento e
a ação”. (SILVA, 2009, p. 102). Dessa forma a prática é relevante e estar
condicionada a forma como o conhecimento será passado, tanto ao discente na
academia, quanto ao aluno. O sistema de ensino superior nas licenciaturas no
Brasil, dentro do segmento de estágios supervisionados conta com inúmeras
deficiências, que acabam refletindo no despreparo dos docentes. A falta de
acompanhamento ao estagiário no âmbito de iniciação de sua experiência, na
docência juntamente com a desvalorização da profissão, acaba acarretando ao
futuro professor de história sequelas.
Ação será à prática, quer e flexionada no conhecimento adquirido, lançará
mãos ao fruto do ensino de qualidade a ser transpassado. “Entretanto, a
compreensão desse conhecimento prático vai depender também da maneira como
o professor compreender seu lugar no contexto de trabalho”. (SILVA, 2009, p. 102).
A essência da docência resume num conjunto de atribuições, que em primeiro
lugar é necessário reconhecer a função e o ambiente a qual será semeado o
conhecimento. Se o professor de historia se reconhece na profissão ou no oficio
certamente terá ferramentas a operar os saberes teóricos e práticos.
Infelizmente a realidade do ensino de história tem sido posto no rol de
diversas problemáticas, que circunda, tanto teoria, quanto prática, sendo o
Joedson Andrade/Regina Souza
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 86-97
tradicionalismo e apego ao livro didático agentes que em partes impossibilita a
implementação de novas ferramentas no ambiente de ensino. Os estagiários como
perceptores de tais problemas, devem munir-se de novas técnicas e metodologias
que visem à mudança dentro das temáticas a serem trabalhadas.
Segundo Marilda da Silva, “Nesses ambientes, os futuros professores têm a
oportunidade, e o dever, de angariar instrumentos teóricos imprescindíveis ao
aprendizado da prática docente. Contudo, não aprendem a praticar o ofício”.
(SILVA, 2009, p. 105). Na realidade é vasto o percentual de docentes e futuros
docentes que saem da universidade e não se reconhece no oficio, e assim sendo
apenas mais um no sistema problemático do ensino da disciplina de história.
Ora, se fazer história é utilizar-se de acontecimentos passados, que
trazidos para o presente através da historiografia com as diversas interpretações
de um fato, nos caracteriza ao oficio de historiador, então devemos ser não
somente agentes reprodutores e sim construtores do conhecimento. Segundo
Gilberto Freyre, “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as
possibilidades para a sua própria produção ou a sua construção”. (FREYRE, 2009,
p. 27). O futuro professor deve incentivar as discussões de como foram construídos
os diversos pontos de vista a cerca de acontecimentos históricos, e assim levantar
questões a serem pesquisadas.
Existe uma série de possibilidades de se trabalhar os conteúdos da
disciplina: jornais, revistas, cordel, documentários, fotografias, documentos
antigos. Boa parte deste material pode ser levado a sala de aula, quando não
houver possibilidades, existe museus, dioceses que guardam documentos antigos.
São poucos os professores que utilizam de metodologias que visam enriquecer o
ensino de história. Documentários, filmes, debates e pesquisas de campo, são
ferramentas importantíssimas para difusão do conhecimento, levantamento de
hipóteses e formação de novos pontos de vista, a cerca dos acontecimentos
historiografados. A pesquisa de campo, além de estimular o aluno provoca nele o
instinto investigativo.
Nesse aspecto, o estágio deveria oferecer além da prática a pesquisa. O
futuro profissional desenvolveria atitude investigativa, envolvendo reflexão que é
fundamental para o desenvolvimento da práxis. Percebemos a importância da
Ensino de história
90 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 86-97
pesquisa, pois “não há prática sem pesquisa”. (FREYRE, 2009, p. 13). Ensinar
requer o precedente da pesquisa, a universidade deve possibilitar a pesquisa para
o desenvolvimento das teorias. O autor transparece o quanto é fundamental
pesquisar, a pesquisa possibilita o educar, como também a educação de si, ou seja,
um enriquecimento teórico, se não, “o profissional fica reduzido ao “prático”: não
necessita dominar os conhecimentos científicos, mas tão somente as rotinas de
intervenção técnica deles derivadas.” (PIMENTA, 2011, p. 34).
A pesquisa é fundamental, porém o estágio precisa condizer com a
realidade das escolas. Aprender a ensinar requer prática, pesquisa e uma análise
da realidade vivenciada, teorias e mais teorias de nada servem se não condizem
com a realidade concreta. Como mudar o quadro atual do ensino, se as unidades de
produção do conhecimento estão condicionadas a soltar profissionais no mercado,
não se preocupando com a sua função social.
Assim, os estágios de maneira geral, acabam por se configurar em atividades distantes da realidade concreta das escolas, resumindo-se muitas vezes, a mini-aulas na própria universidade. O projeto de estágio, por sua vez, fica abreviado a um agregado de atividades técnicas e burocráticas, viagens, visitas etc. sem fundamentação e sem nexos com as atividades e as finalidades do ato de ensinar. (PIMENTA, 2011, p. 101).
O professor de História tem a sua mão muitas possibilidades de abordar o
conhecimento. Porém, o comodismo, desânimo e a forma de passar a disciplina
têm sido muito parecidos nas escolas: questionários imensos e respostas
saturadas. “Um professor de História deve tentar, na medida do possível, estar
atento aos lançamentos da sua área”. (KARNAL, 2010, p. 131).
Apesar de novas perspectivas e metodologias o ensino de História nas
salas de aula ainda não se adequou as expectativas do alunado de hoje. É preciso
repensar o ensino de história e refletir sobre a relação entre quem ensina e quem
aprende, a prática educativa tem de ser constantemente refletida. Ensinar História
não é tarefa fácil, requer esforço múltiplo dos vários profissionais da educação,
razão da necessidade urgente da interação das instituições responsáveis pela
produção do conhecimento histórico.
Joedson Andrade/Regina Souza
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É inegável o papel transformador que a disciplina de História exerce, no
entanto torna-se necessário saber, se esse conhecimento está atingindo de fato o
alunado, se a disciplina tem sido renovada, com novas propostas para as salas de
aula. O acompanhamento por parte da universidade permite uma melhoria na
prática educativa, além de tirar as teorias do papel para realmente modificar a
realidade da educação básica. Experimentar, trazer as teorias para os espaços
escolares é de fato trabalhar com novas possibilidades buscando alcançar os
sujeitos para transformar a realidade da educação e do ensino de História.
A história é também uma construção dinâmica, isto quando se tem um
profissional realmente preparado para o exercício da função. Nesse contexto é
possível ajustar-se as necessidades que surgem buscando transformar com
dedicação e empenho os espaços escolares.
A realização na sala de aula da própria atividade do historiador, a articulação entre elementos constitutivos do fazer histórico e do fazer pedagógico. (...) Fazer com que o conhecimento histórico seja ensinado de tal forma que dê ao aluno condições de participar do processo do fazer, do construir a História. Que o aluno possa entender que a apropriação do conhecimento é uma atividade em que se retorna ao próprio processo de elaboração do conhecimento. (SCHMIDT In BITTENCOURT, 1998, p. 54-66).
O aluno vê a disciplina de História como dada e acabada, muitas vezes não
consegue interpretá-la como instrumento capaz de revolucionar e trazer novas
perspectivas, essa é mais uma razão de intervir e modificar a disciplina (dentro e
fora da universidade), para que a mesma tenha o valor que merece. A História
muito mais que uma ciência é dotada de várias significações e merece ser
compreendida, para que assim possa ganhar as mentes e trazer a revolução para as
escolas.
Se não pensarmos na importância e ressignificação da disciplina dentro
do âmbito escolar, daqui a algum tempo poderá a mesma perder o espaço que lhe é
dado, poderá esta “ciência”, tão magnífica, não ocupar um lugar nas mentes dos
alunos. A História vem mudando constantemente, mas não tem sido compreendida
Ensino de história
92 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 86-97
como deveria, pelo menos é o que tem mostrado a realidade vivenciada nas
escolas.
Mesmo permanecendo pacificamente fiel a seu glorioso nome helênico, nossa história não será absolutamente, por isso, aquela que escrevia Hecateu de Mileto; assim como a Física de lord Kelvin ou de Langevin não é a de Aristoteles. Seguramente, desde que surgiu, já há mais de dois milênios, nos lábios dos homens, ela mudou muito de conteúdo. (BLOCH, 2001, p. 51).
A História mudou de fato, se reconfigurou e hoje possui um vasto
campo de possibilidades. Questiona-se, se este conhecimento humano,
amplamente importante, está reduzido à academia, ou se de fato tem ocupado as
salas de aula. A História é uma disciplina referencial, mas precisa de novos
horizontes e de ser abordada com qualidade por quem exerce o papel de educador,
para tanto, uma nova proposta nos espaços que produzem e que difundem o
conhecimento faz-se necessário.
Outro quesito importante é a formação continuada, esta oferece novas
possibilidades, um revigoramento e até mesmo uma renovação do profissional. O
incentivo para os educadores da educação básica é pouco ou inexistente, no
entanto o profissional nunca deve “morrer profissionalmente”, utilizar-se de novas
leituras é indispensável, uma vez que hoje temos uma gama de novos conteúdos e
métodos à disposição.
A teoria, ou mesmo as instituições de ensino superior deveriam está mais
próximas do local onde os seus profissionais atuam, incentivando a pesquisa e o
desenvolvimento das teorias para um ensino melhor. Pensando assim, esses
espaços agiriam juntos em solucionar os problemas da educação básica, pois não
se pode ensinar bem, se os espaços do conhecimento não se relacionam. “De pouco
ou nada adiantará defendermos a necessidade de os formadores de professores
serem pesquisadores em educação, se as pesquisas em educação se renderem, ao
“recuo da teoria”. (DUARTE, 2003. p. 620).
Os espaços acadêmicos de formação de professores devem ter como
objetivo a implantação de metodologias especificas para o ensino de história,
melhorando assim o conhecimento e a prática educativa. Este processo permite
Joedson Andrade/Regina Souza
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 86-97
uma forma de interação do futuro docente com a realidade escolar, permitindo ao
mesmo interagir e melhorar esses espaços o que trará benefício para as
instituições de ensino e para a sociedade.
O estágio supervisionado implantado de maneira adequada permite
inculcar valores e transformar os professores em investigadores, essa prática
contribui também para à construção da identidade profissional. A legislação sobre
o estágio no Brasil também carece de ser revista, uma vez que a pesquisa (tão
importante para a prática docente) comparece apenas na atividade docente, como
foco no processo de ensino e de aprendizagem, e não no processo de formação dos
professores.
Um revigoramento da disciplina de História depende de um esforço
múltiplo de professores e difusores de novas teorias. É necessário também
reflexões sobre o livro didático, este ás vezes, é duramente criticado, porém
indispensável para os docentes, é o norte das suas abordagens. Os livros didáticos
precisam ser utilizados de forma correta, permitindo ao professor uma orientação
do quê ensinar e para quê. “Os livros didáticos são “os mais usados instrumentos
de trabalho integrantes da “tradição escolar” de professores e alunos, faz parte do
cotidiano escolar há pelo menos dois séculos” (BITTENCOURT, 2011, p.299).
O livro é parte da cultua e da educação, logo seria estranho, se não
houvesse livro didático, pois, os recursos tecnológicos oferecidos nas escolas ainda
são insuficientes. Além disso, a série de mídias disponíveis para o alunado, sem a
devida percepção ou utilidade, não trazem para o ensino novas concepções para o
saber.
Sem dúvida que a informação chega pela mídia, mas só se transforma em conhecimento quando devidamente organizada. E confundir informação com conhecimento tem sido um dos grandes problemas de nossa educação...Exatamente porque a informação chega aos borbotões, por todos os sentidos, é que se torna mais importante o papel do bom professor. (KARNAL, 2010, p. 22).
Assim, o livro é necessário, porém o professor deve se apegar a outros
meios, de forma a tornar o ensino de História mais prazeroso. Nesse contexto, a
disciplina oferece muitas possibilidades, mais exige um pouco mais de inquietude
Ensino de história
94 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 86-97
dos seus propagadores. A história na sala de aula deve ser encarada como um
desafio constante, a disciplina assim exige. O professor de história deve ser dotado
de conteúdos, mais saber ensinar é fundamental, está apito a novas propostas é dar
um passo em favor de uma história mais prazerosa, que atenda aos anseios da
sociedade do seu tempo, é o que se espera de um bom profissional da área.
O ensino de história deve ser pensado de forma a atingir um mundo em
transformação. Essa busca deve ser constante e influenciar os vários espaços do
saber. Pensar na formação docente, na escola, na universidade como espaços
interligados é buscar uma ampliação e melhoria do ensino, tanto de Historia, como
de outras disciplinas. A melhoria só virá com novas propostas, com quebra de
paradigmas, com união entre as instituições de ensino. No Brasil é fácil perceber o
abismo entre Universidade e escola, uma parte da população sequer tem referência
sobre o papel da universidade na transformação da sociedade, fica evidente a
necessidade de desburocratizar esse espaço, aproximá-lo tanto dos cidadãos como
das unidades de ensino básico.
O livro didático não é visto como referência para o ensino apenas pelos professores, mas também pela sociedade, ou seja, pelos pais e pelos próprios estudantes. Dessa forma, o livro adquiriu com o passar dos tempos um status dentro da escola e do sistema educacional, que o coloca em destaque na prática dos professores. (SCHMIDT In BITTENCOURT, 2004, p. 170).
O ensino sem o livro didático ficaria fragmentado, pois assim como o
professor, o livro auxilia na produção do conhecimento. O livro serve para
acompanhamento de conteúdos ministrados. Com o descaso do governo para o
sistema educacional, muitas instituições estaduais ou municipais acabam ficando
sem acesso ao livro didático. A falta dos livros gera logo inquietações, pois a
comunidade escolar em geral sente a falta que o livro faz. “o livro didático de
História exerceu e, ainda na medida do possível, exerce um papel fundamental no
ensino de História, pois é subsídio teórico para a construção dos saberes históricos
na sala de aula”. (SCHMIDT In BITTENCOURT, 2004, p. 170). É importante
ressaltar, que o livro está condicionado ao modo como o professor utilizará junto a
outras ferramentas no processo de ensino.
Joedson Andrade/Regina Souza
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 86-97
Apesar das dificuldades encontradas no âmbito das experiências, o futuro
docente se encontra dentro de um triangulo (universidade, escola e estágio). Este
constitui a base para a boa formação, quando se tem a visão da realidade e o
reconhecimento da diferença, que enquanto agente produtor do saber pode
contribuir de forma significativa para melhoria do ensino de história.
Nesse embate entre universidade, escola e estágio, a experiência mostra
uma realidade muito diferente da teoria. Como futuros docentes, percebemos que
a sala de aula é um espaço que precisa ser repensado e aproximado da
universidade. Muitas vezes a teoria não alcança os sujeitos, está restrita a
academia. Trazer novas estratégias para melhorar o ensino, requer uma
reconfiguração das estruturas de ensino como todo. Melhorar o ensino de História,
não depende somente de novas abordagens e da utilização de novas mídias, ou do
professor, depende sim, de romper com muitos padrões pré-concebidos que
dificultam a difusão do conhecimento.
O professor exerce o papel central na transmissão do saber histórico,
portanto ter uma boa formação, baseada na pesquisa, consiste em preparar um
profissional para os desafios que vem surgindo, é latente a necessidade de mudar a
realidade na formação dos profissionais de educação. A reorganização das práticas
de formação deve ser constantemente repensada pela universidade e pelos que
produzem as legislações que regem a formação de professores. A construção da
identidade profissional está diretamente ligada entre teoria e prática, o estágio
supervisionado é um espaço de mediação reflexiva entre universidade, escola e
sociedade. O estágio tem de ser reflexivo e não reduzido a uma orientação, só
assim irá levar em conta a prática como ponto de partida e de chegada,
possibilitando a construção do saber histórico em suas dimensões, contemplando
sujeitos engajados na mesma tarefa: transformar o ensino de história numa
abordagem prazerosa e consequente, modificando a visão do alunado em relação à
disciplina.
Assim, o ensino de história perpassa por várias questões, é importante
refletir sobre as práticas e o ponto de partida para uma análise construtiva do
saber histórico. Gestões, Professores, escolas e universidades são propagadores do
conhecimento, estes devem firmar um compromisso com o educar e ensinar de
Ensino de história
96 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 86-97
forma a transformar a realidade. O ensino de história possibilita uma revolução,
porém as dificuldades encontradas nas salas de aula ainda dificultam a
compreensão da disciplina, seguramente mal interpretada. Transformar o ensino
de história depende também de uma mudança radical na estrutura educacional
brasileira.
BIBLIOGRAFIA BITTENCOURT, Circe. Ensino de História: fundamentos e métodos. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2011. CASTELO BRANCO, Uyguacira Velôso. A difícil arte de ensinar História. In: FLORES, E. C.; BEHAR, Regina (Org.) A formação do Historiador: tradição e descobertas. João Pessoa: Universitária, 2004. CONTRERAS, José. A autonomia de professores. São Paulo: Cortez, 2002. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia – Saberes necessários a pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra, 2009. FONSECA, Selva Guimarães. Didática e prática de ensino de História. 11 ed. Campinas/SP: Papirus editora, 2003. PIMENTA, Selma Garrido. Estágio e docência. São Paulo: Cortez, 2011. KARNAL, Leandro (Org.). História na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2007. RIOS, Terezinha Azeredo. Ética e competência. 11. Ed. São Paulo: Cortez, 2001. SCHMIDT, M. A. A formação do professor de história e o cotidiano da sala de aula. In: BITTENCOURT, Circe. O saber histórico na sala de aula. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2004. SILVA, M. Complexidade da formação de professores: saberes teóricos e saberes práticos. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. .
Joedson Andrade/Regina Souza
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ESCOLA, ENSINO E TECNOLOGIA: A OFICINA PEDAGÓGICA “COMUNICAÇÃO TEM HISTÓRIA: MUITO ALÉM DO BATE-PAPO”1
Marcella Albaine Farias da Costa2 Maria Perpétua Baptista Domingues3
Resumo: Este texto tem por objetivo pensar a interface entre a escola, o ensino de História na educação básica e as novas tecnologias da informação e da comunicação (NTICs), tendo como pano de fundo as demandas contemporâneas de um mundo “hibridamente tecnologizado” que impõem diversos desafios e novas possibilidades. Como sabemos, estamos imersos em uma realidade saturada por (novas) tecnologias, dotadas de potencialidades, mas também de limitações. Assim, não são raras as indagações do tipo: qual é o papel da escola neste novo panorama de incertezas? Como historiadores e professores de História, pensamos: como o ensino de História tem dialogado com essas questões? Este estudo pretende responder a tais perguntas, a partir da análise de uma experiência pedagógica vivenciada no âmbito do Projeto “História para que te quero História”, do Programa de Iniciação à Docência (PIBID) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) / Colégio Estadual Antonio Prado Júnior – a Oficina pedagógica “Comunicaç~o tem História: muito além do bate-papo”. Tem-se como empiria os questionários previamente respondidos pelos alunos que objetivavam participar da Oficina.
Palavras-chave: Escola. Ensino de História. Tecnologia. PIBID.
Abstract: This text has as purpose to think the interface between school, History teaching in Basic Education and the new Information and Communication Technologies (ICTs), having as background the contemporary demands for a “technological hybrid” world that imposes several challenges and new possibilities. As we know, we are immersed in a reality saturated by (new) technologies, with its potentialities but also limitations. And so, not rare are indagations as: what is the school's role in this new panorama of uncertainties? As historians and History teachers, we think: how History teaching has dialogued with these questions? This study intends to answer these questions, through the analysis of a pedagogical experience developed in the Project “History for what I need History”, of the Programme for Teaching Initiation (PIBID) of the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ) / Antonio Prado Júnior State School – the pedagogical workshop 1 Recebido em 06/10/2013. Aprovado em 16/11/2013.
2Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-bolsista CAPES do Programa de Iniciação à Docência (PIBID) / História UFRJ. E-mail: [email protected] 3Graduada em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e supervisora do Programa de Iniciação à Docência (PIBID) / História UFRJ / Colégio Estadual Antonio Prado Júnior. E-mail: [email protected]
Marcella Costa/Maria Domingues
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“Communication has History: far beyond the chat”. As empiric material there are questionnaires previously answered by the students who intended to take part in the workshop.
Keywords: School. History teaching. Technology. PIBID.
A escola como tecnologia e a tecnologia na escola: tensões e desmembramentos
Enquanto deslizamos velozmente a bordo deste século XXI que tantas surpresas nos tem trazido, ostentando seus feitiços tecnológicos e seu estilo de vida globalizado, será que a escola se tornou obsoleta? É muito difícil responder a esta interrogação de modo categórico; talvez as possíveis respostas ainda sejam impronunciáveis. (...) O desmoronamento em curso é doloroso e desconcertante, mas, a partir dessa abertura, a visão se expande para outras direções. Em consequência disso, os caminhos podem se multiplicar (SIBILIA, 2012, p.9-10).
Os impactos decorrentes das novas tecnologias da informação e da
comunicação (NTICs) tem se tornado central no panorama discursivo e epistêmico
contemporâneos. As NTICs deixam suas marcas na esfera social, cultural,
econômica, política, etc. Mas, como a escola tem se portado e reagido a isso?
“Parece que assistimos a uma crise da escola na sua relaç~o com a
juventude (...)”, escreveu o sociólogo Juarez Dayrell (2007, p.1106). A antropóloga
argentina Paula Sibilia (2012), no seu livro Redes ou paredes: a escola em tempos de
dispersão, entende que há uma incompatibilidade entre o objetivo para o qual a
mesma foi criada (pautado no ideal normalizador e disciplinar) e os corpos e
subjetividades dos jovens do século XXI. “Há explicações históricas e
antropológicas para essa discrepância crescente”, afirma a autora:
(...) a escola é uma tecnologia de época. Ainda que hoje pareça tão ‘natural’, algo cuja existência seria inimaginável, o certo é que essa instituição nem sempre existiu na ordem de uma eternidade improvável. (...) o regime escolar foi inventado algum tempo atrás em uma cultura bem definida, isto é, numa confluência espaço-temporal concreta e identificável, diríamos até que recente demais para ter se arraigado a ponto de ser tornar inquestionável. De fato, essa instituição foi concebida com o objetivo de atender a um conjunto de demandas especificas do projeto histórico que a
Escola, ensino e tecnologia
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planejou e procurou pô-la em prática: a modernidade (Ibid.,p. 15-17).
Entendendo a própria escola como uma tecnologia (de uma temporalidade
que não é a nossa), procuraremos refletir, ao longo deste trabalho, sobre as
tecnologias na escola. “A evoluç~o social do homem confunde-se com as
tecnologias desenvolvidas e empregadas em cada época. Diferentes épocas da
história da humanidade são historicamente reconhecidas pelo avanço tecnológico
correspondente” (KENSKI, 2003, p. 20). Apesar do forte vínculo que há na
atualidade entre tecnologia e “novidade” (ARRUDA, 2009, p.17), considerando-se
principalmente os rápidos avanços da informática e da internet, constatamos que a
tecnologia está presente nas sociedades desde muito tempo – basta citar, no caso
dos ambientes escolares, o quadro-negro, o giz, o mimeógrafo, o caderno, o livro
didático, o computador etc.
A vivência no âmbito da iniciação à docência (PIBID / História / UFRJ) em
um colégio da rede estadual de ensino do Rio de Janeiro4 fez-nos perceber de
forma mais direta algumas tensões que envolvem este tema. Em que pesem as
diretrizes proibitivas de tecnologias nas salas de aula, como as expostas nos textos
da Lei Nº 5.222/2008 e da Lei Nº 5.453/2009, esses dispositivos invadem esse
espaço e, muitas vezes, concorrem com os professores. Que novos desafios são
postos a estes profissionais? Como eles lidam com uma geração de alunos tidos por
“nativos digitais” (PRENSKY, 2001)? Como ressignificar o papel da instituição
escolar, canalizando esforços para superar a condição de crise que anteriormente
discutimos? Pensemos por partes.
Em primeiro lugar, situamos as NTICs sempre no seu ininterrupto
movimento de obsolescência, como uma marca importante dos chamados “tempos
pós”. Gabriel (2008) os define como sendo “tempos de uma nova lógica cultural”,
“da centralidade da linguagem na produç~o do mundo ‘em significados’”, “de escola
sob suspeita”, “tempos de desigualdades”, “de ambivalência, de múltiplos sentidos
em movimento, de decisões na incerteza, de subversões, de hegemonias
contingenciais”.
4 Colégio Estadual Antonio Prado Júnior, situado na Praça da Bandeira.
Marcella Costa/Maria Domingues
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Se aquele lócus está “sob suspeita”, se é alvo de crítica e descrença de
tantos sujeitos da própria comunidade escolar (forças endógenas) e de outros
externos a ele (disputas exógenas), parece-nos claro que ele precisa rever sua
função. Defendemos, portanto, a noç~o da escola como “espaço de síntese”,
proposta por Colom Cañellas em 1994 e ainda muito atual:
(...) um espaço onde seja possível, em uma sociedade culturalizada pela informação das multimídias e pela intervenção educativa urbana, realizar a necessária síntese doadora de sentido e de razão crítica de todas as mensagens-informação acumuladas de forma diversa e autônoma através dos meios tecnológicos. Síntese e significado enquanto reordenação e reestruturação da cultura recebida em mosaico. Desta forma, conceber a escola como espaço de síntese é acreditar nela como estrutura possibilitadora de significado mais do que como estrutura possibilitadora de informação (COLOM CAÑELLAS, 1994 apud LIBÂNEO, 2010, p.29).
Em segundo lugar, é preciso apontar a diferença identitária salutar entre
“ser jovem” e “ser aluno” na atualidade. “A origem da palavra aluno nos dá as
primeiras pistas sobre a condição dos sujeitos que desempenham esse papel.
Alumnus vem do verbo latino alere, que significa alimentar”. Ent~o, continua
Gimeno Sacristán (2005, p. 136): “o aluno ser| alguém que est| se ‘alimentando’,
que é alimentado por outros e que deve sê-lo (...). O aluno é um ser carente (...) de
algo cuja posse consideramos beneficiá-lo sentindo-nos legitimados para
proporcionar tudo isso a ele”.
Ser jovem significa (ou pode significar, segundo o prisma de quem analisa)
justamente o oposto do que fora acima colocado; o jovem de hoje é aquele que
“curte”, que “compartilha”, é esta geraç~o “nascida digital”, que “est| ‘sempre
ligada’, conversando por celulares em toda parte, digitando mensagens
instantâneas e participando de redes virtuais ou reais” (DARNTON, 2010, p.13).
Em última análise, é aquele sujeito que questiona imposições, que está sempre na
}nsia do novo, que vive o fragmento temporal do “aqui e agora” e, principalmente,
que não suporta horas extensas “parado” nas salas de aulas unicamente ouvindo e
copiando o quadro – é um sujeito que, muitas vezes, não é capaz de distinguir
informação de conhecimento. “H| uma evidente necessidade de se teorizar a
juventude contemporânea como um fenômeno de impressionante complexidade e
Escola, ensino e tecnologia
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contradiç~o”, afirmam Bigum e Green (1995, p. 209) no texto “Alienígenas na Sala
de Aula”.
Ser aluno é – ou deveria sê-lo, segundo a lógica da cultura escolar – ser
seguidor de regras, ser jovem é contestá-las. Contudo, “jovens” e “alunos” ou
“jovens-alunos” precisam de uma educaç~o em termos de uma ciberliteracidade
(LIVINGSTONE, 2011).
Este conceito dá conta de um conjunto de habilidades básicas e avançadas,
relacionando aptidões individuais com práticas sociais, cruzando a fronteira entre
o conhecimento formal e informal. Com esta ideia, a autora mostra também como a
internet provoca demandas novas e específicas para a compreensão de seus
usu|rios, com “regras do jogo” que nem todos dominam; “dominar uma tecnologia
significa manejar não só o hardware, mas tudo o que a internet oferece a seus
usu|rios” (Ibid., p.13).
Diante disso: que novas identidades e subjetividades são forjadas no
âmbito da realidade escolar tecnológica e do ciberespaço? Defendemos uma
identidade docente não mais pautada na transmissão de um saber tido como
verdadeiro e absoluto, mas na representação da função de “animador da
inteligência coletiva dos grupos” – esta, segundo o filósofo Pierre Lévy (1998, p.28-
29), é “uma inteligência distribuída por toda a parte, incessantemente valorizada,
coordenada em tempo real, que resulta em mobilizaç~o efetiva das competências”;
“a base e o objetivo da inteligência coletiva s~o o reconhecimento e o
enriquecimento mútuo das pessoas (...)”. Da mesma forma, uma identidade e
subjetividade discente não mais guiada pela “passividade”, memorizaç~o e
reprodução de conteúdos (uma prática ainda muito presente, por exemplo, nas
aulas de História), mas sim pela possibilidade da cocriação em rede.
Libâneo (2010), no seu livro “Adeus professor, adeus professora?: novas
exigências educacionais e profissão docente”, fala, entre muitas outras questões, que
é preciso “educar para a mídia”. É imperioso, da mesma forma, que os professores
revejam suas práticas, tomando o devido cuidado para não cair em posições
extremas, quais sejam, de “tecnotimismo” ou de “tecnofobia”. Há aí um caminho do
meio que precisa ser perseguido.
Marcella Costa/Maria Domingues
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Entre o discurso escolar e o discurso multimidiático (“hibridamente
tecnologizado”) do tempo presente, existem tensões e desmembramentos que
ainda estamos longe de dar conta em sua totalidade. Como historiadores e
professores de História, pensamos: como o ensino de História tem dialogado com
todas as questões acima suscitadas? É sobre isso que pensaremos a seguir, a partir
de uma experiência pedagógica vivenciada no }mbito do Projeto “História para que
te quero História”, do Programa de Iniciaç~o { Docência (PIBID) da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Ensino de História e as tecnologias da comunicação: uma experiência
pedagógica
Diversos autores5 têm trabalhado a especificidade do saber histórico
escolar:
(...) a História escolar é reinventada em cada aula, no contexto de situações de ensino específicas, em que interagem as características do professor (...), dos alunos e aquelas da instituição (...), características essas que criam um campo do qual emerge a disciplina escolar [também em sua especificidade] (MONTEIRO, 2007, p. 106).
Segundo Gontijo, Magalhães & Rocha (2009, p. 14-16):
(...) a história escolar orienta-se por regras pedagógicas próprias, adequadas aos diferentes graus de formação dos alunos; pelas práticas aprendidas e pela erudição obtida mediante a formação intelectual/profissional do professor como historiador; pelos saberes adquiridos na vida e pela experiência em sala de aula. (...) o objetivo da história escolar é ensinar/aprender a pensar historicamente, rompendo com as naturalizações e abrindo o horizonte de expectativas.
O Projeto “História para que te quero História” (PIBID / História / UFRJ)
leva em consideração tal especificidade e, para tanto, busca fortalecer os laços
entre a universidade e a realidade escolar, valoriza o saber da experiência, o saber
pedagógico e o saber da disciplina de História e, corroborando o que foi dito,
5 Dentre os quais, GABRIEL (2006).
Escola, ensino e tecnologia
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conecta de forma sinergética o âmbito historiográfico e de pesquisa histórica ao
ofício do ensino – entendendo que produção de conhecimento não se dá apenas na
escrita e na pesquisa histórica, mas também no dia-a-dia da sala de aula que,
necessariamente, demanda do professor um diálogo com aquelas outras esferas.
Em última análise, o Projeto – coordenado pela Profª Drª Carmen Teresa Gabriel
(FE/UFRJ) – acredita ser um espaço dinâmico e diferenciado para o ensino da
História justamente por buscar a articulação horizontal entre essas diferentes
esferas e saberes.
Lembremos Almeida & Grinberg (2009, p.201), quando traçam um
importante diagnóstico sobre o ensino de História na atualidade, afirmando que
ele “vem passando por uma grande renovação nos últimos anos, principalmente no
que se refere { incorporaç~o de novos temas e novas abordagens (...)”. Todavia,
colocam as autoras, tal renovaç~o “ainda n~o encontrou grande correspondência
na metodologia de ensino da disciplina” – predominantemente expositiva e
conteudista.
O Projeto, no constante desafio da busca por temas que sejam instigantes e
que estejam na cadeia de significação histórica da realidade discente, tem como
metodologia a realização de Oficinas e Cineclubes, em duas escolas da rede
estadual de ensino do Rio de Janeiro: o CIEP Ayrton Senna e o Colégio Antonio
Prado Júnior.
A montagem e execução (em novembro de 2012) da Oficina pedagógica
“Comunicaç~o tem História: muito além do bate-papo”, deu-se por considerar –
conforme discutimos no primeiro tópico deste texto – que a escola, enquanto
espaço de conhecimento, deve estar atenta às novas demandas da sociedade. O seu
potencial estava justamente em trazer para o espaço escolar assuntos rotineiros do
cotidiano dos alunos, explorando os laboratórios de informática – espaços
frequentemente negligenciados pelo corpo docente. Então, propomos trabalhar a
comunicação, historicizando suas formas e usos de modo que os jovens refletissem
criticamente sobre as apropriações que fazem das novas tecnologias.
A equipe (composta por dez bolsistas, duas supervisoras e a coordenadora
geral) definiu o objetivo geral da atividade como sendo o de refletir criticamente
sobre os usos das ferramentas tecnológicas e de comunicação disponíveis no
Marcella Costa/Maria Domingues
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cotidiano, desnaturalizando as formas de comunicação contemporâneas. Os
objetivos específicos consistiram em:
Problematizar os consumos e formas de acesso à comunicação.
Explorar conscientemente as potencialidades e os limites oferecidos por estas
ferramentas para a formação do aluno.
Operar com a noção de simultaneidade, percebendo as diferentes
temporalidades dentro dos ritmos e durações dos processos de transformação das
formas de comunicação.
Explorar permanências do passado no nosso presente no que tange às formas
de comunicação.
A atividade dividiu-se em três dias. No primeiro, recepcionamos os alunos
no Laboratório de Informática, devidamente ambientado com músicas6 cujas letras
(entregues impressas aos alunos) versavam sobre comunicação. Foram emitidos
SMS aos participantes acusando o início da Oficina e, logo em seguida, fizemos a
dinâmica do telefone sem fio7 com a seguinte frase (registrada em papel): “A
Internet é soluç~o?”. Posteriormente, trabalhamos de forma dialogada a leitura de
diversas imagens projetadas nas telas dos computadores8 e explicamos as
próximas etapas. Realizamos o sorteio de cinco temáticas (afeto, viagem,
inventores / invenções, poder e memória) que os habilitariam à condição futura de
roteiristas (atividade do terceiro dia) e comunicamos aos discentes que eles
receberiam um CD com material de apoio e que teriam orientação por parte dos
bolsistas via Facebook (mediante um grupo fechado de contato).
6 Os trechos selecionados foram das seguintes composições: “Atoladinha” (Bola de Fogo), “Telegrama” (Exaltasamba) e “Pela Internet” (Gilberto Gil). 7 Os objetivos desta etapa especificamente foram: desconstruir a infalibilidade das novas tecnologias na comunicação e na transmissão de informações; problematizar a questão do ruído de comunicação e ressaltar a importância não só da maneira que o emissor se comunica, mas também de como o receptor recebe e interpreta mensagens. 8 Estas imagens continham formas inusitadas de comunicação (como lençol, pipa e fumaça), gráficos mostrando como os próprios alunos usam essas novas tecnologias (feitos a partir dos questionários que serão discutidos no próximo tópico) e montagens sobre os temas: afeto, viagem, inventores / invenções, poder e memória.
Escola, ensino e tecnologia
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O segundo dia consistiu na visita ao Museu das Telecomunicações /
Espaço Oi Futuro (Flamengo), relembrando aos participantes que eles deveriam
anotar dados que os ajudassem na próxima etapa – a visita contou com a mediação
de uma pessoa da equipe de educadores do Espaço. Por fim, os alunos tiveram seu
momento de criação e elaboraram apresentações nos computadores sobre os
temas abordados durante o processo de execução da Oficina (terceiro dia).
Apesar da riqueza desta atividade, cujo detalhamento este trabalho não
pôde dar conta, interessa-nos centrar no tópico a seguir nos questionários
previamente respondidos pelos discentes que objetivavam participar da mesma.
Esta escolha dá-se por considerá-los uma empiria igualmente rica e que irá nos
possibilitar o contato com o aporte teórico que anteriormente discutimos.
Tenhamos em mente que:
A informática e os computadores [além dos diversos dispositivos móveis da atualidade], segundo alguns especialistas de estudos de linguagens, revolucionaram ou estão revolucionando (...) as formas de conhecimento escolar, por sua capacidade e poder de estabelecer comunicações mais pessoais e interativas. As mudanças culturais provocadas (...) pelos computadores são inevitáveis, pois geram sujeitos com novas habilidades e diferentes capacidades de entender o mundo (BITTENCOURT, 2009, p. 107-108).
Análise crítica de um material empírico: retomando questões e fechando
conversa
Conforme dissemos, a realização da Oficina no Colégio Estadual Antônio
Prado Júnior foi precedida pela aplicação de um questionário cujos objetivos eram:
traçar um perfil dos alunos que se envolveriam na atividade proposta, entender o
uso que esses sujeitos fazem das NTICs, além de nos orientar no próprio
planejamento das próximas etapas.
Responderam voluntariamente alunos de turmas de 1º ano (1001, 1002,
1003), 2º ano (2011 e 2012) e 3º ano (3001, 3002, 3003 e 3004) do Ensino Médio,
formando por amostragem um perfil dos estudantes desta instituição de ensino
eclética, que recebe jovens dos mais diversos bairros da cidade do Rio de Janeiro e
sua região metropolitana.
Marcella Costa/Maria Domingues
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O questionário era composto por 12 questões, em sua maioria de múltipla
escolha. Os alunos foram comunicados sobre o fato da não obrigatoriedade em
respondê-lo, ainda assim as abstinências foram poucas. Após a tabulação dos
dados fornecidos, pudemos contar com um material empírico que nos abre a
possibilidade de uma análise crítica.
Em números absolutos, dos 234 alunos que responderam ao questionário,
com faixa etária entre 15 e 20 anos, sem distinção quanto ao gênero, apenas 5
declararam não usar computador e apenas 4 declararam não ter acesso à internet.
Este dado em particular não nos surpreendeu, pois o grupo já havia formulado a
hipótese de haver uma apropriação das novas tecnologias digitais por parte da
maioria dos alunos.
A frequência na utilização dos meios digitais também nos foi revelada
pelos dados coletados: 72,6% dos alunos usam o computador há mais de quatro
anos, enquanto 24% utilizam este meio entre um e quatro anos. Somente quatro,
número inferior a 2% dos jovens, o utilizam há um ano ou menos.
Semanalmente, o acesso diário à internet é realizado por 73%. Aqueles que
a utilizam apenas uma vez por semana representam apenas 4% dos alunos. Quanto
à utilização diária, 51% usa o computador de uma a cinco horas por dia, enquanto
32% afirmam usá-lo cinco ou mais horas e 14% o utilizam até uma hora por dia.
A análise dos dados também nos revela que a maioria realiza o acesso à
internet em sua residência: 93% dos alunos assim o declararam. Um número
significativo, 54% dos alunos, acessa a internet pelo celular/smartphone, – dado
que nos chama a atenção9. Outro ponto significativo é o pequeno número de
educandos que acessam a internet na escola, apenas 11% dos entrevistados.
Quanto ao tipo de página acessada na rede mundial de computadores, as
apontadas como mais utilizadas foram as de jogos online, seguidas por notícias
veiculadas pelas redes sociais (Facebook, Youtube, Google, Twitter, Ask). Sites
educativos, enciclopédias e dicionários também foram indicados por um grande
número de alunos. Supomos que as pesquisas escolares sejam o motivo do grande
9 Existe uma discussão ainda incipiente no campo educacional sobre as potencialidades do chamado mobile learning, ou seja, o aprendizado através desses dispositivos móveis: laptops, tablets, celulares, smartphones etc.
Escola, ensino e tecnologia
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número de acessos a tais sites. Os dados revelam ainda, que, no quesito notícias,
aquelas ligadas à política são as mais procuradas, seguido por fofocas, educação,
esportes, Brasil e Mundo, tecnologia e outros – nesta ordem.
Nas questões 10 e 11, abrimos espaço para aqueles que não utilizam o
computador e/ou internet. Nessas perguntas, como em outras, os estudantes
poderiam marcar mais de uma alternativa. Justificaram o não uso do computador
por: falta de interesse (2 alunos), proibição dos pais (2 alunos), não possuírem
computador (3 alunos) e não saber usar (1 aluno). Já as justificativas pelo não uso
da internet foram: não ter interesse (1 aluno), não ter acesso no local onde mora (3
alunos), não saber usar (nenhum aluno) e proibição dos pais (nenhum aluno).
O questionário é finalizado com a seguinte pergunta: “se você pudesse
criar uma página na internet, qual seria o tema?”. As mais variadas temáticas foram
apresentadas, por exemplo: jogos, religião, esportes, adolescência, músicas,
astronomia, conteúdo adulto, educação, a vida das mulheres morenas, domésticas
etc. – informações estas que nos revelam uma intensa diversidade de interesses
desses jovens.
Conforme dissemos, a aplicação deste questionário nos forneceu dados
importantes para o planejamento da nossa atividade. Da mesma forma, permitiu-
nos também uma reflexão sobre as possibilidades e limites do uso pedagógico
desses meios, tão presentes no cotidiano de nossos alunos.
Retomemos o conceito de ciberliteracidade10 trabalhado por Livingstone
(2011), e pensemos: o fato da grande maioria dos nossos alunos acessar a internet
com frequência, conforme observamos na coleta dos dados, seria a garantia de uma
utilização plena da mesma em todas as suas possibilidades? Certamente que não. O
simples fato de usar a internet – ou não tão simples, pois a realidade mundial ainda
não é a de plena democratização de acesso, apesar da sua popularização – nada
acrescenta à construção do conhecimento ou na formação de uma cidadania ativa e
participativa. Aquelas possibilidades só caminharão para a esfera do concreto se
conseguirmos articular as competências individuais necessárias para o
10 Também denominado de “Internet literacy”.
Marcella Costa/Maria Domingues
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 98-112.
funcionamento da interface com as estruturas institucionais – portanto, escolas e
professores continuam tendo um papel essencial.
Em nosso questionário, muitos jovens apontam os sites educativos como
bastante acessados. Se, por um lado, esse dado revela certa autonomia por parte
dos alunos em suas pesquisas escolares, cabe ressaltar que o simples acesso a esse
tipo de página, de forma individualizada, em busca da “resposta certa”, n~o é o
suficiente. A utilização plena dos meios digitais envolve a busca por informação,
seleção e avaliação da relevância das mesmas, assim como a confiabilidade de suas
fontes. Tais habilidades dependem, reforcemos, da intermediação do professor –
ator social que deve encorajar a reflexão crítica para a construção do
conhecimento de seus alunos, seja qual for o meio didático utilizado, digitalizado
ou não.
No recente artigo intitulado “A História online: analisando sites de ensino de
História no Brasil” (2012), Janete Flor de Maio Fonseca e Maria Fernanda Alves
tecem algumas críticas sobre os mesmos. Comumente utilizados por alunos da
educação básica através do buscador Google, as autoras notam a ausência da
bibliografia consultada, o formato enciclopédico e sem reflexão interativa com o
aluno, o hiato entre as transformações pelas quais a escrita da história sofreu nos
últimos anos e a abordagem da história presente nos sites pesquisados, apontando
que “a História neles encontrada ainda é tradicional, linear, privilegiando a política
e a economia, presa a fontes escritas e avessas a tratar da cultura e do imagin|rio”
(ALVES &FONSECA, 2012, p. 9).
Percebemos, então, que a utilização dos meios digitais nem sempre quebra
alógica instrumental da transmissão de dados e informações e não é garantia de
uma atualização crítica de práticas e conhecimentos. Os dados coletados nos
revelam ainda um baixo número de alunos utilizando a internet na escola – fato
que interpretamos como uma grande falha no suporte institucional para utilização
dos meios digitais com o objetivo de promover a construção dos saberes desses
“jovens” e desses “alunos” ou desses “jovens-alunos”. Ao abordar a categoria
saberes escolares, Gabriel (2006) diz:
Escola, ensino e tecnologia
110 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 98-112.
Se o desenvolvimento das novas tecnologias fez com que a escola perdesse o monopólio do saber reconhecido socialmente, transformando-se em um lugar, entre outros, onde circulam saberes, a discussão sobre saberes escolares permite argumentar que ela continua, contudo, sendo um espaço onde se estabelecem relações privilegiadas com os mesmos, podendo ser considerada como único locus onde é possível, de um lado, estruturar e sistematizar os saberes fragmentados, criados em outros lugares e, de outro, socializar os saberes considerados e legitimados como dominantes (Ibid,p. 4).
Almeida Neto (2010, p.234) aponta que “o castelo argumentativo,
tradicionalmente erguido pelos professores para justificar o ensino de história,
parece ruir”, e ainda: “entre um modelo que se desfaz e outro que se constitui, os
professores têm que se haver com seu cotidiano, vivenciando problemas concretos
e concebendo proposições e alternativas”. No mesmo sentido, Silva (2004, p. 54)
salienta: “estamos no limiar de um mundo no qual nosso ofício dever| se modificar
profundamente e que a informatização de nossa cultura deverá influir
profundamente na nossa maneira de pensar [ensinar] e produzir história”.
A escola continua sendo um espaço importante para amplos setores da
sociedade. Ao ensino de História é atribuído um papel educativo, formativo,
cultural, político, relacionado à construção da cidadania a partir de um diálogo
crítico entre a multiplicidade de sujeitos, tempos, lugares e culturas. O universo
das NTICs está presente no cotidiano dos jovens; cabe aos professores, em suas
pr|ticas, estabelecer uma “conex~o reflexiva” com esse “universo pouco explorado
pelo ensino escolar de forma sistem|tica” (FONSECA& SILVA,2010, p. 30) e que
pode, e muito, colaborar com a consolidação da consciência histórica na medida
em que for incorporado à cultura escolar.
Diante do exposto, concluímos que – por inúmeras razões – é um desafio
aos professores de História apropriarem-se dos novos recursos tecnológicos
visando o desenvolvimento da literacidade histórica nos seus alunos. Não sem
riscos, e considerando os limites e as possibilidades desta ação, entendemos e
apostamos que esta é uma trilha instigante e que vai “muito além do bate papo” e
do “sentimento de vacuidade”, amiúde associados aos jovens “pela compuls~o
contínua de emitir eletronicamente dados da própria vida” (ZUIN, 2010, p.965),
como vemos nas redes sociais da atualidade.
Marcella Costa/Maria Domingues
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 98-112.
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Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
INTERAÇÕES ENTRE O ENSINO DE HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL E A PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL1
Moisés Amado Frutuoso2
Resumo: O artigo discute como o ensino da história regional e local pode contribuir no ambiente escolar para a preservação do patrimônio cultural, a partir da construção da memória social e da elaboração das identidades coletivas. Realizamos um estudo de caso para mostrar a situação atual da igreja do Divino Espírito Santo e de seu terreiro, ambos localizados numa das primeiras aldeias jesuítas do Brasil – a Aldeia do Espírito Santo, em Vila de Abrantes (município de Camaçari, no Estado da Bahia). Ao relacionar a preservação do patrimônio material com o ensino da história regional e local, o texto aborda dois pontos: o papel do poder público enquanto promotor, ora da preservação, ora do esquecimento, do patrimônio material no processo de construção da memória social; e, por outro lado, como a escola pode se tornar o espaço para fortalecimento das identidades regionais e locais. Palavras-chave: Ensino de história regional e local. Patrimônio cultural. Memória social. Abstract: The article discusses how the teaching of regional and local history in school can contribute to the preservation of cultural heritage, from the construction of social memory and the development of collective identities. We conducted a case study to show the current state of the church of Espírito Santo and your central plaza, both located in one of the first Jesuit villages of Brazil – the Vila do Espírito Santo, in Vila de Abrantes (city of Camaçari, State of Bahia). To relate preservation of the material heritage with the teaching of regional and local history, the article discusses two points: the role of government as a promoter, sometimes in preserving, sometimes in oblivion, the material heritage in the process of construction of social memory, and on the other hand, as the school can become a place for strengthening regional and local identities.
Keywords: Teaching of regional and local history. Cultural heritage. Social memory.
INTRODUÇÃO 1 Recebido em 03/10/2013. Aprovado em 28/11/2013.
2 Licenciado (2008) e Bacharel (2013) em História pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected].
Moisés Amado Frutuoso
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
Marc Bloch afirmou que a História é “a ciência do homem no tempo”
(2001, p. 55). Ao lado de Lucien Febvre, Bloch iniciou o movimento dos Annales e
propôs, no início do século XX,uma renovação historiográfica com a formulação de
novos problemas, métodos e abordagens da pesquisa histórica. Assim, os Annales
constituíram-se contrários à abordagem positivista, baseada numa historiografia
factualista, centrada na história das decisões dos grandes homens e suas ideias, nas
guerras e nas negociações diplomáticas. A interdisciplinaridade com as temáticas e
métodos das demais ciências humanas possibilitou a proposta da história-
problema, com a afirmação da prioridade dos fenômenos coletivos sobre os
indivíduos, propondo a história como ciência social.
A definição da História como estudo do homem no tempo rompeu com a
ideia de que esta disciplina, enquanto campo do conhecimento, deveria examinar
apenas o passado. Os domínios historiográficos se ampliaram, compreendendo
também a história do tempo presente (ver BÉDARIDA, 1996; MOTTA, 2012). Neste
sentido, o objeto de estudo da História é a ação dos indivíduos e suas experiências,
além das transformações e permanências que estes promoveram na sociedade em
determinado período de tempo, seja na curta ou longa duração.
No entanto, os acontecimentos da vida humana não ocorrem apenas no
tempo, mas também no espaço. A categoria espacial se manifesta na historiografia
por meio do recorte, que pode ser regional ou local. Este recorte se atenta à
especificidade de cada localidade ou região, que se configuram como detentores de
uma particularidade, inseridos numa realidade mais ampla com a qual se articulam
(AMADO, 1990, p. 8).
Dessa forma, nossa intenção neste artigo é discutir como o ensino de
história regional e local no ambiente escolar pode contribuir para a preservação do
patrimônio cultural, a partir da construção da memória social e da elaboração das
identidades coletivas. Realizar-se-á, também, um estudo de caso onde será
analisada a situação atual da igreja do Divino Espírito Santo e de seu terreiro,
ambos localizados numa das primeiras aldeias jesuítas do Brasil – a Aldeia do
Espírito Santo, em Vila de Abrantes (município de Camaçari-BA). Discutiremos o
papel do poder público enquanto promotor, ora da preservação, ora do
esquecimento, do patrimônio material no processo de construção da memória
Interações entre o ensino de história...
115 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
coletiva dos estudantes e também como a escola pode se tornar um espaço para
fortalecimento das identidades regionais e locais entre os estudantes.
Antes disso, é necessário problematizarmos o conceito de região, seu uso
na disciplina da história e o papel da história regional e local em sala de aula.
A IDEIA DE REGIÃO E A HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
Região, em sua etimologia do latim regere (comandar), remete mais a uma
noção fiscal, administrativa, militar, do que uma noção geográfica. Assim, este
conceito está mais diretamente ligado a uma relação de poder do que a uma
divisão natural do espaço. Em “A invenção do Nordeste”, o historiador Durval Muniz
de Albuquerque Junior (2011), com o objetivo de entender como e quando se
formou o que hoje compreendemos como a região Nordeste no âmbito da cultura
brasileira, afirma que:
A região não é uma unidade que contém uma diversidade, mas é produto de uma operação de homogeneização, que se dá na luta com as forças que dominam outros espaços regionais, por isso ela é aberta, móvel e atravessada por relações de poder (ALBUQUERQUE JR, 2011, p. 37).
Albuquerque Junior desnaturaliza o conceito de região ao problematizar a
sua constituição e ao atribuir-lhe uma historicidade. No entendimento deste autor,
uma região deve ser pensada como “um grupo de enunciadose imagens que se
repetem, com certa regularidade, em diferentes discursos, em diferentes épocas,
com diferentes estilos” e não imaginadas como detentoras de uma
“homogeneidade, uma identidade presente na natureza” (ALBUQUERQUE JR, 2011,
p. 35). Tomando por base que o conceito de região não é algo natural, podemos
entendê-la como fruto da ação humana. Esta ideia de região como resultado da
ação dos homens é a que os professores devem utilizar no ambiente escolar
quando abordarem temáticas relacionadas à história regional e local.
José D’Assunção Barros (2013) ressalta que o simples recorte espacial-
localizado não implica necessariamente em história regional. O enfoque no
regional “associa-se à noção de que temos agora um lugar que se apresenta ele
Moisés Amado Frutuoso
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
mesmo como sistema – com sua própria dinâmica interna, suas regras, sua
totalidade interna – e que habitualmente se encontra ligado ou a uma rede de
outras localidades análogas, ou a um sistema mais amplo” (BARROS, 2013, p. 181).
O estudo da história regional e local faz um contraponto à história
nacional. Esta última, herança do século XIX, é pautada num discurso
historiográfico homogeneizador com o intuito de justificar a unidade nacional e os
sentimentos pátrios. Por outro lado, as produções regionais e locais possuem uma
longa tradição na historiografia francesa e cresceram durante o século XIX. No
Brasil, estes estudos foram feitos sob a égide do Instituto Histórico e Geográfico do
Brasil (IHGB) e seus congêneres provinciais/estaduais. Tais instituições, inspiradas
nas confrarias europeias, produziram um grande número de corografias, que são
trabalhos baseados em descrições de regiões ou localidades. Ao misturar aspectos
históricos e geográficos em espaços delimitados politicamente, as corografias
cultivavam os feitos das elites regionais e locais e foram utilizadas como
instrumentos de dominação para legitimar uma história baseada, supostamente,
na tradição.
As pesquisas de base empírica e o fortalecimento dos programas de pós-
graduação em todo o país a partir da década de 1980 trouxeram um novo fôlego à
história regional e local. Ao buscar o que é diferente e particular, esta abordagem
permitiu focalizar as localidades e regiões desconhecidas ou pouco abordadas pela
historiografia. Nesta perspectiva, devem ser pensadas as abordagens regionais e
locais, pois estudos com este enfoque possuem:
[...] a capacidade de apresentar o concreto e o cotidiano, o ser humano historicamente determinado, de fazer a ponte entre o individual e o social. Por isso, quando emerge das regiões economicamente mais pobres, muitas vezes ela consegue também retratar a História dos marginalizados, identificando-se com a chamada “História popular” ou “História dos vencidos” (AMADO, 1990, p. 13).
A história regional e local é uma abordagem que pode colaborar para a
construção da memória social de uma comunidade e, consequentemente,
contribuir na elaboração das identidades coletivas. Estas identidades,
Interações entre o ensino de história...
117 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
estabelecidas por meio de processos historicamente apropriados que conferem
sentido a um determinado grupo (CRUZ, 1993), possuem fluidez e se constituem a
partir do processo de diferenciação em relação ao outro. A compreensão das
dinâmicas sociais locais e regionais permite o entendimento do contexto mais
amplo e pode revelar experiências humanas não perceptíveis num enfoque macro.
HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL EM SALA DE AULA
A construção do saber histórico escolar perpassa pelas conexões
existentes entre o local, regional, nacional e mundial através do tempo.
Problematizando o espaço, o tempo e a sociedade é possível pensar a história em
sala de aula enquanto dimensão da experiência humana, suprindo as necessidades
de orientação no tempo dos estudantes (RUSEN, 2001).
Entre os princípios e orientações recomendados aos professores nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) voltados para o ensino de história e
geografia, destaca-se o que aponta a incumbência do profissional da educação:
Cabe ao professor, ao longo de seu trabalho pedagógico, integrar os diversos estudos sobre as relações estabelecidas entre o presente e o passado, entre o local, o regional, o nacional e o mundial. As vivências contemporâneas concretizam-se a partir destas múltiplas relações temporais e espaciais, tanto no dia-a-dia individual, familiar, como no coletivo. Assim, a proposta é de que os estudos sejam disparados a partir de realidades locais, ganhem dimensões históricas e espaciais múltiplas e retornem ao local, na perspectiva de desvendá-lo, de desconstruí-lo e de reconstruí-lo em dimensões mais complexas (BRASIL, 1997, p. 65) (grifo nosso).
O trecho acima indica o quanto a compreensão da realidade local é
imprescindível para a formação da consciência histórica dos estudantes. Apesar
disso, o estudo da história local (bairros, cidades, municípios) é apenas
privilegiado nas séries iniciais do ensino fundamental. Esta abordagem poderia ser
ampliada, incorporando aspectos da história regional, e recomendada também
para estudantes do nível médio. Neste sentido, os professores atuariam na
Moisés Amado Frutuoso
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
construção de sínteses históricas, relacionando momentos significativos da
história regional e local com a história nacional e mundial.
Ainda segundo os PCNs, diversos tipos de fontes podem contribuir para a
realização do trabalho pedagógico. Relatos orais, imagens, objetos, danças, músicas
e narrativas podem se transformar em instrumentos de construção do saber
histórico escolar. Assim,
Ao se recuperar esses materiais, que são fontes potenciais para construção de uma história local parcialmente desconhecida, desvalorizada, esquecida ou omitida, o saber histórico escolar desempenha um outro papel na vida local, sem significar que se pretende fazer do aluno um “pequeno historiador” capaz de escrever monografias, mas um observador atento das realidades do seu entorno, capaz de estabelecer relações, comparações e relativizando sua atuação no tempo e espaço (BRASIL, 1997, p. 39).
A maior dificuldade para a utilização de temas relacionados à história
regional e local em sala de aula é o apego ao livro didático por parte dos
professores. É fato que o livro didático é focado no âmbito nacional e na
valorização dos grandes acontecimentos e personagens históricos. No entanto,
para incorporar conteúdos de história regional e local, o professor deve assumir
uma nova postura. Como bem afirmou Marcos Lobato Martins (2009, p. 146),
[...] os professores de história, para levar às salas de aula a história regional e local, terão que virar pesquisadores. Ensino e pesquisa, teoria e prática terão que ser definitivamente associados, respeitando-se, é claro, as situações concretas vividas pelos profissionais de História.
Portanto, é necessário que o professor tenha uma postura ativa, para não
se tornar um mero repetidor dos conteúdos de pesquisas alheias. Afinal, “[...]
somente o professor-pesquisador, forjado na prática habitual de pesquisa e
submetido a processos de formação continuada [...] será capaz de formar e orientar
os estudantes nas atividades de pesquisa e investigação da realidade” (OLIVEIRA,
2011, p. 188).Como os PCNs indicam esta flexibilidade na escolha dos conteúdos de
História, apontando que “as escolas e os professores devem recriá-los e adaptá-los
à sua realidade local e regional” (BRASIL, 1997, p.45), o educador fica à vontade
Interações entre o ensino de história...
119 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
para incluir na sua prática profissional temas específicos relacionados à história
regional e local de sua realidade.
Martins também faz referência às situações concretas vividas pelos
profissionais do ensino de história. O autor refere-se às circunstâncias contrárias
que os professores encontram ao realizar o trabalho docente nas escolas
brasileiras. Jornadas duplas (às vezes, triplas) de trabalho, resistência por parte da
direção da escola no que diz respeito aos novos conteúdos e dificuldades em visitar
museus e centros de memória são algumas das adversidades que podem ser
encontradas.
Utilizar a história regional e local em sala de aula é um desafio gratificante.
O professor de história tem, diante de si, uma abordagem que permite a utilização
de diversos tipos de materiais. Tanto no âmbito local quanto no regional, o uso da
literatura e de jornais da imprensa local de diversos períodos históricos pode
servir de fonte para investigar a vida social e política de um determinado período e
observar aspectos da cultura popular e de elite, além de perceber como aquela
localidade vivenciava os acontecimentos históricos que marcaram o Brasil e o
mundo. Tais atividades podem (e devem) ser realizadas através da articulação
entre as diversas disciplinas do currículo (língua portuguesa e literatura,
sociologia e/ou geografia).
A produção audiovisual, sob o recorte do regional e do local, deve ser um
recurso utilizado em sala de aula. A trajetória dos diversos ritmos musicais
regionais e seus principais expoentes pode ser objeto de pesquisa para educadores
e estudantes. Através da audição das canções e da análise de suas letras é possível
identificar elementos singulares e que são particulares de seu lugar social de
criação. A comparação de diferentes versões de uma mesma música, produzidas
em diferentes contextos sociais e políticos, apresenta nuances que somente um
olhar mais crítico poderia identificar.
A produção cinematográfica deverá também ser abordada junto aos
estudantes: os filmes lançados pela Companhia Vera Cruz, as chanchadas da
Atlântida, o Cinema Novo de Glauber Rocha, além de documentários e produções
do pós-retomada do cinema brasileiro na década de 1990 podem ressaltaras
Moisés Amado Frutuoso
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
diferenças regionais (mesmo em obras fílmicas onde a estereotipia3 prevalece), as
quais poderão ser analisadas no ambiente escolar. Para melhor aproveitamento
das atividades, é necessário apresentar a obra (história, direção, atores, etc.) e o
contexto em que foi produzida. Além disso, recomenda-se assistir apenas trechos
dos filmes ou documentários; a ideia é permitir que estudantes e professores
discutam as impressões sobre o que foi exibido, considerando seus aspectos
regionais e locais.
A toponímia dos lugares,4através dos seus elementos históricos ou
geográficos, permite a realização de atividades extramuros com os estudantes. A
historicidade dos nomes das ruas, dos bairros e até mesmo das cidades da região
onde a escola está situada pode ser resgatada, contribuindo para a construção da
memória afetiva e social dos estudantes.
Enfim, diversas atividades podem ser realizadas com o objetivo de
aproximar os estudantes dos aspectos históricos de sua realidade local ou regional.
Este contato levará os alunos a questionar o contexto histórico no qual estão
incluídos, possibilitando a melhoria do processo de ensino-aprendizagem e
promover o fortalecimento das identidades coletivas, já que a escola é o espaço
primordial para construção da cidadania.
O PAPEL DO ENSINO DE HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL PARA A PRESERVAÇÃO
DO PATRIMÔNIO CULTURAL: O CASO DA IGREJA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO
O ensino de história regional e local, ao promover a construção de
identidades coletivas e despertar a consciência histórica, contribui, também, para a
preservação dopatrimônio cultural. Independente de sua natureza, material ou 3 A estereotipia é o processo através do qual se constrói uma ideia pré-concebida, geralmente preconceituosa, sobre alguém ou algo. Segundo Albuquerque Junior (2011, p. 30), “o discurso da estereotipia é um discurso assertivo, repetitivo, é uma fala arrogante, uma linguagem que leva à estabilidade acrítica, é fruto de uma voz segura e autossuficiente que se arroga o direito de dizer o que é o outro em poucas palavras. O estereotipo nasce de uma caracterização grosseira e indiscriminada do grupo estranho, em que as multiplicidades e as diferenças são apagadas, em nome de semelhanças superficiais do grupo”. 4 A toponímia dos lugares é o estudo etimológico dos nomes dos lugares. Jörn Seemann (2005, p. 209) afirma que a toponímia deve ir além do estudo linguístico e histórico, por meio de um projeto interdisciplinar, levando em consideração que “[...] a denominação dos lugares é, de fato, um processo político-cultural que merece uma análise mais detalhada do que o registro dos nomes atribuídos às localidades”.
Interações entre o ensino de história...
121 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
imaterial, são as condições políticas e sociais que definem quais bens serão
preservados, a partir de uma relação dialógica (e por vezes conflituosa) entre o
poder público e segmentos da sociedade.
Podemos definir patrimônio cultural como o bem ou o conjunto de bens,
tanto de natureza material quanto imaterial, considerados importantes para uma
determinada sociedade. No caso brasileiro, a Constituição Federal (1988), em seu
artigo 216, considera patrimônio:
I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico. (BRASIL, 1988).
Os bens materiais e imateriais que compõem o rol listado acima fazem
referência à identidade e à memória dos diferentes grupos das regiões que
compõem esta “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2008) chamada Brasil. O que
configura a existência de um patrimônio não é o fato deste ser ou não tombado. O
tombamento (reconhecimento do valor material de um bem cultural) ou o registro
(no caso de um bem imaterial) é um ato administrativo do poder público com o
objetivo de preservar, através de uma legislação específica, o patrimônio cultural.
Tanto o tombamento quanto o registro podem ser realizados nas esferas federal,
estadual ou municipal, sendo necessária apenas a existência de uma legislação
específica.
Monumentos e imóveis de relevância histórica fazem parte do chamado
patrimônio cultural edificado. Ao se tornarem referência de momentos históricos
ou rememorarem experiências individuais ou vividas em grupo,
[...] os edifícios e áreas urbanas de valor patrimonial podem ser tomados como um ponto de apoio da construção da memória social; como um estímulo externo que ajuda a reativar e reavivar certos traços da memória coletiva em uma formação sócio-territorial (MESENTIER, 2005, p. 168).
A memória social é o resultado de um processo dinâmico e se constitui
como um dos elementos de coesão que dão suporte para a elaboração de
Moisés Amado Frutuoso
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
identidades coletivas. A inserção do estudante no contexto histórico de sua
realidade social por meio do ensino de história regional e local possibilita a
construção de identidades coletivas, ainda que estas não tenham sido pensadas por
estes indivíduos.
Para exemplificarmos as interações entre o ensino de história regional e
local e a preservação do patrimônio cultural, tomemos como exemplo um dos mais
antigos templos do período colonial: a igreja do Divino Espírito Santo, localizada
em Vila de Abrantes, distrito da cidade de Camaçari, distante 41km da capital do
Estado da Bahia.
A igreja do Divino Espírito Santo foi a principal construção da Aldeia do
Espírito Santo (atual Vila de Abrantes), uma das primeiras povoações
estabelecidas por padres da Companhia de Jesus na América portuguesa, cujo
objetivo era o de catequizar os nativos e expandir a fé católica. Fundada em 1558
às margens do rio Joanes, esta aldeia jesuíta era formada por índios tupinambá e
permaneceu sob a administração eclesiástica até 1758, quando foi alçada à
condição de vila (SANTOS, 2007, p. 117). Esteve, ainda, envolvida na resistência
aos holandeses durante a invasão e ocupação que estes realizaram em Salvador
nos anos 1624-25, tendo servido de refúgio para o clero da capital baiana
(BEHRENS, 2004, p. 73-74).
Os jesuítas chegaram ao Brasil com a esquadra de Tomé de Souza, em
1549. Suas ações, nos primeiros anos de colonização, ofereceram um contraponto
à deliberada dizimação indígena praticada pela maioria dos colonos. Desta forma,
“buscaram controlar e preservar os índios através de um processo de
transformação que visava regimentar o índio enquanto trabalhador produtivo”
(MONTEIRO, 1994, p. 36). Com o estabelecimento de aldeias, esta ordem religiosa
acenava com um método alternativo de assimilação e conquista dos povos nativos.
A igreja do Divino Espírito Santo, representante da arquitetura jesuítica no
Brasil, possui características do primeiro século de colonização, segundo o
Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia (BAHIA, 1978). No entanto, um
dos pioneiros no estudo da arquitetura luso-brasileira, Robert C. Smith, indicou
que a construção atual do templo parece ser da época da reforma da aldeia, em
1689 (SMITH, 2010, p. 60). A edificação contava, até a década de 1940, com a
Interações entre o ensino de história...
123 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
residência anexa de dois andares e oito janelas no pavimento superior, a qual foi
demolida sob o pretexto de que estava começando a ruir (BAHIA, 1978).
As análises realizadas por Smith a respeito da Vila de Abrantes partem da
planta e da descrição realizada em 1792 por Domingos Alves Branco Muniz
Barreto,5 que se encontram no Arquivo Histórico Colonial Português.6 Com base na
vista topográfica, além da já citada residência anexa (onde até meados do século
XX funcionou um convento), pode-se observar nesta planta um elemento
característico dominante das construções jesuíticas: o alpendre de entrada do
edifício que hoje não existe mais.
Por ser uma iniciativa jesuíta, a constituição espacial da Aldeia do Espírito
Santo seguiu os padrões adotados pela Companhia de Jesus: “as aldeias jesuítas
eram fisicamente organizadas segundo padrões europeus, com uma praça central,
uma igreja e fileiras de unidades residenciais flanqueando o espaço aberto”
(SCHWARTZ, 1988, p. 49). A praça central, ou terreiro, tinha papel fundamental
para essa estrutura social, pois era o local onde os jesuítas reuniam os índios para
as ações de catequese.
A escolha em prol da preservação do patrimônio cultural, como afirma
Leonardo Marques de Mesentier, ocorre no âmbito do poder público e é mediado
por uma “dinâmica que envolve a esfera pública da vida social, em um contexto
político e cultural” por meio de um conjunto de ações que contribuirão para a
construção da memória ou o esquecimento social (2005, p. 169). Em suma, é a
partir do processo de conflito social e da disputa por hegemonia política que se dá
a construção da memória coletiva.
Pelas razões apontadas, poder-se-ia acreditar que a igreja do Divino
Espírito Santo em Vila de Abrantes seria um bem tombado pelos órgãos
competentes por se constituir como parte do patrimônio histórico baiano. Porém,
5 Nascido na Bahia na segunda metade do século XVIII e pertencente a uma família tradicional, Domingos Alves Muniz Barreto exerceu diversos cargos na estrutura colonial e teve grande atuação política à época da desagregação do Império Luso-Brasileiro como redator do periódico carioca Despertador Constitucional (SÁ, 2006). Recentes estudos abordaram o perfil naturalista do personagem, com destaque para as pesquisas relacionadas à botânica da América portuguesa (PEREIRA, 2009; FARIAS, 2010). Faleceu no Rio de Janeiro, em 1831. 6Esta planta foi reproduzida por Robert C. Smith (2010, p. 56) e está disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/1063/1/Arquitetura%20Colonial%20Baiana.pdf>. Acesso em 30.11.2013.
Moisés Amado Frutuoso
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
as salvaguardas necessárias para preservação desta construção não foram
estabelecidas. Pelo contrário, medidas tomadas pelo poder público, como a
descaracterização do seu terreiro, por exemplo, contribuíram para que este
patrimônio não fosse tombado, apesar de sua relevância histórica.
Até a década de 1960, Vila de Abrantes consistia num pequeno núcleo
populacional limitado à sua antiga praça jesuítica. A inauguração da BA-099 em
1972 e sua ampliação posterior na década de 1990 (Linha Verde) trouxeram um
vetor de crescimento para a região. Na década de 1970, após realização de
pesquisas para o Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia, os técnicos
do Instituto do Patrimônio Artístico Cultural da Bahia (IPAC-BA) detectaram como
perigo potencial para o legado dos jesuítas o desvirtuamento da ambiência
motivado pela falta de proteção legal por parte das esferas de poder. Por esta
razão, propuseram que as construções em torno da praça fossem disciplinadas. No
entanto, percebe-se que tal recomendação não foi seguida à risca pelo poder
público, pois a construção da grande quantidade de imóveis na localidade indica
uma total descaracterização do entorno da igreja e seu terreiro.
Em 2003, “em nome de um discutível modernismo e bem estar dos
habitantes”, a Prefeitura de Camaçari equipou o antigo terreiro em frente à igreja
com mobiliário e equipamentos modernos de esporte, como uma pista de skate e
uma quadra poliesportiva; além de outros itens, como pergolados, bancos e um
espelho d’água ao centro. No espaço que antes era o terreiro foi construídauma
praça; “[...] ignorando toda a história de Abrantes, e seu papel dentro dela, a
Secretaria de Planejamento daquela Prefeitura apagou essa memória” (FLEXOR,
2004, p. 9). Se levarmos em consideração que na década de 1960 o poder
municipal loteou parte do terreiro primitivo (reduzindo seu comprimento em um
terço) (BAHIA, 1978), é possível afirmar, portanto, que intervenções do poder
público que tendem descaracterizar o espaço são recorrentes.
O paradoxo de tais atos é percebido no discurso oficial da Prefeitura de
Camaçari, que afirmou numa publicação oficial voltada para estudantes da rede de
ensino, que “tanto a preservação da igreja do Divino Espírito Santo quanto o
traçado original da praça em que está localizada são motivos de orgulho para o seu
povo” (CAMAÇARI, 2010, p. 6). Preferimos acreditar que tais afirmações partem do
Interações entre o ensino de história...
125 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 113-129.
desconhecimento sobre o assunto, e são uma falácia com o intuito de esconder a
irresponsabilidade da esfera pública no que concerne à preservação do patrimônio
material.
Acreditamos que a preservação do passado em Vila de Abrantes envolve
principalmente a realização de ações educativas nas escolas de Camaçari e da
região, mas também a promoção de ações para a preservação da igreja do Divino
Espírito Santo e seu antigo terreiro. A proposta não é retirar os equipamentos
públicos montados no local, criando assim um “falso histórico”. Uma opção seria a
instalação de placas em vários pontos da atual praça com breves textos que
discorressem sobre a história do local e em como esta se entrelaça com a História
da Bahia e do Brasil. Trazer à tona as experiências dos indivíduos que viveram na
localidade em tempos idos ajuda a reforçar o sentimento de identidade cultural e
pertencimento, o que é melhor do que criar um “pastiche” no sentido de restaurar
a disposição “original” do terreiro.
A preservação da igreja do Divino Espírito Santo e da memória da
existência do terreiro possui relevância porque “a preservação de lugares pode ser
elemento formador de cidadania se, ao possibilitar reminiscências, exibir a história
em sua inteireza e construir identidades efetivamente coletivas” (KOHLSDORF,
2012, p. 54). Ações educativas, realizadas no ambiente escolar, possibilitarão o
fortalecimento de uma identidade local e permitirão que os estudantes de
Camaçari reconheçam neste espaço o local de nascimento de seu município,
fazendo com que atuem com vigor pela salvaguarda deste patrimônio cultural
edificado.
A igreja do Divino Espírito Santo e seu antigo terreiro fazem parte do que
Nora chamou de “lugares de memória” (1993). A visita de professores e
estudantes, como recurso didático, é importante para o processo de ensino-
aprendizagem. Cabe ao educador, nesta atividade pedagógica, não apenas
acompanhar os alunos ao local escolhido (sejam sítios históricos ou museus), mas
também fazê-los “compreender as mensagens propostas [...] e construir novas
significações a partir delas” (ALMEIDA; VASCONCELLOS, 2002, p. 105). No caso
específico de nossa análise, visitar Vila de Abrantes permitirá ao educador atuar na
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construção da memória social entre os estudantes de Camaçari, articulando a
história local à história regional, nacional e mundial.
Nesse sentido, é imprescindível a realização de ações que viabilizem a
preservação deste exemplar da arquitetura jesuítica em Vila de Abrantes. Além do
tombamento da igreja do Divino Espírito Santo junto às esferas estadual e federal,
é indispensável também a inclusão, no rol dos temas abordados nas escolas de
Camaçari, de conteúdos relacionados à história do município, a partir da
abordagem da história local e regional. Assim, será possível proteger não apenas o
patrimônio cultural edificado, mas também garantir a constituição de uma
memória social (a partir da preservação do passado), assegurando às futuras
gerações o conhecimento das experiências vivenciadas por diversos povos numa
das primeiras aldeias jesuítas do Brasil. Espera-se, com isso, o fortalecimento da
identidade cultural da população local, para o qual o espaço escolar possui papel
fundamental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O amadurecimento das discussões historiográficas contemporâneas no
ensino de história por meio dos conteúdos abordados em sala de aula permitiu um
avanço na atuação docente e no processo de ensino-aprendizagem. Diferentes
abordagens, como a história regional e local, possibilitaram aos professores aliar a
prática docente com a pesquisa empírica. Nota-se que a figura do professor-
pesquisador, tão comum no espaço acadêmico, começa a surgir, ainda que
timidamente, no ambiente escolar.
A proposição de estudos com recorte regional e local no espaço escolar
não tem como objetivo negar a história nacional; pelo contrário, conhecer as várias
partes do todo, problematizando-o, questionando as respostas prontas e as visões
estereotipadas, torna possível ampliar o conhecimento sobre a realidade social em
que os estudantes estão inseridos.
Ao relacionar o ensino de história regional e local e a preservação do
patrimônio cultural, ressaltamos a importância de ambos para a constituição das
identidades coletivas eda sua atuação no alicerce da memória social. A sala de aula,
Interações entre o ensino de história...
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espaço de construção do conhecimento, se apresenta também como cenário para
fortalecimento das identidades regionais e locais por meio desta abordagem
historiográfica. A escola torna-se uma instituição de suporte da memória social, e,
assim, desperta para a relevância da preservação do patrimônio cultural.
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MUSEU PEDAGÓGICO DE HISTÓRIA E ENSINO DE HISTÓRIA:
A CONSTRUÇÃO DE UM MUSEU EM SALA DE AULA1
Tatiana Polliana Pinto de Lima2
Resumo: Este artigo pretende relatar e refletir nas páginas a seguir sobre uma
experiência desenvolvida com alunos do curso de Pedagogia que cursaram o
componente Ensino e Aprendizagem em História, ofertado no 6º. Semestre, no
Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia: a construção do museu pedagógico de história, as transformações e
permanências na cidade de Amargosa na Bahia ao longo do século XX e início do
século XXI. A coleta de dados ocorreu por meio de entrevistas semi-estruturadas
com familiares de diversas faixas etárias dos discentes e o museu foi composto por
objetos pertencentes aos entrevistados, bem como aos próprios discentes. Esta
experiência não nos fez apreender toda a História, visto que ela chega até nós por
meio de evidências incompletas, parciais: registros documentais, manifestações
religiosas, objetos de arte, vestígios materiais, registros orais, etc... Não podemos
então afirmar que toda a História de Amargosa, ao longo do século XX e início do
século XXI, foi apreendida e trabalhada. Mas, que uma pequena lacuna dela foi
percebida, problematizada, ressignificada.
Palavras-chave: Museu. Formação de Professores. História Local. Memória.
Abstract: This article intends to report and reflect on the following pages about an
experiment conducted with students of the Faculty of Education who attended the
component Teaching and Learning in History offered in the 6th. Semester, the
Center for Teacher Education, Federal University of Bahia Reconcavo: the
construction of the museum of history teaching, the changes and continuities in the
town of Amargosa Bahia along the twentieth and early twenty-first century. The
data were collected through semi-structured interviews with family members of
different age groups of students and the museum was composed of objects
belonging to the respondents as well as the pupils themselves. This experience has
not made us learn all history, because it comes to us by way of incomplete
evidence, partial: documentary records, religious events, art objects, trace
materials, oral records, etc ... We can then say that the whole history of Amargosa
1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 16/11/2013.
2 Doutoranda em Educação pela UFBA. Mestre em Educação pela UNICAMP. Graduada em História pela UFRN. Licencianda em Pedagogia pela UNIFACS. Professora Assistente no Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. E-mail: [email protected].
Tatiana Polliana Pinto de Lima
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over the twentieth and early twenty-first century was seized and crafted. But a
small gap it was perceived, discussed, re-signified.
Keywords: Museum. Teacher Training. Local History. Memory.
Se encarado como templo, o museu perde a aura de monumento e o objetivo de tornar-se documento, ou seja, além de perder o sentido de sinal do passado, deixa de ser objeto de análise de um conjunto de concepções e contextos sociais, políticos, técnicos e culturais. (Kátia Abud, André Silva e Ronaldo Alves)
É a reflexão contida nas palavras acima que gostaríamos de nortear a
leitura das páginas a seguir, pois foi a partir delas que a experiência de construção
de um museu pedagógico de história foi desenvolvida. Pensar em formar
professores requer ir mais além do que meramente transmitir conteúdos. Requer
pensar a sua prática considerando a inconclusão na formação, da qual nos falava
Paulo Freire. Nesta perspectiva iremos relatar e refletir, nas páginas a seguir, sobre
uma experiência desenvolvida com alunos do curso de Pedagogia que cursaram o
componente Ensino e Aprendizagem em História, ofertado no 6º. Semestre, no
Centro de Formação de Professores da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia: a construção do museu pedagógico de história, as transformações e
permanências na cidade de Amargosa na Bahia ao longo do século XX e início do
século XXI.
Claro é que
La historia intenta compreender y explicar cómo y por qué se han producido los cambios y qué papel han jugado en ellos sus protagonistas y por qué. Busca los antecedentes de los cambios, las inter-relaciones entre los fenómenos afectados por los mismos, y estabelece sus ritmos y sus duraciones. (PAGÉS, 2004, p. 202)
Foi com esta provocação em sala de aula que tudo começou. Mas, antes de
adentrarmos as considerações sobre o tema em si, faremos algumas explanações
sobre o local de onde estamos nos reportando. O curso do qual estamos falando
Museu pedagógico de história e ensino de história
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encontra-se lotado na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Esta
apresenta estrutura multicampi, conferindo ao Centro de Formação de
Professores (CFP), localizado na cidade de Amargosa, Vale do Jiquiriçá, a
responsabilidade pela formação dos profissionais especializados nos processos de
pesquisa, planejamento e gestão da educação para atender demandas regionais e
estaduais, visando o estabelecimento de uma educação de qualidade para todos.
Nesse campus tem-se oito cursos de Licenciatura: filosofia, pedagogia, letras,
educação física, educação do campo, química, física, matemática.
Visto isso, foi com os discentes do curso de Pedagogia que o museu
pedagógico de história foi construído. Entretanto, antes de relatarmos e
refletirmos sobre a criação dele, faz-se mister esclarecer acerca da vontade de
desenvolver com graduandos de Pedagogia, uma licenciatura que irá trabalhar com
a educação infantil e com os anos iniciais do ensino fundamental, o desejo de
construir um museu.
Devemos lembrar que trabalhar com ensino de História nos cursos de
Pedagogia não é meramente trabalhar com sujeitos que não serão professores
especificamente de história, mas serão professores também de história. Afinal, eles
são professores multidisciplinares. É perceber que esses professores dos anos
iniciais e da educação infantil precisam ser considerados como sujeitos basilares
na formação das crianças, futuros adolescentes que chegarão aos anos finais do
ensino fundamental e serão ensinados por professores licenciados em História que
comumente costumam falar que as crianças adentram esta fase sem conhecer os
conceitos básicos da História.
Sob essa ótica, desenvolver um trabalho com museu, a partir da
perspectiva de história local, é considerar as mudanças no ensino de História
ocorridas nos últimos anos no Brasil, levando em conta que a História precisa ser
vista enquanto campo de prazer. Segundo Marcos Silva, devemos ampliar esse
prazer que o historiador sente no manuseio das fontes para uma gama maior de
pessoas. Ora,
... se o conhecimento histórico efetivamente seduz e diverte os pesquisadores da área, se o contato com livros especializados e diferentes fontes históricas (documentos governamentais, objetos
Tatiana Polliana Pinto de Lima
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 130-142.
do cotidiano, obras de arte, depoimentos escritos ou orais, fotografias, caricaturas, etc.) é tão bom para os que estudam história em profundidade por lhes permitir dialogar com experiências humanas e interpretar seus trajetos, por que não expandir efetivamente o universo de pessoas que desfrutam dessas alegrias? (SILVA, 2003, p. 14)
Contudo, o rigor dos conceitos e saberes históricos não deve ser
desprezado nesta busca. Não deve ser excluído neste processo de sedução. Foi
assim, com este intento firmado, que buscamos a construção do museu cujo
objetivo era aprendermos pela pesquisa dos objetos existentes nos arquivos
familiares dos discentes, as transformações e permanências na cidade de
Amargosa, realizando para isso alguns recortes temáticos.
A intenção era aproximar um dos lugares pelos quais a história (a
produção histórica) circula (no caso os museus) da comunidade do Centro de
Formação de Professores e externa à este centro. É refletir sobre o ensino de
história, objetivando a sua prática permeada de ricas experiências para todos,
ultrapassando o isolamento dos saberes constituídos, construindo pontes entre a
historiografia e os espaços onde ela é constantemente produzida, mesmo
inconscientemente, e por onde ela circula. Nesse sentido, a pesquisa e o ensino
devem caminhar de mãos dadas. São faces de uma mesma moeda.
É evidente que defender a identidade entre ensino e pesquisa não se confunde com usos vulgarizadores desses termos praticados em algumas escolas [...] e até em centros de pós-graduação. Identificar pesquisa e ensino significa preservar o rigor da produção de saber, próprio à primeira, e o compromisso de sua presença na cena social ampliada e sob controle de seus agentes, inerente ao segundo, pensando numa síntese desses atributos. Nesse sentido, há reciprocidade na aliança (ensino e pesquisa se iluminam, ampliam e superam simultaneamente) e garantia de que os atos de pesquisa e ensinar continuam a se questionar permanentemente em busca de novos horizontes na produção de saberes. (SILVA, 2003, p. 18-19)
Nessa experiência de construção de museu pedagógico de história em
movimento, a pesquisa foi parte integrante de todo o processo. Aquele foi
inteiramente construído pelos discentes, sob minha orientação, a partir de
entrevistas feitas com os moradores da localidade (12 em média em cada semestre
Museu pedagógico de história e ensino de história
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que a experiência se desenrolou) e com a coleta de objetos representativos das
transformações tecnológicas, de mentalidade, de hábitos e de costumes pelos quais
Amargosa havia passado no século XX e no início do século XXI. A partir de então,
os discentes começaram a pensar uma história educativa, formativa,
emancipadora, crítica, libertária. Começaram a ver uma história na qual todos
somos sujeitos dela. Se tornaram, então, os “novos” personagens da história, em
detrimento de uma história que enfatizava os líderes, as revoltas, as batalhas, os
governantes, etc... A história do cotidiano, do local, do regional passou a ser
entendida a partir de temas como moradias, sistema monetário, relações de
namoro e casamento, festas, vestuário, meios de transporte e de comunicação,
alimentação.
Outro objetivo nosso ao desenvolver essa experiência foi romper com a
ideia de que o museu é um local onde se depositam objetos velhos. Foi apresentar
aos graduandos em pedagogia as relações existentes entre museu e ensino de
história.
Fazer relações entre museu e educação, especialmente o ensino de história, implica reconhecer que, na sua própria definição, o museu sempre teve o caráter pedagógico – intenção, nem sempre confessa, de defender e transmitir certa articulação de ideias, seja o nacionalismo, o regionalismo, a classificação geral dos elementos da natureza, o elogio a determinadas personalidades, o conhecimento sobre certo período histórico, a chamada “consciência crítica”... Qualquer museu é o lugar onde se expõem objetos, e isso compõe processos comunicativos que necessariamente se constituem na seleção das peças que devem ir para o acervo e no modo de ordenar as exposições. Tudo isso sempre se orienta por determinada postura teórica, que pode ir dos modelos de doutrinação até parâmetros que estimulam o ato de reflexão. (RAMOS, 2004, p. 14)
Este era um dos nossos intentos: estimular o ato de reflexão por parte dos
discentes, dos entrevistados, dos visitantes. A reflexão sobre a própria história
deles, sobre o sujeito histórico, sobre a história da sociedade na qual cada um de
nós encontra-se inserido. Era perceber que o museu é um espaço importante nos
processos de renovação pedagógica, possibilitando por meio dos objetos
Tatiana Polliana Pinto de Lima
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 130-142.
conhecidos dos discentes o ato de aprender e a percepção de integração com a
história, com o mundo vivido e o desejo de modificá-lo.
No museu pedagógico de história, a percepção do museu templo de
adoração dos objetos perdeu espaço para a construção do museu-fórum, para a
reflexão crítica, para o ato comunicativo com os objetos expostos.
Atualmente, os debates sobre o papel educativo do museu afirmam que o objetivo não é mais a celebração de personagens ou a classificação enciclopédica da natureza, e sim a reflexão crítica. Se antes os museus eram contemplados, ou analisados, dentro da suposta “neutralidade científica”, agora devem ser interpretados. Mudam, portanto, os “argumentos museais”...” (RAMOS, 2004, p. 20)
Entra em voga o caráter educativo do museu, como o lugar onde os
objetos, neste caso os objetos pertencentes às famílias dos discentes, são expostos,
organizados para compor um argumento, uma reflexão, um pensar sobre o
presente vivido, para entendermos e conhecermos o nosso passado. É o estudo da
história pelos objetos. “Assim, qualquer objeto deve ser tratado como fonte de
reflexão, desde o tronco de prender escravos em exposição no Museu do Ceará até
o copo descartável que faz parte do nosso cotidiano.” (RAMOS, 2004, p. 22). No
caso específico da experiência desenvolvida já há três semestres, os objetos
variaram desde instrumentos de trabalho do trabalhador rural, documentos
pessoais, cartas pessoais, moedas, cédulas, brinquedos, utensílios domésticos,
roupas, até escrituras de terras de final do século XIX.
Estas escolhas didáticas e teóricas foram igualmente norteadas pelo
entendimento da importância de se trabalhar com a história local, com as histórias
de vida, com as memórias individuais e coletivas da cidade de Amargosa a partir da
História Oral, considerando que esta:
... é um recurso moderno usado para a elaboração de documentos, arquivamento e estudos referentes à vida social das pessoas. Ela é sempre uma história do tempo presente e também conhecida por história viva. Como história dos contemporâneos, a história oral tem de responder a um sentido de utilidade prática e imediata. Isto não quer dizer que ela se esgote no momento da apreensão e da eventual análise das entrevistas. Mantém um compromisso de
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registro permanente que se projeta para o futuro sugerindo que outros possam vir a usá-la. (MEIHY, 1996, p. 13)
Ao termos como ponto focal as memórias, as narrativas dos sujeitos
entrevistados, concebia-se que
...o trabalho com a memória pode possibilitar que os alunos relacionem a fisionomia da localidade e da cidade em que vivem, suas próprias histórias de vida, suas experiências sociais e suas lutas cotidianas, bem como experiências sociais e cotidianas de outras épocas. A memória torna-se, assim, elemento essencial na busca da identidade individual e coletiva. Lembremo-nos de Le Goff quando diz que “(...) a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é um das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (Menezes e Silva, 2007, p. 220)
Foi assim uma experiência que mexeu com as emoções, com as memórias
que eram de todos, mas também com aquelas que eram particulares, com algumas
lembranças que não mais se queria lembrar. Entretanto, foi também um descobrir-
se através da viagem no tempo e no espaço. O passado dialogando com o presente
e vice-versa, construindo uma grande temporalidade. Foi uma descoberta de si na
história recheada de prazer tanto por parte dos discentes como por parte dos
visitantes do museu. Foram exposições que desnudaram algumas memórias dos
habitantes da localidade.
Segundo Ricardo Oriá
... é a memória dos habitantes que faz com que eles percebam, na fisionomia da cidade, sua própria história de vida, suas experiências sociais e lutas cotidianas. A memória é, pois imprescindível na medida em que esclarece sobre o vínculo entre a sucessão de gerações e o tempo histórico que as acompanha. (ORIÁ, 2004, p. 139)
Todos abrimo-nos para além da sala de aula, alfabetizamos os nossos
olhares para além dos muros da universidade, foi um diálogo produtivo entre
teoria e prática, entre pensamento e ação, favorecendo a autonomia do fazer e do
ser sujeito histórico. Segundo Zamboni (1993)
Tatiana Polliana Pinto de Lima
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 130-142.
O objetivo fundamental da História, no ensino de primeiro grau (ensino fundamental), é situar o aluno no momento histórico em que vive... O processo de construção da história de vida do aluno, de suas relações sociais, situado em contextos mais amplos, contribui para situá-lo historicamente, em sua formação intelectual e social, a fim de que seu crescimento social e afetivo desenvolva-lhe o sentido de pertencer. (p. 7)
A História Local como estratégia pedagógica foi outra percepção que
norteou essa experiência. Através do conhecimento da história da localidade,
entendendo-a como parte de uma sociedade mais ampla, construiríamos olhares
múltiplos da História. Era entender as particulares de cada uma das histórias de
vida, das histórias familiares, não para que elas findassem em si mesmas,
explicassem por si sós a história da cidade, as transformações e permanências.
Mas, sim, que esta última fosse entendida em suas relações constitutivas com
outras localidades, com outras temporalidades, em processos históricos mais
amplos. Foi pensando, desse modo, que cada grupo composto por sete alunos, em
média, ficou responsável por dois temas diretamente. Entretanto, todos os grupos
deveriam pesquisar sobre todos os temas e os dados eram socializados em
momentos de orientação coletiva. A divisão se processou da seguinte forma: cada
grupo se responsabilizou pelas entrevistas com sujeitos (parentes dos discentes)
de variadas faixas etárias:
1- 70 e 90 anos
2- 50 e 69 anos
3- 30 e 49 anos
4- 15 e 29 anos
Esses grupos construíam um instrumento de coleta de dados (um roteiro
de entrevista), cujo objetivo era nortear a entrevista, sem, contudo, deixá-la
engessada. A seguir, um dos roteiros construídos pelas alunas Marly Santos e
Valdicélia Ferreira da Silva como exemplo.
ENTREVISTA COM PESSOAS ENTRE 70 E 80 ANOS
Museu pedagógico de história e ensino de história
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1-Perfil do entrevistado (idade, sexo, local de moradia).
2-Vestuário:
-Como eram as vestes masculinas e femininas da sua época?
-Quais são as principais diferenças das vestes atuais para as vestes da sua época?
3-Alimentação:
-Quais eram os alimentos mais consumidos?
-Como eram conservados os alimentos?
4- Relação namoro/casamento:
-Como se davam as relações de namoro?
-Qual era e como se dava o processo para se chegar ao casamento?
-Quais são as principais diferenças do namoro dessa época para o namoro na
atualidade?
5-Moradias:
-Como eram as estruturas das casas?
-Quais as principais diferenças das moradias dessa época para as moradias atuais?
6-Meios de transporte:
-Como se dava o transporte de pessoas e mercadorias na sua época?
-Quais são as diferenças do transporte dessa época para os transportes atuais?
-Quais os transportes que foram utilizados na sua época e que ainda continuam sendo utilizados? 7-Meios de produção:
-Quais eram as principais atividades econômicas desenvolvidas?
-Como se dava o processo de produção e venda de mercadorias?
8-Sistema Monetário:
-Qual a moeda utilizada na sua época?
-Existia algum banco na sua cidade?
-Como funcionava esse banco?
9-Música:
-Quais os estilos de músicas mais ouvidos na sua época?
-Quais as principais festas e em que períodos ocorriam?
-Quais as principais diferenças da música e das festas de sua época das atuais?
Tatiana Polliana Pinto de Lima
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 130-142.
Percebamos que em um primeiro momento as perguntas eram muito
diretivas, sem reflexão. Após debates em sala de aula, as perguntas foram
modificadas paulatinamente pelos grupos que passaram a indagar aos
entrevistados os por quês de, as suas percepções sobre o que estava sendo
relatado. Foi com os dados obtidos com as entrevistas e com os objetos coletados
nos arquivos familiares que o museu foi construído.
Subsidiados, então, pela Pedagogia de Projetos, pudemos de fato
acompanhar a interação dos discentes e perceber a atuação destes no desenrolar
da pesquisa. Ora, pudemos perceber a motivação, o envolvimento nas atividades, o
que permitiu que não empregássemos o nosso tempo enquanto docente do
componente curricular Ensino e Aprendizagem em História não para cronometrar
o tempo e o desempenho quantitativo de cada indivíduo envolvido no projeto, mas,
sim, observar o desempenho qualitativo, os dados trazidos, as discussões e debates
realizados. Segundo Selva Guimarães Fonseca:
A realização de um projeto envolve intenso trabalho de reflexão para a articulação de conteúdos, grupos e atividades. Aqui, o processo é privilegiado e não o produto final. Logo, professor e alunos, não estando pressionados pela necessidade de um produto imediato – pois vivenciam, refletem na e pela ação ‒, constroem conhecimentos de uma forma diferente, forma esta que permitirá aos alunos estarem envolvidos com a realização de uma atividade que tem significado dentro de um contexto mais amplo. (FONSECA, 1994, p. 104-105)
A percepção dos discentes ao final foi que o conhecimento histórico é algo
em permanente construção, não podendo ser considerado um fato cristalizado,
verdade absoluta imutável. Perceberam que este conhecimento é acumulado,
apropriado, reproduzido e transformado em diferentes níveis e contextos sociais e
re-significado de diversas maneiras. A experiência fez com que os mesmos
construíssem um relacionamento crítico e ativo com o conhecimento existente.
Fonseca (1994) nos traz que “...assumir a proposição investigativa em sala de aula
implica ousar e construir uma atitude reflexiva e questionadora diante do
conhecimento historicamente produzido” (p. 119). Esta, com certeza, foi a maior
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conquista de todos os envolvidos nesse Projeto: a reconciliação entre ação e
conhecimento, entre a história vivenciada pelo historiador e o conhecimento
cientificamente produzido.
A experiência de construção do museu pedagógico de história facilitou
A construção de problematizações, a apreensão de várias histórias lidas com base em distintos sujeitos da história, bem como de histórias que foram silenciadas, isto é, que não foram institucionalizadas sob a forma de conhecimento histórico. Ademais, [...] pode favorecer a recuperação de experiências individuais e coletivas do aluno, fazendo-os vê-las como constitutivas de uma realidade histórica mais ampla e produzindo um conhecimento que, ao ser analisado e retrabalhado, contribui para a construção de sua consciência histórica. (SCHMIDT, CAINELLI, 2004, p. 114)
Nesse sentido, o objetivo proposto quando do início do Projeto foi
alcançado: a partir de algumas fontes, tais como fontes orais, documentais e
resquícios materiais, conhecer um pouco da sociedade na qual vivemos, quais as
transformações e permanências que puderam e podem ser observadas nesta
mesma sociedade em alguns aspectos: no caso específico, a cidade de Amargosa. É
óbvio que não podemos apreender toda a História, nem é nosso objetivo, visto que
ela chega até nós por meio de evidências incompletas, parciais: registros
documentais, manifestações religiosas, objetos de arte, vestígios materiais,
registros orais, etc... Não podemos, então, afirmar que toda a História de Amargosa,
ao longo do século XX e princípios do século XXI, foi apreendida e trabalhada. Mas,
uma pequena lacuna dela foi percebida, problematizada, ressignificada.
Contribuímos para romper com a história construída somente a partir do aspecto
político, todavia a que se desse destaque e importância à diversidade de
pensamentos,
... dos tipos de organização social, dos valores, dos costumes, dos hábitos, das práticas e dos símbolos que informaram a vida social das sociedades do passado, notadamente entre as sociedades que pretensamente viviam em uma pré-história em relação àqueles que viviam na história, mas também à diversidade constituinte das sociedades e culturas de nosso presente, de nosso tempo. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p. 32)
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Esse projeto nos ensinou a prestarmos atenção ao outro, às suas vivências
para aceitá-las na sua essência. Nesse sentido, serviu para nos ajudar a formar
subjetividades, cidadãos conscientes da convivência pública, integrantes deste
espaço público, convivendo em uma realidade constituída por opiniões e
interesses muitas vezes divergentes. Foi a valorização da fala do sujeito “comum”,
do que não é o dirigente político, o prefeito, o líder comunitário, mas é o avô, o
mais idoso do bairro, o pai, a mãe. Encerraremos com a citação de Albuquerque
Júnior (2012) ao nos fazer refletir sobre o sentido da história hoje por entender
que as palavras a seguir nortearam a experiência de construção do museu
pedagógico de história no curso de Pedagogia da UFRB.
A história, ao focalizar inúmeras formas de resistência humana a realizar um sentido para as suas vidas e para a história, ao trazer para cena diferentes personagens – aqueles que se singularizam, que se destacaram, que se tornaram conhecidos, que foram registrados, escritos, nomeados, punidos e castigados porque tentaram dar sentidos diversos a sua existência e ao mundo, que se rebelaram contra Deus, a natureza, o destino, a ordem, o sistema, as estruturas e contra todas as instituições e categorias que definiram ao longo da história o que seria o necessário e o irrecorrível da existência dos homens -, nos propicia o aprendizado da liberdade, da necessária e constante luta pela liberdade que, afinal, é o próprio ser de sua existência. A história serve para que possamos formar subjetividades mais livres, mais desejosas, preparadas e dispostas a empreender a luta permanente e diuturna em busca do ser livre, ser que só existe enquanto prática permanentemente afirmada e retomada. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2012, p. 36)
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Museu pedagógico de história e ensino de história
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Arlette Medeiros; MAGALHÃES, Marcelo de Souza (org.) Ensino de história:
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Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 143-157.
O JORNAL COMO SUPORTE DOCUMENTAL E/OU RECURSO DIDÁTICO PARA ALIAR TRANSMISSÃO E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO NO ENSINO DE
HISTÓRIA1 Luciano Everton Costa Teles2
Resumo: Recentemente, a ideia de um ensino de história assentado estritamente na transmissão de conteúdo tem sido alvo de críticas ferrenhas. Tais críticas têm buscado romper com esta perspectiva que percebe a educação básica, seja ela pública ou privada, como espaço por excelência da reprodução do conhecimento, destacando as possibilidades e potencialidades da produção do conhecimento neste âmbito do ensino. Buscando contribuir com esta discussão, o presente artigo tem como objetivo demonstrar como os jornais podem ser utilizados no processo de ensino/aprendizagem como suporte documental e/ou recurso didático para promoção de um ensino de história inovador, pautado num entrelaçamento entre transmissão e produção de conhecimento. Palavras-chave: Ensino. Jornal. História. Abstract: Recently the idea of teaching history seated strictly on content delivery has been the target of fierce criticism. Such criticism has sought to break with this perspective that realizes the basic education, whether public or private, as space par excellence of reproduction of knowledge, highlighting the possibilities and potentialities of the production of knowledge in this field of education. Seeking to contribute to this discussion, this article aims to demonstrate how newspapers can be used in the teaching/learning as supporting documentation and/or teaching resource for promoting an innovative history teaching, guided into a blending of knowledge production and transmission. Keywords: Education, Newspapers, History.
INTRODUÇÃO
Durante décadas atrás se estabeleceram críticas ferrenhas sobre um
ensino de história pautado somente na transmissão de conteúdos. Não que os
conteúdos deixassem de ser importantes, mas sim pela forma que o ensino
1 Recebido em 09/10/2013. Aprovado em 16/11/2013.
2 Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas. Professor Assistente da Universidade do Estado do Amazonas – CEST. E-mail: [email protected]
O jornal como suporte documental...
144 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 143-157.
assumia neste processo, em especial tornando o aluno um receptáculo, tendo este
que reproduzir, via instrumento avaliativo3, o que lhe foi repassado na aula. 4
Paulo Freire, no decorrer das décadas de 1960 e 1970, elaborou uma série
de estudos demonstrando o caráter limitado dessa perspectiva de ensino sobre a
formação dos discentes. Na esteira deste autor, que se tornou referência para
estudos posteriores acerca da educação, surgiram reflexões que não somente o
utilizaram como referência teórica no campo da Ciência da Educação, como
tambémem disciplinas específicas, como no caso da disciplina Histórica.
Cabe destacar que, recentemente, o ensino de história vem se
consolidando como um campo de reflexão promissor, no qual questões como
metodologias de ensino, currículos, programas, recursos didáticos, livros didáticos,
formas assumidas pela disciplina histórica em contextos históricos diferentes,
constituem-se como balizas para a compreensão do ensino.
No interior desse movimento, o presente artigo tem como objetivo
demonstrar como os jornais podem ser utilizados no processo de
ensino/aprendizagem como suporte documental e/ou recurso didático,
promovendo um ensino de história inovador pautado num entrelaçamento entre
transmissão e produção de conhecimento, destacando este último aspecto.
O ENSINO DE HISTÓRIA: REPRODUÇÃO OU PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO?
O ensino de história, no decorrer de décadas anteriores, foi concebido por
meio de uma divisão hierárquica entre ensino superior e educação básica. Esta
divisão definia práticas e processos a serem seguidos, em especial ligados à
produção e transmissão de conhecimentos. Nesta esteira, o professor universitário
teria um papel fundamental na produção do conhecimento histórico enquanto que
o professor da educação básica se inseria no âmbito da transmissão desse
conhecimento.
3Em especial, teste e prova que são os mais tradicionais na perspectiva da “educação bancária” e, em menor intensidade, resumos, questionários, etc. 4O objetivo era, via instrumento avaliativo, extrair do aluno o que foi apresentado na aula, fidedignamente.
Luciano Everton Costa Teles
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O ensino de história, como os das outras disciplinas, encontra-se estruturado de tal forma que à universidade, ou 3º grau, compete a produção do conhecimento histórico (ou seja, é o espaço do chamado “discurso competente”, enquanto às escolas de 1º e 2º graus cabe a sua reprodução (CABRINI, 1994, p. 19-20).
Esta divisão acabou produzindo não somente uma hierarquia na relação
com o conhecimento, como também no status profissional, salarial, etc. (CABRINI,
1994, p. 20), situação vivenciada ainda hoje, no início do século XXI.
Em que pese à vigência dessa situação, recentemente surgiram várias
críticas sobre esta “divisão do trabalho”. As críticas assentaram-se na ideia de que
o conhecimento se constituicomo um processo e não um dado pronto, acabado e
definitivo. Neste sentido, cabia ao professor (tanto da educação básica como do
ensino superior) identificar e discutir os elementos presentes no processo de
construção do conhecimento. 5
Com efeito, no ensino de história, a “oficina de Clio” passou a ser
incorporada, tendo como foco a interlocução, o diálogo, conduzido pelo professor,
dos alunos com o objeto/tema de estudo.
Ressaltar os desdobramentos do ofício do historiador no trabalho do professor em sala de aula, bem como a preocupação com montagem do tema, a problematização, o trabalho de seleção, tratamento e confronto das fontes para a compreensão e explicação do objeto de estudo. Ter o aluno e professor como sujeitos históricos e do seu próprio conhecimento (CIAMPI, 2003, p. 112).
Apontar procedimentos, regras e perspectivas presentes na produção do
conhecimento histórico, demonstrando de que forma a interpretação sobre o
passado foi construída pelo historiador, tornou-se importante no processo do
ensino de história.
5Dois elementos se destacam no processo de construção do conhecimento. Primeiro o sujeito (pesquisador) que quer conhecer. Segundo o objeto que se coloca para ser conhecido. Da relação desses dois elementos emerge o conhecimento. Não obstante, outros fatores estão presentes nesse processo, em especial na formação do pesquisador (visão de mundo, de sociedade, tendência teórico-metodológica adotada, lugar social que ocupa, etc.) e nas possibilidades de exploração do objeto (acesso, cruzamento de informações, etc.).
O jornal como suporte documental...
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É preciso garantir que o professor de história seja alguém que domine o processo de produção do conhecimento histórico, que seja alguém que saiba se relacionar com o saber histórico já produzido e que, finalmente, seja alguém capaz de encaminhar seus alunos (sejam eles do 1º, 2º ou 3º graus) nesses mesmos caminhos da produção. Em outras palavras: o professor de história precisa ser alguém que entenda de história, não no sentido de que saiba tudo o que aconteceu com a humanidade, mas que saiba como a história é produzida e que consiga ter uma visão crítica do trabalho histórico existente(CABRINI, 1994, p. 23).
Portanto, dominar e encaminhar os passos da produção do conhecimento
histórico, buscando visualizar como a história, enquanto conhecimento, foi
produzida, configurou-se como salutar.
Além disso, a articulação entre conhecimento e realidade social pode
promover ações e comportamentos no sentido da promoção de mudanças sociais.
Isto porque o processo de produção do conhecimento no espaço escolar envolve
um conjunto de relações complexas onde alunos e professores articulam
experiências, vivências, interesses, valores e expectativas diferenciadas, o que
evidencia uma dinâmica, nesse processo, potencializadora de intervenções sociais.
Com efeito, atualmente tornou-se essencial romper com aquela “divisão do
trabalho” mencionada acima, apontando que os professores de história inseridos
no âmbito da educação básica podem trabalhar de forma articulada o ensino e a
produção de conhecimento. Sobre esta questão Idanir Ecco (2007, p. 137)
destaque que:
a contemplação de uma aprendizagem significativa requer uma metodologia participativa. E trabalhar História na perspectiva da produção do conhecimento requer atividades de pesquisa, de investigação, prática esta possível de implementação entre alunos e professores dos Ensinos Fundamental e Médio.
Assim, o professor da educação básica, ao contrário do que foi “imposto”
no passado,6 tem possibilidades de caminhar num processo de
6 Por imposição entende-se a construção e definição do papel social e profissional atribuído aos professores da rede básica de ensino (responsáveis pelo ensino, no sentido de transmissão do conhecimento) e aos professores de nível superior (responsáveis pela produção do conhecimento).
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Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 143-157.
ensino/aprendizagem que tenha como foco a articulação entre ensino e produção
de conhecimentos.
Para demonstrar essa possibilidade, tem-se como exemplo a utilização de
jornal como suporte documental e/ou recurso didático para a produção do
conhecimento histórico.
OS JORNAIS NA PESQUISA HISTÓRICA
A utilização da imprensa periódica como fonte para a pesquisa histórica
brasileira ganhou terreno, ainda de forma tímida e lenta, na década de 1970 após a
superação de antigas posturas que marcaram a prática historiográfica,
notadamente as noções de “fonte suspeita” e “repertório da verdade”.
Com relação à primeira postura, a imprensa periódica despertava
desconfiança nos historiadores. Os diversos temas tratados e as inúmeras
informações veiculadas, por não serem oficialescas – na medida em que não eram
documentos comprovadamente produzidos por agentes do governo – eram
relegados a um plano secundário. Entretanto, para aqueles que insistiam em
utilizá-la era necessário redobrar a atenção, a fim de não comprometer, com o uso
desse registro, a pretensa objetividade, tão ardorosamente desejada no interior da
disciplina histórica.
No extremo oposto, foi lentamente se constituindo a ideia de “fato
verdade”, que elegia a imprensa como “templo dos fatos”, enaltecendo a
objetividade do fato jornalístico e esboçando uma tendência a utilizá-la como
relato fidedigno da realidade, fonte imparcial e neutra dos acontecimentos
(CAPELATO, 1988).
Neste sentido, as informações contidas na imprensa periódica
representavam um recorte in loco da realidade, extraído e materializado em
artigos presentes nas colunas jornalísticas, supostamente a espera do historiador
para serem compiladas, observadas e exploradas.
No final da década de 1970 e início de 1980, a imprensa periódica foi
sendo vista de forma diferente. Num momento de reavaliação do tratamento
O jornal como suporte documental...
148 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 143-157.
dispensado pelo historiador às fontes históricas, a imprensa periódica passou a ser
tomada como espaço de representação de inúmeros aspectos da realidade.
A partir deste momento, a atenção voltou-se para os elementos
constitutivos da construção dos textos jornalísticos. Esta posição foi sendo
difundida e acabou influenciando os historiadores que caminharam no sentido de
romper com a postura que via a imprensa como “fonte suspeita” ou, inversamente,
como “repertório da verdade”, permitindo estabelecer questões que procuravam
elucidar não o fato jornalístico em si, mas a construção deste fato.
Com efeito, atentou-se que no processo de construção do fato jornalístico
os elementos subjetivos e os interesses do jornal interferiam decisivamente. Desta
forma, a tarefa preliminar de identificar os elementos construtores do fato se
tornou central na construção historiográfica, uma vez que possibilitava identificar
e localizar a imprensa socialmente e, assim, melhor compreender a lógica de seus
discursos e a emergência de projetos de intervenção social e política que, por
vezes, ela buscava encobrir.
Portanto, a adoção de uma postura cautelosa e crítica no trato com a
imprensa tornou-se referência obrigatória para os pesquisadores. Zicman
lembrava que, para os que resolviam tomá-la como fonte de estudo historiográfico,
era necessário atentar para o eixo norteador de sua ação – o campo político e
ideológico. Esta questão trouxe consigo a necessidade de estabelecer os principais
traços característicos dos órgãos de imprensa a serem investigados (ZICMAN,
1985, p. 91-92). Era preciso indagar ainda sobre o modo como os jornais
constituíram formas de olhar e narrar os eventos e de fixar uma versão entre
outras possíveis. Era preciso identificar o “lugar social de onde o jornal falava”
(VIEIRA, 1989).
Este processo foi importante, uma vez que deu à imprensa um lugar de
destaque nos estudos históricos, tal como sustenta Maria Helena Rolim Capelato
(1988, p. 13):
Manancial dos mais férteis para o conhecimento do passado, a imprensa possibilita ao historiador acompanhar o percurso dos homens através dos tempos. O periódico, antes considerado fonte suspeita e de pouca importância, já é reconhecido como material de pesquisa valioso para o estudo de uma época.
Luciano Everton Costa Teles
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 143-157.
Como fonte histórica, a imprensa configurou-se como um “manancial dos
mais férteis” para a reconstrução e elucidação do passado. Por meio dela, tornou-
se possível recuperar dimensões sociais importantes, notadamente as lutas, os
ideais, os compromissos e os interesses de diversos setores que compõem a
sociedade. A imprensa possibilitou um melhor conhecimento das sociedades no
nível de suas condições de vida, manifestações culturais e políticas, dentre outros
aspectos.
Desta forma, vários trabalhos emergiram como, por exemplo, a nível
nacional e dentro da seara da História do Trabalho, as obras de Maria Auxiliadora
Guzzo Decca (1997), Sidney Chalhoub (1991), Francisco Foot Hardman (1983),
Ângela de Castro Gomes (1988), dentre outros.
Por outro lado, a imprensa também foi tomada como objeto de estudo.
Neste caso, os estudos nos remetem, num primeiro momento, aos Institutos
Históricos e Geográficos espalhados pelas regiões do país e aos intelectuais ligados
a estas instituições, com destaque para Alfredo de Carvalho e Afonso de Freitas. Os
trabalhos desenvolvidos por estes profissionais consistiam na realização de
levantamentos de jornais e abordagens descritivas sobre os mesmos. Deste modo,
a imprensa era vista por uma perspectiva descritiva, factual e cronológica.
Sobre esta perspectiva, Marialva Barbosa (2004, p. 03) alega que “escrever
a história da imprensa não é, certamente, alinhar fatos e datas, nomes e mais
nomes, nem destacar os personagens que se tornaram singulares na construção
engendrada no passado para o futuro”.
Com efeito, a tentativa de construção de uma História da Imprensa no
Brasil não se restringiu a este primeiro momento. Em 1966 surgiu a História da
Imprensa no Brasil, obra de vulto que refletiu sobre a dinâmica e evolução dos
órgãos de Imprensa e analisou suas características em diversas conjunturas.
Ancorado em um modelo marxista que atrelava a dimensão cultural ao nível da
infraestrutura – aquela era reflexo desta –, Sodré via imprensa como um “aparelho
ideológico do estado”. Esta dimensão pode ser percebida logo no início do livro
quando afirmou que “a história da imprensa é a própria história do
desenvolvimento da sociedade capitalista” (SODRÉ, 1999, p. 1).
O jornal como suporte documental...
150 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 143-157.
Porém, esta não foi a única obra que procurava construir, por outro viés,
uma História da Imprensa no Brasil. Precedendo a obra de Sodré, Juarez Bahia
(1990) procurou discutir não só um sentido geral na história da imprensa
brasileira, mas também inquirir essa historicidade em articulação com os
processos de incorporação de novas tecnologias e linguagens. Além de Bahia,
Carlos Rizzini (1988) e Hélio Viana (S/D) também desenvolveram estudos sobre os
órgãos de imprensa em perspectiva global.
Considerando as obras que buscavam analisar globalmente a História da
Imprensa do Brasil, Geraldo Pinheiro (1993/94, p. 198) assim se posicionou:
não obstante a grande contribuição que estes trabalhos trouxeram ao debate contemporâneo, eles carregam limitações de suas época. Assim pois, Carlos Rizzini, Hélio Viana e Juarez Bahia estão fortemente marcados por perspectivas positivistas, enquanto Nelson Werneck Sodré, com a ortodoxia que lhe é peculiar. 7
Cabe mencionar que os estudos menores e mais regionalizados não
ficaram de fora. Nesta linha, a obra de Ignotus (1883), que abordou a imprensa no
Maranhão entre 1820 e 1880, e Luiz do Nascimento (1972), o qual focalizou a
imprensa em Pernambuco, são exemplares.
Desta forma, a partir da segunda metade do século XIX até meados da
década de 1970, os estudos que tomaram a imprensa enquanto objeto de
investigação, ora em plano global ora em plano regional, caminharam em duas
vertentes. Na primeira, a imprensa era encarada de forma descritiva, factual,
cronológica e preocupada em fazer levantamentos de documentação sobre jornais
(catálogos e listagens). Esta perspectiva acabou apresentando um baixo teor
explicativo. Na segunda, o jornal era visto como “aparelho ideológico do estado”, o
que acabou gerando um empobrecimento analítico resultante do determinismo
econômico.
7 O autor estabelece também a divisão cronológica realizada por Sodré e Bahia. Enquanto aquele optou por uma divisão que acompanha a periodização tradicional da historiografia brasileira (Imprensa Colonial, Imprensa da Independência, Imprensa do Brasil Império e da República, subdividindo esta em dois capítulos: a grande Imprensa e a crise da Imprensa brasileira), este a divide em três grandes períodos, chamando-os de “Etapa Inicial” (1808 – 1880), “Fase de Consolidação” (1880 – 1930) e “Fase Moderna” (1930 – 1960). Idem, (1993/94, p. 197-198).
Luciano Everton Costa Teles
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 143-157.
Nas décadas subsequentes, a noção de imprensa enquanto “prática social
que compunha o tecido social urbano” se difundiu e contribuiu para a emergência
de trabalhos relevantes, com destaque para o trabalho de Heloisa de Farias Cruz
(2000) que buscou refletir sobre as relações entre cultura letrada, periodismo e
vida urbana no processo inicial de formação da metrópole paulistana.
Cabe destacar que atualmente a tendência encaminha-se em tomar a
imprensa periódica como objeto e fonte de estudos concomitantemente. Esta
perspectiva apresentou-se profícua, pois acabou articulando duas dimensões que
potencializaram a produção do conhecimento histórico por meio de um diálogo em
que a imprensa periódica tornou-se o foco dos estudos.
Compreender a imprensa como instrumento de intervenção na vida social em que seu estudo pode se dar como objeto/fonte, uma vez que desaparece a categoria imprensa na forma abstrata para dar lugar ao movimento vivo das idéias, protagonistas e, principalmente, para que emerjam dessa produção de sentidos, como resultado da operação histórica, sujeitos dotados de consciência determinada na prática social (GONÇALVES, 2001, p. 09).
Com efeito, a recuperação histórica da constituição da imprensa, suas
tecnologias, linguagens, dinâmicas e transformações ao longo do tempo, bem como
as informações contidas nos artigos veiculados, que surgiram por meio de aspectos
presentes na realidade do cotidiano do local onde o periódico circula e que acabam
alimentando a produção de ideias e sentidos, apresentam-se como fundamental e
rica para a construção do saber historiográfico.
USANDO O JORNAL PARA ARTICULAR ENSINO E PRODUÇÃO DE CONHECIMENTO
Com efeito, no processo de ensino/aprendizagem o jornal pode ser
utilizado em dois sentidos: como suporte documental (objeto/fonte de estudo) e
como recurso didático.
No primeiro caso,o jornal pode ser explorado para demonstrar como o
historiador o utiliza no processo de construção do conhecimento, destacando a
relação deste com o documento e revelando as formas de abordá-lo no sentido de
O jornal como suporte documental...
152 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 143-157.
extrair informações sobre aspectos do passado que irão compor uma interpretação
específica.
Nesta esteira, o professor da educação básica, ao buscar os jornais nos
acervos da cidade, nas publicações de fac-símiles 8 ou em sites específicos,9 poderá
traçar uma atividade explorando-o como “passaporte” para adentrar numa época
especifica, explicando-a por meio das informações contidas no jornal, solicitando
que os alunos, por meio de problematizações, reflitam sobre ele, produzindo desta
forma conhecimento. Traduzindo:
a partir de elementos levantados para o exame de uma determinada realidade histórica, os alunos fizeram algum trabalho de reflexão que os leve à produção do conhecimento (...) sobre essa realidade e à compreensãoda forma como esse conhecimento foi construído (CABRINI, 1994, p. 30).
Assim, questões como definição do tema, problematização, seleção de
informações, compreensão e explicação acabam sendo elementos fundantes nesse
processo.
Imagem 1: Jornal Gutenberg Fonte: Acervo do Laboratório de História da Imprensa no Amazonas – LHIA/UFAM
8Ultimamente, no campo da História, os historiadores canalizaram esforços no sentido de buscar, no interior dos acervos, documentos significativos para publicação, num processo de divulgação e democratização do acesso aos mesmos. Neste contexto, vários documentos foram recuperados e publicados, como por exemplo, processos judiciais, relatos de viajantes, jornais os mais variados, etc. 9Na mesma linha de divulgação e democratização do acesso aos documentos históricos, várias instituições disponibilizaram em sites na internet documentos que podem ser baixados. Pode-se citar como exemplo o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) que em seu site disponibiliza
documentos do século XIX ao XXI.
Luciano Everton Costa Teles
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 143-157.
Por outro lado, o jornal pode ser utilizado como recurso didático. Neste
caso, ele se configurará como um instrumento mediador dos temas e das
explanações estabelecidas pelo professor e direcionadas aos alunos. Também pode
ser usado para compor um material específico, construído pelo professor para
explicar um determinado conteúdo.
Em determinadas situações, “a produção de materiais pelos professores é
a melhor forma de atender a especificidade de determinado conteúdo” (PORTAL
DO PROFESSOR, p. 4). Portanto, o jornal pode ser explorado também nesta
perspectiva.
O jornal como suporte documental...
154 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 143-157.
Cabe destacar que os jornais mais recentes, incluindo aí os atuais,
caracterizam-se como primordiais para discussão e produção de reflexão sobre
questões do presente, fomentando uma compreensão da realidade mais atual e, de
certa forma, promovendo uma visão crítica.
Imagem 2: Jornal O Solimões Fonte: Biblioteca do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM)
Com efeito, o jornal utilizado tanto na perspectiva de suporte documental
como de recurso didático constitui-se como instrumento capaz de promover a
Luciano Everton Costa Teles
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 143-157.
articulação entre ensino e produção de conhecimento na educação básica,
inserindo o professor e o aluno nesse processo.
... os alunos do ensino fundamental e médio podem, juntamente com seus professores, tornar-se pesquisadores nas suas localidades, buscando informações, construindo o conhecimento histórico a partir da investigação da memória de seus familiares, de patrimônios históricos, de obras de arte, de jornais de época. Trata-se de possibilitar aos alunos, quando possível a manipulação direta do objeto de estudo (DIEHL, 2002, p. 227) (Grifo nosso).
Com efeito, a utilização de jornais como instrumento para a produção do
conhecimento se insere num movimento maior de fomentar “a manipulação direta
do objeto de estudo” por parte dos professores e dos alunos da educação básica e,
como mencionando na citação acima, não se restringe somente aos jornais. 10
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observou-se que a utilização do jornal como suporte documental e/ou
recurso didático pode promover um processo de ensino/aprendizagem inovador,
cuja perspectiva se assenta na articulação entre transmissão e produção de
conhecimentos, destacando que é extremamente possível que o professor da rede
básica de ensino paute sua atuação profissional nesses termos.
Com isso, buscou-se romper com a “divisão do trabalho” docente, segundo
a qual cabia aos professores de nível superior a produção do conhecimento e aos
professores da educação básica apenas, a transmissão do mesmo.
Por meio do domínio acerca da produção do conhecimento histórico e da
capacidade em traduzir esse processo para os alunos, a proposta de aliar
transmissão e produção do conhecimento por meio da exploração de jornais
dificilmente se tornará traumática.
REFERÊNCIAS
10Além do resgate da história local, via história oral, a exploração do patrimônio histórico, dos museus, dos espaços da cidade, etc.
O jornal como suporte documental...
156 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 143-157.
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Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 158-169.
A MANIPULAÇÃO DOS SABERES NA CONSTRUÇÃO DE UMA HISTÓRIA LOCAL1
Iranilson Pereira de Melo2
Resumo: O presente trabalho teve por objetivo discutir como a historia da cidade de João Câmara vem sendo apresentada na sociedade camaraense, seja ela no legislativo, nas esquinas, e principalmente, nas escolas, que após a institucionalização (obrigatoriedade) do ensino de historia local na rede municipal de ensino da cidade regida pela Lei nº 283/2009; tomam como base para a construção dos discursos, as escritas memorialistas, com predominância do autor Aldo Torquato da Silva com três livros publicados e aproximadamente 3 mil obras em circulação; sendo entendidas como verdades absolutas, verdadeiros manuais sobre a história da cidade. Conclui-se, então, que a utilização destes livros sem que haja uma problematização do seu conteúdo, rompem com os princípios que norteiam o ato de se pensar e ensinar história que se propõem a construção de conhecimento crítico reflexivo, que possibilitaria a compreensão e intervenção do individuo na sociedade. Palavras-chave: Historia local, memorialista, ensino.
Resumo: El presente trabajo tuvo por objetivo discutir como la historia de la ciudad de João Cámara viene siendo presentada en la sociedad camaraense, sea ella en el legislativo, em las calles, y principalmente, en las escuelas, que después de la institucionalización (obligación) de la enseñanza de historia local en la red municipal de enseñanza de la ciudad regida por la Ley nº 283/2009; toman como base para la construcción de los discursos, las escrituras escritores de memorias, con predominancia del autor Aldo Torquato de Silva con tres libros publicados y aproximadamente 3 mil obras en circulación; siendo entendidas como verdades absolutas, verdaderos manuales sobre la historia de la ciudad. Se concluye, entonces, que la utilización de estos libros sin que haya una problemática de su contenido, rompen con los principios que orientan el acto de pensarse y enseñar historia que se proponen la construcción de conocimiento crítico pensativo, que posibilitaría la comprensión e intervención de la persona en la sociedad. Palabras-chave: Historia local, escritores de memorias, enseñanza.
INTRODUÇÃO 1 Recebido em 02/10/2013. Aprovado em 15/11/2013.
2 Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN, Núcleo Avançado de Ensino Superior de João Câmara. E-mail: [email protected]
Iranilson Pereira de Melo
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 158-169.
As discussões sobre o local, na cidade de João Câmara, como em outras
cidades; ascendem em produções principalmente memorialistas exaltando grandes
nomes, famílias... “um espelho de uma história tradicional” de meados do século
passado, apresentando pouco rigor cientifico levando em consideração que seus
principais escritores fazem parte de famílias influentes da cidade, ou ainda
políticos com mandatos no poder legislativos na cidade no presente ou no passado.
Quando se trata de história local sobre a cidade de João Câmara, a
principal fonte são os livros do escritor Aldo Torquato, tomados como manuais,
verdadeiras “bíblias” sobre a cidade: São os livros “Baixa-Verde: Fatos, Causos e
Coisas” (2004) “Baixa-Verde Raízes de nossa história” (2009), e “Baixa-Verde –
outras histórias”. Em seu primeiro livro, “Baixa-Verde: fatos, Causos e Coisas”, o
autor busca mostrar, em um primeiro momento, os fatos ocorridos na história da
cidade. Ele usa o termo “fato” para dar certa consistência e credibilidade a sua fala
quando o texto trata de assuntos como a fundação da cidade Baixa-Verde,
buscando o cerne da história da cidade, apresentando grandes fatos, e fortes
nomes políticos. Na segunda parte ele busca apresentar histórias que eram
contadas, sejam elas engraçadas, como os relatos do Chico da Bomba, e, por último,
em seu terceiro capitulo intitulado “Coisas”, o autor destina este espaço para
apresentar momentos vividos por ele em diversos momentos da sua vida, como: as
brincadeiras do seu tempo de criança, as histórias de assombração que eram
contadas e aterroriza as suas noites e dos seus parentes quando crianças, a
conquista da primeira moto, entre outras histórias, Aldo Torquato também
apresenta nomes de significância na cidade, fotos etc.
Já em seu segundo livro ele busca compilar, de forma pretensiosa, obras
como: “Baixa-Verde: fatos, causos e coisas” (2004) – Autor: Aldo Torquato –;
“História De Um Homem (João Severiano da Câmara)” (1954) – Autor: “Câmara
Cascudo -; Vertentes (Memórias)”(1976) – Autor: João Maria Furtado; “Baixa-
Verde: Ontem, Hoje e Amanhã” (2002) – Autor: Paulo Alexandre Da Silva; “Baixa-
Verde: Retalhos da sua História” (1990) – Autor: Paulo Pereira Dos Santos; “Um
A manipulação dos saberes...
160 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 158-169.
Homem Admirável” (1997) – Autor: Paulo Pereira Dos Santos; “Páginas Do
Tempo”( 2005) – Autor: Paulo Pereira Dos Santos.
Em seu terceiro livro, ele busca apresentar certo rigor à sua escrita,
deixando claro que será apresentado um ponto de vista sobre a história de João
Câmara, bem como a “isenção” no papel como escritor, quando diz que “A tarefa de
aprofundamento dos temas tratados neste livro é o desafio que proponho aos
historiadores, pesquisadores e curiosos presentes e futuros”, (TORQUATO, 2012:
17). Contudo, no decorrer do livro, o autor demonstra explicitamente sua presença
dentro da história local, bem como nomes, datas etc.
O presente trabalho traz como tema: “A manipulação dos saberes na
construção de uma história local”. A cidade de João Câmara, não distante de outros
municípios visando perpetuar sua história, e percebendo que a escola seria o
melhor espaço de (re)produzir estas acepções, cria a “Lei nº 283 de junho de 2009,
que estabelece a obrigatoriedade do Ensino de História do Município na rede
municipal de ensino e das outras províncias”, e posteriormente, em 03 de março de
2010, sob o projeto de Lei nº 01 “[que] tem como princípio anexar um parágrafo ao
artigo 2º da Lei municipal nº 283 de junho de 2009, está abarcando além das aulas,
agora, medidas preventivas no tocante aos abalos sísmicos do Município de João
Câmara” (MELO, 2013). É importante apontar que este “ensino de História Local”
se dá dentro da prerrogativa, segundo a qual, deve ser destinado no mínimo de 10
horas/aulas por ano para esta discussão, estando correlata a disciplina de História
do Rio Grande do Norte.
Para tanto, objetivou-se com o presente estudo compreender as
intencionalidades que envolvem a institucionalização da lei, de modo, a refletir
sobre incorporação de novos recursos (didáticos e paradidáticos) que possibilitem
o estudo da história local, tais como: o jornal, poema, vídeos na busca para
entendermos os abalos sísmicos ocorridos em 1986 na cidade de João Câmara;
para assim, permitir a construção de um conhecimento mais prazeroso para o
alunado, permitindo a estes discentes sentirem-se participantes na construção da
historia da sua cidade.
MATERIAIS E MÉTODOS
Iranilson Pereira de Melo
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 158-169.
O presente trabalho tem como proposta para o seu desenvolvimento o
método comparativo/analítico, pois não apenas comparamos os discursos como
também procedemos a sua analise, tentando desvendar sua ordem utilizando de
leitura de teóricos e de memorialistas para a problematização do conhecimento
que vem sendo inseridos em sala de aula, possibilitando a construção de um
estudo que forneça recursos para se pensar a historia local partindo do principio
do que esta sendo imposto como verdades na cidade de João Câmara, em
consonância a estruturação de meios que problematizem este espaço, e ainda, seja
uma fonte para o desenvolvimento do meio no ato de se ensinar a historia da
cidade.
RESULTADOS E DISCUSSÕES
Os discursos reproduzidos pela população baixaverdense/camaraense,
pelo poder legislativo, nas esquinas e ainda nas escolas, se assemelham aos
discursos produzidos pelos memorialistas, gerando certas inquietações, pelo fato
de muitas vezes esses discursos reproduzidos serem constantemente repetidos
sem ser realizada uma análise, tidos, assim, como verdade, ou seja, um discurso
predominante, imutável às anuências do tempo e espaço, reafirmado pela
sociedade, por seus comportamento e valores que geram um aprisionamento do
indivíduo, como nos apresenta Foucault:
Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua “política geral” de verdade, isto é, os tipos de discurso que aceita e faz funcionar como verdadeiros..., os meios pelo qual cada um deles é sancionado, as técnicas e procedimentos valorizados na aquisição da verdade; o status daqueles que estão encarregados de dizer o que conta como verdadeiro. (FOUCAULT, 1979)
Não é objetivo desse trabalho “dizer” que o modo como se vem
produzindo/contando a “história” na cidade João Câmara é falsa ou mentirosa, mas
sim, dizer que essa história (re)produzida é passível de ser estudada, (re)pensada,
e problematizada. Almeida (2010) nos faz pensar esses aspectos quanto em seu
A manipulação dos saberes...
162 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 158-169.
texto ela diz sobre a produção de conhecimento cientifico e sua complexibilidade:
“[...] longe do equilíbrio, dinâmicos e em grande parte imprevisíveis, o rigor não
poderá ser outra coisa senão um modo de falar do fenômeno que se caracteriza
pela mutabilidade e abertura [...]” (ALMEIDA, 2010: 33). Isto se dá como a própria
autora apresenta, sob uma metáfora – “a historia contada é apenas a parte visível
de um imenso iceberg” (ALMEIDA, 2010). Podemos entender, então, que a
utilização de fontes, tais como: jornal, arquivos, monumentos, juntamente com o
dialogo com outras ciências/disciplinas e a utilização rigor teórico-metodológico
respaldado cientificamente possibilitaria novas (re)interpretação de um dado fato,
consolidado como verdade imutável, e abrindo uma série de problematizações
possíveis para um mesmo fato, expondo versões e visões até então não pensadas,
para a construção de uma “nova” história.
A construção escrita de história local geralmente é apresentada por
memorialistas, pois, costumeiramente, os historiadores dão maior atenção a
histórias macro. Sendo populares influentes (advogados, médicos, políticos) os
principais escritores locais, contudo, estes não conseguem condensar as
características cientificistas necessárias para academia. Nesta perspectiva, Certeau
argumenta que “Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de
produção socioeconômico, político e cultural” (CERTEAU, 2002: 62). Ou seja, a
partir da definição de uma temática, o autor faz um recorte que possibilitará na sua
escrita apresentar questões relativas às aproximações e distanciamentos que ele,
como autor, deixará explicito ou implícito em seu texto, bem como o seu “lugar
social” (posicionamento na sociedade), “uma prática” (a utilização de arquivos e
das fontes e posterior analise) e “uma escrita” (sistematização do conhecimento).
Este conjunto de fatores permite construir e discutir a história, utilizando os
diversos lugares, sobre questionamentos coerentes que poderão auxiliar na
compreensão e posterior disseminação do trabalho historiográfico pronto, ainda
que apenas para aquele momento. Assim, percebemos que as produções
acadêmicas utilizam-se como base para o seu desenvolvimento as fontes, a episte e
o lugar, dialogando entre si, buscando no e do historiador a imparcialidade, para
posterior concretização e construção da escrita.
Iranilson Pereira de Melo
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 158-169.
Contudo, notou-se na cidade de João Câmara, que na busca da
disseminação da história da cidade institui a obrigatoriedade do Ensino de história
local. Em parte, a inserção do conteúdo local nas escolas municipais de forma
obrigatória pretende apresentar questões deixadas de lado pelos grandes recortes
adotados nos livros didáticos, contemplando histórias negadas, histórias que são
deixadas de lado que deixam aparecer figuras populares, fatos significativos para a
comunidade. Ainda que a história local apresentada na cidade de João Câmara
consiga apresentar questões locais, problematizando-as, existe, na realidade, um
verdadeiro jogo de interesses, pois o então redator da Lei nº 283/09, o Sr. Aldo
Torquato, presidente da Câmara (no período de aprovação da lei), vereador com 5
mandatos no Legislativo, ex-prefeito, escritor de 3 obras memorialistas sobre a
cidade de João Câmara, institui aos professores a obrigatoriedade de se destinar
no mínimo de 10 horas/aulas por ano para a discussão local. Desse modo, o autor
da lei (escritor, político) defende sua memória, contando histórias sempre
dominantes à sua vivência, buscando compor uma identidade camaraense
unificada, partindo muitas vezes do “EU” (Aldo Torquato), de sua vivência na
construção dos seus livros, em que os títulos publicados por Aldo Torquato são as
principais fontes de estudos sobre João Câmara, rompendo com princípios
norteadores da prática do ensino de história.
O escritor/memorialista em sua escrita discorre e expõem todos os seus
desejos e anseios, mostrando a sua vida de modo que o leitor chega a confundir a
vida do autor com a história da cidade. Esse texto foi extraído do seu primeiro
livro, “Baixa-Verde fatos, causos e coisas” e inserido no livro “Baixa-Verde Raízes
de nossa história”, como os primeiros capítulos. É notória tal afirmação em certas
passagens do seu texto, tais como:
Como já tive a oportunidade de mencionar anteriormente, os habitantes de Assunção chamavam o lugar onde a estrada de ferro se instalara simplesmente de Matas, porém os novos habitantes preferiram denominá-lo de Baixa-Verde, por situar-se em uma região de baixo relevo e solo arenoso, coberto por uma gramínea sempre verde, mesmo nas épocas de secas mais intensas. Coube ao Dr. Antônio Proença oficializar o nome Baixa-Verde apondo-o na fachada da Estação Ferroviária que construíra. Na chamada
A manipulação dos saberes...
164 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 158-169.
“graminha”, até os vinte e cinco anos, joguei “peladas” inesquecíveis. (TORQUATO, 2009) (grifo do autor).
No parágrafo seguinte mostra a presença de sua família desde os
“primórdios” (título dado pelo autor ao capítulo) da cidade:
Pouco depois da chegada da estrada de ferro, chegaram a Baixa-Verde, entre os anos de 1915 e 1920, meu avô, Pedro Torquato, vindo da região conhecida como beira-do-rio e Antônio Justino de Souza, entre tantos outros desbravadores. Foi também por aquele tempo que nasceu no lugar um menino a quem os pais deram o nome de Gumercindo Saraiva, que se fez músico, comerciante e folclorista, há alguns anos falecido em Natal, onde ainda moram sua esposa e seus filhos. Gumercindo foi amigo de infância de meu pai, Abdon Torquato. (TORQUATO, 2009) (grifo do autor).
Não diferente do seu terceiro livro, que usa de dois textos em forma
literária para apresentar a sua história e a história da cidade, no capítulo Na
Fazenda de Santa Rosa e no capitulo seguinte, Retalhos do Caminhar de uma família
nordestina.
E segue em seu texto fazendo em certos momentos menção a ele (Aldo) e
sua família, buscando instituir sua vivência, a sua memória, para o coletivo, onde
Halbwachs reflete: “toda memória coletiva tem como suporte um grupo limitado
no tempo e no espaço” (HALBWACHS, 2006: 106), Esta se apresenta de forma
implícita, ou explicitamente, nas diversas camadas da sociedade (re)afirmando um
molde estruturante da mesma. Estruturante por que esta memória se consolida
como verdade “indiscutível” e genealógica3, onde “são mascarados os defeitos e
enaltecidas as qualidades” (HALBWACHS, 2006: 143). Por tanto, o
compartilhamento que vai para além do indivíduo compõe um ambiente de
comunhão de saberes internalizados pelos indivíduos, que objetivam um
sentimento de pertença ao local, ainda que este local não exista fisicamente.
Estas relações de pertença que são impostas, desenvolvidas e
disseminadas em João Câmara são (re)afirmadas pela repetição nos diversos meios
3“Ela é a consciência de pertencer a uma cadeia de gerações sucessivas das quais o grupo ou o indivíduo se sente mais ou menos herdeiro”. (CANDAU, 2012: 142)
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de diálogo deste conhecimento, tendo em sua finalidade, como já citado
anteriormente, uma “construção cultural”, por meio dos “fatos, dos causos, e das
coisas”, estabelecida nas relações de identidade para com a cidade vista pelo olhar
do autor memorialista. Para tanto, Hall analisa as acepções relacionadas a
identidade cultural:
[...] ao mesmo tempo que internalizamos seus significados e valores, tornando-os “ parte de nós”, contribui para alinhar nossos sentimentos subjetivos com os lugares objetivos que ocupamos no mundo social e cultural. A identidade, então, costura [...] o sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais queeles habitam, tornando ambos reciprocamente mais unificados e previsíveis. (HALL, 2011)
As adversidades presentes ainda que nos pequenos espaços, no local, são
indeterminadas e substancialmente singulares, mesmo por que, estas relações de
identidade(s) de um dado local são compostas por memórias diversas, não
homogêneas, sendo as experiências de cada individuo parte integrante da história
do espaço que ele pertence; negligenciá-la, sem perguntar: “Quando?”, “Por quê?”,
“Fundado e embaso em quê?”, ou seja, não problematizá-lo segundo as
(re)produções e pensamento elitizado, aceitando pensamentos e reflexões de um
dado grupo de forma passiva, sem manifestar seus desejos e anseios nessa história,
culmina num “fechar de portas” para outros tantos “fatos, causos e coisas”.
Neste momento é importante que distingamos a memória e a história.
Pierre Nora diz:
[...] A memória é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de longas latências e de repentinas realizações.[...] [decontraponto] A história [por ser uma produção] intelectual e laicizante, demanda análise e discurso critico [...] A memória instala a lembrança de um grupo que une. [...] A história, ao contrario, pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal (NORA, 1981).
Podemos, então, afirmar que os livros: “Baixa-Verde: Fatos, Causos e
Coisas” (2004), “Baixa-Verde Raízes de nossa história” (2009) e “Baixa-Verde –
A manipulação dos saberes...
166 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 158-169.
outras histórias” (2012) têm suas características essencialmente atreladas à
memória de um dado grupo, ainda, que dentro desse processo dialético, esse
constructo apresente lacunas que a memória apresenta, a serem estudadas,
problematizadas e historicizadas, tornando, neste caso, o local factível para a
história.
Assim, a inserção desses livros memorialistas nas salas de aula, tomados
como verdades, devem atentar a essas particularidades do discurso pensado pelo
autor, bem como o seu desejo de reproduzir as suas análises, de quem e do que é
bom ou ruim para cidade. Dentro desta proposta, “(...) o professor pode deixar
[aflorar, na utilização desses livros] as contradições, identificá-las, problematizá-
las e compreendê-las, com criatividade e criticidade, um processo de ensino
aprendizagem livre de preconceitos e estereótipos” (FONSECA, 2003: 167),
visando a ampliação dos horizontes na utilização dos livros. Desde que
questionados, mediante o diálogo com documentos, há aberturas para uma nova
escrita e interpretação da história contada; e ainda, compreendendo estes (os
documentos – jornais, fotos, poesia, cordel, vídeos) como uma possibilidade de
recurso a ser inserida dentro do contexto escolar, visando auxiliar a prática
docente, que se apresenta no livro memorialista que por diversas vezes compõem
“o” instrumento nas aulas, ao se tratar de história local na cidade de forma
dominante na construção dos discursos. Para tanto, os recursos paradidáticos
possibilitam uma análise e distanciamento das ideias memorialistas possibilitando
a construção do saber mais isento e menos pragmático compactuado nos livros do
autor Aldo Torquato.
CONCLUSÃO
Diante do caminho percorrido neste trabalho, pode-se concluir que a
influência da figura do memorialista na escrita da história local e na influência que
ele exerce na sociedade é inegável, mesmo por que esses pequenos recortes
espaciais, o local, pouco tem interessado aos estudiosos e suas respectivas
publicações a abordar questões, muitas vezes simplistas, que muitas vezes não
Iranilson Pereira de Melo
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 158-169.
excederia aos limites da própria cidade, cabendo, assim, muitas vezes aos
trabalhos monográficos atenderem essa demanda para com o conhecimento local.
A grande questão que se deve atentar para com a leitura dos livros do
autor Aldo Torquato na cidade João Câmara é a tomada dos discursos
apresentados por ele (Aldo Torquato) como verdades, ou melhor, sem
problematizá-los, sem questionar os discursos que chegam até a população. A
escrita memorialista, como o próprio nome sugere, se trata de memórias, ou seja, a
organização de memórias divulgadas, disseminadas e, neste caso, publicadas. São 3
títulos publicados, sendo eles Baixa-Verde: Fatos, Causos e Coisas (2004), Baixa-
Verde Raízes da nossa história (2009), e Baixa-Verde – outras histórias (2012),
circulando na cidade aproximadamente 3.000 mil cópias. O método utilizado por
Aldo Torquato não condensa as características necessárias para academia, e a
utilização destes livros sem questioná-los, sem usar fontes alternativas, para
afirmar ou apresentar outras versões sobre os fatos, acaba condenando ao
descrédito as informações.
Por tanto, verificou-se, ao longo da elaboração dessa pesquisa, que se deve
ir além dos livros: Fatos, Causos e Coisas (2004), Baixa-Verde Raízes da nossa
história (2009), e Baixa-Verde – outras histórias (2012), mas também destaco que
estes são importantes: estes livros não devem ser excluídos da construção da
história da cidade de João Câmara, mas, sim, manter um diálogo com outros
recursos que possibilite tornar o local mais compreensível, como jornais, poesia,
cordel, vídeo etc. Cada temática exige sua especificidade, cabendo ao
professor/aluno/popular buscar os recursos possíveis para tornar a sua aula, e o
seu discurso mais prazeroso, sem as longas repetições de uma história tradicional.
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FAZENDO HISTÓRIA: A MILITÂNCIA COMO TRAÇO IDENTITÁRIO DOS ESTUDANTES DE HISTÓRIA (FEIRA DE SANTANA-BA, 1986-1991)1
Jackeline Silva Lopes2
Resumo: O presente artigo visa analisar a militância como traço identitário dos
estudantes da primeira turma de Licenciados em História da Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS), ingressos em 1986 e formados em 1991,
destacando como esta identidade se construiu, sua relação com o contexto em que
o curso foi criado, com o currículo implantado e com a influência/o exemplo dos
docentes. Pretende-se, assim, problematizar o papel da militância na formação dos
historiadores (professores e pesquisadores). Para tanto, recorre-se ao Projeto de
Implantação do Curso de História, ao Relatório de Estágio da Turma e aos
depoimentos de sujeitos que participaram do processo, especialmente ex-alunos,
como suporte documental.
Palavras-chave: Identificação profissional. historiador/professor de História.
militância.
Abstract: This article examines militancy as a trace of the identity of the first class
of students graduates in History from the Universidade Estadual de Feira de
Santana (UEFS), who entered in 1986 and graduated in 1991, highlighting how this
identity was constructed, its relation to the context in which the course was
created, with the curriculum as well as the influence and example provided by
teachers. The aim is to discuss the role of activism in the formation of historians /
history teachers. As supporting documentation, refers to the Project
Implementation of the Course of History, the Report Stage of the Group and the
interviews with subjects who participated in the process, especially old students.
1 Recebido em 10/09/2013. Aprovado em 19/11/2013.
2 Mestra em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Professora Assistente da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – Departamento de Educação / Campus XIV – Conceição do Coité. E-mail: [email protected]
Jackeline Silva Lopes
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 170-184.
Keywords: Professional identification; historian / teacher of history; militancy.
Nem todos viveram outros tempos, mas, no senso comum da sociedade
atual, parece ser uma unanimidade a sensação de que vivemos um louco “novo
tempo”. Alguns o aproveitam, outros o temem, sobrevivem das lembranças de
tempos passados, se ressentem de não tê-los vivido ou profetizam o apocalipse,
mas ninguém parece inerte à sua presença e inferência nas vidas de cada um de
nós.
Desde a década de 1970, vivemos este “novo tempo”, caracterizado como
um tempo de mudanças. Dentre estas, podemos citar: fim da relação fordiana-
keynesiana entre capital e trabalho, flexibilização das relações trabalhistas,
globalização dos mercados, dependência político-econômica dos países periféricos,
enfraquecimento do Estado e fortalecimento dos micropoderes, fragmentação dos
movimentos sociais e diversificação de suas bandeiras de luta, naturalização da
miséria, do consumismo e do capitalismo como um sistema indestrutível, expansão
dos meios de comunicação de massa, efemeridade das tecnologias. É também um
tempo de crises: econômicas, das nacionalidades, do Estado, dos valores, da
estrutura familiar padrão, dos movimentos sociais, das identidades, dos sujeitos e
dos paradigmas científicos e ideológicos.
Alguns estudiosos da contemporaneidade, a exemplo de Giddens (1991),
Hall (2000, 2005), Silva (2000) e Woodward (2000), apontam também para os
efeitos das transformações contemporâneas sobre as identidades. Isso porque os
processos históricos que fixaram certas identidades - como o processo de
contestação ao sistema capitalista, que se baseava nas identidades de classe, ou o
processo de formação dos Estados Nacionais, que se sustentavam na definição de
identidades nacionais - entraram em colapso e as identidades que lhes davam
suporte, ficam fragmentadas, dispersas em meio às novas identidades, como as de
gênero, sexualidade, etnia e raça e outros processos de identificação política, social
ou cultural. Assim, ora nos agarramos e ora nos afastamos dessas múltiplas
identidades, que são, por vezes, conflitantes, e a idéia que temos de nós próprios
como sujeitos integrados é abalada.
Fazendo história
172 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 170-184.
Esta perda de um “sentido de si” estável é chamada, algumas vezes, de deslocamento ou descentração do sujeito. Esse duplo deslocamento – descentração dos indivíduos tanto de seu lugar no mundo social e cultural, quanto de si mesmos – constitui uma “crise de identidade” para o indivíduo. (HALL, 2005, p. 9).
Diante do exposto, percebemos que já não é possível à identidade de classe,
por exemplo, atuar como uma identidade mestra que alinha e reconcilia as
diferentes identidades na construção de uma política, porque as pessoas já não
consideram que seus interesses sociais são contemplados em termos de classe.
No Brasil, para a maioria da população, essa contemporaneidade demorou
mais a se fazer sentir e compreender, uma vez que tendo o país vivido uma
ditadura militar até meados da década de 1980, os efeitos da nova ordem
capitalista ficavam camuflados como reflexos do regime ditatorial. A impressão
que se tinha era a de que, uma vez derrubados os militares do poder e implantado
um regime democrático no país, os problemas que afetavam a nação se
resolveriam. O clima de grande mobilização social, através de movimentos
organizados como os de trabalhadores e da igreja, fortalecia essa idéia, de modo
que se vislumbrava a possibilidade de uma democracia que verdadeiramente
garantisse o poder ao povo.
É neste contexto de efervescência e otimismo que foi instituída, em 1986, a
Licenciatura Plena em História na UEFS. Acompanhando um movimento nacional,
o curso surge em substituição à Licenciatura Curta em Estudos Sociais – existente
na UEFS desde 1976 –, após um longo processo de lutas, encampadas por
professores da instituição e estudantes do curso de Estudos Sociais. Segundo
afirma a Professora Elizete da Silva (2002), que participou da mobilização pela
mudança, além de integrar comissão que elaborou o projeto do curso, as primeiras
manifestações pela sua implantação remontam ao final da década de 1970, tendo
seu ápice na grande passeata pelo campus de 1983, encerrada com um enterro
simbólico do curso de Estudos Sociais na Reitoria da instituição.
Segundo Silva (2002, p. 233), a criação do curso de História na UEFS
representava, para os professores e estudantes de Estudos Sociais que fizeram
parte desse processo, uma luta política maior, tanto pelo seu alcance, já que era
Jackeline Silva Lopes
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 170-184.
uma luta travada em âmbito nacional pela ANPUH (Associação Nacional do
Professores de História), quanto no que tange à extensão dos efeitos dessa medida
para a educação feirense e para a política local/regional.
A expectativa para com a implantação do curso de História estava
relacionada às concepções de Universidade – voltada à compreensão e intervenção
na realidade social - e de História, como ciência capaz de “auxiliar na
compreensão” desta realidade e na “solução dos diversos problemas que atingem a
sociedade brasileira” (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA, 1990,
p. 6). A História assume, então, um caráter salvacionista, e o profissional que nela
atua deveria ter uma sólida base teórica que lhe permitisse uma visão crítica da
realidade, já que seriam eles responsáveis por, em tempos de redemocratização,
formar cidadãos brasileiros críticos, através de sua atuação no ensino de 1º e 2º
graus (atuais ensinos fundamental e médio, respectivamente) e propor soluções de
bases científicas para os problemas sociais. É possível perceber, a partir do Plano
Estrutural do curso, uma aproximação do professor de História que se quer formar
tanto com o perfil de um “intelectual orgânico” gramsciano quanto com o
“professor progressista” freiriano, o qual seria capaz de desenvolver a “consciência
crítica” dos alunos e contribuir para a transformação da sociedade, através de uma
atuação não apenas profissional, mas também no exercício do papel de um
militante político-social.
Um traço marcante do currículo do curso de História implantado na UEFS
era sua orientação marxista e freiriana, perceptível a partir da forma como as
disciplinas foram organizadas, numa lógica linear que partia dos modos de
produção, nas referências bibliográficas das disciplinas e na necessidade constante
de justificar-se enquanto um curso voltado para a produção de ferramentas para a
transformação da realidade social. Tal informação se confirma quando, ao
analisarmos a estrutura do curso de História no Plano, percebemos que, dentre as
suas 64 disciplinas, 39 apresentam em suas ementas conceitos e expressões
marxistas, a exemplo de estrutura social, política ou econômica, relações de
produção, modo de produção, luta de classes, sistemas produtivos, método
dialético ou dialética, materialismo, burguesia e proletariado. Nas 25 disciplinas
que sobram, deixando de explorar tais conceitos e expressões, 12 eram
Fazendo história
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relacionadas a outras áreas de conhecimento, mais precisamente Letras, Exatas e
Saúde. Além disso, as obras de Freire são referenciadas em três das 4 disciplinas
pedagógicas do curso, bem como consta nas referências do relatório de Estágio.
(UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA, 1990).
Pode-se dizer, ainda, que se tratava de uma formação que prezava muito
pela leitura de textos teóricos. O depoimento de um ex-aluno da primeira turma do
Curso de História aponta para esta característica:
A gente fez um curso de graduação em que... quase todos os nossos professores, se não todos, se auto definiam como marxistas. (...) E, a despeito dos limites de alguns... de alguns desses professores, a respeito do que hoje me parece ser insuficiências na elaboração teórica de alguns deles, nossas bibliografias, a orientação geral das disciplinas, contribuiu para que eu acumulasse leituras, que eu acumulasse espertice (...). (D3, entrevista concedida em 21 jan. 2009).3
A partir da análise da literatura consumida pelos estudantes de História de
fins da década de 1980 e início da de 1990, na qual se encontra Louis Althusser,
Pierre Bourdieu, Jean-Claude Passeron, Antonio Gramsci, Demerval Saviani,
Bárbara Freitag e Paulo Freire, autores estes citados em depoimentos, bem como
referenciados no Relatório de Estágio e nos programas/ementas de disciplinas do
plano estrutural do curso, é possível perceber o ideal de sujeitos e profissionais
que se pretendia formar na universidade, com a intenção de vê-los agir
politicamente na sociedade. Tais profissionais comporiam uma liderança
comprometida com a mudança social, sendo a educação o seu campo prioritário de
atuação, tendo em vista a concretização do projeto de transformação.
É o que percebemos na fala de um dos depoentes abaixo, quando
perguntado sobre a concepção que tinham, na época da formação, quanto ao ser
professor de História:
Esta frase aí (...) está muito condicionada ao que a gente vivia no momento. (...) eu acho que também deve fazer parte da sua
3 A fim de preservar a identidade dos depoentes, em respeito às normas do Comitê de Ética da Universidade Estadual de Feira de Santana, iremos designá-los como D acompanhado de um número (a exemplo de D3).
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pesquisa, acredito, o que é que nós líamos naquele momento, tanto da área de história quanto da área de educação, principalmente da área de educação. Então, um dos livros clássicos, de Bárbara Freitag, que é “Estado, escola e sociedade” [na verdade, “Escola, Estado e sociedade”], além de ler Paulo Freire, além de ler Gramsci, uma série de bibliografias (...) para estudar, principalmente na área de educação, e pensar a história. Falavam dessa questão do que é o professor, dessa vinculação política, dessa vinculação militante do professor de História. (...) Então muitos desses relatórios, dessa concepção aí, do que é o professor, estava baseada muito no que nós líamos e no que nós discutíamos (...). Nós tínhamos que ter coerência com o que nós estávamos trabalhando (...). (D7, entrevista concedida em 30 dez. 2009)
Havia, ainda, o forte envolvimento entre docentes e discentes na construção
do curso além de coparticipação nas lutas internas da universidade, momentos
estes em que os mestres tornavam-se referências de compromisso e militância. A
militância parecia ser uma característica presente na maioria dos professores de
História da UEFS no período em destaque. É isso que sugere D5, ex-aluno desta
turma:
(...) nós tínhamos um quadro muito bom de professores, professores que não apenas eram bons, eram bem preparados, do ponto de vista da acumulação do conhecimento, mas pessoas que tinham um envolvimento, que tinham comprometimento com aquilo que faziam, com o próprio curso e com as lutas que o próprio curso demandava e nas quais o curso se envolvia, que era o movimento estudantil, que era o movimento dos professores, o movimento sindical. (Entrevista concedida em 30 dez. 2009).
Constata-se, nesse caso, uma consideração diferenciada a respeito da
qualificação dos professores, distintamente de uma transcrição anterior, na qual o
depoente põe em dúvida o verdadeiro domínio do marxismo da parte deles,
deixando dúvidas quanto à formação teórica que possuíam. Apesar da avaliação
crítica recentemente elaborada, o mesmo informante que questiona os seus
antigos mestres (D3) e mais um dos entrevistados durante a pesquisa nos
fornecem pistas do peso referencial de alguns docentes para a formação da turma.
Fazendo história
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Neste trabalho, entrevistamos dois destes docentes: a Professora Elizete da
Silva e o Professor Elói Barreto. A primeira, por exemplo, destaca, em depoimento,
a militância acadêmica como um de seus traços característicos.
Além das leituras teóricas, dos textos, das discussões e de tudo o mais, nós ainda fazíamos política (com ênfase) acadêmica dentro desta universidade. (...) Não era só aulinhas de História do Brasil que eu dava. A gente tinha uma vida acadêmica que englobava a totalidade. E era bom, nós fazíamos com muito prazer, nós fazíamos com muita garra. (...) E eu estou muito, muito feliz aqui. Eu acho que... que do ponto de vista da... da minha contribuição para a formação de uma geração de profissionais, eu estou tranqüila, eu estou tranqüila, eu acho que eu dei o que eu pude, posso ter errado em algumas coisas – todo mundo erra -, posso ter exagerado em outras, posso ter politizado demais... Uma vez um aluno meu disse que eu politizava tudo [risos da entrevistadora], eu disse: “hum... sou um animal político”, né? (Elizete da Silva, entrevista concedida em 14 out. 2009).
O Professor Elói Barreto, por sua vez, também orgulha-se de sua
militância:
[...] eu lutei a vida toda pela Universidade, a construção da Universidade Estadual de Feira de Santana, a vida inteira, muito. Eu tenho uma alegria profunda disso. Não quero ser reconhecido por conta disso não, mas foi uma alegria profunda. (Elói Barreto de Jesus, entrevista concedida em 28 jan. 2009).
Assim, percebe-se que a primeira turma de História da UEFS ingressou no
curso em um contexto otimista e de grande efervescência dos movimentos docente
e estudantil, carregando consigo as convicções e o espírito da época durante toda a
formação acadêmica e profissional. De certo, isto garantiu a esta turma uma
formação bastante específica, como muitos exaltam, chegando a emocionar-se ao
rememorar a época:
[...] fazer universidade para a gente foi... [chora] fundamental. (...) Os professores que nós tivemos, a discussão, o momento, o contexto também era muito... muito favorável para isso, né? Então a gente é um pouco dessa coisa de... uma vontade de mudar o mundo, mesmo. (...) A gente tinha a formação de História, do conteúdo, mas a nossa formação política foi importantíssima, importantíssima (...) Na época, quando a gente chegou, só dava
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engenharia, e engenharia civil era o curso, e a gente muito ousado, e aí a gente entrou para disputar, pra brigar, pra aparecer mesmo, mas pra fazer, puxamos pra gente a responsabilidade de fazer movimento estudantil e... e aí a gente cresceu rápido, o curso de História se fez respeitar muito. (...) Então, o fazer História da gente não era fazer História, só assistir aula, não. Mas era, também, deixar uma marca dentro da universidade, aproveitar as oportunidades. (D6, entrevista concedida em 08 jan. 2010).
Chama atenção, no depoimento acima, a preocupação em destacar que não
se limitaram à condição de estudantes do curso – mais do que isso, foram
construtores dele e da Universidade. É o que também destaca o depoimento
abaixo:
O curso de História estava sendo montado e nós participamos ativamente da montagem do curso, muita coisa que estava em aberto, e nós discutimos como fazer pra criar o Colegiado de História, regulamentação de vários dispositivos curriculares, mudança de currículo, a montagem do corpo docente, enfim, é... a criação do diretório acadêmico que não existia e foi construído por nós (...). Aqueles foram anos em que nós tivemos, pela primeira vez, eleições diretas para reitor, aqueles foram... em [19]87, foi a primeira vez que nós conseguimos fazer isso. (...) Aqueles foram os anos em que nós elegemos pela primeira vez no Departamento o diretor do Departamento, (...) em que nós ocupamos o prédio, que era pra ser uma creche, estava abandonada, e transformamos em residência universitária. Aqueles foram anos de memoráveis... greves de professores, das quais nós participávamos, de maneira ativa, de maneia decidida. (...) Nós tínhamos sido convidados a construir, e, de algum modo, era visível que nós tínhamos aceito esse convite. (D3, entrevista concedida em 21 jan. 2009).
Formados neste contexto, não surpreende as representações sobre a
História e sua função social, apresentadas pelos alunos da primeira turma de
História da UEFS no Relatório de Estágio da turma, conforme demonstra o trecho
destacado abaixo:
A concepção dialética e materialista da História (...) faz esta ciência cumprir o que chamamos acima a sua vocação profética, isso é, denunciadora da luta de classes e do seu produto histórico e anunciadora da possibilidade dos homens assumirem seu papel de sujeitos críticos de sua própria ação e, principalmente, das
Fazendo história
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ações coletivas. (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA, 1993, p. 21-23). [grifos meus]
Aqui, o uso do termo “vocação profética” para a História cumpre o papel de
dar o destaque que desejavam à sua função crítica e emancipadora como natural,
como uma essência.
É a partir destas convicções que os futuros docentes de História aqui
estudados expõem suas autorrepresentações sobre os profissionais que seriam.
Nessa perspectiva, afirmavam que o profissional formado em História pela UEFS
assumiria a função social de
intelectual orgânico das classes subalternas em potencial, ou seja, um agente interno dos grupos sociais explorados, atuando no sentido de sistematizar e catalisar a WELTANSCHAUUNG,4 superar o senso comum. (...) A luta por fazer chegar uma nova concepção de História ao 1º e 2º graus, então, passa a confundir-se com a luta por uma nova concepção de mundo, alternativa à óptica burguesa, a ser constituída pela classe subalterna através de seus intelectuais. (UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA, 1993, p. 23).
O “ser professor de História” assume, portanto, uma explícita e exaltada
conotação político-ideológica . Ao atrelar a capacidade do intelectual orgânico em
cumprir esta vocação profética da História ao domínio da concepção dialética e
materialista da História, e ao frisar que, para tanto, faz-se necessário “um curso
que consiga instrumentalizar o profissional para a referida vocação”
(UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA, 1990), os futuros formados
“professores de História” pela UEFS, por sua vez, se colocam como preparados
para exercer esta função, já que dominavam a concepção dialética e materialista da
História e tiveram uma vivência no tocante à militância. É o que destaca D5:
História é a ciência essencial, a gente entende... Nesse entendimento a gente achava que a transformação, ela passava obrigatoriamente, primeiro pela nossa qualificação, permanente qualificação. Nós deveríamos ser realmente intelectuais, mas não apenas intelectuais de gabinete, não apenas intelectuais de academia e não apenas intelectuais; tínhamos que ser intelectuais,
4 Palavra alemã que significa visão de mundo.
Jackeline Silva Lopes
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 170-184.
mas intelectuais cujos serviços estivessem colocados a favor das classes subalternas e da transformação. Nós queríamos ser exatamente, diametralmente opostos àquilo que nós identificávamos como sendo os professores de História daquela época: mantenedores do estado, mantenedores da subalternização, mantenedores da desigualdade (...).E daí a gente volta para a questão da dubiedade do curso: Eu quero ser pesquisador. Eu quero ser pesquisador e produzir o conhecimento. Eu quero produzir conhecimento, e quero, já que eu vou ser professor, e quero, eu mesmo, levar adiante esse conhecimento. Eu só não quero ser só intelectual e não quero ser só repassador, reprodutor do conhecimento. Eu quero construir o conhecimento. (Entrevista concedida em 30 dez. 2009).
O mesmo sinaliza D3, quando afirma: “nós saímos da universidade como
intelectuais orgânicos e faríamos a diferença, através da nossa atuação
profissional. O mundo do ensino de História seria outro depois da nossa chegada”
(Entrevista concedida em 21 jan. 2009).
Pelos depoimentos coletados, é possível perceber, ainda, que a formação a
partir da militância, impulsionava esses jovens para a necessidade de ir muito mais
além do que o simples exercício de uma profissão, de modo que ser
historiador/professor de História, para eles, significava também uma missão, um
compromisso social, uma luta em prol de uma sociedade melhor. É o que podemos
perceber no depoimento de D5:
[...] nós éramos militantes do movimento estudantil, militantes mesmo do movimento social - alguns de nós mais, outros menos -, então aquilo que nós colocamos lá está carregado de nossa concepção de sociedade, de nossa concepção de profissional, nossa concepção de transformação [com ênfase e ironia] do mundo, nós éramos revolucionários, né? Nós desejávamos isso, aliás, ser professor é ser um transformador. “A Revolução passa obrigatoriamente, necessariamente, por nós”. Nós acreditávamos nisso. (Entrevista concedida em 30 dez. 2009).
Do mesmo modo, chama à atenção a frequência com que se referem à
profissão como compromisso sério a ser seguido, conforme destaca D6:
Eu digo que a minha atuação... ela é uma atuação pautada no compromisso que eu gestei dentro da universidade. Eu não me vejo uma professora que possa ir para uma sala de aula ludibriar, enrolar os alunos (...). Então a formação teórico-política ajudou
Fazendo história
180 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 170-184.
(...). O desafio era ganhar o respeito. E como é que você ganha o respeito? Sendo um profissional sério, né? Então, assim, eu consegui um respaldo dos alunos, (...) na medida em que você alia a sua criticidade a um... uma... digamos, um comportamento, uma postura profissional, e mostrando aos alunos o que é ser um professor comprometido com o ensino público, de não faltar aula, de dar aula, de não ir para lá enrolar, de não passar ninguém sem saber, então, de você ter uma postura assim, bastante crítica também, na análise, na argumentação, engajada também no movimento... (Entrevista concedida em 08 jan. 2010).
A partir dos trechos aqui destacados, tanto do Relatório do Estágio da
primeira turma do Curso de História da UEFS, quanto dos seus ex-alunos,
depoentes nesta pesquisa, tornou-se possível perceber que a formação pautada na
leitura de teóricos marxistas e na vivência da militância, a partir da referência dos
seus docentes, foi fundamental para que pautassem sua identidade profissional em
um engajamento ideológico, político e social – inicialmente, estudantil e,
posteriormente, profissional – e no compromisso com a transformação da
sociedade.
[...] nesse caldeirão [da Universidade] é que fomos cozinhados, ou cozidos, e daí saímos, assim, pessoas... muitas dessas pessoas, comprometidas com o que faziam, comprometidas com o movimento, comprometidas com... com o lutar por uma vida melhor para todo mundo, cada qual no seu... no seu espaço, no seu ambiente, mas pessoas comprometidas com... com esse transformar a história para uma coisa melhor, profissionalmente muito comprometidos com a disciplina História, com o ramo da ciência... com a ciência chamada História, pessoas muito comprometidas com a profissão e pessoas muito solidárias, entre si. (D5, Entrevista concedida em 30 dez. 2009).
Pode-se afirmar, portanto, a partir dessas autorrepresentações, que na
formação dessa primeira turma de Licenciatura em História da UEFS a
universidade cumpriu com os objetivos propostos em seu Plano de Curso: habilitar
profissionais que tenham “a responsabilidade profissional” e “o compromisso
político com o desenvolvimento da capacidade crítica dos seus alunos”
(UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA, 1990). Aparentemente,
estava certa a Professora Elizete da Silva, quando, ao defender que “não era um
curso de História apenas para formar conteúdos de História, era um curso de
Jackeline Silva Lopes
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 170-184.
História para formar cidadãos, professores engajados num processo para a
transformação social”, avaliou o trabalho realizado: “eu acho que a gente foi
eficiente se conseguiu passar isso para eles”.
Entretanto, no início da de 1990, começaram a se tornar perceptíveis no
Brasil os efeitos das mudanças observadas em nossa contemporaneidade,
principalmente no que se refere à penetração das idéias neoliberais, ao
enfraquecimento do poder estatal, à naturalização da miséria e das desigualdades.
O contexto era de crise econômica, tentativas frustradas do Governo Federal em
implantar pacotes econômicos, arrocho salarial, desemprego, instabilidade, até
mesmo nos empregos públicos, e escândalos de corrupção. Segundo Rodrigues
(1999, p. 64-65),
Havia no ar, e manifesta, uma descrença generalizada. Nos governantes, na existência de saídas, enfim, na possibilidade de tudo se ajeitar. Havia também irresponsabilidade nos pronunciamentos políticos e nas atitudes de grande parte dos governantes. Como acreditar nas boas intenções do poder público se elas são, diariamente, desmentidas pelos fatos? (...) Todas estas “pequenas distorções” compunham um imenso quadro de insegurança, impotência e desproteção que ainda caracteriza o cotidiano da maioria dos cidadãos brasileiros.
Assim, se antes, para a maioria dos brasileiros, a culpa das mazelas do país
era depositada no governo ditatorial, hoje prevalece no senso comum a noção de
que os governos democráticos falharam em sua missão de salvar o país e
frustraram as expectativas sociais, gerando a incredibilidade, o marasmo e o
esvaziamento dos movimentos sociais organizados.
Diante desse contexto, como ficaram as identidades da geração de
historiadores/professores de história militantes, formados na UEFS na primeira
turma do Curso, entre 1986 e 1991?
Estes professores tiveram e têm histórias de vida e experiências
profissionais diferentes. Por isso, construíram trajetórias diversas e, nelas,
desenvolveram múltiplos processos de identificação profissional, constituindo
identidades múltiplas e, por vezes, contraditórias, comportamento comum na
contemporaneidade, como sinalizamos no início deste texto.
Fazendo história
182 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 170-184.
Entre os seis ex-alunos da primeira turma do curso de Licenciatura em
História da UEFS aqui entrevistados, é possível recompor traços da trajetória
profissional e deduzir sobre os efeitos da identificação profissional construída
durante o processo de formação e no exercício da prática docente.
Dois indicam, em suas avaliações, que tentaram ser efetivamente os
professores idealizados nos anos de vida universitária, mas perceberam que o
modelo imaginado não era viável na realidade da escola pública que vivenciavam,
buscando, por isso, redimensionar seus objetivos profissionais, de forma a melhor
se adaptarem à realidade – ao invés de promotores da revolução social,
motivadores de transformações significativas nas vidas de alguns alunos. Assim,
consideram-se satisfeitos e felizes na profissão, apesar do cansaço e das
frustrações em alguns momentos.
Um deles também tentou redimensionar a profissão, mas tem maior
dificuldade de se desvencilhar dos antigos ideais. Por não conseguir colocá-los em
prática, sente-se “frustrado”, desenvolvendo a pretensão de abandonar a sala de
aula, embora deseje permanecer na área de educação.
Outros dois, que também tiveram dificuldades de se desvencilhar dos
antigos ideais e encontraram obstáculos para realizá-los na escola pública. Estes
identificaram-se melhor com o exercício da profissão no nível superior, onde as
barreiras são menores e o reconhecimento social e financeiro é maior. Em suas
falas, ao mesmo tempo em que afirmam gostar daquilo que fazem e que não teriam
problema em continuar o trabalho em escolas públicas caso fosse necessário, não
disfarçam a preferência pelo ensino superior.
Há ainda um que desde o início percebeu que não se identificava com o
ensino em níveis médio e fundamental e fez sua opção pelo ensino superior. Sente-
se realizado na escolha que fez, embora se ressinta da experiência que deixou de
adquirir em salas de aula do nível fundamental e médio.
E o que dizer das novas levas de historiadores/professores de História que
estão se formando na UEFS? Qual o papel da militância estudantil na construção
identitária dos profissionais nela formados? Este é um estudo ainda a ser feito, mas
a realização de um Seminário na UEFS em dezembro de 2011, organizado pelo
Diretório Acadêmico Estudantil e por um coletivo de estudantes do curso, sob o
Jackeline Silva Lopes
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 170-184.
título “O movimento estudantil e a memória do curso de História” representa um
desejo de refletir sobre a identidade profissional e a possibilidade ou necessidade
de manter a militância como um dos traços identitários dos profissionais de
História formados na UEFS.
Hoje, novas bandeiras de luta se colocam para os futuros
historiadores/professores de História: aquelas referentes a raça, gênero,
preconceitos regionalistas, geração, meio ambiente, dentre outras. Para aqueles
inclinados a se lançar nestas batalhas, ficam as palavras do Professor Elói Barreto
para reflexão:
Então é como eu vejo hoje a profissão de Historia. Eu aposto profundamente naqueles que são capazes de resistir, são capazes de, para além de tudo que tão vivendo, acreditar que amanhã pode ser diferente. (...) Então, não imagino que vocês, que os profissionais de História hoje, vão ser reconhecidos pelo sistema. Não. Pela Universidade? Não, não vão. Eles vão ser sempre lutadores, até um outro momento, vão ser sempre aqueles que vão garantir a luta, tá certo? (Elói Barreto de Jesus, em entrevista concedida em 28 jan. 2009).
REFERÊNCIAS
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HALL, Stuart. Quem precisa de identidade? In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.).
Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes,
2000, p. 103-133.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. 10ª Ed. Rio de
Janeiro: DP&A, 2005.
RODRIGUES, Marly. A década de 80: Brasil: quando a multidão voltou às praças.
3ª Ed. São Paulo: Ática, 1999.
SILVA, Elizete da. Combates pela História nas terras de Lucas da Feira. Humanas:
Revista do Departamento de Ciências Humanas e Filosofia – Universidade Estadual
de Feira de Santana. Feira de Santana: UEFS, Ano 1, n. 1, p. 227-244, jan/jun 2002.
Fazendo história
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SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
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WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In:
SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos
culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 7-72.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA. Plano Estrutural do Curso
de Licenciatura em História. Feira de Santana: UEFS, 1990.
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA. Relatório de Estágio do
curso de História, 1990.2: pesquisa histórica e interferência na escola pública de
1º grau em Feira de Santana. Feira de Santana: UEFS, 1993.
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 185-198.
O ENSINO DE HISTÓRIA ANTIGA: A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL ATRAVÉS DE OFICINAS PEDAGÓGICAS1
Beatriz Moreira da Costa2
Resumo: A elaboração de estratégias para o ensino de História Antiga é uma
preocupação cada vez mais frequente aos especialistas e educadores da área. A
oficina pedagógica “Cozinhando para o deus Osíris” foi elaborada a partir da estela
de Senusret-iunefer (datado da XII dinastia: c. 1897 a 1878 a.C. ), que faz parte do
acervo do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, com o
objetivo de explorar os campos da educação patrimonial e oferecer métodos de
ensino de História Antiga.
Palavras-chave: Egito Antigo; Festival de Osíris; Ensino de História; Educação
Básica; Museu Nacional; Cultura Material; Alimentação.
Abstract: The development of strategies for the teaching of Ancient History is an
increasingly common concern among educators and specialists in the area. The
educational workshop "Cooking for the god Osiris" was devised using the stela of
Senusret-iunefer (dating from Dynasty XII:. 1897-1878 BC), which is part of the
collection of the Museu Nacional of the Universidade Federal do Rio de Janeiro,
with the objective of exploring the field of heritage education and offer methods of
teaching ancient history.
Keywords: Ancient Egypt; The Osiris Festivals; History Teaching; Basic Education;
National Museum; Material Culture; Alimentation.
1 Recebido em 05/10/2013. Aprovado em 12/12/2013.
2 Graduanda do curso de História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e bolsista do
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), sob orientação da Prof.ª Dr.ª
Regina Maria da Cunha Bustamante.
O ensino de história antiga
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INTRODUÇÃO
O presente trabalho foi elaborado na disciplina Tópico Especial em História
Antiga II - Oficina Pedagógica “À mesa com os antigos”, ministrada no primeiro
período de 2013 pela Prof.ª Dr.ª Regina Maria da Cunha Bustamante na
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Trazer a cultura material do
Mediterrâneo Antigo exposta em museus cariocas à realidade do corpo docente e
discente da Educação Básica é um dos objetivos do projeto “Cultura material na
Antiguidade Clássica e os desafios da Educação Patrimonial” o qual a disciplina se
insere. Nesse semestre foi trabalhado o tema “Alimentação”, tema este que se
trabalhado em uma pesquisa historiográfica é esclarecedor e repleto de
informações sobre as sociedades. Valeri (1989, p. 209), influenciado pela tetralogia
de Lévi-Strauss (O Cru e o Cozido de 1964, Do Mel as Cinzas de 1966, A Origem das
Maneiras à Mesa de 1968 e O Homem Nu de 1971), definiu resumidamente
alimentação como:
Forma de comunicação, para além de, obviamente, ser um modo de satisfazer uma necessidade fisiológica, a alimentação é um fato cultural que reflete determinadas situações sociais, semelhante à linguagem ou aos sistemas de parentesco. Com isto, não se pretende desvalorizar o aspecto econômico da alimentação, aliás considerado determinante no que respeita à disponibilidade e apropriação de um excedente no âmbito de um certo modo de produção, ou destinar à oferta ou ao consumo ostentório parte da sua produção. (...) Mas, em todas as sociedades, existem códigos alimentares que vão deste as técnicas de preparação dos alimentos ao próprio ritual e cerimonial das refeições, em que intervêm, por exemplo, categorias como puro/impuro, e que traduzem, no entanto, relações precisas e hierarquias sociais. Se isto não leva a privilegiar o aspecto de sinal dos fatos alimentares, estes, no entanto, não podem também ser reduzidos a fatos de nutrição.
Realizou-se um estudo ainda sobre Cultura Material e Educação
Patrimonial, ligando tais temas diretamente à utilização do Museu Nacional para a
inovação do Ensino de História. A utilização da cultura material para compreender
as sociedades antigas é fundamental, já que as fontes escritas, além de poucas,
Beatriz Moreira da Costa
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 185-198.
foram produzidas pela elite alfabetizada (domínio da escrita, seleção temática dos
assuntos tratados...), que controlavam também a circulação e consumo, e ainda
estavam fadadas ao efeito do tempo. Diferentemente da cultura material que tinha
produção, circulação e consumo indiscriminado, uma vez que se considera cultura
material qualquer utensílio, objeto ou artefato que pode conter informações sobre
a sociedade a qual pertencia, pois o tempo e espaço o qual o objeto fora produzido
é singular e a sua relação com o homem que o deu sentido o torna histórico.
O uso da exposição da cultura material nos museus permite aproximar as
sociedades antigas dos alunos ao trazer o passado para o presente de forma
tateável e, a partir daí, construir um saber histórico escolar. Eis a importância de
transformar a exposição do Museu em algo compreensível: a criação de Oficinas
Pedagógicas centradas em tal acervo torna o Ensino da História mais dinâmico e
vivo, ajudando a elaborar um processo criativo e pedagógico através da Educação
Patrimonial. Segundo Maria de Lourdes Horta (2006, p. 6),
Educação Patrimonial é um instrumento de “alfabetização cultural” que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o a compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido. Este processo leva ao reforço da autoestima dos indivíduos e comunidades e a valorização de sua cultura brasileira, compreendida como múltipla e plural.
Um dos diversos desafios da Educação Patrimonial é a superação do uso de
discursos pré-fabricados, fazendo com que o aluno construa as suas próprias
concepções e atribua valores a determinadas sociedades de acordo com a
consolidação de seu conhecimento histórico e crítico.
A OFICINA “COZINHANDO PARA OSÍRIS”
Foi de acordo com tais parâmetros que desenvolvi a Oficina Pedagógica
“Cozinhando para Osíris”. Escolhi uma estela da Coleção do Egito Antigo do Museu
Nacional da UFRJ com o objetivo de levar o aluno a interpretar a peça e a inseri-la
em seu contexto histórico. Assim, a Oficina preocupou-se em explicar a religião
egípcia, as relações entre os grupos sociais, a agricultura e a culinária egípcia, antes
de propor a uma atividade prática de confecção de dois pratos.
O ensino de história antiga
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O Egito Antigo era uma sociedade teocrática, dessa forma é impossível
pensá-lo sem sua crença na vida como uma preparação para a morte e na forma
com que os deuses estavam em constante diálogo com a sociedade através de suas
diversas representações. Osíris, esposo de Ísis e pai de Hórus, é o deus dos mortos
e do renascimento, pois é ao mesmo tempo responsável pelo julgamento das almas
dos mortos, e pelo ciclo do rio Nilo e pela fertilização do solo. De acordo com o
mito, Osíris é morto por seu irmão Seth e seu corpo é cortado em 14 pedaços sendo
espalhados por Seth em todo o Egito, mas a esposa de Osíris, Ísis, consegue achar
todos, exceto o seu órgão reprodutor, que durante o ritual de mumificação feito
por Anúbis, surge em forma de madeira e fecunda Ísis, que mais tarde dará luz a
Hórus, que por sua vez, é o deus do céu e é representado com corpo de homem e
cabeça de falcão, Hórus perdeu o olho direito na batalha contra seu tio Seth, aonde
vingou seu pai. A cidade de Abidos, assiduamente, cultuava Osíris e, anualmente,
promovia um festival ao deus chamado de “Festival de Osíris” ou “Mistério de
Osíris”.
A estela que foi trabalhada na Oficina, proveniente de Abidos – cidade onde
supostamente Osíris fora sepultado – tem como imagem central a figura de
Senusret-Iunefer oferecendo diversos alimentos ao deus Osíris (dentre eles, pães e
cerveja, bois e gansos), e, segundo informações do Museu Nacional, é provável que
tenha pertencido a uma capela votiva da família – assim como outra estela de
Senusret-Iunefer (administrador real durante o reinado de Senuseret III, na XII
dinastia), que pode ser encontrada no Museu do Cairo – voltada para a via
processional que era percorrida pela imagem do deus Osíris durante seu grande
festival.
Beatriz Moreira da Costa
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3
Figura 1. Estela de Senusret-iunefer
A tradução da inscrição da estela consiste em diversas oferendas ao deus:
Bom deus Khakaura, amado de Osíris, Chefe dos Ocidentais, grande deus, Senhor de Abidos, que vos sejam dadas toda vida, estabilidade e prosperidade; amado de Uepuauet, Senhor do Território Sagrado, que vos sejam dadas toda vida, estabilidade e prosperidade para sempre. Oferenda que o rei faz a Uepuauet, Senhor do Território Sagrado, para que ele conceda um bom enterro na necrópole do Ocidente, na paz profunda, na presença do grande deus – para a alma de Senuosret-Iunefer, nascido de Sit-uoser, e venerável.
Oferenda que o rei faz a Osíris, Chefe dos Ocidentais, grande deus, Senhor de Abidos, para que faça oferendas de invocação, de pães e cerveja, bois e gansos, (vasos de) alabastro, e roupas, incenso e unguento – sendo isto o que deu Uepuauet, Senhor de Vida, Chefe dos Ocidentais – para a alma de Iunefer.
Oh vós, que viveis na terra, vós que passais perto desta capela do Superintendente do Armazém, Iunefer – cada leitor, cada servidor de Deus, cada sacerdote, cada escriba, cada pessoa – se amais Uepuauet, vosso deus, doce de amor, assim possais dizer: ‘Oferenda que o rei faz, aos milhares: pão e cerveja, bois e gansos, (vasos de) alabastro e roupa, incenso e unguento, para a alma do Superintendente do Armazém, Senuosret-Iunefer, nascido de Sit-
3 Imagem disponível em: http://www.museunacional.ufrj.br/site/assets/public/2013-04/428.jpg.
Acesso às 14:33 em 13 de dezembro de 2013.
O ensino de história antiga
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uoser e venerável’ – se desejais permanecer na terra em vossas funções sob o Rei, e para que vos tragam oferendas sagradas do altar do Chefe dos Ocidentais; mas não sejais negligentes!
A oferenda de alimentos é vital para a sociedade egípcia: Senusret-iunefer
restitui os alimentos ao deus, pois em vida teve tal privilégio que foi garantido pela
vontade divina, ou seja, a retribuição da abundância é justa. A alimentação no Egito
Antigo é evidenciada na escrita: o mesmo hieróglifo que significa “comer” também
significa “falar”. Segundo Flandrin e Montanari (1998, p. 68):
[...] os antigos egípcios tinham consciência da ligação entre estas duas ‘oralidades’, a emissão de palavras e a absorção de alimentos, e da relação primordial que existe entre a vida e a nutrição, a ponto de os termos serem quase sinônimos na linguagem ‘real’, assim como metafórica. A saúde e a longevidade dependiam, no seu ponto de vista, dos prazeres da mesa.
A sociedade egípcia é extremamente hierarquizada, todas as classes sociais
têm um papel bem definido e são altamente especializadas em suas funções: o
faraó é o deus vivo, intermediário entre a esfera terrestre e divina; os nobres, um
exemplo é o dono da estela trabalhada, Senusret-iunefer, que ocupa a função de
administrador real e os demais nobres são, em sua grande maioria, donos de
terras; os sacerdotes, responsáveis por cuidarem dos templos, realizarem cultos, e
por isso são também peças chaves no festival de Osíris, ajudam com
encantamentos diários nas margens do Nilo para fazer a plantação a crescer
saudável; e, por fim, os camponeses. Segundo Ciro Flamarion Cardoso (p. 16):
Na larga base da pirâmide social, formando a maioria absoluta da população, estavam os trabalhadores braçais, camponeses majoritariamente, analfabetos, submetidos a tributos e trabalhos forçados, à arbitrariedade e corrupção dos funcionários e mesmo a castigos físicos.
A agricultura, assim como tudo na vida dos egípcios, é a imagem real e
cotidiana do mito de Osíris que representa o ciclo natural do mundo. Segundo
Kasia Szpakowska (2010, p. 508):
The cyclical nature of the world as well as the constant threat of chaos was elucidated by the repeated rising of the triumphant sun-god, his journey in the day to provide light and air to all people, his setting in the west during the night where he would
Beatriz Moreira da Costa
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wage battle with chaos, and his regular reappearance once again in the morning.
Ou seja, o deus Osíris é a personificação da renovação anual da plantação,
estruturada em um ciclo de três estações agrícolas de acordo com a inundação do
Nilo: a primeira era a estação do Dilúvio ou Inundação, quando as águas do Nilo
inundavam suas margens; depois era a Estação da Descida, quando as águas se
retiravam de novo para o seu leito fluvial e as colheitas começavam a crescer. Os
camponeses colocavam as sementes no solo após a descida do Nilo, pois o solo
ainda estava molhado e adubado com o rico fertilizante “húmus”. Vacas e animais
leves puxavam o arado a fim de cobrir as sementes. Durante o período de
semeação eram recitados vários encantos para assegurar o sucesso plantação; a
última fase era a Estação das Ceifas, quando a riqueza legada pelo Nilo era
recolhida. Segundo Jon Manchip White (1966, p. 157):
O grande deus Osíris devia surgir todos os anos de sua sepultura na terra, na forma tão vital do trigo, isso dependia tanto do trabalho do camponês como da magia do sacerdote. Já que o ritmo das estações era o desenrolar anual da vida e morte de Osíris. O calendário não era um frio e apenas convincente registro da passagem dos dias, mas um gráfico do processo do martírio e ressurreição do deus.
Além de ser parte do cotidiano egípcio, o mito de Osíris também tinha a sua
encenação teatral: O Festival de Osíris. O festival consistia em um evento anual,
onde em uma procissão, os egípcios levavam a estátua de Osíris de seu templo
construído em Abidos até a sua tumba em Peker (região localizada ao sul da
cidade), sua imagem era velada durante a madrugada com diversos rituais
performáticos e era de fato um louvor a vida e a morte do deus. A importância
dessa procissão é confirmada na quantidade de capelas construídas na via onde a
imagem do deus percorria (o caso da estela estudada na oficina). A principal fonte
sobre o festival é a estela de Ikhernofret, que se acredita ser uma cópia da
encomenda que recebera do rei – Senuseret III – para apresentar uma edição
antiga do texto sobre o festival.
O festival de Osíris era divido em cinco partes principais de acordo com a
estela de Ikhernofret, proveniente de Abidos no Império Médio: no primeiro dia, a
O ensino de história antiga
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procissão de Wepwawet, em que a batalha simulada é promulgada durante o qual
os inimigos de Osíris são derrotados. A procissão é liderada pelo deus Wepwawet,
deus da guerra.
Eu dirigi o trabalho relacionado com a barca neshemet; Eu entalhei a cabine, Eu adornei o corpo do Senhor de Abidos com lápis-lazúli, malaquita, electrum e todos os tipos de pedras preciosas, dignas para adornar a carne de um deus. (Depois) Eu adornei o deus com a sua indumentária, no meu ofício de Chefe do Mistério. Meu ofício foi aquele de Sem (mestre das cerimônias rituais), para isto eu tenho mãos puras para adornar o Deus, Eu sou um Sem com dedos purificados.
O segundo dia, a grande procissão de Osíris: momento no qual Osíris morre
e seu corpo é levado de seu templo para o seu túmulo em Peker – região localizada
ao sul da cidade. O barco que o corpo é transportado, a barca "Neshmet”, tem de
ser defendido contra seus inimigos:
Eu arranjei a Procissão de Wepwawet quando ele foi defender (vingar, apoiar) seu pai. Eu repeli aqueles os quais se rebelaram contra a barca neshemet e subjuguei os inimigos de Osíris.
Eu dirigi a Grande Procissão e acompanhei o deus no seu caminho. Eu fiz a barca divina navegar e Thot guiou a jornada. Eu adornei a barca chamada “Ela que reluz para frente em verdade”, o Senhor de Abidos com uma capela e coloquei nele (Osíris) belas jóias quando ele foi para a localidade de Peker. Eu conduzi o caminho do deus para a sua tumba em Peker.
No terceiro dia, Osíris é pranteado e os inimigos da terra são destruídos
simulando a Grande Batalha de Nedit na qual Osíris é vingado;
[...] Eu vinguei Unnefer, naquele dia da Grande Batalha, Eu subjuguei todos os adversários nas margens de Nedit e eu o fiz conduzir a grande barca, a qual carrega sua beleza.
O quarto dia, vigília noturna: Orações e recitações são feitas e ritos fúnebres
realizados.
O quinto dia, Osíris renasce: Osíris renasce ao amanhecer e coroado com a
coroa de Maat. Uma estátua de Osíris é levada ao templo:
Eles viram a beleza da barca neshemet, assim que ela chegava em Abidos. Ela trazia [Osíris, Primeiro dos Ocidentais, Senhor] de Abidos para o seu palácio. Eu segui o deus para a sua casa. A sua
Beatriz Moreira da Costa
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purificação foi feita; seu trono foi feito espaçoso. Eu soltei o nó no ---; [ele veio descansar entre] seus [companheiros], seu séquito.
O festival de Osíris foi o primeiro grande acontecimento teatral conhecido
pelo homem: fora realizado durante quase dois mil anos seguidos e teria sua
origem em crenças populares, que ligam os ciclos da natureza aos acontecimentos
do mito de Osíris, segundo Adolf Erman (2001, p. 40):
Quando a inundação chega, Osíris é a água nova, a qual deixa os
campos verdejarem. Quando então as plantas murcham e morrem,
acredita-se desta forma que Osíris também morreu. Mas ele não
está totalmente morto, pois no ano novo as ervas nascem
novamente de seu corpo e mostram que ele está vivo.
Realizado no último mês da inundação, o festival celebra a inundação do
Nilo e o sucesso da plantação, e também reforça a figura do deus Osíris como o rei
morto e a associa o rei vivo com o deus Hórus, que reconquista o trono usurpado
por seu tio Seth. A associação do faraó reinante aos atributos do deus Hórus
constitui na reafirmação de seu poder e ofício sagrado dentro dessa sociedade, já
que o faraó só poderá ser associado diretamente a Osíris após a sua morte, ou seja,
o faraó se torna um deus depois de morto.
Dessa forma, fica claro a relação direta do Festival de Osíris com as etapas
agrícolas: havia uma analogia entre o rio Nilo e o deus Osíris; o processo de
vazante e cheia do Nilo foi associado ao mito do deus. As etapas do festival
demonstram a vida agrícola do Egito Antigo: o período de cheia, a plantação e a
colheita. O rio Nilo é o coração do Egito assim como Abidos é a cabeça do deus
Osíris. A importância do Nilo fora expressa por Heródoto (Histórias II, 10) na
emblemática frase “O Egito é uma dádiva do Nilo”. O rio garantia fertilidade,
prosperidade e vitalidade à região, onde as chuvas não eram tão abundantes.
Todos, fossem ricos ou pobres, participavam direta e indiretamente do festival,
pois eram dependentes das cheias do Nilo ou da graça de Osíris. Os camponeses
executavam as etapas agrícolas ao longo do ano, simbolicamente representadas no
festival. Alguns sacerdotes ajudavam a plantação a ter sucesso com magia e
encanto, enquanto outros realizavam rituais performáticos durante o festival de
Osíris. Os nobres participavam, por sua vez, como os donos de algumas terras,
O ensino de história antiga
194 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 185-198.
onde os camponeses trabalhavam, e como proprietários de capelas votivas nas
vias, onde ocorria a procissão do festival de Osíris.
Na Oficina Pedagógica proposta, os alunos farão duas receitas culinárias
muito comuns no Egito Antigo: “Homus” e “Tahine”. A escolha dessas receitas foi
pela facilidade e rapidez de executá-la para depois consumi-la. A primeira receita,
“Homus”, necessita de 500g de grão-de-bico já cozidas, 3 dentes de alho, 1 pitada
de sal e 3 colheres (sopa) de azeite de oliva. A preparação é muito simples,
cozinhar bem o grão-de-bico em uma caçarola com água salgada até que amoleça
bem, acrescentar os alhos crus descascados e triturar, corrigir o sal e incorporar o
azeite de oliva ao purê obtido. A segunda receita é o molho “Tahine”, cujos
ingredientes são: 1 colher (sopa) de azeite de oliva, coentro, 1 colher (sopa) de
creme de leite, pimenta-do-reino, 1 colher (sopa) de vinagre, sal e 2 colheres
(sopa) de gergelim.
Devem-se separar as crianças de modo que o primeiro grupo possa
descascar o alho e misturar o grão-de-bico ao alho triturado; o segundo grupo
possa preparar o “Tahine”; e o terceiro grupo possa misturar o azeite de oliva e o
“Tahine” ao purê obtido. Após a finalização da receita, o prato será servido e
explicado que se trata de uma receita que provavelmente era consumida pelos
faraós e a elite egípcia. O orientador da Oficina deverá retomar a imagem da estela
de Senusret-Iunefer e convidar os alunos a se sentarem à mesa e consumirem o
prato preparado como demonstrado na estela.
O caráter da Oficina não é realmente oferecer a comida ao deus Osíris, mas
apenas cozinhar para o deus e entender que, no Egito Antigo, essa refeição poderia
ser oferecida ao deus conforme mostrado na estela.
CONCLUSÃO
A Oficina Pedagógica tem como proposta, além de abordar o contexto
histórico da estela trabalhada, tem como objetivos: trazer a culinária egípcia ao
conhecimento dos alunos e mostrar que, por mais que pareça distante, a dieta
Beatriz Moreira da Costa
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 185-198.
egípcia tem elementos semelhantes com a nossa dieta; e destacar o caráter
religioso que a comida egípcia tem ao ser oferecida aos deuses cultuados no país
em busca da estabilidade cósmica do universo.
Na Oficina, traçou-se um quadro processual do alimento: o grão deve ser
plantado e colhido por camponeses, para somente depois estar disponível para
cozimento e fazer parte da mesa real e ritualística. A partir desse quadro, o aluno
poderá compreender não só as etapas agrícolas egípcias como também os grupos
sociais e seus papéis na sociedade.
Dessa forma, a oficina pedagógica em questão é uma estratégia do ensino de
História Antiga que não se limita somente ao corte temporal, mas também traz
questões importantes como a propagação de um debate história comparada,
educação patrimonial e cultura material.
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ENSINO DE HISTÓRIA: JUSTIÇA SOCIAL EM ROMA1
Filipe dos Santos Vieira2
Alex Aparecido da Costa3
Resumo: Este trabalho tem por objetivo apresentar uma proposta de aula para alunos do Ensino Médio acerca da situação social em Roma na segunda metade do século II a. C., a partir do estudo do fragmento do texto de Plutarco em que este transcreve um discurso de Tibério Graco, tribuno romano que intentou uma frustrada reforma agrária. Com a análise deste documento buscaremos delinear o contexto e as instituições sociais da época, seus agentes e sua atuação. Pretendemos também entender o processo histórico anterior ao período estudado procurando delinear seu desenvolvimento para compreensão das especificidades da questão agrária romana no momento em questão. Ainda no sentido de processo histórico pretendemos estabelecer relações com a atualidade destacando diferenças e permanências.
Résumé : Cet article vise àproposer une classe pour les élèvesdu secondaire sur la situation sociale à Rome dans la seconde moitié du deuxième siècle avant Jésus-Christ à partir del'étude du fragment du texte de Plutarque dans ceil transcritun discours de Tiberius Gracchus, tribun romain qui a apporté une réforme agraireéchoué. Avec l'analyse de la source cet article cherchera àdécrirele contexteet les institutions socialesde l'époque, leurs agents et leurs performances. Nous visons également àcomprendre le processus historique précédent la période d'étudeen essayant de délimiterson développement pour comprendre les spécificités de question agraire romaine à l'époqueen question. Même l'égard du processus historique, nous voulonsétablir des relations avec les présentsoulignant les différenceset les continuités.
Introdução – diretrizes, tema, fonte
Nesta aula contemplamos os conteúdos estruturantes relativos às relações
de trabalho, poder e cultural em articulação com os conteúdos básicos sobre os
1 Recebido em 04/10/2013. Aprovado em 15/11/2013.
2 Graduado em História pela Universidade Estadual de Maringá – PR. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História pela mesma universidade. Atua na área de Instituições e História das Ideias. Email: [email protected] 3 Graduado em Letras e História pela Universidade Estadual de Maringá. Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História pela mesma universidade. Atua na área de Instituições e História das Ideias. Email: [email protected]
Ensino de história
200 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 199-213
sujeitos, as revoltas e as guerras. O documento escolhido trata principalmente da
questão agrária romana, mas aborda também as relações de poder, de trabalho e
as relações culturais da Roma republicana de fins do século II a. C., por isso
adotamos o tema/título Justiça social em Roma, pois esses três elementos
encontram-se permeados em uma dinâmica de complementaridade que dá
significado aos embates políticos em torno da questão agrária romana. Levando
em consideração que os legados, sejam eles virtuosos ou viciosos, da sociedade
romana ainda estão presentes em nossa época, interessa estudá-los, pois o
confronto entre aqueles problemas e os atuais permitirá ao aluno uma
interpretação com historicidade da realidade do tempo presente. Em relação à
fonte, um fragmento de um discurso de Tibério Gracoi, temos de destacar que este
chegou até nos por meio de Plutarco, um historiador grego que viveu entre os anos
50 d. C. e 120 d. C. (BOWDER, 1980), A distância no tempo, que separa Tibério, cujo
dramático tribuna do teve lugar em 133 a. C, (BOWDER, 1980), de seu biógrafo
Plutarco não deve ser vista como um fator que ponha em dúvida a autenticidade do
relato. Em se tratando de história antiga devemos ter sempre em mente o papel
preponderante que a cultura oral desempenhava naquelas sociedades, além disso,
devemos considerar que Plutarco teve acesso à fontes com as quais teve
engenhosidade no trato (BOWDER, 1980).
Tema - discussão historiográfica, contexto, recorte tempo e espaço
Diante da distância no tempo entre nossa época e a história da Roma Antiga
podem suscitar-se questionamentos sobre a importância de ensiná-la nos dias
atuais. Ocorre que as semelhanças entre nossa sociedade e aquela guardam muitos
traços em comum. A Roma antiga teve uma história de mais de mil anos, e durante
essa trajetória seu povo protagonizou processos de aculturação em que influenciou
e foi influenciada, atravessou crises econômicas e prosperidades também se
submeteu a formas de governo diferenciadas, foi uma cidade e foi um império, cujo
povo se debateu em diversas lutas entre grupos sociais distintos. Uma dessas lutas
foi a tentativa de reforma agrária intentada por Tibério Graco na segunda metade
Filipe Vieira/Alex Costa
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 199-213
do século II a. C. Em 133 a. C. Tibério Graco, que era patrício, foi tribuno, durante
seu mandato conseguiu promover um início de reforma agrária que visava resolver
o problema da concentração de terras nas mãos da aristocracia redistribuindo-as
aos camponeses que as tinham perdido devido às dívidas e por não poderem
recuperar seu poder de produção após retornarem das campanhas militares. As
terras a serem distribuídas não eram de propriedade particular, eram partes dos
territórios conquistados apropriados pela aristocracia, mesmo assim tal proposta
pareceu muito radical e Tibério acabou por ser assassinado por elementos da elite
romana que nele viam um aspirante à tirania, o que, antes de tudo, ameaçava o
poder aristocrático (BOWDER, 1980).
Esse esboço sintético da tentativa de reforma agrária já demonstra o quanto a
sociedade romana, baseada no seu grupo dirigente, era reacionária e insensível às
dificuldades das camadas populares. Assim como na Roma Antiga no Brasil atual
aqueles que desafiam os interesses dos latifundiários e desmatadores são
frequentemente assassinados. Naquele tempo como no passado recente da
história brasileira as populações impossibilitadas de viver no campo engrossam o
movimento de êxodo rural que incha as grandes cidades forçando sua populações a
submeterem-se à péssimas condições de vida. Tibério Graco tinha também uma
preocupação quanto ao destino da imensa massa popular que se concentrava em
Roma, pois:
Uma outra transformação importante na sociedade romana em conseqüência do sucesso das conquistas e da utilização do trabalho escravo em grande escala foi o aumento significativo do contingente de plebeus desocupados. A estes juntaram-se levas de pequenos agricultores arruinados que faziam crescer os números do êxodo rural e inchar as cidades, sobretudo a capital (FUNARI, p. 98, 2001).
Antes da maioria de seus pares, Tibério Graco percebeu que o quadro
caminhava para um agravamento que culminaria com revoltas sociais que
colocariam em risco não apenas os interesses aristocráticos, mas todo o sistema
político em que eles estavam fundamentados. Para sanar tais problemas não
adotou medidas revolucionárias, mas tão somente exigiu que fossem obedecidas
Ensino de história
202 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 199-213
leis anteriores que regulamentavam a utilização de terras conquistadas (BLOCH,
1974). Tibério Graco pretendia:
Revitalizar el campesinato romano. Tomando como base la antigua ley licinio-sextia, se prevía que ninguma persona había de disponer em el agerpublicus de uma posesíon superior a lãs 500 yugadas (o a lãs 1000 yugadas, em el caso de famílias numerosas). con lo que, pese a todo estas posesiones devenían de sus anteriores ocupantes. Las tierras recuperadas por la limitación de La superfície de ocupación debían ser repapartidas entre agricultores pobres como parcelas de um máximo de 30 yugadas, pero em adelante habían de continuar em propiedad del estado romano – lo que hacía explícito mediante el pago de um arriendo insignificante -, a fim de que no pudiesen ser adquiridas por los grandes proprietários (ALFOLDY, p. 107, 1987).
Portanto as concessões a serem feitas eram pequenas, inclusive traziam
vantagens para a aristocracia que passariam a ter posse legal de terras que
estavam em seu poder de maneira irregular.
Como compensação aos expropriados, a terra pública que eles tinham o direito legal de reter era transformada em propriedade privada. Havia, portanto uma série de garantias, tanto para os ocupantes ricos, que conservariam áreas consideráveis, quanto para os proletários, impedidos de vender suas parcelas, evitando-se assim a volta à situação anterior (CORASSIN, p. 46, 1988).
Entretanto, mesmo que fosse pouco a aristocracia não estava disposta a
ceder, nesse sentido podemos traçar um paralelo entre a aristocracia romana e
elementos da direita brasileira que baseada em princípios liberais crítica os atuais
programas de distribuição de renda.
Em relação ao ponto em que o discurso de Tibério Graco critica os generais
romanos por suas falsas promessas aos soldados podemos perceber a formação do
poder pessoal baseado no prestígio político e militar característico do período, isso
só era possível devido ao desamparo dos camponeses, o que culminaria no futuro
com a necessidade de sustento por meio do serviço militar, pois diante da miséria
do camponês soldado nesse período se agravaria e este incapaz de atingir o censo
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Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 199-213
militar, que era a renda mínima estipulada para o serviço militar se viu envolvido
em uma situação que demandou uma mudança significativa:
A transformação completa do exército cidadão em mercenário verificou-se com Caio Mário: foi ele quem impôs um eficaz sistema de recrutamento, organizado na base de comissários especiais; e, certo da sua influência entre os comandos, cria poder contar com tal exército para os seus planos de política interna. A sua aspiração imediata era assegurar essa força para, apoiado nela, chegar ao poder unipessoal, sonho da sua vaidade, que, ao que parece, flutuava já no ar como única solução para os graves problemas políticos (BLOCH, p.172, 1974).
Além disso, aqueles que, não podendo alistar-se no exército, recebiam o pão
doado por esses generais que para isso dedicavam uma parte dos despojos
conquistados (ALFOLDY, 1987). Em uma massa empobrecida e dependente é que
eles apoiavam-se, uma massa popular a qual não era interessante emancipar, uma
massa semelhante à grande parte do povo brasileiro, sempre enredada pela
demagogia dos políticos, pelo assistencialismo, mantida na dependência pela falta
de investimentos na educação que antes de cumprir o papel de formar cidadãos
críticos e conscientes criam apenas mão-de-obra barata e eleitores alienados e
avessos à política.
Em relação a essa situação verificada é que propomos uma aula baseada na
análise de um documento histórico, para que o estudo do passado possibilite a
compreensão do presente como parte do processo histórico, no qual cada um deve
ser capaz de participar como sujeito ativo. Esta metodologia de ensino pretende, ao
fazer com que os alunos entendam os processos históricos por meio de análise
documental, demonstrar como a história como conhecimento é produzida, em
última instância, através disso, procurar-se-á dificultar a aceitação de verdades
absolutas oferecidas acabadas. Em suma cabe acrescentar a visão de Nietzsche de
que não existem fatos, mas somente interpretações dos fatos.
A fonte na historiografia
Desde os tempos de Heródoto e Tucídides, a história tem sido escrita sob uma variada forma de gêneros: crônica monástica, memória política, tratados de antiquários, e assim por diante. A forma dominante, porém, tem sido a narrativa dos acontecimentos políticos e militares, apresentada como a história
Ensino de história
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dos grandes feitos de grandes homens – chefes militares e reis. Foi durante o Iluminismo que ocorreu pela primeira vez, uma contestação a esse tipo de narrativa histórica. (BURKE, 1997, pág. 17).
A crítica aos documentos foi definitivamente fundada por Mabillon no
século XVII. A partir deste momento, a dúvida se torna examinadora, o fazer-se
história por meio de documentos, passa a apoiar-se em textos mais seguros.
Com a Escola Metódica, também chamada de Positivista (século XIX),
Jacques Le Goff nos diz, que a utilização e crítica dos documentos triunfam através
de ciências auxiliares, como por exemplo, a heurística e a hermenêutica que fazem
a crítica externa e interna do documento respectivamente. “Para os historiadores
daquele século, o documento escrito converteu-se no fundamento do fato
histórico”(SCHMIDT; CAINELLI, 2006, pág.90). Todavia, os positivistas só
utilizavam os documentos escritos como fonte documental para produzir história.
Para V. Langlois e Ch. Seignobos, ambos professores da Sorbone no século XIX, os
documentos se restringiam a cartas, decretos, correspondências, testemunhos e
manuscritos diversos, excluindo a utilização de documentos não escritos para a
pesquisa histórica. Le Goff ressalta o limite dessa definição de documento sentida
pelos próprios historiadores positivistas, dentre eles Fustel de Coulanges, onde
este apela frente à necessidade de se utilizar outras fontes onde faltam as
escrituras.
Essa definição de documento foi debatida e ampliada com o surgimento da
História Nova (1929) de LucienFebvre e Marc Bloch, fundadores da revista
“Annales d’histoireé conomique et sociale”. Essa escola revolucionou a maneira de
fazer história conhecida até então, lutando contra os princípios positivistas de
definição de documentos, de objetividade absoluta na escrita, além de lutar contra
uma história de “ídolos” voltada fundamentalmente para a política, sobretudo
diplomática:
Esta revolução é, ao mesmo tempo quantitativa e qualitativa. O interesse da memória coletiva e da história já não se cristaliza exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos, a história que avança depressa, a história política, diplomática,
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militar. Interessa-se por todos os homens, suscita uma nova hierarquia mais ou menos implícita dos documentos; por exemplo, coloca em primeiro plano, para a história moderna, o registro paroquial que conserva para a memória todos os homens. O registro paroquial, em que são assinalados, por paróquia, os nascimentos, os matrimônios e as mortes, marca a entrada na história das “massas dormentes” e inaugura a era da documentação em massa. (LE GOFF, 1994, pág. 531).
A Nova História recusava a noção de história dos grandes feitos, priorizando
uma história problemática, que enfatiza os motivos geográficos, econômicos,
sociais, intelectuais, religiosos e psicológicos. Para isso ampliaram seu campo de
fontes documentais, passando a incorporar sítios arqueológicos, documentos
escritos não oficiais, documentos orais e imagéticos, como fontes de pesquisa: “A
história se faz com os documentos escritos, sem dúvida, quando eles existem. Mas
ela pode ser feita, ela deve ser feita com tudo o que a engenhosidade do historiador
lhe permitir utilizar” (FEBVRE, 1974, pág. 21). O documento, vestígio deixado pelos
homens, voluntária ou involuntariamente, passou a ser encarado como produto da
sociedade que o fabricou.
Contudo, apesar da ampliação de fontes empregadas na pesquisa do saber
histórico pelos Annales em 1929, o documento escrito ainda é o mais utilizado
pelos historiadores. Outras fontes ainda são usadas de forma acanhada pela
historiografia ou então como forma de complementar e confirmar informações
fornecidas por documentos escritos.
A fonte na sala de aula
O documento escrito foi ao longo dos tempos o mais utilizado como fonte
pela historiografia tradicional para se produzir história. Até o movimento dos
“Annales” (1929) de Lucien Febvre e Marc Bloch, que ampliou o campo de
documentos disponíveis para pesquisar, apenas as escrituras eram recorridas
como fontes para se estudar história. No entanto, a ampliação da definição do quê é
fonte, não relegou a importância do documento escrito, que continuou sendo
utilizado por historiadores, professores de história e profissionais da área. Assim
como na historiografia, é de grande importância para o ensino a análise de
Ensino de história
206 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 199-213
documentos escritos nas salas de aulas: “[...] o trabalho com o documento histórico
em sala de aula é importante para a desconstrução de determinadas imagens
canonizadas a respeito do passado” (SCHMIDT; CAINELLI, 2006, pág. 92).
O emprego do documento histórico na sala de aula permite o diálogo do
aluno com realidades passadas e presentes, desenvolvendo o sentido da análise
histórica (RÜSEN, 2007). A familiarização com fontes do passado, habitua-o a
raciocinar baseando-se em uma situação dada, podendo assim ter sua própria
visão sobre determinado acontecimento, não ficando restrito a algo posto pelos
historiadores. Por meio de dois documentos contraditórios do mesmo período, por
exemplo, o aluno pode tirar suas conclusões, construindo relações de diferenças e
semelhanças, despertando assim o espírito crítico através do questionamento da
verdade histórica, desmistificando a história como algo imutável, já esclarecida e
sem campos para novos estudos. Segundo Amaro, o uso de fontes em salas de aula
permite:
[...] estimular nos alunos o hábito de pensar historicamente, isto é, observar em uma perspectiva histórica as situações com que se deparam, analisando a experiência humana de viver em sociedade à luz das dimensões espaço e tempo nas quais essa experiência tenha ocorrido”. (AMARO, 2005, pág. 15).
No entanto, a análise do documento escrito não deve ser relegada à própria
sorte do aluno, como se o ato de conhecer fosse algo dado e espontâneo, cabe ao
professor dar todas as instruções necessárias:
A leitura dos documentos, tanto no arquivo quanto na própria escola, deve ser acompanhada de um projeto que vise a inserção do aluno nessa nova linguagem e proporcionar o amadurecimento de habilidades, entre as quais a extração de informações, a descrição, a interpretação, a sistematização de idéias. (ABUD, 2010, pág. 12).
Para consecução da análise de documentos escritos, o professor deve
apresentar aos seus alunos, alguns procedimentos a seguir, como por exemplo,
questionar qual a natureza do documento (documentos oficiais, textos de
historiadores, textos de imprensa, propagandas, panfletos, cartas, manuscritos); a
Filipe Vieira/Alex Costa
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 199-213
datação; o autor (nem sempre é possível reconhecer a autoria do texto, mas
quando possível é importante que o aluno pesquise, procurando obter dados sobre
sua personalidade e suas prováveis intenções quando produziu o documento); o
destinatário; a localização geográfica (onde foi escrito); além de buscar
contextualizar o documento, situando-o no tempo e no espaço. Depois de realizado
esses primeiros procedimentos, o aluno sob orientação do professor deve retirar
as informações expostas no documento, por meio de perguntas, como por exemplo,
qual é o assunto central do texto; ocorre defesa ou crítica a alguém; quais os
argumentos; o documento omiti ou dá informações falsas; o documento contradiz
ou está de acordo com outros referentes ao mesmo período e tema; com quais
objetivos foi produzido o documento; como o documento apresenta a realidade. De
acordo com Schmidt e Cainelli, a análise de documentos nas aulas de história
contribui para ilustrar o tema trabalhado em sala, reforçando o que foi falado pelo
professor; induzir o aluno ao conhecimento histórico, exemplificando uma situação
ou fato histórico; estimular o interesse pela história geral, de seu país ou de sua
região, por isso os documentos devem ser escolhidos de maneira que despertem
interesse e admiração pelos alunos, levando-os a construção de novas
argumentações históricas, observando localizações, mudanças e permanências,
conceitos e hipóteses; estudar a história como fonte de respostas para hipóteses ou
problemas, licenciando alunos e professores a rever representações já existentes.
Para tanto, segundo Amaro (2005), cabe ao professor adequar a análise do
documento considerando as necessidades e potencialidades dos alunos, de modo
que esta faça sentido, ao invés de ser apenas um punhado de informações
apresentadas, desconexas. Parafraseando Amaro, é necessário enfatizar que essa
atividade é potencializada quando o professor tem familiaridade com a linguagem
do documento que pretende utilizar, conhecendo-a melhor, pode avaliar todas as
possibilidades que nela imbricam e que podem contribuir para seu trabalho, e
assim, explorar todos os detalhes que a obra oferece.
No entanto, o trabalho com o documento histórico em sala de aula exige do
professor um alargamento na sua própria forma de ver e utilizar este como recurso
metodológico. O professor não deve se limitar aos documentos escritos, mas
Ensino de história
208 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 199-213
introduzir nas aulas também iconografia, fontes orais e audiovisuais, além de
informática. Contudo, os documentos não escritos não devem ser utilizados apenas
como forma de complementar ou confirmar informações das escrituras, mas sim,
como fontes.
Plano de aula
Esta aula é direcionada aos alunos do ensino médio e objetiva, a partir de
um embasamento do contexto político, social e cultural da Roma Antiga,
possibilitar aos alunos a análise de um documento histórico relativo à questão
agrária romana. Com isso pretende-se também inserir os alunos no processo de
construção do conhecimento histórico levando-os a compreender que os fatos
narrados, que compõem a História, são frutos de interpretações, o que excluem a
ideia de verdade absoluta.
Primeira fase
Considerando que o trabalho com fontes vem sendo pouco utilizado em sala
de aula e quando usado pouco problematizado enquanto documentos nesta etapa
pretendemos apresentar aos alunos o trabalho do historiador no trato com os
documentos para que entendam a forma como o conhecimento histórico é
produzido. Apresentaremos uma variação de objetos e documentos que possam
trazer informações a respeito do passado tais como textos, fotos e objetos variados,
faremos isso explicando as formas de análise mais adequadas a cada uma deles.
Duração: uma aula.
Segunda fase
Iniciaremos a atividade em sala por meio de uma leitura silenciosa e
individual do documento que será entregue aos alunos em fotocópias. Em seguida,
depois de encerrada a leitura de todos os alunos, pediremos a eles que usem a
palavra de forma livre para que expressem sua compreensão do texto sem nossa
intervenção. Posteriormente distribuiremos folhas em forma de fichas com os
seguintes campos a serem preenchidos:1- Espécie do documento; 2- emissor; 3-
destinatário; 4- função; 5-data tópica e 6- data cronológica.
Filipe Vieira/Alex Costa
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 199-213
As respostas esperadas para esta etapa são:
1 – Documento escrito – aqui não prevemos dificuldades.
2 – Plutarco – aqui deverá ser problematizada a questão relativa à autoria do
texto feita por Plutarco a partir de um discurso proferido por Tibério Graco por
volta de duzentos anos antes.
3 – Leitores interessados na história de Roma – questionamentos
interessantes podem ser levantados aqui ao lembrarmos que no período o acesso a
este tipo de obra produzida por Plutarco era restrito à uma elite letrada que
correspondia a uma parcela ínfima da população do mundo antigo.
4 – Informar a respeito da atuação de Tibério Graco acerca da questão
agrária romana– pode-se indagar aqui o motivo do interesse na história romana
no momento em que a fonte foi produzida, ela teria uma função política, moral,
educativa?
5 – Entre fins do século I d. C. e início do século II d. C. – completa-se aqui o
entendimento acerca da autoria da fonte por parte de Plutarco.
6 –Ano de 2009– data de reedição da fonte que temos em mão, possibilita a
discussão acerca do novo emissor, a editora, com seu objetivo econômico,
especializada oferecer documentos do interesse de historiadores do nosso tempo,
documentos estes que os ajudarão a produzir novas leituras acerca da história de
Roma.
Este exercício será feito de acordo com a discussão da aula anterior acerca dos
tipos de documentos. Nesta etapa uma releitura da fonte será necessária para que
os alunos consigam descrevê-la ao preencher os campos da ficha. O objetivo deste
tipo de trabalho de descrição da fonte possibilitara aos alunos iniciar-se no
entendimento do processo de construção do conhecimento histórico, aprendendo
de que forma ele ocorre e inclusive se colocando na posição de um historiador em
contato com a fonte. O objetivo final desta experiência é o de tornar os alunos
capazes de descrever os vários tipos de textos escritos, sonoros ou imagéticos que
Ensino de história
210 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 199-213
os cercam no dia-a-dia e ao adquirirem essa habilidade serem capazes de
problematizá-los de acordo com o contexto em que estiverem inseridos.
Duração: uma aula.
Terceira Fase:
Nesta etapa estimularemos os alunos a fazer exercício de interpretação da
fonte fazendo indagações sugestivas tais como: Por quê? Como? Quem? Onde?
Acreditamos que nessa fase do trabalho reaparecerão dúvidas de interpretação,
por exemplo, o título do documento refere-se a Roma, mas o corpo do texto refere-
se apenas à Itália, tal situação oferecerá ensejo para trabalharmos o tema da
expansão romana. A idéia de luta pela Itália poderá completar o raciocínio anterior
agregando informações acerca do processo de romanização das regiões
conquistadas pelos romanos e que passaram a serem suas aliadas. O trecho que
trata dos soldados sem lar com suas famílias introduzirá a discussão sobre a
questão agrária romana, aqui poderemos explicar o que é reforma agrária e
retornar ao título para problematizar a idéia de justiça social que traz em seu bojo
as relações de poder, culturais e de trabalho presentes na fonte respectivamente
nos trecho que tratam das atitudes dos generais, da religião e da distribuição de
riqueza. Por último trataremos da figura de Tibério Graco, sua posição de tribuno
possibilitará apresentarmos aos alunos os cargos políticos romanos e a sua
importância dentro da situação evocada pela fonte. Após estimularemos os alunos
a traçar paralelos entre o tema da aula e a realidade atual sobre as guerras e a
distribuição de riqueza, buscando verificar as permanências e/ou as modificações
das relações de trabalho, de poder e culturais da antiguidade no tempo presente.
Duração: uma aula.
Quarta fase
Após a experiência descrita na segunda fase os alunos reunidos em equipes
de três deverão elaborar um relatório com os dados extraídos da análise do
documento. A elaboração do relatório será orientada por tópicos correspondentes
aos conteúdos estruturantes: relações de trabalho, relações de poder e
Filipe Vieira/Alex Costa
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 199-213
relações culturais. Juntamente com esse relatório será anexada a ficha de
descrição do documento produzida pelos alunos na segunda fase descrita acima.A
intenção na produção desse material é a de fixar a experiência da análise
documental e ao mesmo tempo produzir um material para intercâmbio entre as
turmas.
Duração: uma aula.
Referências
Fonte
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iAnexos
Tibério Graco: Justiça Social em Roma
Os animais da Itália possuem cada uma a sua toca, seu abrigo, seu refúgio. No entanto,
os homens que combatem e morrem pela Itália estão à mercê do ar e da luz e nada mais:
sem lar, sem casa, erram com suas mulheres e crianças. Os generais mentem aos
soldados quando, na hora do combate, os exortam a defender contra o inimigo suas
tumbas e seus lugares de culto, pois nenhum destes romanos possui nem altar de
família, nem sepultura de ancestral. É para o luxo e enriquecimento de outrem que
combatem e morrem tais pretensos senhores do mundo, que não possuem sequer um
torrão de terra.
PLUTARCO. Tibério Graco, IX, 4. In: PINSK, Jaime. 100 textos de História Antiga.
São Paulo, Contexto, 2009.
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
CONTEÚDOS E ABORDAGENS DO ENSINO DE HISTÓRIA REGIONAL: UM ESTUDO DE CASO DOS LIVROS “VIAGEM AO ENGENHO DE SANTANA” E
“MEMÓRIA VIVA DOS TUPINAMBÁ DE OLIVENÇA”1
Jaqueline dos Santos Souza2
Resumo: Este texto analisa as transformações ocorridas nas reformulações do conceito de região e a importância de se refletir sobre a história regional e local nos currículos escolares, e nos materiais didáticos, bem como a decadência de mitos e ideias sedimentada há tempos pela história geral e ou da nação. A metodologia utilizada para o desenvolvimento desta análise, pauta-se no estudo de temas sobre a história Regional e local, tendo como base as exigências da lei nº 9.394/96 – artigo 26, que visa o estabelecimento nas instituições de ensino, de assuntos ligados a identidade local, regional e nacional. Os critérios para a escolha dos materiais paradidáticos trabalhados no referente artigo, se limitaram às obras “Viagem ao engenho de Santana” e “Memória viva dos Tupinambá de Olivença”, na medida em que são precários as edições de livros paradidáticos dessa natureza, em Ilhéus.
Palavras-chave: História Regional e Local. Ensino de História. Livros didáticos
Abstract: This text analyzes the changes occurring in the reformulation of the concept region and the importance of reflecting on the regional and local history in school curriculum, and didactic materials, as well as the decay of myths and ideas sedimented by long and general history or nation. The methodology used to develop this analysis is guided in the study of topics on the history Regional and local level, based on the requirements of Law nº. 9.394/96, Article 26, which seeks to establish in educational institutions in matters related the identity local, regional and national levels. The criterion for the choice of didactic materials worked in related article is limited to works " Journey to the ingenuity of Santana " and " Living memory of Tupinambá", according as are precarious educational materials of that nature in Ilhéus .
Keywords: Local and Regional History. Teaching of History. Textbooks.
1 Recebido em 11/10/2013. Aprovado em 19/11/2013.
2 Estudante do último período do Curso de História, lotada no Departamento da Faculdade de
Ciências Humanas da Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Artigo realizado sobre a orientação do Professor Doutor Robson Norberto Dantas. E-mail: [email protected]
Jaqueline dos Santos Souza
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
A hegemonia imperial Norte Americana, influenciou, com maior predomínio
até as décadas de 60 e 70 do século XX, a seleção dos conteúdos históricos
Brasileiros, que inicialmente pautou-se na história geral, ou, história das
civilizações (BITTENCOURT, 2004, p.157-158). No entanto, tal hegemonia continua
resistindo, apoiando-se na produção didática voltada para a compreensão do
mundo globalizado, que além de limitar o Brasil a um país periférico do sistema
econômico capitalista, e, portanto, retrogrado e ultrapassado diante dos seus
conteúdos históricos, tenta opor as particularidades das culturas regionais e locais,
ao global, entendendo-se que, “ao mesmo tempo em que as relações sociais se
expandem com a globalização, elas não são mais organizadas localmente” (Souza,
1999). Nesse sentido, até ás décadas de 1960 e 1970, período em que a autonomia
imperial decidia os rumos do ensino de história, prevaleceram às discussões
pautadas na macro-história3, nas analises mais gerais dos estudos históricos,
excluindo as suas particularidades.
Já a partir dos anos de 1970, percebe-se que varias tendências
historiográficas começam a surgir, com uma notável atenção para a história social,
cultural e a renovação da história política, influenciando por tanto, na renovação
dos estudos históricos escolares e acadêmicos, essas disposições contribuíram
ainda, para a ruptura com a lógica da história eurocêntrica, ou mesmo do próprio
conceito de história mundial (BITTENCOURT, 2004, p.157-159). Tais perspectivas
foram assim abordadas a partir da proliferação de estudos e pesquisas realizadas
no âmbito universitário e fora dele (idem). Assim percebe-se a necessidade de
integrar a história do Brasil à história mundial, focando-se nos estudos mais
particulares do nacional, abrindo novos espaços para as micro abordagens, e aos
poucos, à proporção que se revisa a história nacional, é possível perceber a
3 Informa-nos José D’ Assunção Barros que a macro-história tende a apresentar as suas interpretações sob a forma de uma verdade que é enunciada objetivamente e de fora, não considerando as especificidades locais. Em contrapartida, a Micro-História procura enxergar aquilo que escapa à Macro-História, empreendendo para tal uma “redução da escala de observação” que não poupa os detalhes e que investe no exame intensivo de uma documentação. O que importa para a Micro-História não é tanto a “unidade de observação”, mas a “escala de observação” utilizada pelo historiador, que observa e o modo intensivo como ele observa o seu objeto.
Conteúdos e abordagens do ensino de História Regional
216 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
necessidade de analisar os aspectos particulares de seus espaços, valorizando, a
história regional.
A partir dos anos 1980, os historiadores produziram trabalhos mais
sistematizados relacionados ao tema. Isso só foi possível graças aos novos
pressupostos teóricos e metodológicos que surgiu na França em 1929, denominada
de Nova História. Nesse contexto, como nos pondera pensar Ana Maria Carvalho de
Oliveira, passou a existir uma diversificação no conceito de fonte histórica e os
objetos de estudo dos pesquisadores foram ampliados, segundo a autora, as
inovações a partir das mudanças de 1929 contribuíram para renovação e
ampliação do conhecimento histórico e dos olhares da história, através da História
Regional busca-se aflorar o específico, o próprio, o particular. (OLIVEIRA, 2003, p.
15).
O alargamento dos conteúdos históricos, no que se refere a História
Regional e Local, culminou nos anos 1980, nas modificações das propostas
curriculares, todas elas voltadas para novas problemáticas e temáticas de estudo,
tais como questões ligadas a história social, cultural e do cotidiano (PCN 1998,
p.27). A fim de tornar mais acessível os estudos históricos regionais no currículo
escolar, torna-se importante perceber as resoluções da lei 4.0244, de diretrizes e
bases 1991, a qual anulou a formalização do currículo fixo e rígido para todo o
território brasileiro, possibilitando o debate de novas questões, percebendo desde
já a emergência de melhores tratos com os assuntos regionais. Mas, só
recentemente com as propostas da lei de Diretrizes e bases da educação nacional
nº 9.394/965, foi possível estabelecer uma nova perspectiva para o ensino da
4 Em 1945, a política educacional Brasileira teve em seus argumentos o destaque para educação nacional, que resultou em 1961, na lei 4.024, de diretrizes e bases, a mesma manteve o sistema organizado pela legislação anterior com a anulação da prescrição do currículo fixo e rígido para todo o território brasileiro, facilitando assim a atuação dos estados e estabelecimentos de ensino na ampliação de áreas optativas ao currículo mínimo prescrito pelo conselho Federal de educação. P24-25. PCN 1998. 5 A lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional n° 9.394/96, entrou em vigor em 20 de Dezembro
de 1996, dizia assim: “Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base
nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por
uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da
economia e da clientela”. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm
Jaqueline dos Santos Souza
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
história regional, aproximando o aluno de suas vivencias e tornando-o ativo diante
do saber.
No que visa à autenticidade das exigências prescritas na lei supracitada,
algumas reformulações foram feitas pela lei n° 12.796, de 2013. Nesse processo, a
educação infantil e o educando, recebem destaque. Assim, de acordo com a nova
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB)- Lei nº 9.394/96 – no seu
artigo 26, enfatiza-se que:
“Art. 26. Os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio devem ter base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e em cada estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e do educando.”
Portanto, de acordo com a intenção da lei supracitada, será possível
resgatar assuntos ligados á identidade local, regional e nacional. Contribuindo para
os estudos históricos, de forma que se volte mais para as analises do cidadão
comum e das relações estabelecidas pelos indivíduos, possibilitando ao aluno a
refletir sobre os seus valores e as suas práticas cotidianas. Percebe-se nesse
sentido, a necessidade de integrar a história nacional à história mundial,
atentando-se para os estudos mais particulares do nacional, abrindo novos espaços
para as micro abordagens6, e aos poucos, à proporção que se revisa a história
nacional, é possível compreender a necessidade de analisar os aspectos
particulares de seus espaços, valorizando a história regional e local
(BITTENCOURT, 2004,p. 161).
Tais perspectivas trouxeram um novo olhar para o conceito de região que,
antes se pautava apenas na região como um conjunto de elementos naturais e de
divisões regionais administrativas, passando a ser também entendida como
construção histórica, e por tanto voltada para a atuação dos homens na
6 No livro República em Migalhas: história Regional e Local, Bittencourt nos informa que a partir da década de 1970 houve um considerável crescimento na pesquisa de História Regional em razão do esgotamento das Macro-abordagens, as quais enfatizavam as análises mais gerais e não se detinham aos estudos mais particulares que melhor indicavam as diferenças da história recente do país.
Conteúdos e abordagens do ensino de História Regional
218 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
organização do espaço, percebendo as suas particularidades, seus espaços de
relacionamentos cotidianos, que ligam as pessoas ao seu lugar de origem dentro de
uma organização econômica e social, fortalecendo os vínculos locais.
(BITTENCOURT, 2004, p. 162). Seguindo essas perspectivas, Janaína Amado
ressalta que os geógrafos, principais contribuintes para a transformação do
conceito de região, a definem como:
“a categoria espacial que expressa uma especificidade, uma singularidade, dentro de uma totalidade: assim a região configura um espaço particular dentro de uma determinada organização social mais ampla, com a qual se articula” (AMADO, 1985, p.8).
Todas as transformações ocorridas tanto nas reformulações do conceito de
região, quanto com a preocupação de se refletir melhor sobre a história regional e
local nos currículos escolares, causaram um embate, bem como a decadência de
mitos e ideias sedimentadas há tempos pela história geral e ou da nação. Dessa
forma, reafirmam-se espaços e sociedades marginalizadas pela história, “fatos
imprecisos”, poderia assim dizer, dos grandes feitos e grandes heróis tomados
como sendo a história de todo um povo. Inserindo-se nesse debate, podemos
tomar como exemplo os escritos de Marc Ferro, o qual percebe que a história
Geral, seja ela oficial ou não, elimina diversos aspectos do social, entre eles, a vida,
os fatos cotidianos e os acontecimentos locais:
“...visto que o desenrolar da história é percebido a partir de um centro que lhe dá sentido: aquilo que não participa dessa atribuição é considerado fora da grande história. A história local ou regional foi desse modo, por muito tempo considerada como uma simples monografia” (RODRIGUES,1997 p153 ).
Por outro lado, não se deve negligenciar a importância da história Nacional
e Geral, como desprovida de utilidades para a repaginação das novas concepções,
pois esta é útil para rever paradigmas e buscar caminhos para novas leituras do
social, daí a sua serventia em “rediscutir as teorias aplicadas às macro abordagens
ou às longas durações” (RODRIGUES, 1997, p 153). Nesses termos, fica a cargo da
história local, regional e global complementar-se, tornando-se muito mais
vantajoso, a aplicação de um diálogo entre ambas, já que não se pode promover o
estudo isolado da realidade regional desvinculado da interpretação de caráter
Jaqueline dos Santos Souza
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
geral. Torna-se importante salientar que, o recorte local não reduz, ou simplifica
aspectos relativos às relações sociais, ao contrário, a analise detalhada de um
determinado espaço adquire um significado próprio o que não se constata nas
análises macroestruturais. Por esta ótica, nota-se a importância do estudo da
História Regional e Local no universo historiográfico, uma vez que ela aproxima o
historiador do seu objeto de estudo. Assim, como nos elucida Erivaldo Neves:
A História Local requer um tipo de conhecimento diferente daquele focalizado no alto nível de desenvolvimento nacional e dá ao pesquisador uma ideia mais imediata do passado. Ela é encontrada dobrando a esquina e descendo a rua. Ele pode ouvir os seus ecos no mercado, ler o seu grafite nas paredes, seguir suas pegadas nos campos. (Neves, 2002, p. 90)
Assim, elucida-nos Neves que o estudo do regional ao focalizar o peculiar,
redimensiona a análise do nacional, ressaltando as identidades e semelhanças,
enquanto o conhecimento do regional e do local insistira na diferença e
diversidade, focalizando o indivíduo no seu meio sócio-cultural, político e geo-
ambiental, na interação com os grupos sociais em todas as extensões, alcançando
vencidos, vencedores e dominados, conectando o individual com o social. (Neves,
2002, p. 89)
Apresentaremos no decorrer deste artigo, as obras “Viagem ao Engenho de
Santana7” e “Memória viva dos Tupinambás de Olivença8” sobre a autoria de
Teresinha Marcis e dos professores Tupinambá de Olivença, editados em 2000 e
2007, respectivamente. Ambos os ensaios tem como fito retratar a história local e
regional de Ilhéus. Para análise das sobreditas obras basear-se-á nas resoluções da
Lei nº 9.394/96 – artigo 26. Para uma melhor compreensão das propostas dos
referidos livros, apresentarei a divisão interna dos capítulos, identificando a
7 “Viagem ao engenho de Santana”, é um livro que surgiu do projeto de produção de Material didático sobre temas de história regional do LAHIGE (Laboratório de Ensino de História e Geografia), da Universidade Estadual de Santa Cruz. Foi oferecido como desafio para novas pesquisas dos registros feitos, na intenção de rever aspectos que necessitem de maiores informações. 8 “Memória viva dos Tupinambás de Olivença”, é um livro organizado pelos professores e lideranças da aldeia Tupinambá de Olivença, na comunidade de Acuípe de baixo. O material originou-se de uma oficina cujo assunto tratava do “ressurgimento étnico” dos referidos povos, tomando novas proporções a partir da avaliação e revisão pelos professores até o período de sua publicação em 2007.
Conteúdos e abordagens do ensino de História Regional
220 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
concepção de história e os conhecimentos históricos apresentados pelos seus
autores, bem como as fontes históricas expostas. Ao fim das analises individuais, se
fará uma comparação entre as obras a fim de detectar quais os atores sociais, suas
demandas e justificativas, sem perder de vistas o lugar e a importância que cada
ator social ocupa na história oficial de Ilhéus.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento desta análise, pauta-se no
estudo de temas sobre a história Regional e local, tendo como base as exigências da
lei nº 9.394/96 – artigo 26, que visa o estabelecimento nas instituições de ensino,
de assuntos ligados a identidade local, regional e nacional. Ampliando este
instrumento metodológico está o PNLD 2008, bem como as reflexões de assuntos
referentes à identidade e memória na história local e regional. Os critérios para a
escolha dos materiais se limitaram às duas obras na medida em que são precários
a edições de livros paradidáticos dessa natureza em Ilhéus. Dessa forma, análises
desse caráter tornam-se imprescindíveis a fim de perceber quais atores sociais
foram preservados na memória oficial de Ilhéus.
Análise das Obras “Viagem ao engenho de Santana” e “Memória viva dos
Tupinambá de Olivença”.
A motivação para o desenvolvimento do livro “Viagem ao engenho de
Santana”, sobre a autoria de Teresinha Marcis, se deu pelo fato da inviabilidade de
materiais de pesquisa que ultrapassassem os limites do século XX e a produção do
cacau9. Todo o seu conteúdo foi explicado com uma linguagem acessível aos
leitores, uma vez que visa-se alcançar em especial o público de estudantes do
ensino regular10 e dos professores. Outra motivação da obra estava relacionada ao
entendimento de alguns aspectos, que promoveram o progresso social, político e
9A produção historiográfica de Ilhéus, durante anos se limitou a estudar a sociedade do cacau, enfatizando a ação dos Coronéis. Entretanto, o livros de Marcis (2000), se pretendeu na contra-mão dessas historiografia, trazendo aspectos da história de Ilhéus ainda pouco conhecidos, a exemplo da relação conflituosa entre índios e colonos durante o período colonial. 10 Entende-se por Ensino Regular o processo de ensino-aprendizagem realizado em instituições escolares, públicas ou privadas, regulamentado por legislação específica de âmbito nacional, regional e/ou local, estruturado em sistema de ensino.
Jaqueline dos Santos Souza
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
econômico da história de Ilhéus desde a fundação da Vila de São Jorge, até o final
do século XIX, período de decadência do Engenho de Santana. Assim, decidiu-se
por explanar todo um trabalho de análise em volta do Engenho de açúcar, escolha
que se justifica pela importância dos acontecimentos que marcaram todo o
desenvolvimento regional.
O paradidático destaca-se pelo seu caráter de teor informativo, tendo como
base para a percepção dos acontecimentos, fontes documentais que trazem à tona
as histórias vividas pelos diferentes personagens históricos de Ilhéus. A
problemática do livro parte antes de tudo, de uma história do tempo presente,
tornando possível a investigação do passado como um problema que tenha sentido
nos dias atuais. Tais informações viabilizam os alunos a pensarem criticamente,
principalmente devido à relevância dada as relações existentes entre diferentes
grupos sociais, fatos que marcaram a história da capitania de Ilhéus, superando
nesse sentido a visão factual, heróica e simplista de seus agentes. Há um trabalho
minucioso com as fontes escritas, orais e iconográficas, elas são apresentas de
forma a facilitar a compreensão do assunto e muitas se tornam uma ampliação do
próprio texto. Esse trabalho criterioso com as fontes enriquece a leitura do livro na
medida em que os procedimentos de investigação apresentados contribuem para a
formação do censo crítico do aluno.
As imagens são de fácil compreensão, devidamente identificadas e
legendadas, tornando possível a reflexão por parte dos alunos, das ações dos
sujeitos históricos. No entanto algumas dificuldades são apresentadas devido à
qualidade do material didático, interferindo em uma melhor visualização das
imagens que se encontram em tamanhos pequenos e na cor preta e branca. Por
outro lado, esses contratempos não interferem na qualidade de suas informações,
uma vez que as particularidades das imagens não são comprometidas, a exemplo
das fotografias da página 24, as quais mostram ruínas do Engenho de Santana,
tornando viva a história de dois séculos atrás.
Conteúdos e abordagens do ensino de História Regional
222 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
Outro paradidático em análise é “Memória viva dos Tupinambá de
Olivença”, esse surgiu de um projeto de oficina elaborado pelos índios de Olivença.
O seu público alvo é destinado às escolas Tupinambá de Olivença e aos outros
povos indígenas da Bahia e do Brasil. O livro apresenta claramente o objetivo, em
expressar o desejo do reconhecimento étnico e geográfico que vise à demarcação
do território tradicionalmente habitado pelos Tupinambás e o resgate da cultura
dos povos supracitados. Baseiam-se para tanto, em uma série de relatos e
testemunhos, na luta por um ensino diferenciado, algo que se justifica pelo
fortalecimento dos seus pressupostos.
Os tupinambás de Olivença buscam contar a sua história, respeitando o
discurso dos mais velhos que “resistem até hoje em suas terras”, para torná-la
conhecida, e acabam por trazer outro olhar para uma maior aproximação do
contexto de discriminação e opressão vivenciadas pelos mesmos. Eles contam a
sua história, a partir da importância dos rituais sagrados e de sua relação com a
natureza e com os instrumentos de caça e pesca, deixando claro que a cultura se
modifica a cada geração.
Os fatos históricos da obra não seguem periodizações lineares para a
construção da história dos povos Tupinambás de Olivença, pois o livro inicia-se
com destaque para a história atual e a identificação espacial dos Tupinambá,
situação que se justifica por acontecimentos passados, e começa a tomar novos
rumos com o reconhecimento de sua cultura através da luta por seus direitos.
Nesse sentido, a história acaba investigando o passado visto como um problema
que tenha sentido no presente, percebendo assim como as relações sociais se
constroem de maneira diferenciada, partindo da investigação e construção da
memória histórica dos povos citados e das histórias dos cronistas. A explicação
tradicional mostra esses grupos indígenas passivos diante do desconhecido, e
ativos quando se percebem num espaço de escravidão.
O trabalho com a documentação histórica não se limita a manuscritos, ao
longo da obra são apresentadas fontes imagéticas e orais, as quais são lembranças
enraizadas na memória dos “parentes mais velhos”, das representações do local
Jaqueline dos Santos Souza
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
onde vivem, e das histórias que viveram. As imagens são devidamente legendadas,
chamam muito a atenção do leitor por aparecerem em forma de caricaturas
ocupando um espaço relevante no contexto, levando o leitor a pensar sobre as
ações dos sujeitos históricos. No entanto, algumas informações sobre os autores
das imagens deixam a desejar, no sentido de não informar como foi possível fazer
essa seleção dos desenhos, ou mesmo, confirmar se os autores são estudantes da
escola indígena, ou não. Isso se torna muito importante, visto o grau de
conscientização tomado pelos Tupinambás de Olivença desde a infância.
Comparação entre as obras
O presente e o passado dialogam, na medida em que a autora Teresinha
Marcis ressalta em seu livro, a importância da história oral, com o depoimento de
personagens que ainda resistem à força do tempo, no atual Rio do Engenho e que
trazem nas suas memórias resquícios de um passado sofrido pelos maus tratos
sociais, ao mesmo tempo em que percebem o desgaste dos espaços naturais
causados pela mão humana. Assim ela inicia a história do Engenho de Santana
apresentando duas diferentes categorias de agentes sociais: os marginalizados,
responsáveis pelo progresso econômico do engenho de Santana, e a elite
economicamente ativa, que vieram da Europa com a ambição de expandir o seu
comércio nestas terras Brasileiras. Nesse sentido, além da intenção de posse da
imensa costa brasileira e das suas riquezas naturais, a esquadra portuguesa causou
a exploração dos nativos da terra, dentre estes se encontravam os índios Aimoré e
Tupiniquim11, outros índios também foram deslocados para as terras ilheenses
como os Tapuia12 e potiguar, estes ganham importante destaque entre os capítulos
1, 2, 3 e 4, que constam das páginas 11 a 42. Nos capítulos seguintes 5, 6 e 7, há
maior destaque para os escravos africanos comercializados a baixíssimos custos
nas costas da África, ocupando as páginas 43 a 74.
11 Os Tupiniquim, descendente dos Tupinambá, viviam ao longo do litoral de Ilhéus até a atual baixada santista.(MARCIS, p 79). 12 “Os povos indígenas que habitavam o litoral brasileiro na época da chegada dos portugueses pertenciam a dois troncos lingüísticos distintos: os Tupi guarani e o Jê, que os Tupi chamavam Tapuia”. (MARCIS, P 79).
Conteúdos e abordagens do ensino de História Regional
224 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
Não muito diferente, o paradidático “Tupinambás de Olivença”, também
destaca a história oral, através de relatos e testemunhos da história do seu povo.
Assim são destacados a presença de duas categorias de agentes sociais, os
tupinambá de Olivença, marginalizados pela a história brasileira, e os
exploradores, invasores europeus. No entanto, a história contada vai além da
apresentação de informações que traga a tona a vida de uma sociedade explorada
durante séculos, tais situações são vistas na verdade, como motor propulsor de
uma luta política, social e econômica que visa o atual reconhecimento étnico e
geográfico desses povos. Nesse sentido, nos capítulos 1, 3, 4 e 5 há destaque para a
história dos Tupinambás, e no capítulo 2 destaca a experiência dos primeiros
contatos com os “invasores”.
Nessas perspectivas, é possível identificar algumas semelhanças na
proposta dos paradidáticos citados, no propósito de perceber o valor da história
contada pelos mais velhos, como forma de reconstruir o passado e percebê-lo
como motivador da destruição do lugar de suas vivências, assim identifica-se nos
fragmentos abaixo:
“Esse lugar hoje está muito diferente. Quando eu era pequena o rio tinha cachoeiras, no outro lado tinha a casa de farinha e a serraria. Aqui, (apontando para o inicio das casas, era uma grande olaria. Hoje ainda se encontra muitos pedaços dos tijolos. As mulheres ganhavam a vida lavando roupa. Eu mesmo fui lavadeira ”(depoimento de dona Laura, 63 anos, moradora do povoado. MARCIS, pp10). “...No meu tempo, quando eu me entendi por gente, Olivença era aldeia Tupinambá. Existiam três povoados de Índios: Coqueiros, Jairy e Aldeia sede de Olivença. Os índios saiam para trabalhar nas matas. Alguns voltavam pela tarde, outros que ia pra mais longe voltavam no final da semana e se ajuntavam em Olivença para fazer festa, e tomar muitas biritas, coteas, que é cachaça. Mas, com as perseguições sucedidas, as aldeias se acabaram pois os índios foram fugindo pelas matas...”(depoimento do Sr Armando Magalhães. Professores Tupinambá de Olivença, pp46)
Há outro destaque, em ambos os livros, para a percepção dos índios como
agentes de sua própria história. Nesse sentido, a primeira impressão dos índios
Jaqueline dos Santos Souza
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
Tupiniquim, defronte as ganâncias dos europeus os tornaram indefessos diante do
desconhecido, mas não incapazes de agirem contra as sujeições dos colonos
portugueses, onde se lê:
“Os índios não compreendem a ganância dos colonos em produzir mais do que o necessário para viver e resistem cada vez mais, recusando os trabalhos forçados em troca de bugigangas, fugindo para o interior, destruindo plantações e amedrontando os colonos.” (MARCIS, p.28). “O primeiro contato que nosso povo Tupinambá/Tupiniquim teve com os exóticos europeus foi uma relação aparentemente amistosa, pois não sabíamos ainda ao certo o que os estrangeiros queriam fazer em nossas terras” (Professores Tupinambá de Olivença,p. 20).
E ainda
“Estamos acostumados a ouvir a história sobre os índios que os brancos contam, ainda assim é válido lembrar alguns pontos de seus relatos em que contam e falam do nosso povo, mesmo que sejam triste. Por volta de 1558, os tupinambá que ainda não haviam sido catequizados reagiram ao trabalho escravo e a invasão de suas terras, destruindo canaviais e povoados dos colonos”. (Professores Tupinambá de Olivença, p.32).
No que diz respeito à diferença entre ambos os materiais didáticos, é
importante destacar que apesar de se assemelharem em alguns aspectos, como os
citados acima, eles se diferenciam no seu objetivo principal, ou seja, se por um lado
busca-se entender na obra de Teresinha Marcis, alguns fatores fundamentais que
promoveram o progresso social, político e econômico da história de Ilhéus, desde a
fundação da Vila de São Jorge, até o final do século XIX; por outro, os Professores
Tupinambá de Olivença, objetiva expressar o desejo do reconhecimento étnico e
geográfico visando à demarcação do território tradicionalmente habitado pelos
Tupinambás e o resgate da cultura de seu povo. Além dessas diferenças, o livro de
Marcis ainda ressalta o trabalho escravo do negro Africano, os “pretos minas” e os
crioulos, além da influência dos padres de Ilhéus e de Lisboa no controle desses
cativos. Questões como a submissão e resistência dos escravos, ressaltadas nos
capítulos 5; 6 e 7, são assim tratadas:
Conteúdos e abordagens do ensino de História Regional
226 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
“Os castigos físicos eram a forma mais comum para manter o escravo submisso e obediente. Essa prática era também utilizada pelos padres Jesuítas. Nos canaviais, a labuta sempre era acompanhada por um feitor e sua chibata, como relata um jesuíta do Engenho de Santana. Ele alegava que apenas palavras não bastava, que era necessário andar pelo canavial com o diabo na boca e o pau nas costas dos pobres”(citado por SCHARWTZ, 1988, p. 130. Apud MARCIS, p 52).
“Em 1789, os escravos do Engenho de Santana se rebelaram, sob a liderança de um “cabra” chamado Gregório Luís. Mataram o feitor e ocuparam o engenho, paralisando a produção por dois anos”(SCHWARTZ, 1988. P. 142. Apud Marcis, p 66).
A conseqüência, das ações dos escravos do Engenho de Santana, causou por
parte do governo, o envio da expedição militar para debelar a referida revolta, mas
quando os escravos foram atacados escreveram um tratado de paz, que assim
dizia:
“Meu senhor, nós queremos paz e não queremos guerra; se meu senhor quiser paz há de ser nessa conformidade, se quiser estar pelo que nós quisermos a saber...Para podermos viver nos há de dar rede, tarrafa e canoas. Não nos há de obrigar a fazer Camboas, nem a mariscar, e quando quiser fazer caboas e mariscar mande os seus pretos Minas...”(Transcrição do texto original in Reis, João José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: A resistência negra no Brasil escravista, 1989. Apud MARCIS, p 69)
De acordo com Marcis, este raro documento histórico revela o escravo como
um agente histórico ativo que buscava melhorar sua vida e as condições de
trabalho mesmo dentro do regime de escravidão. Outro aspecto que se deve notar
são as diferenças existentes, evitando a generalização de que todos os escravos são
iguais.
Vimos neste capítulo, que a história regional e local de Ilhéus apresentadas,
visa perceber a atuação de índios e negros, como os agentes históricos rechaçados
pela sociedade da época dos primeiros contatos, até o final do século XIX, tanto
pelo não reconhecimento como povos civilizados, impondo-se, por exemplo, outra
religião e outros costumes, quanto pelo trabalho compulsório. As formas de
resistência também variam, entre fugas, rebeliões e tratados, este último promove
ao leitor as propostas de vida reivindicadas por esses agentes marginalizados.
Jaqueline dos Santos Souza
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
Antes, escravos de uma história, mantidos como pilar sustentador das obras
mais importantes, ao mesmo tempo em que banidos do reconhecimento das
mesmas e de suas próprias histórias; hoje não reconhecidos pelo labor das horas
perdidas, em que foram proibidos de falar, cantar, dançar, enfim de celebrar á vida,
é da forma apresentada, respectivamente, que os livros de Teresinha Marcis e dos
professores Tupinambás se complementam, com a história do passado e do
presente. É na reconstrução desses laços interrompidos que a memória viva dos
Tupinambás de Olivença projeta o futuro de sua sociedade, essa que se baseia na
modificação da cultura a cada geração, mas que reconhecem a sua história e a sua
origem, mantendo as suas identidades através de seus costumes e da cultura
material, reafirmando-se enquanto um povo que não perdeu a sua identidade, essa
ao contrário, se transformou ao longo dos tempos, a partir da transformação da
sua própria cultura (Professores tupinambá de Olivença, p 49). Corroborando com
os respectivos propósitos, podemos, portanto dizer que “a memória é um elemento
constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, na medida
em que ela é também um fator extremamente importante do sentimento de
continuidade e de coerência de uma pessoa ou de um grupo em sua reconstrução
de si” (POLLAK, 1989, p.204).
A História Regional nos livros didáticos do 2º ao 5º ano
Nesse contexto de novas perspectivas para o trabalho da história local e
regional na sala de aula, percebe-se a pouca atenção dada às obras regionais, pela
falta de maiores investimentos na sua produção e de um trabalho dinâmico que,
identificando as especificidades locais/regionais, considere a progressão histórica
dos alunos. Concebido como um recurso auxiliar para o professor e como
instrumento facilitador da aprendizagem, o livro didático visa a aproximação das
fronteiras espaciais e socioculturais, trazendo a tona o estudo da história local e do
meio em que vive o mesmo. Sobre esses dois últimos aspectos, os PCN´s
(Parâmetros Curriculares Nacionais), buscam auxiliar o professores na execução
dos seus trabalhos, objetivando por meio do estudo da história local e do cotidiano,
no Primeiro Ciclo(1ª à 2ª s.), identificar algumas características da sociedade em
Conteúdos e abordagens do ensino de História Regional
228 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
que os alunos vivem, mediante a identificação das diferenças e semelhanças
existente de inicio no presente, para que em seguida desenvolvam estudos do
passado, percebendo as mudanças e permanências nas organizações familiares e
educacionais, bem como nas relações de trabalho e na organização urbana ou rural
em que vivem. (PCN, 1997, p.35-36). Nesse intuito, Segundo os PCNs torna-se
relevante introduzir estudos dos povos Indígenas, o qual descreve:
“A preocupação em identificar os grupos indígenas que habitam ou habitavam a região próxima do convívio dos alunos é a de possibilitar a compreensão da existência de diferenças entre os próprios grupos indígenas, com especificidades de costumes, línguas, diferentes, evitando criar a imagem do Índio como povo único e sem história. O conhecimento sobre os costumes e as relações sociais de povos indígenas possibilita aos alunos dimensionarem, em um tempo longo, as mudanças ocorridas naquele espaço onde vivem e, ao mesmo tempo, conhecem costumes, relações sociais e de trabalho diferentes do seu cotidiano” (Parâmetros Curriculares Nacionais, 1997, p.35-36)
No entanto, ainda há muitos desafios a se vencer no percurso realizado para
a consolidação dos livros didáticos de história regional e local, assim algumas faltas
são observadas tais como: o pouco esclarecimento sobre o recorte espacial
escolhido, a desconexão entre os conteúdos, as habilidades trabalhadas nos livros
regionais e as formas isoladas que se apresentam os processos regionais e locais à
história brasileira. (PNLD, 2013,p.28). Passar despercebido, por questões como
essas, seria desconsiderar dois importantes aspectos que formam o estudo da
história local e do cotidiano, tais como a memória e identidade dos sujeitos
históricos, uma vez que, de acordo com Circe Bittencourt, “a questão da memória
impõe-se por ser a base da identidade, e é pela memória que se chega a história
local”, pois esta possibilita ao discente o entendimento do seu cotidiano,
identificando o passado sempre nos espaços de convivência, sem perder de vista os
problemas significativos da história do tempo presente. (BITTENCOURT, 2004, p
169). Portanto, perpassar pela história do cotidiano é preocupar-se com a história
local, esta que é capaz de redimensionar a visão política das formas improvisadas
de lutas, de resistência e de organizações diferentes das estabelecidas pelo poder
institucional, é estar além de tudo ligada a história cultural.
Jaqueline dos Santos Souza
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
Como foi possível perceber nos comentários anteriores, é necessário dar
conta da urgência em se trabalhar na sala de aula esta nova concepção
historiográfica, uma vez que os livros didáticos e módulos privilegiam apenas um
tipo de conhecimento histórico universalizado em temas de História Geral e do
Brasil, muitas vezes sem significado para os alunos, “uma história distante de seu
tempo presente, de suas experiências de vida, de suas expectativas e desejos.
Assim os Parâmetros Curriculares nos orienta a estabelecer no Segundo Ciclo (3 ª e
4 ª s.), que os conteúdos de História Geral e Nacional se relacionem com a História
Local, na busca de explicações abrangentes, que dêem conta de expor as
complexidades das vivência históricas humanas, por exemplo, para os alunos
entenderem as reivindicações das sociedades indígenas contemporânea é
necessários está atentos aos fatos históricos da história geral e do Brasil.
A nível de consideração final, acredita-se que os conteúdos de história,
estudados nas escolas deveriam ser menos mecânico e mais aplicável a um
significado de vida para os estudantes. Geralmente estudamos as características do
rio Nilo, mas não mencionamos a importância histórica que teve o rio das Contas
para a economia da Capitania dos Ilhéus, uma vez que boa parte do abastecimento
da cidade de Salvador até o século XIX era feita através desse rio13. Também,
estudamos o poder apenas em uma esfera nacional, não levamos em consideração
as práticas políticas e os símbolos usados pelos coronéis da nossa região como
forma de perpetuar seu status sócio-econômico.
Evidentemente, a História Regional e Local não pode ser desvinculada de
um contexto mais amplo de região, ou seja, não podemos falar de economia da
Capitania dos Ilhéus no século XIX, sem fazer uma relação com o cenário nacional,
mas isso não significa estabelecer escalas de valores entre um tema e outro, o
fundamental é percebermos as relações históricas na mais pura especificidade,
como bem esclareceu Neves (2002). No entanto, é necessário se prevenir diante de
alguns riscos, a exemplo do tratamento com os personagens históricos, caso
13 Acerca das relações econômicas da Capitania de Ilhéus e seu papel de abastecedora de alimentos ver DIAS, Marcelo H. Economia, sociedade e paisagens da capitania e comarca de Ilhéus no período colonial. Niterói, PPGH-UFF, 2007 (tese de doutorado).
Conteúdos e abordagens do ensino de História Regional
230 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 214-231.
contrário a história local pode simplesmente reproduzir a história do poder local e
das classes dominantes, caso se limite a apresentar aos alunos personagens
políticos de outras épocas, destacando a vida e a obra de antigos prefeitos e demais
autoridades. (BITTENCOURT,2004, p169).
Referências
AMADO, Janaína. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In SILVA, Marcos (Org). República em Migalhas: história Regional e Local. São Paulo: Marco Zero/ CNPq, 1990.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de história: fundamentos e métodos. São Paulo; Cortez, 2004.
BRASIL. Guia de Livros Didáticos: PNLD 2008: História/Ministério da Educação. Brasília: MEC,2007. 128p.
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BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais: História, Geografia. Secretaria de Educação Fundamental. Brasilia: MEC/SEF, 1997.166p.
DIAS, Marcelo H. Economia, sociedade e paisagens da capitania e comarca de Ilhéus no período colonial. Niterói, PPGH-UFF, 2007 (tese de doutorado).
GOUBERT, Pierre. História Local. História & Perspectiva, n. 6, p. 45-57, 1992
MARCIS, Teresinha. Viagem ao Engenho de Santana/ Teresinha Marcis. – Ilhéus:
Editus, 2000.
Memória viva dos Tupinambá de Olivença: relembrar é reviver, é afirmar-se
ser/[organização] Professores Tupinambás de Olivença. Salvador: Associação
Nacional de Ação Indigenista; CESE, 2007.
NEVES, Erivaldo Fagundes. História Regional e Local no Brasil: fontes e métodos
da pesquisa histórica regional e local. Feira de Santana/ Salvador, UEFS/ ed.
Arcádia, 2002.
PEREIRA, Aldiceia Machado. A importância da história local para o ensino de
história: Um olhar para o município de Duque de Caxias, 2010.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, p. 3-15.
Jaqueline dos Santos Souza
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RODRIGUES. J. F. S. “História Regional e Local: problemas teóricos e práticos”. In:
Revista História & Perspectiva. Uberlândia: UFU/COCHI, 1997, pp. 149-164. nº
16/17.
SOUZA, Magda Viana de. Identidade Cultural e política Municipal de Educação. FAPERGS e FINEP/ 1999.
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 232-241.
O ENSINO DE HISTÓRIA DA ÁFRICA E DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA: DESAFIOS E POSSIBILIDADES12
Franciel Coelho Luz de Amorim3
Resumo: O presente trabalho procura debater questões sobre o ensino de História da África e da cultura afro-brasileira, passando por uma discussão nos problemas do nosso ensino, sobre a importância e ao mesmo tempo as dificuldades de inclusão da temática Africanidades e sobre tudo como incluir e desfazer ideias que desvalorizam nossa própria Diversidade Cultural. Discutindo também porque precisamos de lei para valorizar nossas heranças culturais e como está ocorrendo o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira a partir da lei nº 10.639/03. Esse trabalho enfatiza, portanto, o nosso ensino assim como as práticas pedagógicas, no sentido de estarem em conformidade com o devido valor histórico-cultural que sempre foi repassado apenas por meras representações sobre a África e os Afrodescendentes no nosso processo de ensino-aprendizagem. Palavras-chave: Ensino de História da África. Diversidade Cultural. Lei nº 10.639/03. Abstract: This paper seeks to discuss issues on the teaching of African history and culture african-Brazilian, through a discussion on the problems of our education on the importance and yet the difficulties of including thematic and Africanidades about everything including and discard ideas that devalue our own Cultural Diversity. Also discussing why we need the law to value our cultural heritage is occurring and how the teaching of African history and culture from african-Brazilian Law No. 10.639/03. This work emphasizes therefore our teaching as well as teaching practices in order to comply with the due historical and cultural value that has always been passed by just mere representations about Africa and African Descent in our process of teaching and learning. Keywords: Teaching African History; Cultural Diversity; Law No. 10.639/03.
O ensino de História da África e da Cultura Afro-brasileira passou a ser
obrigatório a partir de 2003 nas instituições de ensino públicas e privadas da
1 O presente Artigo é resultado de discussões estabelecidas na disciplina de História da África do
curso de Licenciatura em História da UPE Campus Petrolina. 2 Recebido em 05/09/2013. Aprovado em 17/11/2013.
3 Graduando em História pela Universidade de Pernambuco – UPE Campus Petrolina. E-mail:
[email protected]. Orientador: Prof. Ms. Harley Abrantes Moreira.
Franciel Coelho Luz de Amorim
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 232-241.
educação básica, com a lei 10.639 que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, assim como coloca o artigo 26-A da referida lei:
Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1º O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística, de Literatura e História Brasileira. (BRASIL, 2003, p. 01).
Diante dessa obrigatoriedade devemos fazer os seguintes questionamentos:
Por que a necessidade de se estabelecer uma lei para que o nosso ensino
começasse a valorizar e a explanar a devida importância da história da África e da
Cultura Afro-brasileira? Será que mesmo depois da lei existe empenho na
valorização e na conscientização por parte dos educadores e das instituições de
ensino para a devida importância de se discutir Africanidades ou simplesmente
existe um vago e precipitado preenchimento de algo que foi imposto
obrigatoriamente a ser cumprido?
São questionamentos pertinentes, uma vez que já estamos nos aproximando
quase há uma década depois do vigor da lei. E ainda se observa pouca preocupação
no levantamento de discussões e efetivação na complexidade da lei, deveríamos
levar em conta que não necessitaria ter lei obrigando que tais discussões
ocorressem, pois as abordagens de cunho histórico-culturais, assim como as
demais, deveriam perpassar pelo continente africano e pela cultura afro-brasileira
para entendermos o processo de formação da sociedade brasileira.
Sabemos que o ensino público do nosso país é responsável por educar a
grande maioria da nossa população, enquanto o ensino privado e apresenta com a
O ensino de história da África
234 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 232-241.
missão de preparar os filhos de uma minoria com maior poder aquisitivo (os filhos
dos ricos) para o ingresso nas grandes Universidades do nosso país. Mas, mesmo
com uma grande distinção apresentada entre o público e o privado sabemos que o
nosso Ensino de maneira geral ainda é muito falho no que diz respeito às
discussões críticas sobre os fatos que são pertinentes, principalmente aqueles
históricos que sempre foram interpretados e repassados por errôneas
representações e que o nosso ensino (principalmente de História) continua
reproduzindo até os dias atuais.
Como as histórias de reis, heróis, grandes homens e grandes feitos ou até
mesmo a própria noção de cultura na qual as ideias eurocêntricas (do homem
branco hegemonicamente e historicamente considerado superior) sempre
predominaram, se encaixando, nesse caso, dentro do “conceito vivo” e valorizante
de cultura, enquanto as culturas das etnias historicamente inferiorizadas (Negros e
Índios) são vistas de modo meramente simbólico. Sendo que essas culturas são
percebidas “[...]de forma folclorizada e pitoresca, como mero legado deixado por
índios e negros, mas dando-se ao europeu a condição de portador de uma ‘cultura
superior e civilizada’”. (FERNANDES, 2005, p. 380).
A construção da criticidade dos educandos não é uma tarefa fácil, pois
muitos educadores não conseguem desenvolver sua própria criticidade diante de
muitas situações. Isso porque muitos entram em uma rotina de comodismo e
estagnação de suas práticas pedagógicas, não percebendo que as discussões
precisam fluir, e que o ensino (principalmente de História) não pode ser regido por
representações que foram criadas e reinventadas para os fatos e os
acontecimentos. Sendo que os professores não podem ser um instrumento de
reprodução dessas representações, mas infelizmente muitos acabam sendo
passivos e obedientes à opressão exercida por aqueles que comandam os
interesses políticos e ideológicos da nossa sociedade.
Seria necessário, nesse caso, não conceituar o que seria a cultura afro-
brasileira, mas que os docentes ao trabalharem com o tema mostrassem que não
possuímos uma história homogeneizada e sim uma heterogeneidade étnica que foi
Franciel Coelho Luz de Amorim
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 232-241.
se constituindo nas diferentes expressões que hoje nos cercam e nos entrelaçam.
Todas elas são responsáveis por essa diversificada sociedade que é rica em
diversidade cultural, na qual o direito a diferença não é somente necessário, mas
sim que ocorresse de uma maneira natural, pois somos diferentes e não podemos
viver em torno de um conjunto de regras, preceitos e princípios que valorizam uma
ou outra expressão cultural.
Nesse caso falar em cultura Afro-brasileira não falar de cultura Africana,
pois as práticas culturais estabelecidas pelos Africanos no Brasil não são as
mesmas cultivadas no território Africano, houve uma ressignificação dessas
práticas a partir dos novos contextos que aqui encontraram sendo assim
Os africanos e seus descendentes moldaram e criaram uma cultura negra dentro de uma nova realidade chamada Brasil; essa nova cultura lhes dava sentido à existência, criando assim, paulatinamente, um complexo e diverso sistema cultural o qual hoje convencionamos chamar genericamente de cultura afro-brasileira. (GOMES,2012, p. 52).
O ensino de história da África não deveria ser tratado como uma obrigação,
e ainda segundo Oliva (2003) deveria ser dado relevância ao estudo de
Africanidades de uma maneira geral sem necessitar de motivação. Sendo assim, um
processo sólido que contemplasse uma série de discussões cercadas de
observações, problematizações e uma devida valorização tanto da história da
África como da cultura Afro-brasileira, pois estudar sobre a África é estudar sobre
uma vertente de nossas próprias origens.
Antes da lei 10.639/03, que alterou as Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), tornando Africanidades um tema obrigatório no nosso ensino já
existia os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) que visam os conteúdos
transversais, ou seja, o ensino de uma determinada disciplina interligado de
maneira interdisciplinar a outras temáticas como, por exemplo, a sexualidade, a
ética, o trabalho, a saúde, o consumo, a própria pluralidade cultural que atende
para a nossa diversidade cultural, ou seja,
O ensino de história da África
236 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 232-241.
[...] a ênfase nas diferentes formações que o povo brasileiro teve, sem que uma cultura sobreponha-se à outra, mas que todas sejam vistas como importantes para a construção da identidade nacional. Esta temática dificilmente é vista sendo trabalhada nas escolas. Ela obrigaria, já antes da lei 10639/03, que os professores dessem uma passada pela África para tratar de nossas heranças culturais. (LAUREANO, 2008, p. 335).
Mas infelizmente os PCNs parecem serem desconhecidos por muitos
educadores ou simplesmente são vistos como algo dificultoso, burocrático e que
não deve ser levado a serio, a prova disso é fato da pluralidade cultural não ser
trabalhada sem que uma cultura se sobressaia à outra, (se é que ela era ou é
trabalhada como rege os PCNs) de maneira que houvesse uma recorrência não
estereotipada a história do negro, (por sua vez considerado historicamente
produto de posse para a produção e acumulação das riquezas da minoria europeia
do nosso país) para uma abordagem das nossas heranças culturais. Mas
infelizmente “quem olha para os currículos escolares, do primeiro grau à
universidade – salvo raras exceções – não vê a presença negra, senão restrita a
algumas lamúrias nas poucas páginas dedicadas à escravatura”. (ZAMPARONI apud
OLIVA, 2009. p. 161).
A importância da história da África como das culturas de matrizes africanas
não podem ser colocadas para o esquecimento ou o desconhecimento dos que
fazem o processo de ensino-aprendizagem acontecer nessa sociedade. Com a
inclusão da lei 10.639/03 as discussões foram se fomentando para a inserção da
História da África também nos currículos Acadêmicos, mas sabemos que é um
processo bastante lento, mas que esta acontecendo para uma formação
diferenciada nos futuros educadores que deverão ter outra postura na sala de aula
no que diz respeito ao ensino das diversidades culturais.
Uma grande maioria de professores que atuam no nosso ensino são
professores que saíram da Universidade já há bastante tempo e tiveram uma
formação que os impossibilitam hoje de serem conhecedores da África e das
culturas Afro-brasileiras, com isso “encontram dificuldades para ter acesso às
informações que lhes possibilitem aplicar a lei”.(LAUREANO, 2008, p. 338).
Franciel Coelho Luz de Amorim
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 232-241.
Esse é um problema seríssimo que já deveria ter sido revisto há bastante
tempo, pois como será ensinado algo desconhecido, esse grande número de
professores que desconhecem a temática acabam somente se refugiando nos
aportes oferecidos e pré-estabelecidos pelo livro didático. Que por sua vez se
constituem em meras e muitas vezes errôneas representações da história,
carregados de ideias de uma história oficial que não inclui as diversas
manifestações culturais e étnicas raciais, que efetivaram uma participação mais
que importante na edificação da nossa sociedade:
Os livros didáticos, sobretudo os de história, ainda estão permeados por uma concepção positivista da historiografia brasileira, que primou pelo relato dos grandes fatos e feitos dos chamados ‘heróis nacionais’, geralmente brancos, escamoteando, assim, a participação de outros segmentos sociais no processo histórico do país. Na maioria deles, despreza-se a participação das minorias étnicas, especialmente índios e negros. (FERNANDES, 2005, 380).
Nesse sentido as práticas pedagógicas se voltam para a desvalorização
étnico-cultural de uma grande parte de nossa sociedade, as crianças
afrodescendentes se sentem não tão bem quando olham seu passado exposto
sobre imagens, ilustrações, e práticas estereotipadas que mostram o negro
historicamente como um objeto insignificante nesse processo e que não contribuiu
em nada para o que somos hoje. Além disso, os educadores devem com certa
frequência se deparar com situações delicadas que podem ser causadas pelas
próprias reproduções que eles mesmos fazem nas suas práticas de ensino, assim
como aponta Gomes (2012, p. 50):
Muitas vezes, os professores se deparam com piadas, jargões e represálias que são lançadas sobre a África e a cultura afro-brasileira apenas variando em graus de violência, sendo reflexo de uma tradição pautada sobre um discurso depreciativo, repressivo e disciplinador, que impôs estigmas de marginalidade, inferioridade e nocividade ás práticas transmigradas com as etnias da África.
O ensino de história da África
238 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 232-241.
Trabalhar a temática do ensino da África não é uma tarefa fácil, pois
simplesmente existe uma imagem eurocêntrica que foi criada e recriada
historicamente sobre a inferioridade do continente africano, com isso observamos
que não existia (ou ainda não existe) uma preocupação na efetivação de currículos
escolares que venham a integrar o eixo das discussões sobre a África. Invés disso
observa-se a reprodução dessa imagem de superioridade do homem branco que
perpassa através dos anos por todos os currículos escolares, livros didáticos, e
principalmente nas práticas pedagógicas, sendo que isso não se restringe somente
a educação básica.
Muitos discursos intelectuais apontam para essas ideias discursivas de
inferioridade da África e de seus descendentes, sendo que o meio acadêmico ainda
se apresenta com poucas preocupações para a efetivação do ensino brasileiro
devidamente integrado nas discussões e abordagens sobre o ensino da história da
África e da nossa cultura afro-brasileira.
Apesar da publicação da lei 10.639/03, ou talvez, motivado por ela, encontramos um quadro ainda em mudança em relação às preocupações e reflexões acadêmicas acerca do ensino da história africana. Ressalvando-se algumas exceções, fora apenas nos últimos quatro anos, às vezes um pouco antes, que nossos especialistas em estudos africanos começaram a tecer considerações mais específicas acerca do lugar da África no sistema educacional brasileiro. (OLIVA, 2009, p. 159).
Devemos ressaltar que a nossa sociedade de uma forma geral pouco sabe
sob o continente africano, sobre toda a conjuntura política, econômica, social,
sobre os costumes, as práticas, as diversas religiões, sobretudo no âmbito
cultural.E com isso acabamos por reproduzir as ideias e as visões preconceituosas
e de inferioridade desse continente, sem a devida consciência de que fazemos
parte, de maneira bem ampla, da história do continente africano, pois de lá vem
uma grande parte de nossas heranças culturais.
A reprodução de ideias de uma África indissociável de uma civilização
inferior e acima de tudo de não enxergarmos o seu devido valor sociocultural, são
Franciel Coelho Luz de Amorim
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 232-241.
repassadas principalmente pelos diversos veículos de comunicação de massa do
nosso país, que continuam a se apoiar em imagens construídas no passado (e ainda
no presente) para mostrarem em quase todos os momentos as péssimas condições
de vida, doenças e a desigualdade ainda existente na África (parecendo até que são
problemas exclusivos do continente africano), sem, contudo mostrar o outro lado
da moeda. Dessa contribuição que é dada pela mídia Oliva (2003, p. 431) coloca
que
reproduzimos em nossas idéias as notícias que circulam pela mídia, e que revelam um Continente marcado pelas misérias, guerras étnicas, instabilidade política, AIDS, fome e falência econômica. Às imagens e informações que dominam os meios de comunicação, os livros didáticos incorporam a tradição racista e preconceituosa de estudos sobre o Continente e a discriminação à qual são submetidos os afrodescendentes aqui dentro.
Com tudo isso, aplicar a lei e efetivar a temática de Africanidades nos
currículos escolares não se ressume somente a ter que obrigatoriamente aplicar e
sim a uma série de questões que precisam ser discutidas e uma infinidade de
problemas que necessitam ser resolvidos, ou seja, o ensino público, assim como foi
relatado acima, é responsável pela educação da grande maioria dos brasileiros e
esse mesmo ensino público em si já não oferece condições para que ocorra um
sólido processo de ensino-aprendizagem.
Além de um grande número de problemas estruturais, os professores
precisam ensinar algo que conheçam e ao mesmo tempo se sintam preparados
para abordar e discutir em sala de aula; as instituições de ensino superior
(principalmente na formação docente) precisam alterar seus currículos com o
acréscimo da história da África e cada vez mais travar discussões acadêmicas para
que os futuros professores sejam conhecedores dessa temática; os educandos
precisam ser despertados para a desconstrução de muitas interpretações errôneas
que fazem (muitas vezes por ouvir relatos) sobre a África e as culturas afro no
Brasil, percebendo assim que são sujeitos resultantes dessa história e dessa
diversidade cultural.
O ensino de história da África
240 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 232-241.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É necessário sempre abordarmos questões do nosso ensino é estarmos
centrados na certeza de que não devemos enquanto educadores ou futuros
educadores ficar estagnados, passivos e obedientes às ideias, preceitos, regras e
até mesmo estereótipos que foram construídos e implantados nas instituições, nos
livros didáticos, nas práticas pedagógicas e nos próprios professores, sendo nesse
caso reprodutores intrínsecos a essas ideias que se proliferaram e ainda
proliferam na nossa sociedade e, sobretudo no nosso ensino.
Esperamos que as instituições de ensino da nossa educação básica e
principalmente as de ensino superior travem discussões efervescentes na
perspectiva de vivenciarem devidamente a contextualização do ensino de história
da África e da cultura afro-brasileira na busca de um devido reconhecimento de
ambas as expressões culturais que de modo indissociável constituíram a nossa rica
diversidade cultural.
Sabemos que a aplicação da lei 10.639/03 a partir de uma simbologia ou
simplesmente por achar que é uma lei e deve ser aplicada de qualquer maneira não
vai resolver os problemas existentes nessa lacuna do nosso processo de ensino
aprendizagem.
É necessário antes de repensarmos as práticas pedagógicas, que os
educadores se conscientizem sobre o que já foi erroneamente construído e
reproduzido sobre a imagem da África e que revejam e repense o que sabem sobre
o tema e sendo o caso busquem uma especialização ou até mesmo a participação
nos eventos acadêmicos para não só absorver conhecimento, mas desenvolver uma
integração de novos conceitos e valores permeados por meio dessa participação
efetiva nessas discussões acadêmicas.
Discussões que necessitam ser ampliadas no sentido de não ser somente
mais uma lei que se junta a tantas outras já existentes, mas sim um processo de
Franciel Coelho Luz de Amorim
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 232-241.
construção de outras realidades de pensamentos e ideias possíveis somente pelo
víeis da educação.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Presidência da República Casa Civil. Subchefia para Assuntos Jurídicos.Lei nº 10.639 de 9 de janeiro de 2003. Brasília: 2003. FERNANDES, José Ricardo Oriá. História e Diversidade cultural: desafios e possibilidades. Cadernos Cedes.Campinas: vol. 25, nº 67, pp. 378-388, set./dez. 2005. GOMES, Gustavo Manoel da Silva. Representações da África nas práticas de ensino
de Histórias e Culturas Africanas na sala de aula. In: MOREIRA, Harley Abrantes
(Org.). Africanidades: Repensando identidades, discursos e ensino de história da
África. Olinda: Livro Rápido, 2012. pp. 38-65.
LAUREANO, Marisa Antunes. O ensino de História da África. Ciências e Letras. Porto Alegre: nº 44, pp. 333-349, jul./dez. 2008. OLIVA, Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos escolares. Representações e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos. Ano 25, nº 3, 2003.pp. 421-461. OLIVA, Anderson Ribeiro.A história africana nas escolas brasileiras. Entre o prescrito e o vivido, da legislação educacional aos olhares dos especialistas (1995-2006). História. São Paulo: vol. 28, nº 2, 2009.pp. 143-172.
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 241-255.
ÀS MARGENS DO ESQUECIMENTO: RETRATAÇÃO DOS AFRICANOS NOS LIVROS DIDÁTICOS DE HISTÓRIA1
Geferson Santana2
Resumo: O presente intuito é refletir sobre os silêncios nos livros didáticos de
História do terceiro ano do Ensino Médio referente à participação dos africanos na
Segunda Guerra Mundial, em especial os africanos do chifre da África e da África
setentrional. A escolha se baseou pelo fato desses territórios terem sido
privilegiados nas discussões dos capítulos dos materiais didáticos e por terem sido
pontos estratégicos usados pelos Aliados (Inglaterra, França, EUA) para atacar e
defender-se das investidas bélicas do Eixo (Japão, Alemanha, Itália), assim como
invadir outras regiões circunvizinhas sob dominação nazifascista. Ao longo da
discussão traçada falaremos da importância dos povos africanos na libertação de
nações europeias a partir da historiografia utilizada.
Palavras-chave: II Guerra Mundial; África; Ensino de História.
Abstract: The present intention is to reflect upon the silences in the history schoolbooks from the third year of high school on the involvement of Africans in the Second World War, particularly the Africans from Horn of Africa and North Africa. The choice relied on the fact that these territories have been privileged in the discussions of the chapters of didactic materials and they were strategic spots used by the Allies (Britain, France, USA) to attack and defend themselves from armed investees of the axis (Japan, Germany, Italy), as well as invading other surrounding regions under nazifascista domination. Throughout the discussion traced we will talk of the importance of African people in the liberation of European nations from historiography used.
Keywords: Second World War; Africa; Teaching of History.
Parto de uma inquietação sobre a ausência nos livros didáticos do terceiro
ano do Ensino Médio referente à participação dos africanos do chifre da África e da
1 Recebido em 15/09/2013. Aprovado em 17/11/2013.
2 Graduando em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Editor-Gerente da Revista Eletrônica Discente História.com. Celular: (75) 9102-3013. Correio eletrônico: [email protected]. Agradeço as contribuições do Prof. Juvenal de Carvalho.
Às margens do esquecimento
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 241-255.
África Setentrional na guerra datada pelo historiador africano Ali A. Mazrui de
1935, quando Benito Mussolini começa a invasão da Etiópia, mas na Europa dar-se
em 1939 com a invasão da Polônia pelos alemães em aliança com os soviéticos.
Registrei na pesquisa que, no Brasil, poucos são os estudos sobre a atuação da
África nas guerras mundiais.
As iniciativas de estudos sobre o continente africano na guerra ainda são
tímidas na História, e menos ainda no ramo cinematográfico. A investida mais
importante no ramo deste tipo de produção para a compreensão dos povos
africanos na guerra é o filme Dias de glória (2006), que tem como foco a
arregimentação dos africanos na luta em territórios africanos e europeus. Inclusive
esses homens foram basilares na libertação de Estados africanos (colônias ou
protetorados) e europeus da dominação nazifascista.
Usei como fonte para esta investigação o terceiro volume de História: das
cavernas ao terceiro milênio de Myriam Becho Mota e Patrícia Ramos que
denominei de livro A, e o terceiro volume de História: o mundo por um fio de
Ronaldo Vainfas, Sheila de Castro Faria, Jorge Ferreira e Georgina dos Santos que
denominei de livro B. Ambos foram coletados em uma escola estadual de um dos
municípios do Recôncavo baiano. O intuito maior é refletir sobre os capítulos que
tratam da Segunda Guerra Mundial, analisando as informações que constam sobre
a participação dos africanos do chifre da África e da África setentrional.
As fontes analisadas são posteriores as publicações historiográficas que
relacionam guerra e África, em especial o volume VIII da coleção História Geral da
África publicado em português no ano de 2010 pela Organização das Nações
Unidades para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO). A mesma instituição já
havia publicado dez volumes (10) em francês, e o volume dez publicado em 1985
Histoire Générale del’Afrique: études e documents e que tem como subtítulo
L’Afrique et la seconde guerre mundiale, resultou de estudos apresentados em um
colóquio organizado entre os dias 10 e 13 de novembro em 1980 pela mesma
instituição. Posteriormente, a primeira edição da coleção em inglês foi publicada
em 1993, permitindo-nos afirmar que os autores dos livros didáticos
desconsideraram todo material descrito e largamente divulgado na internet.
Geferson Santana
243 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 241-255.
O silêncio é marcante nas fontes considerando que os livros A e B citam
História da Segunda Guerra Mundial de Marc Ferro, que faz rápida abordagem
sobre o Magrebe no continente africano. Mesmo o citando como referência os
autores preferem não aprofundar a questão. Ao menos caberia nos referidos
materiais didáticos uma nota ou questionamento sobre como se deu efetivamente
o envolvimento dos africanos, mas preferiu-se deixar a África no esquecimento ou
na posição de passividade, apenas como mais um cenário de conflito entre Eixo e
Aliados (Inglaterra, França, EUA).
O sistema educacional brasileiro e as reflexões sobre a lei 10.639/2003
Uma curiosidade que atiça minha imaginação é como a temática africana e
afro-brasileira vem sendo elaboradas, pensadas e divulgadas nos livros didáticos
dos últimos dez anos. Creio que mudanças significativas tenham ocorrido no
ensino de História nas instituições de educação. Diz Anderson Ribeiro Oliva (2003,
p.425) que a partir dos anos 80 e 90 mudanças significativas foram sendo incluídas
no ensino, principalmente com as contribuições da escola dos Annales e sua
sugestão da história temática como perspectiva.
No Brasil, a experiência com a temática africana no livro didático é
traumática. São encontrados vários problemas de coerência e imprecisão no
conteúdo dos livros. Mas cabe aqui uma pequena reflexão sobre o livro didático,
instrumento pedagógico tão polêmico nas discussões atuais de pesquisadores que
o tem como objeto de pesquisa, em especial aqueles que investigam no campo do
ensino de História.
A partir dos anos 1960, com a implantação da ditadura militar no país, os
materiais didáticos teriam espaço nas preocupações mercadológicas dos
empresários e do Estado que foi seu principal consumidor nos últimos 40 anos
(FONSECA, 2003, p.54). Esse momento histórico que abrangeu quase toda segunda
metade do século XX teve papel importante na consolidação do uso do livro
didático nas escolas, e com isso foram criados vários mecanismos de estímulos às
editoras brasileiras (FONSECA, 2003, p.49-57).
Às margens do esquecimento
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 241-255.
O consumo de livros didáticos esteve sob a influência do processo de
massificação do ensino, ocorrido primeiramente pelas reivindicações dos
movimentos sociais dos anos 50 e consolidados a partir da década de 60. Isso
permitiu a investida das empresas editoriais na larga e intensa produção de
materiais didáticos, sendo estes os instrumentos pelos quais os educadores
centralizam suas mediações do processo de ensino-aprendizagem.
“Ruim com ele, pior sem ele”, assim se refere Fonseca (2003, p.49) ao apego
dos educadores ao material pedagógico, mas também aponta para a deficiência do
ensino, porque em termos de estratégias educacionais alguns docentes ainda não
perceberam a importância de pesquisarmos em outras fontes para estruturar as
aulas. A ideia de que os textos da graduação só servem para obtermos o diploma
ainda perdura no pensamento de alguns educadores, do contrário pensariam em
usá-los em sala de aula, depois de fazer o que Ana Maria Monteiro (2007)
denomina de transposição didática3.
Não quero travar uma discussão sobre o conceito de transição didática, mas
gostaria de alertar aos educadores sobre a necessidade de pensarmos no processo,
adotando a postura de tornar possível a compreensão do conteúdo curricular por
meio também dos textos acadêmicos numa linguagem adequada ao nível dos
estudantes. É preciso considerar que os estudantes possuem níveis diferentes de
aprendizagem e que existem alguns perigos ao tomar o livro como verdade
absoluta4. O primeiro dos perigos é a própria concepção de África, africano e negro
que alguns livros reproduzem5.
O ensino de História da África e Cultura Afro-brasileira são conteúdos
obrigatórios pela lei 10.639/2003 nas instituições de ensino. A lei foi aprovada em
2003, pelo então presidente da República, Luis Inácio Lula da Silva (SOUZA, 2012,
p.17; SERRANO, 2007, p.15-6; OLIVA, 2012, p.43, 2003, p.428), mas a lei por si 3 O professor tem papel importante na formação do estudante, pois a ele é dada a função de fazer a transposição didática do conteúdo, no sentido de aproximar o estudante do pensamento científico de forma adequada ao seu nível de aprendizagem.
4 Na concepção de Circe Maria Fernandes Bittencourt (2004, p.232) a sala de aula deve ser pensada numa perspectiva de desconstrução da ideia de verdade, partindo para análise das possibilidades e das interpretações. 5 Marina de Mello e Souza (2012, p.19-20), chama a atenção dos seus leitores para os erros grotescos presentes nos materiais didáticos, e alerta-nos para a necessidade do estudo e da pesquisa no campo da História da África.
Geferson Santana
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mesma não garante que o ensino da história dos africanos e dos afro-brasileiros
seja aplicado em todas as escolas. No IV Seminário de Ensino de História: Ensino de
História e Diversidade (2012) que é uma realização anual do curso de Licenciatura
em História do Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL) da Universidade
Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) identifiquei que as pesquisas apresentadas
pelos estudantes apontavam dificuldades na aplicação da lei nas escolas do
Recôncavo.
É visível a deficiência das instituições de nível superior na formação de
professores habilitados a exercerem nas escolas a prática docente em História da
África e Afro-brasileira, como também não existe um acompanhamento dos órgãos
do governo referente à aplicação da lei6. Sem contar que, conforme chama atenção
Anderson Ribeiro Oliva (2003, p.428) muitos destes educadores em atuação não
tiveram em seus currículos de graduação ou educação básica conteúdos sobre a
história da África e cultura afro-brasileira.
Marina de Mello e Souza (2012) socializa suas boas experiências, ao falar de
suas visitas às diversas escolas do Brasil para apresentar o paradidático África e
Brasil Africano em 2006, além da realização de palestras e reformulação do
currículo da disciplina de História da África no curso de História na Universidade
de São Paulo (USP). Souza (20012, p.18) expressou seus sentimentos de esperança
ao falar das várias experiências de educadores da educação básica nos cursos de
formação que são oferecidos pelo governo via as universidades, publicação de
livros paradidáticos e publicação de literatura infanto-juvenil.
As iniciativas apontadas por Souza e reforçadas por Carlos Serrano (2007)
indicam aumentos nos índices de interesse e aceitação da temática nas instituições
de ensino. Creio que deveríamos também nos atentar para os conteúdos e a
qualidade das iniciativas. O aumento do salário de docente é um estímulo para
ingressar nos cursos de formação e especialização sobre história africana e afro-
brasileira, nos levando a ponderar a respeito da ideia de militância e interesse em
6 De fato, garantir a efetivação da lei nas instituições de educação é um grande desafio, principalmente porque não existe um sistema de vigilância nas escolas. Por outro lado, a vigilância poderia ser um veículo inibidor do desempenho acadêmico dos professores das escolas e universidades públicas e privadas do país. Então, temos que pensar em uma estratégia que possibilite o acompanhamento da aplicação da lei nas instituições de educação sem constrangimento para nenhuma das partes.
Às margens do esquecimento
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 241-255.
querer contribuir com a diminuição das imagens estereotipadas e preconceituosas
dos africanos e dos negros.
A lei 10.639/2003 por ser obrigatória gerou polêmica nas escolas e
universidades. O argumento central é que ela ajuda na diminuição da exclusão e
marginalização dos afro-brasileiros com um custo alto, a exclusão da outra etnia
(SERRANO, 2007, p.17). As resistências ao estudo da história e das culturas
africanas e afro-brasileiras são problemas que precisamos resolver
democraticamente, expondo para os opositores que a lei tem uma função que vai
para além de uma reparação histórica.
Nos materiais didáticos e mesmo em algumas produções acadêmicas houve
uma reprodução eurocêntrica da concepção de vida cultural e social das
populações africanas. O continente africano é apresentado como hábitat de seres
primitivos, menos evoluídos e monstruosos (SOUZA, 2012, p.23). Segundo Oliva
(2003, p.430-41), essas são as representações que foram construídas no
imaginário do mundo. A partir de uma análise cuidadosa de diversos pontos de
vistas de especialistas e pensadores do período da Antiguidade, do medievo e do
contemporâneo, o autor demonstra o quanto as visões preconceituosas e
estigmatizantes estão presentes nos escritos de vários pensadores, objetivando a
estigmatização dos personagens em questão.
Para Oliva (2003, p.429), “silêncio, desconhecimento e representações
eurocêntricas (...)” são termos que resumem muito bem a utilização que os livros
de história do Brasil fazem da história dos povos africanos, sendo esta, a meu ver,
uma afirmação generalista para o momento recente considerando os progressos
em termo de substância que podemos identificar em alguns materiais didáticos.
Não podemos recusar, por outro lado, que a ideia de negro e de africano são
construções europeias com valores discriminatórios e preconceituosos (OLIVA,
2003, p.433). Quando se fala de negro e africano, automaticamente alguns livros
didáticos e paradidáticos remetem suas reflexões à fórmula errônea “africano =
negro = escravidão”, como se o continente africano de resumisse apenas a
escravidão (MATOS apud OLIVA, 2003, p.427). Mas, os PCNs são pontos
inovadores no campo da educação básica demonstrando-se como instrumentos de
debate a discriminação racial e como um dos principais veículos de
Geferson Santana
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aprimoramento do ensino de história da África e afro-brasileira (MATOS apud
OLIVA, 2003, p.426).
Chifre da África e África Setentrional: análise dos livros didáticos de História
Mesmo com os avanços proporcionados pela lei 10.639, assim como, a
ampliação dos grupos de estudo e pesquisa contemplados por ela objetivando a
eliminação de equívocos, imprecisões e erros,as fontes analisadas não demonstram
uma preocupação na introdução da relação da África com a Segunda Guerra
Mundial conforme as novas leituras historiográficas.
Não notamos com densidade nas referidas fontes a presença da África. Ela é
colocada na condição de continente passivo no conflito entre os países integrantes
do Eixo e Aliados. Geralmente trata-se de uma leitura pouco reflexiva sobre os
africanos enquanto sujeitos históricos, e isso naturalmente tem influência sobre os
estudantes da educação básica que foram e são acostumados a enxergar as
populações africanas enquanto passivas a ação dos colonizadores.
Existe perigo nas abordagens dos livros didáticos? Sim! As imagens que eles
transmitem acabam gerando “construções imagéticas” conscientes e inconscientes
nos estudantes, dificultando cada vez mais o processo de desmistificação de um
continente africano monstruoso, cheio de primitivos despolitizados e a-históricos.
As continuidades de tais incoerências só ajudam na permanência de um legado
eurocêntrico, preconceituoso e estigmatizante por natureza.
Ambos os livros (A e B) partem de uma antiga e oficial concepção
historiográfica liderada por algumas especialistas clássicos do século XX,
notadamente Ferro e Eric Hobsbawm. Para estes a guerra começa em 1º de
setembro de 1939, com a invasão da Polônia pela Alemanha nazista de Adolf Hitler
(HOBSBAWM, 1995; FERRO, 1995). A atitude alemã de invasão silenciosa do
território polonês gera a declaração de guerra da Inglaterra e França à Alemanha,
após uma tentativa de querer resolver diplomaticamente a invasão relâmpago
(GONÇALVES, 2005, p.167; VISENTINI, 1989, p.10-34).
E para a África, quando a guerra efetivamente começa? Mazrui (2010, p.2)
estipulou que a guerra no continente africano começa quando Mussolini inicia o
Às margens do esquecimento
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 241-255.
procedimento de invasão da Etiópia em 1935. A proposta de inovação do autor nos
permite pensar em novas possibilidades de datação do início do conflito mundial
considerado por Ferro (2008) e Hobsbawm (1995) como o maior fenômeno do
século XX7. A ousadia historiográfica de Mazrui abre portas para pensarmos em
outros critérios de datação do início da guerra, como território e outros.
São vários os motivos elencados pelos especialistas para a gênese da guerra.
Para Williams da Silva Gonçalves (2005, p.169), a crise de 1929 “com seu enorme
rastro de destruição, despertou ressentimentos e ativou a luta pelo poder”
ocupando o centro da causa8. Gonçalves (2005, p.169) acredita que ela estremeceu
as bases do sistema de produção dos países capitalistas, gerando o subconsumo,
mexeu com a Bolsa de Valores de Nova York, e exacerbou os nacionalismos com a
fracassada tentativa em junho de 1933, para pensar numa saída na Conferência
Econômica Internacional de Londres, discutindo as possibilidades de
entendimento e cooperação para driblar a crise geral.
A versão de Hobsbawm (1995, p.44) para a origem do conflito mundial
refere-se ao descontentamento dos beligerantes eixistas, que vinham
desenvolvendo intenso movimento de dominação da Europa. Entretanto, para
Ferro (2008, p.20), esta explicação é um grande equívoco, porque o conflito seria
irrefutavelmente a vontade das forças alemãs de atacarem as cidades da Inglaterra,
seguidas de represálias anglo-americanas.
A África foi um dos motivos? Os livros A e B primaram por citarem o
continente apenas para falarem dos conflitos bélicos em prol das conquistas de
territórios, e consequentemente das riquezas, em especial na África do norte.
Como na Primeira Guerra Mundial, na Segunda Guerra Mundial não seria diferente.
Leila Leite Hernandes (2005, p.176) explica que o primeiro grande conflito
aconteceu em parte na África devido à demanda ambiciosa de redistribuição dos
territórios, mas ressalta o historiador africano Tayeb Chenntouf (2010, p.50)que a 7 Para Hobsbawm (1995, p.31-2) a Segunda Guerra Mundial foi global, “praticamente todos os Estados independentes do mundo se envolveram, quisessem ou não, embora as repúblicas da América Latina só participassem de forma mais nominal (...) quase todo globo foi beligerante ou ocupado, ou as duas coisa juntas”. 8 Hernandes (2005, p.178) chama atenção para os impactos da crise econômica de 1929 no continente africano, causando um processo de aumento das misérias e epidemias no continente. Afirma-nos a autora: “O que se sucedeu essencialmente foi que a crise de 1929 aumentou a falta de alimentos, acarretando fomes e epidemias, em particular nas zonas assoladas pela seca”.
Geferson Santana
249 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 241-255.
Primeira Guerra se desenrola entre europeus e na Europa. Não seria necessário
recorrer a estudos mais especializados para defender a hipótese de que para
ambos os conflitos mundiais a expansão territorial, o uso da mão-de-obra dos
africanos e a exploração dos recursos naturais da África foram interesses vigentes
nas metas expansionistas europeias.
A Etiópia compõe o chifre da África, sendo o único Estado africano livre até
1935. Ela foi elencada como ponto de partida das ambições nazifascistas no
continente africano, e não posso negar que os autores estão certos em suas
afirmações (MOTA e RAMOS, 2005, p.97-8; FARIA; FERREIRA; SANTOS; VAINFAS, 2010,
p.152.), mas, reitero a importância de entendermos que os africanos não devem ser
colocados na condição de propriedades dos colonos e objeto de ambição dos
beligerantes. Eles também ajudaram na construção de suas próprias histórias,
foram e são sujeitos históricos.
A guerra no deserto estava apenas começando. Diante do novo fracasso militar italiano, Hitler organizou o Afrika Korps (1941), empurrando os exércitos ingleses de volta à fronteira egípcia, em uma guerra que permaneceu em impasse até 1942. (FARIA; FERREIRA; SANTOS; VAINFAS, 2010, p.153)
Há dois pontos que precisam ser pensados a partir deste fragmento.
Primeiro que os livros didáticos nos remetem aos silêncios, principalmente da
atuação dos africanos neste momento tão delicado da guerra no mundo. Não posso
silenciar perante a relevância da informação, que pode ser constatada a partir das
pesquisas já existentes. Houve o esquecimento nos livros de que os etíopes
também tinham interesses ao se envolverem nas lutas sangrentas travadas ao lado
dos Aliados. Explica Hernandes que a independência etíope e consolida em 1942,
quando estes apoiados pelos anglo-americanos derrotaram os nazifascistas
naquele território, que até então era ocupada pela Itália fascista (HERNANDES,
2005, p.184)9.
A vitória etíope sobre os soldados italianos representou muito no
imaginário dos africanos (HERNANDES, 2005, p.185). As esperanças de dias
9 As forças britânicas junto com patriotas etíopes iniciam a Campanha da África Oriental com o objetivo de garantir a soberania do Estado africano em 1941, que cominou na soberania completa com a assinatura do Acordo Anglo-Etíope em 1944. Neste intervalo de 1941-44 o então imperador etíope Haile Selassie, exilado na Inglaterra, retoma seu império.
Às margens do esquecimento
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 241-255.
melhores e de independência após o sombrio período da guerra estavam sendo
construídas. Eles acreditaram em dias melhores, uma vida de liberdade e sem os
colonos opressores. Era evidente que a participação dos africanos nos esforços de
guerra representou as esperanças na mudança, em sociedades marcadas pelo
racismo dos colonizadores (HERNANDES, 2005, p.180).
O segundo ponto é sobre o longo embate militar que Eixo e Aliados
suportaram. São interessantes as considerações dos livros didáticos sobre a
existência do projeto Afrika Korps criado pelo ditador nazista Hitler, e liderado
pelo general Erwin Rommel10 nas duas tentativas fracassadas de invadir e dominar
o Egito. Em todas as tentativas os ingleses os impediram de realizarem a conquista
e dominação do território egípcio forçando-os a fugir para a Líbia sob dominação
italiana (RAMOS e MOTA, 2005, p.100). Reitero a relevância da informação,
considerando que nas bibliografias pesquisadas este fato não foi registrado.
Segundo os autores do livro B os italianos já tinham empurrado os ingleses
até as fronteiras do Egito, contando, porém, dessa vez com contra-ataque dos
britânicos. Mas, acrescentam os autores:
Enquanto resistiam na Inglaterra, os exércitos britânicos eram fustigados no norte da África pelos italianos, que pretendiam marchar da Líbia até o Egito para conquistar o canal de Suez, de onde partiriam para o Iraque com objetivo de controlar as reservas petrolíferas. Depois de empurrados até o Egito, os britânicos reagiram, impondo derrotas fatais ao exército de Mussolini. (FARIA; FERREIRA; SANTOS; VAINFAS, 2010, p.153)
No fragmento acima, é interessante refletir sobre a importância das vitórias
dos britânicos sobre os alemães em 1942. Mas só os britânicos lutaram em prol da
vitória? Os africanos foram arregimentados em prol do projeto de defesa da África
e consequentemente dos interesses dos colonizadores. Realmente muitos africanos
garantiram presença na guerra, pois como já mencionado, eles criaram em seus
imaginários a esperança.
10“Embora muito doente e deprimido, Hitler mandou executar os conspiradores, provocando a morte de quase 5 mil pessoas. O marechal Erwin Rommell, ex-comandante do Afrika Korps, participou da conspiração, mas por ser muito popular na Alemanha recebeu a opção de suicídio. Aceitou para o bem de sua família, e foi enterrado com honras militares” (FARIA; FERREIRA; SANTOS; VAINFAS, 2010, p.160). As cenas de morte dos envolvidos com a Operação Valquíria também podem ser vistas no filme Operação Valquíria, mas obviamente que mostra a execução apenas dos principais personagens do filme.
Geferson Santana
251 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 241-255.
Para além deste aspecto, fica uma crítica relevante ser atribuída
essencialmente ao livro B. Primeiramente, que a imagem de uma Inglaterra heróica
e salvadora dos seus domínios, inclusive da África, está muito evidente. Não nego
que a atuação do governo britânico foi importante, mas que as devidas
considerações a outros países dos vários continentes devem ser dadas, inclusive
alguns países da América que muito colaboraram com os Aliados, a exemplo do
Brasil que enviou soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB) para terras
italianas, além das movimentações de guerra nos seus Estados.
A imagem do estadista britânico Winston Leonard Spencer Churchill foi, a
meu ver, a figura selecionada pelos autores do livro B como exemplo de atuação e
heroísmo na guerra, sendo inclusive comentado por várias vezes. Outros
personagens masculinos e europeus mais um asiático são também colocados como
destaque ao longo do capítulo, a exemplo de Francisco Franco (Espanha), Léon
Blum (França), Isoroku Yamamoto (Japão), e Joseph Mengele (Alemanha). A
ausência de brasileiros, africanos etc., que atuaram no contexto da guerra é total, e
os sujeitos selecionados pelo livro são exaltados pelos seus feitos
independentemente de terem sido bons ou ruins.
Os livros A e B não falam das iniciativas dos ingleses e tropas anglo-
americanas de invasão e tomada da Tunísia pela fronteira da Argélia. Esta é usada
como ponto de partida das operações, iniciadas primeiramente pelos britânicos,
assim como africanos, permitindo que finalmente a conquista e tomada do
território tunisiano do controle nazifascista se concretize em maio de 194311. Para
as fontes analisadas, estes conflitos militares compreendidos entre 1941 a 1943
são elencados apenas como fatores importantes dentro de um processo maior, que
foi a derrocada do Eixo, denominada por Mota e Ramos (2005) como o “refluxo da
maré”.
Com o intuito de contribuir com a defesa de uma historiografia o mais fiel
possível aos acontecimentos conflito mundial na África, trago uma citação com
dados estatísticos do Chenntouf:
11E ainda acrescenta Chenntouf (2010, p.52): “Após uma série de operações, os Aliados passam à
ofensiva generalizada em 22 de abril de 1943. Em maio, a entrada dos ingleses em Túnis e dos
americanos em Bizerte marcam o fim da campanha da Tunísia”.
Às margens do esquecimento
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 241-255.
Até junho de 1940, a África do Norte fornece sozinha 216.000 homens, entre eles 123.000 argelinos. De 1943 a 1945, 385.000 homens originários da África do Norte (incluindo 290.000 argelinos, tunisianos e marroquinos) participam da liberação da França. O exército africano intervém na liberação da Córsega (setembro–outubro de 1943), na campanha da Itália (atingindo Roma em 15 de junho de 1944) e na campanha da Provence (em agosto de 1944), antes de se redirecionar rumo ao norte para se unir ao conjunto do exército francês. (CHENNTOUF, 2010, p.52)
Chenntouf (2010) defende que o engajamento dos africanos nos esforços
de guerra tem como plano de fundo a esperança de abertura democrática, o que
acabou acontecendo em 1939 quando os Aliados declararam guerra ao Eixo
nazifascista. Hernandes (2005, p.185), exemplifica que muitos outros africanos
ligados às colônias de domínio fascista acabaram sendo recrutados forçadamente,
estes em um número aproximado de 190 mil homens lutaram “(...) em frentes de
batalhas na Alemanha, Itália, Líbia, Normandia, no Oriente Médio, na Indochina e
na Birmânia”. Por outro, os dados da autora acabam corroborando para o
entendimento de que muitos africanos foram necessários para a guerra em solos
africanos e europeus.
A Itália e a Alemanha representaram para os Aliados uma verdadeira “dor
de cabeça”, considerando que a partir da Líbia ameaçavam a Tunísia. A reação
britânica em alguns momentos fora retardada, porque “o desembarque anglo-
americano acelera o desenvolvimento dos projetos alemães na Tunísia. Em 9 de
novembro de 1942, uma centena de aviões alemães aterrissam na área de al -
‘Awina, perto de Túnis, com um corpo de 1.000 homens” (CHENNTOUF, 2010,
p.52). A iniciativa alemã de invasão de Túnis, capital da Tunísia, sem aviso prévio
na noite do dia 13 para 14 de novembro do mesmo ano garante a ocupação dos
grandes centros urbanos como Sfax, Sousse e Gabès, diz Tayeb Chenntouf (2010,
p.52).
Forças militares dos Aliados iniciaram uma contra ofensiva à invasão alemã.
Afirma Chenntouf (2010) que os britânicos e estadunidenses alcançariam vitórias
significativas cotando com a tomada da Tunísia pela fronteira da Argélia. Esta é
usada como ponto de partida das operações, iniciadas primeiramente pelos
britânicos, assim como africanos, permitindo que finalmente a conquista e tomada
do território tunisiano do controle nazifascista se concretize em maio de 1943.
Geferson Santana
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Os alistamentos para o front de combate aos eixistas não aconteceram
apenas militarmente, muitos partidos políticos nacionalistas se engajaram na luta
contra a ideologia fascista propagada pela Alemanha e Itália e que teve algum eco
no Egito. Mas, muitos outros foram, igualmente, censurados, postos na
clandestinidade e, por consequência, fadados ao desaparecimento no cenário
político. Foi isso que acometeu, explana Chenntouf (2010, p.56-7), ao Partido do
Povo Argelino com seu líder MessaliHadj e membros que foram presos ou
condenados a trabalhos forçados em 29 de abril de 1941.
A apreciação dos materiais didáticos teve como meta demonstrar ao leitor o
quanto os livros didáticos silenciaram e ainda silenciam sobre os povos africanos e
suas atuações na guerra, mas os livros acabam centrando nos aspectos militares. A
guerra na África não se resume ao confronto bélico. Faltou nas fontes uma
discussão sobre as atuações dos africanos no processo de organização política nos
partidos nacionalistas, nos esforços em prol da economia de guerra.
Considerações finais
A presente proposta de reflexão se dispôs a demonstrar por meio da análise
dos livros didáticos destinados aos estudantes do terceiro ano do Ensino Médio,
que ainda tem muito a ser feito no campo da História da África na sala de aula, em
especial no caso da Segunda Guerra Mundial. Pouco se percebe questionamentos
sobre os silêncios da historiografia clássica e dos livros didáticos e paradidáticos
no tocante a ausência de um conteúdo aprofundado da participação dos africanos.
Todos os autores dos referidos materiais analisados citaram uma África passiva à
ação dos beligerantes e ficaram presos ao caso da Etiópia, promovendo uma
imagem equivocada e errônea do continente africano e esquecendo que África é
uma diversidade de povos.
A meu ver, faltou a preocupação em fazer um mapeamento mais detalhado
das bibliografias existentes sobre a relação entre África e guerra. A análise
meticulosa da bibliografia utilizada não aconteceu para tratar o problema em
questão, mesmo usando o livro de Ferro. Ele foi citado pelos autores dos livros A e
B, mas o Magrebe abordado por Ferro acaba sendo silenciado em suas narrativas.
Às margens do esquecimento
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Com isso, não é precipitado afirmar que falar de África nos capítulos analisados
não foi uma das prioridades.
Referências
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Ensino de História: Fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
CHENNTOUF, Tayeb. O chife da África e a África sententrional. In: História Geral da África, VIII: África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010, p.33-66
FERRO, Marc. História da Segunda Guerra Mundial. São Paulo, Ática, 1995.
_______________. O século XX explicado aos meus filhos. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
FONSENCA, Selva Guimarães. Livros didáticos e paradidáticos de História. In: Didática e prática de ensino de História. Campinas, São Paulo: Papirus, 2003, p.49-57.
GONÇALVES, Williams da Silva. A Segunda Guerra Mundial. In: REIS FILHO, Daniel Aarão; FERREIRA, Jorge; ZENHA, Celeste. O Século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, pp.165-93.
HOBBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX (1914-199). São Paulo: Companhias das Letras, 1995.
MAZRUI, Ali. A. Introdução. In: História Geral da África, VIII: África desde 1935. Brasília: UNESCO, 2010, p.01-29.
MONTEIRO, Ana Maria. Os saberes que ensinam: o saber escolar. In: Professores de História: entre saberes e práticas. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007, p.83-93.
OLIVA, Anderson Ribeiro. A história da África nos bancos escolares. Representações e impressões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, ano 25, nº3, p.421-61, 2003. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/eaa/v25n3/a03v25n3.pdf. Acesso em: 02 de jan. de 2013.
_______________________. Entre máscaras e espelhos: reflexões sobre a identidade e o ensino de História da África nas escolas brasileiras. Revista História Hoje, São Paulo, nº 1, v 1, p.29-44, 2012.
SERRANO, Carlos. Apresentando a temática deste livro. In: Memória D’África: a temática africana em sala de aula. São Paulo: Cortez, 2007, p.11-20.
SOUZA, Marina de Mello e. Algumas impressões e sugestões sobre o ensino de história da África. Revista História Hoje, São Paulo, n.1, v.1, p.17-28, 2012.
Geferson Santana
255 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 241-255.
VISENTINI, Paulo G. Fagundes. Segunda Guerra Mundial: história e relações internacionais / 1931-45. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1989.
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 256-268.
EQUÍVOCOS DA VISÃO EUROCENTRISTA EM LIVROS DIDÁTICOS BRASILEIROS SOBRE ÁFRICA E AFRICANOS1
Rubens Nunes Moraes2
Resumo: No presente artigo pretende-se demonstrar como se apresenta a história
da África e dos africanos em alguns livros didáticos de ensino médio de história
que foram elaborados anteriormente e posteriormente a lei 10.639/033 que
estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e
africana nas escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio (BRASIL,
2009).
Palavras-Chave: Negros. Livros. África.
Abstract: In this article we demonstrate how it presents the history of Africa and
Africans in some school textbooks of history that have been developed previously
and later the law 10.639/03 establishing the compulsory teaching of history and
culture african-Brazilian and African public and private schools in the elementary
and middle school (BRAZIL, 2009).
Keywords: Black. Books. Africa.
Introdução
A partir da implantação da lei 10.639/03, acirraram-se as discussões e
reflexões sobre o ensino da história da África nos livros didáticos no Brasil, que na
1 Recebido em 05/10/2013. Aprovado em 19/11/2013.
2 Graduado em História pela Universidade de Pernambuco. Professor Substituto de Ciências Humanas Secretaria da Educação do Estado de Pernambuco. E-mail: [email protected] 3 Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira", e dá outras providências.
Rubens Nunes Moraes
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maioria dos publicados anteriormente estão inseridos a visão eurocêntrica sobre o
continente africano e seu povo.
É evidente que o eurocentrismo ficou impregnado na formação escolar
brasileira, juntamente com a discriminação racial e a difusão errônea da
superioridade branca. As mudanças no ensino ocorrerão gradativamente, com a
atualização dos livros e atualização dos professores. Porém, nesse contexto surge
uma pergunta: será que a implantação da lei, que tornou obrigatório o ensino de
história e da cultura africana irá contribuir efetivamente para a diminuição da
discriminação racial no Brasil?
Não é somente tarefa efetiva dos professores de história, mas de todas as
disciplinas, juntamente com a escola, elaborando projetos interdisciplinares,
conscientizando os alunos, mostrando a resistência dos negros, e a contribuição
para o desenvolvimento do Brasil como nação, e procurando conhecer mais da
África, pois, sabemos pouco sobre esse continente.
Apesar desse fato incontestável de que somos, em virtude de nossa formação histórico-social, uma nação multirracial e pluriétnica, de notável diversidade cultural, a escola brasileira ainda não aprendeu a conviver com essa realidade e, por conseguinte, não sabe trabalhar com as crianças e jovens dos estratos sociais mais pobres, constituídos, na sua grande maioria, de negros e mestiços. (FERNANDES, 2005, p. 378).
Herança do modelo positivista
A herança do modelo positivista se enraizou também no Brasil, e a principio
eram relatados nos livros os “heróis” de origem europeia como portugueses,
espanhóis, holandeses entre outros, posteriormente militares na sua quase
totalidade branca, com seus feitos de “bravura” em sua maioria escamoteando
índios e negros.
Gradativamente foi imposta a superioridade branca como modelo padrão de
uma sociedade dominante com herança europeia, que enobrecia e exaltava os
feitos dos “heróis” da coroa que vinham de além-mar arriscando suas vidas em
favor de seu soberano. Posteriormente foram importadas teorias racistas
Equívocos da visão eurocentrista...
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 256-268.
europeias que enalteciam os brancos influenciando o pensamento racial brasileiro,
adaptação do “racismo científico” que pretendia mostrar a superioridade da raça
branca, nesse sentido corrobora Thomas Skidmore:
(...) no pressuposto da superioridade branca algumas vezes implícita, pois deixava em aberto a questão de saber quão inata era a inferioridade negra, e usava os eufemismos raças mais avançada e menos avançadas. Mas a esse pressuposto juntavam-se dois outros. Primeiro, que a população negra estava se tornando menos numerosa que a branca, por razões que incluíam uma taxa de natalidade supostamente menor, uma maior incidência de doenças e sua desorganização social. Segundo, a miscigenação mais clara etária naturalmente produzindo uma população mais clara, em parte porque as pessoas escolhiam parceiros sexuais mais claros. (SKIDMORE, 1989, p. 64-65).
Personagens comuns não entravam na história, a não ser se viessem a
exaltar algum “herói branco” em seu feito. Esse costume foi enraizado e
transmitido de uma geração a outra, onde foram exaltados os “heróis”
conquistadores europeus e posteriormente os militares com seus feitos de
“bravura”. A lista é grande: comandante, capitão-mor, donatário, marechal,
presidente, governador, coronel, intendente, entre outros.
No Brasil existia um ideal de branqueamento, pois consideravam a raça4
branca como raça “mais adiantada” e a preta “menos adiantada”, e no caso a negra
estava fadada a desaparecer, por causa das mazelas e da pouca resistência, na tese
de João Batista de Lacerda5. Também concordava com essa previsão Martim
Francisco Ribeiro de Andrada6. Afirmavam que a imigração branca ajudaria a
reforçar a predominância branca. Concordava com essas ideias João Batista de
Lacerda, diretor do Museu Nacional. Outros que defendiam a ideia de
branqueamento foram Silvio Romero7, e Nina Rodrigues8.
4 Conceito naturalista e biológico que vem sendo gradativamente desconstruído, por teses que corroboram que o racismo tem origem ideológica para justificar a dominação de determinados grupos sobre outros. 5 João Batista de Lacerda (1846-1915) nasceu no Rio de Janeiro/RJ, médico e cientista brasileiro que apresentou a tese Sur le métis au Brésil no Congrès Universel des Races, em 26-29 de julho de 1911, Paris. 6 Martim Francisco Ribeiro de Andrada (1775-1844) nasceu em Santos/SP, doutor em ciências naturais. 7 Silvio Romero (1851-1914) nasceu em Lagarto/SE, professor, filósofo, crítico literário.
Rubens Nunes Moraes
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A África e os negros nos livros didáticos
Nos livros pesquisados, as influências eurocentristas estão inseridas em
quase todos os aspectos, pois na história, com influências positivistas, o negro é
colocado sempre à margem da sociedade, como ser inferior.
É preciso mudar esse pensamento, enxergar à importância de estudar a
África, o africano, o povo negro, do mesmo modo como se estudam outros
continentes e seus povos, como por exemplo, a América, a Europa e a Ásia, como
cita (OLIVA, 2005, p. 423): primeiro temos que reconhecer a relevância de estudar
a História da África, independente de qualquer outra motivação.
É necessário reconhecer a importância de estudar a História da África, sem que a motivação venha da obrigatoriedade, mas venha pelo interesse do mesmo modo como estudamos: Povos do crescente fértil, Grécia, Roma, Cisma Religioso, Revoluções Liberalistas ou qualquer outro assunto (OLIVA, 2005, p. 423-424).
É inadmissível, que o interesse, o conhecimento, de cultura, do legado, da
contribuição de um povo, na história da humanidade e do Brasil sejam estudados
por obrigação, ou em outra situação omitida por interesse de alguns grupos. Isso
foge ao senso de conhecimento livre de preconceitos, do saber sem fronteiras ou
barreiras na educação.
Antes da lei 10.639/03, a influência positivista europeia se fazia presente
nos livros didáticos seguindo padrões centenários de ensino, em favor da
superioridade branca europeia, mas, com a aprovação da lei, se caminha para uma
mudança á longo prazo, mesmo que de forma obrigatória, trará benefícios para a
educação brasileira, ainda que tenhamos que aprender a trabalhar com os temas:
África, africanismo e negro amplamente em sala de aula.
Os livros didáticos, sobretudo os de história, ainda estão permeados por uma concepção positivista da historiografia brasileira, que primou pelo relato dos grandes fatos e feitos dos chamados “heróis nacionais”, geralmente brancos, escamoteando,
8 Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) nasceu em Vargem Grande/MA, médico, professor, antropólogo.
Equívocos da visão eurocentrista...
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 256-268.
assim, a participação de outros segmentos sociais no processo histórico do país. (FERNANDES, 2005, p. 380).
O papel do professor como educador, será suprir essa lacuna, no modo de
abordagem de determinadas camadas sociais no processo histórico do país,
procurando mostrar e ensinar aos seus alunos, mesmo que, não se apresente nos
livros didáticos trabalhados, porém, recorrendo a fontes bibliográficas auxiliares,
para assim, conscientizar desde cedo o aluno, de que outras camadas de estratos
sociais inferiores, ou de cor, ou mesmo de etnia diferente contribuíram no
processo da formação da nação brasileira.
Somente o conhecimento da história da África e do negro poderá contribuir para se desfazer os preconceitos e estereótipos ligados ao segmento afro-brasileiro, além de contribuir para o resgate da auto-estima de milhares de crianças e jovens que se vêem marginalizados por uma escola de padrões eurocêntricos, que nega a pluralidade étnico-cultural de nossa formação. (FERNANDES, 2005, p. 382).
Geralmente nos livros didáticos, procuram mostrar o lado épico da
colonização do Brasil como a chegada dos portugueses em caravelas, a realização
da primeira missa, mas, omitem a violência sofrida pelos indígenas,
posteriormente pelos negros onde o sofrimento foi muito maior do que os
relatados nos livros.
Oculta-se, no entanto, o genocídio e etnocídio praticados contra as populações indígenas no Brasil: eram cerca de 5 milhões à época do chamado “descobrimento”, hoje não passam de 350 mil índios. (FERNANDES, 2005, p. 382).
Análise dos livros didáticos nos temas África e africanos
Na análise dos livros, começaremos com: “História Geral”, do autor Cláudio
Vicentino, de 2002, direcionado ao ensino médio produzido antes da aprovação da
lei 10.639/03, depois analisaremos o livro “A Escrita da História”, que tem como
autores Flavio de Campos e Renan Garcia Miranda de Flavio de Campos, 2005,
voltado ao ensino médio e finalmente “História Geral e do Brasil”, que tem como
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autores José Alves de Freitas Neto e Célio Ricardo Tasinafo, de 2006, também
específico ao ensino médio. Os dois últimos livros citados foram efetivamente
produzidos depois da implantação da lei citada anteriormente.
Livro “História Geral Cláudio Vicentino”
Analisando o livro “História Geral”, do autor Cláudio Vicentino, da editora
Scipione, 2002, com 520 páginas, direcionado ao ensino médio, divididos em sete
unidades, com trinta e nove temáticas ou estudos. Na unidade V com o título “A
idade contemporânea (séculos XVIII e XIX)”, na temática “O imperialismo do século
XX”, que discorre sobre o processo da expansão imperialista o neocolonialismo,
mostrando que a política colonizadora fundamentou-se na “diplomacia do canhão”,
onde o uso da força era justificado pelos ideais dos colonos que eram portadores
de uma “missão civilizadora, humanitária, filantrópica, e cultural” que deixavam o
conforto de suas vidas na metrópole para “melhorar” a vida nos locais a que se
dirigiam.
A missão civilizadora era considerada “o fardo do homem branco, nova versão do pretexto ideológico do século XVI, “levar a fé cristã aos infiéis da América”. Tanto no século XVI como no século XIX, o que ocorreu, na verdade, foi a intensificação do mecanismo de exploração internacional. (VICENTINO, Cláudio, 2002, p.337).
Na página trezentos e trinta e seis, percebemos uma iconografia mostrando
negros africanos vestidos como europeus a fim de mostrar a interferência branca
na África. O autor destaca o darwinismo social9.
Prosseguindo o autor mostra no subtítulo “O imperialismo na África”, que a
partilha da África iniciada na segunda metade do século XIX e concretizada a partir
da conferência de Berlim, que França, Inglaterra dominaram territórios africanos.
Destaca também a guerra dos Bôeres. Posteriormente cita Alemanha conquistando
Camarões, o Togo, o Sudeste e o oriente da África; a Itália tomando o litoral da
9 Doutrina racista do filósofo inglês Herbert Spencer (1820-1903). Segundo Spencer a Teoria da Evolução de Darwin, podia ser aplicada à evolução da sociedade.
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Líbia, a Eritréia e a Somália; a Bélgica tomando o Congo na página trezentos e
quarenta.
O autor deixa de destacar as resistências e lutas do povo africano,
mostrando somente o domínio europeu colonizador, e quando retratou em
iconografia o povo africano foi como europeu, ou seja, vestido como o seu
colonizador branco.
A partir das palavras e imagens – significantes - presentes nos
livros, os próprios alunos irão construir suas representações e
significados, ou somente absorveram as representações
elaboradas pelos autores. (OLIVA, 2005, p. 442).
Na análise do livro percebemos que essa produção foi anteriormente à
aprovação da lei 10.639/03, que tornou obrigatório o ensino de historia da áfrica
nas salas de aula, nesse sentido o livro poderia ser mais contextualizado e explorar
melhor sobre a África.
Livro “A Escrita da História”
Sobre o livro “A Escrita da História”, que tem como autores Flavio de
Campos e Renan Garcia Miranda e que foi produzido pela editora Escala
Educacional S/A, em 2005 1ª edição com 656 páginas, que é direcionado ao ensino
médio, possui oito capítulos, respectivamente em apenas um capítulo vem tratar
da temática África. O referido capítulo é o dezesseis, que tem por título “A era dos
impérios” “Imperialismo”, o subtítulo que trata sobre a África é chamado de
“Corrida pela África”, percebe-se nitidamente que se trata de um pequeno resumo
em uma página e meia, que poderia ser estendido e melhor explorado.
Inicialmente são percebidas atitudes positivistas, quando ao autor relaciona
a escravidão com viés imperialista e neocolonialista, mostrando que a escravidão
africana teria sido justificada pela religião, que levaria salvação e evolução aos
“povos atrasados”. Cita também o europeu, como civilizado, e que justificava
disseminar essa civilização branca pelo mundo.
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Muitos liberais acreditavam que a extensão do império, da lei, da ordem e da civilização industrial, elevaria os “povos atrasados” na escala da evolução e da civilização. Defendiam o seu dever de cristão era dar o exemplo e educar os outros. Os missionários cristãos foram os primeiros a entrar em contato com povos estrangeiros a adquirir conhecimentos sobre eles, e os primeiros a criar uma escrita para aqueles que não conheciam nenhuma em todo o século XIX, eles penetraram regiões inexploradas para pregar e continuar a cruzada contra a escravidão – a que particularmente os ingleses se opunham. (CAMPOS, 2005, p. 360).
Relata a exploração dos europeus, que minavam as riquezas do provo
africano, e utilizavam os próprios nativos na exploração desses recursos como:
minério, ouro, cobre e diamantes (CAMPOS, 2005, p. 362): “As relações britânicas
com os bôeres do Transvaal e do Estado Livre de Orange pioraram com a
descoberta de ricas jazidas de ouro e diamantes na região”. Prossegue citando e
mostrando a concorrência entre povos europeus como a guerra dos Bôeres (1899-
1902), entre os ingleses e os colonos descendentes dos holandeses. Percebem-se
lacunas, pois esse livro foi elaborado posteriormente a lei 10.639/03, e não
mostrar a real história da África, mostrando somente o viés europeu de
“conquistador”.
Livro “História Geral e do Brasil”
Analisando o livro “História Geral e do Brasil”, que tem como autores José
Alves de Freitas Neto e Célio Ricardo Tasinafo, editado e produzido pela editora
Harbra, em 2006, com 932 páginas, voltado ao ensino médio, com quarenta e cinco
capítulos, o capítulo sete com o título “África, Áfricas”, o capítulo vinte e oito com o
título “O Imperialismo europeu” e o capitulo trinta e nove com o título
“Descolonização da África e Ásia e o Terceiro Mundo” vem tratar da temática
África.
No capítulo sete que tem como título: “África, Áfricas”, os autores começam
exaltando a África como berço de origem humana, pretendendo analisar os
principais grupos populacionais que viviam na África antes da chegada dos
Equívocos da visão eurocentrista...
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europeus, para compreender no seu universo sociocultural através de pesquisas
realizadas em vários campos de ciências humanas.
Esse estudo é bastante importante para nós, brasileiros: estima-se, que o Brasil seja o país das Américas que mais africanos recebeu durante mais de três séculos de duração do tráfico transatlântico. Logo, desconhecer características importantes das populações africanas significa ignorar aspectos que tiveram papel fundamental em nossa formação histórica. (FREITAS NETO; TASINAFO, 2006, p. 127).
Notamos a preocupação dos autores de forma sensata mostrar a
importância da África, mostrando novos estudos e novas abordagens de
documentos, fontes, de pesquisa.
(...) foi apenas a partir de 1960, sob a influência dos nacionalismos independentistas no âmbito da busca pela identidade do continente e de cada um dos Estados-nação recém-formados, que foi reconhecida a necessidade de se conceber um novo método de abordagem adequado para negar a homogeneidade das “tribos africanas”. Dito de outra forma, houve nova valorização ao se identificar as especificidades históricas de um continente que é um verdadeiro mosaico de heterogeneidades, uma totalidade caracterizada pela complexa diversidade cultural de seus povos. Foi quando se passou a empreender a releitura de livros do Velho Mundo mediterrâneo como: Zurara, Cadamosto, Diogo Gomes, André Álvares, D´Almada e Leão, o Africano que descreviam suas viagens pelo Saara e suas incursões marítimas ao longo da costa do Atlântico. (...) (FREITAS NETO; TASINAFO, 2006, p. 127 in Hernandez, L. M. G. L. A África na Sala de Aula: visita à história contemporânea. São Paulo: Selo Negro, 2005, p. 25-33.).
Percebemos a sensatez dos autores procurando mostrar de forma coerente,
novos estudos e novas abordagens sobre a temática África, destacando
importantes rotas comerciais, impérios e reinos na história africana, mostrando a
existência de comunidades organizadas e hierarquicamente ativas.
O subtítulo “O deserto e as rotas comerciais” cita o “Reino Kush” o mais
antigo reino africano, destaca os pontos de comércio ao sul: Timbuktu (no Mali),
Fez e Túnis, passando por Taouden; Gao (no Mali) para Trípoli, passando por
Ghadames; Agadez, ao centro do Níger, para Trípoli, passando por Ghadames ou
por Murzuk.
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O capítulo também dedica estudos a Gana, Mali e Songai, Benin e Congo e as
cidades-estados da África Oriental com os subtítulos “O reino de Gana”; “Os
impérios Mali e Songai”; “Os reinos de Benin e Congo”; “O reino de Benin”; “O reino
do Congo”; “As cidades-estados da África Oriental”; “África, América espanhola e
Brasil”.
No último tópico “África, América espanhola e Brasil”, os autores mostram a
contribuição dos africanos na cultura, religião, alimentação, costumes e no
trabalho herdado da presença dos africanos na nossa sociedade, destaca a
importância de sabermos e como viviam os africanos antes da introdução pelo
tráfico no Brasil, mostrando a importância de entendermos que havia uma grande
diversidade étnica e cultural entre eles, e que se organizavam em estados, com
comércio ativo e hierarquia social.
No capítulo vinte e oito com o título “O Imperialismo europeu” mostra a
visão nacionalista do europeu em relação a uma “missão civilizadora”, onde cabiam
aos europeus “civilizar” os povos “atrasados”, subjugando sem qualquer consulta
ou permissão impondo o seu domínio através da força em busca de matérias
primas e mercados consumidores, utilizando a força militar como a divisão da
África subsaariana, onde os europeus impuseram fronteiras a fim de preservar os
seus interesses, ignorando as etnias locais.
Finalmente no capítulo trinta e nove intitulados: “Descolonização da África
e Ásia e o Terceiro Mundo”, no subtítulo “A descolonização da África”, na página
779, os autores citam a “Conferência de Bandung” ocorrida em 1955 que
impulsionou a descolonização, também vem citar os movimentos de libertação da
África citando o “sonho do pan-africanismo”, os africanos governados pelos
africanos, destaca a criação da OUA (Organização da Unidade Africana) criada em
1963. Destaca os conflitos étnicos ocorridos em Angola e Moçambique, e mostra a
“Apartheid”, posteriormente cita Nelson Mandela e sua luta contra o regime.
Percebemos a coerência dos autores e a preocupação de mostrar uma
história sem viés eurocentrista, mas incumbidos de fazer uma história diferente
valorizando a África e os africanos, dando ênfase a etnias, reinos e mostrando o
legado dos africanos ao Brasil.
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Considerações finais
A partir dessas análises, percebem-se algumas lacunas nos livros antes da
aprovação da lei, e em alguns que também prosseguem em omitir, e continuam a
utilizar o viés europeu branco, como justificativa de superioridade para assim:
dominar, explorar, exterminar e dizimar povos.
Constatamos que continuam alguns estereótipos mostrando os negros só
como escravos, a contribuição cultural é geralmente ignorada, sem dar nenhuma
importância à contribuição do negro na formação do Brasil.
Não é latente, mas patente a necessidade de criticar construtivamente
alguns livros, a fim de identificar algumas disparidades retratadas neles, nesse
sentido despertar a percepção de mudanças a começar na sala de aula, procurando
suprir lacunas através de bibliografias auxiliares que vão embasar o conhecimento
sobre: África, africanos e negros sem viés eurocêntricos, mostrando como o negro
ajudou na construção da identidade racial brasileira, que anteriormente por
preconceito, ou por políticas de editoras, ou de monopólio da História em função
da influência da Europa, levaram escritores a retratarem os negros, os africanos e a
África de forma tendenciosa à visão eurocêntrica
Com o tempo, paradigmas são quebrados, novas abordagens e
ressignificação de visões passadas dão um novo sentido e caminham para
conscientização de novas gerações que olham para o passado de outra forma, não
se deixando influenciar por visões impostas por modelos influenciados por
padrões eurocêntricos e positivistas, mas que tendem a reconhecer e valorizar
minorias que foram discriminadas pelas classes dominantes.
Isso é o que se espera dos novos historiadores e escritores no nosso país,
para que sejam reconhecidas as contribuições dos africanos e negros na
construção do Brasil como nação, nesse sentido é necessário conscientizar os
alunos desde os anos iniciais, informando a importância do negro na construção do
Brasil como nação e mostrar a diversidade e o legado do povo africano na história:
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Se há um traço verdadeiramente africano, esse traço é a diversidade, antes da mal denominada ‘divisão’ da África pelas potências imperiais, o continente abrigava milhares de entidades políticas distintas, que acabariam reunidas pelos colonizadores em cerca de meia centena de Estados. (MAGNOLI, 2009, p. 222).
Claro que esse caminho infelizmente é lento, a priori os educadores poderão
utilizar e indicar outras bibliografias que complementem e ajudem a suprir lacunas
existentes nos livros didáticos que ainda não mudaram a visão sobre África e
africanos, procurando conscientizar os alunos estimulando o pensar e o
questionamento dos conteúdos presentes nos livros.
A conscientização tem um longo caminho a percorrer a começar das séries
iniciais mudando progressivamente a história com viés exclusivamente
eurocêntrico, substituindo pela lógica real mostrando nesse sentido contribuições
dos anônimos da história, e não somente a história dos grandes vultos.
Os questionamentos levantados aqui são para construção de uma dialética
que venham a enriquecer a amplitude do conhecimento dos alunos e professores,
para assim quebrar paradigmas como estereótipos criados pelo olhar eurocêntrico
que permaneceram muitos anos intocáveis, mas que gradativamente começaram a
serem mudados através de questionamentos e discussões que começam muitas
vezes na sala de aula da academia entre professor e aluno, ou por discente e
docente.
A lei 10.639 promulgada no ano de 2003 completa dez anos, mas os avanços
são poucos em relação à mudança de um olhar diferente sem viés eurocêntrico
para África e africanos, porém o educador não tem obrigação como requer a lei
para o ensino sobre o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas
escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio, o verdadeiro sentido é
a consciência da grande contribuição e legado do povo africano na formação do
Brasil como nação.
REFERÊNCIAS
Equívocos da visão eurocentrista...
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 256-268.
BRASIL. Lei Nº 10.639 que altera as Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
09 de Janeiro de 2003 (Lei 9.334 de 20 de Dezembro de 1996).
CAMPOS, Flávio de; MIRANDA, Renan Garcia. A escrita da História. São Paulo:
Escala Educacional, 2005. p. 356-362.
FERNANDES, José Ricardo de Oriá. Ensino de História e diversidade cultural:
desafios e possibilidades. Cad. Cedes, Campinas, Vol. 25, n. 67, dez. 2005. p. 378-
388.
FERNANDES, José Ricardo Oriá. O negro na historiografia didática: imagens,
identidades e representações. Textos de História, Brasília, DF, v. 4, n. 2, 1996.
FREITAS NETO, José Alves de; TASINAFO, Célio Ricardo. História Geral e do
Brasil. São Paulo: Harbra, 2006. p. 126-139, 531-539, 773-775, 779-783.
MAGNOLI, Demétrio, Cartilhas raciais. Uma gota de sangue: história do
pensamento racial. São Paulo: Contexto, 2009. p. 219-238.
OLIVA, Anderson Ribeiro. A história da África nos bancos escolares.
Representações e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiaticos. Ano
25, n° 3, 2003. p. 421-461.
VICENTINO, Cláudio. História Geral. Cláudio Vicentino. São Paulo: Scipione,
2002.
SKIDMORE, Thomas E. Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento
brasileiro. Paz e Terra. São Paulo. 1989.
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ARTIGOS LIVRES
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CULTURA, REPRESENTAÇÃO E LITERATURA NA PESQUISA
HISTÓRICA1
Melissa Rosa Teixeira Mendes2
Resumo: A História, no último meio século, passou por diversas e profundas mudanças, ressignificando muitos de seus preceitos, métodos e conceitos próprios da disciplina. A proposta deste artigo é buscar um possível entendimento de como a narrativa histórica, a Historiografia, apresenta-se na atualidade. Para tanto, procuraremos entender como ocorreram essas mudanças e as contribuições de uma visão dos processos históricos que, a partir das noções de cultura e representação, trouxeram para a forma como os historiadores interpretam as realidades sociais. Por fim, destacamos o uso da Literatura enquanto fonte para a História. Longe de esgotar o debate, nossa proposta é apresentar elementos de entendimento das novas formas de pesquisa na História, levantando possibilidades para novas discussões. Palavras-chave: Historiografia. Cultura. Representação. Abstract: History, in the last half century, passed by many several and deep changes, giving new meaning to many of its precepts, methods and concepts of the discipline. The purpose of this paper is to seek a possible understanding of how the historical narrative, Historiography, presents today. To do so, we will seek to understand how these changes occurred and contributions of a vision of historical processes that, from the notions of culture and representation, brought to the way how historians interpret social realities. Finally, we highlight the use of literature as a source for the History. Far from exhausting discussion, our proposal is to introduce elements of understanding of new forms of research in History, raising possibilities for further discussions. Keywords: Historiography. Culture. Representation.
CRISE: um novo olhar
Como ponto de partida para nosso debate, começaremos por uma análise
de uma parte da história da História. Falemos da chamada crise das Ciências
Humanas e Sociais da década de 1960. Grosso modo podemos considerar que os
1 Recebido em 09/10/2013. Aprovado em 17/11/2013,
2 Mestre em História pela Universidade Federal do Maranhão. Email: [email protected].
Melissa Rosa Teixeira Mendes
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paradigmas de análise dos pesquisadores das Ciências Sociais e Humanas
começaram a ser postos em xeque a partir desse momento. Os métodos
estruturalistas, as análises totalizantes e os pressupostos marxistas passaram a
não responder mais a todas as questões que se apresentavam aos analistas sociais
– ao menos da forma como esses pressupostos eram utilizados. O mundo mudava,
a sociedade fazia esse mundo se alterar e uma transformação na forma de se
compreender esse novo mundo fez-se necessária para os pesquisadores do social.
A sociedade, que ao longo dos anos, após grandes guerras quentes e frias,
movimentos sociais, ditaduras, entre outros, transformou-se radicalmente até
encontrar um estágio aproximado ao que vivenciamos na atualidade, não podia
mais ser explicada por sistemas numéricos fechados, por estruturas sólidas e
rígidas, apenas pela política e economia e a partir dos grandes nomes. Para
compreender essa nova sociedade, ver esses novos sujeitos, foi necessário,
justamente, olhar para homens e mulheres como agentes em menor ou maior grau
de atitudes. Sujeitos históricos, aqueles que contribuem para que a roda da
História não pare de girar. Deixando então de ser meros espectadores ou
receptores de informações previamente disponíveis, prontas para serem
incorporadas, sem serem interpretadas de múltiplas maneiras. A sociedade, antes
vista de forma única e homogênea passou a ser encarada como um conjunto de
indivíduos diferentes entre si e que, desta forma, recebem e interagem com o
mundo que os cerca de diferentes modos, pois segundo Chartier:
O objeto da história, portanto, não são, ou não são mais, as estruturas e os mecanismos que regulam, fora de qualquer controle subjetivo, as relações sociais, e sim as racionalidades e as estratégias acionadas pelas comunidades, as parentelas, as famílias, os indivíduos (CHARTIER, 1994:02).
Esses novos diálogos com o método marxista, com o estruturalismo, o
abandono dos preceitos rígidos incorporados pelo Positivismo, trouxeram
novidades na forma como os historiadores exercem seu ofício. Por essa
reformulação de visões houve a abertura de inúmeras possibilidades de objetos,
conceitos e formas documentais ao pesquisador. A História Social, as reflexões a
respeito da cultura e a (Nova) História Cultural, as ideias sobre representações, a
Cultura, representação e literatura...
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 270-282
incorporação da experiência vivida dos seres sociais no curso da História, a
História das Mulheres seguida do estudo das relações de gênero – entre tantos
outros – ganharam destaque na medida em que se buscou compreender os
processos históricos nos quais os indivíduos passaram a ser entendidos como
sujeitos das ações que movem o curso dos acontecimentos Ainda segundo Chartier:
De um lado, sensíveis a novas abordagens antropológicas ou sociológicas, os historiadores quiseram restaurar o papel dos indivíduos na construção dos laços sociais. Daí resultaram vários deslocamentos fundamentais: das estruturas para as redes, dos sistemas de posições para as situações vividas, das normas coletivas para as estratégias singulares (CHARTIER, 1992:02).
É dentro dessa nova forma de pensar o mundo que conceitos que
privilegiam o entendimento e a análise das formas humanas de pensar, refletir,
compreender e fazer o universo social ganharam ênfase.
O tempo em si mesmo passa a ser encarado de forma diferente, visto em
suas descontinuidades e não apenas em suas possíveis permanências. Além disso,
o caminhar da humanidade não é mais encarado como um processo que leva a um
fim, pois há um rompimento com o tempo teleológico; o futuro certo passa a ser
visto como um porvir marcado por incertezas.
Podemos então assinalar, grosso modo que para os historiadores a crise de
paradigmas das Ciências Sociais e Humanas marcou o rompimento com a Escola
Positivista e preceitos tais como: a noção de identidades universais dos sujeitos, a
objetividade histórica, o tempo teleológico, o método baseado na crítica erudita
das fontes (oficiais) – já posta em discussão desde a Escola dos Annales – e o
privilégio dado aos objetos de estudo baseados na política, na economia e nas
elites, além do próprio conceito de fonte histórica, que foi ampliado.
CULTURA E REPRESENTAÇÃO
Ao romper com a ideia de tempo contínuo, a História incorporou uma nova
noção de cultura, entendida a partir de então não mais como algo natural, mas
como algo construído. Terry Eagleton em seu A ideia de cultura, toma por base a
origem do termo para demonstrar a variação que a palavra sofreu ao longo do
Melissa Rosa Teixeira Mendes
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tempo e suas possíveis diferenças com a ideia de natureza. Eagleton entende que
há uma diferença entre ambas, pois cultura é percebida como algo construído e
natureza como algo inerente ao próprio ser, algo não construído, então natural,
porque está presente desde sempre, metafísico. Porém, o autor demonstra como a
própria noção de natureza é algo cultural e, mais, como conceitos e vivências que
nos são apresentados como naturais, na verdade, são construções sociais, ou seja,
culturais, assim:
A natureza humana não é exatamente o mesmo que uma plantação de beterrabas, mas, como uma plantação, precisa ser cultivada – de modo que, assim como a palavra cultura nos transfere do natural para o espiritual, também sugere uma afinidade entre eles. Se somos seres culturais, também somos parte da natureza que trabalhamos (EAGLETON, 2005:15).
A partir dessa visão, podemos considerar que muito do que em nós se
consolida como algo natural, que faz parte intrinsecamente do ser humano, na
verdade é algo construído tanto de dentro para fora quanto do contrário. Muitas
vezes construído de fora para dentro a partir do momento em que recebemos
informações e as transformamos em conceitos – ou representações – e os
reelaboramos culturalmente.
Embora a palavra “cultura” seja um termo que nos remete a vários
conceitos, como refinamento, tradições de um povo, pessoa que tem entendimento
de vários assuntos, entre outros, qualquer conceito que utilizemos para definir
cultura é sempre algo que foi produzido. Em outras palavras, a cultura é uma
criação. Mas, é uma criação que, com sua internalização, pode ser vista pelos
indivíduos que a incorporam como natural.
Um exemplo é a História das relações de Gênero, que possui como
característica principal desnaturalizar os conceitos daquilo que diferenciam
homens e mulheres. Naturalmente falando, homens e mulheres são biologicamente
diferentes. Mas o que os torna socialmente diferenciados é algo que foi construído,
neste sentido, culturalmente. Porém, as sociedades internalizaram de tal forma
essas diferenças nos papéis de gênero – a partir de vários dispositivos, ou
instituições, como o Estado, a Igreja, a Família etc. –, que elas acabaram por se
tornar tão fortemente arraigadas nos discursos, que são tidas como naturais.
Cultura, representação e literatura...
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 270-282
Sendo assim o que é natural – ou não natural – hoje em dia pode se alterar
tanto de uma sociedade para outra, como em uma mesma sociedade ao longo do
tempo, ou ainda, dentro de uma mesma sociedade, mas para sujeito diferenciados.
Essas formas como a natureza e a cultura são interpretadas estão na
ordem do dia no que diz respeito à noção de representação que, segundo Chartier,
“são estes esquemas intelectuais, que criam as figuras graças às quais o presente
pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado”
(CHARTIER, 1990:17).
Dessa forma, a cultura, ou seja, a forma como a realidade social é
construída e dada a ler em diferentes tempos e lugares, ganha destaque na análise
dos historiadores. Entender a cultura das sociedades é entender a forma como
essas sociedades, através de suas práticas, representam a si e ao mundo no qual
estão inseridas.
O que leva seguidamente a considerar estas representações como as matrizes de discursos e de práticas diferenciadas — mesmo as representações coletivas mais elevadas só tem uma existência, isto e, só o são verdadeiramente a partir do momento em que comandam atos — que tem por objetivo a construção do mundo social, e como tal a definição contraditória das identidades — tanto a dos outros como a sua (CHARTIER, 1990:18).
Portanto, ao voltar-se para a análise da vida social, o pesquisador pode
tomar por objeto as formas e os motivos das suas representações nas práticas
sociais:
Deste modo, espera-se acabar com os falsos debates desenvolvidos em torno da partilha, tida como irredutível, entre a objetividade das estruturas (que seria o terreno da história mais segura, aquela que, manuseando documentos seriados, quantificáveis, reconstrói as sociedades tais como eram na verdade) e a subjetividade das representações (a que estaria ligada uma outra história, dirigida às ilusões de discursos distanciados do real) (CHARTIER, 1990:18).
Há então de se levar em conta as estruturas, mas também a forma como os
sujeitos recebem, incorporam, interpretam e, em última instância, praticam as
representações.
Melissa Rosa Teixeira Mendes
275 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 270-282
Dentro dessa perspectiva, a representação pode ser entendida como a
visão coletiva que se faz de algo ou de alguém. Assim sendo, os discursos
construídos ao longo do tempo histórico são formas de classificação e organização
desse mundo. Com o passar do tempo, tornam-se tão fortemente internalizadas, a
partir da repetição e incorporação desses discursos – a partir de suas práticas –
que passam a ser entendidas como aspectos naturais do viver em sociedade.
O HISTORIADOR E A PESQUISA HISTÓRICA HOJE
Antes de darmos continuidade ao nosso assunto central, há uma pergunta
que precisa ser feita: Afinal, o que faz um historiador? Caso esta pergunta fosse
feita a um estudante do ensino básico, ele nos responderia baseado na imagem de
seu último professor de História. O historiador – no caso o professor de História – é
aquele que fala sobre o passado, pois sua aula costuma referir-se a aspectos do
mundo social, muitas vezes anteriores ao nascimento desse aluno. Podemos
considerar que esse nosso aluno hipotético aproximou-se de uma possível
definição, tendo em vista que História, historiador (no caso o professor) e passado
têm uma ligação profunda e inextricável.
Para entender o que é esse ofício do historiador, começamos por tentar
conceituar as três palavras enunciadas acima: historiador, História e passado.
História é o que os historiadores fazem. Quer dizer que em seu trabalho de
pesquisa, de estudo e interpretação os historiadores produzem a História. História
então é a escrita, o trabalho do historiador.
E o passado é o que já aconteceu e ficou registrado – por meio de qualquer
indício de cultura material e mesmo oral – em um tempo que é anterior ao tempo
em que o historiador vive e escreve sobre essa história. Assim, “o pedacinho do
mundo que é o objeto (pretendido) de investigação da história é o passado”
(JENKINGS, 2001:23). A História é o elo que liga o presente do historiador ao
passado que ele deseja pesquisar.
História é a ciência, a produção, o trabalho de pesquisa que toma forma
final de narrativa, também pode ser chamada de historiografia. O passado é o
objeto. O historiador é o profissional. A História não é o passado em si mesmo,
Cultura, representação e literatura...
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 270-282
como imaginaria nosso aluno hipotético, ao pensar que o professor de História fala
do passado (e o passado é a História). Para ele, História e passado seriam
sinônimos, como o é, em alguns casos, para muitos que estão distantes do
cotidiano do trabalho dos historiadores.
Dessa forma, apesar de a História ter seu objeto no passado, em um tempo
anterior ao de sua escrita, a História não é exatamente o passado. O passado por si
só é algo que se encontra distante, longe, visto pela ótica, muitas vezes turva, da
memória. O passado pelo passado não é História, embora possa ter uma história. O
que torna o passado História é a forma como o historiador elege esse pedacinho do
que já passou enquanto seu objeto de pesquisa. É a partir dessa pesquisa, do
estudo, da análise, que o historiador recolhe dados para escrever uma História
daquele passado. E, nesse momento, o passado torna-se História.
Porém, esse diálogo que o historiador tem com o passado não é de todo
pacífico. É um diálogo um tanto complexo. Isso porque, reflitamos o óbvio: o
historiador não viveu o passado, não o viu, não possui mecanismos para trazer
esses acontecimentos de outrora para sua época, não pode “ressuscitar” o que já
está morto.
O historiador, no presente, elege a documentação do passado a ser
investigado por ele, mas esse passado que o historiador pesquisa não é tomado por
ele mesmo enquanto passado, mas é como um tema-problema que responderá às
questões que o historiador levanta em seu presente. O mesmo ocorrendo com o
futuro, o porvir. Ao romper com a noção de tempo teleológico, o historiador
centralizou ainda mais sua pesquisa/narração no presente, pois suas inquietações
não visam mais a busca por um fim único e universal que respondesse às questões
totais. Ao contrário, o interesse do pesquisador é responder inquietações de seu
tempo a partir de fatos que se localizam no passado. Dessa forma, o tempo da
narrativa histórica, da interpretação dos fatos passados, é o tempo presente.
Há então, na Historiografia – naquilo que o historiador escreve – a
presença de dois tempos que se intercalam: o tempo presente do pesquisador e o
tempo passado dos fatos e documentos eleitos por ele. Isso quer dizer que “o
passado já passou. Ele já passou, e os historiadores só conseguem trazê-lo de volta
Melissa Rosa Teixeira Mendes
277 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 270-282
mediado por veículos muito diferentes, de que são exemplos os livros, artigos,
documentários, etc., e não como acontecimentos presentes”. (JENKINS, 2001:25).
Sendo assim,“[...] o passado e a história não estão unidos um ao outro de
tal modo que se possa ter uma, e apenas uma, leitura de qualquer fenômeno; que o
mesmo objeto de investigação é passível de diferentes interpretações por
diferentes discursos”. (JENKINS, 2001:27). Hoje o historiador sabe que não há
somente uma verdade – única, definitiva e irrefutável –, mas que nossos objetos de
pesquisa são passíveis de verdades que estão em acordo com a forma através da
qual lançamos nosso olhar a eles.
Pode-se analisar um mesmo objeto, um mesmo fato, a partir da cultura, da
política, da economia, do imaginário, do social, enfim, a partir de diversos pontos e,
mesmo dentro desses itens, podemos apresentar particularidades analíticas e,
dessa forma, um mesmo fenômeno pode nos mostrar muitas verdades, sem que
nenhuma seja a mais correta de todas.
Além disso, um mesmo evento, dependendo da fonte que se utilize, pode
ser passível de diferentes representações. Uma revolta popular, por exemplo, se
analisada a partir de documentos do governo será vista de uma forma, porém, a
mesma revolta, quando estudada pelos documentos deixados pelos revoltosos
poderá ter uma interpretação diferenciada.
Aceita-se hoje, inclusive, que a imparcialidade no ofício historiográfico
deve ser buscada, porém ela não é plena, pois até no momento em que o
pesquisador elege uma parte do passado para seus estudos, ele está fazendo uma
escolha dentre diversas possibilidades. E, essa escolha é influenciada pelo meio
sociocultural em que o historiador, enquanto ser social, está inserido.
“A história não oferece um laboratório de verificação experimental”
(THOMPSON, 1981:47-62), mas nem por isso pode ser desqualificada como sem
método ou inventiva. A História lida com uma verdade diferente da verdade
filosófica. A verdade histórica reside na maneira como se dão as relações entre os
indivíduos; ela nasce dos fatos, mesmo porque seu objeto concreto são os fatos, os
eventos que, de uma forma ou de outra, ocorreram – embora alguns eventos
possam ter sido forjados na época em que ocorreram. Essa verdade histórica não
Cultura, representação e literatura...
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 270-282
pode ser comprovada matematicamente, experimentalmente. Isso não quer dizer
que não há formas de comprovação dos fatos históricos.
As verdades históricas dependem da interpretação que se faz desses fatos
e, nesse ponto, temos duas formas de interpretação que o historiador deve levar
em conta. A primeira é a interpretação que os indivíduos que vivenciaram esse
passado, que lhes era contemporâneo, fizeram. A segunda é a forma como o
historiador interpretará os vestígios deixados a respeito desses fatos a partir da
escolha das fontes e da metodologia aplicada à análise de cada uma.
A LITERATURA COMO FONTE HISTÓRICA
A História, pós-crise, baseou suas pesquisas e metodologia sobre as
reflexões a respeito de cultura, imaginário e representação, uma vez que a parte
material da sociedade, aparte palpável, como a economia e a política, não dava
conta de responder as questões que se apresentavam ao pesquisador. Foi
necessária uma ida ao subjetivismo das ações dos sujeitos-agentes, para que
muitos dos atos sociais pudessem ser compreendidos.
Neste sentido, entendemos que a História estuda as ações dos homens
vivendo em sociedade. Busca então compreender as representações e as práticas –
culturais / sociais – desses homens coexistindo socialmente: suas lutas, disputas,
construções simbólicas, relações de todas as formas, instituições de diversas
naturezas, entre outros. Pois todas essas categorias são exclusivas das formas
como os homens se relacionam socialmente.
Possivelmente, uma das maiores construções dos homens em sociedade
seja a linguagem. Não é preciso mencionar aqui o quão importante a linguagem é
para a solidificação e desenvolvimento – de todas as espécies – de uma sociedade.
Consideremos que linguagem, enquanto criação humana, é uma criação
cultural. Consideramos ainda que, enquanto criação cultural, a linguagem é uma
representação e sua prática se dá na conceituação, na nomeação do mundo.
Através da língua e de sua prática social, a fala, os homens podem “falar, nomear,
conhecer, transmitir, esse conjunto de atos se formaliza e se reproduz
Melissa Rosa Teixeira Mendes
279 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 270-282
incessantemente por meio da fixação de uma regularidade subjacente a toda
ordem social: o discurso”. (SEVCENKO, 2003:28).
E o discurso, o ato de falar, de transmitir mensagens de qualquer natureza
“portanto, a unicidade do meio social e a do contexto social imediato são condições
absolutamente indispensáveis para que [...] à fala, possa tornar-se um ato de
linguagem” (BAKHTIN, 2010:73).
Assim, a linguagem – oral ou escrita – são fatores importantes da vida
social. Dessa forma, um autor e sua obra literária podem ser utilizados enquanto
indício para a pesquisa historiográfica quando lidos e entendidos levando-se em
consideração o contexto no qual seu texto foi produzido. Por isso, deve-se
considerar as representações de mundo – neste caso dos escritores – como
realidades de múltiplos sentidos, mesmo porque as representações do mundo
social são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Pois,
“afinal, todo escritor possui uma espécie de liberdade condicional de criação, uma
vez que os seus temas, motivos, valores, normas ou revoltas são fornecidos ou
sugeridos pela sua sociedade e seu tempo – e é destes que eles falam” (SEVCENKO,
2003:29).
Mesmo se considerarmos a literatura enquanto, só e somente só, produção
artística não poderíamos vê-la como sujeito desencarnado, pois qualquer produção
artística, tal como qualquer produção cultural, é fruto de seu tempo, do tempo de
seu autor. E esse tempo presente, contemporâneo do autor é o que influencia sua
obra, pois mesmo que ele escreva sobre um passado – ou um futuro – distante de
seu tempo, ele o fará com os olhos e com as limitações de seu próprio momento
vivente.
A literatura não é realidade, é ficção. Mas nem por isso deixa de dizer ao
pesquisador algo sobre o momento de sua feitura. Hayden White, em seu artigo O
texto histórico como artefato literário, afirma que “tem havido uma relutância em
considerar as narrativas históricas como o que elas mais manifestamente são:
ficções verbais, cujos conteúdos são tão inventados como descobertos, e cujas
formas têm mais em comum com suas contrapartidas na literatura que na ciência”
(WHITE, 2001:97).
Cultura, representação e literatura...
Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 270-282
O fato é que White falava de um determinado tipo de História (a História
do século XIX), mas sua afirmação gerou muitas polêmicas sobre uma possível
aproximação da História com a narrativa literária. Em outras palavras, a História
seria uma narrativa de ficção.
Como já mencionamos, a História não é capaz de trazer o passado, tal
como ocorreu, de volta. Mas isso não faz os historiadores romancistas ou literatos.
O historiador narra fatos, ou seja, constrói uma narrativa. Porém, seu objeto é o
real. Já o literato não tem a preocupação em narrar um fato que realmente
aconteceu e tal qual como aconteceu. Os textos literários, por mais que se apoiem,
algumas vezes, em acontecimentos verídicos, não têm preocupação (e obrigação)
com algum tipo de verdade. Fato é que um romance que se propõe a contar uma
história verdadeira vende muito mais que um romance que não tenha essa
pretensão – principalmente nos dias atuais –, porém não quer dizer que a história
nele contida seja realmente verdadeira. Muitos escritores utilizam-se desse
recurso literário para vender mais suas obras, pois os leitores preferem histórias
em que sintam mais a presença da veracidade.
Um historiador não pode inventar personagens e encaixá-los em sua
narrativa. Não pode imaginar acontecimentos para prender a atenção de seus
leitores. Não pode criar situações que deem mais dinâmica a sua História e que
deixem o enredo mais interessante. Enfim, o profissional da História não pode
fazer ficção, por mais que narre uma história.
Porém, os pesquisadores podem utilizar de recursos na escrita para deixar
suas narrativas mais agradáveis a todos, inclusive a nós mesmos. Afinal, quem não
sente prazer em ler um texto bem escrito? “Um ofício pode trazer as marcas
características tanto da arte quanto da ciência” (GAY, 1990:167).
Ainda segundo Gay, “seja o que mais possa ser, a história não é a arte o
tempo todo” (GAY, 1990:168). Por mais que possamos nos utilizar de um
determinado tipo de arte ao escrever nossos textos, o conteúdo em si não é
meramente artístico, mas parte de uma série de estudos, pesquisas, análises
documentais, métodos de interpretação dos discursos, das representações, entre
outros. Não há nada de antiprofissional em se utilizar da arte para fazer História.
Nas palavras de Albuquerque Júnior “História, a arte de inventar o passado”
Melissa Rosa Teixeira Mendes
281 Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 270-282
(ALBUQUERQUE JR., 2007). Preferimos aqui História, a arte de entender as
representações do passado.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz. História a arte de inventar o passado.
São Paulo: Editora UNESP, 2007.
BAKTHIN, M. Para uma filosofia marxista da linguagem. In: _______. Marxismo e
filosofia da linguagem. São Paulo: Annablume/Hucitec, 2010.
BURKE, Peter. A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Editora
UNESP, 1992.
CHARTIER, Roger. A história Cultural: entre práticas e representações. Rio de
Janeiro: DIFEL, 1990.
CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. Estudos
Históricos. Rio de Janeiro, v.7, n. 13, 1994. P. 97-113.
EAGLETON, Terry. A ideia de cultura. São Paulo: Unesp. 1997.
GAY, Peter. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. São Paulo:
Cia. das Letras, 1990. (Introdução e conclusão).
JENKINS, Keith. O que é a História. In: ____. A história repensada. São Paulo:
Contexto, 2001. P. 23-53.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação na
primeira república. São Paulo: Cia. das Letras, 2003.
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Historien (Petrolina). ano 4, n. 9. Jul/Dez 2013: 270-282
WHITE, Hayden. Trópicos do Discurso: ensaios sobre a crítica da cultura. São
Paulo: EDUSP, 2001.
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O SERTÃO REAL E IMAGINÁRIO NAS CONSTRUÇÕES HISTORIOGRÁFICAS
REGIONALISTAS1
Weverson Cardoso de Jesus2 Regina Célia Padovan3
Resumo: As análises expostas nesse artigo são frutos de uma retomada na
historiografia referente à região; pretende-se relacionar aspectos presentes na
escrita das questões regionais, a fim de compreendermos como a imagem de sertão
foi construída e tornada uma abstração. Após essa compreensão, questionamos
como o Goiás – sobretudo sua região norte, hoje estado do Tocantins – foi
representado pelo sertanejo.
Palavras-chave: Sertão. Imaginário. Região.
Abstract: The analysis exposed in this article are the result of a recovery in the
historiography concerning the region, we intend to relate aspects present in the
writing of regional issues, in order to understand how the image of backlands was
built and made an abstraction. Following this understanding, we question how
Goiás - especially its northern region, today Tocantins state - was represented by
the backcountry.
Key-words: Backlands. Imaginary. Region.
Introdução
1 Recebido em 07/10/2013. Aprovado em 16/11/2013.
2 Acadêmico do Curso de História - Campus Porto Nacional. Pesquisador do Grupo Religiosidades e Festas - CNPq, bolsista Pibid/Capes, pesquisador do NEUCIDADES (Núcleo de Estudos Urbanos e das Cidades). Email: [email protected] 3 Doutora em Educação pela Universidade Federal de Goiás. Professora adjunta da Universidade Federal do Tocantins, Campus de Porto Nacional, Curso de História, pesquisadora do NEUCIDADES (Núcleo de Estudos Urbanos e das Cidades). Email: [email protected]
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A categoria sertão tem sido objeto de investigação de diversas áreas do
conhecimento, como Literatura, Geografia, História, Sociologia, entre outras com a
finalidade de compreender os processos civilizatórios, formadores de identidades,
de um melhor entendimento das questões relacionadas à região e a formação dos
aspectos identitários da nação. Propomos neste artigo retomar aspectos da
historiografia regional que se referem à construção da imagem de “sertão” nos
diversos períodos que abrangem a trajetória do país, desde sua colonização até a
contemporaneidade. Tendo analisado essas perspectivas questionamos como o
Goiás – sobretudo sua região norte, hoje estado do Tocantins – foi representado
pelo “sertanejo”, habitante dessas terras consideradas “incultas” e “distantes”.
Propomos ainda compreender como a ideia de sertão foi construída na
historiografia até tornar-se uma abstração, uma categoria que abrange diversos
significados, incluindo as denotações pejorativas e depreciativas que perpassam na
mentalidade coletiva de habitantes das metrópoles.
As observações de Janaína Amado (1995) oferecem elementos introdutórios
nas questões regionalistas ao considerar que as diferenciações regionais
começaram a ganhar ressonância no país a partir do período da colonização
portuguesa. Nessa perspectiva, a civilização estava presente na região costeira, nas
regiões conhecidas pelos colonizadores como os estados da Bahia, Pernambuco,
até chegar à capital do Império – Rio de Janeiro. Amado centra-se em definir
aspectos presentes na discussão da imagem de sertão para inseri-lo num contexto
maior de nacionalidade, suas discussões corroboram para pensarmos aspectos
nacionais que foram construídos desde o período colonial até a
contemporaneidade e que serão explorados posteriormente. Para uma melhor
compreensão acerca das construções imaginárias formadas na mentalidade
coletiva temos como expoente a obra de Albuquerque Júnior (2006) que centra sua
análise na região Nordeste para identificar as imagens construídas a seu respeito;
o sertão imaginário e o real.
Importa-nos perceber que esses autores, apesar de estarem distantes
temporalmente na elaboração de estudos regionais, aproximam-se na medida em
que pensam a construção de imagens que expõem as visões formadas acerca da
Weverson Jesus/Regina Padovan
285 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 283-295.
região e que o sertão faz parte da nação e por isso não deve ser desconsiderado.
Tentam então desconstruir imagens formadas ao longo da história nacional, seja
por elementos presentes na literatura, poesia e narrativas coloniais. Nesse sentido,
busca-se valorizar as diferenciações regionais para inseri-las no contexto nacional,
pois o individual não se desvincula do social, é essa ponte que a historiografia
regional busca traçar.
A construção da imagem do sertão real e imaginário na historiografia
regionalista
O interesse pela historiografia regional e local no Brasil ocorreu como
consequência do crescente aumento dos cursos de pós – graduação e de estudos
monográficos, pontua Amado (1990, p.7).Os temas tradicionais da historiografia
mostravam-se saturados, havia a necessidade de alargar o campo de pesquisa.Essa
vertente contribuiria para a construção da história de estados recém-criados, como
Brasília, Mato Grosso do Sul, Tocantins, Rondônia, entre outras unidades
federativas surgidas no século XX.
A realização de trabalhos voltados para essa temática depara-se com
grandes dificuldades; o mau estado de conservação dos documentos, a
desorganização dos arquivos, os silenciamentos ou negações de acesso às fontes,
são alguns dos exemplos de problemas enfrentados por quem desenvolve
trabalhos referentes à História Local. Outros fatores elencados relacionam-se ao
monopólio de arquivos em posse de famílias, falta de investimento para pesquisas
de cunho regional ou local, carência de bibliografias.
No entanto, essas dificuldades não impedem a escrita de uma história que
privilegie a região, pois o conhecimento regional oferece novas óticas de análise ao
estudo de cunho nacional, podendo apresentar todas as questões fundamentais da
História a partir do ângulo da visão que faz aflorar o específico, o próprio, o
particular. Podemos investigar a Ditadura Militar no Brasil (1964-1985) a partir da
atuação, perseguição de comunistas ou líderes sociais pelo Estado tendo como eixo
norteador as intervenções ditatoriais na região Norte, por exemplo, e chegaremos
à atuação do Estado nas perseguições e torturas ocorridas no período.
O sertão real e imaginário...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 283-295.
Enquanto a historiografia nacional ressalta as semelhanças, a regional lida
com as diferenças assegura Amado (1990, p. 12). Essas diferenças são perceptíveis
na medida em que percebemos a heterogeneidade que compõe a nação, como a
cultura, as manifestações culturais, culinárias ou de linguagens, quando elencamos
a particularidade de uma região em contraposição à outra.
O sertão engloba o campo espacial e literário. Apesar de ser um termo usado
desde antes da chegada dos portugueses ao país, no século XVI, essa categoria
permanece em uso no cotidiano, nos diálogos dos indivíduos. A categoria tornou-se
uma construção linguística para expressar o “desconhecido” ou “inabitado”. Ao
historicizar o termo, Amado (1990) constata que este recebeu a conotação de local
desprovido de cultura, espaços vastos e desconhecidos; a mesma expressão era
usada em oposição ao “litoral”: enquanto que no sertão habita o desconhecido,
habitado por homens sem fé e sem lei, por índios indomáveis, ou ainda o local onde
os encarregados da Coroa Portuguesa eram enviados para expiar seus pecados; no
litoral habitava a civilização, a cultura, os bons modos de vida.
A categoria sertão é também uma referência institucionalizada sobre o
espaço no Brasil, designando uma das subáreas do nordeste brasileiro, de acordo
com o IBGE. O sertão é presente no pensamento social brasileiro e na historiografia
desde a colonização do país, percebemos o mesmo em relatos de viajantes,
relatórios de presidentes de província e relatos de paisagens elaborados pelos
viajantes. O sertão presente nesses documentos limita-se à local escondido,
desconhecido, aos adjetivos postos anteriormente.
No período que compreende as últimas décadas do século XIX e início do
século XX, o “sertão” chegou a constituir um vocábulo absolutamente essencial em
todas as construções historiográficas que tinham como tema básico a nação
brasileira. Historiadores brasileiros, como Varnhagen, Capistrano de Abreu e
Oliveira Viana utilizaram e refinaram o conceito. Demais historiadores importantes
da época como Euclides da Cunha, Nelson Werneck Sodré, Sérgio Buarque de
Holanda, entre outros, trabalharam de formas diversas com essa categoria,
Weverson Jesus/Regina Padovan
287 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 283-295.
atentando ao fato de que essa compreensão do sertão é necessária para
entendermos a formação nacional.
As significações do termo e sua utilização ao longo dos tempos designam
diversos sentidos: entre o século XII e XlV, os portugueses empregam a palavra
“sertão" ou "certão" referindo-se a áreas situadas dentro de Portugal e afastadas da
capital. No século XV o usaram para nomear espaços vastos, interiores, localizados
dentro das possessões recém-conquistadas ou distantes delas, regiões
desconhecidas. Cronistas e viajantes que percorreram o Brasil, desde o século XVI
usaram a categoria para designar grandes espaços interiores e obscuros. O sertão
foi ainda largamente utilizado pela Coroa portuguesa e pelas autoridades lusas nas
colônias até o final do século XVII ao emitirem documentos relacionados aos
domínios coloniais. É interessante notarmos que apesar da descoberta de minas
auríferas em Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás, da explosão demográfica,
acumulação de capital financeiro, fundação de núcleos urbanos e implantação da
pesada burocracia lusa, essas regiões continuaram a serem chamadas de sertão,
(AMADO, 1995, p. 149).
Os relatórios redigidos pelos governantes da Província do Goyaz são
analisados por Ledonias Garcia como fonte para compreensão da ideia que os
mesmos tinham da região goiana. Na investigação realizada pela autora percebe-se
a constância da categoria “isolamento” e da figura indígena como empecilho para
que a civilização adentrasse na Província. (GARCIA, 2012, p. 131). A mesma
destaca que os lugares são criações; as culturas e as referências são criadas pelos
homens do lugar e esses lugares são representados pelos homens de fora. Desse
modo, a imagem dos sertanejos e índios da região goiana foi construída pelos
viajantes estrangeiros, afirma a historiadora.
Às vésperas da Independência a ideia de sertão era bem difundida no Brasil,
esta abstração era carregada de significados depreciativos. Designava terras sem
fé, lei ou rei, áreas extensas, distantes do litoral, de natureza ainda indomada,
habitadas por índios "selvagens" e animais bravios, sobre as quais as autoridades
portuguesas, leigas ou religiosas, possuíam pouca informação ou controle
O sertão real e imaginário...
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insuficiente. O termo em análise sempre esteve carregado de sentidos negativos,
dependendo do local onde se encontrava o enunciante, este geralmente era
membro da alta sociedade e habitante de grandes centros urbanos. Sertão e costa
(margem) foram categorias complementares, uma vez que uma foi construída em
função da outra ao refletir o inverso da costa. Para o colonizador, sertão constituiu
o espaço do outro, para os governantes lusos o sertão era o local de
enriquecimento e de morte, um exílio a que haviam sido temporariamente
relegados; para os expulsos da sociedade colonial, sertão representava a liberdade
e esperança, liberdade em relação a uma sociedade que os oprimia, esperança de
vida nova.
Somente no início do século XIX, em Portugal o sertão esvaziou-se dos
significados que tivera para os portugueses e recebeu outras conotações: espaços
amplos, desconhecidos, longínquos; sinônimo de interior. Janaína Amado (1995, p.
150) pontua a importância que a categoria em análise recebeu em Portugal, usada
para classificação e hierarquização dos espaços do império português. Na medida
em que o império se fragmentava, o sertão perdia seus significados polissêmicos,
chegando ao sentido original e anterior à constituição das colônias: o de interior.
Por outro lado, no Brasil do século XIX ocorria um processo inverso: a absorção de
todos os significados construídos pelos portugueses a respeito de sertão e
acréscimo de outros significados, sendo que a categoria é de essencial importância
para o entendimento do conceito de nação.
Albuquerque Jr. lança-se a compreensão de como, ao longo do tempo,
diferentes autores descreveram o Nordeste brasileiro e inscreveram essa região no
país, contrapondo-o às demais regiões do Brasil.
O Nordeste é filho da ruína da antiga geografia do país, segmentada entre ‘Norte’ e ‘Sul’. No início dos anos vinte, a percepção do intelectual que desembarca no Recife, vindo dos Estados Unidos, é de que a própria paisagem, o próprio físico da região, alterara-se profundamente. (ALBUQUERQUE JR., 2006, 39).
Weverson Jesus/Regina Padovan
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A obra de Euclides da Cunha é uma tentativa de desmistificação da ideia de
Nordeste. Os Sertões é sem dúvida um marco no sentido de que esboça os
elementos com que vai ser pensado o problema de nossa identidade nacional. É
uma fonte de imagens e enunciados para os diferentes discursos regionais. Em
Cunha aparece formulado o par de opostos que vai perpassar os discursos sobre
nossa nacionalidade: o paulista versus o sertanejo.
A partir da década de 1920 ocorre na região Centro-Sul o desejo de
conhecer o “diferente”, o Norte e Nordeste passaram a serem alvos de visitas de
especialistas e curiosos de outras áreas do país. Até então a imprensa era a grande
responsável pela criação e apropriação de imagens dos “nortistas”. Eram
retratados na imprensa dessa região os costumes “bizarros e simpáticos” da
população da região Norte e Nordeste, sempre mostrando as diferenças como
estranhas e bizarras por estarem ligadas ao arcaísmo e atraso.
Esses relatos do estranhamento funcionam também no sentido de criar uma identidade para a região de quem fala, em oposição à área de que se fala. Inventa-se o paulista ou o nordestino [...] atentando para as diferenças entre o espaço e o sujeito do discurso e o que ele está visitando, ao qual, quase sempre, se impõe uma imagem e um texto homogêneo, não atentando para suas diferenças internas. (ALBUQUERQUE JR., 2006, 42).
O referido autor assevera que o caráter de valorização de elementos
externos ao país e a desvalorização do nacional foram realizados por intelectuais
do período – início do século XX -, seja na exaltação dos imigrantes e suas
contribuições na região Sul ou no reforço de sua ausência na região Norte e
Nordeste como fator de atraso e de incultura. Oliveira Viana via o nordestino como
um degenerado por sua condição racial. A superioridade de São Paulo era
justificada pela presença de uma raça superior; a eugenia assegurava o domínio da
região Centro-Sul sobre as demais do país. O imaginário coletivo acerca do
Nordeste perpassava pela imprensa paulista, sobretudo, e muitos intelectuais se
admiravam com o caráter pitoresco que o nordeste era retratado. Essas visões
eram mostradas em obras, reportagens, até mesmo em teatros, como vemos no
trecho do espetáculo Brasil Pitoresco, de Cornélio Pires, retratando o Norte como
O sertão real e imaginário...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 283-295.
um local: “[...] feito para que o público risse das ‘coisas pitorescas, exóticas,
esquisitas, ridículas, dos irmãos do Norte’. Descobre-se o nordestino como um bom
tipo para espetáculos de humor” (ALBUQUERQUE JR., 2006, 45).
Igualmente, percebe-se que a utilização do termo sertão foi responsável
pela difusão de um tipo brasileiro, pertencente à uma região específica; o sertanejo
sempre foi visto como o desprovido de cultura. Ressalta-se que a ideia de sertanejo
e do próprio nordeste foi uma construção, fruto de obras de autores como Raquel
de Queiroz, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, entre outros que relatavam em
suas obras a seca, a fome, a religiosidade e outros aspectos relacionados ao
nordeste. “A verdade sobre a região é construída a partir dessa batalha entre o
visível e o dizível”. (ALBUQUERQUE JR., 2006, 46). É necessário entender como
ocorreu a criação de imagens referentes ao Nordeste para consumo do Sul e a
serviço de que relações de força estão relacionadas. Trata-se de entender a
produção do conceito de representação do Nordeste e como ele funciona dentro ou
fora de suas fronteiras.
O sertão foi por diversas obras e em diversos momentos tratado de forma
contundente na literatura brasileira, representando tema central na literatura
popular, especialmente na oral e cordel, além de correntes e obras literárias, na
poesia, prosa, literatura realista. Relaciona-se ainda à literatura regionalista que
tem o sertão como lócus de discurso e como forma de mostrar a realidade social da
região, os sertões misteriosos, míticos, ambíguos, situados ao mesmo tempo em
espaços externos e internos. Esse termo encontra-se presente em outras artes
como a pintura, o teatro, o cinema e a música, ocupando amplos espaços nos meios
de comunicação: jornais, rádios e também na televisão. Desse modo, Amado (1995,
p. 154) enfatiza que talvez nenhuma outra categoria, no Brasil, tenha sido
construída por meios tão diversos e com significados importantes e variados, sua
compreensão é necessária para entendermos a trajetória da História do Brasil.
A temática “História e região” pode ser abordada por diversos ângulos.Essa
diversidade de temas abordados, de pesquisas realizadas, monografias,
dissertações e teses defendidas refletem que a história regional e local vem se
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291 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 283-295.
fortalecendo no país. Essa diversidade reflete ainda o interesse em construir uma
história diferenciada da contada pelas elites locais, não no intuito de mitificar
figuras, mas de mostrar que a história é construída pela ação humana.
Particularmente na antiga região norte do Estado do Goiás, atual Estado do
Tocantins, percebe-se que a categorias “sertão” e “sertanejo” continuam sendo
usadas com o sentido de local onde habitam pessoas desprovidas de
conhecimento; a continuidade desses termos refletem as ressignificações que os
mesmos sofreram no decorrer dos tempos. O sertão sempre foi visto em
contraposição à “costa”; ao que distancia dos grandes centros urbanos; a imagem
que está vinculada ao sertanejo é de uma pessoa calma, preguiçosa e com
vestimentas rasgadas. No entanto, explorando na historiografia como a imagem do
sertão foi sendo construída, percebemos o quanto essas desqualificações não
representam o verdadeiro sentido da categoria explorada neste artigo. Audrin
(1963, p. 9) certifica que os sertanejos conhecidos por ele no antigo Norte goiano
não igualam-se aos de demais áreas do Brasil e tem características bem
particulares. Com as anotações abaixo percebemos as diferenciações existentes
nos sertanejos da região observada, em contraposição aos de demais regiões:
Se não podemos dizer nada de certo de muitos sertanejos do Brasil, estamos em condições de afirmar que os sertanejos que chamamos “nossos”, não vegetam em recantos desolados, onde crescem apenas mandacarus, rasga-gibões e xiquexiques. Não são vítimas de secas periódicas que aniquilam as criações, inutilizam lavouras e obrigam-nos a expatriar-se à procura do “Inferno Verde”. Não estão sujeitos à lamentável necessidade de disputar ao gado e outros animais a água escassa das cacimbas. Não pensem os leitores que nossa gente do interior seja a massa de retirantes que temos visto, com compaixão, desembarcar nas plataformas das Estações Roosevelt ou Pedro II, com destino aos cortiços da Paulicéia ou às favelas da Cidade Maravilhosa. [...] Nada lhes falta quando podem e querem trabalhar. [...] São livres; vivem e pelejam num país de florestas, de verdes campinas e várzeas, onde correm águas permanentes, onde o solo é rico e fartas as pastagens, onde nunca faltam caças na matas, onde rios e lagos são piscosos. Tais são os sertanejos que conhecemos.
A partir destas observações compreende-se que o Brasil, desde a sua
colonização, foi visto como um território desconhecido, inóspito, e exatamente por
O sertão real e imaginário...
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isso, uma terra propícia para ser explorada. O sertão não inclui apenas a região
Nordeste; Guimarães Rosa (1994, p.4) assevera que o sertão está em toda parte.
Rosa é um expoente do movimento Modernismo e diferencia-se dos demais
regionalistas por não abordar os problemas brasileiros de uma maneira
superficial, transportando para a literatura diversos preconceitos. Diferencia-se
ainda por abandonar a ênfase da paisagem para realçar o ser humano em conflito
com o ambiente e consigo próprio, a valorização da cultura sertaneja num
momento histórico em que predominava um discurso desenvolvimentista coloca o
escritor na contramão da literatura brasileira que, praticamente desde seu início,
defendeu a modernização do país, afirma Pessoa (2013).
Maria do Espírito Santo Cavalcante (2003) ressalva que o antigo Norte de
Goiás foi identificado como sertão, demarcando a fronteira entre o Norte atrasado,
obscurantista e o Centro-Sul civilizado. Ao analisar as folias e festas religiosas
presentes em Natividade e Monte do Carmo – TO, Messias (2010, p. 130) elucida
que o sertão goiano e tocantinense difere do sertão Euclidiano, como
ambientalmente árido, permeado pela seca. Porém, as imagens do sertão
desprovido de recursos econômicos e desabitado ainda vigoram no imaginário dos
foliões do Espírito Santo, que percorrem o sertão levando a mensagem divina.
O sentido de sertão, relacionado ao interior, ao longínquo, ao desabitado, ao
esquecido, ou sertão/litoral, evidenciado no pensamento social brasileiro, foi
ressignificado no Tocantins. De acordo com Otávio Barros da Silva (1997, p. 119) o
sertão cria seus tipos de sertanejos dentro do paisagismo de interferência regional,
mas, nem por isso dissociado da conexão geral, ainda nacional. Percebemos no
imaginário social a visão do sertão como lugar distante, abandonado, espaço
geográfico opositor à urbanização moderna das capitais do Centro-Sul.
Devemos pensar a categoria não somente no seu aspecto regional, mas
também num contexto mais amplo, onde o sertão é visto como o desconhecido, o
interior, afastado da sede do governo, mas nem por isso deve ser visto como lugar
da barbárie. Esse distanciamento das sedes de instituições oficiais possibilitou
oportunidades para fugitivos, degredados da lei de iniciar uma vida nova. De tal
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293 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 283-295.
modo, não se deve atribuir valores a regiões específicas do Brasil como sendo
melhor ou pior para se viver, dado que a interiorização do país foi a grande
responsável pelo enriquecimento de regiões e de famílias tradicionais do Sudeste.
O sertão é o local do desconhecido, do diferente, da alteridade, do encontro de
culturas diferentes.
Considerações Finais
Essas observações realizadas a caráter de uma tentativa de compreensão da
imagem construída acerca do sertão, tendo a região Nordeste como expoente,
tenciona ainda descortinar a imagem feita pelos colonizadores referentes ao
sertão, visto como local da barbárie, habitado por pessoas incultas, violentas,
degradadas racialmente. A diferenciação entre regiões é uma constante na
definição do conceito de Nordeste. No pensamento do habitante do Centro-Sul, nos
sertões habitavam os incultos, os miseráveis abatidos pela seca, os cômicos e
pacíficos moradores, o preguiçoso e religioso ligado ao messianismo; por outro
lado, na “civilização” habitavam os superiores, os inteligentes, trabalhadores,
céticos. Essa região, tal como nos foi mostrada é fruto de uma construção social e a
tentativa de desconstruir essa imagem ainda não foi possível.
Estas reflexões são necessárias para compreendermos como o sertão real e
imaginário estão entrelaçados na mentalidade coletiva. A trajetória do termo foi
investigada com a finalidade de entender os sentidos polissêmicos do termo. Não
se deve negligenciar ou deixar de perceber as contribuições que o termo sertão
trouxe à historiografia, literatura, música, teatro, telenovelas; enfim, diversas áreas
que o usaram como referência para expressar a contribuição da região, da cultura
local, enfim, de mostrar a identidade sertanista como partícipe da heterogeneidade
cultural brasileira. As contribuições da historiografia regional centram-se na
tentativa de desvincular as ideias pejorativas criadas para desqualificar o sertão e
os habitantes do mesmo, bem como inseri-lo na história nacional, dado que o
mesmo é uma parte da nação.
O sertão real e imaginário...
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O sertão engloba não apenas uma área geográfica, espaço físico, mas um
espaço onde insere uma forma de viver característica das pessoas, a forma de
relacionar-se com a natureza e com a religiosidade, um sertão que ultrapassa as
definições. Como ressaltou Rosa (1994, p. 435), “sertão: é dentro dagente”, e por
estar em nós não podemos descartá-lo, nem mesmo negar essa identidade que foi
herdada como resquício do período colonial.
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COMBATER VÍCIOS, ENSINAR VIRTUDES: O IDEAL CATÓLICO TRIDENTINO EM
SERMÕES DE AUTO-DE-FÉ DA INQUISIÇÃO PORTUGUESA (1563-1618)1
Luís Fernando Costa Cavalheiro2
Resumo: O Concílio de Trento (1545-1563) recomendava aos pregadores estimular seus fiéis para melhor se conhecerem enquanto católicos. O procedimento consistiria em saber quais eram as virtudes a serem seguidas e quais os vícios a serem combatidos. Naqueles anos, uma agravada crise causava preocupações com a recuperação da fé cristã. A difusão dos Evangelhos tornava-se uma urgência para que os católicos de Roma sentissem-se parte do rebanho de Deus. Cabia a quem subisse ao púlpito ser a voz de Cristo presente na Sagrada Escritura e torná-la próxima de seus ouvintes. O pregador, portanto, constituiu-se em um elemento basilar da Reforma Católica. É dessa conjuntura histórica que este artigo tratará. Em especifico, será abordada de qual forma a recomendação tridentina era pregada em Portugal, no início do século XVII. Para isso, serão utilizados dois sermões pregados pelo jesuíta Francisco de Mendoça, em autos de fé da Inquisição portuguesa, entre 1616 e 1618. Palavras-chave: Sermões de autos de fé, Inquisição Portuguesa, Concílio de Trento. Abstract: The Council of Trent (1545-1563) recommended to the preachers to
stimulate the congregation to know themselves better as Catholics. The proceeding
would to know what virtues were to be followed and what vices were to be
rejected. In those years, a deep crisis created preoccupations about the recovery of
Christian faith. The spread of the Gospel became urgency to the Catholics of Rome
feel as part of God's flock. It was up to those who ascend at the pulpit to be the
voice of Christ present in the Holy Scripture and make it closer to its listeners. The
preacher, therefore, was a fundamental element of the Catholic Reformation. It is
about this historical context that this article will attend. Specifically, will be
addressed how the tridentine recommendation was preached in Portugal, in the
early of the seventeenth century. For this, will be use two sermons preached by the
Jesuit Francisco de Mendoça in autos de fé of the Portuguese Inquisition, between
1616 and 1618.
Keywords: Autos da fé, Sermon, Portuguese Inquisition, Council of Trent.
1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 15/11/2013.
2 Graduado em História (licenciatura e bacharelado) pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestrando em História pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PPGHIS/UFPR). Bolsista CNPq.
Luís Fernando Costa Cavalheiro
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Trento, 1563: após longos dezoito anos, chegava ao fim o Concílio
Ecumênico que visava estabelecer bases para reformar a Igreja Católica Romana.
Desde fins da Idade Média, críticas internas e externas e ameaças constantes de
cisões desafiavam o rebanho católico. Pestes, guerras, corrupção pareciam
demonstrar a ira divina lançando suas pragas e seus castigos (MULLETT, 1985, p.
17). Para piorar, protestantes fundavam novas igrejas e tomavam ovelhas
católicas. As fragilidades da Igreja Romana estavam expostas; era preciso
enfrentar tamanha desestruturação.
Em 1545 o Papa Paulo III convocou os cardeais de seu clero para discutir
as mudanças necessárias. Entretanto, a reunião não terminaria no seu pontificado,
nem no de seu sucessor: quatro papas passariam pelo trono de São Pedro. Os
dezoito anos foram longos não porque o assunto era delicado de ser tratado, mas
porque até o contexto parecia impossibilitar qualquer ação. Nos quatro primeiros
anos, poucos foram os avanços quando um surto de peste assolou a região e
forçou uma súbita interrupção ao Concílio. Nos anos seguintes, as sessões seriam
interrompidas em decorrência de guerras religiosas, sobretudo na França.
Momentos de incerteza, de graves dúvidas e, principalmente, de crise. Parecia um
castigo divino: um Deus vingador para um mundo envelhecido (DELUMEAU, 2009,
pp. 335-344). Ou, talvez, uma provação, em proximidades do Juízo Final, para
saber quem pertencia ao fiel rebanho do Senhor (DELUMEAU, 2009, pp. 325-334).
Em todo caso, em 1562 os debates estavam quase todos finalizados, chegando aos
últimos pontos no ano seguinte.
Trento, no entanto, não se preocupou em dar uma resposta ao
protestantismo. Buscou, muito mais, reafirmar o que era e como ser católico. Por
isso, a necessidade de reafirmação dos sacramentos. A confissão, por exemplo,
tornou-se emblemática com a criação do confessionário, um espaço para que o fiel
pudesse dizer no mais íntimo do seu ser todas as suas falhas e assim ser remisso
dos seus pecados e reconciliado com Deus. A Igreja procurou ficar mais próxima
Combater vícios, ensinar virtudes
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do seu rebanho, para que evitá-lo de deixar cair em heresia. Por outro lado, o
católico deveria procurar meios de se afirmar como tal.
Um dos alicerces dessa renovação católica centrou-se na importância da
transmissão das Sagradas Escrituras. O segundo capítulo da quinta sessão dos
decretos tridentinos, intitulado “Dos pregadores das palavras de Deus” enfatizava
a preocupação:
Porquanto não é menos necessária à República Cristã a pregação do Evangelho, do que a lição; (...) e todos os mais Prelados da Igreja estão obrigados a pregar por si mesmos o Evangelho de Jesus Cristo, não estando legitimamente impedidos. (...) E se algum desprezar o cumpri-lo, saiba que o espera um rigoroso castigo (O SACROSSANTO E ECUMÊNICO CONCÍLIO DE TRENTO, 1785, p. 85)
As propostas reformistas não se encerraram em 1563. Muito pelo
contrário: foram elas a divulgação de novas preocupações para o catolicismo, que
agora deveria ter maior inquietude com seu comportamento e com a expiação de
seus pecados. Do contrário, os castigos de outrora poderiam voltar. Mas era
preciso saber como não cair mais em erros. Aqui entra o objeto deste artigo: cabia
ao pregador e à sua prédica apresentar com “palavras breves e claras os vícios de
que se devem apartar e as virtudes que devem seguir” (O SACROSSANTO E
ECUMÊNICO CONCÍLIO DE TRENTO, 1785, p. 87). Nas páginas que seguem,
acompanharemos como os vícios e as virtudes eram pregadas em Portugal no
início do século XVII. Assim teremos nas palavras do jesuíta Francisco de
Mendoça, em sermões pregados em autos-de-fé da Inquisição portuguesa, um em
1616, na cidade de Évora e outro em 1618, em Coimbra. A escolha de dois
sermões justifica-se para melhor apresentar convergências e divergências nos
comportamentos viciosos e virtuosos. Esta proposta faz parte de uma dissertação
de mestrado previamente intitulada “E Cristo é a única voz de todo o mundo: a
defesa da Respublica Christiana nos Sermões de autos-de-fé da Inquisição
Portuguesa” e o que se oferece aqui é uma primeira tentativa de estabelecer
elementos para subsidiar a análise do corpo documental. Por isso, então,
seguiremos uma trajetória iniciada nos autos-de-fé; conheceremos os possíveis
espectadores, o púlpito e as palavras lá proferidas.
Luís Fernando Costa Cavalheiro
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O CORPO DE CRISTO: OS AUTOS DE FÉ
Auto-de-fé significava, em sentido literal, ato da fé, uma recuperação da fé
católica. Fazia parte, ainda, de um modelo literário muito importante para o
momento: os autos teatrais – como, por exemplo, o Auto da Barca do Inferno de Gil
Vicente. A representação teatral era uma função fundamental naquelas
circunstâncias, sobretudo pela sua inserção em uma sociedade em que gestos e
vozes eram mais compreensíveis do que papéis e escritas.
***
Coimbra, 25 de novembro de 1618: ainda na aurora, cento e vinte e seis
réus – sessenta e um homens e sessenta e cinco mulheres – saíram pelas ruas em
procissão. Ao longo do trajeto eram acompanhados de perto pelos familiares da
Inquisição, aos quais cabia a tarefa de provocar o arrependimento dos culpados.
Na igreja da matriz e das redondezas os sinos tocavam convidando os moradores a
seguir o caminho. Logo em seguida, saíram o inquisidor D. Fernão Martins
Mascarenhas e outras autoridades religiosas, dentre eles o jesuíta Francisco de
Mendoça, responsável pela pregação naquele auto. O destino era a praça da
cidade. Lá estava montado um cadafalso e ao seu redor uma estrutura para
acomodar o público. Ao amanhecer o dia, a procissão chegou ao fim.
Ao chegar ao local, iniciou-se uma missa entoada pelo tradicional hino de
louvor Veni creator spiritus. Ao findar, Francisco de Mendoça subiu ao púlpito com
um sermão cujo exórdio foi tirado do livro de Isaias. A prédica demonstrava
preocupação com os pecados e os erros do antigo povo de Israel. Mendoça
clarificou suas palavras dividindo-as em dois conjuntos: apresentar os pecados do
povo judaico e, em seguida, anunciar os possíveis castigos que aquele povo
sofreria. O pregador não se preocupou com o número de réus e fez uma pregação
que provavelmente foi longa, pois quando passou pela imprensa contava com
Combater vícios, ensinar virtudes
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cerca de 60 folhas.3 Ao fim rezou-se um Pai Nosso. Em seguida, outro clérigo subiu
à tribuna para a leitura do Édito da Fé, condenando e ameaçando de excomunhão
quem não colaborasse como Santo Ofício. Logo depois passou-se à leitura dos
crimes e das condenações dos culpados. Naquele dia ninguém foi relaxado ao
braço secular, ninguém foi condenado à morte (MOREIRA, 1863, fls. 60v-63v).4
A sequência dos ritos mencionados foi uma constante nos autos. Era parte
de um ritual minimamente cuidado, não deixando escapar nenhum detalhe. Toda
aquela situação tinha que passar ao público a sensação de que ele, de alguma
forma, triunfaria diante da heresia. O domingo da imolação do inimigo mais
parecia com o Juízo Final, um artifício cuidadosamente encenado para evidenciar
ao cristão que no julgamento divino ele seria o escolhido para o reino de Deus
(BETHENCOURT, 2000, p. 277). Uma catarses e espalhava e “o povo sentia-se
protegido e purificado com estas imolações que se desenrolavam segundo um
cerimonial majestoso e santificador” (SARAIVA, 1985, p. 111).
Mas quem eram essas pessoas que acompanhavam essas cerimônias? O
que as motivavam em participar? O que elas procuravam? Para compreender as
intenções dos pregadores será preciso conhecer os ouvintes de sua prédica. É o
que faremos a seguir.
OS OUVIDOS DO REBANHO DE CRISTO
Muitos daqueles que se dirigiam ao local do auto-de-fé tinham naquele dia
uma festividade. A festa, aliás, tornava-se cada vez mais necessária após Trento.
Ao adentrar o século XVII, os festejos caracterizavam uma forma de fugir das
agonias causadas aos homens. (MARAVALL, 2009, p. 379). Tratava-se de “uma
época trágica”, conforme afirmou José António Maravall (MARAVALL, 2009, p.
248). Por isso, então, cada vez mais se incorporava novos instrumentos musicais
aos louvores. O Veni creator spiritus, inicialmente cantado em coro foi ganhando 3 Quando o número de réus era muito elevado, o tempo do sermão era diminuído ou suprimido. Essa medida era importante para não estender o auto-de-fé para mais de um dia, pois quanto maior era o tempo dispensado, maiores eram, também, os gastos. cf. SARAIVA, 1985, p. 110. 4 Não foi encontrada nenhuma referência sobre a sequência dos ritos do auto-de-fé de Évora, em 1616. Nas Colleções de Listas impressas e manuscriptas dos autos-de-fé, de António Joaquim Moreira, não constava nenhuma informação sobre o referido auto.
Luís Fernando Costa Cavalheiro
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ritmos de trombetas e tambores. Quem lá estava precisava organizar uma grande
festa para que se fizesse justiça aos culpados –caráter jurídico – e para que o Juízo
Final não fosse marcado com o medo de condenação aos fiéis, mas como a garantia
de uma bela entrada aos reinos dos céus – caráter religioso (MORENO MARTÍNEZ,
1997, p. 146).
Pelo auto circulavam diversas pessoas. Desde importantes autoridades,
como o inquisidor, até o fiel mais simples que morava aos arredores de onde se
realizava o espetáculo (MORENO MARTÍNEZ, 1997, p. 145). A curiosidade de
saber quem eram os culpados, quais os seus erros atraía uma multidão. Muito
provavelmente, o simples fiel era a maioria. A maioria deles tinha pouca ou
nenhuma instrução e encontrava na pregação a oportunidade de conhecer
melhoras Sagradas Escrituras, para assim ficar mais próximo de Deus. Por outro
lado, a exigida contribuição com a Inquisição fazia dos autos um momento de
declarar-se católico e evitar a excomunhão. De qualquer forma, o auto-de-fé era
um momento raro, afinal acontecia apenas uma vez por ano e, quando muito, duas.
Isso reforçava a necessidade de participar e sentir-se parte daquele rebanho que
triunfaria na fé. Nada parecia impedira participação do povo, nem mesmo a
possibilidade de intempéries, conforme surpresa do Inquisidor de Lisboa, D. João
de Melo, em uma carta enviada ao rei D. João III, narrando o auto-de-fé de1544:
Senhor – hoje, terça-feira, quatorze deste mês [de junho], se fez nesta cidade [de Lisboa] o auto-de-fé e acabou-se, Nosso Senhor seja louvado, com muito sossego; e houve que por seu serviço fazer muito bom dia, sendo a noite e os dias passados de grandes tempestades, o que não causou pouco crédito no povo em ser negócio de serviço de nosso Senhor,e que o parecia favorecer. (D. João de Mello, apud AZEVEDO, 1921, p. 450)
Esse simples fiel era uma das grandes preocupações para a pregação do
dia. Era a ele quem deviam dirigir-se as palavras a demonstrar os vícios e as
virtudes. Cabia ao pregador a tarefa de provocar. Outra vez devemos compreender
o ambiente em que estava inserido aquele homem, aquela mulher que ao
amanhecer do domingo dirigia-se ao local do espetáculo:
O homem, segundo se pensa no século XVII, é um indivíduo em luta, com toda a comitiva de males, que à luta acompanha, com os possíveis proveitos que também a dor traz consigo, mais ou
Combater vícios, ensinar virtudes
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menos ocultos. (...) encontra-se o indivíduo em combate interno consigo mesmo, fonte de tantas inquietações, cuidados e até violências que do seu interior brotam e se projetam com o mundo e com os demais homens. O homem é um ser agônico, em luta dentro de si (MARAVALL, 2009, p. 260-261).
Essa agonia causada por convulsões e crise no homem poderia encontrar
uma saída nas pregações, na existência da Inquisição, na participação da missa, no
acompanhamento do auto-de-fé. No revivescer da fé em Deus, portanto.
Mas estes não eram os únicos ouvintes presentes. Havia um público
marginal: era ele o réu que estava na condição de escolher uma possível remissão
de seus pecados e, por conseguinte, a reconciliação ao seio cristão. A pregação
para eles, provavelmente, era mais dificultosa, pois para além de persuadir era
preciso admoestar. Muito do que era dito ao cristão para convencê-lo sobre a
gravidade dos vícios era também uma forma de amedrontar os acusados,
causando um abalo psicológico. O medo condicionaria o culpado a conhecer suas
falhas, assumindo-as e levando-os ao arrependimento.
E de qual forma, então, o pregador expunha os vícios e as virtudes para
seu diversificado público? Como era possível estabelecer uma relação entre o
público e o Santo Ofício? Quais eram seus objetivos? Conheceremos, agora, como a
“voz de Cristo” se pronunciava.
A VOZ DE CRISTO: O PREGADOR E A PRÉDICA
Uma das preocupações da Reforma Católica era em como as palavras
atingiriam os ouvintes. Nenhuma limitação ou imposição de estilo ficou clara, mas
de alguma forma a resolução do Concílio de Trento convidava o católico a melhor
se conhecer. Michael Mullet demonstra que foi a partir dessa conjuntura que as
sensibilidades foram tomadas como um importante elemento de doutrinação:
os católicos foram então encorajados, mais do que anteriormente, a sentir a sua religião: quando se festavam, por exemplo, eram estimulados a sentir um desgosto emocional pelos seus pecados e mesmo arrependimento por terem causado sofrimento a Cristo (MULLETT, 1985, p. 66; grifo meu).
Luís Fernando Costa Cavalheiro
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Buscava-se, assim, uma fé mais emotiva do que intelectual, para “vincular
a alma mais ao coração do que à inteligência” (MORÁN; ANDRÉS-GALLEGO, 1995,
p. 119).
Contudo, não era qualquer um que poderia ser pregador em um auto-de-
fé. Geralmente, o episcopado apontava três possíveis nomes para, em seguida,
apenas um ser escolhido. Quando eleito para assumir o púlpito, o pregador
recebia uma lista com os nomes e as acusações levadas ao cadafalso no domingo.
Francisco Mendoça ficou encarregado desta tarefa por duas vezes na segunda
década do século XVII.5
O pregador, então, seria a voz de Cristo, assim como se fazia nas parábolas.
Da mesma forma que Jesus recomendava uma busca incansável por qualquer
ovelha desgarrada do seu rebanho, a Igreja Reformada assumiu como uma de suas
falhas o distanciamento entre o clero e o leigo e, assim, precisava reverter essa
situação (MULLETT, 1985, p. 20). A partir de então, estabeleceram-se dois planos
evangelizadores: a recuperação e a consolidação da fé, pautadas no fortalecimento
da formação de seminários paroquiais. (MORÁN;ANDRÉS-GALLEGO, 1995, p.
118). Por conseguinte, “a noção do padre como orientador paternal e g u i a d o s
l e i g o s i n v a d i u a C o n t r a R e f o r m a ” (MULLETT, 1985, p. 27). Conforme
bem destacou Jean Delumeau, a Reforma Católica foi uma reconquista das massas,
as potenciais ovelhas que poderiam fugir do rebanho (DELUMEAU, 1967, pp. 102-
107). Assim, os autos-de-fé foram perdendo o caráter de teatro sacro para
tornarem-se espetáculos de massa (NAZÁRIO, 2002, pp. 91-109).
No sermão pregado em 1618, o próprio Francisco de Mendoça
apresentava-se como um representante de Deus no púlpito: “Já antigamente
matastes e apedrejastes os Profetas de Deus (...) não mateis, não apedrejeis agora
ao próprio Deus, que aqui vos prega”. (MENDOÇA, 1618, fls. 3-3v). M a s quem
eram estes que outrora mataram e apedrejaram os profetas? Era o povo judaico, a
grande preocupação de Mendoça. Nas duas vezes em que esteve com a palavra,
5 Até o momento da pesquisa, estas foram as informações sobre o jesuíta Francisco de Mendoça. Na dissertação, a preocupação não será em mapear a trajetória dos pregadores, tendo em vista que serão muitos (algo em torno de 20 pregadores diferentes). A intenção será em fazer uma análise cultural e social da pregação na sociedade portuguesa do século XVII, tendo como espaço privilegiado o púlpito da Inquisição.
Combater vícios, ensinar virtudes
304 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 296-309.
Francisco de Mendoça foi enfático: os judeus eram os opositores dos católicos.
Eram eles, então, os vícios a serem apartados.
Em boa medida, ambas as pregações de Mendoça se repetem e confluem
para uma só argumentação: os judeus fingiam sua fé. Assim ele demonstrou ao
dividir o povo judaico em duas gerações: a primeira seria a dos pais,
contemporâneos a Jesus Cristo; a segunda seria a dos filhos, coetâneos à prédica. A
culpa dos pais foi ao recusar Cristo enquanto o Messias prometido pelas profecias.
Pior do que isso, mataram-no e assim perderam tudo que tinham
Depois que o povo Judaico matou e crucificou a seu verdadeiro Messias e pediu a Deus que o sangue deste inocentíssimo cordeiro viesse sobre ele e sobre todos seus filhos (...) depois que fez esta execração tão blasfema contra si, qualficou? (...) Ficou confiscado em todos os seus bens, assim temporais, como espirituais. E ficou relaxado do trono da misericórdia divina para o tribunal da justiça divina (MENDOÇA, 1618, fl. 13).
Desde então, os judeus ficaram desterrados pelo mundo. Assim aconteceu
com as gerações seguintes, até chegar naquela da segunda década do século XVII.
O pecado, agora, tinha uma proporção ainda maior, pois:
o pecado de seus filhos, que sois vós, os que ainda hoje aprovais e ratificais, e pondes o selo ao que vossos pais fizeram, é pecado profundo. Porque é pecado por fingimento e por engano, e por hipocrisia e por falsidade, e com uma coisa na boca e outra no coração (MENDOÇA, 1616, fl. 3; grifos meus).
O fingimento não era uma simples designação do oponente, era uma
constatação: “pois esta cegueira Judaica é uma peste, se andar por entre nós
fingida, e encoberta e solapada: coitado de ti, Portugal!” (MENDOÇA, 1616, fl. 14).
Por isso, então, expressões como cegos, duros, pertinazes, obstinados eram
comuns para demonstrar os judeus. A exortação reforçava que os ritos judaicos
não eram condizentes com os cristãos: “essas vossas cerimonias judaicas que
guardais, de onde tirastes? Da Escritura? Bem parece que nunca a lestes e pelo
menos que nunca a entendestes” (MENDOÇA, 1618, fl. 18v). Muito mais que um
fingimento, uma repetição.
Uma expressão, contudo, saltou aos olhos: no sermão de 1618, Mendoça
categoricamente chamou os judeus de cepa:
é o povo judaico uma vara cortada da cepa.(...) Enquanto a vara está na
Luís Fernando Costa Cavalheiro
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 296-309.
cepa com folha e fruto, não há coisa mais proveitosa; depois que se[é]cortada[a] cepa só para o fogo serve.Tal [é] o povo judaico, enquanto estava unido com Deus e com seu verdadeiro Messias, por fé, esperança e caridade não havia melhor povo. Depois que deixou a Deus e renunciou o Messias e perdeu a fé e fez naufrágio de todas as mais virtudes sobrenaturais, para que pode servir no mundo senão para o fogo? (MENDOÇA, 1618, fls. 28v-29; grifo meu)
Além de ser um perigo que deveria ser isolado por fazer mal à
cristandade, os judeus perderam suas virtudes. Francisco Mendoça colocava aos
olhos dos seus ouvintes a imagem do triunfo da fé católica: uma cepa sendo jogada
ao fogo. Tratava-se de uma metáfora, um recurso retórico amplamente utilizado
nas pregações para definir o outro. Segundo Marina Massimi, entre o final do
século XVI e início do XVII, a metáfora era utilizada como forma de provocar a
sensibilidade em quem ouvia, aguçando a imaginação e a memória. Por
conseguinte, elas ensinavam: “as metáforas teatralizavam as virtudes (...). As
palavras guiavam o olho da mente para que este observasse os conceitos
abstratos, de tipo moral, associados a cada pormenor delas” (MASSIMI, 2005, p.
27).
Mendoça, porém, não se preocupou só com condenações. O pregador
também aconselhou aos judeus, certamente a maioria entre os réus, a entregarem-
se a Deus para não perder o pouco que ainda restava: “já que perdeis a terra, não
percais o Céu; já que perdeis a vida transitória, não percais a eterna; já que perdeis
os corpos, não percais as almas.” (MENDOÇA, 1616, fl. 16v). Em esmo tendo
exposto que o maior pecado dos judeus fora a morte de Cristo, ao Senhor
recorria para atingir o perdão pelas falhas judaicas: “Lembrai-vos,
Senhor JESUS, que vós pusestes nessa Cruz e derramastes [o] vosso sangue e
destes a vossa vida, não só pelo povo Cristão, senão também pelo povo Judaico.”
(MENDOÇA, 1616, fl. 15). Se os judeus eram os vícios, cabia aos católicos
serem virtuosos e praticarem a fé, a misericórdia, a piedade e o perdão.
CONSIDERAÇÕESFINAIS
Lisboa, 1497: cerca de vinte mil judeus dirigiram-se ao porto na
esperança de embarque para terras além de Portugal. Em dezembro do ano
Combater vícios, ensinar virtudes
306 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 296-309.
anterior, D. Manuel, rei português, assinara um contrato de núpcias com Isabel,
filha dos Reis Católicos, Fernando e Isabel. Um dos pedidos das coroas hispânicas
foi a expulsão dos judeus das terras lusas. D. Manuel atendeu e estabeleceu um
prazo de dez meses para a saída; ao aproximar-se do fim uma multidão procurava
os portos para zarpar. Contudo, a esperança tornou-se desespero. Temendo
perder uma importante parcela econômica de seu reino, o soberano português
autorizou uma conversão forçada aos judeus. Oficialmente, não existiriam mais
comunidades judaicas, apenas cristãs, que seriam divididas entre cristãos velhos e
cristãos novos.
Os ecos da voz de Francisco Mendoça soa-nos um certo estranhamento,
parecendo demonstrar contradição. Ao voltarmos às palavras do pregador,
notamos veementes afirmações contra judeus e não contra cristãos-novos, mesmo
passados mais de cem anos após a conversão. Mesmo chegando às linhas finais
cabe-nos, ainda, uma pergunta: qual seria a intenção de Mendoça nessa constante
repetição de uma existência judaica em Portugal no início do século XVII?
Seria simplório acreditar que o problema era o judeu. Não, esta não era a
questão a ser resolvida. O judeu, enquanto tal, era muito mais uma alegoria dos
antepassados, um eco, quase uma metáfora. O problema era o comportamento
judaico: sua falsidade, sua obstinação, sua repetição nos ritos ancestrais. O
fingimento claramente era uma forma de demonstrar a falta de credibilidade na
conversão judaica ao catolicismo:
Cativai-os, Senhor, e espalhai-vos por todo mundo. (...) Para que com este cativeiro testemunharem por todo o mundo sua falsidade e nossa verdade. Mas ah miserável povo. (...) Espalhados e esquartejados por todas as quatro partes do mundo; mas nem por isso convertidos, nem arrependidos de suas culpas (MENDOÇA, 1618, fl. 21).
Este era o exemplo de vício a ser combatido. Um católico deveria assumir
seus erros, arrepender-se, pedir perdão, conseguir remissão e ser reconciliado.
Não era esse um dos sacramentos da reforma tridentina, a confissão? Além de
estar próximo ao leigo, numa espécie de intermediário de Cristo, o pregador
deveria, também, estimular o arrependimento, a exposição dos sentimentos, para
que os comportamentos do fiel rebanho não fossem iguaisao do infiel. Mendoça,
Luís Fernando Costa Cavalheiro
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 296-309.
portanto, apresentou exemplos. Evangelizou em um momento de crise humana.
Muito mais do que isso, reeducou. Afinal, esta era a função da prédica: reordenar o
aprendizado que desde criança, como batismo, ao católico é apresentado. No auto-
de-fé, essa função era ainda mais específica:
sua finalidade comum era sempre pedagógica. De uma parte, estimular positivamente a participação e integração voluntária no sistema, ensinar a não transgredir a norma e marcar as pautas para o reto comportamento; de outra, inculcar à sociedade o ódio à heresia mostrando-lhe os meios para defender- se dela (GONZALES DE CALDAS, [s.d.], p. 241).
A intenção de Francisco de Mendoça e da Igreja Católica de fins do século
XVI e início do XVII era muito mais que expiação de comportamentos e pecados.
Era uma tentativa de reencontro com a proposta primitiva do catolicismo, de uma
fé universal, atingida por todos e assim expressa. Mendoça demonstrou que isso
era possível: até mesmo bárbaros de terras distantes, como da Noruega,
converteram-se e deixaram de ter vozes de brutos para tomarem “umas línguas
suavíssimas de Anjos, para louvarem a Cruz do Senhor.” (MENDOÇA, 1618, fl. 31).
A exceção estava no fingimento, que, no entanto, era advertido para pertencer à
voz de Cristo. E assim, finalmente Cristo seria a única voz de todo mundo.
(MENDOÇA, 1618, fl. 31).
REFERÊNCIAS
Fontes:
“Carta do Inquisidor João de Mello a D. João III.” Apud. AZEVEDO, João Lucio. História dos Christãos Novos Portugueses. Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1921.
MOREIRA,António Joaquim. Colleção de listas impressas e manuscriptas dos autos-de-fé públicos e particulares celebrados pela Inquisição de Coimbra. Lisboa:[s.e.]1863. Disponível em: <http://purl.pt/15393/4/>. Acesso em 16 de novembro de 2013.
Combater vícios, ensinar virtudes
308 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 296-309.
O Sacrossanto e ecumênico Concílio de Trento. Em latim e português. Dedicado e consagrados aos excelentíssimos e reverendíssimos senhores arcebispos e bispos da Igreja Lusitana. Lisboa, 1781, tomo I. Disponível em: <http://purl.pt/360/4/sc-7006-p/sc-7006-p_item4/sc-7006-p_PDF/sc-7006-p_PDF_24-C-R0150/sc-7006-p_0000_capa-guardas2_t24-C-R0150.pdf> Acesso em 16 de novembro de 2013. Sermam que pregou o muyto reverendo padre Francisco de Mendoça da Companhia de Jesus no auto publico da FEE que se celebrou na praça da cidade de Évora Domingo 8 de junho de 1616. Disponível em: <http://almamater.uc.pt/wrapper.asp?t=Serm%E3o+que+pregou+o+muito+reverendo+padre+Francisco+de+Mendon%E7a+%2E%2E%2E+no+auto+p%FAblico+da+f%E9+que+se+celebrou+na+pra%E7a+da+cidade+de+%C9vora+domingo+8+de+Junho+de+1616&d=http%3A%2F%2Fbdigital%2Esib%2Euc%2Ept%2Fbduc%2FBiblioteca%5FDigital%5FUCBG%2Fdigicult%2FUCBG%2DVT%2D15%2D8%2D27%2FglobalItems%2Ehtml> Acesso em 16 de novembro de 2013.
SERMÃO QVE FES O PADRE DOVTOR FRANCISCO DE MENDOÇA DA COMPANHIA DE IESV, no Auto da Fé, que se celebrou na praça da cidade de Coimbra a 25 de Nouembro do anno de 1618. Disponível em: <http://almamater.uc.pt/wrapper.asp?t=Serm%E3o+que+fez+o+Padre+Doutor+Francisco+de+Mendon%E7a+%2E%2E%2E+no+Auto+da+F%E9%2C+que+se+celebrou+na+pra%E7a+da+cidade+de+Coimbra+a+25+de+Novembro+do+ano+de+1618&d=http%3A%2F%2Fbdigital%2Esib%2Euc%2Ept%2Fbduc%2FBiblioteca%5FDigital%5FUCBG%2Fdigicult%2FUCBG%2DVT%2D15%2D8%2D4%2FglobalItems%2Ehtml> Aacesso em 16 de novembro de 2013. Referências bibliográficas: BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. Portugal, Espanha e Itália – séculos XV XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente. 1300 – 1800: uma cidade sitiada. Trad. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. DELUMEAU, Jean. La Reforma. Barcelona: Editorial Labor, 1967, pp.102-107. GONZALES DE CALDAS, Maria Victoria.“Nuevas Imágenes del Santo Oficio en Sevilla: el auto de fe”. In:ALCALÁ, A. Inquisición Española y Mentalidad Inquisitorial. Barcelona: Ariel, [s.d], p.241 MARAVALL, José António. A Cultura do Barroco. Trad. Silvana Garcia. São Paulo: Edusp, 2009. MASSIMI, Marina. Palavras, almas e corpos no Brasil Colonial. São Paulo: Edições Loyola, 2005.
Luís Fernando Costa Cavalheiro
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 296-309.
MORÁN, Manuel; ANDRÉS-GALLEGO, José. “O Pregador”. In: VILLARI, Rosário (dir.). O Homem Barroco. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presença, 1995. MULLET, Michael. A Contra-Reforma. Lisboa: Gradiva, 1985. NAZARIO, Luiz. Autos de fé como espetáculos de massa. São Paulo: Associação Editorial Humanistas/ FAPESP, 2002 [originalmente apresentada como dissertação de mestrado na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1989]. SARAIVA, António José. Inquisição e Cristãos novos. Lisboa: Editorial Estampa, 1985.
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
REPRESENTAÇÕES HISTORIOGRÁFICAS: CRISTÃOS NOVOS E INQUISIÇÃO NA AMÉRICA PORTUGUESA12
Juarlyson Jhones S. de Souza3
Resumo: Objetivamos por meio deste trabalho em refletir sobre a mutabilidade do conhecimento histórico operado a cada geração de historiadores. Para tal selecionamos algumas obras historiográficas sobre a presença dos cristãos novos e da Inquisição na América Portuguesa visando perceber a multiplicidade de suas concepções, seus objetos e suas formas de abordagem. Optamos por construir nossa análise a partir da discussão entre as concepções presentes em algumas destas obras, como também da exposição enumerativa de algumas outras, dada a sua importância para os estudos acerca do tema. Utilizamos a noção de representação historiográfica para conduzir nossa reflexão.
Palavras-chave: Historiografia. Representação. Inquisição. Cristãos novos.
Resumen: Nuestro objetivo a través de este trabajo es de reflexión sobre la mutabilidad del conocimiento histórico operado a cada generación de historiadores. Seleccionamos algunas obras historiográficas sobre la presencia de cristianos nuevos y de la Inquisición en la América portuguesa con el objetivo de darse cuenta de la multiplicidad de sus concepciones, sus objetos y sus formas de planteamiento. Hemos elegido para construir nuestrareflexión, la discusión entre los conceptos presentes en algunas de estas obras, sino también da exposición enumerativa, dada su importancia para los estudios sobre el tema. Utilizamos la noción de representación historiográfica para realizar nuestro análisis.
Palabras clave: Historiografía. Representación. Inquisición. Nuevos cristianos.
Historiografia em perspectiva
A historiografia “é a reflexão sobre a produção e a escrita da História”.
(SILVA & SILVA, 2005, p. 189) As pesquisas históricas possuem como elemento
1 Recebido em 08/10/2013. Aprovado em 15/11/2013.
2Esse texto foi originalmente concebido como trabalho de conclusão da disciplina Historiografia
Social da Cultura Regional, ministrada no primeiro semestre de 2013 pela Profª. Drª. Suely Luna
(Programa de Pós-Graduação em História/UFPE). 3Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em História Social da Cultura da Universidade Federal Rural de Pernambuco. Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). E-mail: [email protected].
Juarlyson Jhones S. de Souza
311 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
primordial para sua validação e para sua inserção dentro das produções acerca de
determinada temática a revisão dos textos já consagrados como referência. Olhar
para a produção histórica nos ajuda a estabelecer parâmetros e critérios de análise
para a construção de uma pesquisa histórica prudente. A discussão historiográfica
permite não somente sua legitimação em determinada área do conhecimento
histórico, mas também a reflexão sobre caminhos a serem seguidos e alertando
acerca de equívocos interpretativos possíveis. Além disso, “sem conhecer sobre o
que já se produziu em sua área de estudos, dificilmente ele [o historiador] poderá
elaborar uma reflexão crítica”. (SILVA & SILVA, 2005, p. 192). A ideia para este
trabalho surgiu a partir do cotidiano de pesquisa que, ao visitar algumas obras
históricas clássicas sobre a temática dos cristãos novos, da inquisição e da América
Portuguesa, conduziu a uma reflexão crítica para o estabelecimento e inserção do
nosso trabalho na historiografia sobre estes temas. Pois, “pensar o estatuto do
texto histórico (...) fez-se mister no cotidiano dos profissionais da história”.
(MALERBA, 2008, p. 11) Para tal, sentimos a necessidade de refletir sobre, além do
próprio conceito de historiografia, o conceito de representação. E, no
desenvolvimento desta dupla reflexão teórica chegar ao elemento chave que
norteia este trabalho: a representação historiográfica.
O próprio conceito de historiografia tem sido visitado nos últimos tempos por
diversos autores levando a reflexões importantes sobre a produção dos
historiadores. Silva & Silva sinaliza para o fato de que desde a Antiguidade e Idade
Média, cronistas e historiadores tem apresentado a preocupação em comparar
seus escritos com outras obras que lhe foram contemporâneas ou mais antigas,
inserindo-as, portanto, no conjunto da produção escrita do mesmo gênero. (SILVA
& SILVA, 2005, p. 190).
Jurandir Malerba aprofunda a questão ao afirmar que o caráter auto reflexivo
da História é o elemento mais pertinente que a faz se diferenciar do conjunto das
Ciências Humanas. Muito mais do que sinalizar a preocupação historiográfica já
presente entre os escritores antigos, Malerba afirma que “devido a uma
característica básica do conhecimento histórico, que é a sua própria historicidade,
temos de nos haver com todas as contribuições dos que nos antecederam”.
(MALERBA, 2008, p. 15).
Representações historiográficas
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
Esta característica do conhecimento histórico se manifesta inclusive como uma
necessidade de “retificação das versões do passado histórico, operada a cada
geração”. (MALERBA, 2008, p. 17) A historiografia se torna, portanto um campo de
análise importante dentro do pensamento histórico, tendo ela mesma se tornado
fonte para o trabalho de alguns historiadores que se dedicam em efetuar reflexões
sobre o tema ou mesmo construir a história da historiografia.
Representação e historiografia
Sendo um debate atual, o conceito de representação se constitui como a
engrenagem motora de muitos textos concebidos dentro dos pressupostos da
História Cultural. Para Chartier4, a representação é uma leitura que um indivíduo
opera de si mesmo, da realidade que o cerca e dos outros. “A história cultural, tal
como a entendemos, tem como principal objeto identificar o modo como em
diferentes lugares e momentos uma determinada realidade social é construída,
pensada, dada a ler”. (CHARTIER, 2002, p. 16-17)A história cultural é uma história
das representações, portanto, voltada para um teor analítico que aborde a
subjetividade das estruturas sociais, políticas, econômicas, que são concebidas
como sendo também culturais. Ainda segundo Chartier, as representações só nos
são suficientemente creditadas ou relevantes em termos de análise, a partir do
momento em que estas representações comandam atos, ações. (CHATIER, 2002, p.
19). Chartier entroniza a questão da representação como matriz dos discursos e
práticas que caracterizam o mundo social.
Outro dado importante que Chartier nos faz referência, é o fato de que a
representação da realidade social efetuada por determinado grupo aspira à
universalidade, que podemos considerar como uma maneira de legitimar sua visão
de mundo em detrimento de outros grupos que compõem a sociedade. Portanto, é
necess|rio o “relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os
utiliza”. (CHARTIER, 2002, p 17). Neste sentido, é no debate amplo promovido por
4CHARTIER, Roger. A História Cultural – entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL. 2002.
Juarlyson Jhones S. de Souza
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Chartier sobre o conceito de representação, que inserimos a questão da alteridade5
aprofundada por François Hartog.
Em O Espelho de Heródoto: ensaios sobre a representação do outro, Hartog
pretende analisar elementos objetivos e subjetivos dos textos de Heródoto na
Antiguidade. A partir desta análise, Hartog nos leva à reflexão sobre o trabalho do
historiador em sua tarefa de construir ou traduzir representações. É necessário
compreender que o texto trata de uma análise da narrativa herodotiana,
destacando a maneira como Heródoto ‘representou’ os povos que interagiram com
os gregos durante o período das Guerras Médicas. Apesar do texto apresentar
elementos referentes há vários povos, o recorte documental que Hartog realiza
dentro das Histórias de Heródoto faz referência aos citas, povo que vivia ao norte
da Grécia.
A intenção de Hartog é precisamente discorrer sobre a maneira como
aquele que é considerado tradicionalmente como o primeiro hístor6 escreveu
história. O mecanismo interno das Histórias de Heródoto serve de base para o
ofício do historiador ainda nos dias atuais. Hartog compara traços que estão
presentes na construção atual dos historiadores, traços que surgiram na Grécia
Antiga, em Heródoto, e oferece novos mecanismos de operação histórica pautados
na questão da alteridade, pois o trabalho historiográfico também é a
materialização de uma representação, que segundo Hartog – ao percebê-lo em
Heródoto – é manifestada a partir de um saber compartilhado.
A partir do cruzamento das reflexões oferecidas por Chatier e Hartog
chegamos à noção de representação historiográfica. “Não h| dúvida de que a
historiografia é uma representação do passado”. (MALERBA, 2008, p. 19). O texto
histórico é também um ato de representação na medida em que é construído a
partir da análise de outras representações que produziram as fontes com as quais
5A priori não devemos perder de vista a questão da alteridade numa perspectiva etimológica: a palavra alteridade é derivada da palavra latina alter que significa “um de dois, o segundo, o outro, diferente”. 6Buscando uma definição para o hístor, Hartog afirma que, para os gregos, o hístor é uma testemunha ocular, ele sabe por ter visto. Aprofundando a questão, Hartog referencia que o hístor é mais além do que uma testemunha que vê, mas um árbitro, “escolhido por suas qualidades para resolver a questão e impor respeito às decisões tomadas. Como? Investigando”. (HARTOG, 1999, pp. 22). Mais que uma testemunha: o hístor é um juiz. É a partir de questões como estas que Hartog aponta para elementos que ainda dizem respeito ao ofício do historiador presentes em Heródoto.
Representações historiográficas
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
trabalha o historiador, auxiliado por ferramentas teóricas e metodológicas. Sem
perder de vista o fato de que os historiadores e seus textos não estão externos ao
tempo, refletindo concepções, visões de mundo, formas de compreender a
realidade, próprias do período em que viveram. Considerando que as
representações são relevantes para análise histórica a partir do momento em que
produzem práticas que se inserem no tecido social, passaremos a construir a
análise de algumas obras que compõem o quadro historiográfico e as
representações dos cristãos novos e da Inquisição presentes nestas obras.
A Inquisição na América Portuguesa e sua historiografia
O Tribunal do Santo Ofício teve diversas versões durante a época moderna
que já eram derivadas da Inquisição medieval. Neste sentido, muitos autores têm
defendido a tese de que a Inquisição se constituiu como um instrumento de
homogeneização num período que aspirava centralização política no bojo do
processo de formação dos estados nacionais. (LAVAJO, 1998).
Sendo assim, as monarquias católicas (manifestadamente as ibéricas)
promoveram o estabelecimento do Tribunal visando eliminar todos os percalços
sociais que poderiam produzir conflitos que pusessem em xeque a estabilidade
política e social dos seus reinos. Neste mesmo período, outras regiões da Europa –
como foi o caso da França, por exemplo – estavam mergulhadas nas guerras de
religião provocadas pela oposição entre católicos e protestantes. Tais conflitos de
ordem religiosa promoviam um caos social tão intenso que se fez necessário
apaziguá-los para que assim a monarquia iniciasse o processo de centralização do
poder nas mãos do monarca, gerando o absolutismo. No caso das monarquias
ibéricas, visando à prevenção contra este tipo de conflito, os reis católicos
consideraram necessária a existência de um instrumento que eliminasse as
diferenças religiosas reunindo todos sob o manto da Igreja Católica ou do falso
manto da homogeneidade já que as diferenças não eram de fato eliminadas, mas
subjugadas e escondidas.
Em 1536 foi instituído em Portugal o Tribunal do Santo Ofício a pedido do
rei D. João III. O primeiro texto historiográfico que nos concede uma narrativa
Juarlyson Jhones S. de Souza
315 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
precisa do processo de formação da Inquisição portuguesa é de autoria do
historiador português Alexandre Herculano. Trata-se da obra História da Origem e
Estabelecimento da Inquisição em Portugal, produzida na década de 1850 (a
Inquisição teve seu fim no reino português em 1821) e organizada em três tomos.
Alexandre Herculano constrói sua obra a partir de aspectos estritamente
narrativos, dotando o texto de pouco teor analítico. Entretanto, se percebe que
aparece na narrativa a figura dos cristãos novos, judeus convertidos ao catolicismo
à força por decreto do rei D. Manuel em 1497, marginalizados e discriminados na
sociedade portuguesa da Época Moderna. Este aspecto adquire relevo quando
fazemos menção ao fato de que comumente a historiografia ocidental do século XIX
– de caráter estritamente nacionalista – privilegiava a figura de líderes políticos
que possuíam destaque na História do Ocidente, sem conceder espaço a grupos
sociais considerados até então periféricos ao poder político. O autor chega
inclusive a mencionar o fanatismo religioso do jovem rei D. João III, registrando as
perseguições que os descendentes de judeus foram submetidos no Império
Português por meio da atuação inquisitorial. É importante ressaltar que o destaque
dado por Alexandre Herculano aos cristãos novos está também relacionado ao fato
de que este mesmo grupo sempre constituiu o principal alvo da Inquisição
Portuguesa, e sendo um texto de História Institucional, negar espaço aos cristãos
novos, neste caso, corresponderia a não investigar as motivações efetivas que
levaram à origem e ao estabelecimento do Santo Ofício português.
Apesar de não ter havido um Tribunal da Inquisição na América Portuguesa,
a historiografia brasileira que trata desta temática tem demonstrado ser cada vez
mais profícua. Isto se deve ao fato de que a Inquisição de Lisboa, que possuía
domínio jurídico e religioso nas possessões portuguesas do Atlântico, utilizou-se
da estrutura eclesiástica já constituída para fazer valer sua atuação por meio das
visitações eventuais que ocorreram entre os séculos XVI e XVIII, gerando fontes
históricas que permitiram aos historiadores brasileiros a também se dedicarem à
temática. A primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil foi conduzida
pelo licenciado Heitor Furtado de Mendonça que visitou as capitanias da Bahia,
Pernambuco, Itamaracá e Paraíba durante a década de 1590.
Representações historiográficas
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
De uma maneira geral, podemos classificar os estudos inquisitoriais no
Brasil a partir de duas linhas de investigação: a primeira diz respeito ao
funcionamento institucional do Santo Ofício e a segunda aos grupos perseguidos
por este Tribunal. O estudo destes grupos tem proliferado desde a década de 1970,
e rendido textos historiográficos dos mais diversos como a obra clássica de Anita
Novinsky Cristãos Novos na Bahia (1972) que aborda as formas de participação e
interação social dos cristãos novos na sociedade baiana do século XVII,
referenciando suas atividades econômicas, seus cargos na administração
portuguesa na colônia, bem como suas formas de perpetuar o judaísmo
clandestinamente numa sociedade marcada pelo olhar persecutório da Inquisição.
Outra obra considerada um clássico na historiografia da Inquisição no Brasil é a
tese de Laura de Mello e Souza O diabo e a Terra de Santa Cruz (1986), no qual as
práticas de feitiçaria na colônia são investigadas em comparação com o que ocorria
na Europa entre os séculos XVI e XVIII. Já no final da década de 1980 contamos
com o importante trabalho de Ronaldo Vainfas – Trópico de Pecados: moral,
sexualidade e Inquisição no Brasil (1989) – em que são esboçadas as condutas
morais e sexuais dos colonos e os modelos comportamentais estabelecidos pela
Igreja da contrarreforma, que teve na Inquisição sua principal agência de
normatização. E, em se tratando da questão da sexualidade na Colônia, não
podemos também perder de vista os trabalhos de Luiz Mott que se direcionam em
investigar comportamentos sexuais desviantes, sobretudo sodomitas, em O Sexo
Proibido: virgens, gays e escravos nas garras da Inquisição (1989).
Cristãos novos (judaizantes ou não), feiticeiros, bígamos, adúlteros,
sodomitas, blasfemos, padres solicitadores, homens e mulheres de crenças e
comportamentos considerados heréticos foram interceptados pela atuação
inquisitorial e inscritos em documentos de processos, denúncias e confissões,
transformando-se em fontes históricas sobre as quais se constituiu a historiografia
acerca da presença da Inquisição na América Portuguesa. Entretanto, há outra
linha de investigação que também se formou e diz respeito ao aspecto institucional
da Inquisição e suas formas de atuação na Colônia. Neste sentido, evocamos o
historiador Bruno Feitler que em sua crítica à historiografia da Inquisição no
Brasil, afirma que os estudos inquisitoriais tem se especializado, em sua grande
Juarlyson Jhones S. de Souza
317 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
maioria, apenas nos grupos perseguidos pelo Santo Ofício sem levar em
consideração os aspectos estruturais de funcionamento do Tribunal no Brasil. Em
Nas malhas da consciência (2007) Feitler propõe:
Conectando a história da instituição, para não dizer a história institucional, à história das práticas e do sentimento religioso, pretendo mostrar que não se pode entender uma sem a outra, mesmo se aqui privilegiamos o estudo do funcionamento local do Santo Ofício, por muito tempo esquecido da historiografia, que privilegiou, nas poucas obras que se interessaram pelo tema, pelos números de presos e condenações, e pelo funcionamento interno e especificamente processual dos tribunais. (FEITLER, 2007, p. 12-13)
Bruno Feitler é um dos autores que representam a historiografia mais
recente acerca do aspecto institucional da Inquisição no Brasil. O autor buscou
investigar os mecanismos utilizados pelo Santo Ofício português na América
Portuguesa. Neste sentido, Feitler destaca que a Inquisição se apropriou da rede
eclesiástica que existia na Colônia por meio da colaboração dos cleros secular e
regular com o Santo Ofício. Demonstrando inicialmente como a Igreja funcionava
no Brasil a partir da malha paroquial e da maneira como os bispos dirigiam a Igreja
nos Trópicos entre os séculos XVI e XVIII, o autor destaca o papel dos oficiais que
atuavam na América Portuguesa em nome da Inquisição, descrevendo e analisando
as funções de notários, qualificadores, familiares, visitadores das naus, oficiais do
fisco e as relações entre as justiças eclesiástica e inquisitorial. Para compor sua
análise o autor se utilizou da leitura dos regimentos e editais que regulavam estas
instituições.
Mas, apesar de referenciarmos a nova historiografia institucional sobre o
Santo Ofício na América Portuguesa, não podemos deixar de dedicar espaço a
textos pioneiros nesta área de estudos, como a obra A Inquisição Portuguesa e a
Sociedade Colonial (1978) da historiadora Sônia A. Siqueira. A autora nos concede
uma análise a partir da lógica dos ajustamentos das instituições metropolitanas na
Colônia, dentre as quais é destacada o Tribunal da Inquisição, sua estrutura e seus
procedimentos nos Trópicos.
Devemos ter em vista, no entanto, alguns aspectos presentes na obra que
refletem o próprio desenvolvimento dos estudos históricos no Brasil durante a
Representações historiográficas
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
década de 1970. A autora insere sua análise a partir do binômio metrópole-colônia
– elemento norteador dos estudos coloniais da época –, buscando identificar se a
Colônia forjou uma mentalidade autêntica ou apenas “decalque” da cultura
metropolitana. (SIQUEIRA, 1978, p. 14) É perceptível a tentativa de Siqueira de
realizar uma ‘história cultural’ do Santo Ofício, na medida em que se utiliza da
análise desta instituição e seu modo de atuação e procedimentos para
compreender a mentalidade colonial. Neste ponto em particular, referenciamos a
utilização da categoria “mentalidade” que reflete mais uma vez o estado do debate
historiográfico da época, no qual esta noção era amplamente utilizada pelos
historiadores que buscavam investigar o aspecto cultural das sociedades. Bem
sabemos que desde a década de 1970 os estudos historiográficos tem avançado no
sentido de historicizar a realidade social de maneira mais complexa e
multifacetada. Tanto o binômio metrópole-colônia como a noção de mentalidade
foram sistematicamente criticada pela historiografia nos últimos tempos. Mas, não
podemos deixar de considerar a importância do trabalho de Sônia Siqueira que
sempre é mencionado em obras recentes que se dedicam à História Institucional
da Inquisição Portuguesa.
Outra obra de relevância significativa deve também ser considerada pela
precisão da análise nela presente. Agentes da Fé: Familiares da Inquisição
Portuguesa no Brasil Colonial (2006) da historiadora Daniela Buono Calainho traça
o perfil social de um grupo específico importantíssimo para a atuação do Santo
Ofício na América Portuguesa. Segundo Calainho, os Familiares eram compostos
por indivíduos que praticavam o comércio e não apresentavam ‘impureza de
sangue’, ou seja, não possuíam entre seus antepassados judeus, negros, índios e
mouros. (CALAINHO, 2006). A compreensão deste grupo torna-se fulcral na
medida em que se trata de sujeitos que eram envolvidos com a desprestigiosa
atividade mercantil e, por este motivo, não gozavam de status nobiliárquico. Tais
comerciantes buscavam se associar ao Santo Ofício em troca do prestígio social que
o cargo de familiar significava. Ao perceber estas nuances, a autora aprofunda a
relevância do estudo ao mostrar que, através da atuação dos familiares, o Santo
Ofício fazia valer sua vigilância na sociedade colonial, tendo em vista a não
existência de um Tribunal próprio no Brasil. Os familiares do Santo Ofício eram
Juarlyson Jhones S. de Souza
319 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
responsáveis por denunciar comportamentos heterodoxos que estavam sob a
jurisdição inquisitorial, além de efetuar prisões em nome da Inquisição. Eram os
olhos, os ouvidos e os braços da Santa Inquisição na América Portuguesa. Daniela
Calainho nesta obra envereda claramente pela História Social das Instituições
abrindo mais um campo de abordagens com relação à historiografia da presença
da Inquisição na Colônia.
Além das obras que esboçamos, existem outras que mereciam semelhante
destaque, entretanto, buscamos realizar uma amostra que oferecesse o que há de
fundamental na área dos estudos inquisitoriais em seu desenvolvimento desde a
década de 1970. A Inquisição tem despertado o interesse de pesquisadores que
encontram nela várias formas de abordagens, com objetos de estudos diversos.
Optamos, neste tópico em específico, por realizar uma análise historiográfica mais
enumerativa, afinal conduzir uma crítica historiográfica em meio à multiplicidade
dos estudos existentes sobre o tema demandaria um esforço que talvez não
coubesse no espaço deste artigo, pois além da historiografia brasileira, há a
produção dos historiadores portugueses sobre a Inquisição, que não poderíamos
perder de vista. Mas, não nos furtaremos em demonstrar uma discussão e crítica
historiográfica mais precisa no momento em que trataremos das obras acerca dos
cristãos novos. Isto porque nossa pesquisa de mestrado direciona-se às trajetórias
tecidas por alguns judaizantes na capitania de Pernambuco no século XVI. Além
disso, faz-se necessário assinalar que foramos cristãos novos o principal alvo da
Inquisição Portuguesa, por motivos variados, os quais buscaremos traçar mais
adiante.
Os cristãos novos e a historiografia: uma crítica
Os cristãos novos que viveram nas capitanias do açúcar a partir do século
XVI são originados a partir do episódio histórico de conversão forçada dos judeus
portugueses ao Cristianismo durante o reinado de D. Manuel em 1497. A conversão
forçada é discutida pela historiografia como tendo interesses políticos e
econômicos relevantes para o contexto da época. D. Manoel estava pretendendo se
casar com Maria de Aragão,filha dos reis católicos da Espanha, mas a condição
Representações historiográficas
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
imposta seria de que D. Manuel pusesse em prática a política de Estado vigente na
Espanha de expulsão dos judeus. O caso português seria ainda mais delicado, pois
os judeus estavam integrados à vida social, política e econômica do reino de forma
significativa.
Em Portugal havia a extrema dependência da mão de obra judaica
especialmente porque o contingente populacional de Portugal era bem menor que
o da Espanha. Intelectuais judeus trabalharam no desenvolvimento técnico que
seria decisivo para a expansão ultramarina efetuada por Portugal. Além disso, o
comércio exercido pelos judeus era importante para a vitalidade econômica do
reino. A expulsão significaria uma perda tanto em recursos humanos, como em
recursos financeiros. (LAVAJO, 1998). D. Manuel manobrou as estruturas sociais e
políticas de modo a ordenar a expulsão dos judeus dificultando-lhes o acesso aos
portos estabelecidos para saída do reino. Diminuindo cada vez mais o número de
portos de saída até não permitir a saída de mais nenhum judeu antes do prazo
concedido, D. Manuel ordena que todos os judeus do reino se convertam ao
catolicismo, por meio do batismo forçado. Era o caminho pelo qual o monarca
português encontrou de não perder seus súditos de origem judaica pela
importância que eles tinham para o reino e, ao mesmo tempo, de atender a
determinação dos reis espanhóis para a efetivação do seu casamento.
A conversão forçada gerou a figura do cristão novo dentro do império
português. Alguns adotaram o cristianismo de forma sincera e tentaram usar os
mecanismos sociais necessários para se integrarem à sociedade católica. Outros
ainda o fizeram apenas para sua segurança praticando a religião judaica no
recôndito dos seus lares, fenômeno conhecido como criptojudaísmo7. Dessa forma,
os cristãos novos foram se perpetuando, desenvolvendo e exercendo várias
atividades nas possessões do império marítimo português. A efetivação da
colonização da América Portuguesa a partir de 1530 trouxe muitos cristãos novos,
7Segundo o historiador Charles Boxer: “Não havia em Portugal nenhum rabino em exercício, não se permitia a circulação de nenhum livro ou manuscrito hebraico, e, em duas ou três gerações, a grande maioria dos chamados cristãos novos provavelmente já se constituía de genuínos católicos romanos praticantes (e não só exteriormente). A pequena maioria que aderia secretamente ao que acreditava ser a Lei de Moisés conhecia pouco mais do que simples práticas ritualísticas, como vestir roupas de linho limpas aos sábados, abster-se de comer carne de porco, mariscos etc., e guardar a P|scoa dos judeus em vez da cristã”. (BOXER, 2002, p. 279-280)
Juarlyson Jhones S. de Souza
321 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
que distantes do controle central da Igreja e do Estado praticaram com maior
mobilidade costumes e hábitos da religião judaica, que a cada geração se esvaziava
pela ausência de uma formação religiosa consistente no judaísmo. A prática de
elementos da religião judaica na Colônia foi tão evidente, devido à mobilidade e as
condições de pouco controle e vigilância existentes na Colônia, que levou muitos
colonos, cristãos velhos e novos, a denunciarem os cristãos novos judaizantes à
Inquisição, quando da primeira visitação desta na América Portuguesa já no século
XVI.
Gilberto Freyre ao analisar os aspectos referentes ao perfil da figura do
colonizador em Casa Grande & Senzala nos informa sobre a formação étnica do
povo português. Freyre afirma que o “estoque semita” seria um dos elementos
responsáveis pela consolidação da colonização portuguesa em vastas regiões,
como na América, África e Ásia, pois os semitas eram “gente de uma mobilidade, de
uma plasticidade de uma adaptabilidade tanto social como física que facilmente se
surpreendem no português navegador e cosmopolita do século XV”. (FREYRE,
2006, p. 69). Ao mencionar os semitas, certamente Freyre aponta para a presença
judaica e muçulmana na Península Ibérica.
Em busca de encontrar o fator primordial da colonização no Brasil, Freyre
entroniza a família de modelo patriarcal como sendo responsável pela
consolidação da colonização e pela formação da sociedade brasileira. Talvez as
características de “plasticidade” e de “mobilidade” pelas quais Freyre definiu os de
origem semita, não se encaixassem para explicar o aspecto fixo da formação
familiar. Freyre acentua a questão familiar ao descartar outras atuações na
colonização do Brasil como também sendo significativas.
A colonização por indivíduos – soldados de fortuna, aventureiros, degredados, cristãos novos fugidos à perseguição religiosa, náufragos, traficantes de escravos, de papagaios e de madeira – quase não deixou traço na plástica econômica do Brasil. Ficou tão no raso, tão à superfície e durou tão pouco que política e economicamente esse povoamento irregular e à toa não chegou a definir-se em sistema colonizador. (FREYRE, 2006, p. 81) (grifo nosso)
Representações historiográficas
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
Se verificarmos a abordagem de outros autores como José Antônio
Gonsalves de Mello8 e José Alexandre Ribemboim9 perceberemos o
desenvolvimento dos estudos históricos que tratam da presença e participação dos
cristãos novos na sociedade colonial. Em Gente da Nação, Gonsalves de Mello
descreve a partir de um consistente aparato documental a atuação dos cristãos
novos durante o Pernambuco colonial. Ao relacionar os cristãos novos com a
produção e comercialização do açúcar – principal atividade econômica da época –
Gonsalves de Mello nos informa o seguinte:
(...) Diogo Fernandes e Pedro Álvares Madeira são os dois cristãos novos (ambos acusados de judaizantes) que pioneiramente estão ligados à agroindústria açucareira em Pernambuco. Depois deles outros cristãos novos na segunda metade do século XVI foram aqui senhores de engenho (...). No início do século seguinte esse número aumentou. (...) Muito superior era o número dos que participavam de atividades comerciais ligadas quase que exclusivamente ao açúcar. (MELLO, 1990, p. 8-9)
Nos capítulos que compõem Gente de Nação, Gonsalves de Mello expõe a
figura de João Nunes Correa que se destacava como proprietário de terras e
onzeneiro10, sendo, portanto dono de uma das “maiores fortunas existentes em
Pernambuco (...) nos últimos anos do século XVI”. (MELLO, 1990, p. 51) Há também
um capítulo dedicado à família constituída por Branca Dias e Diogo Fernandes,
donos do engenho Camaragibe, o que confirma a atenção especial dada por
Gilberto Freyre às famílias proprietárias de terras, mas que ao mesmo tempo a
rebate pelo seu reducionismo ao relegar a participação dos cristãos novos à
categoria dos “individuais”.
O espaço negado por Freyre aos cristãos novos na economia colonial é
concedido por outros autores além de Gonsalves de Mello. José Alexandre
Ribemboim11 nos concede uma relação de senhores de engenho de origem judaica
no Pernambuco colonial além de referenciar a atuação destes nos mais diversos
8MELO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: cristãos novos e judeus em Pernambuco, 1542-1654. Recife: FUNDAJ, Editora Massangana, 1990. 9RIBEMBOIM, José Alexandre. Senhores de Engenho: judeus em Pernambuco colonial, 1542-1654. Ed. do Autor: Recife, 2000. 10“Entendia-se por onzena o ganho excessivo tirado do dinheiro, acima do geralmente adotado”. (MELLO, 1990, pág. 66) 11RIBEMBOIM, José Alexandre. Op. Cit.
Juarlyson Jhones S. de Souza
323 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
setores da sociedade. (RIBEMBOIM, 2000) Anita Novinsky em Cristãos Novos na
Bahia12 também atesta a participação dos cristãos novos nas diversas atividades
desenvolvidas na época colonial destacando a Bahia como palco desta participação.
Novinsky apresenta argumentos que desconstroem a típica visão do cristão novo
apenas relacionado { pr|tica mercantil, portando “mobilidade” e “plasticidade” em
sua essência. Na Bahia:
Recebiam os cristãos novos terras em sesmarias, possuíam latifúndios e numerosas propriedades. Alguns chegaram a alcançar situação extremamente privilegiada do ponto de vista econômico: eram senhores de engenho e negociavam o açúcar que produziam. Galgaram posições representativas na vida social e política, eram solicitados para importantes decisões na Câmara, procurados como conselheiros e financistas. (NOVINSKY, 1992, p. 60)
Numa comparação entre os interesses e as atividades desenvolvidas pelos
cristãos novos na Bahia durante a época colonial, para Novinsky, não se
diferenciava em outras regiões, como nos confirmam Gonsalves de Mello e
Ribemboim analisando os cristãos novos em Pernambuco. Novinsky destaca
principalmente a produção açucareira e seu comércio. Essas considerações nos
fizeram refletir sobre a afirmação de Gilberto Freyre na qual os cristãos novos
(dentre outros grupos) não deixaram traços na economia colonial.
Gilberto Freyre cita os cristãos novos quando faz referencia também aos
conflitos religiosos existentes na Época Moderna. Os cristãos novos são
representados como uma minoria “acomodatícia e suave”, portanto, não
perturbadora da unidade no Império Português e por consequência, no Brasil
(FREYRE, 2006, p. 91). Tais termos parecem desacentuar a discriminação não
somente aos cristãos novos, mas também a outros grupos, que não se deu apenas
por meio da Inquisição, mas também em termos sociais. Isso se confirma quando
Freyre menciona que “o Brasil formou-se, despreocupados os seus colonizadores
da unidade ou pureza de raça. (...) o português esquece raça e considera seu igual
aquele que tem religião igual { que professa”. (FREYRE, 2006, p. 91). Entretanto,
autores como Charles Boxer13 e Anita Novinsky14 contestam esta tese ao
12NOVINSKY, Anita. Cristãos novos na Bahia: a Inquisição. Perspectiva: São Paulo, 1992. 13BOXER, Charles. Op. Cit. 14NOVINSKY, Anita. Op. Cit.
Representações historiográficas
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
referenciarem os estatutos de pureza de sangue e os mecanismos jurídicos
utilizados no império português com o objetivo de discriminar não somente o
cristão novo, como também outros grupos. Contestando as afirmações de Gilberto
Freyre, Boxer registra:
Uma lei promulgada em agosto de 1671 reafirmava que indivíduos de sangue judeu, mourisco ou mulato, ou casados com uma mulher nessas condições, não tinham condições para ocupar nenhum posto oficial ou cargo público; ainda ordenava que fossem reforçados os procedimentos existentes destinados a impedir que isso acontecesse. No geral, os negros e os criptojudeus suportaram o peso do preconceito e da perseguição raciais no mundo português. (BOXER, 2002, p. 275) (grifo nosso)
Charles Boxer aprofunda a questão ao mencionar que a discriminação racial
estava presentes em todos os setores da sociedade no Império Português. Na
admissão em ordens religiosas, “nas forças armadas, na administração municipal,
nas corporações de ofício” (BOXER, 2002, p. 274). A discriminação era capitaneada
inclusive pelo Estado português. Boxer nos informa que quando Pombal em 1773
induziu o rei D. José a promulgar dois decretos extinguindo a exigência de “pureza
de sangue” para ocupação de cargos na administração e a distinção entre cristãos
novos e velhos na sociedade portuguesa, a figura dos cristãos novos
“desapareceram quase do dia para noite, como se nunca tivessem existido”.
(BOXER, 2002, p. 283). Para Boxer a “implementação imediata dos decretos de
1773 mostrou que o espectro judaico era em grande parte criação da ação
repressiva da Inquisição e das leis que discriminavam os cristãos novos”. (BOXER,
2002, p. 284).
Anita Novinsky também nos informa sobre a discriminação aos cristãos
novos, mas a assinala noutros termos. Novinsky confirma a afirmação de Charles
Boxer ao afirmar que “o cristão novo herege, criptojudeu ou ‘judaizante’ foi um
mito criado pela Inquisição”. (NOVINSKY, 1992, p. 5) A autora faz referências { luta
de classes como engrenagem motora de sua narrativa, elucidando o momento em
que a historiografia brasileira era influenciada pelo materialismo histórico. Anita
Novisnky não compreende a perseguição aos cristãos novos dentro de uma
perspectiva apenas religiosa, mas considera que esta foi consequência de um
evidente conflito entre a efervescente burguesia mercantil, formada em larga
Juarlyson Jhones S. de Souza
325 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
medida por cristãos novos, e os interesses entre a aristocracia que tinha como seu
instrumento de luta o Tribunal do Santo Ofício que tentava inibir o
desenvolvimento da classe burguesa no processo histórico lusitano. Além desses
aspectos, podemos citar o caráter psicológico da abordagem de Anita Novinsky. A
autora buscou compreender o dilema vivido por cristãos novos que não
conseguiam encontrar lugar em dois mundos distintos, forjando uma dupla
identidade social, a de cristão e a de judeu: “Vivia no primeiro sem ser aceito, era
identificado com o segundo sem o conhecer. Se era judeu para os cristãos, o que
era para os judeus?” (NOVINSKY, 1992, p. 7)
Consideramos a importância dos estudos de Gilberto Freyre que
inauguraram uma nova forma de reflexão nos estudos coloniais, servindo de
modelo teórico para a historiografia subsequente à Casa Grande & Senzala. Mas,
consideramos que a crítica precisa ser feita no sentido de elucidar aspectos que
ainda não foram tão percebidos no texto de Freyre, como o que buscamos traçar a
respeito dos cristãos novos. Devemos considerar também que Freyre em sua
análise não possui como foco de seu trabalho os cristãos novos, mas os tais são
mencionados na análise em diversos momentos, e nos utilizamos destes
‘fragmentos’ para construir a nossa percepção. Talvez a grande contribuição dos
estudos de Freyre seja o fato dele não servir de base apenas para uma
historiografia que se alinha ao seu pensamento, mas também à produção
historiográfica que a rebate, e se consolida a partir da crítica a modelos teóricos
como o proposto em sua obra. A maneira como os cristãos novos são mencionados
em Freyre diz respeito a uma representação historiográfica que vai despertar
obras especializadas que lhes serão contrárias, e que por sua vez operam e
configuram novas representações. Este aspecto é o que nós buscamos mostrar
durante todo este trabalho. A historiografia forja representações que são
revisionadas, alteradas, substituídas a cada geração de historiadores,
demonstrando, portanto, a própria historicidade do conhecimento histórico, que se
manifesta de acordo com as necessidades e as demandas de cada época.
Sintetizar estas formas de representação e fazê-las dialogar, além identificar
seus mecanismos internos de operação historiográfica constituem num exercício
que nos serve de referência para uma reflexão crítica que de alguma maneira se
Representações historiográficas
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 310-328.
refletirá em nosso trabalho de pesquisa. Seja na forma de embasamento e
percepção de espaços ainda não tão explorados pelos historiadores já consagrados,
seja também na prudência quando do ato de avançar na análise cuidando de evitar
determinados equívocos interpretativos. Esta reflexão se torna também
importante na medida em que percebemos o fato de talvez futura ou mesmo
contemporaneamente, nossa forma de compreender e analisar a historiografia
sobre o tema seja também colocado em questionamento.
A partir dessas considerações realizadas por meio de nossa reflexão
historiográfica, característica do cotidiano da pesquisa histórica, percebe-se a
pluralidade de abordagens sobre a temática dos cristãos novos e Inquisição no
Brasil. A produção historiográfica é ampla, não sendo suficiente o espaço deste
trabalho para conter reflexões ainda pertinentes que compõem a historiografia
sobre o tema. Entretanto, há a necessidade de se revisitar textos já consagrados,
aprendendo com suas contribuições. Deixamos, portanto, nossa contribuição no
campo da reflexão historiográfica a partir do diálogo estabelecido entre os textos
analisados apontando para o exercício de revisão da produção histórica sempre
praticada, mas ainda necessária como argamassa solidificadora sobre as quais se
edificam ideias, abordagens e pesquisas inovadoras.
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 329-345.
O PODER TEM COR: A IMPLEMENTAÇÃO DA PRODUÇÃO DA COCHONILHA NO IMPÉRIO PORTUGUÊS SETECENTISTA1
Pamella Sue Zaroski2
Resumo: O século XVIII foi marcado em Portugal pela propagação de um
conhecimento científico que em grande medida visava solucionar os problemas
econômicos que o reino vinha enfrentando. Dessa forma, o Império Português
passou a incentivar a implantação de novas espécies naturais, como por exemplo, a
cultura da cochonilha, um inseto produtor de um corante carmim, e que era
comercializado pelos espanhóis por um alto custo na Europa. Este ensaio visa
apresentar de forma breve, como se deu a implementação da cochonilha no
Império Português, analisando o plano sistematizado por Dom Rodrigo de Souza
Coutinho sobre as reformas econômicas e a relação destas propostas com o envio
do jovem naturalista Hipólito José da Costa aos Estados Unidos.
Palavras – chave: Império Português. Cochonilhas. Urumbebas. Hipólito da Costa.
Abstract: The eighteenth century was marked by Portugal in spreading scientific
knowledge largely aimed at solving the economic problems that the kingdom was
facing. Thus, the Portuguese empire began to encourage the deployment of new
natural species, such as the culture of cochineal, an insect producer of a carmine
dye, which was marketed by the Spaniards by a high cost in Europe. This essay
aims to present briefly, how was the implementation of cochineal in the
Portuguese Empire, analyzing the plan systematized by Don Rodrigo de Souza
Coutinho on economic reforms and the relationship of these proposals by sending
the young naturalist Hipólito José da Costa to the United States.
Keywords: Mealybugs. Urumbebas. Hipólito da Costa. Portuguese Empire.
1 Recebido em 11/10/2013. Aprovado em 15/11/2013.
2 Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Paraná,
integrada à linha de pesquisa Espaço e Sociabilidades. Possui graduação em História – Licenciatura Plena pela Unicentro. Email: [email protected].
O poder tem cor
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 329-345.
O século XVIII foi marcado em Portugal pela propagação de um
conhecimento científico, que em grande medida visava solucionar os problemas
econômicos que o reino vinha enfrentando. As ideias iluministas difundidas no
Império neste contexto, pregavam um utilitarismo que defendia que a natureza
não deveria ser compreendida apenas enquanto uma criação divina, mas sim que
ela possuía um caráter eminentemente prático e que o homem deveria conhecê-la
e utilizar suas propriedades naturais para o desenvolvimento econômico do reino.
Nesse sentido Portugal passou a incentivar a criação de uma rede de informações
sustentada por diversos indivíduos envolvidos na administração imperial, que
deveriam auxiliar o Império a aprimorar os conhecimentos científicos sobre seus
domínios territoriais.
Diante disso, a cultura da cochonilha, um inseto produtor de um corante
carmim, e que era comercializado pelos espanhóis por um alto custo na Europa,
passou a ser cobiçado em Portugal. Buscando acirrar a concorrência entre as
Coroas Ibéricas, Portugal elaborou diversas estratégias para implementar esta
cultura nas terras brasileiras. Vice-reis, governadores de província, religiosos,
cientistas e viajantes naturalistas passaram a contribuir com as iniciativas reais,
através da publicação de obras científicas, do incentivo das produções do corante,
e da obtenção do maior número de informações sobre esta espécie.
Este artigo visa apresentar de forma breve, como se deu a implementação
da cochonilha no Império Português, analisando o plano sistematizado por Dom
Rodrigo de Souza Coutinho sobre as reformas econômicas e a relação destas
propostas com o envio do jovem naturalista Hipólito José da Costa aos Estados
Unidos, no aprimoramento das informações sobre a cochonilha.
O Império Português vivenciou na segunda metade do século XVIII uma
série de modificações políticas, econômicas e institucionais que buscavam em
grande medida solucionar problemas práticos do reino. A economia portuguesa
neste contexto, estava fortemente debilitada devido ao grande número de
importações, inclusive em gêneros de subsistência e a diminuição de plantações de
cereais, como o trigo, que contribuíam para aumentar a dependência de Portugal
com países estrangeiros (FERRAZ, 2008, p. 15). A crescente concorrência com
outros Estados Europeus como Espanha, Inglaterra e França, por exemplo,
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demonstrava aos ministros e autoridades a necessidade de adotar novas
estratégias políticas que possibilitassem um avanço econômico.
A propagação de ideais iluministas difundidos em toda a Europa, e
incorporados em Portugal através das “reformas pombalinas” promoveu um novo
olhar para a natureza que deixava de ser concebida apenas enquanto criação
divina, mas passou a ser vista como um instrumento de potencialidade capaz de
auxiliar no desenvolvimento econômico do reino. Através de uma metodologia
empírica, intelectuais iluministas demonstraram que a natureza tinha um caráter
prático e que o homem deveria conhecê-la e utilizar em seu próprio benefício.
Para a historiadora Lorelai Kury (2004) existia um interesse do Império
Português em reconhecer os limites físicos de sua soberania e as potencialidades
econômicas de seus domínios, visando recuperar o poder econômico que possuíra
por séculos e almejando o progresso. Conhecer cientificamente as principais
colônias e suas propriedades naturais era mais do que uma inovação do saber
científico, foi uma preocupação do Estado em utilizar esse saber de modo prático,
visando um desenvolvimento econômico, no qual Portugal já estava parcialmente
debilitado.
Portugal precisava superar o desconhecido, que era tido como um sinal de
atraso e, nesse intuito passou a incentivar a criação de uma rede de informações
que auxiliasse a aprimorar os conhecimentos sobre seus domínios territoriais.
Para a historiadora Ângela Domingues (2001) a criação e sustentação dessa rede
demonstrava uma estratégia da coroa portuguesa, em cooptar todos os indivíduos
envolvidos na administração imperial para auxiliar o reino a coletar informações
de interesse cientifico. Incentivados pela coroa portuguesa funcionários, cientistas,
ministros, soldados, militares, degredados, eclesiásticos auxiliaram a ampliar o
conhecimento sobre as potencialidades ultramarinas. Além dos funcionários
enviados pela coroa, contava-se com a colaboração de ameríndios, africanos e
asiáticos, esses nativos tinham um amplo conhecimento sobre a natureza dos
territórios que habitavam, dominando não apenas suas propriedades naturais, mas
também a sua utilização, podendo informar aos funcionários reais potencialidades
que sozinhos dificilmente descobririam.
O poder tem cor
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 329-345.
Outra importante iniciativa promovida pela Coroa Portuguesa foi o
incentivo e o financiamento às viagens naturalistas. Definidas pela historiografia
como viagens filosóficas, estas expedições possuíam um caráter cientifico e
poderiam ser realizadas por um naturalista ou uma equipe de cientistas, reunindo
botânicos, pintores, naturalistas, químicos, etc. Os jovens cientistas lusitanos
enviados nessas expedições eram, em sua grande maioria, estudantes recém-
formados pela Universidade de Coimbra, e após concluírem seus cursos eram
enviados para diferentes domínios do Império, a fim de observar, catalogar e
descrever todas as potencialidades que avistassem. Suas observações deveriam ser
remetidas à Coroa através de relatos de viagem que informassem todos os
caminhos da expedição, além de outros elementos que não restringiam-se a forma
textual, como cartas geográficas e topográficas; desenhos de animais e plantas;
paisagens que retratassem a natureza exótica; sementes de culturas coletadas,
entre outros.
Ao enviar esses naturalistas para diferentes locais do Império a Coroa
buscava obter o máximo de informações minuciosas sobre as potencialidades do
reino. Predominava uma concepção iluminista, a qual apontava que o
conhecimento deveria ter um caráter eminentemente prático e que, portanto essas
informações coletadas não deveriam ficar restritas apenas a gabinetes científicos
mais atingir toda a estrutura do Império Português, desde a metrópole até os
sertões brasileiros. Buscava-se acima de tudo a descoberta de novas culturas e
novos métodos de plantio, que pudessem ser adaptadas e produzidas em grande
escala na colônia brasileira, e desenvolvessem uma rentabilidade econômica para o
reino.
Nesta busca pela implementação de novas culturas, os portugueses
acabaram desenvolvendo uma predileção pela cochonilha produtora de uma
pigmentação carmim que era utilizada no tingimento de tecidos e comercializado
por um alto valor no mercado europeu. Segundo Márcia Helena Ferraz, a
cochonilha é um inseto que se prolifera na planta urumbeba, classificava por Lineu
como uma variedade de cactus opuntia, o macho é o voador, enquanto que a fêmea
fixa-se na planta, onde cresce e se reproduz, em um ciclo de dura
aproximadamente dois meses. O processo de obtenção do corante poderia variar
Pamella Sue Zaroski
333 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 329-345.
entre dois métodos, o primeiro consistia em varrer com pinceis para uma vasilha
ou pano todas as fêmeas que já tivessem atingido a fase adulta e submergi-las em
água quente por dois ou três minutos, e em seguida seca-las ao sol, ou também
através do processo de torrefação onde os insetos poderiam ser jogados ao fogo ou
passadas a ferro, contudo esse segundo método era pouco utilizado por acreditar-
se que a obtenção do corante poderia ser menor (FERRAZ, 2007).
A cultura da cochonilha começou a ser produzida em 1523, quando os
espanhóis observaram que os nativos indígenas do México utilizavam o inseto para
"pintarem suas casas e seus algodões" e informaram a corte sobre a beleza e
utilidade do corante. As autoridades interessaram-se em investir nesta produção e
passaram a promover a multiplicação do inseto, tal iniciativa rendeu à Espanha um
monopólio comercial que perdurou por quase trezentos anos e que invejava
diversos outros Estados Europeus, incluindo Portugal.
A cochonilha, ou figueira do Inferno como definiam os portugueses,
integrava o rol de corantes que se buscou incrementar na economia lusitana. Com
a escassez dos métodos de extração do corante carmim pela árvore do pau-brasil, a
Coroa passou a observar outros métodos de obtenção, e nesse sentido a cochonilha
passou a ser valorizada. Segundo Cecília Maria Whestphalen (1979), no Brasil
Meridional, as primeiras tentativas de implementação da cochonilha datam de
1782 quando o vice-rei, o 2º marquês do Lavradio prescreveu instruções
determinando que os moradores de Santa Catarina e Rio Grande do Sul iniciassem
a plantação de urumbebas na região. Em Santa Catarina tais ordens foram
cumpridas com certa facilidade, sendo implementadas nos governos de Francisco
de Souza e Pedro Antônio, sofrendo uma interrupção durante as invasões
espanholas, mas sendo retomada em 1786, no governo de José Pereira Pinto.
Contudo, no Rio Grande do Sul a produção da cochonilha foi relativamente
inferior se comparada a Santa Catarina, e encontrou fatores agravantes que
atrapalharam na implantação desta cultura. As exigências técnicas apresentadas
pela Coroa e o atraso dos pagamentos aos produtores do inseto, devido a falta de
verbas disponíveis nos cofres do governo constituiam um fator desestimulante
para as autoridades da capitania. Além disso, um dos principais motivos apontados
pelos governadores era o desconhecimento dos métodos de preparo do corante.
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Em um ofício de 1782, endereçado ao governador Sebastião Xavier da Veiga
Cabral, o vice-rei Vasconcellos e Souza demonstra descontentamento por até
aquele momento não ter recebido notícias sobre a cultura dos urumbebas naquela
região. Em outro ofício endereçado ao vice-rei, Cabral aponta que uma das
principais razões para tal fato, é que embora houvesse inúmeras terras onde os
urumbebas eram cultivados, desconhecia-se seu método de preparo.
de tal sorte que algumas fazendas não têm outro gênero de cerca, sendo este um dos melhores que se tem descoberto, e, a qual em poucos anos se faz impermeável; ignora-se, porém, inteiramente o método de tirar utilidade desta planta, não obstante se lhe perceber principalmente nas mais antigas, suficientemente quantidade da referida cochonilha. (CABRAL, 1782, p.?)
Cabe aqui destacar que no Paraná, Comarca da Capitania de São Paulo a
cultura da cochonilha e urumbeba era vista com grande importância. De tal forma,
que nas Listas de ordenanças da vila, no item relativo a descrever as propriedades
dos fogos recenseados eram indicados as quantidades de pés de urumbebas que
cada família possuía.
Percebendo as dificuldades encontradas na implementação da cochonilha,
as autoridades lusitanas mobilizavam diversos indivíduos envolvidos na
administração colonial para aprimorar seus conhecimentos sobre o inseto. Nesse
sentido surgem novas tentativas de incremento da produção, agora coordenadas
pelo vice-rei Luiz de Vasconcellos e Souza, que buscava promover a plantação de
urumbebas no Rio de Janeiro. Contudo a falta de insetos na região levava a
necessidade de remetê-los do Rio Grande do Sul, processo que acabava por
prejudicar a produção e não solucionava a escassez dos insetos.
Além das tentativas de implantação dos vice-reis, outros indivíduos
buscaram solucionar os problemas da produção do corante, como por exemplo,
José Saldanha, um funcionário real, que participava da demarcação de limites na
América Meridional e produziu um estudo intitulado "Reflexão sobre o método de
aumentar a produção da cochonilha nesta Capitania do Rio Grande do Sul. No ano de
1799" onde aponta que os urumbebas eram cultivados nos povoados muito mais
abundantes do que as cultivadas no campo.
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Tendo em vista a forte propagação em Portugal, de um conhecimento
científico neste momento é evidente que obras deste cunho começaram a ser
produzidas sobre a cochonilha. Exemplo disto é a instrução emitida por Ferreira
(1778) para o marquês de Angeja, onde ele descreve minuciosamente o que era o
inseto, como se parecia, e onde poderia ser produzida. Em 1789, Joaquim de
Amorin Castro, um naturalista baiano que havia estudado na Universidade de
Coimbra, produziu uma obra esclarecedora sobre a urumbeba e sua utilidades,
intitulada Historia Natural do Brasil segundo o sistema de Linnêo com descrições de
alguns animais e observações sobre a cochonilha (CRUZ, 2009).
Contudo, dentre as diversas observações científicas lusitanas sobre a
cultura da cochonilha destacamos uma em específico, a realizada pelo naturalista
Hipólito da Costa em sua expedição pelos Estados Unidos e México nos anos de
1798 e 1799. Hipólito José da Costa Pereira Furtado de Mendonça foi um entre os
tantos jovens coimbrões que participaram das viagens filosóficas. Nascido na
Colônia de Sacramento, uma possessão portuguesa, era filho do Alferes Félix José
da Costa e de D. Ana Pereira da Costa Mendonça, membros de aristocracia local.
Após concluir seus estudos iniciais no Brasil, mudou-se para Portugal para estudar
Leis, Filosofia e Matemática na Universidade de Coimbra, que nesse contexto já
havia passado pela reforma pombalina. Já formado recebeu a incumbência de
estudar assuntos referentes à agricultura e hidráulica dos Estados Unidos, em suas
observações deveria ater-se principalmente a prática de novas culturas, como o
tabaco, o algodão, o linho cânhamo, e, sobretudo ao cultivo da cochonilha
produzida no México.
Analisar esta expedição auxilia a compreender a ampla dimensão que as
estratégias portuguesas alcançaram. Ao enviar Hipólito da Costa para os Estados
Unidos, um território que não pertencia aos domínios lusitanos, a Coroa objetivava
adquirir conhecimento sobre novas culturas e novas técnicas agrícolas que
pudessem modernizar sua produção. A economia estadunidense desse período
possuía fortes influências tecnológicas vindas da ex-metrópole inglesa, que já
vivenciava as transformações advindas da Revolução Industrial e poderia possuir
técnicas que os portugueses desconhecessem. Além disso, o território para qual ele
é enviado faz divisa com o México, e tal fator poderia contribuir para que Costa
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tivesse acesso as plantações espanholas da urumbeba, verificasse se elas
diferenciavam-se das brasileiras e observa-se como elas eram preparadas. Essas
informações que eram de certa forma desconhecidas na Europa seriam de suma
importância para a concorrência que Portugal visava.
A expedição de Hipólito da Costa também demonstra que o Império
Português não limitou-se a enviar estes jovens naturalistas para expedições
restritas a parte brasileira do Império, nem tão pouco aos domínios lusitanos.
Segundo Cruz (2009) é de extrema importância que os historiadores ao analisar as
expedições realizadas pelos cientistas coimbrões, não se restrinjam a atuação
destes naturalistas apenas aos territórios brasileiros. Pois ao fazer isso, acabam-se
minimizando a dimensão alcançada pelas viagens filosóficas, que extrapolou os
limites da colônia do Brasil
Outro historiador que defende a importância de estudar a expedição de
Hipólito da Costa para compreender as reais dimensões das estratégias
portuguesas é o historiador norte americano Neil Safier. Segundo ele o estudo das
ciências luso-brasileiras do período joanino não deve restringir-se aos eventos
ocorridos em terras brasileiras, e que os historiadores ao abordarem estes temas
devem "enxergar espaços maiores cujas fronteiras, às vezes, são mais amplas e
sobretudo mais complexas do que a historiografia tradicional normalmente leva
em consideração" (SAFIER apud KURY; GESTEIRA, 2012, p. 10).
Outro aspecto notável da expedição de Costa é a relação desta viagem com
um plano sistemático de reformas econômicas idealizadas pelo Ministro Dom
Rodrigo de Souza Coutinho. A época da viagem de Hipólito da Costa, Coutinho
havia assumido há pouco tempo o cargo de Ministro dos Negócios e Domínios
Ultramarinos. Em setembro de 1796 o ministro foi convocado a deixar o cargo de
embaixador português da Sardenha para formular e aplicar algumas reformas que
já estavam sendo elaboradas por Luiz Pinto Coutinho, que até então era o
responsável pelos assuntos coloniais.
Ao assumir o cargo, Coutinho apresentou a Junta de Ministros do Estado um
discurso onde elaborava um plano sistemático de reformas na administração dos
assuntos da Fazenda e do Império Português. No discurso elaborado pelo ministro,
a necessidade de conhecer as principais culturas agrícolas existentes na natureza é
Pamella Sue Zaroski
337 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 329-345.
ressaltada e entre os principais intuitos reformistas que D. Rodrigo de Souza
Coutinho procuraria empreender destaca-se a tentativa de naturalizar no Brasil
todos os produtos que pudessem ser extraídos de outros países, tais como o
algodão, o café, o linho, o índigo, e a cochonilha. Segundo o historiador Kenneth
Maxwell, o discurso é apresentado pela primeira vez somente em 1798, após três
anos de estudo e planejamento sobre as práticas econômicas portuguesas, e fora
produzido baseado nas evidências, recomendações e informações práticas obtidas
por pesquisas produzidas por um grupo seleto de estudantes brasileiros
coimbrões que Dom Rodrigo havia selecionado (DIAS, 2007).
As reformas econômicas sistematizadas por Dom Rodrigo em seu discurso
articulavam-se à expedição de Hipólito da Costa através da instrução de viagem
que o ministro emitiu para o naturalista. A menos de 20 dias de o viajante
embarcar na corveta norte americano Willian, que partia de Lisboa rumo à
Filadélfia, Dom Rodrigo de Souza Coutinho endereçou-lhe uma instrução de
viagem, um documento de cunho essencialmente diplomático, dando ordens
expressas sobre indivíduos e autoridades que o naturalista deveria estabelecer
contato nos Estados Unidos. A instrução também determinava que o naturalista
dedicasse especial atenção às novas espécies agrícolas da região, observando
atentamente os métodos de utilização e os valores comerciais. Coutinho
determinou que o naturalista além de descrevê-las em um diário de viagem,
remetesse para a Coroa, se possível fosse, as suas sementes. Entre estas espécies
solicitadas pelo ministro, é a cochonilha que mais lhe interessa.
deve V. Mcê. procurar de acordo e auxiliado pelo nosso Ministro passar ao México e usando aí de suma moderação e modo, e disfarçando o grande objeto que o leva aos Domínios Espanhóis, deve V. Mcê. procurar instruir-se a trazer as melhores memórias: sobre a qualidade de inseto, cujo germe forma a cochonilha, e verificar se é o mesmo que nós temos no Rio de Janeiro e em Santa Catarina ( XAVIER, 1997, p. 43-45. )
Analisando o plano de reformas entregue à Junta de Ministros com a
instrução de viagem encaminhada a Hipólito da Costa é possível notar que assim
como outros ministros e autoridades portuguesas, Coutinho buscava solucionar os
problemas práticos do reino, e nesse sentido o envio de um jovem naturalista
O poder tem cor
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 329-345.
instruído auxiliaria a aprimorar os conhecimentos sobre dadas culturas que
Portugal buscava implementar em sua economia, especialmente a cochonilha. As
observações de Hipólito da Costa sobre esta cultura teriam uma importância
prática para o plano que o ministro estava traçando, pois ao percorrer os
territórios espanhóis o naturalista poderia coletar informações que auxiliassem na
implementação desta cultura no Brasil, encontrar respostas para as dúvidas que os
lusitanos possuíam sobre o inseto, além de descobrir se ambas as Coroas Ibéricas
cultivavam o mesmo tipo de cochonilha, e se seria cabível para Portugal tentar
travar uma concorrência comercial.
A historiadora Tânia Dias corrobora com a ideia de que a viagem de Hipólito
da Costa foi pensada dentro de um plano econômico maior que Dom Rodrigo e
outros ministros estavam traçando. Para ela, após Coutinho tomar conhecimento,
através da leitura de relatórios solicitados às mesas de inspeção da precariedade
das técnicas agrícolas praticadas no Império, percebeu a real necessidade de
modernizar a economia portuguesa, e para tanto adotou medidas prioritárias que
são expressas tanto no plano de reformas quanto nas instruções encaminhadas ao
naturalista. Ela defende que a viagem de Costa, foi elaborado com um cunho
explicitamente técnico, e preocupado com uma aplicação imediata e rentável para
o reino, o qual buscava aperfeiçoar, dinamizar e diversificar a economia colonial,
buscando conquistar novos mercados e recuperar um certo prestígio que havia
perdido.
Diante disso, gostaria de destacar que a expedição de um jovem naturalista
português para os Estados Unidos da América, não deve de forma alguma ser
considerada como um evento isolado e pouco expressivo. Compreender desta
forma a viagem, significa diminuir a capacidade política e administrativa
portuguesa dos setecentos. Embora não seja possível comprovar, podemos apontar
o fato de ter sido Hipólito da Costa, e não qualquer outro estudante de Coimbra
enviado nesta expedição, não foi uma escolha aleatória de Dom Rodrigo. O
naturalista era originário de uma região vizinha ao Rio Grande do Sul, província
que sofria problemas com a implementação da cultura da cochonilha. Desta
maneira, o que busca-se neste ensaio não é enaltecer a figura de Dom Rodrigo de
Souza Coutinho, enquanto um indivíduo que sozinho planejou e enviou o estudante
Pamella Sue Zaroski
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coimbrão em uma expedição naturalista, mas sim ressaltar a perspicácia do
Império Português, que diante de um quadro econômico problemático mobilizou
diversos sujeitos envolvidos na administração lusitana para cooptarem em suas
estratégias políticas.
Outro indivíduo que esteve envolvido nas estratégias políticas lusitanas e
contribuiu para enviar Hipólito da Costa em sua expedição, foi o frei José Mariano
da Conceição Veloso. Das duas instruções de viagem que o naturalista teria
recebido, uma dela teria sido produzida por Veloso. A instrução que permaneceu
inédita até 2008, sendo publicada por Safier (2008) consistia de uma carta, um
documento informal, se comparado à instrução que o Ministro do Ultramar lhe
enviou. Em sua carta, frei Veloso elaborou um pequeno manual de observação
dividido nos três reinos da natureza que Hipólito da Costa deveria estudar,
destacando a importância de observar e descrever a respeito de novas espécies
culturais tais como; o algodão, os pinheiros americanos, as vinhas ou ainda o uso
que os americanos faziam dos Búfalos.
Frei Veloso passou a atuar em Portugal nas últimas décadas do século XVIII,
quando fora encarregado pelo vice-rei, marquês do Lavradio, de coletar espécies
de plantas que seriam utilizadas para o Real Museu e Jardim Botânico da Ajuda.
Também trabalhou como diretor durante dois anos (1799-1801), da Casa Literária
Arco do Cego um empreendimento editorial que buscava facilitar a publicação de
obras de cunho científico em Portugal. Além disso, foi membro da Academia de
Ciências de Portugal, onde participou do projeto de edição de um inventário
ictiológico, juntamente com o naturalista italiano Domenicco Vandelli, onde ambos
buscavam estudar a História Natural dos domínios portugueses. Muito embora
Veloso não tivesse formação universitária, possuía uma especial predileção pelos
estudos de História Natural, chegando até mesmo a ministrar o ensino das
disciplinas de geometria e de História Natural. Entre as suas produções intelectuais
destacam-se as obras “Floræ Fluminensis” e “O Fazendeiro do Brasil”.
A predileção de Veloso pelos estudos referentes a História Natural, fez com
que o frei compartilhasse das mesmas preocupações que as autoridades
portuguesas, e procurasse demonstrar em seus estudos a necessidade e
importância do aprimoramento das técnicas agrícolas e da implementação de
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novas culturas. Contudo dentre as diversas espécies naturais que ocuparam a
atenção de Veloso, a que aqui mais nos interessa são suas considerações sobre a
cultura da cochonilha.
Os primeiros estudos do frei sobre esta cultura datam possivelmente de
1799, quando já ocupava o cargo de diretor de Arco do Cego, e publicou a memória
intitulada “Memoria sobre a cultura do urumbeba, e sobre a criação da cochonilha
extraída por M. Bertholet das observações feitas em Guaxaca por M. Thiery de
Menonville” (BERTHOLLET, 1798). O documento trata-se da tradução de um
extrato em francês de C. L Bertholet publicado em 1790 nos Annales de Chimie,
sobre as observações de seu conterrâneo Thiery de Menonville sobre a cultura da
cochonilha. Menonville foi um botânico frânces que em 1777, entrou ocultamente
em Vera Cruz e Oaxaca (México), a fim de aprender todas as etapas da produção do
corante e obter sementes do urumbeba. As observações do botânico tiveram uma
boa repercussão na França que publicou duas de suas produções, além de
influenciar outros autores a estudar a cochonilha, como é o caso de C. L. Bertholet.
No entanto, o que aqui nos importa é compreender o interesse de Frei Veloso
sobre estas observações.
A Memória publicada por Veloso constitui em dois trechos, o primeiro
escrito pelo próprio frei e o segundo tratando-se de um extrato da obra de
Bertholet. Nas páginas de autoria de Veloso ficam expressas suas intenções com a
publicação daquela obra, ou seja, o de incentivar a iniciativa que visava implantar a
cultura do urumbeba e do inseto da cochonilha nas terras tupiniquins. Para ele, o
Império Português deveria investir nesta cultura, que além de possuir um alto
valor comercial era produzida pelos espanhóis em condições climáticas similares
as que existiam no Brasil. Destaca ainda, que tal memória deveria ser espalhada
pelo Brasil e particularmente pelos povos da beira mar que possuíam terrenos
arenosos e que possibilitariam a implantação da cultura.
são para o Mexico huma riqueza mais segura que as suas minas de prata; pois se dão muitos paizes, em que este metal abunda, e só o Mexico produz a Cochonilha. Se as latitudes são as mesmas, porque não rivalizarmos aquella rica producção? Isto será devido aos cuidados de V. Alteza Real ( VELOSO, 1800, p. 6).
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Ao analisar a Memória publicada por Veloso, percebe-se que assim como
outros indivíduos envolvidos, direta ou indiretamente na administração
portuguesa, contribuíam para a formação de uma rede de informações, que buscava
a propagação de um conhecimento científico, cada qual da maneira que mais lhe
coubesse. Enquanto os ministros incumbiam-se de elaborar planos político-
administrativos dentro dos âmbitos da Corte Portuguesa, indivíduos localizados
nas franjas do Império cooptavam os agricultores locais para desenvolverem novos
processos de produção e novas espécies. Dentro de gabinetes científicos ilustrados
estudavam, analisavam e publicavam obras de cunho intelectual. Mas mais do que
isso, estes portugueses não se restringiam apenas aos seus gabinetes, mas
trocavam informações e conhecimento com outros sujeitos de outros impérios,
desconstruindo a concepção de que o Iluminismo tardio português era desconexo
com os outros iluminismos europeus.
Nessa vasta rede de informações os viajantes naturalistas portugueses
ocupavam uma responsabilidade importante, pois eram eles que se aventuravam
em territórios inóspitos e desconhecidos a fim de observar na prática, na natureza
local as propriedades naturais que teriam uma aplicação prática para o reino. As
experiências por eles vivenciadas, não teriam significância se os conhecimentos
adquiridos ao longo da expedição não servissem para um plano maior, e se não
fossem registrados em relatos de viagem, que possibilitassem para aqueles que por
diversas razões não haviam saído de Portugal pudessem compreender e estudar as
diversas espécies existentes na natureza.
Hipólito da Costa ciente da responsabilidade que lhe fora incumbida
procurou em sua expedição obter o máximo de informações detalhadas que
auxiliasse no conhecimento do reino sobre o território visitado. Mesmo quando
esteve distante dos domínios espanhóis procurou dar cumprimento às instruções
de Dom Rodrigo sobre o cultivo da cultura de cochonilha, buscando através de
jornais ou de outras botânicas informações sobre o inseto. E após quase um ano
percorrendo os arredores de Nova York e Filadélfia partiu sem a permissão do
ministro espanhol para o México, a fim de realizar observações sobre o inseto, e
comparar se os espanhóis cultivavam as mesmas espécies existentes no Brasil.
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Sendo assim, após o ministro espanhol negar-lhe um passaporte para ele viajar
pelas colônias espanholas existentes no Golfo do México, partiu ocultamente para o
México, disfarçando-se em um navio americano que seguia rumo à Puerto-Falso. Lá
durante quatorze dias, analisou a cultura da cochonilha espanhola, e pode observar
que havia muitas semelhanças entre a espécie cultivada pelos espanhóis com a
existente no Brasil. Analisou também o modo de preparo usado e a utilidade
econômica que a cultura traria para o Império Português. Na Memória remetida a
Dom Rodrigo, o naturalista demonstra conhecer a iniciativa portuguesa, de fazer
concorrência com o monopólio espanhol e, destaca que não só seria possível fazê-
la como o lucro em Portugal poderia ser maior.
Quanto à utilidade que a cultura desta planta nos pode dar se infere bem no alto preço que a cochonilha tem nos mercados da Europa, e cuido que todo o outro governo que não fosse o espanhol tiraria dessa cultura imensa vantagem (...) Além do mau modo por que a cultura e fabrico da cochonilha é administrada, o governo espanhol tem aumentado por muitas vezes os pesados direitos de exportação, que esta droga paga; o que me faz supor que se nós obtivermos cultivá-la, os espanhóis não poderão de modo algum concorrer conosco nos mercados da Europa ( PEREIRA, 1858, p. 351).
Alguns autores apontam que as observações realizadas por Hipólito da
Costa a respeito da cochonilha, pouco contribuíram para o conhecimento da
espécie, tendo em vista que muito do que ele aborda em seus diários, frei Veloso já
havia pontuado na memória publicada, além do fato de que as espécies do inseto
coletadas pelo viajante acabaram morrendo antes mesmo de chegar a Portugal.
Contudo, defendemos que apesar de suas observações sobre a cochonilha
possuírem uma importância relativa, sua expedição por outro lado foi primordial
para as estratégias lusitanas que estavam sendo travadas naquele contexto. Costa
era um representante do império português em um território onde pouco se
conhecia, mas que uma vez explorado muito se poderia obter.
Além disso, outras pesquisas, como a realizada pela historiadora Cecília
Westhphalen apontam que a produção da cochonilha no Brasil foi efêmera e pouco
representou para a economia portuguesa. Porém analisar a praticidade que esta
estratégia alcançou em Portugal, e os resultados obtidos ou não com sua
implantação não foi os objetivos deste ensaio, mas sim o de demonstrar como o
Pamella Sue Zaroski
343 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 329-345.
império português, constituía nos setecentos, uma estrutura complexa e
multifacetada, que em períodos de problemas econômicos ou políticos soube
arquitetar estratégias que visavam o bem comum.
FONTES
BERTHOLLET, Claude-Louis, 1748-1822. Memoria sobre a cultura da
Urumbeba e sobre criação da Cochonilha / extrahida por M. Bertholet das
Observações feitas em Guaxaca por M. Thiery de Menonville ; e copiada do V tomo
dos Annaes de Chymica... por Fr. José Marianno da Conceição Velloso. Lisboa: na
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COUTINHO, Rodrigo de Souza. Para Hipólito José da Costa. In: XAVIER, Paulo.
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Fundo Nacional da Cultura, 1997 p. 43-45
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1799). 2. ed. Brasília: Senado Federal, 2004.
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1858, p. 351 e sgts.
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Universidade de Coimbra, na conjuntura final do período colonial. Revista de
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O poder tem cor
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Oxalá foram fábulas sonhadas. Cientistas brasileiros do setecentos, uma leitura
auto-etnográfica. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, 2004 (Tese de
Doutorado).
________________________________; PEREIRA, Magnus Roberto de Mello. Ciência,
identidade e quotidiano. Alguns aspectos da presença de estudantes brasileiros na
Universidade de Coimbra, na conjuntura final do período colonial. Revista de
História da Sociedade e da Cultura, v.9, 2009, p. 205 – 228.
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Biblioteca Naciona, Seção de Manuscritos, II 35, 30, 2. Extraído do texto de Cecília
Whesthpalen já referenciado. Existe uma versão microfilmada do texto de José
Ferreira, que foi organizado pelo Arquivo Nacional em 1999, ver em: ARQUIVO
NACIONAL (Brasil). Coordenação de Documentos Escritos. Seção de Arquivos
Privados. Fundo Marquês do Lavradio: inventário/ Arquivos Nacional. Rio de
Janeiro: Arquivo Nacional, 1999.
Pamella Sue Zaroski
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WHESTPHALEN, Maria Cecília. Urumbebas e Cochonilhas do Brasil Meridional.
Estudos Brasileiros, vol. 4, n. 8. Curitiba, 1979, p. 223 – 235.
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 346-365.
MERCADORES DA INQUISIÇÃO. NOTAS SOBRE ESTRATÉGIAS DE ASCENSÃO
SOCIAL (ALAGOAS COLONIAL, C. 1674 – C. 1820)12
Alex Rolim Machado3
Resumo: O fazer-se das elites coloniais na América portuguesa não se perpassou exclusivamente apenas por uso de cargos administrativos, posses de engenhos de açúcar, ou recebimento de patentes militares, além de tantas outras mercês reais. Em uma sociedade de Antigo Regime (que sofreu mudanças e adaptações nos Trópicos), a característica social estamental hierárquica era condição sine qua non de divisão social dos grupos que habitavam as conquistas portuguesas. Esse texto pretende lançar uma luz para o estudo do Caleidoscópio das elites que habitavam os territórios sul-pernambucanos, tentando observar os diferentes mecanismos de poder utilizados pela sociedade para ascender socialmente dentro do quadro agrário, escravista e periférico da Capitania de Pernambuco. Atuando ativamente para a manutenção da justiça régia, do controle colonial e da manutenção da ordem católica. Palavras-chave: Alagoas Colonial, Inquisição, Mercadores. Abstract: The making of the Portuguese colonial elites in America not only featured only by use of administrative positions, possessions sugar mills, or receipt of military ranks, plus many other royal favors. In a society of the Ancien Régime (which has undergone changes and adaptations in the Tropics), the characteristic hierarchical social estates was a requisite of social division of groups that dwelt the Portuguese conquests. This paper intends to shed light to study the Kaleidoscope of elites that dwelt the territories in the south of Pernambuco, trying to observe the different mechanisms of power used by the society to rise socially within the
1 Esse trabalho é fruto de várias visitas ao Arquivo Nacional Torre do Tombo, em Lisboa, Portugal. Agradeço aqui ao banco Santander e à Universidade Federal de Alagoas, pela bolsa de estudos do Programa Santander Universidades, no período de fevereiro de 2012 até agosto de 2012. Agradeço ainda a professora Márcia de Souza e Mello, que me apresentou os documentos de habilitações do Santo Ofício, além dos livros de índice de pesquisa, instigando-me a pesquisar meticulosamente as habilitações em seus pormenores. Mesmo após a vinda para o Brasil, agradeço aos e-mails trocados e sua infinita ajuda sobre a documentação da Inquisição que está depositada no Digitarq, fazendo-me cavar mais esse assunto dos familiares da Inquisição em território sul-pernambucano. Agradeço também a Antonio Filipe Pereira Caetano, pela leitura e colocações pontuais mais teóricas sobre a história e teoria das elites, além de alguns aspectos estruturais do texto. Apesar de todas as conversas e ajudas, os equívocos que aqui podem ser encontrados e as lacunas que foram deixadas dizem respeito apenas à minha pessoa. 2 Recebido em 18/09/2013. Aprovado em 15/11/2013. 3 Historiador, formado pela Universidade Federal de Alagoas, com um intercâmbio de seis meses na Universidade de Lisboa. Atuou em pesquisas PIBIC e PIBIP sobre a história de Alagoas Colonial, onde desenvolveu artigos acadêmicos publicados em livros e revistas eletrônicas. E-mail: [email protected].
Alex Rolim Machado
347 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 346-365.
framework agrarian, enslaver and peripheral in the Capitania de Pernambuco. Working actively to the maintenance of royal justice, the colonial control and maintaining the Catholic order. Keywords: Colonial Alagoas, Inquisition, Merchants
Resumir os mecanismos da Inquisição portuguesa em uma introdução para
um artigo remonta uma análise bibliográfica que começaria a partir da década de
70 do século XX. Da mesma maneira, torna-se complicado juntar essa
contextualização dos estudos acerca do Tribunal Inquisitorial com as novas teses,
artigos e estudos acadêmicos que estão se debruçando nos documentos e nos
estudos das malhas de poder do Santo Ofício; nomeadamente, as redes leigas: os
Familiares; e as redes eclesiásticas: os Comissários.
Tais estudos não se tornam exclusivos de uma estrutura social. Ou seja,
analisar e pesquisar acerca dos familiares e comissários do Santo Ofício não
necessariamente deva ser enquadrado apenas nos quadros da instituição da
Inquisição. Podendo ser feitas avaliações sobre o poder hierárquico daqueles
agentes na sociedade, notas para pesquisa da família (ou das famílias em
particulares), atuações sociais fora do âmbito do Santo Ofício e as próprias
atividades de seu ofício de controle social e costume4. Por isso, a melhor definição
do que seria o “Familiar” é a de Caio César Boschi, que aglutinou os principais
estudos para desenvolver a síntese5.
Apesar de ter existido Comissários do Santo Ofício para o século XVII, uma
maior incidência pode ser vislumbrada no século XVIII, como apontou Caio Boschi.
Tinham prerrogativas semelhantes como as dos Familiares, contudo,
apresentavam tarefas peculiares de “(...) ocupar[e]m-se das diligências sobre
ancestralidade (“pureza de sangue”), além de participarem e, sobretudo,
administrarem visitas diocesanas”6. Em Pernambuco, uma das principais
4TORRES, 1994, pp. 109-135.BETHENCOURT, 1994, pp, 127-129.CALAINHO, 1992. RODRIGUES, 2010, pp. 197-216. Cf. RODRIGUES, 2011.VIEIRA JUNIOR, 2011, pp. 71-79. 5BOSCHI, 1998a, p. 452. 6 BOSCHI, 1998b, p. 385.
Mercadores da Inquisição
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 346-365.
Capitanias do Estado do Brasil, os familiares e comissários (junto com as visitações
da Inquisição) tiveram importantes atividades7.
Como qualquer outro território da América Portuguesa, “Alagoas”8 não ficou
isenta de familiares ou de processos inquisitoriais denunciados e julgados para
Lisboa9. É notório que sua incidência foi menor do que em outras capitanias de
maior envergadura dentro dos quadros da colonização portuguesa. Contudo, não
se deve ignorar que esse mesmo território, apesar de pequeno, fazia parte de um
conjunto maior no desenho do Império português10. Portanto, era um espaço onde
havia expedições de cartas para habilitações no Santo Ofício, além de denúncias
internas para a Inquisição.
Acerca da documentação e metodologia, o estudo foi feito in loco,
pesquisando os habilitandos que receberam suas cartas dentro dos espaços das
vilas “alagoanas” no período de 1678 até 1820. Esse tipo de estudo demonstra uma
característica importante sobre os “familiares alagoanos”. Por isso, decidiu-se
apontar aqui que os familiares pesquisados para “Alagoas” n~o esgotam em
hipótese alguma a quantidade de agentes que pediram cartas em outros ambientes
e transitaram dentro dos espaços das Vilas do Sul de Pernambuco11. Posto isso
sobre a mesa, o alerta fica no âmbito mais da história das elites do que da
7WADSWORTH, 2002. Idem, 2004, pp. 19-54. FEITLER, 2007, pp. 67-115, 115-155. 8 Para melhor escrita e leitura deste artigo, a vila de Santa Maria Madalena da Alagoa do Sul será abreviada para “Vila das Alagoas”. Todavia, também se encontram aqui problemas na escrita quando “Vila das Alagoas” é usada para retratar a cabeça da comarca ou quando é usada para tratar a comarca como um todo, merecendo também uma atenção redobrada na hora do trato dos documentos. Junto a isso, alerta-se ainda o fato de que até 1712 o território sul de Pernambuco eram três vilas distintas e separadas administrativamente entre si. Em 1712 foi-se institucionalizada a Ouvidoria das Alagoas, sendo a cabeça da Comarca a Vila das Alagoas; só em 1817 é que “Alagoas” se tornou a “Província das Alagoas”. Ao decorrer do artigo, o termo “Alagoas Colonial” ser| sempre citado entre aspas, de acordo com a delimitaç~o feita por Antonio Filipe Pereira Caetano. Cf. CAETANO, 2010, p. 32. 9 MOTT, 1992. MOTT, 2012, pp. 8-42. 10 Luiz Mott demonstrou, em seu livro, “Inquisiç~o e Sociedade” que outras localidades (como a Comarca de Ilhéus) também sofreram com a inquisição e que por isso fazem parte de um todo, sendo necessário seu estudo. Cf. MOTT, 2010, pp. 173-194. 11 Sobre essas visitas esporádicas, têm-se em Luiz Garcia Velho do Amaral, presbítero secular Bacharel formado em cânones pela Universidade de Coimbra, visitador geral das freguesias do sul do bispado de Pernambuco, natural e morador no Recife, o pedido para se tornar Comissário do Santo Ofício, tendo provisão passada em 18 de maio de 1773. Dentro da inquirição, foi informado que, dentre as freguesias que ele visitava, estavam a de Santa Luzia [do norte], Vila das Alagoas, Vila de Atalaya, São Miguel, Poxim e Penedo. Todas situadas dentro da Comarca das Alagoas, cuja jurisdição eclesiástica era do Bispado de Pernambuco. Cf. Arquivo Nacional Torre do Tombo (ANTT). Tribunal do Santo Ofício (TSO). Conselho Geral (CGSO). Habilitações. Luis. Maço 36 – doc. 606. Interessante também conferir FLEITER, p. 84.
Alex Rolim Machado
349 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 346-365.
Inquisição em si; trocando em miúdos: pesquisar e alertar que havia “alagoanos”
pedindo cartas dentro do território sul-pernambucano e as tendo recebido lá
mesmo comprova que os habitantes daqueles espaços preenchiam os requisitos de
súditos e de agentes da colonização da Coroa Portuguesa. Apesar do pequeno
espaço e da falta de uma dinâmica maior, os grupos “alagoanos” n~o devem ser
“rebaixados”, ou postos em comparação hierárquica com os de outros espaços, e
sim que se formaram em suas várias ocorrências particulares em suas atividades
costumeiras, mas em conson}ncia com as “leis” e “ordens” da Coroa e dos preceitos
do Antigo Regime. Encontrar tais familiares e comissários, além de um exercício de
esboço dos primeiros quadros dos agentes do Santo Ofício em “Alagoas colonial”, é
também uma oportunidade de decifrar alguns mecanismos de ascensão social e do
“fazer-se” (como diria E. Thompson – the making of) dos diversos grupos sociais
“alagoanos” nos quadros da Hierarquia Estamental de Antigo Regime, se
adaptando e burlando as vivências costumeiras nos Trópicos12.
Por isso, trabalhou-se aqui a ideia de tentar decifrar alguns mecanismos
desse “Caleidoscópio do Poder” no âmbito das estratégias para alcançar e manter a
mobilidade social e das atitudes políticas utilizadas para exercício de seus variados
poderes simbólicos e excludentes13, não no sentido de pirâmide, mas sim de
diferenças e aproximações entre os privilégios e isenções que eram recebidos,
aumentando, e contribuindo, para as diferenças dos variados títulos e ofícios
ocupados por aqueles que podem ser denominados “elites sociais” nas conquistas
americanas.
Distribuição geográfica e temporal dos agentes do Santo Ofício em Alagoas
Colonial
Preliminarmente, se vê que há 19 agentes do Santo Ofício no território que se
pode chamar de “Alagoas Colonial”. Dividindo em categorias, ter-se-iam 05
12FRAGOSO, 2003, p, 11-35.Idem, 2012. Sobre as distinções sociais mais claras do familiar frente às outras pessoas da sociedade, cf. RODRIGUES, 2011, p. 4. 13 A express~o “poder simbólico” pode ter sido consagrada por Pierre Bourdieu. BOURDIEU, 2012, pp. 7-16. Mas utiliza-se a mesma nesse texto no sentido de exclusão e mandonismo social como foi aplicada por João Fragoso, cf. FRAGOSO, 2003. Idem, 2012.
Mercadores da Inquisição
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 346-365.
Comissários e 14 Familiares. A distribuição geográfica e temporal é mais bem
realizada na Vila das Alagoas, onde 12 agentes estão inseridos no período 1678-
1720, 1766, 1811-182014. Porto Calvo tardiamente teve início de sua malha de
agentes, sendo 05 distribuídos em 1765 e 1790. Enquanto que Penedo teve um
oficial em 1773 e outro em 1808.
A partir disso, a distribuição dos mercadores/homens de negócio familiares
do Santo Ofício para a regi~o de “Alagoas” ficaria na seguinte maneira (em ordem
cronológica):
NOME OFÍCIO NATURALIDADE MORADIA CARTA Antonio Correa
da Paz Eclesiástico Vila das Alagoas,
Bispado de Pernambuco
Vila das Alagoas
15 de novembro de 1678; 22 de dezembro de
1694 Constantino
Correa da Paz Homem de
negócio Conselho de Ermello,
freguesia de S. Vicente, Comarca da Vila de
Guimarães, Arcebispado de Braga
Vila das Alagoas
18 de dezembro de 1683
Antonio Araújo Barbosa
Homem de negócios e mercancia
Santo Estevão da Facha[?], Arcebispado
de Braga
Vila das Alagoas
22 de novembro de 1696
Gonçalo de Lemos Barbosa
Homem que vive de suas fazendas
e negócios
Vila das Alagoas, Bispado de
Pernambuco
Vila das Alagoas
5[?] de fevereiro de 1716
Manuel Carvalho Monteiro
Homem de mercancia
Cidade de Braga Vila das Alagoas
9 de agosto de 1720
André de Lemos Ribeiro
Homem que vive de seus negócios
Freguesia de S. Cypriano de
Refortauna[?], Arcebispado de Braga
Vila do Penedo
Provisão em 23 de junho de 1773.
João Francisco Lins
Homem de negócios
Vila de Porto Calvo, Bispado de
Pernambuco
Vila de Porto Calvo
28 de abril de 1790
Joaquim Tavares de Basto
Homem de negócios
Freguesia de S. Pedro de Cambra[?], Bispado
de Aveiro
Vila das Alagoas
15 de janeiro de 1818
João de Bastos Homem de negocios
Freguesia de S. Pedro de Cambra[?], Bispado
de Aveiro
Vila das Alagoas
Provisão passada em 11 de outubro
de 1810. Carta sem informações.
Aprox. 1818.
Os perfis são diferenciados, o que faz crer que ser familiar era algo que
poderia estar “a disposiç~o” de toda a sociedade. No geral, o que influenciava era o
14 Contou-se aqui a Vila de São João Anadia por conta de sua proximidade com a Vila das Alagoas, além da mesma ser erigida como vila no século XVIII. Utiliza-se como base, por isso, as três vilas “matrizes” de “Alagoas”.
Alex Rolim Machado
351 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 346-365.
padrão do Santo Ofício: limpeza de sangue, nenhum indício de criminalidade, viver
à lei da cristandade, ter honra pessoal para tratar de negócios de segredo, saber ler
e escrever.
O Ofício de Mercador é o que é mais visado pela historiografia quando se
pesquisam as habilitações do Santo Ofício, geralmente na tentativa de desconstruir
essa história centralizada em demasiado sobre a figura do senhor de engenho,
onde os homens de negócio também tinham estratégias de ascensão social e
estratégias políticas. “Alagoas Colonial” n~o foge { regra, mas, é peculiar e deveras
instigante observar a participação dos mercadores em um espaço que não tinha
alfândega e nem praça de comércio de grosso trato, que estava em Recife e
Salvador. Dos 19 agentes do Santo Ofício para o espaço sul de Pernambuco, 08
eram homens que se diziam “de negócios” ou “trato de mercancia”. Ou seja, 50%15.
Mercadores e Homens de Negócio afazendados
Em 15 de novembro de 1678, na Vila das Alagoas, Antonio Correa da Paz,
natural da mesma vila, recebia sua carta de aprovação para se tornar Familiar do
Santo Ofício em terras pernambucanas. Seu pai, Severino Correa da Paz, homem de
negócios, natural do conselho de Ermello, freguesia de S. Vicente, Comarca de
Guimarães, casado com Catarina de Araújo, natural da Vila das Alagoas, tinha
pedido o mesmo ofício aproximadamente em 1674, tendo feito inquirições, mas
falecendo durante o processo, mesmo tendo pagado toda a quantia necessária para
as atividades burocráticas do Santo Ofício. Seu filho, Antonio Correa da Paz, decidiu
tomar o pedido do falecido pai para si mesmo, utilizando as já inquirições feitas
sobre o pai e a mãe, recebendo novas sobre si, para comprovar genealogia,
atividades de renda, limpeza de sangue e os demais requisitos pedidos pelo Santo
Ofício. Nas inquirições, foi informado o ofício do pai de negociante, e de ter muito
cabedal, além das criações de gado e tabaco que a família tinha desde Sergipe (em
posse dos avós de Antonio Correa da Paz) e que mantinham também em
15O que não causa estranhamento principalmente após os estudos de José Veiga Torres e Francisco Bethencourt. Contudo, houve familiares de outros grupos sociais e de diferentes atribuições. Cada um moldava o discurso para conseguir o seu objetivo de se tornar um agente do Santo Ofício. TORRES, José Veiga. Op. Cit., 1994. BETHENCOURT. Op. Cit., 1994, pp. 127-129.
Mercadores da Inquisição
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 346-365.
“Alagoas”16. Em 22 de dezembro de 1694, Antonio Correa da Paz, já familiar do
Santo Ofício e agora com o Hábito de São Pedro, requeria ser Comissário do Santo
Ofício, tendo seus costumes e vidas avaliados em uma inquirição e tendo sua
provisão passada em Lisboa na data supra-citada17.
Cinco anos depois, em 18 de dezembro de 1683, era a vez de Constantino
Correa da Paz, homem de negócios, morador da freguesia de Nossa Senhora do Ó,
termo da Vila das Alagoas, receber a carta para se tornar Familiar do Santo Ofício.
Seu grau de parentesco com Severino Correa da Paz (falecido) era de irmão de
sangue, logo, era tio legítimo de Antonio Correa da Paz, e ainda casado com Anna
de Araújo, irmã inteira de Catarina de Araújo, viúva de Severino Correa da Paz e
mãe de Antonio Correa da Paz. De acordo com as inquirições, além de homem de
negócios, tinha trato com a terra, o que se tornava um ponto importante e fulcral
para os entrevistadores: viver abastadamente e ter honra de possuir escravos e
lavouras18.
Apesar de não ter sido dito nas três inquirições (Severino, Antonio e
Constantino), Severino Correa da Paz tinha uma filha, chamada Mariana de Araújo,
irmã de Antonio Correa da Paz e sobrinha de Constantino Correa da Paz. Casada,
por sua vez, com Antonio de Araújo Barbosa, morador na Vila das Alagoas, mas
natural de Santo Estevão da Fachada[?], Arcebispado de Braga, que se habilitou
para se tornar Familiar do Santo Ofício e recebeu sua carta em 22 de novembro de
1696. Nas inquirições, informavam que Antonio de Araújo Barbosa vivia de
negócios de mercancia, ter cabedal, além de legitimarem sua pureza de sangue, seu 16 ANTT, TSO, CGSO, Habilitações, Antonio, maço 20 – doc 613, microfilme 2932. Bruno Feitler vai informar que “Antônio Correa da Paz, que se disse padre e familiar na inquiriç~o feita sobre si para aceder o cargo de comissário [em 22/12/1694], é um caso particular, pois nos procedimentos para obter a familiatura, nos anos 1670, ele se declara homem de negócio, acedendo então ao sacerdócio entre as duas provisões”. Cf. FEITLER, 2007, p. 92. Nas notas de referência, Feitler indica, além do maço e documento j| citado, outro códice sendo “Maço 32, doc. 824”, desconhecido por mim nas pesquisas feitas na Torre do Tombo, pois só tive acesso ao livro de suplemento da letra A. Contudo, levando em consideração essa pesquisa de Bruno Feitler, ao ser pesquisado e analisado a primeira diligência em seus detalhes, o habilitando Antônio Correa da Paz n~o se diz “homem de negócios”, sendo essa atribuição do pai, e que a mãe era uma viúva rica e abastada por conta da herança que o falecido marido deixou. Dentro das inquirições, um dos entrevistados disse que conhecia o habilitando na época que ele era estudante (não diz de que, mas presume-se um estudo religioso), fazendo propor que Antônio Correa da Paz já estudava para ser sacerdote antes mesmo de se tornar familiar, mas ainda não tinha se ordenado Padre. 17 ANTT, TSO, Inquisição de Lisboa (IL). Ministros e Oficiais. Provisões de nomeação e termos de juramento. Livro 7, fl. 16v. 18 ANTT, TSO, CGSO, Habilitações, Constatino, maço 1 – doc 6, microfilme 2931.
Alex Rolim Machado
353 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 346-365.
casamento legal com Mariana de Araújo, sua genealogia e também o fato de que a
mesma era irmã inteira de Antonio Correa da Paz, Comissário do Santo Ofício,
dando a entender, então, que haveria honra e limpeza na família19.
Interessante observar que o trato da terra, a partir do tabaco e do gado, era
sempre posto acerca da família de Anna de Araújo e de Catarina de Araújo, que
viviam em Sergipe e se mudaram para “Alagoas”. Ou seja, a família Correa da Paz
era de homens de negócio, portugueses, com muito cabedal, mas sem distintivos
simbólicos fortes para criação e manutenção de um status social elevado. Enquanto
isso, a família Araújo era dona de terras e de escravos, mas com filhas solteiras e
sem uma oportunidade de perpetuação e progressão social. O casamento com
negociantes era um acordo mútuo, onde o dinheiro ganharia a terra para se elevar
socialmente, e a terra ganharia o dinheiro para se mantiver economicamente20.
Além do mais, o comerciante não era bem visto pelos outros grupos sociais,
tanto em Portugal, como nas conquistas21, soma-se a isso a hipótese da eterna
desconfiança de que mercador rico poderia ser sinônimo de cristão-novo, maiores
perseguidos pela inquisição portuguesa22, necessitando, assim, a comprovação de
sua limpeza de sangue ao mesmo tempo em que pretendia a ascensão socialmente
com títulos honoríficos e trato com a terra. Curiosamente, teriam sido esses
comerciantes os mais aptos a denunciar os cristãos-novos, visto que “(...) n~o
tiveram maiores dificuldades na identificação e na denúncia de cristãos-novos,
grande parte dos quais eram também homens de negócio e comerciantes”23.
Contudo, essa posição maquiavélica de perseguição contra os cristãos-novos (a
fabricação de Judeus, como disse F. Bethencourt) deve ser revista e posta em
estudos empíricos mais aprofundados24. Por isso, receber os hábitos de Familiar do
19 ANTT, TSO, CGSO, Habilitações, Antonio, maço 27 – doc 744. 20FARIA, 1997, p. 64. Interessante conferir FARIA, 1998, pp. 195-205. 21 BOXER, 2002, pp. 331-332. 22 VEIGAS, 1994, pp. 118-119. BOXER, 2002, p. 333.GIZBERT-STUDNICKI, 2009, pp, 129-131. 23 BOSCHI, 1998, p. 384. 24 Cf. BETHENCOURT, 2012, p. 153. Essa ideia da Inquisiç~o portuguesa como um “freio anti-capitalista” pode ser vista em GODINHO, 1980, p. 81, 252-253, se bem que no ponto de vista mais profundo (social e político) da Restauração, cf. GODINHO, 1968, pp. 279-281. Luiz Mott, para a Inquisiç~o em Alagoas, encontrou o caso de um Judeu “tratante”, ou seja, comerciante, que foi indiciado, julgado e morto na fogueira em um auto-de-fé, cf. MOTT, 1992, pp. 22-24. Logo, seguindo o estímulo de Luiz Mott e Francisco Bethencourt, não se deve generalizar a perseguição
Mercadores da Inquisição
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 346-365.
Santo Ofício era uma estratégia dos mercadores para auferir mais privilégios do
que já tinham naquele espaço, ganhando um implemento simbólico para serem
usados e reconhecidos dentro da sociedade da Vila das Alagoas. Com isso, parte-se
da ideia de que é notável verificar aqui a procura de comerciantes em se fixarem e
terem o trato com a terra, motivação sine qua non de nobreza em Portugal, que foi
levado para o Brasil, sendo perpetuadas e adquiridas transformações em suas
diferentes conjunturas, principalmente com a escravidão25, mas, em consonância a
isso, adquirir honrarias seria essencial para essa alteração de status que os
comerciantes e mercadores visavam para adentrarem na dinâmica dos Trópicos.
Contudo, optar pela fixação na terra não significava o abandono dos negócios.
Prova disso seria o casamento da filha do comerciante Severino Correa da Paz,
Mariana de Araújo, com Antonio de Araújo Barbosa, um “homem de merc}ncia”,
que, tendo cabedal26, também se inserindo no círculo do Santo Ofício junto com a
família Correa da Paz – Araújo.
Outro caso “alagoano” parecido, mas sem dispers~o genealógica, é a da
Família Amorim Cerqueira com os Araújo Lima e Carvalho Monteiro. O caso segue
parecido com o acima citado, mas com menos parentes, e o interessante são as
duas irmãs casando com Familiares de famílias distintas.
Enquanto isso, Catharina de Araújo Cerqueira, irmã inteira de Maria de
Amorim Cerqueira27, era casada com Manuel Carvalho Monteiro, que em 9 de
inquisitorial apenas aos cristãos-novos, como também não se deve dizer que não houve perseguiç~o dentro do território “alagoano”. 25 PRADO JÚNIOR, 2008. FARIA, 1997, pp. 67-71. RUSSELL-WOOD. A. J. R., 1998. FRAGOSO, 2012. FARIA, 1997, p. 64-65. 26 Em casos de dívidas, “um genro comerciante poderia abrir-lhes as portas do crédito outra vez”. Cf. FARIA, 1997, p. 64. O que acabou acontecendo foi que a mãe (já viúva) Catarina de Araújo, comprou terras, chamadas de Setuba/Satuba, na freguesia de Alagoa do Norte, para dotar Mariana de Araújo, para se casar com Antonio de Araújo Barbosa, e que nessas terras acabaram por fazer um engenho de açúcar, cf. Arquivo Histórico Ultramarino, Alagoas Avulsos, doc. 34. 27 Maria de Amorim Cerqueira, natural de Alagoas do Sul (apesar de algumas testemunhas acharem que a mesma fosse natural da Bahia, pois sua família fugiu durante a dominação holandesa e só voltou após a restauração), era filha de Matheus Cerqueira, defunto, natural da Vila de Vianna Foz do Lima, marinheiro, onde disseram que matou sua primeira mulher, casou com uma segunda em Lisboa, que faleceu, e depois foi para “Alagoas”, onde se casou com Anna de Amorim, natural do termo da Vila de Alagoas, freguesia de Nossa Senhora da Conceição. Maria de Amorim Cerqueira casou-se com João de Araújo Lima, que em 1703 recebia sua carta de Familiar do Santo Ofício. Era dono de fazendas, senhor de Engenho de fazer Açúcar, assistente na Vila das Alagoas, natural de São Julião de Nogueira, freguesia de Santa Maria de Refoyos de Lima (Portugal), além de ser irmão inteiro do Padre Domingos de Araújo Lima, também morador na Vila de Alagoas do Sul, que em 18 de setembro de 1709 recebia sua carta de aprovação para se tornar Comissário do Santo Ofício. Nas
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agosto de 1720 recebeu sua carta para se tornar Familiar do Santo Ofício, sendo
homem de negócio que vivia abastadamente, junto com o bom dote que trouxe a
sua mulher com que se casou. Era natural da cidade de Braga, freguesia de São
Victor, mas morador na Vila das Alagoas. Nas inquirições em “Alagoas”,
informações úteis são encontradas sobre esse casamento. Primeiro, o habilitando
era tido como rico, com um cabedal de 20 mil cruzados, e que Catharina de
Cerqueira já tinha sido casada com outra pessoa, mas que faleceu, e que Manuel
Carvalho Monteiro era seu segundo marido. Além de uma irmã, também tinha dois
irmãos, que atuaram nas guerras contra Palmares, junto com o pai. Tais atividades
militares fizeram o pai de Catharina e Maria ser denominado como uma pessoa de
grande honra e “mais graves da Vila das Alagoas”, e que se ele tinha autorizado o
casamento de Catharina com Manuel de Carvalho, é porque o mesmo era também
considerado uma pessoa honrada28. O pai foi um homem rico e afazendado, que
não se poderia duvidar de que dotaria a sua filha com vantagem para seu marido
poder passar a viver limpa e abastadamente. Todavia, é difícil dizer se o marido
ficou rico com o casamento ou se já o era antes dele. De acordo com uma
testemunha, Manuel Carvalho Monteiro vivia limpamente, e que tinha segurança
com seus negócios de mercancia, como um bom partido de canas que cultiva, com
muitos escravos, e que seu cabedal passaria de 10 mil cruzados, e que sabia ler e
escrever29.
Leva-se a crer, então, na hipótese acima escrita sobre a família Correa da Paz
e Araújo, transpondo também para o caso da Família Amorim Cerqueira com a
Araújo Lima e Carvalho Monteiro, onde as filhas, nesse caso, tinham como dote
terras e escravos, possivelmente espólios e recompensas de seu pai e seus irmãos
nas guerras contra Palmares, enquanto que seus maridos eram comerciantes, com
cabedal e redes de poder e clientelares. Mesmo sendo de grupos sociais distintos
(comerciantes reinóis de um lado e “fidalgas coloniais” de outro), pode-se pensar
inquirições de Domingos de Araújo Lima, foi frisado sempre que vivia abastadamente e com muitos bens, denominando sua moradia como o Engenho da Nossa Senhora do Pilar, na freguesia de Nossa Senhora da Conceição, termo da Vila das Alagoas. 28 Interessante observar as colocações de António Manuel Hespanha sobre o poder do pai da família ao escolher e decidir sobre os casamentos das filhas, principalmente para evitar conflitos a longo prazo. Cf. HESPANHA, 1992, p. 275. 29 ANTT, TSO, CGSO, Habilitações, Manuel. Maço 86 – doc. 1623.
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aqui a característica do princípio da igualdade, exposto por Maria Beatriz Nizza da
Silva, ao estudar o sistema de casamento na Capitania de São Paulo, onde deveria
ser norma haver entre os cônjuges “(...) uma igualdade et|ria, social, física e
moral”30. Portanto, mesmo sendo homens de mercancia e sem títulos
nobiliárquicos (salvo engano), sua estima pessoal (vindo do cabedal e da limpeza
de sangue) era aprovada pelo pai das filhas, que via nos mercadores uma pessoa
não igual, mas de reputação social também elevada. Contudo, como tratavam de
comércio, e que a honraria da terra vinha das esposas, ambos, como homens da
casa, necessitavam de terem seu próprio status que lhe garantissem prestígio a
partir de atividades próprias. Nesse caso, pensar os processos de familiares do
Santo Ofício ajuda a hipotetizar que, mesmo fazendo parte das principais famílias
da terra, ter cabedal, terras, escravos, e serem casados, os homens (comerciantes)
que tivessem ganhado tal prestígio a partir de suas esposas e de seus casamentos,
necessitavam de uma autoridade própria, conquistada por si mesmo e levada
adiante a partir de suas próprias atuações31. Essa hipótese ganha força quando se
vê a quantidade de irmãos que pedem para ser familiar do Santo Ofício, a maioria
sendo comerciantes, e vindos de Portugal.
Nesses casos, além de Severino Correa da Paz e Constantino Correa da Paz,
como João de Araújo Lima e Manuel Carvalho Monteiro, tem-se ainda João
Francisco Lins: natural da Vila de Porto Calvo, solteiro, homem que vivia de seus
negócios e abastadamente de seus lucros, irmão gêmeo de Ignácio José do Vabo,
também morador da Vila de Porto Calvo, solteiro, mas de apenas 20 anos, que vivia
ainda na companhia dos pais, e que se tornaria uma pessoa abastada por conta de
30 SILVA, 1984, p. 66. 31 “<<[...] a verdadeira nobreza há-de ser herdada, e derivada dos Pais aos filhos [...] E se algumas pessoas de nascimento humilde chegam nos povos a ser avaliados por nobres por acções valerosas, que obráram, por cargos honrados, que tiveram, ou por alguma preeminência, ou grau, que os acrescente, não é esta nobreza verdadeira derivada pelo sangue, e herdada dos avós, mas pertence à classe da nobreza Civil, e Política, que se adquire pelos cargos, e postos da república, e servir-lhe-ão estes, e os feitos gloriosamente obrados de os constituir nos princípios da nobreza de sorte que verdadeiramente se não pode dizer deles que são nobres, se não que o começam de ser [...] a verdadeira nobreza não pode da-la o Príncipe por mais amplo que seja o seu poder>>”. António de Villas Boas e Sampaio. Nobiliarchia portuguesa. Tratado da nobreza hereditária e política (Iª ed., 1676), 3ª ed., Lisboa, 1725, pp. 28-29. Citado em MONTEIRO, 1992, p. 335.
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sua herança que iria receber. Ambos receberam a carta de Familiar do Santo Ofício
em 28 de abril e 8 de julho de 1790, respectivamente32.
Em 1810-1818, os irmãos Joaquim Tavares de Basto e João Bastos, naturais
da freguesia de S. Pedro de Caimbrã[?], Bispado de Aveiro, negociantes, e
moradores na Vila das Alagoas. Joaquim Tavares de Basto era solteiro quando
enviou o requerimento para se tornar familiar do Santo Ofício, mas durante o
processo acabou se casando com Ana Felícia de Jesus, alagoana, e tiveram uma
filha, chamada Maria Sebastiana. Era tratado como negociante e com renda entre
6-20 mil réis mensais e que poderiam chegar a 300-600 mil réis anuais. Sua
esposa, por sua vez, era filha legítima do Capitão Manoel Caetano de Morais,
natural da cidade e bispado de Miranda, já falecido, e de sua mulher Ana Joaquina
de S. José, natural da Vila das Alagoas, mas filha de pais incógnitos. Eram pessoas
distintas na localidade, pois o Capitão viveu a lei da nobreza servindo os cargos da
milícia e também da república, como vereador, almotacé e juíz ordinário, além de
ter feito parte no culto divino na Irmandade do Santíssimo Sacramento, naquela
época sendo síndico dos religiosos franciscanos do convento da Vila das Alagoas,
tesoureiro venerável da ordem dos mesmos, e nas mais irmandades como foi
patente, e somando a tudo isso, era tesoureiro geral do Senhor do Bonfim, além de
viver na Vila das Alagoas com negócios de fazenda e Capitão da Cavalaria33. João de
Bastos, por sua vez, também negociante e morador na Vila das Alagoas, era casado
com Anna Sofia/Amália do Rosário Acioli34, natural de Alagoas, filha do tenente
32 ANTT, TSO, CGSO, Habilitações, João. Maço 166 – doc 1421. E ANTT, TSO, CGSO, Habilitações, Inácio. Maço 10 – doc 161. Sobre a família Lins do Vabo, nada é dito em nenhuma das duas inquirições de João e Inácio sobre a existência de algum outro irmão ou parente se habilitando a familiar. Contudo, em mal estado de conservação (logo, retirado da leitura), há uma carta de familiar endereçada para José Lins do Vabo, morador de Porto Calvo, tendo sido passada em 1790 (atente-se a data), sendo o códice ANTT, TSO, CGSO, Habilitações, José. Maço 158 – doc 3062 e cf. ANTT, TSO, IL. Ministros e Oficiais. Provisões de nomeação e termos de juramento, livro 20, fl. 157. Soma-se a isso ainda existência de outro “Vabo”, natural e morador de Porto Calvo, chamado Pedro Antonio Vabo, que também recebeu carta em 1790 cf. ANTT, TSO, Inquisição de Lisboa. Ministros e Oficiais. Provisões de nomeação e termos de juramento, livro 22, fl. 156. 33 ANTT, TSO, CGSO, Habilitações, Joaquim. Maço 21 – doc 262. 34 Dentro do id da Torre do Tombo, foi informado que o nome da esposa era Amália do Rosário Acioli. No livro de Provisão e termos de juramentos, a esposa se chamava Anna Sofia do Rosário Acioli. Como não se teve contato com a habilitação em mãos, opta-se por deixar os dois nomes no texto, para evitar equívocos, sendo mais seguro deixar uma dúvida do que um erro.
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José de Barros Pimentel e neta do Capitão Inácio de Acioli Vasconcelos, natural das
Alagoas35.
Esses casos dos comerciantes demonstram como devem ser observadas as
pistas sobre o poder político (a pan-politização e a microfísica do poder de M.
Foucault) na sociedade colonial americana, em especial “Alagoas”36. Mesmo
quando o comerciante era abastado e que vivia limpamente e com grandes lucros,
sua honra e estima pessoal não aumentava tanto quanto se faz crer quando o
mesmo adquiria posses de terras, escravos e um título honorífico como senhor de
engenho, principalmente se tais conquistas vierem a partir do casamento, tendo
recebido como dote de sua esposa. Se parte de seu prestígio era adquirido a partir
da família da mulher, hipotetisa-se aqui, que seria necessário para sua família que
seus descendentes tivessem como norte de nobreza o pai, e não o avô materno37,
as conquistas mais visadas seriam as pessoais do patriarca, e não o dote de sua
mãe (ou avó), mesmo que o dote fosse escravos, terras e até mesmo um Engenho
de Açúcar. Mesmo sendo clássica na historiografia brasileira a figura do Engenho
de Açúcar ou lavouras de cana/tabaco como estrutura principal da elite colonial, o
patriarca da família deveria prezar também por suas conquistas pessoais em
diversos espaços e esferas da sociedade política, visando adquirir símbolos e
distinções sociais que o mostrasse diferente – ou superior – a outros, e que
pudessem ser utilizadas de modo hereditário, não fazendo o filho herdar o título ou
ofício do pai, mas herdar e propagar sua honra e importância social38. Sobre as
distinções sociais, alguns iriam para os cargos da república, outros tentavam serem
35O documento de João Bastos encontrava-se retirado da leitura, não tido sido possível fazer sua avaliação. Utilizou-se, aqui, a informação dada pelos livros de índices da Torre do Tombo. Sendo o códice ANTT, TSO, CGSO, Habilitações, João. Maço 129 – doc 2006; além das informações retiradas em ANTT, TSO, IL, Ministros e oficiais. Provisões de nomeação e termos de juramento, livro 22, fl. 317. 36Para o Brasil Colonial, essencial se ter em mente os estudos aprofundados de BICALHO, 2010. FRAGOSO, 2003, p, 11-35. Sobre “Alagoas Colonial”, tais estudos (elites camar|rias, juízes e administradores, e elites militares) podem ser vistos em CURVELO, 2012. MARQUES, 2012, e PEDROSA, 2012. 37 Ser homem (patriarca) da família era ter o poder político de administrá-la tanto economicamente como socialmente e garantir o bem-comum e prosperidade de sua casa. Cf, HESPANHA, 1984, pp, 33-35. 38 “a definiç~o de família nobre mais difundida a que se encontra em Severim de Faria e Bluteau: <<Ordem de descendência, que trazendo o seu princípio de uma pessoa se vai continuando, e estendendo de filhos a netos, de maneira que faz uma parentela, ou linhagem, a qual pela antiguidade, e nobreza das cousas feitas é chamada nobre>>”. Cf. MONTEIRO, 1992, p. 280.
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cavaleiros professos de alguma ordem militar, muitos seriam militares, e tantos
escolheriam os cargos de familiares e comissários do Santo Ofício, lembrando que
tal ofício e título de familiar era perpétuo, podendo ser mais bem utilizado por
algum membro da família para se diferenciar socialmente ou se articular
politicamente.
Considerações preliminares
Como foi escrito no começo dessas linhas, esse texto se tornou mais um
artigo sobre elite social do que uma avaliação mais empírica do funcionamento da
inquisição a nível local39. Contudo, n~o se pretendeu criar uma “ordem”, “estado” e
nem uma classe. O termo “elite social”, ao ser utilizado para os familiares do Santo
Ofício, deve ser empregado tendo-se em mente que – pelo menos para Alagoas –
ainda não há conclusão definitiva de como eles viam a si mesmos, enquanto
estrutura social ou enquanto grupo social pertencente ao Tribunal do Santo Ofício.
Por isso, conclui-se, preliminarmente, aqui, que ser familiar do santo ofício
não é um “fim em si”, e sim um processo de iniciação ou de aprimoramento
(intermediário) social onde o habilitando, uma vez sendo familiar, não deixava (e
nem era impedido) de seguir outras carreiras e dar até mesmo mais atenção a elas
do que a do seu ofício da Inquisição40.
Apesar da construção de uma malha de familiares e comissários ter sido uma
atividade de exclusividade do Tribunal Inquisitorial e legitimada por ele, essa
análise de caráter prosoprográfico preferiu partir da ordem de estudos dos
colonos em si: suas trajetórias pessoais e estratégias sociais ao requererem a carta
39Sobre a necessidade do estudo das ramificações e estruturas da Inquisição em espaços regionais e locais, cf. BETHENCOURT, 2012, p. 155. Para uma ideia de Pernambuco em modo “regional”, cf. FEITLER, 2007. 40 Um caso para se citar é o do Comissário Antonio Correa da Paz e de sua mãe Catharina de Araújo, além do Familiar Antonio de Araújo Barbosa e sua esposa Mariana de Araújo, que disputaram terras em Alagoas contra uma missão indígena e seu Capitão, Miguel Correia Dantas. Cf. ROLIM, 2010, pp. 202-203. Assim como o Padre Domingos de Araújo Lima e sua relação com o Ouvidor da Comarca e a querela em que se meteu entre dois ouvidores no território “alagoano”, cf. ROLIM, 2010, pp. 185-186, cf. PEDROSA, 2011, pp. 161, 163 e 165. Assim também como o de Agostinho Rabello de Almeida, que junto com a Câmara Municipal da Vila de Alagoas, em 18 de abril de 1812, assinou documento para petição de reestruturação da Cadeia Pública da Vila ao Rei. Cf. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Sobre a construção da Cadeia Pública, 1812. Biblioteca Nacional, II-33,10,9. Agradeço ao professor Antonio Filipe Pereira Caetano pela disponibilização do documento.
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 346-365.
de familiar; tentando, assim, traçar suas motivações e mecanismos de ascensão
social, a partir da leitura documental desses processos. Ou seja, as conclusões aqui
esboçadas durante as análises dos familiares não necessariamente devam ser
utilizadas para ilustrar apenas a categoria social “familiar/comiss|rio do Santo
Ofício” em particular, e sim que as mesmas estratégias utilizadas pelos reinóis e
naturais de “alagoas” para se tornarem um membro da inquisiç~o podem ser
pensadas e hipotetizadas para outras ações que visavam outros cargos e ofícios
“ultramarinos”, tendendo um mesmo fim (status, poder hierárquico, distintivo
social em formas de privilégios de foro). Conclusão parecida e provocações
positivas também partiram de Antonio Otaviano Junior em seu artigo sobre os
familiares do Maranhão41.
Todavia, por mais que se pretendesse estudar alguns mecanismos internos
de promoção social dos colonos, desgarrar esses súditos (uma vez
familiar/comissário) de seu ofício – que era perpétuo – não é a melhor estratégia,
visto que, no limite, como informou Aldair Rodrigues, rebatendo Veiga Torres, os
agentes do Santo Ofício, mesmo preocupados com a sua ascensão social eram
funcion|rios da Inquisiç~o e “(...), enquanto tais, cumpriam uma série de
funções”42. Portanto, torna-se necessário sempre que puder enquadrar o estudo
sobre os familiares do Santo Ofício dentro dos quadros internos da instituição e da
ação inquisitorial.
Referências Documentais e Bibliográficas
41 “Aqui um destaque: esses dados s~o importantes n~o apenas para a compreensão da história de um indivíduo; podem compor um conjunto privilegiado de informações associadas aos estudos da família, considerando-a em seu perfil demográfico, como unidade econômica doméstica ou como um conjunto de sentimentos. E mais, incrementam análises relacionadas às trajetórias de elite, principalmente de grupos portugueses que fizeram fortuna e alcançaram capital político em território americano”. Cf. OTAVIANO JUNIOR, 2011, p. 72. 42 RODRIGUES, p. 201. E continua: “Por n~o utilizar a documentação inquisitorial resultante diretamente da ação repressiva do Santo Ofício, Veiga Torres subestimou as funções institucionais dos familiares. Em pesquisa realizada nos cadernos do promotor, registros de correspondências e processos de réus da Inquisição de Lisboa, pudemos encontrar vários episódios em que os familiares de Minas Gerais (e também de outras regiões), aparecem desempenhando uma série de funções enquanto agentes inquisitoriais, funcionando eles, dessa forma, como uma ramificação capilar do tribunal lisboeta”. Idem, p. 201.
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361 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 346-365.
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LIMITES DO FEDERALISMO E DA CONSTITUIÇÃO: A AÇÃO OFICIAL DE
ABRAHAM LINCOLN SOBRE A INTEGRAÇÃO DE TROPAS NEGRAS NA GUERRA
CIVIL AMERICANA (1861-1865)1
Lara Taline dos Santos 2
Resumo: Em 1861, Abraham Lincoln promulgou o primeiro Confiscation Act, seguido do segundo Confiscation Act e do Militia Act, ambos outorgados em meados de 1862. Os atos foram aprovados com o objetivo de alargar os poderes do presidente para usar homens negros – grande parte antes escravizados – no exército e apreender propriedades em posse de confederados, sanando problemas de recrutamento e financiamento do conflito. Entretanto, os limites impostos pelo sistema federalista e a Constituição de 1787 cerceavam as ações presidenciais. A partir disso, objetiva-se realizar alguns apontamentos acerca da atuação da administração Lincoln com relação à integração de tropas compostas por negros no exército americano, bem como identificar nos atos a base de uma política de emancipação gradual e compensada dos escravos. Palavras-chave: Abraham Lincoln. Soldados negros. Guerra civil americana
Abstract: In 1861, Abraham Lincoln enacted the first Confiscation Act, followed by the second Confiscation Act and the Militia Act, both issued in mid-1862. The acts were adopted in order to extend the powers of the President to use black men – largely former slaves – in army and seize Confederate´s properties, solving problems of recruitment and financing of the conflict. However, the limits imposed by the federal system and the Constitution of 1787 limited presidential actions. From this, the objective is to make some notes about the performance of the Lincoln administration about the integration of black troops in the American Army, identifying in the acts the basis of a policy of gradual and compensated emancipation of slaves. Keyword: Abraham Lincoln. Black soldiers. American Civil War
Introdução:
Em novembro de 1860, Abraham Lincoln, republicano moderado, foi eleito
décimo sexto presidente dos Estados Unidos da América. O jovem presidente –
1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 02/12/2013.
2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná (PGHIS) Departamento de História (DEHIS), linha de pesquisa Espaço e Sociabilidades. Agência Financiadora: CAPES.
Limites do federalismo e da constituição
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 367-380.
tendo formação no campo jurídico – defendeu desde o princípio do mandato a
importância das mudanças se darem no campo legislativo. Entretanto, em face da
guerra que ameaçava a jovem nação, Lincoln passou a orientar parte de suas
decisões segundo o preceito de que uma posição de comando poderia,
ocasionalmente, pedir uma tomada de autoridade executiva que não se submetesse
estritamente aos princípios constitucionais. (HOLZER; GABBARD, 2007, pp.1-5)
Com a alçada de Lincoln à presidência, os deputados de estados que
temiam ações contrárias à escravidão fomentaram, no Congresso, debates acerca
do alcance de uma legislação nacional. As ações presidenciais eram questionadas a
partir da defesa do sistema federalista presente na Constituição.
A partir disso, objetiva-se realizar alguns apontamentos acerca da atuação
da administração Lincoln com relação à integração de tropas compostas por
negros no exército americano, tendo em vista que grande parte desses homens
vinha de um passado de escravidão. Paralelamente, intenta-se identificar nos atos
a base de uma política republicana de emancipação gradual e compensada dos
escravos, afim de não perder apoio ecolocar em risco a vitória da União no
dispendioso conflito.
A visão do presidente sobre a escravidão e a crítica confederada
Lincoln entendia a escravidão como um entrave ao desenvolvimento do
país, tendo em vista sua contribuição para manter a população branca sem
ambições, desestimulando o trabalho e o crescimento intelectual. Desta forma,
identificava as iniciativas à expansão dos negócios e do progresso econômico como
insuficientes em face ao potencial do país. O presidente temia que estes fatores
prejudicassem de tal maneira as pessoas brancas que elas passassem a se
equiparar às negras, em sua concepção, naturalmente inferiores. (HORTON, 2007,
p 13)
Assim como muitos de seus contemporâneos, Lincoln assumia e aceitava a
supremacia branca como parte de uma ordem natural: "There is a physical
difference between the white and black races which I believe will forever forbid
Lara Taline dos Santos
369 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 367-380.
the two races living together on terms of social and political equality."(Abraham
Lincoln, apud HORTON, 2007, pp 13-14)
Inicialmente, o projeto republicano limitava-se a restaurar a União o mais
rápido possível, mantendo intacta a escravidão. Desta maneira, apesar de
cristalizada a imagem de Lincoln como um grande expoente da luta abolicionista,
seu compromisso referia-se unicamenteàmanutenção da federação:
My paramount object in this struggle is to save the Union, and is not either tosave or to destroy slavery. If I could save the Union without freeing any slave I would do it, and if I could save it by freeing all the slaves I would do it; and if I could save it by freeing some and leaving others alone I would also do that. What I do about slavery, and the colored race, I do because I believe it helps to save the Union.3
Entretanto, os sete primeiros estados a deixarem a União em fevereiro de
1861 - South Carolina, Mississippi, Florida, Alabama, Georgia, Louisiana e Texas –
embasavam seus argumentos seccionais na ideia de que o décimo sexto presidente
era declaradamente abolicionista.
Depois dos confederados abrirem fogo contra os soldados da União que
ocupavam o Forte Sumter na Carolina do Sul em 12 de abril de 1861, Lincoln
convocou cerca de setenta e cinco mil voluntários a apresentarem-se ao exército.
Contrariando a expectativa republicana de que a causa seccional obteria pequeno
apoio, poucos dias após a convocatória do presidente, outros quatro estados –
Virginia, Arkansas, Tennessee e North Carolina – retiraram-se dos Estados Unidos
para formar os onze estados da Confederação. A guerra civil tornava-se muito
maior do que aventava Lincoln e seus partidários nortistas. (HORTON, 2007, p 16).
Um campo de batalha no Congresso: A legislação sobre a utilização de
soldados negros
3 Carta do presidente Abraham Lincoln a Horace Greely, editor do jornal Tribune e um dos membros fundadores do partido republicano. Washington, 22 de agosto de 1862. (Disponível em: http://www.abrahamlincolnonline.org/lincoln/speeches/greeley.htm Acesso em 08 de junho de 2013.)
Limites do federalismo e da constituição
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 367-380.
Com a eclosão das batalhas, os exércitos do norte e sul rapidamente
passaram a depender das tropas formadas por negros. A incorporação de homens
de cor - sendo grande parte escravos fugidos de estados confederados e
borderstates4 - exigia da gestão Lincoln uma ação regulamentária. Porém, a criação
de uma legislação específica sobre a utilização de soldados negros colocava em
risco a postura evasiva do governo quanto à questão escravista. Lincoln
compreendia o peso da demanda e as controvérsias que gerava, sobretudo, nos
borderstates, nos quais a escravidão ainda era uma prática comum, enraizada
socialmente.
Em nove em julho de 1861, o Congresso deliberou que os soldados da
União não deveriam devolver os escravos que capturassem. Esta ação auxiliava os
militares a lidar com o grande número de escravos fugidos que adentravam seus
acampamentos. A partir disso, a questão das tropas negras e da incorporação de
ex-escravos tomava os debates, demandando uma legislação específica.
Em seis de agosto do mesmo ano, em meio aos enfrentamentos no
Congresso e contrariando a política de não interferência nos estados e na
propriedade privada, Lincoln outorgou o primeiro Confiscation Act. Proposto pelo
senador republicano Lyman Trumbull, de Illinois, o documento definia os
parâmetros legais para a apreensão de propriedades e bens, incluindo escravos,
em posse de pessoas que aderiram ou auxiliaram a rebelião sulista. (SYRETT, 2005,
pp XXI-03)
Diante da notícia de que sulistas vinham empregando escravos em batalha,
o Confiscation Act definiu que aqueles que houvessem sido utilizados na rebelião
confederada poderiam ser prontamente confiscados em prol da União, ganhando
sua liberdade. (SYRETT, 2005, pp XII-06) Porém, o ato ainda garantia aos senhores
o direito de reclamar esses escravos, em boa medida em função do temor dos
congressistas do norte com relação a perda de apoio dos BorderStates, mas
também visando manter a possibilidade de retorno a União para os estados
separatistas, desejosos de abdicar da causa seccional, uma vez que poderiam
4 Os borderstates eram estados escravistas que não declaram secessão a União desde 1861. Eram eles: Missouri, Delaware, Maryland e Kentucky. Em 1863, West Virginia separou-se do estado confederado da Virginia e também tornou-se um borderstate ao declarar-se um novo estado escravista na União.
Lara Taline dos Santos
371 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 367-380.
adentrá-la sem deixar de ser escravistas, a exemplo dos quatro BorderStates
originais.(PALUDAN, 2007, p 43)
Be it enacted by the Senate and House of Representatives of the United States of America in Congress assembled, That if, during the present or any future insurrection against the Government of the United States, after the President of the United States shall have declared, by proclamation, that the laws of the United States are opposed, and the execution thereof obstructed, by combinations too powerful to be suppressed by the ordinary course of judicial proceedings, or by the power vested in the marshals by law, any person or persons, his, her, or their agent, attorney, or employe, shall purchase or acquire, sell or give, any property of whatsoever kind or description, with intent to use or employ the same, or suffer the same to be used or employed, in aiding, abetting, or promoting such insurrection or resistance to the laws, or any person or persons engaged therein ; or if any person or persons, being the owner or owners of any such property, shall knowingly use or employ, or consent to the use or employment of the same as aforesaid, all such property is hereby declared to be lawful subject of prize and capture wherever found ; and it shall be the duty of the President of the United States to cause the same to be seized, confiscated, and condemned.5
O número de escravos libertos por esse primeiro ato foi ínfimo, tanto pelo
documento não pressionar os militares a o fazerem, como também pela
ambiguidade de sua redação. O primeiro Confiscation Act não tratava
explicitamente dos escravos de senhores leais a União, o que gerou dúvidas e
conflitos entre os militares que encontravam os fugitivos, muitas vezes, dos
borderstates. Quanto à emancipação, o documento apresentava, igualmente,
caráter evasivo. Desta maneira, o presidente mantinha-se dentro dos limites
constitucionais, evitando mais ataques contra seu governo. Simultaneamente,
reafirmava sua autoridade para confiscar e apreender os bens daqueles que
aderiram à rebelião, auxiliando financeiramente o esforço de guerra que começava
a apresentar as primeiras vitórias no campo de batalha. Entretanto, o primeiro
Confiscation Act não tinha como objetivo principal aumentar a renda da União.
Seus esforços estavam focados em tentar punir os rebeldes e assinalar uma ameaça
5 Disponível em: http://teachingamericanhistory.org/library/document/first-confiscation-act/ Acesso em: 08 de julho de 2013
Limites do federalismo e da constituição
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 367-380.
à escravidão nos estados insurgentes, visando desestabilizar a Confederação. Desta
forma, o ponto mais controverso versava a respeito dos escravos. Porém, seu
impacto na Confederação e na escravidão não foi tão grande quanto os nortistas
esperavam. (SYRETT, 2005, pp. XII-14)
A gestão Lincoln vinha sofrendo constantes críticas com relação à
interferência e desrespeito à organização federalista dos estados. Neste sentido,
mesmo alargando seus poderes, houve relutância do presidente em implementar o
primeiro Confiscation Act. Segundo os opositores, o ato transgredia os direitos
assegurados pela Constituição de 1776 quando definia que o confisco de bens,
terras e escravos seria mantido para além da vida do traidor. Os ataques
direcionavam-se também para as condições em que se realizariam as apreensões.
Afinal, um morador do sul, mesmo sem dar suporte ou apoio ao esforço de guerra
confederado, poderia ter suas terras e escravos apreendidos simplesmente por ser
cidadão de um estado rebelde? Caso fosse condenado, como era possível provar
que suas propriedades estavam sendo utilizadas em prol da Confederação?
(SYRETT, 2005, pp. 05-15)
Diante deste panorama de questionamentos e críticas, em fins de julho de
1861 o Congresso aprovou a resolução Crittenden-Johnson, na qual afirmava
oficialmente que a guerra não estava sendo travada “(...) for any purpose of
conquest, or subjugation, nor purpose of over throwing or interfering with the
right or established institutions of those [Confederate] states.” (PALUDAN, 2007, p.
44). Com essa resolução, o governo comprometia-se a não interferir na política
interna dos estados, reiterando que a guerra não era contra a escravidão. O
primeiro Confiscation Act seria uma medida militar, não abolicionista. Entretanto,
identificamos esse primeiro Ato como uma ofensiva, ainda que cuidadosa, à
escravidão. Mesmo temeroso da perda de apoio, Lincoln procura trabalhar para
desestabilizar econômica e politicamente os estados rebeldes, atacando seu
principal alicerce: o sistema escravocrata. Para além dessa questão, procurava,
mesmo que de maneira tímida e com muitas restrições, sanar os problemas de
recrutamento e angariar fundos para gerir o esforço de guerra.
Os congressistas republicanos estavam prontos para um ataque mais
severo às bases da instituição escravista, mas os representantes dos BorderStates e
Lara Taline dos Santos
373 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 367-380.
a opinião pública como um todo não estavam. O presidente soube observar esse
cenário e manobrar de forma a não prejudicar seu governo e as conquistas
executivas que vinha angariando. Assim, os esforços de Lincoln foram cuidadosos
na implementação deste primeiro ato. (SYRETT, 2005, pp. 04-13)
Com o recrudescimento do conflito crescia exponencialmente a
necessidade de contingente humano, evidenciando problemas de insuficiência
militar e financiamento de guerra. Ao governo Lincoln cabia angariar fundos, afim
de custear as tropas nortistas e desestabilizar a Confederação, a partir do ataque à
escravidão. Paralelamente, o presidente procurava regularizar o ingresso e
organização de negros nas tropas da União, uma vez que extraoficialmente a
presença de regimentos de homens de cor, compostos inúmeras vezes por negros
fugidos de estados escravistas, já era uma realidade desde antes da promulgação
do primeiro Ato. Porém, era preciso cuidado, pois um novo Ato, demasiadamente
duro com estados escravistas, poderia retirar da União os borderstates, dando
vantagem aos confederados.
Para tanto, um ano após a aprovação da resolução, em 17 julho 1862, o
Congresso aprovou o segundo Confiscation Act, também proposto pelo senador
Trumbull. Esse ato, muito menos tolerante com os rebelados, estabelecia que o
crime de traição fosse passível de multa mínima de dez mil dólares, podendo
chegar a pena de morte. Os condenados perderiam imediatamente todas as suas
terras e bens, que seriam utilizados pela União para custear a guerra. Essa medida
sinalizou os primórdios de uma política de redivisão de terras entre os
republicanos que tornou-se evidente durante a Reconstrução.
Be it enacted by the Senate and House of Representatives of the United States of America in Congress assembled, That every person who shall hereafter commit the crime of treason against the United States, and shall be adjudged guilty thereof, shall suffer death, and all his slaves, if any, shall be declared and made free; or, at the discretion of the court, he shall be imprisoned for not less than five years and fined not less than ten thousand dollars, and all his slaves, if any, shall be declared and made free; said fine shall be levied and collected on any or all of the property, real and personal, excluding slaves, of which the said person so convicted
Limites do federalismo e da constituição
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 367-380.
was the owner at the time of committing the said crime, any sale or conveyance to the contrary notwithstanding.6
O segundo Confiscation Act derrubou a limitação, imposta no primeiro, de
que seriam confiscados e incorporados a USCT7 no norte apenas os escravos
utilizados em batalha. Com o novo ato, escravos de todos os senhores rebeldes -
quer houvessem sido utilizados na guerra, quer não – poderiam ser libertados.
Desta forma, o documento visava acabar com o dilema relativo à incorporação de
ex-escravos no exército, ampliando os poderes de Lincoln com relação às tropas
negras, podendo inclusive armá-las, possibilidade descartada um ano antes. Essas
medidas visavam dar ao presidente melhores condições de combater as forças
confederadas e colocar fim ao conflito tão oneroso ao país.
SEC. 11. And be it further enacted, That the President of the United States is authorized to employ as many persons of African descent as be may deem necessary and proper for the suppression of this rebellion, and for this purpose he may organize and use them in such manner as he may judge best for the public welfare.8
Com relação aos escravos fugidos, o documento definia que eles não
seriam mais devolvidos, com exceção daqueles oriundos dos borderstates. Assim, a
libertação dos escravos mantinha-se restrita aos estados rebeldes. Os negros
fugidos de estados escravistas leais a União eram compreendidos enquanto
prisioneiros de guerra, devendo ser prontamente devolvidos aos seus senhores.
SEC. 10. And be it further enacted, That no slave escaping into any State, Territory, or the District of Columbia, from any other State, shall be delivered up, or in any way impeded or hindered of his liberty, except for crime, or some offence against the laws, unless the person claiming said fugitive shall first make oath that the person to whom the labor or service of such fugitive is alleged to be due is his lawful owner, and has not borne arms against the United States in the present rebellion, nor in any way given aid and comfort thereto; and no person engaged in the military or naval service of the United States shall, under any pretence whatever, assume to decide on the validity of the claim of any
6 Disponível em: http://teachingamericanhistory.org/library/index.asp?document=559Acesso em: 08 de julho de 2013 7 Astropas negras que integravam o serviço militar norte-americano era designadas pela sigla USCT – United States Colored Troops. 8 Disponível em: http://teachingamericanhistory.org/library/index.asp?document=559 Acesso em: 08 de julho de 2013
Lara Taline dos Santos
375 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 367-380.
person to the service or labor of any other person, or surrender up any such person to the claimant, on pain of being dismissed from the service.9
Apesar de libertar escravos oriundos de estados rebeldes e dos
"territórios"10 as leis não chegaram a atingir o cerne da questão escravista, em
parte pelas limitações impostas pela Constituição, mas também visando a
manutenção do apoio dos borderstates.
Na mesma data foi também aprovado o Milita Act, documento que vinha
revisar um primeiro ato de mesmo nome emitido em 1792 convocando a formação
de uma milícia nacional, organizada com fins de suprimir insurreições, repelir
invasões e executar as leis federais.
Nas seções 12 a 15, o ato conferia ao presidente total autoridade – em
concordância com a Constituição e as leis – para aprovar o recrutamento de negros
para atuar no exército e na marinha, concedendo-lhes o direito de nomear os
oficiais que ficariam no comando das coloredtroops.
SEC. 12.And be it further enacted, That the President be, and he is hereby, authorized to receive into the service of the United States, for the purpose of constructing intrenchments, or performing camp service or any other labor, or any military or naval service for which they may be found competent, persons of African descent, and such persons shall be enrolled and organized under such regulations, not inconsistent with the Constitution and laws, as the President may prescribe.11
O Militia Act buscava situar modelos quanto ao recrutamento, treinamento
e armamento de todos os soldados, além de assegurar legalmente a manutenção do
tratamento desigual entre soldados brancos e negros de mesma patente.
O alistamento, segundo o Militia Act, deveria estender-se a todos os
homens entre 18 e 45 anos, sendo que após seis meses de ingresso no exército
9 Disponível em: http://teachingamericanhistory.org/library/index.asp?document=559 Acesso em: 08 de julho de 2013 10 Os "territórios" foram criados como unidade política dos Estados Unidos da América com fins de melhor administrar terras ainda pouco exploradas ou recém adquiridas, enquanto as fronteiras do país ainda estavam consolidando-se. Os territórios não entram no sistema federalista, assim são supervisionados diretamente pelo governo federal. Durante a guerra civil os territórios eram: Dakota Territory, Nebraska Territory, Colorado Territory, IndianTerritory (Oklahoma), New MexicoTerritory, Utah Territory e Washington (District of Columbia) Terrytory. 11 Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/milact.htm. Acesso em: 08 de julho 2013
Limites do federalismo e da constituição
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 367-380.
esses soldados deveriam estar armados com rifles ou mosquetes. Entretanto, a
área de atuação dos negros continuava, não raro, restrita à construção e reparo de
fortificações.
O documento reiterava ainda que os negros, tendo em vista sua condição
de inferioridade natural, não deveriam ser tratados da mesma maneira que seus
homólogos brancos. O tratamento diferenciado se estenderia à questão do soldo.
Uma das arguições discriminatórias referia-se ao fato de os soldados negros não
haverem integrado o exército desde os primórdios do conflito e, por esse motivo,
alegava-se não possuírem direito ao mesmo valor de soldo dos brancos. Desta
forma, os valores baixos pagos a todos os soldados eram ainda mais irrisórios para
os negros. Os soldados brancos recebiam U$13,00 mensais, com um adicional de
U$3,50 para custear o fardamento. Os soldados negros, por sua vez, recebiam
U$10,00 mensais que poderiam ser pagos em uniformes.
Paralelamente, o documento apresenta-se como um compromisso da
administração Lincoln com os Bordes States, temerosos de que a incorporação de
soldados de cor na milícia da União pudesse ser um passo a mais em um processo
de emancipação dos escravos. Ao emitir o Militia Act, Lincoln está, uma vez mais,
em terreno hostil, não podendo inflamar os ânimos dos oposicionistas dos Bordes
States, sob ameaça de perder o apoio crucial desses estados que ainda mantinham-
se escravistas mesmo sob a égide da União. Assim, identifica-se o
comprometimento do presidente em realizar uma emancipação gradual dos
escravos, abarcando, conforme a seção treze, apenas os estados rebelados.
SEC. 13. And be it further enacted, That when any man or boy of African descent, who by the laws of any State shall owe service or labor to any person who, during the present rebellion, has levied war or has borne arms against the United States, or adhered to their enemies by giving them aid and comfort, shall render any such service as is provided for in this act, he, his mother and his wife and children, shall forever thereafter be free, any law, usage, or custom whatsoever to the contrary notwithstanding: Provided, That the mother, wife and children of such man or boy of African descent shall not be made free by the operation of this act except where such mother, wife or children owe service or labor to some person who, during the present rebellion, has borne arms against
Lara Taline dos Santos
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the United States or adhered to their enemies by giving them aid and comfort.12
Lincoln trabalhou para que a implementação das novas leis fosse bem-
sucedida, tendo em vista que ambos os atos constituíam uma ingerência na
autonomia dos estados. Sua promulgação acenava com uma saída honrosa para os
que resolvessem mudar de ideia e reintegrar-se a União. O segundo Confiscation
Act, mais especificamente, dava aos rebeldes a chance de rever sua posição,
jurando lealdade à União dentro do prazo máximo de sessenta dias, sob a garantia
presidencial de asilo e perdão. Com esta medida, a gestão Lincoln projetava uma
cisão na Confederação, planejando que aqueles agentes – individuais ou coletivos –
que, temendo as medidas do ato, regulamentassem sua situação se colocariam em
conflito direto com os que ainda desafiavam os decretos presidenciais. O ato
sinaliza a expectativa de que as punições severas impostas aos traidores levariam a
elite sulista a repensar a posição separatista. (SYRETT, 2005, p. 01).
Considerações Finais
Ambos os Confiscation Acts, bem como o Milita Act, constituíram os
primórdios da política de emancipação dos escravos, mas sem oferecer nenhuma
garantia de manutenção dos direitos civis dos ex-escravos. Sua promulgação
impeliu Lincoln a abraçar a causa abolicionista, porém a própria legislação
apontava que o objetivo da emancipação era servir aos interesses nortistas e
republicanos e não garantir melhor padrão de vida aos negros. O segundo
Confiscation Act apoiava a emigração dos ex-escravos para países declima tropical,
aonde, supostamente, se adaptariam melhor e poderiam desfrutar de sua condição
de homens livres.13
Os atos – sobretudo o segundo – apresentaram-se como uma tentativa do
governo Lincoln de promover uma emancipação gradual e compensada dos
escravos, a fim de não perder o apoio dos borderstates e talvez convencer os
estados rebeldes a abandonarem a causa da secessão, iniciando a reforma do Sul
12 Disponível em: http://www.history.umd.edu/Freedmen/milact.htm. Acesso em: 08 de julho 2013. 13 Disponível em: http://teachingamericanhistory.org/library/index.asp?document=559. Acesso em: 08 de julho de 2013
Limites do federalismo e da constituição
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durante o próprio conflito. Para além do período da guerra, a legislação dos atos-
mesmo que de forma dúbia – lançou as bases que nortearam a política de redivisão
de terras e tratamento dos recém-libertos no período da Reconstrução. (SYRETT,
2005, pp. XII-01)
Em 17 de setembro de 1862, as tropas nortistas do general George B.
McClellan ganharam a batalha mais sangrenta da guerra civil, Antietam. A vitória
estratégica em Maryland possibilitou a emissão de uma Proclamação de
Emancipação preliminar cinco dias depois do embate. A assinatura deste
documento transformava a guerra em um conflito não apenas para salvar a União,
mas também para abolir a escravidão, uma vez que a resolução de libertação dos
escravos afetava todos os estados ainda rebelados em 01 de janeiro do ano
seguinte. Porém, a escravidão ainda era mantida nos estados leais. Com o avanço
das tropas da União nesses territórios, o número de escravos fugidos que tentavam
adentrar o exército aumentou ainda mais, deixando momentaneamente sem ação
militares e autoridades civis. Progressivamente, evidenciava-se a contradição que
representava a existência dos BorderStates escravistas na União. (PALUDAN, 2007,
p. 45)
Desta forma, mesmo com a Proclamação de Emancipação oficial de 1863, a
libertação dos escravos continuou limitada constitucionalmente. O poder do
presidente restringia-se ao poder de guerra, visando restaurar a União o mais
rápido possível. Esse poder não era operacional em estados leais que, portanto,
não tiveram a escravidão ameaçada. Desta forma, a emancipação manteve-se
circunscrita a estados rebeldes nos quais a guerra ainda estava em curso.
(PALUDAN, 2007, p. 46)
Os atos apontam para um Lincoln desejoso de sua própria emancipação
executiva, assinalada sobretudo no segundo Confiscation Act. A aprovação dos atos
conferiu-lhe maior autonomia para gerenciar a incorporação de negros aos corpos
militares da União e iniciar uma legislação prévia de emancipação, mesmo que
inicialmente restrita aos escravos de Estados insurretos. Porém, a ação executiva
do presidente jamais transgrediu os limites estabelecidos pela Constituição.
Lara Taline dos Santos
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Lincoln libertou os escravos, mas somente onde era constitucionalmente possível.
14
FONTES
Carta do presidente Abraham Lincoln a Horace Greely, editor do jornal Tribune e um dos membros fundadores do partido republicano. Washington, 22 de agosto de 1862. Disponível em: <http://www.abrahamlincolnonline.org/lincoln/speeches/greeley.htm>. Acesso em 08 de junho de 2013.
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Militia Act (1862). Disponível em: <http://www.history.umd.edu/Freedmen/milact.htm> Acesso em: 08 de junho de 2013.
Second Confiscation Act (1862). Disponível em: <http://teachingamericanhistory.org/library/index.asp?document=559>. Acesso em: 08 de junho de 2013.
Referências
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HORTON, James Oliver. "Slavery during Lincoln´s Lifetime". In: HOLZER, Harold; GABBARD, Sara Vaughn (Org). Lincoln and Freedom: Slavery, Emancipation and the Thirteenth Amendment. Southern Illinois University Press, 2007.
14 A comunicação é parte integrante do projeto de pesquisa "As visões da liberdade e da escravidão dos soldados negros na Guerra Civil Americana (1861-1865)" sob orientação da professora doutora Martha Daisson Hameister. Atualmente a pesquisa encontra-se em fase de análise da documentação e em seguida será organizada em uma dissertação a ser apresentada como conclusão do curso de mestrado.
Limites do federalismo e da constituição
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 367-380.
PALUDAN, Phillip Shaw. "Lincoln and the Limits of Constitucional Authority". In:HOLZER, Harold; GABBARD, Sara Vaughn (Org). Lincoln and Freedom: Slavery, Emancipation and the Thirteenth Amendment.Southern Illinois University Press, 2007.
SYRETT, John. Confiscation Acts. Failing to Reconstruct the South. Fordham University Press, 2005.
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
A FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO EM PERNAMBUCO (1872-1890): CRISE
ECONÔMICA, O FIM DO IMPÉRIO E O ENSINO PÚBLICO 1
Flávia Bruna Ribeiro da Silva Braga2
Resumo: Este artigo tem como objetivo trazer novas perspectivas à feminização
do magistério em Pernambuco, conseqüência do período econômico do final do
Império e o crescimento das escolas mistas a partir da análise da documentação da
Inspetoria de Instrução Pública em Pernambuco, sob a guarda do Arquivo Público
Jordão Emerenciano, no período de 1872 a 1890. O fim do Império e as
repercussões no ensino público da Província são aspectos gerais do tema a ser
abordado.
Palavras-chave: Feminização. Magistério. Pernambuco. Império
Abstract: This article brings new perspectives about the historical feminization of
education in Pernambuco, Brazil, as a consequence of the final economic Imperial
period and the grown of both-sexes schools based on the analysis of the Public
Education Secretary documentation in Pernambuco, guarded by the Public Archive
Jordão Emerenciano, between 1872 and 1890. The end of the Empire and its
consequences on public education in the Province are general aspects of the
subject.
Keywords: Feminization. Mastership. Pernambuco, Empire
INTRODUÇÃO
A História da Educação em Pernambuco é um campo ainda pouco explorado.
Mais desconhecido ainda é o período Colonial e Imperial da educação em
Pernambuco, que tem na tese de doutoramento da Profª. Adriana Maria Paulo da
1 Recebido em 13/03/2013. Aprovado em 03/12/2013.
2 Granduanda da UFPE em História. Pesquisa realizada sob orientação da Prof. Dr. Adriana Maria
Paulo da Silva (Pós-graduação em educação da UFPE) com financiamento da FACEPE no ano de 2011-12. Curriculo Lattes http://lattes.cnpq.br/6601915163369923. E-mail: [email protected]
A feminização do magistério em Pernambuco (1872-1890)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
Silva3, um dos trabalhos pioneiros sobre o tema. Baseado no caminho traçado pela
Profª. Adriana, o estudo sobre a atuação social dos professores públicos na
província de Pernambuco continua através das pesquisas com graduandos sob a
orientação da Profª Adriana, através de bolsas PIBIC/Facepe e CNPq. Neste artigo,
buscamos tratar a participação feminina no magistério público de Pernambuco no
final do Império e traçar os principais aspectos que levaram a profissão de
professor primário a uma esfera majoritariamente feminina já no fim do século
XIX. Tendo como principal referência as cidades de Olinda e Recife e o período do
ocaso do Império, este artigo busca trazer novas discussões acerca da feminização
do magistério em Pernambuco.
De acordo com June E. Hahner4 a feminização do magistério durante a década
de 70 do século XIX está ligada ao ensino feminino, mais valorizado pela camada
social que prestigiava o desenvolvimento material e o progresso da nação no qual
“salientam o poder da mulher para orientar o desenvolvimento moral de seus
filhos e a formação de bons cidadãos para a Nação” (HAHNER: 2011, 468). Afirma
ainda o autor que o crescimento de mulheres alfabetizadas nos centros urbanos
mais desenvolvidos forneceu um grande potencial de professoras contratadas por
salários mais baixos. (2011, 468). O argumento de Hahner é fundamental para a
defesa do mesmo princípio para o fenômeno ocorrido em Pernambuco, o qual
procuramos elucidar ao longo do artigo.
Na Corte5, a feminização do magistério está relacionada com a Escola Normal
mista, criada em 1880 em decorrência da lei que regulamenta a coeducação de
ambos os sexos em 1879. Acrescenta-se a presença da Escola Normal mista a
presença de positivistas como Benjamin Constant que professavam a qualidade
feminina para o magistério. Afirma Marina Natsume Uekane que a questão da
feminização está ligada “à presença das meninas nas escolas primárias, devendo
3 SILVA, Adriana Maria Paulo da. Processos de construção da escolarização em Pernambuco, em fins do século XVIII e primeira metade do século XIX. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007. 398 p. 4 HAHNER, June E. Escolas mistas, escolas normais: a coeducação e a feminização do magistério no século XIX. Revista de estudos feministas : Florianópolis, maio-agosto/2011. 5 UEKANE, Marina Natsume. “Mulheres em sala de aula”: um estudo acerca da feminização do magistério primário na Corte (1879-1885). Encontrado em: < http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/posteres/GT02-3332--Int.pdf > Acesso em 10 de junho de 2013.
Flávia Bruna Ribeiro da Silva Braga
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
este espaço ser organizado para recebe-las” (2005, 4). Em relação à feminização
em Pernambuco, não é possível concordar com Uekane, visto que o acesso a
profissionalização no magistério feminino era muito restrito e, por vezes,
desencorajado – principalmente quando se tratavam das aulas gratuitas da
Sociedade Propagadora da Instrução Pública – a questão do feminização do
magistério em Pernambuco está ligada, portanto, a outros fatores.
Também em Minas Gerais6 a feminização do magistério é estudado a partir da
ótica das Escolas Normais. Nesta Província, o número de professoras públicas tem
um rápido crescimento a partir da década de 1860. Ali o discurso de valorização da
competência feminina para o magistério parece ser pioneiro em relação a outras
província brasileiras, visto que já em 4 de fevereiro de 1841 o Presidente da
Província de Minas Gerais destacava essas qualidades. Também em Minas o ensino
de escolas mistas – como veremos no caso de Pernambuco – era anterior a
legislação de 1879 que regulamentou o ensino coadunado. No Relatório ao
Presidente da Província, de 1879, já afirmava o Inspetor que ali as mulheres
estavam lutando pela paridade salarial. Cito:
“Têm elas (as professoras) de reger escolas mistas frequentadas pelos meninos de ambos os sexos, escolas que já existiam em nossos costumes, antes de qualquer prescrição legal, sem inconvenientes algum; organizados como se acham, além de econômicas, podem trazer muitas vantagens à educação dos costumes” (Citado por FILHO; MACEDO, pág. 5)
Afirmam os autores ainda que – assim como defendo para o caso de
Pernambuco – cai por terra o argumento de que as Escolas Normais tiveram papel
preponderante na feminização do magistério, já que a formação de professora era
em número muito reduzido e a presença de professoras não-normalistas (sem
formação) era expressivo. O magistério, provavelmente, teria se tornado feminino
no fim do século, em Minas Gerais, independente da Escola Normal.
6 FILHO, Luciano Mendes de Faria. MACEDO, Elenice Fontoura de Paula. A Feminização do magistério em Minas Gerais (1860-1910): política, legislação e dados estatísticos. Encontrado em < http://www.sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe3/Documentos/Coord/Eixo5/478.pdf > Acesso em 10 de junho de 2013.
A feminização do magistério em Pernambuco (1872-1890)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
Também na Bahia7 o processo de feminização do magistério se registra no
período final do século XIX, quando a matrícula feminina da Escola Normal supera
o número das matrículas masculinas no período Republicano (1895).
Diferentemente de Pernambuco, na província da Bahia a criação de Escolas
Normais no interior do Estado (Caetité e Barra) demonstra uma intenção em
aumentar o número de professores em várias regiões, e não apenas na Capital. Em
Pernambuco, a criação de Escolas Normais ficou a cargo da Sociedade
Propagadora, fruto do voluntarismo dos professores em regiões suburbanas da
“Escola Normal Oficial”. O Estudo supracitado defende que a feminização do
magistério na Bahia esteve ligado a um crescente aumento do interesse feminino
pelos estudos, tendo na profissão de professora a única via para ingressar nesse
meio. Apesar de não termos, em nenhum momento da pesquisa, elementos que
demonstrassem o afã feminino pelo estudo, não desconsideramos tal argumento
visto que o número de alunas tanto nas escolas primárias, quanto nas noturnas e
Normais, aumentaram progressivamente no mesmo período.
CONTEXTO ECONÔMICO BRASILEIRO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
A feminização do magistério em Pernambuco – e aqui abordo “feminização”
por superioridade numérica em relação ao total de professores da Província –
ocorreu em um período de crise financeira para a região. O segundo período do
século XIX para a Província de Pernambuco é marcado por sucessivas secas – mais
notadamente a de 18788 e 1879 – além de intermitentes casos de epidemias9.
7 DICK, Sara Martha. LIMA, Marise da S. Urbano. PURIFICAÇÃO, Marília F. da. Feminização do magistério primário baiano, 1889-1930. II seminário Nacional de Gênero e Práticas Culturais. Culturas, leituras e representações. Encontrado em < http://itaporanga.net/genero/gt1/20.pdf > Acesso em 10 de junho de 2013. 8 A seca de 1878 foi tão expressiva para a região que a Câmara de Deputados não votou leis provinciais neste ano. Não há registro de publicação no código de leis até 1879. 9 Entre 1873 e 1890 registrei – no mínimo – 34 epidemias relatadas por professores e/ou moradores pernambucanos. Fonte: Registros da Série Instrução Pública localizados no Arquivo Público Jordão Emerenciano, IP26 ao IP54. Gravatá [Janeiro de 1873]; São Bento; Panellas; Cruangy; Timbaúba; Tanques [1875, julho]; Canhotinho [1877]; Barreiros [1878, Setembro] ;Altinho [1878, Setembro]; Bezerros [1878, Outubro]; Vicência [1878, Outubro] ; São Caetano da Raposa [Febre Amarela] ; Paudalho [Bexigas, 1878, Setembro]; São Vicente [1878, Outubro]; Canhotinho [1878, Novembro]; Preguiça [1879, Janeiro]; São Bento [1879, Janeiro]; Vertentes [1879, Novembro]; Paudalho [1880, Outubro]; Taquaretinga [1881, Janeiro]; Alagoa do Carro [1882, Julho]; São José da Coroa Grande [1882, Agosto]; Gravatá [1882, Agosto]; Alagoa do Carro [1882, Agosto]; Peres [1883, Maio] ; Igarassú [1883, Maio]; Igarassú [1884,
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Mas, é a partir do relato de duas cartas endereçadas por duas professoras
públicas à Secretaria da Instrução Pública, que podemos argumentar acerca das
dificuldades financeiras do país que passou o Segundo Reinado e o Governo
Provisório republicano. A primeira carta, da professora Francisca Alves de
Azevedo, de Água Branca (atualmente pertencente ao Estado da Paraíba, cerca de
400km de Recife no sertão do Pajeú), em 26 de novembro de 1889 (7 dias após a
instauração da República em Pernambuco)10
Cadeira mista de Instrução Primária do Povoado de Água Branca, 26 de novembro de 1889
Ilmo Sem
Pulsando no meu peito de brasileira um titânico entusiasmo pelo agigantado passo que deu o Brasil, venho por meio deste oferecer metade dos meus vencimentos mensais a contar de janeiro do ano vindouro até dezembro, para auxiliar o déficit público que minha pátria contraiu com o estrangeiro.
Saúde e fraternidade
Dr. Arthur Orlando da Silva, M.D. Inspetor da Instrução do Estado de Pernambuco; Francisca Alves de Azevedo, Professora.11
Manuel Correia de Andrade12 em seu livro História das Usinas de Açúcar em
Pernambuco, quando aborda esse período do final do século XIX, argumenta que as
tentativas de implantação dos Engenhos Centrais – que fracassaram – assim como a
contração de empréstimos para as primeiras Usinas e o sistema ferroviário que servia a
indústria açucareira, são alguns dos aspectos da progressiva dívida externa que contrai
Pernambuco na sua tentativa de modernização. Evaldo Cabral de Mello13, assim como
Manuel Correia, em seu livro Norte Agrário e o Império, também faz uma análise da
situação financeira do Norte do Império, quando argumenta acerca dos fundos de
emancipação dos escravos – fator de intensa disputa entre o sul e o norte – assim como o
Junho]; Caruarú [1884, Junho]; Riacho Doce [1884, Julho]; Porto de Galinhas [1884, Julho]; Pedra Branca [1884, Agosto]Taquaretinga [1884, Novembro]; Rio Doce [1889, Fevereiro]; Capital [1890]. 10 Deve-se levar em consideração que a distância e as dificuldades enfrentadas pelo sistema de correio do Império impressiona que em apenas sete dias esta professora tenha declarado seu apoio à República. 11 IP51. 28 de novembro de 1889. P.282. Pg. Anexo. Anexo 1 12 ANDRADE, Manuel Correia de; Fundação Joaquim Nabuco; CNPq. Comissão de Eventos Históricos. Historia das usinas de açúcar de Pernambuco. Recife: Fundação Joaquim Nabuco : Massangana, 1989.. 114p. 13 MELLO, Evaldo Cabral de. O norte agrário e o Império: 1871-1889 . 2. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, c1999. 299p.
A feminização do magistério em Pernambuco (1872-1890)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
fundo de imigração estrangeira que, no final do Império, destina a maior parte dos fundos
públicos da Corte para agricultores e empresários sulistas. Os empresários
pernambucanos, diante de tal quadro, contraem sucessivos empréstimos com bancos
estrangeiros – notadamente os ingleses – na tentativa de modernização e sobrevivência
das lavouras de cana. Em 5 de dezembro de 1889, outra professora pública, esta de São
Frei Pedro Gonçalves do Recife (Capital) também repete o “ato patriótico”:
5ª cadeira da freguesia de São Frei Pedro Gonçalves do Recife do Estado de Pernambuco, 5 de dezembro de 1889
Sem. Diretor da Instrução Pública
No intuito de também concorrer com uma soma qualquer para o pagamento da dívida externa da Nação Brasileira, que ora atravessa uma crise política tão simpática pela mudança radical da forma de governo para a República, folgo em comunicar-vos que resolvi fazer descontar dos meus ordenados de professora pública a quantia de dois mil réis mensais a contar do mês próximo de janeiro de 1890 até o completo pagamento daquela dívida. Sinto sinceramente não poder concorrer em quantia maior como era meu desejo, mas acreditai Sem Diretor, que os meus compromissos não permitem mais. É o que me cumpre comunicar-vos.
Saúde e Fraternidade
Sem. Diretor da Instrução do Estado de Pernambuco; Maria Florentina de Góes Cavalcanti; Professora pública.14
O que levam os professores públicos a tal ato de empatia com a recente República?
Para isso seria necessária uma pesquisa mais profunda acerca do advento da República em
Pernambuco. Mas é de se considerar que as sucessivas secas registradas, assim como as
epidemias, somadas a um contexto de empréstimos estrangeiros que só aumentavam a
dívida pública, além da “negligencia” da Corte com as Províncias do Norte, davam alguns
dos aspectos de insatisfação para com o governo e o alimento necessário para a esperança
em um sistema político que trouxesse o progresso. Maria Tereza Chaves de Mello em seu
livro A República Consentida15, que aborda a opinião pública da população carioca sobre o
Segundo Reinado, tendo o regime monárquico perdido, paulatinamente, a admiração e o
respeito como sistema de governo eficaz e representante do progresso tão presente nos
14 IP51. 13 de dezembro de 1889. P.306. Pg. Anexo. Anexo 1 15 Mello, Maria Tereza Chaves de. A república consentida: cultura democrática e científica do final do Império. Rio de Janeiro: Editora FGV; Editora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. 2007. 244p.
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
discursos do fim do século XIX. Não diferentemente eram os professores públicos em
Pernambuco que, vez ou outra, apareciam nos Registros sendo acusados de falar mal do
governo, como ocorreu com o professor de Tejipió, Joaquim Manoel de Oliveira e
Silva, falam os moradores
Ilmº e Exmº Sem Presidente da Província É muita audácia do professor de Tegipió Joaquim Manoel d’Oliveira e Silva, estar constantemente de porta em porta cabaltando contra o governo e faltando de dar aula a seus alunos sem se temer de coisa alguma e queremos saber se esse professor fica impune cometendo semelhante abuso. Tegipió 2 de outubro de 1876 Os habitantes de Tegipió16
Defende o professor o delegado literário
[...] verifiquei que era exagerada a notícia que deram a v.sª o professor Joaquim Manoel só deixou de dar aula no dia 2 deste mês. O que é exato é que o referido professor é partidário exaltado e em sua oposição a atualidade política, não guardou as conveniências a que está obrigado na qualidade de professor público, que me parece, em razão do oficio, tem deveres mais restritos em política do que outro qualquer empregado público. [...]17
A insatisfação para com o regime monárquico se elevou irremediavelmente
após a Guerra do Paraguai. As despesas nacionais com a guerra, assim como o
contingente humano empregado, teve conseqüências financeiras profundas na
organização nacional monetária. Afirma Luís Carlos Delorme Prado que
“A estrutura financeira do país e a inadequada política monetária do governo imperial não contribuiu para a aceleração do crescimento econômico, mas, ao contrário, reforçou as dificuldades criadas pelas restrições ao mercado doméstico e as ineficiência típicas de uma sociedade agrária e escravocrata.” 18
16 IP31. 11 de outubro de 1876. P.425. Pg. Anexo. Anexo 1 17 IP31. 19 de outubro de 1876. P.435. Pg. Anexo. Anexo 1 18 PRADO, Carlos Delorme. A Economia Política das Reformas Econômicas da Primeira Década Republicana. Encontrado em < http://cac-php.unioeste.br/cursos/toledo/historiaeconomica/eeb1-2.pdf > Pág.6. Acesso em 10 de junho de 2013.
A feminização do magistério em Pernambuco (1872-1890)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
Tendo o contexto econômico do final do século XIX, é possível agora traçarmos um
panorama da educação pública em Pernambuco neste período.
AS ESCOLAS NOTURNAS
As escolas noturnas eram, majoritariamente, destinadas a formação de
professores/as, assim como para alunos adultos e libertos, visto que esses
discentes eram quase sempre trabalhadores no período diurno. São essas escolas
que contribuíram para a escolarização e profissionalização feminina em crescente
demanda – visto que a Escola Normal era insuficiente para a quantidade de
professoras necessárias e, muitas vezes, inacessível à mulher de baixa renda. Ao
longo da pesquisa foram contabilizadas 81 escolas noturnas que funcionaram em
Pernambuco. A permanência dessas escolas, entretanto, não ocorreu de maneira
equilibrada, chegando mesmo a quase todas serem fechadas – excluindo as 07
principais da Capital [São José, Santo Antônio, Santo Amaro, São Frei, Boa Vista,
Madalena, Curato da Sé] – abruptamente pelo Governo Provincial em 1883, pelo
então Diretor Geral da Instrução Pública, João Barbalho Uchôa Cavalcanti. Não é
conhecida a causa do fechamento das escolas noturnas a partir da documentação
trabalhada. Muitas dessas escolas foram frutos do esforço e da persistência de
professores e/ou moradores de localidades, geralmente distantes do Recife, ou de
regiões pobres. Das escolas analisadas, 75 eram destinadas aos adultos homens;
apenas 6 escolas femininas noturnas foram abertas em Pernambuco. Na região
estudada entre Recife e Olinda, contabilizamos a criação de 36 escolas noturnas, no
período que vai desde 1872 até 1890, abaixo relacionadas:
1. Afogados 2. Beberibe 3. Boa Vista [3] – 2 masculinas; 1
feminina 4. Campo Grande 5. Capunga 6. Conceição de Maranguape 7. Curato da Sé de Olinda 8. Estância – Feminina 9. Jaboatão 10. Madalena 11. Monteiro [2] 12. Muribeca [2] – 1 Masculina ; 1
Feminina
13. Paratibe – Feminina 14. Peres 15. Porto da Madeira 16. Santo Amaro das Salinas [2] 17. Santo Antonio [3] – 1 masculina; 1
feminina; 1 libertos 18. São Frei Pedro Gonçalves [2] – 1
masculina; 1 libertos 19. São José 20. São Pedro Mártir de Olinda 21. Tejipió 22. Torre – Feminina 23. Travessa do Calabouço [2] – 1
Masculina; 1 Libertos
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
24. Várzea 25. Venda Grande
26. Caxangá 27. Encruzilhada
As escolas noturnas não gozavam de muita frequencia de alunos. No entanto,
podiam servir de meio a assegurar posições de destaque em determinadas
localidades19, assim como também reflete o desejo de professores em contribuirem
para a educação de adultos, visto que em muitas localidades interioranas (como
Escada, que tinha tanto escola masculina como feminina gratuitas) e em
localidades mais próximas a Recife, a regência da escola noturna era menos
prestigiada e além de tudo gratuita. Dos 36 professores que contabilizamos, 20 se
ofereceram para regerem gratuitamente suas aulas. A disputa pelas aulas noturnas
muitas vezes chegava ao ponto da barganha e do apelo, como vemos nas petições
de Benjamin Ernesto Pereira da Silva e João José Rodrigues. Estes professores
requereram, em 1881, a cadeira noturna de São Frei Pedro Gonçalves do Recife
(Capital) devido a jubilação do professor Antonio Rufino de Andrade Luna, então
professor a ser substituido, vejamos:
“João José Rodrigues oferece-se a serviço gratuitamente na aula noturna que vagou [...] devendo reverter em benefício de uma Caixa Econômina Escolar que o suplicante deseja fundar, metade da gratificação que lhe concede pelo exercício da referida escola e a outra metade deverá ser aplicada a compra de casa para escolas primárias”20
Ao passo que na petição de Benjamin Ernesto vemos:
“[...] julgo de toda justiça que seja nomeado o peticionário [Benjamin Ernesto] para reger a referida cadeira não só por que tem cumprido os seus deveres com a maior inteligência, zelo, dedicação e moralidade, como também porque é casado e tem a seu cargo numerosa família. Além disso o dever do cargo de delegado literário dessa freguesia, que ocupo a longos anos me obriga a dizer que o peticionário no espaço de dez anos que exerce o magistério não tem dado a menor falta nem gozado licença alguma, tem apresentado grande número de discípulos aprovados com distinção e plenamente, e sua aula é de todas a mais frequentada, sendo este ano por 116 alunos, o que prova a grande
19
Pois professores que acumulavam atividades no magistério tinham mais prestígio diante da Inspetoria
em critério de desempate. Por exemplo, quando vários professores requeriam uma transferência para a
mesma localidade, ter um “curriculo” mais extenso de atividades pesava no deferimento do pedido. 20
IP37. 17 DE NOVEMBRO DE 1881. P.518
A feminização do magistério em Pernambuco (1872-1890)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
vocação que tem para o ensino. Sua conduta civil como moral se torna digna de todos os elogios”21
Ressalte-se que a cadeira noturna foi dada ao professor João José Rodrigues.
Quanto as aulas noturnas femininas estas foram em reduzido número [6] Nas
localidades: Boa Vista, Santo Antonio, Paratibe, Estância, Muribeca e Torre. Temos
conhecimento das professoras Candida Menezes Drummond da Cunha [Boa Vista,
gratuitamente]; Maria Prisciliana Villela dos Santos [Torre, gratuitamente]; Amélia
Augusta de Moraes Quintal [Santo Antonio]. A professora de Paratibe, infelizmente,
não teve seu nome registrado na petição encontrada no IP22. Durante a pesquisa,
houve duas professoras em Paratibe: Maria Amancia César de Souza [1887] e
Henriquieta Amelia de Menezes Lyra [1872]23. A professora de Estância é
Francelina Forjaz de Lacerda [Gratuitamente] e a de Muribeca é Ernestina
Victorina Beranger [Gratuitamente]. É importante ressaltar a criação dessas
escolas noturnas femininas, pois elas serão essenciais para a formação de
professoras (que, muitas vezes, foi exclusiva da Escola Normal), como as escolas
noturnas femininas criadas pela Sociedade Propagadora da Instrução Pública24.
Esta sociedade, que ainda não foi devidamente estudada pelos historiadores, foi
essencial para a educação de pessoas de baixa renda. Entretanto, a Escola Normal
da Sociedade Propagadora não era bem vista pela sociedade recifense, tendo sido
diferenciada na documentação da “Escola Normal Oficial”.
ESCOLAS MISTAS
A lei que regulamenta acerca das escolas mistas, no Brasil, data de 1879. No
entanto, elas já existiam em Pernambuco, pelo menos, desde 1872. As informações
sobre a sua existência, através dos Relatórios da Instrução Pública, só surgem a
partir de 1876, quando já contava com 13 escolas mistas espalhadas pela
21
IP37. 11 DE JULHO DE 1881. P.297[FV]. PG.ANEXO. ANEXO 1 22 IP40. 3 DE OUTUBRO DE 1884. P.221. 23 É provável que a professora Henriquieta tenha sido a requerente da escola noturna por ter permanecido no dito local por longos anos e também porque o pedido foi feito em 1884, já que somente em 1887 – três anos depois - a cadeira será da professora Maria Amância César de Souza. A professora Maria Amância só aparece no IP em 1887, no entanto, não é possível afirmar que ela seria a professora em questão. 24 A Sociedade Propagadora da Instrução Pública era uma organização de professores voluntários que visavam a formação de professores e professoras para o magistério público, assim como a educação de adultos pobres. A Escola Normal, por sua vez, também formava professoras, só que mediante mensalidade.
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
Província. O advento da escola mista foi, ao que parece, uma tendência
administrativa da Inspetoria durante a década de 70 do século XIX e, mais
fortemente, na de 80 do mesmo século como forma de contenção de gastos em
localidades mais afastadas às freguesias centrais do Recife e Olinda. Dessa forma,
um estudo aprofundado das escolas mistas teria que, necessariamente, se voltar
para as localidades do interior da Província, visto que a transformação de cadeiras
de um ou outro sexo acontecia em decorrência de baixa frequência de alunos. A
prática de recorrer à criação de escolas mistas tomou força com o declinar do
Império, em meio à crise econômica supracitada, e contribuiu para a feminização
do magistério. Visto que as mulheres eram as únicas permitidas para regerem
escolas mistas e a criação dessas últimas era imperativo para as demandas
orçamentárias cada vez mais exigentes, o magistério feminino alavanca com a
precipitação de escolas mistas e a regência de escolas masculinas por mulheres. É
neste período, por exemplo, que a grande seca de 1878 devasta grande parte da
província. Em 1890, final do período pesquisado, o Estado já contava com 217
escolas mistas, em comparação de 13 em 1876. O número de escolas mistas estava,
portanto, aumentando rapidamente. Abaixo o gráfico que ilustra a elevação do
número de escolas mistas na Província.
Fonte: Códices da Instrução Pública (26-54) localizado no Arquivo Público Jordão Emerenciano.
Em 1887 o então Inspetor Geral, João Barbalho Uchôa Cavalcanti, propõe a
transformação de diversas escolas do interior da Província em mistas, visando à
A feminização do magistério em Pernambuco (1872-1890)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
supressão de 95 escolas públicas de um ou outro sexo e o “enxugamento” da
despesa da Instrução Pública que, no ano em questão, já sentia a pressão financeira
da elevação do número de escolas, do número de professores – que, apesar de nem
todos receberem vencimentos, o número de professores com vencimentos cresceu,
assim como as despesas pela manutenção física da escola -, de alunos e concessões
de gratificações. A medida proposta por João Barbalho não é posta em prática
imediatamente, visto que muitos professores [homens] eram considerados
vitalícios e invioláveis em sua posição no magistério, e portanto não poderiam ser,
de imediato, retirados de suas cadeiras para darem lugar a uma professora. (Que
iria, portanto, acumular tanto a aula masculina quando a faminina da região).
Abaixo, uma comparação percentual entre escolas femininas, masculinas e mistas
em Pernambuco no período pesquisado.
Fonte: Códices da Instrução Pública (26-54) localizado no Arquivo Público Jordão Emerenciano.
Podemos perceber que a instrução feminina foi a que mais abriu espaço
para as escolas mistas que as escolas voltadas para o sexo masculino. Em termos
comparativos, a instrução masculina parece não se abalar com a criação de escolas
mistas. É possível que a abertura do espaço tipicamente feminino da escola possa
ter sido mais socialmente aceitável, pois um casal de irmãos, ou primos, poderiam
frequentar uma escola mista de maioria feminina sem os entraves da moral da
época. Outro argumento seria o “aproveitamento” da professora de uma
determinada localidade para a regência de uma escola mista recém criada,
dispensando-se, assim, o professor da escola masculina e a anexação dessa a escola
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
da professora local. Concordamos, portanto, com a conclução de June E. Hahner
quando afirma que a escola mista
criou mais oportunidade para mulheres entrarem no magistério porque se podia confiar a regência das aulas mistas às mulheres, e não limitá-las a só lecionar nas escolas para meninas. E a introdução da coeducação nas escolas normais aumentaria o número de mulheres e diminuiria o número de homens matriculados, mudando, assim, o futuro caráter da magistratura” (2011, 468).
Os custos de contratação de um professor público eram mínimas, visto que
o local a ser utilizado como sala de aula era procurado pela própria professora – só
obrigando (mas nem sempre) o Estado a pagar o aluguel (preço fixo para todas as
regiões. Por muito tempo eram um pagamento de 5 mil réis, incapaz de pagar a
quantia total de um aluguel, por exemplo, no centro do Recife). De maneira geral, o
único custo do Estado com a educação era o pagamento de aluguéis e os
vencimentos dos professores.
Fonte: Códices da Instrução Pública (26-54) localizado no Arquivo Público Jordão Emerenciano.
Acima percebe-se que a instrução pública de cada sexo tendia a uma leve
maioria de cadeiras masculinas em relação ao total, mas não de maneira muito
superior ao número de cadeiras femininas. Na verdade, observa-se um equilibrio
do número de escolas de um e de outro sexo até 1889, quando o número de escolas
exclusivamente femininas decai com o fim do Império em 1889. Na região estudada
A feminização do magistério em Pernambuco (1872-1890)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
encontramos 22 escolas mistas em comparação com as 217 totais encontradas no
Estado em 1890. Percebe-se que as localidades centrais do Recife e Olinda não
tinham muitas escolas mistas. Primeiramente, porque os professores dessas
regiões gozavam de um prestígio de antiguidade em suas cadeiras que os tornavam
praticamente invioláveis, portanto, menos passíveis de serem substituídos por
uma professora ou terem suas cadeiras transformadas em mistas. Segundo,
freguesias como Boa Vista e São Frei Pedro Gonçalves, ambas cadeiras que fazem
parte hoje da Capital pernambucana, tinham escolas em que a frequência superava
100 alunos (sexo masculino)25. Terceiro, as escolas mistas não tinham prestigio
social nesta época e foram criadas em localidades onde a sua existência se tornou o
único caminho para a continuação do ensino público, evitando-se, assim o
definhamento generalizado do ensino no restante da Província. O que se pode
perceber é que as localidades centrais do Recife de Olinda detinham grande parte
do orçamento, dos professores, das cadeiras, dos alunos e do prestígio social, o que
levava a Inspetoria a deter sua atenção na maior parte das vezes para essas
localidades que para o Interior. As escolas mistas surgem, então, como uma
alternativa para o momento financeiro na Província. Nesse cenário o magistério
feminino perspectiva e as autoridades locais dos delegados literários26 (no fim do
Império eram mais autônomos em relação à Capital) – majoritariamente no
Interior – aprofundam os conflitos entre a instrução pública e a população, efeitos
de um governo que se adapta aos tempos de crise.
A população escolar do Recife cresce na década de 80 do século XIX. Junto cresce a
quantidade de professores, as despesas com infraestrutura e as gratificações. O
orçamento, entretanto, cresce poucos contos de réis e, em alguns anos, chega a
cair.
FEMINIZAÇÃO DO MAGISTÉRIO
As escolas mistas, as escolas noturnas e a regência de escolas masculinas
parecem ser, inicialmente, aspectos fundamentais para entender o processo de
feminização do magistério que ocorre no final do século XIX em Pernambuco.
Outros fatores – como a diferença salarial entre sexos (A professora era mais
25
Em 1875 a escola masculina de São Frei Pedro Gonçalves do Recife com freqüência superior a 100
alunos foi confiada a uma mulher, sendo a primeira escola masculina regida por mulheres na Província. 26
Boa parte dos Delegados Literários – que era um cargo voluntário – era exercido pelas autoridades
locais. Juízes, promotores, donos de engenho...
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
barata) e a crise financeira do fim do Império – tenham, também, contribuído para
esse processo.
O que encontramos no período pesquisado, entretanto, não é uma
transformação que vai da supremacia masculina para a supremacia feminina no
magistério. Na verdade o que existe ao longo da pesquisa é um equilíbrio no
número de professores e professoras pela Província de Pernambuco e, no final do
Império e primeiros anos da República, um aumento sobre o número de
professores existentes então. Abaixo um gráfico comparativo do número de
professores de ambos os sexos.
Fonte: Códices da Instrução Pública (26-54) localizado no Arquivo Público Jordão Emerenciano.
É a partir de 1887 – constata-se que no mesmo período da elevação do
número de escolas mistas – que o número de professoras no magistério público
supera o número de professores. Em termos comparativos evidenciamos:
A feminização do magistério em Pernambuco (1872-1890)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
Fonte: Códices da Instrução Pública (26-54) localizado no Arquivo Público Jordão Emerenciano.
A regência de escolas masculinas por professoras também foi um fator no
processo de feminização do magistério. Em 31 de janeiro de 187427, João Barbalho
Uchôa Cavalcanti lançava a primeira medida para a expansão das mulheres no
magistério público quando envia ao Presidente da Província esta petição:
São hoje geralmente conhecidas as vantagens do ensino de alunos do sexo masculino confiado à professoras. A vocação das mulheres para a educação das crianças, a simpatia que inspiram a estas, o segredo de bem dirigi-las e empenha-las no estudo, tornando-o agradável e ameno, o dom de facilmente transmitir-lhes as noções e conhecimentos de que dispõem, tudo tem feito proclamar-se a mulher como sendo a mais competente para o magistério primário. Na Europa e na America, está isto conhecido. E entre nós as províncias de Minas e Ceará já têm escolas de meninos dirigidas por mestras. Sendo este um exemplo digno de imitação, pelos incalculáveis benefícios que deixa a esperar, que com relação ao aproveitamento dos alunos, quer por que se abrem assim as nossas patrícias uma brilhante carreira em que se poderão empregar com grande vantagem para si e para a província, e convindo ao mesmo tempo preparar neste sentido a reforma que se vai fazer no ensino publico, tenho a honra de propor a V.Exª se digne de nomear senhoras para reger provisoriamente as cadeiras primarias do sexo masculino que vagarem ou cujos professores obterem licença. [...] Iniciando nesta província o ensino dos meninos por professoras, a V.Exª caberá a gloria de ter assim admitido um melhoramento de grandíssimo alcance e de ter prestado um assinado serviço a pública instrução. 28
Sobre a atuação de João Barbalho Uchôa Cavalcanti, destaca Hahner:
“Alguns educadores, como João Barbalho Uchôa Cavalcanti, inspetor Geral da Instrução Pública de Pernambuco na década de 1870, onde se pretendeu criar num estabelecimento “para os dois sexos um curso normal comum e simultâneo”, juntaram aos argumentos econômicos a favor das escolas mistas o da sua contribuição para “a amenidade dos costumes”. Proclamaram que “reunir os alunos de ambos os sexos para ministrar-lhes em comum ensino é uma das providências mais vantajosas que se podem adotar na instrução pública”; a rivalidade entre os dois sexos resultaria em “mais aplicação, mais assiduidade, melhores lições, mais proveito e adiantamento”. Cavalcanti não só queria
27 Na Corte a liberação do magistério feminino para turmas masculinas só ocorre em 1879. Ver mais em UEKANE, Marina Natsume. “Mulheres em sala de aula”: um estudo acerca da feminização do magistério primário na Corte (1879-1885). Encontrado em: < http://www.anped.org.br/reunioes/30ra/posteres/GT02-3332--Int.pdf > Acesso em 10 de junho de 2013. 28 IP29. 31 de janeiro de 1874. P.5
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dar a preferência da regência das escolas primárias às senhoras, as quais tratariam como mães as crianças, mas achava que “as aulas mistas [...] a elas devem ser confiadas exclusivamente.” Assim, foram criadas aulas mistas com mais crianças para as professoras ensinarem, maiores eram as possibilidades de aumentar o número de mulheres no magistério” (2011 : 469)
A primeira professora indicada para reger uma escola masculina é Flora da
Silva Antunes para a 4ª cadeira de Santo Antonio. A professora negou a indicação
(por motivo desconhecido) e então é nomeada uma 2ª professora, Maria Cândida
Figueiredo Santos, que inicia, na mesma localidade, a regência de escolas
masculinas por mulheres na Província de Pernambuco em 1875. No entanto, essas
professoras não permaneciam muito tempo em cadeiras masculinas, requerendo
transferência para cadeiras femininas. Não se sabem os motivos que levavam essas
mulheres a rejeitarem as escolas. Listamos, seguramente, 15 escolas masculinas
que tiveram regência feminina.
Nome Data Cadeiras Masculinas Obs.
Maria Candida Figueiredo Santos 1875 4ª Santo Antônio Pede cadeira feminina da Boa Vista
Francelina Forjaz de Lacerda 1875 Estância; 6ª Boa Vista
Também rege escola noturna para meninas e adultas, com aulas extras de música, canto e francês
Thereza Alexandrina de Barros Melo 1875 Rua Marcílio Dias Pede cadeira feminina da Boa Vista
Leobina de Barros Cavalcanti Lins 1878 4ª Santo Antônio
Cosma Elvira de Araújo 1879 Coelhos
Anna Bezerra Cavalcanti da Silva Costa 1881 2ª Passagem da Madalena
Isabel Francisca de Quental 1882 Poço da Panela
Emília Alexandrina de Albuquerque Pereira
1884 2ª Afogados; 5ª São José Pede cadeira feminina de São José
Leovigilda da Silva Cordeiro 1884 3ª São José Pede cadeira feminina de São José
Maria Amancia César de Souza 1884 Paratibe Pede para ser transferida para a cadeira feminina da mesma localidade
[Sem Nome] 1885 Ponte dos Carvalhos Posteriormente transformada em mista
Amália Maria Vieira de Barros 1885 1ª São Frei Pedro Gonçalves
Pede para ser transferida para a cadeira feminina da mesma localidade
Henedina Floresta dos Santos Cordeiro 1888 1ª São Frei Pedro Gonçalves
Thereza Porfíria de Jesus e Silva 1889 1ª Santo Amaro das Salinas
Francisca Seráfico de Assis Carvalho 1890 2ª São Frei Pedro
A feminização do magistério em Pernambuco (1872-1890)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
Gonçalves
Fonte: Códices da Instrução Pública (26-54) localizado no Arquivo Público Jordão Emerenciano.
Também foram encontrados pedidos de professoras para regerem escolas
masculinas, mas não se sabe se a concessão foi dada29. São elas:
Maria Cintra Lima 1890 Porto da Madeira
Waldetrudes Primitiva da Fonseca Teles 1879 Beco do Espinheiro
Maria Paulina Alves dos Santos 1879 Beco do Espinheiro
Henriqueta Amélia de Menezes Lyra 1882 São José ou Afogados
Maria do Rosário Pinheiro 1887 2ª Santo Amaro das Salinas
Fonte: Códices da Instrução Pública (26-54) localizado no Arquivo Público Jordão Emerenciano.
A feminização do magistério também tem outros influenciadores. Além da
escola mista que já foi apontada acima e também das escolas masculinas regidas
por mulheres, também encontramos referências em que as professoras
barganhavam cadeiras de maneira a conseguirem aprovar suas petições, como foi
o caso de Francisca Seráfico de Assis Carvalho pela cadeira de Santana:
A professora Francisca Seráfico de Assis Carvalho, na petição que
junto devolvo, se oferece a reger a cadeira de ensino misto cuja
criação reclamam os habitantes do lugar Sant’Anna, de Jaboatão,
correndo por conta da mesma, as despesas com o aluguel da casa
e mobília para a escola. [...] Dá-se em todo caso um benefício à
localidade e uma economia para a província que fica com
uma escola relativamente barata. Penso, pois, que pode ser
aceita o oferecimento, assinando a professora termo, perante o
Tesouro Provincial, no sentido de sua petição, com as garantias
que forem necessárias[...]30 (grifo nosso)
Apesar do salário, muitas vezes, ser inferior para a mulher professora, a
profissão trazia, para muitas mulheres de renda baixa, possibilidades de
independência financeira. (HAHNER, 2011: 468). Afirma também o autor, dando
base à argumentação supracitada que a escola mista “era aceita apenas por uma
questão econômica, particularmente em cidades onde o ensino separado entre os
29 Códices da Instrução Pública (26-54) localizado no Arquivo Público Jordão Emerenciano. 30 28 de outubro de 1878. P.386 [fv]
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sexos demonstrava que os custos eram muito elevados” (2011, 469). E continua a
ressaltar o caráter econômico ao dizer que “a maternidade espiritual serviu como
uma justificativa para empregar mais, e mais barato, professoras” (2011, 471).
Em Minas Gerais não parece ser diferente, pois afirma o Secretário do Interior
em 1906 disse que “a professora com mais docilidade sujeita-se aos reduzidos
vencimentos com que o Estado pode remunerar o seu professorado” (Apud FILHO;
MACEDO : pág. 6)
Para a construção do entendimento da feminização do magistério, temos,
portanto, a contribuição das escolas mistas, das escolas masculinas e do esforço de
certas professoras por regências de escolas. Caminhos estes muitas vezes
favoráveis à situação dos cofres públicos em Pernambuco no fim do Império.
CONCLUSÃO
O tema em questão é ainda pouco estudado em Pernambuco. A pesquisa que
aqui apresentei é apenas um esboço para estudos futuros no campo da História da
Educação em Pernambuco e muita documentação precisa ser trabalhada, tanto no
sentido geral, quanto nas particularidades inerentes a todo grande tema. Os
professores públicos não foram apenas uma maneira de olhar a história do ensino
em Pernambuco, mas também uma classe social que permitiu olhar o passado
imperial com lentes diferentes, muitas vezes sem lado definido. A documentação
trabalhada, ainda que pouca se comparado com o montante existente, nos deu
grande base para as afirmações acima. O processamento dos dados nos mostrou
um cenário complexo, onde os professores públicos não apenas lecionam, mas
também participam da vida social da sua região e da sua Província. São atores
sociais que conviveram com a pobreza da população, mas também com os grandes
salões do Ginásio Pernambucano e da Escola Normal. A feminização do magistério
foi um tema que surgiu da vida desses professores e que, ao longo da pesquisa, foi
se delineando em torno das questões apresentadas. A situação econômica porque
passava a Província no fim do Império, não determinou, mas certamente
influenciou a presença feminina no magistério e o surgimento das escolas mistas
em Pernambuco. Para isso participaram as sucessivas secas ao longo da segunda
A feminização do magistério em Pernambuco (1872-1890)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 381-401.
metade do século XIX, as epidemias intermitentes, as dívidas externas da Província,
todos esses aspectos influenciaram, paulatinamente, a um redirecionamento das
contas públicas da Província para as necessidades da Capital, deixando muitas
localidades do interior reféns de mandatários locais e da solidariedade entre os
habitantes para continuar sobrevivendo durante esse período. Não diferente, a
educação pública em Pernambuco sofreu das exigências financeiras a que foram
submetidos os cofres públicos. Cortes no orçamento, aliado a um público discente
crescente, obrigou ao Secretário de Instrução Pública, João Barbalho Uchoa
Cavalcanti, a tomar medidas de ajuste e redirecionamento das verbas. A alternativa
feminina para o magistério público foi uma dessas medidas, empreendidas no
sentido de “enxugar” o “excesso” de cadeiras públicas localizadas nas regiões
distantes da Capital, aglutinação das cadeiras masculinas e femininas de
localidades interioranas em torno de uma aula mista, ministrada por uma mulher,
foi, ao que tudo indica, uma conseqüência de urgência nos anos derradeiros do
Império – vimos que a equivalência entre o número de professores masculinos e
femininos se manteve constante ao longo do período estudado, só tendo uma
maioria feminina no penúltimo ano do Império. – Concluímos, portanto, afirmando
que a feminização do magistério em Pernambuco foi, em grande medida, uma
conseqüência das ações alternativas sobre a educação, visando a redução de custos
e a não-extinção de aulas públicas em localidades distantes da Capital.
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 402-415.
A RELAÇÃO ENTRE A IMPRENSA SOTEROPOLITANA COM O GOLPE DE 1889: UMA ANÁLISE DOS DISCURSOS JORNALÍSTOS SOBRE A PROCLAMAÇÃO DA
REPÚBLICA1 Matheus Berlink Fonseca2
Resumo: Este trabalho analisa os discursos jornalísticos utilizados pelos jornais
que circulavam da cidade de Salvador durante a primeira quinzena após a
Proclamação da República do Brasil. Buscando compreender o posicionamento
político destes jornais a partir das suas orientações políticas. As principais fontes
utilizadas foram os jornais, além dos inquéritos policiais e textos de Olavo de
Carvalho. A metodologia utilizada foi a análise do discurso e o diálogo com a
bibliografia específica sobre o tema da Proclamação da República como as obras de
José Murilo de Carvalho para o Rio de Janeiro e Wlamyra Albuquerque para a
Bahia. A pesquisa revelou que o discurso local foi tendencioso para o
republicanismo, o que influenciou na difusão dos acontecimentos do novo sistema
de governo na imprensa soteropolitana.
Palavras-chave: República. Imprensa. Salvador. Golpe. Jornais.
Abstract: This paper analyzes the journalistic speech used by newspapers
of Salvador city during the first fortnight after the Proclamation of the Republic of
Brazil. Trying to understand the political positioning of these newspapers by their
political orientations. The main sources used were the newspapers, in addition to
police investigations and texts from Olavo de Carvalho. The method utilized was
the speech and dialogue analysis with the research literature on the topic of the
Proclamation of the Republic as the works of José Murilo de Carvalho for Rio de
Janeiro and Wlamyra Albuquerque for Bahia. The research revealed that local
1 Recebido em 02/10/2013. Aprovado em 17/11/2013.
2 Graduando em História pelo Centro Universitário Jorge Amado (UNIJORGE). Email: [email protected]. Orientadora: Claudia Moraes Trindade.
Matheus Berlink Fonseca
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speech was biased towards republicanism which influenced the broadcasting of
events of the new system of government in soteropolitana press.
Keywords: Republic. Media. Salvador. Coup. Newspaper
INTRODUÇÃO
O golpe de 1889, o qual trouxe a Proclamação da República para o Brasil, é
derivado da continuação de um longo processo político e social decorrente dos
tempos do Império, onde podemos destacar alguns fatos, tais como a Guerra do
Paraguai (1864– 1870), a divulgação do Manifesto Republicano de 1870, a criação
do Clube Federal Republicano de 1888 e a Abolição da Escravidão em 13 de maio
de 1888(Carvalho, 2010). No entanto, para o caso específico da Bahia, pode-se
ainda incluir os seguintes fatos como contribuintes para Proclamação da República
na Província, tais como: A criação do Clube Republicano Baiano em 1878 e a
publicação do jornal A República Federal, cujo primeiro número circulou em 2 de
julho de 1889 ( Dias Tavares, 2008).
Para os republicanos, a instauração da República significou um passo
inevitável para a evolução do Brasil, enquanto que para os monarquistas, o triste
fim de um período de glórias e a inserção do Brasil na mesma realidade de seus
vizinhos latino-americanos, ou seja, a realidade de repúblicas em crise. Porém,
para o povo, teve um significado diferente, como diz Aristides Lobo, jornalista
carioca: o povo assistiu “Bestializado” todo o processo da Proclamação da
República sem entender direito o que se passava, levando em consideração que o
processo de Proclamação foi, em sua maioria, feito por militares e, ainda assim, por
uma parcela deles, onde muitos não tinham uma ideia real do que seria a
República.
Segundo o autor Tobias Monteiro, nos momentos iniciais da república,
houve uma tentativa de construir a versão oficial do ocorrido pelos olhares dos
vencedores; tentava-se ao máximo glorificar as ações dos atores principais e
reduzir ao máximo os fatos que derivavam do acaso (1989, p. 26-33). E um dos
A relação entre a imprensa soteropolitana...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 402-415.
instrumentos utilizados para oficializar e legitimar esse novo período da história
nacional com toda certeza foi a imprensa, neste caso mais específico os jornais que
circulavam na época.
Segundo Renato Lessa (1997), “O Brasil acordou após o 15 de novembro
sem ter a resposta institucional a respeito de si mesmo’’, logo os jornais serviram
em primeira instância para situar a população do que estava acontecendo, do
quadro político de maneira geral, mesmo queesse ainda não estivesse totalmente
definido. E, em um segundo momento, como uma força extra oficial, porém de
longo alcance, de difusão do novo regime, seja com opiniões favoráveis ou
contrárias.
A Bahia teve uma ação diferenciada no ato da Proclamação em relação às
outras Províncias, em especial àde São Paulo e Rio de Janeiro que, por estarem no
epicentro da República, não tinham outra opção se não a aceitação imediata do
novo regime. Diferentemente, na Bahia, a Proclamação foi muito mais aclamada
pelos militares, em 16 de novembro de 1889, no Quartel de São Pedro e no dia
posterior no Palácio da Aclamação do que de fato proclamada – com exceção do
movimento republicano que constava de sua maior parte por estudantes e
professores da Faculdade Baiana de Medicina, entre outros civis. A primeira reação
da Província da Bahia foi a defesa da Monarquia. Na manhã do dia 16 de novembro,
o então presidente da província da Bahia Almeida Couto, junto ao Marechal
Hermes da Fonseca, comandante de armas da província, cientes de toda a situação,
declararam suas disposições de obediência às leis do Império e ao Imperador,
como pode ser visto em telegrama escrito pelo Presidente da Câmara Municipal,
enviado aos jornais do Rio:
“A camara Municipal da Bahia protesta contra a ditadura militar que, sob o nome de Governo Provisório, se estabeleceu na Côrte, e afirma sua completa adhesão ás instituições e ao Imperador”. Provincia da Bahia não adhere movimento ilegal e tumultuário, imposto pela força, e, ao que parece aceito pelo terror. Pede que communique todas folhas – Augusto Guimarães, Presidente. “Bahia, 16 de novembro de 1889.” (BARROS, 1939, p. 475)
Mediante esse quadro de instabilidade política na Província baiana que se
instalava com a chegada das notícias do novo regime, este artigo visa analisar os
Matheus Berlink Fonseca
405 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 402-415.
primeiros momentos do governo republicano na Bahia, em especial na capital
Salvador, no século XIX e como esse marco histórico foi compreendido e transcrito
pela imprensa soteropolitana da época. Vale lembrar que, para isso, este trabalho
visa compreender os quinze primeiros dias da implantação do regime republicano,
ou seja, a partir do 15 de novembro de 1889 (data da Proclamação da República)
até o dia 30 de novembro do mesmo ano. Terá sua análise baseada nas matérias
que circularam nesses primeiros quinze dias de instauração do novo governo nos
periódicos publicados na época, em especial os jornais, os almanaques e os
discursos propagados pelos jornais da época, pois esses discursos, além de
mostrarem o que estava acontecendo, serão utilizados em grande parte para
legitimar o golpe do 15 de novembro de 1889 e, de certo modo, irá ajudar a
construir a história destes que se dizem vitoriosos por parte do novo governo
republicano.
A IMPRENSA SOTEROPOLITANA COMO PALCO DE BATALHA
A República, instaurada através do golpe republicano de 15 de novembro
de 1889, trouxe consigo uma expectativa inicial muito grande de maior
participação popular de diversos setores da sociedade. Entre estes estavam grupos
operários, anarquistas, membros da elite intelectual, militares, além de toda massa
da população. De certo modo, as massas eram os que mais sofriam com os
impactos do antigo regime monárquico - fossem eles positivos ou negativos.
Na Província da Bahia, assim como no resto do país, a possibilidade do
novo regime trouxe muitas inspirações à expectativa da sociedade baiana, em
especial na capital, São Salvador. Prova disso foi os diferentes grupos republicanos
que foram criados momentos antes do Golpe da República, entre eles, tendo maior
notoriedade o grupo republicano de 1878, composto na cidade de Salvador,
formado em sua maior parte por estudantes, professores e pessoas ligadas à
Faculdade de Medicina da Bahia. Estes já explanavam para a população
soteropolitana os benefícios que a democracia republicana poderia trazer. Além
disso, podem-se citar em Salvador alguns jornais de cunho republicano e, ainda
existiu também, a formação do I Congresso Republicano da Bahia em junho de
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 402-415.
1889, que entre seus dirigentes estava o médico Virgílio Damásio, professor da
Escola Baiana de Medicina e um dos dirigentes e redator do jornal A República
Federal que, mais tarde, tomaria posse no dia 18 de novembro de 1889 como
primeiro governador republicano do recém-criado Estado da Bahia (DIAS
TAVARES, 2008, p.300).
Segundo o historiador José Murilo de Carvalho (1987, p.37), o grosso da
sociedade brasileira – incluindo a população baiana –, quase nenhum meio lhe
restava de fazer ouvir sua voz, exceto o veículo limitado da imprensa. Por que
limitados? Eram diversas as limitações que existiam durante o século XIX, tanto
para a constituição de um jornal ou periódico, quanto para sua circulação e
compreensão.
Primeiro, a maioria dos jornais era fundada e mantida por partidos
políticos, fossem eles monarquistas, republicanos ou de qualquer outro segmento
político. Geralmente havia pouco espaço para a literatura e notícias locais
acabando por afastar boa parte da população da leitura desses periódicos. Esse
quadro começou a mudar somente no final do século XIX, quando se percebe o
aumento gradual da publicação de periódicos e das tipografias existentes na
capital baiana. Para ter uma noção, surgiram 287 jornais na década de 80 do século
XIX na Bahia em detrimento dos 180 jornais que surgiram na década de 70 no
mesmo século,3 quase um aumento de 50% na produção de jornais. Outro motivo
que afastava a população da leitura desses periódicos era, como analisa Kátia
Mattoso (1902, pág.207), o fato de que somente um terço da população
soteropolitana era alfabetizada; no entanto, ao analisar essa situação vimos que a
capital baiana, apesar de possuir um alto índice de analfabetismo, tinha um
número considerável de periódicos em circulação durante a segunda metade do
século XIX. Em linhas gerais, na década de 1880 houve o aparecimento de 287
periódicos4 na província da Bahia, a maior parte deles na cidade de Salvador,
envolvendo diários, jornais, folhetins e revistas. Embora boa parte deles não
durasse mais que três ou quatro anos, ainda assim é um número muito expressivo,
3CARVALHO, Alfredo de; TORRES, João Nepomuceno. Anais da imprensa da Bahia. 2. Ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2007. Pág. 268 4CARVALHO, Alfredo de; TORRES, João Nepomuceno. Anais da imprensa da Bahia. 2. Ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2007.
Matheus Berlink Fonseca
407 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 402-415.
fato que contraria a ideia de uma sociedade em sua maior parte analfabeta e
teoricamente desinteressada por tudo que essa mídia poderia trazer, já que existia
o ato de leituras públicas na cidade e até mesmo nas prisões, como fica
evidenciado no trabalho Ser Preso na Bahia, 1865-1890 (TRINDADE, 2012).
Se, de modo geral, existiam empecilhos que dificultassem o acesso da
população comum aos jornais, não se pode dizer o mesmo da elite intelectual e
politica baiana que se utilizava da mídia como um verdadeiro campo de batalhas
entre monarquistas e republicanos, conservadores e liberais. Esse campo de
batalha já vinha sendo montado desde a década de 1870, quando os primeiros
jornais baianos de cunho republicano surgiram, a exemplo da Sentinela da
liberdade na Cidade de Cachoeira em 1870 e O Popular na cidade de Santo Amaro
da Purificação em 1872. Porém, foi na capital Salvador que esses jornais ganharam
corpo, maior número e maior visibilidade. Destes jornais republicanos na capital,
pode-se citar O Horizonte (1872), A Tribuna (1876 – 1878) e talvez o mais
importante deles, A Republica Federal, que teve sua primeira edição em 2 de julho
de 1889 no ano do Golpe Republicano. Este último serviu de referência para a
construção da identidade republicana de boa parte da população, assim como dos
militares e simpatizantes civis na capital, além de ter servido como espécie de
modelo para a criação de grupos republicanos no interior da província a exemplo
das cidades de Orobó (atual Ruy Barbosa), Curralinho (atual Castro Alves),
Cachoeira, Santo Amaro da Purificação e Feira de Santana.5
Se, um por um lado, existia uma crescente mídia republicanista na Bahia,
existiam também os jornais de tendência conservadora e monárquica. O principal
representante dessa vertente era O Diário de Noticias que circulava na capital
baiana. Foi esse jornal, de caráter essencialmente conservador, o encarregado, no
dia 17 de novembro de 1889, de informar a toda população soteropolitana sobre o
manifesto elaborado pelo presidente da Câmara dos Deputados da Bahia, Augusto
Guimarães, em defesa da Monarquia e “contra a ditadura violenta que esse sistema
oriundo de surpresa e traição trazia’’ (DIAS TAVARES, 2008, 299)”. No entanto,
5 TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. 11. Ed. Salvador, Edufba, 2008.
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esse manifesto nunca chegou a ser lançado, pois o presidente da Câmara Augusto
Guimarães não conseguira o número de assinaturas suficientes para esse ato.
Além desses dois lados, que por motivos do momento foram os que mais
agiram no palco principal da batalha, existiam diversos outros periódicos que
possuíam distintas orientações políticas, religiosas ou até mesmo apartidárias.
Dentro desse grupo destaca-se o Jornal de Noticias da Bahia que adotava uma
postura neutra em relação à política. E durante os momentos iniciais da República
se conteve somente a passar notícias que estavam por ocorrer naquele momento
confuso de transição de Monarquia para República em uma província que até o
momento se mantinha fiel ao Imperador D. Pedro II, porém com um relevante
movimento republicano.
Para entendermos melhor o contexto em que englobava diferentes reações
à República na mídia soteropolitana, é necessário fazer um quadro comparativo
entre diferentes periódicos que existiam na capital baiana durante o mês de
novembro de 1889. Para isto analisaremos a tabela I.
Tabela I
Periódicos existentes em novembro de 1889 na cidade de Salvador.
Nome: Publicação Duração Orientação Proprietário
Jornal de Notícias da Bahia.
Diária * 1879 -1911 Neutra em partidos políticos.
Propriedade de Associação.
Gazeta da Tarde Diária 1880-1889 Abolicionista Pamphilo da Santa Cruz
O Encouraçado 1881- 1889 Crítico
A Lanterna 1882-1911 Literário e independente, noticioso, ‘’jornal para todos’’.
Lourenço de Castro.
O Corsário Bissemanal 1884-1898 ’Órgão’’ do povo’’, crítico e satyrico.
Januário Raymundo Martins
Echo da Verdade Mensal 1886-1895 Evangélico
O Alabama Bissemanal 1887-1891 Crítico, chistoso, noticioso e literário.
Sob a proteção da Polícia
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O Monitor Catholico 1887-1895 Católico Órgão oficial da Diocese da Bahia.
O Domingo 1888 -1892 Literário
O Neto do Diabo Três vezes por semana
1888-1889 Crítico, literário e chistoso.
Salustiano Pedro
A República Federal Semanal 1888-1890 Propaganda republica
Órgão do Clube Federativo da Bahia
O Diabo 1888-1889 Moralizado Tenente Gouveia
Monitor Caixeral 1888-1889
A Justiça Publicação semanal
1888-1896
A Verdade Mensal 1888 – 1893 Religiosa Baptista
Diário do Comércio 1889/1892 Neutro em politica
Associação
O Grito Nacional 1889 Político Francisco Pires de Carvalho
Leituras religiosas 1889-1911 Religioso Conego Clarindo de Souza.
O Derby 1889 Turfista Júlio Pimental
A Cruzada Semanal 1889 Literária e chistosa
José Bonifácio
O Cruzeiro 1889 Político Doutor Salustio
Repórter 1889 Interesse do povo
Associação
Jornal do Povo 1889-1890 Noticioso e literário
Aristides Ricardo de Sant’ ana
A Voz da Pátria 1889 Republicano
Pequeno Jornal Diária 1889-1892 Doutor Aristides Cesar Spinola Zama
Diário da Bahia 1833- 1958 Conservador
Gazeta da Bahia 1879-1890 Conservador Orgão do
partido
conservador.
* Pela tarde, com exceção dos domingos e dias de guarda (feriados, em grande maioria religiosos). ** Os espaços em brancos devem-se a não terem sido encontrados dados sobre o periódico.
*** Os dados foram retirados dos Anais da Imprensa Baiana, FONTE: CARVALHO, Alfredo de; TORRES, João Nepomuceno. Anais da imprensa da
Bahia. 2ª ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2007.
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Uma das características dos periódicos oitocentistas era o tempo curto de
sua existência, alguns não iam além da primeira edição. Mas voltemos ao ponto
central de nossa discussão: existiam no mês de novembro de 1889 cerca de vinte e
sete periódicos circulando na capital, conforme indicado na Tabela 1.
Afim de sabermos um pouco sobre o momento em que a produção
midiática se encontrava na cidade do São Salvador, basta ter em mente que
naquele momento em Novembro de 1889, a cidade de Ouro Preto, capital da
Província de Minas Gerais, possuía somente três jornais em circulação, sendo eles:
O jornal União de caráter imparcial, A Província de Minas de caráter monárquico e
por fim o jornal Movimento que fazia parte do movimento republicano de Minas
Gerais.6 Nessa comparação, pode se ver que Salvador estava muito a frente da
maioria das capitais de províncias existentes no Brasil a nível de produção
midiática, levando-se também em consideração que Salvador era a segunda cidade
mais importante do Império Brasileiro - no que diz respeito a economia, por
exemplo. São vinte e sete periódicos contra os três existentes na capital mineira
em novembro de 1889, um número realmente expressivo e significante; Salvador
de fato se comparava às grandes Províncias quando se tratava de produção
midiática, estando muito próxima da produção existente na capital do Império, Rio
de Janeiro, que tinha aproximadamente quarenta periódicos em circulação. 7
Ainda sobre essa comparação entre as províncias e analisando a tabela I,
havia também significativa disputa política entre os periódicos, ou melhor, entre
seus proprietários. Se em Minas Gerais, havia somente três periódicos, cada um
seguindo uma orientação política distinta – neutra, monárquica e republicana – o
que sugere um equilíbrio entre as forças, não podemos dizer o mesmo da capital
baiana. Em Salvador havia quatro periódicos de orientação republicana, sendo
estes: A gazeta da tarde, A República Federal, O diabo e a Voz da Pátria. Seguidos
dos periódicos republicanos, havia os conservadores e os monárquicos: O Monitor
Catholico, que apesar de sua primeira instância ser de orientação religiosa, por ser
6 Ribeiro, Fernando. É notícia! A proclamação na república (15/11/1889) nos jornais de Ouro Preto. Em: <http://historiasevariaveis.blogspot.com.br/2011/08/e-noticia-proclamacao-da-republica.html> Acesso em 24 de março de 2013. 7Plinio Doyle. Anais da Biblioteca Nacional, Catálogo de jornais e revistas do Rio de Janeiro 1808-1889, vol.85, Rio de Janeiro, 1965.
Matheus Berlink Fonseca
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católico e principalmente por ser da Arquidiocese da Bahia, tinha ligações
profundas com a instituição da Monarquia, Diário da Bahia e a Gazeta da Bahia.
Lembrando que existiam alguns jornais que escapavam de uma suposta
pureza ideológica, fazendo com que diferentes posições políticas coexistissem na
mesma redação – fato que pode ser analisado no Jornal de Notícias da Bahia, que
possuía entre seus redatores militares e membros da elite intelectual.
Além desses, havia aqueles que se reivindicavam neutros em disputas
políticas e a favor da população, sendo esse o tipo de jornal em maioria naquele
momento. E esses jornais muitas vezes deixavam a política em segundo plano e
tratavam mais de assuntos literários, como contos e histórias, ou assuntos
chistosos, muitas vezes relacionados à mentalidade escravocrata da época. Um
bom exemplo é o Jornal O Alabama, que se dedicava à dura e sistemática
perseguição ao candomblé baiano. Dentro dessa categoria existia também o Jornal
de Noticias de Bahia, que fora o jornal de maior circulação na cidade de Salvador e
que por causa disso receberá devida atenção ao longo do texto. Ainda sobre esse
tipo de seguimento jornalístico, podemos citar os seguintes: O encouraçado, A
Lanterna, O Corsário, O Domingo, O Neto do Diabo, A Cruzada, o Repórter, Jornal do
Povo8.
Por fim, existiam os periódicos de orientação religiosa e não católico, tais
como o jornal evangélico Echo da Verdade, e o periódico Batista, A Verdade. Alguns
jornais com temas bastante específicos como o Derby, que tratava de assuntos
relacionados às casas de apostas de Salvador, principalmente apostas de corrida de
cavalos, o Diário do Comércio voltado para economia local e regional, e o Monitor
Caixeral que tratava de alguns trabalhadores que atuavam nas mais diversas casas
comercias da cidade.
Com esse quadro geral pode-se analisar que a tensão existente entre os
republicanos e monarquistas na Província da Bahia, em novembro de 1889,já era
fomentada momentos antes ao ato da Proclamação e que essa tensão foi
alimentada muito em parte pela mídia local existente que, possuindo a diversidade
e quantidade de periódicos, levou a um clima mais acirrado de ideologias a
8 CARVALHO, Alfredo de; TORRES, João Nepomuceno. Anais da imprensa da Bahia. 2. Ed. Salvador: Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, 2007.
A relação entre a imprensa soteropolitana...
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respeito da permanência ou alteração do sistema político social/político vigente.
Nesse sentido, é interessante decifrar o que pode explicar em parte o motivoda
Bahia ter como sua reação inicial a defesa da Monarquia, o zelo e a guarda pelo
Imperador e as instituições monárquicas: temos a princípio o medo da elite baiana
de perder o prestígio político que possuía durante o Império; Segundo Falcón
(2010, pág. 27) em sua obra Coronéis do Cacau: “(...) Fato, aliás compreensível
levando-se em consideração que as elites baianas gozavam do mais amplo
reconhecimento político da Corte durante a fase imperial, encabeçando mais da
terça parte dos ministérios que se sucedem entre 1847 e 1889”.
Para além disso, podemos elaborar uma série de outros fatores que
proporcionaram essa reação diferenciada nesta Província. Durante os anos que
seguem a República na Bahia, o povo baiano e principalmente a elite vão tentar
criar um ideal de modernidade no Estado, principalmente através da criação do
IGHB – Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, fundado em 1894. No entanto,
essa suposta modernidade baiana republicana ésempre respaldada nos tempos
“áureos”, ou seja, os tempos imperais. Vão ser retratados as Batalhas do 2 de Julho,
o barão do Rio Branco, entre outros, evidenciando que o povo baiano e,
principalmente, a sua elite, estavam profundamente ligados ao Império e ao
conservadorismo. A historiadora Wlamyra Ribeiro de Albuquerque evidencia isso
em sua obra:
A exaltação dos tempos de glória foi fundamental para a construção da fabula da modernidade baiana. A existência dos anos áureos reafirmava a possibilidade de um futuro no qual a Bahia readquirisse uma posição privilegiada no contexto nacional. Os mesmo Levitas do progresso eram também saudosistas de um passado mitificado. (ALBUQUERQUE, 1997, pág. 24).
De algum modo, essa maior diversidade e circulação de periódicos - de
diferentes vertentes políticas e grupos políticos –, fez com que na Bahia, em
especial na sua capital, a opinião sobre o que poderia vir a ser e os benefícios e
malefícios da República, ganhou diferentes opiniões entre as vertentes da
população, seja entre os cidadãos comuns ou entre as mais altas instâncias
militares e políticas da cidade.
Matheus Berlink Fonseca
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Prova disso são as grandes figuras públicas da cidade de Salvador que nos
momentos iniciais se diziam fiéis ao Imperador e que após alguns dias aderiram à
República, tendo como a mais ilustre dessas figuras o marechal Hermes da
Fonseca, Comandante de Armas da Bahia. Claro que não se pode ter como principal
causa da mudança de segmento político a influência dos jornais, ainda sendo uma
figura importante como essa. Porém, é sabido que até mesmo essa elite, que a
princípio estava favorável ao Império, tinha suas dúvidas e fraquezas ideológicas
em relação ao regime monárquico:
(...) Outras razões da fragilidade do movimento monarquista devem ser consideradas. Como não se desenvolveu no Brasil uma sólida doutrina monarquista durante o Império, no inicio da República esta será elaborada pelos restauradores de uma forma imprecisa, fragmentária e contraditória. Seus principais pontos de sustentaçãose definiram-se em questões de natureza circunstancial e não de princípios. Como resultado disso, o monarquismo não conseguiu desenvolver um autoconceito independente do seu oposto: O republicanismo era sua referência obrigatória. (JANOTT, 1989, pág. 254).
Dessa forma, temos na Bahia uma elite que busca ter na República o
mesmo espaço político que possuía no Império, tentando de todo modo se agarrar
ao rastro de modernidade que o novo sistema prometia. Em contra partida, temos
essa mesma elite baiana presa ao conservadorismo e às glórias do Império e, de
certa forma, sentindo-se parte do Império do Brasil e não desta República que
vinha. Porém, por mais que houvesse essa reação inicial de defesa da Monarquia,
uma fragilidade ideológica em relação ao se sentir parte do Império será a chave
condutora para a vitória do golpe de 1889 na Bahia.
Referências
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Matheus Berlink Fonseca
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9, Jul/Dez 2013: 416-430.
AS AÇÕES DO GOVERNO PERNAMBUCANO VOLTADAS PARA A QUALIFICAÇÃO DE TRABALHADORES NA CIDADE DO RECIFE, ENTRE OS ANOS DE 1889 e
19301 Estevam Henrique dos Santos Machado2
Resumo: O presente artigo tem como foco a educação para o trabalho no período conhecido como primeira república ou república velha (1889 – 1930). Este período mantém a sua ascendência cultural oligárquica atrelado à uma inserção de um capitalismo cada vez mais apresentável como fator de mudança social. Este trabalho foi desenvolvido a partir da análise da documentação presente no site da Universidade de Chicago (Disponível em: http://www.crl.edu/brazil/provincial/pernambuco) que trata dos relatórios dos governadores do Estado de Pernambuco. Propusemo-nos, portanto, analisar as políticas públicas a favor do desenvolvimento da educação no Estado de Pernambuco. Palavras-chave: Pernambuco. Recife. Educação profissional. Resumen: Este artículo se centra en la educación para el trabajo en el período conocido como la primera república o de la antigua república (1889-1930). Este período conserva su supremacía cultural oligárquica vinculada a la inserción de un capitalismo cada vez más presentable como factor de cambio social. Este trabajo ha sido desarrollado a partir del análisis de la documentación en este sitio de la Universidad de Chicago (Disponible en: http://www.crl.edu/brazil/provincial/pernambuco) que encarga de los informes de los gobernadores del Estado de Pernambuco. Propusimos por lo tanto, analizar las políticas públicas para el desarrollo de la educación en el Estado de Pernambuco. Palavras-clave: Pernambuco. Recife. Educación profesional.
Introdução e caracterização do período
O advento da República hasteou a bandeira de uma mudança nas estruturas
econômicas e sociais, era a promessa positivista de uma nova ordem rumo ao
progresso. Porém as estruturas patriarcais e latifundiárias arraigadas em diversas
1 Recebido em 04/10/2013. Aprovado em 16/11/2013.
2 Graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) ex-bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação Científica – PIBIC/FACEP. E-mail: [email protected]. Orientador: Prof. Dr. Ramon de Oliveira (DFSFE/UFPE)
Estevam Henrique dos Santos Machado
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localidades, principalmente no nordeste, dificultaram nesse sentido, uma mudança
tão desejada pelos ideais republicanos.
Importante lembrar que há uma insistência por parte das elites econômicas
tradicionais em manter a monocultura da cana de açúcar, sendo esta aposta
anacrônica e, portanto infrutífera, já que não se diversificou a economia,
condenando esta à estagnação (PRADO JÚNIOR, 1986). Essa insistência que Caio
Prado coloca é a de um investimento pesado na modernização da produção
açucareira, com a substituição dos engenhos banguês pelas usinas (COMBRINK
2010, p. 106) e de todo o seu aparato técnico, ocorrendo um processo consagrado
pela historiografia de uma modernização sem mudanças (EINSENBERG, 1977) em
que se altera a forma de se produzir, mas não à lógica produtiva, que continua a ser
monocultora e latifundiária.
O fim da escravidão (1888) teve efeitos significativos no período em que
estudamos, à medida que uma massa de libertos deixou o campo e procurou se
instalar nas cidades gerando um inchaço populacional, revelando a cidade como
palco de exclusão social com o surgimento das favelas, o que se agrava mais ainda
quando se diagnostica essa nova população urbana como uma massa trabalhadora
em potencial, sem a qualificação profissional necessária.
A visão de um Estado ineficiente é um ponto chave para se entender o
período. Da mesma forma que o Estado tenta se afirmar como uma nova forma de
organização política e institucional vive o paradoxo do insucesso, em parte, porque
não consegue, a não ser pelo emprego de força maciça, desarticular os movimentos
messiânicos do Contestado e de Canudos.
As elites se veem num jogo de articulações políticas em que as esferas micro
e macro de influência política se encontram articuladas de maneira jamais vista, é a
gênese do coronelismo, da política dos governadores e da política do Café com
Leite (CARVALHO, 1997). É importante salientar que a república relegou a
Pernambuco, como um todo, a uma situação nacional de segunda ordem. O
predomínio secular de Pernambuco sobre a economia do açúcar caiu
vertiginosamente em face das refinarias de açúcar instaladas no sul do país. A
quota pernambucana na produção nacional caiu de 41,5% para 25,2% entre os
anos de 1907 e 1937 (PERNAMBUCO, 1938, p. 231). Essa crise na economia
As ações do governo de Pernambuco...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 416-430.
agroexportadora pode também ser um dos fatores para o êxodo rural que
aconteceu no período.
E mesmo a importante produção algodoeira, que em 1910 correspondia a
49,4 % da produção nacional (PERNAMBUCO, 1917, p. 116), atrelada à indústria
têxtil sofria certas dificuldades em se estabelecer. Fábricas em Goiana, Paulista e
Recife aparecem nesse período, porém a falta de crédito e de uma logística propícia
impediram um boom mais acentuado (LEVINE, 1997).
A “Veneza brasileira” entra nesse contexto como figura da modernização do
período, Recife era agregadora de pessoas e de capital, tinha essa vocação desde os
tempos coloniais e o seu porto era a janela do estado para o mundo, e vice-versa.
Porém o Porto do Recife nesse período perde paulatinamente sua influência no
cenário nacional devido à sua incapacidade de aportar os novos e gigantes navios
transatlânticos. A falta de um programa de dragagem do porto prejudicou bastante
a região. (HARDMAN & LEONARDI, 1991, p. 148)
Recife, mesmo sendo uma “capital” regional do nordeste, não consegue
alcançar, em taxas percentuais, o crescimento populacional da região centro-sul. “A
população urbana do Recife cresceu apenas à razão de 3,3% ao ano de 1900 a 1960
em comparação com 6,8% de Belo Horizonte e os 7,0% de são Paulo” (SINGER,
1968, p. 367). No ano de 1924 houve um serviço de recenseamento na cidade do
Recife e quem nos relata os resultados é o governador do Estado de Pernambuco o
Dr. Sergio Loreto:
Serviço de recenseamento – o Recife acusa, segundo o recenseamento efetuado por este departamento 313.150 habitantes, sendo homens 144.413 e mulheres 168.737. Sendo os bairros analisados: Recife, Santo Antônio, São José, Afogados, Boa Vista, Graças, Poço da Panela e Várzea. Em relação aos tipos de imóveis: 45.164, sendo: residenciais 19.079, residenciais em mocambos 19.947, armazéns e lojas 1.822, oficinas 390, fábricas 155, vacarias 105, casas de cômodos 255, quadros 499, mercadorias 630 e quitandas 337 (PERNAMBUCO, 1924 a.).
Houve mais um crescimento a nível local do que a nível nacional, tanto é
que no site do IBGE demonstra esse crescimento, existindo 111.556 habitantes em
1890 em comparação aos 216.484 de 1912, um crescimento de aproximadamente
Estevam Henrique dos Santos Machado
419 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 416-430.
94% (OLIVEIRA, 2010), totalmente significativo, porém volto a repetir, muito
aquém do crescimento de cidades como São Paulo e Belo Horizonte.
A educação profissional na primeira república
Boa parte da população brasileira durante a primeira república, como um
todo, era analfabeta, porém essa situação se agravava no nordeste. E esse era um
dos fatores que figuram na bancarrota da influência política de Pernambuco: “[...] o
elevado índice de analfabetismo na região, contribuíram para inevitabilidade da
distância cada vez maior entre o Norte e o Sul” (LEVINE, 1997, p. 125).
O Estado brasileiro se vê numa encruzilhada conceitual, principalmente no
que se refere às posturas a serem tomadas em relação à finalidade do ensino: o
embate entre os defensores de uma formação humana versus os defensores de
uma formação para o ensino superior. Mas, há um embate também entre
pensadores que defendiam um ensino baseado na literatura contra os que
defendiam um ensino baseado na ciência. “A série de reformas pelas quais passa a
organização escolar revela uma oscilação entre a influência humanista clássica e a
realista ou científica” (RIBEIRO, 1998, p. 79). A Constituição de 1891 no que
tange a educação afirmava:
À União cabia criar e controlar a instrução superior em toda a Nação, bem como criar e controlar o ensino secundário acadêmico e a instrução em todos os níveis do Distrito Federal, e aos estados cabia criar e controlar o ensino primário e o ensino profissional, que na época, compreendia principalmente escolas normais (de nível médio) para moças e escolas técnicas para rapazes (ROMANELLI, 2005,p. 41).
Era, portanto, a oficialização de um sistema dual de ensino aonde se
reservou à classe dominante cadeiras cativas no ensino superior e nas escolas
secundárias acadêmicas, enquanto para as classes populares estavam destinadas a
um pífio ensino primário e uma escola profissional.
A educação primária sob a incumbência dos estados relegava á força da
nação um segundo plano e isso tem muito a ver com a questão do poder local e da
manutenção da força das oligarquias locais e das práticas clientelísticas (VEIGA,
As ações do governo de Pernambuco...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 416-430.
2011, p.147). Essa estrutura educacional é o reflexo da sociedade monárquica do
qual a republicana surgiu, porém o cenário republicano é mais complexo devido à
afluência de novos agentes que ganham mais voz nesse período: profissionais
liberais, intelectuais, militares, comerciantes, e uma gama de segmentos cada vez
mais ascendentes.
Depois de uma análise conceitual a pesquisa chega a se perguntar: Qual o
conteúdo do discurso proferido pelo governo de Estado de Pernambuco no que
tange à educação profissional na aurora da república?
Em Pernambuco, a elite política e econômica se utilizava da educação como
forma de sustentáculo do aparelho ideológico do Estado (SAVIANI, 1991),
principalmente à medida que implanta em Pernambuco uma série de escolas
destinadas aos estudos agrícolas que serão disseminadas pelo interior. Além é
claro dar suporte à modernização que chegara ao estado, essa “modernização
tecnológica (ainda eu no nível de adaptação e de manutenção da tecnologia
importada) inerente a esses novos setores da economia brasileira gerou novas
necessidades de qualificação profissional” (MANFREDI, 2002, p. 79), porém o
governo falha em realizar uma difusão efetiva do ensino voltado para o trabalho
aos setores médios urbanos, então:
Agora como antes, o ensino técnico – profissional é organizado com o objetivo expresso de atender às ‘classes populares’, às ‘classes pobres’, aos ‘meninos desvalidos’, ‘órfãos’, ‘abandonados’, ‘desfavorecidos da fortuna’. Figurava, portanto, menos como um programa propriamente educacional, e mais como um plano assistencial aos ‘necessitados da misericórdia pública’, o seu objetivo inequívoco – muitas vezes, explicitamente proposto – era o de regeneração pelo trabalho (NAGLE, 1976, p.164).
Nesse contexto de ‘regeneração pelo trabalho’, os governadores do estado
endossam a ideia de uma sociedade melhor oriunda da oportunidade de oferta de
trabalho. A palavra de ordem é ‘progresso’ que se anseia na formação profissional
adequada como forma, tanto de melhoramento individual dos cidadãos, mas
também como consequência disso numa melhoria social:
A organização da instrução profissional, que espero realizar, abrangerá escolas para os dois sexos objetivando o preparo do operariado ao lado da cultura intelectual, imprescindível á função a que se destina como fator de riqueza e de progresso da
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421 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 416-430.
sociedade. Tenho fé, meus senhores que a difusão do ensino técnico-profissional mostrará ao nosso Estado e ao país horizontes mais amplos, assegurando com um maior quinhão de bem estar individual a felicidade mais generalizada da nossa gente (PERNAMBUCO, 1930, p.30).
Um novo tempo estava chegando e atrelado a ele vinha uma crítica às
antigas estruturas. Isso é bem explícito na crítica ao sistema educacional adotado
no império e seguido na república. No discurso do Governador Estácio Coimbra, a
escola não teria somente a função de repassar as letras e o cálculo, teria o
compromisso de formar cidadãos com integridade moral e aptos ao trabalho.
Naquele documento politico salientei que ‘a escola que ensina só a ler, escrever e contar, não dá a ninguém a capacidade de prover á subsistência’. ‘Já não é possível fechar os olhos á cruel realidade, e mais do que a modificação de programas devemos preocupar-nos com a mudança radical nos métodos. A escola que propugno é aquela que, ao lado da letras e do calculo, possa despertar e fortalecer a capacidade de ação, amor ao trabalho, a inteireza moral, a formação do caráter, em suma’. E ainda: ‘é necessário cultivar a inteligência, o coração e as mãos’ (PERNAMBUCO, 1929, p.5).
Importante ressaltar a mão do Estado como definidor do acesso ao ensino, e
de como esse acesso se fazia presente, na capital e em outras regiões, assim como a
distinção que a educação era dada na zona rural da zona urbana:
Os programas de ensino devem ser adaptados ás condições das localidades onde vão ser aplicados. Na zona central do Estado o professor se limitará a ensinar os rudimentos da leitura, escrita e contas, usando-se nas escolas, de preferência, livros contendo noções elementares de agricultura e pecuária. Sempre que possível, deve-se ao lado da escola manter modesta oficina de arte manual, onde as crianças por algumas horas aprendam um oficio qualquer.Na região mais culta do Estado outro seria o programa de ensino, compreensivo de noções mais complexas e mais aproveitáveis para alunos de um meio mais elevado. Devemos todos pensar na realidade de nossa situação econômica e preparar nas escolas o espirito das crianças, encaminhando-as para a cultura da terra (PERNAMBUCO, 1916, p.5).
A formação para o trato da cultura da terra demonstra o conservadorismo
do governo e do pensamento de Estácio Coimbra. A proposta de mudança está
circunscrita a uma mudança na forma de se fazer, mas não no que se fazer. Assim
como numa divisão regional do ensino que será corroborada pelo trabalho, na
As ações do governo de Pernambuco...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 416-430.
zona rural o ensino é destinado unicamente para formar agricultores aptos para
melhorar o plantio principalmente da cana e do algodão.
Porém seguindo a ideia de Nagle (1976) é importante salientar essa época
como um período dotado de um fervor ideológico onde a educação se torna ponto
principal dos debates e polêmicas assim como das iniciativas, tanto do setor
público, quanto da iniciativa privada.Um verdadeiro período de “otimismo
pedagógico” (PORTO JÚNIOR, 2003, p.24) que é frustrado lentamente diante da
incapacidade do Estado, o que Sérgio Buarque de Holanda chama de “miragem da
alfabetização do povo” (HOLANDA, 1995, p.165) no sentido de miragem como uma
forma de visão enganosa. As práticas educativas estavam atreladas a uma forma da
burguesia urbana de conquistar poder político, já que o voto aos analfabetos era
negado, era uma forma dessa burguesia urbana combater as elites agrárias em
busca da hegemonia política do país (PAIVA, 1985, p. 97).
Uma proposta a ser levantada é a de se estabelecer marcos temporais que
delimitam o estudo da história da educação na República Velha. Uma proposta que
deve ser analisada é a de divisão de dois períodos, um de 1889 até a década de
vinte onde o discurso é mais forte que a prática, já quea estrutura montada no
estado era legada dos tempos imperiais, é, portanto, o tempo do otimismo
pedagógico (NAGLE, 1976) sem grande implicação prática nas ações
governamentais. O segundo período seria de 1920 adentrando a década de trinta,
onde o Estado está mais sólido e com mais recursos financeiros e humanos para
realizar parte das reformas previstas há muito tempo.
A educação profissional passou a atender a uma parcela maior da sociedade
de forma lenta e gradual, pois da mesma forma que a oferta por qualificação foi se
ampliando, as demandas foram proporcionais ou até maiores. Por exemplo, em
1910, 0,06% da população pernambucana estava matriculada em cursos
profissionais, já em 1933 a população matriculada em tais cursos se elevou a 0,2%,
uma taxa também baixa, porém que já demonstra que as melhorias estavam em
processo de surtir efeitos de ordem quantitativa.
Fez-se necessário no decorrer da pesquisa uma separação temática. Na
analise da documentação algumas instituições educacionais se sobressaíram,
demonstrando existir por parte do governo certo zelo e preocupação por elas. As
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423 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 416-430.
instituições responsáveis pela educação das crianças e jovens recebiam essa
atenção, inclusive a educação profissional por está estritamente ligada à instrução
pública.
A instabilidade política e econômica e até mesmo, por vezes, o descaso fazia
das escolas verdadeiros problemas na mão do Estado. O pouco espaço no
orçamento destinado à educação era um problema para os governantes, assim
como a divisão de responsabilidades entre as instâncias federais, estaduais e
municipais:
A instrução pública no Estado reclama inadiáveis cuidados; entregue aos poderes municipais, ela está em completo abandono. O Estado poucas cadeiras de ensino mantém e para vê-lo, basta dizer que de um orçamento de 14 mil contos, apenas 504 são destinados ao ensino primário do Estado, cuja população atinge, entretanto, a mais de 2 milhões de almas(PERNAMBUCO, 1916, pp.4-5).
O Estado se mostra sensível ás péssimas condições de vida do alunado, e a
relação dessas condições com o desempenho escolar e até mesmo com a
frequência desses alunos. Assim, para manter o aluno pobre em sala de aula era
necessário fornecer uma alimentação básica e subsídios para se sustento, então:
em 1923 se cria a Caixa escolar com a função de amparar os alunos de baixa renda,
com roupas, alimentação e remédios (PERNAMBUCO, 1925 b, pp. 27-8).
As escolas profissionais em Pernambuco
Em 1899 o Funcionamento da escola normal se dava no prédio do Instituto
Benjamin Constant, sob a direção do Dr. Olyntho Victor.
e por este motivo faço minhas as palavras de Dr. Olyntho Victor, quando diz em seu relatório: ‘Não bastará, porém, a reforma da Escola, da qual se ocupa o Poder Legislativo, para que tudo esteja seguido. ‘A Instrução Publica depende diretamente das Escolas Normais; estas, porém, não podem subsistir sem aquela. ‘Sem as escolas primárias nenhum valor terão as escolas Normais. ‘Isto significa que o progresso d’estes estabelecimentos está tambémsubordinado ao plano de ensino do Estado, ou melhor ao Regulamento orgânico da instrução(PERNAMBUCO, 1899, p. 47).
As ações do governo de Pernambuco...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 416-430.
A escola normal se fazia instância vital para o desenvolvimento da instrução
pública, e era uma forma de educação profissional. Além da escola profissional
oficial existiam outras congêneres espalhadas pelo estado. Outro ponto a ser
notado é a predominância do sexo feminino nas matrículas do curso. A escola
normal também surge como única via de emprego para as jovens, num mundo
ainda machista e cercado de velhos preconceitos.
O grande número de moças que frequentam as escolas normais (a oficial e as equiparadas), cerca de 700, mostra a necessidade de outras escolas profissionais. Não é aceitável que todas essas moças tenham vocação para o magistério. É a necessidade ou o desejo de obter certa soma de conhecimentos, que, por enquanto, somente as escolas normais podem dar.Uma escola domestica, portanto, embora limitada ás disciplinas mais necessárias e de acordo com as exigências do meio. Virá prestar valioso serviço.Maior desenvolvimento á classe de costura, a criação de uma escola de arte culinária e o estudo de higiene mais especializado e acomodado aos fins da escola, são suficientes, por enquanto. A ampliação dos estudos virá necessariamente com o crescimento da escola (PERNAMBUCO, 1927, pp. 12-3).
A grande quantidade de alunas em detrimentos à alunos do sexo masculino
teve diversos fatores, o primeiro foi o fato da disseminação das escolas mistas no
final do império e começo da república, que fomentou o emprego de professoras.
Outro motivo é a falta de oportunidade dessas meninas de se integrarem à outro
sistema de formação para o trabalho, fato que foi amenizado ela criação do curso
comercial anexo à escola normal pelo Ato de 24 de fevereiro de 1923. Neste
mesmo ano recebeu 29 matrículas e tem uma curva ascendente alcançando o
número de 118 matrículas no ano de 1929 (PERNAMBUCO, 1923-1929).
A escola normal oficial teve um crescimento regular no número de
matrículas passando de 107 em 1904 até 218 em 1930. A partir de 1929 foi exigida
a idade de 14 anos para se matricular na escola normal e o curso foi estipulado em
5 anos – três primeiros para cultura geral e os dois últimos a profissional.
A escola de engenharia de Pernambuco foi criada e mantida pelo poder
estadual e adentra nos moldes da sua congênere federal:
Resolve conceder á mesma Escola, de acordo comart.309 de Código das disposições Comuns ás instituições de Ensino Superior, aprovado pelo Decreto legislativo n 230,de 7 de
Estevam Henrique dos Santos Machado
425 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 416-430.
Setembro de 1891,os privilégios e garantias de que goza a Escola Federal congênere (PERNAMBUCO, 1899, p.45).
A escola industrial Frei Caneca foi criada em 1894 com o intuito de preparar
os antigos alunos da antiga ‘Colônia Orfanológica Isabel’ no âmbito do
conhecimento teórico e prático de técnicas agrícolas e fabris (ARANTES, 2009). Em
1899 o instituto contava com 150 alunos, número máximo permitido, sendo sua
organização, em número de alunos distribuídos nas oficinas anexas onde se
ofertava os cursos de alfaiataria, carpintaria, sapataria, serralheria e padaria
(PERNAMBUCO, 1889, p.52).
Nessa tentativa de formar para o mercado de trabalho a escola montou uma
verdadeira usina, o que foi altamente oneroso para os cofres públicos. A escola
enfrentava dificuldades de ordem logística, ora a falta de carros para carregar cana,
ora a falta da própria cana fazia a produção parar. Além de problemas eventuais de
melhoramento do maquinário que se mostrava em via de uma manutenção
constante para manter a produtividade em alta:
A fábrica nas condições em que estava, sem vapor suficiente para fazer funcionar regularmente as máquinas e aparelhos e somente com 5 turbinas centrifugas, com trabalho penoso e desprezas avultas, podia tirar uma safra de 10 a 12 mil sacos de açúcar em 7 ou 8 meses de moagem, ao passo que os melhoramentos feitos pode em igual tempo e mais economicamente, fazer moagem dobrada com a vantagem das caldeiras fornecerem vapor suficiente para mover para mover ao mesmo tempo os aparelhos da luz elétrica, destilação e oficinas (PERNAMBUCO, 1889, p.52).
Tabela 1 – Produtividade da Escola Frei Caneca
Safra Sacos de açúcar (75 kg
cada) Total em quilos
1897 – 1898 11.944 895.800
1898 – 1889 8.676 650.700
1902 – 1903 - 8,820.825
Fonte:Relatório dos Presidentes da Província de Pernambuco (1889, p.52), (1890,
p.29),(1904, p.14).
Além da produção e manipulação de cana-de-açúcar, outras culturas eram
desenvolvidas. No ano de 1889(PERNAMBUCO, 1889, p.53) foram produzidos
As ações do governo de Pernambuco...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 416-430.
7040 litros de milho, 150 litros de feijão, 2.496 quilos de café não despolpado, 190
sacos de batata e foram fabricados 16.800 litros de farinha de mandioca. Além de
possuir diversas propriedades tanto na zona da mata como no sertão, aonde tinha
no ano de 1889 o controle sobre 558 cabeças de gado.
Em 1901 os reflexos de uma falta de invernos regulares prejudicou bastante
a produção da escola, porém existe uma esperança no discurso do governador
Antônio Gonçalves Ferreira de que a situação irá se regularizar de tal maneira que
a escola não precisará mais de ajuda pecuniária do governo.
O governador Sigismundo Gonçalves desativa a escola em 1904 pela lei
n.656 de seis de maio do referido ano, com o arrendamento da usina anexa à
escola, que legaria ao estado quarenta contos de réis anualmente, um grande
benefício para os cofres públicos que teriam sido exauridos na manutenção da
colônia.
Desde sua fundação o Ginásio Pernambucano tinha por vocação ser uma
escola modelo, porém em 1906 não executava fielmente os planos do ginásio
nacional. Só consegue se equiparar a uma congênere, o Colégio Pedro II, em 1916:
O ginásio precisa ser mais que um mero curso anexo ás academias: é mister que se torne capaz também de preparar cidadãos para o serviço dos vários departamento da administração estadual, para o comércio e industrias e que sirva enfim aos que desejam habilitar-se ao ingresso imediato na corrente da vida social (PERNAMBUCO, 1919, p.62).
A Escola de agronomia foi criada por decreto de 11 de março de 1911,
inaugurada em 7 de abril do mesmo ano tinha por destino a formação de
agrônomos capazes de executar diferentes operações de cultura: lavras,
sementeiras, cuidados culturais, conservação e utilização de produtos afins e tinha
a proposta de atrelar o ensino teórico do prático:
instituição nova, pois sua inauguração oficial data de 7 de abril de 1911, já vem todavia prestando assinalados serviços, cujos benefícios, entretanto, somente poderão ser avaliados em toda sua extensão no futuro, quando os agrônomos diplomados pelos seus cursos, dispersando-se pelo território do estado, levarem aos incrédulos e diferentes, coma palavra e os exemplos práticos, a convicção de que a cultura dos campos não se restringe á rotina secular, atrofiante e desoladora, mas obedece a princípios
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científicos, de cuja aplicação não é dado prescindir sem ocasionar a decadência, até a completa ruína da lavoura, por maior que seja a natural fertilidade do solo(PERNAMBUCO, 1914, p.9).
E tinha o Estado, na voz de seus representantes, o sentimento de débito com
a educação agrícola: “Está em debito o Estado para com as suas classes produtoras,
não facultando aos jovens, que se destinam a lavoura e à indústria pastoril,
ensinamento técnico, baseado nos moldes, que a ciência agronômica institui, com
os mais eficientes resultados” (PERNAMBUCO,1914, p.9).
A escola recebia alunos de todas as partes do “norte” do país e contava com
um posto zootécnico que em 1913 que contava com 56 animais de raça, dentre eles
um puro sangue inglês. Durante o ano de 1916 as aulas teóricas e praticas da
escola contaram com a presença de 48 alunos. Em junho de 1915 formaram-se seis
agrônomos e em novembro deste mesmo ano oito agrônomos sendo estes (num
total de quatorze): dez pernambucanos, um carioca, um piauiense e dois
paraibanos. Em 1917 foram 35 alunos matriculados. Nesse mesmo ano se
formaram agrônomos 11 alunos. 1919 registram 43 alunos matriculados.
Diante da incapacidade do poder público de criar e manter escolas de
formação profissional em diversas partes do estado, o governo passa a
subvencionar escolas mantidas por sindicatos e associações, principalmente de
cunho agrícola.
É de incontestável utilidade para a lavoura a existência desses institutos, pois, embora modesto o seu programa de ensino, eles proporcionam gratuitamente aos filhos dos trabalhadores rurais noções de língua vernácula, de aritmética, botânica, física e agricultura; exercitam-nos no manejo dos instrumentos e máquinas agrárias, nos processos de cultura racional, nas podas das enxertias das arvores, no trato e direção dos animais, na adubação e irrigação dos terrenos, na agricultura e avicultura (PERNAMBUCO, 1919, p.38).
A partir da Lei n.770 de 16 de maio de 1906 o estado passou a subvencionar
três escolas agrícolas criadas pelos sindicatos regionais nos municípios de
Garanhuns, Goiana e Escada. No ano de 1916 eram subvencionadas pelo governo
as escolas elementares mantidas pelos sindicatos de Goiana e Itambé, de
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 416-430.
Garanhuns e de Bonito, Amaraji, Gameleira e Escada. Porém em 1919 só eram
subvencionadas pelo governo apenas três escolas: a de Escada, a de Goiana e a de
Garanhuns.
Outra escola subvencionada pelo governo foi a Escola Superior de
Agricultura e medicina veterinária São Bento, que era administrada por monges
beneditinos. No ano de 1926 foram matriculados 32 alunos no regime de internato
e 12 no curso preparatório e em 1928 foram 41alunos matriculados.
A lei nº 370 de 9 de junho de 1899 autorizava o governo executivo a criar
duas colônias em Fernando de Noronha. A primeira, agrícola penal destinada a
mendigos, bêbados e/ou vagabundos. A segunda, disciplinar industrial, com ensino
primário e de ofícios mecânicos objetivada para menores abandonados.
Nesse mesmo sentido foi criada em 18 de agosto de 1916 uma escola
primária para os sentenciados na ilha, e abrangia detentos oriundos de diversos
estados e idades. Em 1917, por exemplo, tinha 60 alunos matriculados entre 18 a
38 anos, dentre estes estavam: um cearense, um alagoano, três paraibanos e os
demais pernambucanos.
Restaurada e regulamentada pelo governador o Dr. Sergio Loreto conforme
o ato de 4 de junho de 1923 e segundo a Lei n. 1577 de maio de 1923 o governo foi
autorizado a criar colônias correcionais para menores e adultos. No seguinte ano
teve matrícula de 131 alunos.
O Ato n. 1.239 de 27 de dezembro de 1928 criou duas escolas profissionais:
uma masculina – esta que em 1943 muda de nome para Escola Industrial de
Pernambuco, posteriormente recebe o nome de Escola Industrial Governador
Agamenon Magalhães e em 1962, Colégio Técnico Prof. Agamenon Magalhães –
situada na rua Concórdia e a feminina na Rua da Soledade n. 42, com diretores
vindos do estado de são Paulo, palco das inovações técnicas do período.
A escola masculina disponibilizava os cursos de marcenaria, tornearia e
entalação, mecânica e artes gráficas. A escola feminina oferecia as suas alunas os
cursos de corte e costura, rendas e bordados, roupas brancas, flores, chapéus e
artes aplicadas, arte culinária, pintura e desenho artístico.
Tabela 2 – Matrículas nas escolas técnicas: a Masculina e a Feminina
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Escola Masculina Escola Feminina
1929 209 309
1930 – 390
Fonte: Mensagem dos governadores do Estado de Pernambuco (1930, p.31).
Uma iniciativa particular foi a dos padres Salesianos de formar um Liceu de
Artes e Ofícios empreendimento que foi auxiliado pelo então governador Barbosa
Lima – em 1895 – que ficou com o nome final de Colégio Salesiano do Sagrado
Coração, onde se aprendia tipografia, encadernação, sapataria, alfaiataria e
marcenaria. “A obra salesiana pretendia formar trabalhadores, visando neutralizar
os ideais anarquistas e comunistas” (MANFREDI, 2002, p. 90).
REFERÊNCIAS
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 431-447.
BREVE INCURSÃO TEÓRICO-JURÍDICO SOBRE O CRIME PASSIONAL NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1890-1940)1
Antonio Carlos Lima da Conceição2 Lina M. Brandão de Aras3
Resumo: Este artigo objetiva examinar as concepções jurídicas sobre os crimes
passionais ocorridos entre casais com vínculos amorosos e/ou sexuais em
Salvador/Ba, entre 1890 e 1940, contribuíram para legitimar a desigualdade de
gênero, pretende também identificar as concepções de gênero que perpassavam
aquela sociedade e sua influência na prática dos crimes passionais estudados.
Palavras-chaves: Crime passional. Gênero. Campo.
Abstract: This article aims to examine legal conceptions of passion crimes
occurred between couples with romantic and / or sexual ties in Salvador / Ba,
between 1890 and 1940 contributed to legitimizing gender inequality, also aims to
identify the conceptions of gender aspects that pass that society and its influence
on the crimes of passion studied.
Keywords: Crime of passion. Gender. Field.
Introdução
O estudo dos dramas passionais e a compreensão da posição dos agentes
forenses ante os crimes mencionados, partiram da consulta das obras doutrinárias
jurídicas do período 1890-1940, o que possibilitou a apropriação das falas nos
tribunais e a relação entre elas e a sociedade em geral sobre a concepção de gênero
na teorização do crime passional.
1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 16/11/2013.
2 Bacharel em Direito - UFBA, Licenciado em História – UCSAL, Mestre em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo – PPG/NEIM-UFBA e Doutorando PPG/NEIM – UFBA. [email protected] 3 Doutora em História pela USP e professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo/UFBA. [email protected]
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A partir das fontes coletadas e tendo como base a organização do campo
jurídico na Primeira República, surgiram às balizas temporais que tiveram como
parâmetro o Código Penal de 1890, primeira legislação criminal republicana e seu
substituto, o Código Penal de 1940, que encerrou a temporalidade reconstituída
neste caminhar. Foi entre estes dois códigos que se construiu a figura do crime
passional, com base na dirimente do artigo 27, parágrafo 4º, que trazia a alegação
da perturbação dos sentidos como justificativa dos atos criminosos.
Embora nos limites deste artigo não tenha a pretensão de analisar os autos
processuais, podemos concluir que os achados empíricos encontrados no Arquivo
Público do Estado da Bahia, não refletem a real extensão do fenômeno em
Salvador. A justiça era um dos recursos dos mais extremos, só sendo solicitada a
atuar quando os arranjos, dos mais variados não se tornavam possíveis. Isto
explica, por exemplo, a ausência de processos envolvendo mulheres das camadas
médias e alta.
Desde meados da década de 1970 historiadores (as) como Esteves (1989),
Thompson (1998), Chalhoub (1986), Fausto (2001), Soihet (1989), Coufield
(2000), têm se utilizado do estudo das mais variadas formas de crimes e violência
como meio de captar, a partir da documentação criminal, detalhes reveladores da
vida cotidiana de mulheres, camponeses, operários, escravos em sua relação de
adaptação ou resistência à dominação de classe.
O crime, pensado agora, não mais como um meio para estudar as patologias
ou o incomum nas sociedades, foi deslocado do centro da vida social, passando a
ser uma fonte privilegiada de investigação da vida cotidiana. Estudar os momentos
de conflito costuma abrir brechas que permitem aos historiadores visualizar e,
portanto, analisar as normas, hábitos e comportamentos que foram quebrados na
vivência cotidiana das relações de gênero.
No que se refere especificamente à temática a ser abordada, este trabalho
tem como base teórica o estudo pioneiro “Morte em Família” da antropóloga
Correa (1983) sobre as representações jurídicas dos papéis sexuais, através da
análise dos processos de homicídios ocorridos entre homens e mulheres no
período que vai de 1952 a 1972.
O regime republicano 1889-1940 inaugurou uma política de
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disciplinarização do trabalhador, colocando-o como o centro de um projeto
político. Notabilizou-se, assim, por uma vigilância e repressão contínuas sobre o
liberto e o imigrante e pelo aprofundamento de uma ideologia do trabalho, no
sentido de fazer com que eles assumissem suas responsabilidades diante da ordem
burguesa.
Segundo o jurista Castro (1943), “a justiça e o pensamento jurídico não
ficariam indiferentes à formação de trabalhadores em seu sentido moral e sexual.”
Especificamente para o pensamento jurídico, o início dos tempos republicanos,
trazendo maiores oportunidades institucionais, tornou-se um momento
privilegiado para organizar uma política mais voltada para a sexualidade. Criou,
ainda, possibilidade de ordenar a nação através do controle social direto (polícia e
punições jurídicas) ou indireto, bem mais sutil, como a difusão de papéis/imagens
sociais e sexuais a serem valorizados ou marginalizados. O aparelho judiciário
tornou-se mais uma instituição, junto com a medicina, a fábrica e a polícia, a tentar
introduzir o trabalhador na ótica burguesa.
O estudo dos protagonistas envolvidos nos dramas passionais, cada qual
influenciado por valores e representações que marcaram a sociedade
soteropolitana no período estudado, possibilitaram a superação da ideia
dicotômica de mulheres vítimas e homens agressores. Muito embora elas fossem
certamente vítimas, foram, também, pessoas que transgrediram, burlaram,
infringiram normas, assim como eles em outros campos sociais.
No final do século XIX, dada a urgência de construção da nação republicana,
o governo provisório efetuou uma revisão das leis civis e criminais decretando
reformas e disposições complementares. Neste cenário tornou-se expressa e nítida
a preocupação do Código Penal com a ordem pública, com os direitos individuais e
com a propriedade, enfocando a família e promovendo a subjetivação da boa
conduta social, incluindo o controle das práticas populares como jogos e apostas,
regulando manifestações da sexualidade, preservando harmonia com a instituição
familiar.
Durante o processo de consolidação da ordem burguesa, transformam-se as
expressões públicas de emoções, que passam por redefinições sociais amplas. Além
da eleição do domínio privado como local adequado para a manifestação de
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sentimentos, verifica-se um contínuo esmaecimento das expressões desenfreadas
das emoções, que, em muitas situações, explicitam-se de um modo tal que poderia
ser qualificado como selvagem, de acordo com o olhar civilizador contemporâneo.
Na perspectiva da constituição da ordem burguesa, era necessária a
pacificação das relações de gênero e isso deveria refletir-se na valorização do
controle das emoções com o consequente comedimento na expressão das paixões,
de tal forma que pudessem ser afiançadas relações sociais equilibradas e estáveis.
Uma das instituições mais importantes e que serviu de modo fundamental
para veicular esse tipo de moralidade foi o casamento, visto como consequência
natural na vida do cidadão comum e, também, como uma barreira contra os vícios
e a degeneração. A contenção, a moderação, o autocontrole burguês eram tidos
como fundamentais tanto para a vida familiar quanto para os futuros chefes de
família. Desenvolver o equilíbrio e o domínio sobre si próprio era pré-requisito
para que se pudesse ter controle e autoridade sobre a família, na condição de
marido e pai.
O campo do direito: espaço de solução dos litígios passionais
Acompanhando as oscilações sociais e contribuindo para o
aperfeiçoamento e eficácia das instituições de controle social, o direito manteve
seu papel relevante na consolidação da ordem. Esta contribuição se evidenciou, à
época, com uma participação dos bacharéis e juristas na vida pública e na
intelectualidade da república, atuando em diversas áreas do conhecimento, como a
literatura, jornalismo, história.
É nesse período que efetivamente se pode observar, nos moldes analisados
por Bourdieu (1989), a constituição de um campo jurídico do qual faz parte o
direito criminal. Especialistas do direito penal brasileiro, influenciados pelas
discussões desencadeadas por criminologistas europeus sobre o comportamento
do criminoso, suas formas de ação e punições, passaram a aplicar os
conhecimentos das ciências biológicas e humanas ao direito, insistindo nas
diferenças inerentes aos indivíduos.
Neste sentido, a República assistiu a uma renovação na aplicação da justiça
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e do direito. Ansiosos em promover o aperfeiçoamento racial e social, os juristas
brasileiros fizeram uso dos pressupostos da ciência moderna e do método
empírico para recusar as premissas amparadas no livre-arbítrio. Assim, o direito
positivo serviu de justificativa para a intervenção dos agentes jurídicos no
desenvolvimento físico e moral da nação.
O Código apresentava elementos que podiam acentuar o grau de
responsabilidade do criminoso, assim como reduzi-la. Eram as atenuantes como a
embriaguez e as agravantes, a exemplo da vadiagem. Além disso, trazia situações
de inimputabilidade penal, traduzidas nas dirimentes. Dentre elas, uma das mais
polêmicas e que gerou grandes consequências foi a dirimente do artigo 27,
parágrafo 4º do Código Penal republicano brasileiro. No Brasil, o antigo Código
Penal de 1890, art. 27, § 4º, estabelecia que: ”Não são criminosos os que se acharem
em estado de completa perturbação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o
crime”. Este preceito legal levava à absolvição dos chamados criminosos
passionais, estimulando a impunidade. Os amorosos no Brasil passaram a lavar
com sangue toda e qualquer honra ferida.
Defensores dos criminosos passionais, cuja formação se deu sob influência
do moderno pensamento criminológico, não tardaram em apropriar-se da
dirimente do artigo 27 a fim de elaborar teses de defesa de seus clientes. Dessa
forma, um homicídio que poderia ser interpretado a partir do artigo 124 do Código
Penal republicano, que se referia a matar alguém, passou a ser individualizado.
Esta individualização acontecia na esfera extracódigo e dava-se a partir da
congregação entre o estado emocional, no momento do crime, e o perfil social do
acusado.
Para justificar a alteração emocional momentânea, os defensores dos
passionais invocavam os ensinamentos do criminalista italiano Ferri (1934), para
quem a paixão amorosa poderia desencadear um processo de perda de sentidos,
levando a pessoa a cometer o crime. O jurista italiano – considerado por Moraes
(1933) um dos mais importantes teóricos do assunto – estabeleceu uma diferença
entre as paixões sociais e antissociais, com atenuação de pena no julgamento, para
as primeiras.
A paixão social era aquela que contribuía para a consolidação da vida em
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comunidade e para o progresso humano. A paixão antissocial era sua antítese,
aquela que trazia a destruição dos valores morais e desestruturava a vida em
sociedade. Ferri (1934) lutava contra a utilização desta teorização para a
absolvição dos criminosos por paixão, pois classificava este ato, o assassinato ou
tentativa, como paixão antissocial, do tipo que desestrutura a vida em sociedade,
sendo, portanto, reprovável. Sobre os homens que matam suas companheiras ele
considerava:
O homem que acredita ter o direito de matar, só porque
surpreenda ou creia no adultério, intervém não a veemência de
uma paixão, como o amor, mas a manifestação de um egoísmo
possessório, opressão marital sobre a mulher escrava e besta de
carga, cujo corpo, na fantasia reta ou desequilibrada do esbulho,
se deva fazer voltar ao antigo senhor com a violência. Antes a
supressão que a perda da posse exclusiva [...] deveremos afirmar
bem alto que o direito de matar não é uma faculdade que a
civilização possa conceder a alguém (FERRI, 1934, p. 68).
A associação das ideias de Ferri aos discursos da psicologia, aliada ao
previsto no artigo 27 parágrafo 4 do Código Penal de 1890, que estabelecia quem
eram criminosos que se achavam em estado de completa perturbação de sentidos e
de inteligência no ato de cometer o crime, permitiu a existência de um crime
jamais redigido nos códigos penais brasileiros.
Segundo Eluf (2007),
certos homicídios são chamados de ‘passionais’. O termo deriva de
‘paixão’; portanto, crime cometido por paixão, todo crime é, de
certa forma, passional, por resultar de uma paixão no sentido
amplo do termo. Em linguagem jurídica, porém, convencionou-se
chamar de “passional” apenas os crimes cometidos em razão de
relacionamento sexual amoroso (ELUF,2007, p. 113).
Eluf salienta, ainda que,
A paixão não basta para produzir o crime. Esse sentimento é
comum aos seres humanos, que, em várias medidas, já o sentiram
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ou sentirão em suas vidas. Nem por isso praticaram a violência
ou suprimiram a existência de outra pessoa (ELUF, 2007, p.113).
A caracterização do crime passional, no entanto, não foi pacificamente
aceita, nem pelos juristas, nem pela sociedade, que se posicionaram e exprimiram
suas ideias e concepções em relação aos criminosos passionais. A figura do
criminoso por paixão desencadeou um debate expresso na literatura jurídica
especializada, assim como na imprensa. Nos anos de 1930, a discussão se
intensificou entre os defensores e acusadores, ambos defendendo suas
perspectivas a partir de estratégias definidas pela posição na hierarquia interna do
campo jurídico e pelos interesses da clientela.
Evaristo de Moraes, no livro Criminalidade Passional, escrito em 1933,
defendeu a tese da especificidade dos crimes passionais. Amparado em
pressupostos da psicologia, discorreu sobre as diferenças entre paixão e emoção. A
emoção era súbita, de pouca duração, podendo ser acompanhada por fenômenos
somáticos. A paixão, por sua vez, fundamentava-se na idéia fixa. Conforme Moraes
(1933),
Nos indivíduos sãos, o amor constitui um estado que não
ultrapassa os limites fisiológicos e que pertence, portanto, à
psicologia normal. A experiência de todos os dias demonstra,
entretanto, que, quando o amor, por intensidade ou predomínio
de um de seus elementos, toma a forma de paixão, pode ser
acompanhado de diversas perturbações psíquicas e somáticas, e
ofuscar transitoriamente a razão (MORAES, 1933, p. 56).
No outro polo da discussão protestava o promotor carioca Lyra (1931) que,
na década de 1930, desencadeou uma intensa campanha contra os criminosos
passionais. Protestava, nos tribunais e na imprensa, que os criminosos passionais
cometiam seus atos premeditada e friamente, sem relação alguma com momentos
de insanidade. E, se isto ocorresse, eles deveriam ser encaminhados para os
manicômios a fim de receberem tratamento apropriado.
As ideias pró e contra os passionalistas atingiram os agentes jurídicos
conforme suas posições na esfera forense e perpassaram o conjunto da sociedade,
justificando para alguns os assassinatos entre casais e para outros reforçando a
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tese de que este criminoso deveria ser tratado como outro qualquer.
As determinações inerentes ao Código Penal Brasileiro de 1890, incluindo-
se entre elas a dirimente do artigo 27, tiveram sua aplicação no território nacional,
estabelecendo práticas e influenciando decisões. Para que isso ocorresse, foi
preciso estabelecer normas que possibilitassem a aplicabilidade do código em cada
instância e em cada mínima porção do campo jurídico em todo país.
República e a Lei
Segundo Esteves (1989), as tentativas dos juristas de impor normas
“civilizadas” nas relações de gênero e de conter a sexualidade dentro das famílias
“higienizadas” eram parte de um projeto mais extenso de controle social durante a
primeira república. As autoridades públicas, dentre as quais os juristas, viam a
família como a base da nação e um espaço social que produzia uma força de
trabalho dedicada, honesta e disciplinada.
Na República Velha, os juristas não tinham a mesma ascendência sobre as
políticas nacionais que seus predecessores, que conduziram a burocracia imperial.
Sua autoridade cada vez mais se apoiava na asseveração de sua perícia
profissional, a qual, mesmo assim, era constantemente contestada.
Os juristas da virada do século XIX para o XX definiram suas posições por
meio da avaliação e aplicação de princípios teóricos nas análises sobre a sociedade
brasileira e nos veredictos em casos criminais individuais. Com o passar do tempo,
eles desenvolveram o próprio corpo teórico-jurídico, que teve como base diversas
fontes locais e estrangeiras.
O projeto republicano trazia em si a pretensão de formar um cidadão com
espírito cívico e moralmente adequado para colaborar com a construção de um
país progressista e civilizado. O discurso republicano tinha como preocupação a
manutenção da ordem social, com a exclusão de vários segmentos sociais do
processo político, objetivando preservar a construção da nação de possíveis
decisões incultas, infantilizadas e anárquicas. É neste sentido que a organização da
sociedade civil, mesmo antes da promulgação da Carta Magna, encontrava respaldo
no Código Penal de 1890.
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O Código Penal de 1890 atravessou a República Velha, a década de 1930,
chegando ao ano de 1940, quando foi editado o novo código penal, perpassou a
vigência de três constituições e substanciais mudanças na conjuntura
socioeconômica do país. O Código Penal brasileiro entrou em vigor antes mesmo
da constituição e teve a pretensão de organizar a sociedade, desfazer as
disparidades jurídicas. Foi influenciado pela teoria clássica do direito penal, e pelo
positivismo. A escola clássica culpava o indivíduo por seus atos absolutamente, por
crer no livre-arbítrio absoluto, enquanto a escola positiva observava o contexto
social e outros fatores mais proximamente.
A influência positivista, através de Cesare Lombroso4, expressa-se na
criação de imagens de criminosos. O pensamento de Lombroso foi detectado nos
profissionais de justiça e advogados da época, que procuravam caracterizar os
criminosos nas classes definidas por ele.
A história do crime passional no Brasil está estreitamente vinculada à
História do Direito Penal brasileiro. É impossível caracterizar essa figura jurídica
sem mencionar o seu contexto legal, o Código Penal, e o âmbito de sua aplicação, o
Júri. Os crimes passionais, de fato, nunca figuraram em nenhum dos nossos códigos
de forma explícita, o que se evidencia como parte da tendência do direito em ir
eliminando, progressivamente, de seu corpo, a vingança privada, à medida que o
Estado se firmava como mediador das disputas entre as pessoas.
O Código Penal republicano de 1890, traz como inovação a questão da
irresponsabilidade criminal, abrindo-se a possibilidade de isentar de culpa “os que
se acharem em estado de completa perturbação de sentidos e de inteligência no
ato de cometer o crime”, artigo destinado principalmente à proteção dos alienados
mentais, nos primeiros anos da república, quando a Psiquiatria se firmava como
campo da Medicina.
Como este código ainda se apoiava no princípio fundamental da chamada
escola clássica de direito – o livre-arbítrio, isto é, a responsabilidade moral do
autor de um crime –, não era possível, legalmente, invocar como argumento para
4 Lombroso legista e criminalista italiano principal expoente da escola criminológica positiva de fins do século XIX, que buscava identificar as características físicas que evidenciassem e comprovassem a sua degeneração mental.
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punição de um criminoso a defesa da sociedade, pressuposto da nova escola penal
italiana. Contudo, mesmo que boa parte dos juristas que discutiam a criminalidade
fossem então adeptos dessa nova escola, por oposição à orientação clássica,
pareciam concordar que, para ser coerente com o código em vigor, a discussão
deveria centrar-se na questão da responsabilidade
Foi então no período de vigência deste código que se fez a fama do crime
passional, a tal ponto que no código que o substituiria (em 1940), afirmava-se,
explicitamente, num de seus artigos que “a emoção ou a paixão não excluem a
responsabilidade criminal”. Conforme reza o Artigo 121 do código de 1940, “Se o
agente comete o crime sob o domínio de emoção violenta, logo em seguida a
injusta provocação da vítima (...) o juiz pode reduzir a pena de um sexto a um
terço”. A paixão deixava de ser uma evidência de irresponsabilidade e passava a
ser apenas motivo de diminuição da pena.
O crime passional foi, ironicamente, nomeado pela primeira vez na
legislação, e reconhecido como um delito de exceção, no código que não mais lhe
reconhecia a possibilidade de absolvição, mudando até de nome, pois este artigo
legal passou a ser conhecido pelos juristas como homicídio privilegiado. Este
privilégio de matar, quando aceito integralmente pelo júri, resultava ainda numa
punição entre um e seis anos de prisão, o que, aparentemente, não satisfez aos
advogados que desejavam lutar pela absolvição de seus clientes passionais.
Ao contrário da argumentação utilizada na vigência do código anterior,
quando se tentava comprovar a irresponsabilidade do criminoso passional, o que
se fez no código de 1890, foi demonstrar que este criminoso não oferecia nenhum
perigo para a sociedade, já que provavelmente não voltaria a delinquir. O Código
Penal não definiu o que era a honra assim como não definia a paixão, embora
inclua um capítulo dedicado aos crimes cometidos contra ofensas à reputação, à
dignidade ou ao decoro. Todavia, definiu legítima defesa, em seu artigo 21, da
seguinte maneira: “Entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente
dos meios necessários, repele injusta agressão, a direito seu ou de outrem”.
Combinando habilmente noções no campo teórico do direito e jogando com
as ambiguidades da definição do papel da família e da mulher dentro dela, no
campo retórico, foi que se obteve a figura jurídica, mas não legal, da legítima defesa
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da honra. A criação desta figura abriu um debate, em que duas opiniões principais
se defrontam. Uma que afirmava que a honra está em cada um e que qualquer ato
cometido por alguém, que não seja de agressão, repercute apenas em quem o
cometeu; outra, sustenta que a honra da família está em cada um de seus membros
e que atos cometidos contra ela, por qualquer um deles, repercute nos outros.
No Brasil, a significação implícita da expressão crime passional, no campo
das discussões jurídicas como no da sua publicação pela imprensa, era a de
punição da esposa adúltera. O crime passional, como o crime supostamente
cometido na legítima defesa da honra, que o sucedeu como argumento no júri, é
um crime basicamente masculino, o que só será explicitado pelos juristas que o
combateram na década de 30.
A utilização que se fez de nossa história serviu tanto para justificar a
presença do crime passional em nossos costumes como para desmentir esta
justificativa. A fundamentação histórica de sua existência apoiar-se-ia na tradição
de um patriarcalismo brasileiro em que a honra sempre foi lavada com sangue; não
apenas a honra dos maridos traídos mas, também, a de pais a quem os filhos foram
desleais, ou a de coronéis indignados com a traição de seus capangas.
Os juristas argumentavam que era necessário julgar o prejuízo que este
crime trazia à ordem social, o exemplo de atitude que representava. A sua punição
devia ser exemplar e o suficiente para preveni-lo. Desta maneira, apontava-se que
as penas obedeceriam a critérios fixos, mas a justiça devia levar em consideração
as qualidades pessoais do criminoso e o tipo de paixão que o impulsionava.
Caracterizando o passional
O criminoso por paixão é um tipo jurídico que apareceu inicialmente nas
obras de autores como Lombroso5 e teve sua teorização mais importante sob a
pena de Enrico Ferri.
Para Ferri,
Delinquente passional é aquele, antes de tudo, movido por uma
paixão social. Para construir essa figura de delinqüente concorre
5 Idem
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a sua personalidade, de precedentes ilibados, com os sintomas
físicos, entre outros, da idade jovem, do motivo proporcionado,
da execução em estado de comoção, ao ar livre, sem cúmplices,
com espontânea apresentação à autoridade e com remorso
sincero do mal feito, que frequentemente se exprime com o
imediato suicídio ou tentativa séria de suicídio. (FERRI, 1934).
A influência deste pensamento criminológico no Brasil nos primeiros anos
da República foi muito utilizado pela defesa dos criminosos passionais, os quais se
valeram destes referenciais jurídico-penais tendo em vista a absolvição dos
criminosos por amor. Segundo Boreli (1999), o passional, nome criado para
designar os indivíduos que cometiam crimes movidos pela paixão, tinham algumas
características estabelecidas pela antropologia criminal: eram homens jovens, que
cometeram seus delitos às claras, eram pessoas de “sensibilidade superior e aguda
emotividade”. Tais homens de passado ilibado e de conduta anterior honesta,
depois de perpetrarem o crime, tentavam o suicídio.
O perfil era de um individuo que tinha deixado a emoção dominar
momentaneamente a sua vida e este item era extremamente importante na
caracterização do passional, pois era a emoção que trazia a perda da razão e dava
uma explicação para o crime; no caso dos passionais o domínio da emoção era
provocado pela descoberta da ofensa à sua honra ou à sua família. Neste sentido,
os jovens eram mais predispostos a esta situação por sua inexperiência e
intolerância. Os passionais eram também pessoas de “alma sensível”, o que
explicava sua explosão e, por fim, seus atos eram praticados publicamente e sem
premeditação, ou seja, na frente de testemunhas.
A confluência destes elementos era completada pela presença de uma “vida
anterior honesta”. Neste ponto era fundamental, para criar a imagem de um crime
cometido no “calor da dor”, reforçar a noção de que aquele ato era um “intervalo
infeliz” na vida do cidadão honesto e merecedor de uma “pena individualizada”.
Os juristas entendem que é preciso defender e propagar a ideia de que a
paixão só deve e pode atenuar o crime quando intrinsecamente for altruística e
nobre, e quando for o crime o deslize transitório de uma consciência honesta,
premida pela excepcionalidade das mais anormais e graves circunstâncias. Neste
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sentido,o jurista e sociólogo Spencer que afirmou:
O amor nos faz cegos diante dos defeitos do objeto amado, nele
nos mostra belezas imaginárias, e, por essa dupla alucinação
negativa e positiva, por esse delírio complicado dos sentidos e da
inteligência, nos arrasta ao desespero, à ruína, à morte (MORAES,
1933, p. 43).
A Escola Clássica diz, textualmente:
A inteligência e o livre-arbítrio são as duas condições da
responsabilidade moral. O homem só é culpado quando conhece
a lei moral e tem o poder de observá-la. Essas duas condições da
responsabilidade moral são, igualmente, exigidas para a
responsabilidade legal. (MORAES, 1933, p. 43).
O debate jurídico da época era se não haveria casos para os quais fosse
absolutamente desnecessária e inútil a penalidade, a exemplo dos crimes
passionais, ou emotivos. Partindo do princípio segundo o qual a pena deve ser a
expressão exata das reações coletivas, provocadas no seio da sociedade pelo delito,
sempre que essas reações não sejam manifestas, ou quando a ambiência social
aceite o crime como um ato não-reprovável, a pena tornar-se-á desnecessária, pois
não terá havido perturbação da ordem jurídica.
Havia um entendimento jurídico influenciado pela escola positivista de que
a boa índole do criminoso, o seu honesto passado, a qualidade moral e social dos
motivos e a forma apenas violenta da execução do crime, seguida de manifestações
de arrependimento, ou de remorso, mostrariam que o crime era passional ou
emotivo, um fato triste e doloroso na vida normal do criminoso; logo, não haveria
razão para lhe ser aplicada qualquer pena, ainda mesmo não desonrosa. Neste
caso, toda a repressão seria inútil e, como tal, iníqua.
O que se considerava era que o passional tinha realizado um ato corretivo
da ordem vigente, que tinha sido “perturbada” pelo comportamento adúltero e que
tinha retornado à sua ordem pelo ato do passional. Neste sentido, o passional não
devia ser criminalizado, pois não havia conturbado a ordem social e, sim, retificado
o comportamento inadequado de uma mulher que manchara a honra de um
homem.
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Segundo Fausto (2001), essa é uma prática “tida como receita pedagógica
eficaz na sociedade brasileira e não apenas nela”. Esse tipo de violência é, até certo
ponto, tolerado pela coletividade e faz parte do processo de socialização
dominante. Entretanto, um quadro de violência nas relações pessoais,
especialmente entre companheiros afetivos e/ou sexuais, pode evoluir e chegar ao
caso limite da agressividade física: o ato do homicídio.
Nos anos 30 do século XX, a noção que estes autores desenvolviam era a
ideia de que o casamento devia ser a união de vontades racionais, de dois seres
humanos lúcidos e capazes. A mulher podia e devia manifestar sua opinião sobre o
assunto, pois a união devia ser uma decisão racional. Quando isto não acontecia,
tinha-se o domínio da emoção, que era responsável pelo início de um casamento
infeliz e dos resultados desastrosos do adultério e do crime passional.
O que se depreendia dos textos de combate aos assassinos passionais era a
noção de conceder à mulher uma honra própria desvinculada da honra do homem
e desvincular a honra do homem do comportamento da sua esposa/companheira,
pois era a desonra provocada por seus atos que tornava o homem violento,
levando-o a matar. Entretanto, em nenhum momento estes juristas tocavam nas
modificações do duplo padrão moral, as mulheres continuavam a ser julgadas por
seu comportamento privado e os homens por sua adequação ao mundo do
trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas representações do moderno, do civilizado, encontravam-se as tensões e
os conflitos. Nesse cenário, em nada harmonioso, as relações amorosas aconteciam.
Sob olhares higiênicos e normatizadores, homens e mulheres legaram, ao presente,
formas de viver e amar que, em muitas vezes, não corresponderam aos ideais
imaginados pelos pregadores burgueses da ordem e da civilização.
O estudo das concepções jurídicas sobre os passionais ocorridos em
Salvador no período estudado, possibilitaram a superação da idéia dicotômica de
mulheres vítimas e homens agressores. Muito embora , elas foram vítimas, mas
Antonio Conceição/Lina Aras
445 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 431-447.
também transgrediram, burlaram, infringiram normas, assim como eles em outros
campos sociais.
Como o território humano não é meramente físico, mas, também, simbólico,
o homem, considerado todo-poderoso, não se conformava quando sua mulher o
abandonava por não mais suportar seus maus tratos. Qualquer que seja a razão do
rompimento da relação, quando a iniciativa é da mulher, isto se constituiu uma
afronta para ele. Na condição de macho dominador, não pode admitir tal
ocorrência, podendo chegar a extremos de crueldade.
A partir dos encontros com as fontes doutrinárias jurídicas , houve um
caminho percorrido em busca da compreensão daquelas múltiplas falas que diziam
o crime passional. O criminoso passional como uma criação jurídica de uma prática
cultural, marcou a cidade do Salvador no período estudado (1890-1940), a qual
internalizou as concepções de gênero como justificativa para a prática dos crimes
passionais envolvendo casais.
Neste sentido, este trabalho preocupou-se em expor a concepção dos
agentes do direito, no seu campo jurídico específico, os quais se utilizaram de todo
um instrumental doutrinário, visando a defender suas concepções naquela esfera
de poder. Não ignoramos, no entanto, que as práticas jurídicas estavam vinculadas
a um contexto maior e relacionavam-se com as representações que motivaram os
dramas entre os casais.
Tentou-se demonstrar, no decorrer deste trabalho, a partir de reflexões
teóricas, que os dramas passionais possibilitou visualizar e, portanto, analisar as
normas, hábitos e comportamentos que foram quebrados na vivência cotidiana das
relações de gênero.
Emoções, desvios e punições abriram possibilidades de reflexões teóricas
mais profundas e oportunidades para o levantamento de problemáticas que, de
forma alguma, encerraram as possíveis aproximações sobre os crimes passionais e
as relações de gênero que marcaram o cotidiano de homens e mulheres envolvidos
nos dramas de paixão.
Breve incursão teórico-jurídica...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 431-447.
Futuros trabalhos poderão explorar outras dimensões que contemplem a
complexa trajetória dos amantes e das múltiplas paixões que envolvem homens e
mulheres.
Referências
BORELLI, Andréa. Matei por amor: as representações do masculino e do feminino
nos crimes passionais. Rio de Janeiro: Celso Bastos, 1999.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Lisboa: Difel. 1989.
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Bastos, 1943.
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Rio de Janeiro (1918 – 1940). Campinas: Editora da Unicamp, 2000.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no
Rio de Janeiro da belle époque. São Paulo: Brasiliense, 1986
CORREA, Mariza. Morte em família. Rio de Janeiro: Graal, 1983.
ELUF, Luisa Nagib. A paixão nos bancos dos réus. São Paulo: Saraiva, 2007.
FAUSTO, B. Crime e cotidiano. São Paulo: Edusp. 2001.
FERRI, Enrico. O delito passional na civilização contemporânea. São Paulo:
Saraiva, 1934.
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1931.
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ordem urbana. Rio de Janeiro: Forense, 1989.
Antonio Conceição/Lina Aras
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tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 448-458.
DISCURSOS NORMATIZADORES DO JORNAL CRUZEIRO NA FORMAÇÃO DA FAMILIA IDEAL1
Jakson dos Santos Ribeiro2
Resumo: O presente artigo aborda uma discussão acerca da representação da família sobre a ótica do periódico religioso Jornal Cruzeiro entre as décadas de 1940 a 1950 na cidade Caxias – MA. O discurso do periódico religioso apontava em suas páginas, que a família caxiense deveria espelhar-se na imagem da “Sagrada Família”, ou seja, uma família, em que se inspirassem os princípios que regia as atitudes do bem estar social da ordem e da boa moral cristã. Desse modo, o jornal em suas páginas afirmava que a mulher deveria seguir os princípios da Maria, santa e submissa, o homem igual a José, honesto e trabalhador e as crianças e os jovens, deveriam apresentar seus comportamentos espelhados em Jesus, ou seja, filhos obedientes e comprometidos em divulgar os ideais da religião católica. Palavras-chave: Família. Ordem. Padrão. Discurso.
Resumen: Este artículo aborda la discusión sobre la representación de la familia en los periódicos ópticos décadas religiosas de Cruise oficiales entre 1940 a 1950 en la ciudad de Caxias – MA. Los discursos de la revista señaló en su vida religiosa, la caxiense familia debe reflexionar sobre la imagen de la "Sagrada Familia", es decir, una familia, en la que respiran los principios que rigen las actitudes de bienestar social y el buen orden la moral cristiana. Por lo tanto, dijo el diario en sus páginas que la mujer debe seguir los principios de María, santo y el hombre sumiso igual a Joseph, honesto y trabajador y los niños y los jóvenes deben presentar sus comportamientos reflejan en Jesús, es decir, obediente niños y se comprometió a promover los ideales de la religión católica. Palabras clave: Familia. Orden. Estándar. Discurso.
Introdução
1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 16/11/2013.
2 Mestrando em História Social pela Universidade Federal do Maranhão – UFMA, da qual pertence à Linha de Pesquisa Poder e Sociabilidade. Atualmente desenvolve pesquisa de nível de mestrado, investigando como são construídos os perfis masculinos na cidade de Caxias na primeira metade do século XX. E-mail: [email protected]
Jakson dos Santos Ribeiro
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Fonte: Cruzeiro, Caxias-Maranhão, 01 de janeiro de 1946, nº. 534, Ano XIII, p.03
A verdadeira família catholica Muitos e muitos dos nossos irmãos católicos, num julgamento superficial de sua vda partícula, acham que ella está perfeitamente de accordo com as santas normas do Divino Mestre. Contemplemos, entretanto, o seguinte quadro: - n’ uma família quo se diz profundamente catholica, num lar em que a imagem do Sagrado Coração de em que a Santa ceia preside às refeições familiares, os membros desta mesma família vivem como que desunidos entre si. O pae, cansado pelas luctas de todos os dias, encontra-se sempre nervoso e neurastentic, não admitindo siquer mais que o filho caçula vá solicitar suas caricias de pae. A mãe, preocupando-se com a filha mais velha que está em idade de se caras, acompanha a em todos os festavaes e reuniões mudanças, de acurando dos deveres de sua casa, entregue a terceiros. O filho mais velho também, estudando por um diletantismo, vive uma vida vegetativa que se reparte entre o gozear as aulas e freqüentar qualquer baile que se improvise na nossa sociedade. Todos vivem preocupados, mal humorados e presos com mil e um preocupações. [...] Mães Critãs! Velae pro vosso Lar, conseravae sempre viva a fé chistã sob vosso tecto. [...] Que cada um compreenda verdadeiramente os seus deveres e compreendam-as com sociedade e espírito christão. [...]. 3
3 CRUZEIRO, Caxias, Maranhão. (Devido às condições que os jornais pesquisados estar bastante complicadas com o desgaste ao longo dos anos não foi possível encontrar os dados que informem o ano e o número do jornal. Outra observação que a ortografia foi mantida conforme encontrada nos jornais pesquisados, nesse caso ao jornal que foi extraído o texto acima.
Discursos normatizadores...
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O texto publicado pelo Cruzeiro apresenta o ideal de família, que o
periódico católico afirmava ser a família4, o verdadeiro lar na prática do cotidiano,
para que os caxienses pudessem se espelhar, uma representação no qual deveria
compor de uma mulher dedicada aos filhos a casa, como forma de preservar os
preceitos religiosos; um marido que após o dia de trabalho se apresente também
ao compromisso de ajudar a educar os filhos e amá-los e os filhos que sejam
amados e vigiados para que não enveredem pelos caminhos tortuosos da vida.
No caso, a mocinha seja preservada a sua virgindade até o casamento,
como forma de manter os valores cristãos da pureza; o rapaz, que tenha uma vida
de homem, com suas práticas masculinas, mas saiba entender os valores da Igreja e
os ensinamentos de seus pais. (PRIORE, 2006, p. 267)
O lar foi representado como uma instituição formadora dos indivíduos
sociais. As práticas sociais que foram desempenhadas por homens e mulheres
devem passar pela boa formação familiar na qual deveria ser proporcionada pelo
núcleo, que é a família. E é na família onde se projeta a boa filha e a esposa do
amanhã, o futuro homem, honesto e trabalhador.
As construções discursivas que envolvem o seio familiar colocam esta
instituição como o núcleo responsável pelo equilíbrio social e pela normatização
dos sujeitos. Os discursos ecoados por instituições como a Igreja, ou pelos sujeitos
de jalecos brancos, que no início do século XX ganharam notoriedade no território
nacional – os médicos vão ser nessa primeira metade do século XX, vozes que
legitimavam a funcionalidade da família no seio social. Eles suscitaram a
fomentação de uma família disciplinada nas suas práticas cotidianas.
Os discursos que se voltavam para legitimar um grupo familiar ordenando
e disciplinado conforme os preceitos da Igreja e do Estado, se inserem nas
mudanças ocorridas em torno dos sujeitos e da própria ideia de família, que se
revestiam de novos valores, novas formas de se conceber como tal. Dessa forma
(PRIORE, 2006) nos aponta
4 A família, a instituição mais “sólida” desde os princípios da era cristã, reforçada em sua [...] forma pelas religiões ocidentais [...] PRADO, Danda. O que é família?. 11ª Ed., São Paulo, Brasiliense, 1989, p. 64
Jakson dos Santos Ribeiro
451 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 448-458.
Os mais diversos discursos sobre a família e o casal — literários, médicos, religiosos e jurídicos — decretam que é no lar, no seio da família que se estabeleciam as relações sexuais desejadas e legítimas, classificadas como decentes e higiênicas. E se o matrimônio era a etapa superior das relações amorosas, “garantidor da saúde da humanidade e da estabilidade social” como queriam alguns autores, nada melhor do que transformá-lo em necessidade para todos. (PRIORE, 2006, p, 266-267)
Nessa perspectiva, cultivar uma representação acerca da família como
princípio vital para sociedade era de suma relevância para a manutenção da
ordem, pois vão fazer com que muitas instituições tenham como objetivo manter
as pessoas arraigadas nos princípios religiosos e cívicos do período.
A essa questão Chartier nos coloca que representações do mundo social
assim se processa como forma de construir na teia social a imagem do real embora
os sujeitos em suas práticas aspirem à outra perspectiva de ação acerca da ideia de
família.
Nessa linha de raciocínio a formação da ideia de família “[...] a família-
modelo tinha diversas funções: fonte de estabilidade econômica, base religiosa,
moral, educacional e profissional.” (PRADO, 1989, p. 74). Como núcleo de
construção de bons cidadãos, nos traz à tona a intencionalidade de existir sujeitos
como os médicos, e de instituições, como a Igreja com o propósito de penetrar na
mentalidade citadina na perspectiva de formar uma percepção sobre a família e as
funções da instituição familiar na cidade. Os discursos e representações acerca da
família se projetam no imaginário social com a visão de como perceber e como
deve ser a família na sua prática cotidiana. No caso da religião, em Caxias tinha-se o
jornal o Cruzeiro imbuído de disseminar na mentalidade citadina caxiense o
padrão familiar e a forma de agir no seu cotidiano.
A defesa de um padrão familiar a ser seguido torna-se uma prática do
Cruzeiro, como forma de salientar um jeito de ser família, pois considerava que,
devido às conturbações da vida moderna estavam provocando a desestruturação
de um padrão a ser seguido, e o Cruzeiro considerava essa desqualificação de um
perfil incorreto, uma vez que quebrava a regra estabelecida pela sociedade.
O periódico age com seus discursos como forma de constituir na
mentalidade social, modelos a serem seguidos tanto do que é família, como do
Discursos normatizadores...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 448-458.
homem social, mulher e filhos. O poder de afirmar e legitimar suas palavras no
bojo sociedade se passa pelo espaço que ocupa, pois o seu respaldo vem da Igreja,
fonte geradora de preceitos morais, e também pela sua representatividade na
própria percepção das pessoas.
O discurso do Cruzeiro forma uma visão social e a função da sociedade
familiar compondo em sua teia discursiva a ideia mais correta de família no seu
contexto. Na própria maneira de apresentar os discursos elenca elementos que
possam traduzir a ideia do que é ser família, nesse caso as palavras são forjadas e
compostas para manter uma harmonia, e do sentido ao qual quer apresentar, nesse
caso a forma “correta” de apresentar-se socialmente como um lar.
O Cruzeiro apresenta um ideal que não poderiam se configurar em muitos
lares caxienses, mas salienta esse desejo como uma forma de influenciar na
formação desse ideal.
A ideia desse ideal no discurso do Cruzeiro se apresentava na seguinte
perspectiva: a estrutura familiar deveria se compor nas decisões da autoridade
mor. Nesse caso era o pai, o chamado senhor de todas as coisas, das decisões a
serem tomados, o regente maior da família e a mulher deveria ocupar o lugar de
senhora submissa nos quais decisões do esposo se tornava a única solução para os
problemas, sejam eles domésticos ou mesmo da própria mulher e que a mesma
não deveria ousar salientar suas opiniões.
Sob essa ótica, os discursos que trazem a tona o padrão de família, não
consegue abranger que o real não se processa nessa dinâmica de um homem, como
o único responsável pelo sustento familiar e a mulher a pessoa de dedicação
exclusiva ao lar e aos filhos.
O real nas primeiras décadas do século XX se processa em outra ótica. O
desenvolvimento industrial galgava cada vez mais espaços. As máquinas estavam
cada vez mais presentes nos espaços citadinos e na vida das pessoas. A ordem
econômica coloca-se mais exigentes diante do tipo de trabalhador, que sejam mais
dedicados e disciplinados nas suas atividades. A consumação de uma nova
realidade econômica dava sinais que transcorreriam mudanças em vários aspectos,
seja ele de ordem econômica como estavam acontecendo e também em outra
ordem, social e cultural.
Jakson dos Santos Ribeiro
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A família foi afetada pelas mudanças geradas pelas transformações
econômicas no qual foram se constituindo no meio social. Essas mudanças se
processam na configuração de um núcleo burguês, ou família burguesa. Os homens
nessa ordem não foram encarados como os únicos sustentadores do núcleo
familiar, as vozes delicadas, que sussurravam nos espaços da cozinha saltaram os
batentes das casas e se aventuraram nos espaços citadinos. É valido ressaltar que
essas mulheres que deram o passo para além do batente da casa tiveram que
desempenhar as funções da nova atividade adquirida e as atividades do lar, ou seja,
ainda precisavam cuidar dos filhos e do marido.
O mosaico social foi ganhando nessas primeiras décadas do século XX
novas constituições, onde se entrelaçava com o novo modelo econômico que vai
como motor principal das atividades econômicas e outras que fizeram com que a
realidade social se configurasse de acordo com as conjecturas dos interesses
econômicos.
O modelo tradicional da família hierárquica, assimétrica ritualizada, estaria perdendo terreno a passos largos. As relações entre os sexos se alteram, multiplicando-se os papeis: o relacionamento entre as gerações se torna mais abertos escamotearam-se menos conflitos. Aumentando o numero de divórcios e de uniões livres [...] (BRUSCHINI, 1990, p. 27).
A engenharia familiar constituída nos primeiros cinquenta anos do século
XX vai ganhando novos sentidos simbólicos inserindo-se em uma estrutura
familiar determinada pela sua temporalidade e suas concepções cotidianas. Como
bem afirma (BRUSCHINI, 1990), o grupo familiar e social está sujeito e captado em
uma determinada instância histórica, estando portando sujeita a determinações
mais amplas, que em muitos extrapolam as suas fronteiras. Assim foi
comportando-se a família na primeira metade do século XX no Brasil.
O Cruzeiro, por sua vez não comunga com as constituições familiares que
se processam em Caxias como no restante do país, salientando que era uma ofensa
aos desígnios religiosos e da boa moral cristã da Igreja Católica, condenando, por
exemplo, o Código Civil que a concebe com liberdades, para Igreja era uma ofensa
aos preceitos do santo sacramento. Os governos da terra querem encampar tudo
na sociedade moderna “[...] Cada um deseja fazer o que melhor entende, sem
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 448-458.
atender a direção, justiça, lei, costume ou razão fundamental”. (CRUZEIRO, Caxias,
Maranhão, 31 de março de 1948, nº. 602, p. 02)
Para acabar com a família, pensa-se em liquidar com todas as famílias, implantando o amor livre, a prostituição, os filhos naturais legitimados. Na família não impera a consciência e dignidade religiosa. Lá se vai a família verdadeira Uma Santa, Indissolúvel, Fecunda, Honrada [...] O mundo marcha para uma catástrofe social sem remedo. Qual o único Código capaz de melhorar a consciência do homem? (CRUZEIRO, Caxias, Maranhão, 31 de março de 1948, nº. 602)
Para Cruzeiro os moldes familiares que estavam se constituindo eram a
própria desconfiguração da “verdadeira família” e isso não poderia ser constituído
no cenário caxiense sob a ótica do periódico religioso. A imposição de um modelo
familiar para sociedade, não significava que prática cotidiana houvesse uma
uniformização dos grupos familiares caxienses. Nesse sentido a família
[...] as famílias deveriam portar-se; seguir os padrões da moral, os filhos não deveriam rebelar-se contra os pais, assumirem todas as condutas cristãs guardando os dias santos, não permitirem-se as filhas, extravasarem entusiasmos nos dias de festas pagãs de carnaval, perdendo o fio condutor de seus comportamentos assimilados no seio familiar. (SALAZAR, 2009. p, 48)
Nas representações discursivas do Cruzeiro o modelo seria inspirado em
um padrão mais santificado e se projetava com o objetivo de normatizar os sujeitos
para que sua prática como instituição familiar se enveredasse por caminhos que
desviasse do padrão santo. Ao relatar nos seus discursos um padrão de família,
Cruzeiro contra diz os modelos negativos que existiam não apenas na sociedade
caxiense, mas em muitos lugares do Brasil.
Contra modelos desviantes: normatizando comportamentos de pais e mães
Uma das marcas modernizadoras que se corporificava nas cidades
brasileiras na primeira metade do século XX era a valorização dos espaços. A
modernização dos espaços eram sinais que as cidades se revestiam com suas
características próprias, em que se tornava perceptível a diferenciação do cenário
urbano para o rural. Nessas “novas cidades” emergiam espaços de sociabilidade
Jakson dos Santos Ribeiro
455 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 448-458.
que possibilitavam os citadinos inserir em suas práticas novos hábitos, como mais
oportunidades de lazer e convivências sociais.
A valorização dos espaços urbanos não ficou apenas nos grandes centros do país. A idéia de progresso importada da Europa, juntamente com uma série de outros valores, espalhou-se pelo país. As cidades brasileiras, mesmo as não figuravam entre as mais ricas e prósperas, queriam, de alguma forma também participar das mudanças que estavam em curso no mundo. Ignorar a onda de novos costumes e hábitos urbanos que chegavam, seria dar um atestado e inimigo do progresso, assim, condenar-se a viver no passado. (CASTELO BRANCO, 2008, p. 40)
Frente à modernidade que ia dando características a uma cidade faziam
com que urbes como Caxias acompanhasse o espírito de modernização
proporcionando aos citadinos caxienses, homens e mulheres a vivenciar novas
práticas, como frequentar as praças, o passeio público os bailes e o teatro
Nessa linha de desenvolvimento que se enraíza em terras gonçalvinas,
Caxias proporciona aos citadinos novas sociabilidades, devido ao desenvolvimento
das atividades que ganham espíritos velozes para vivenciar o progresso. Como
bem afirma (PEREIRA, 2006)
Caxias atinge um considerável auge de desenvolvimento no final da década de 1940. No momento da abertura democrática, Caxias possuía um comercio admirável que estava em pleno desenvolvimento. O crescimento urbano e as novas construções (residências e comércios) representavam a ansiedade pela chegada do progresso. (PEREIRA, 2006. p. 41)
No entanto, essa modernização dos costumes não é visto com bons olhos
pelo discurso do semanário católico, por considerar que a família vai perdendo sua
função de formar cidadãos e os preceitos familiares e cristãos vão sendo deixados
de lado. O trabalho de muitos pais fora de casa faz com que deixem de oferecer aos
seus filhos os bons ensinamentos que, segundo o Cruzeiro, formam as pessoas de
bem. Como coloca o semanário católico em uma reportagem de 01 de junho de
1946 número 553, ano XIII em que o discurso vai afirmar que os país valorizam
apenas o valor do trabalho e deixa as responsabilidades familiares, como os
ensinamentos morais em segundo plano:
Discursos normatizadores...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 448-458.
Ah! muitos pais da atualidade, não teem tempo para isto. São bastante ocupados. A noite, após o jantar – nos momentos de lazer, vão para os cinemas, teatros, e bailes, etc. em busca de distrações, os pobres pequeninos, ficam abandonados aos cuidados das amas.
Essas práticas eram condenadas pelo Cruzeiro, pois simbolizava que os
novos casais estavam esquecendo o valor cuja família deveria ter na sociedade. E
isso se tornava uma afronta aos preceitos bíblicos.
Os novos comportamentos, que os pais estavam realizando nessa ótica,
podia acarretar a constituição de uma geração com muitos defeitos. Segundo Cruz
(2010) essas normas e padrões disseminados pelo Cruzeiro acabam adquirindo
um caráter de universalidade. E “qualquer desvio dessas representações criadas
pela correlação entre Igreja-elite era reprimida, aos leitores [...].” (CRUZ, 2010. p.
30)
Desse modo, o discurso do Cruzeiro verifica que homens e mulheres que
formam a família naquele momento estão se fundamentando em conceitos
familiares modernos demais para época, pois estariam criando um lar de formação
errada e sem os conceitos cristãos.
Hoje, a família e a sociedade mudaram no seus fundamentos, influenciadas, pelas doutrinas modernistas, que criaram fortes obstáculos á harmonia do lar, diminuindo o principio de autoridade suprema do chefe da família, favorecendo as baixas paixões da animalidade humana. (CRUZEIRO, Caxias-Maranhão, Sábado, 8 de junho de 1946, nº. 554, p. 04)
O semanário apresenta que a família, principalmente os atores principais,
pai e mãe compreendam o significado do núcleo familiar na sociedade. Pois a
formação da “boa família”, segundo o Cruzeiro, dependeria dessa base fortalecida
para que se tenha “o fortalecimento e organização da Nação” (CRUZEIRO, Caxias-
Maranhão, Sábado, 8 de junho de 1946. nº. 554, p. 04)
Figura: II
Jakson dos Santos Ribeiro
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Fonte: Cruzeiro, Caxias-Maranhão, 01 de janeiro de 1955.
Nessa imagem reforça um padrão família, no qual que deveria está unida
diante dos vários momentos da vida. Nela a família nuclear encontra no meio e ao
redor do casal encontram-se os sobrinhos, primos, irmãos de parte do pai e irmãos
por parte da mãe.
Para o fortalecimento da nação, do país, o jornal o Cruzeiro representava a
família como fonte fomentadora desse propósito, pois era o núcleo familiar, na
visão do periódico religioso que deveria se estabelecer como fonte
proporcionadora de virtudes necessárias para formar filhos quer, sejam homens ou
mulheres de bem, como salienta a imagem, um exemplo de um casal que
comemora as bodas de diamante e possui uma família grande, mas constituída de
princípios cristãos.
Fonte
Jornal Cruzeiro (1941-1958)
Referencias
BERMAM, Marshall. Tudo que sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Discursos normatizadores...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 448-458.
BRUSCHINI, Maria Cristina Aranha. Mulher, casa, família: o cotidiano nas camadas medias paulistanas. – São Paulo: Fundação Carlos Chagas: Vértice, Editora Revista dos Tribunais, 1990 CASTELO BRANCO, Pedro Vilarinho. Mulheres plurais. – Teresina: Edições Bagaço. 2005. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria Manuela Galharda. Portugal, 2002. COUTINHO, Milson. Caxias das Aldeias Altas: subsídios para sua história. – 2. ed. São Luis: Caxias: Prefeitura de Caxias, 2005. CRUZ, Débora de Cássia Gomes. Aprendendo a ser caxiense: a influência dos discursos do jornal Cruzeiro no processo de construção da identidade caxiense (1941-1949). (Monografia apresentada ao Departamento de História e Geografia) Caxias, CESC, 2010. PEREIRA, Ana Paula Alves. As pipiras da fábrica: as mulheres operárias sob o olhar da sociedade caxiense na década de 1950. (Monografia apresentada ao Departamento de História e Geografia) Caxias, CESC, 2006. PRADO, Danda. O que é família?. 11ª Ed., São Paulo, Brasiliense, 1989. PRIORE, Mary Del. História do Amor no Brasil. 2 ed. São Paulo, Contexto, 2006. SALAZAR, Conceição de Maria Oliveira. A representação da família caxiense através do discurso do Jornal Cruzeiro na década de 40. (Monografia apresentada ao Departamento de História e Geografia) Caxias, CESC, 2009.
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 458-469.
MENORES E CRIMINALIDADE NA DÉCADA DE 1940 E 50 NO RIO DE JANEIRO: AS MEDIDAS E INTERESSES GOVERNAMENTAIS NA ASSISTÊNCIA AOS
DESFAVORECIDOS12 Raphael Nemésio Costa dos Santos3
Marco Antonio Correia de Carvalho4
Resumo: Este artigo visa analisar as medidas desencadeadas durante o período
que compreende as décadas de 1940 e 1950, que intentavam acrescentar às
políticas reguladoras do Estado a assistência aos menores infratores. Para tanto,
pretende-se utilizar como fontes os documentos oficiais, como o regulamento do
S.A.M. (Serviço de Assistência aos Menores), regimentos e decretos sobre a época.
Palavras-chave: Infância. Criminalidade. Socioeducação. Serviço de Assistência
aos Menores.
Abstract: This article aims to analyze the measures taken during the period
comprising the decades of 1940 and 1950, which wanted to add to regulatory
policies of the State the assistance to juvenile offenders. To this end, we intend to
use as sources official documents, such as the regulation of S.A.M. (Service of
Assistance to Minors), regiments and edicts on the season.
Key-words: Childhood. Criminality. Socioeducation. Service of Assistance to
Minors.
1 Este artigo foi idealizado e concretizado originalmente como requisito parcial necessário para aprovação na disciplina História do Brasil IV, ministrada pela professora Doutora Surama Conde Sá Pinto, no curso de Licenciatura em História da UFRRJ, campus Nova Iguaçu. 2 Recebido em 09/10/2013. Aprovado em 23/11/2013.
3 Graduando do 7º período de História - Licenciatura pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-IM). E-mail: [email protected]. Para mais informações ver: http://lattes.cnpq.br/3596524351666751
4 Graduando do 7º período de História - Licenciatura pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ-IM). E-mail: [email protected]. Para mais informações ver: http://lattes.cnpq.br/3596524351666751
Menores e criminalidade...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 458-469.
O contexto em que se insere a presente análise, compreende aquilo que Luíz
Cavalieri Bazílio chamou de a segunda fase da história do atendimento à criança e
ao adolescente no Brasil. Sendo a primeira fase aquela que se estende desde a
colonização até a década de 1920, segundo o autor (1996, p. 205)
“A segunda fase caracteriza-se pelo enorme corpo jurídico/institucional que foi criado pelo Estado brasileiro para o atendimento da infância. Este processo se inicia na década de 1920 e segue até os anos 80. As três leis específicas de atendimento; a criação dos Juizados de Menores; o Serviço de Assistência ao Menor e a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor são produtos deste momento”5
A terceira fase engloba o período subsequente, onde se verifica uma
proliferação e intensificação da participação de ONGs e outros fatores pertinentes
ao processo de redemocratização pós Ditadura Militar. Quem seria esse “menor” e
que significado teria o termo na época? Segundo Fernando Torres Londono6
“A partir de 1920 até hoje em dia a palavra passou a referir e indicar a criança em relação à situação de abandono e marginalidade, além de definir sua condição civil e jurídica e os direitos que lhe correspondem.”
O presente estudo irá analisar a dinâmica da implementação do S.A.M., o
Serviço de Assistência ao Menor, as causas de seu surgimento no contexto do
Estado Novo e suas deficiências posteriores, ilustrada nos jornais que circulavam
na época. Este órgão, diretamente subordinado ao Ministério da Justiça e Negócios
Interiores, seria criado com o objetivo de assistir aos menores desamparados,
fornecendo moradia, internação quando necessária, posterior encaminhamento a
empregos, educação e saúde.
5BAZÍLIO, Luiz Cavalieri. Trabalho, formação profissional e educação do adolescente. Revista Perspectiva. Florianópolis, v. 14, n. 26, p. 203 – 220, jul/dez 1996. 6LONDONO, Fernando Torres. A origem do conceito menor. In: DEL PRIORE, Mary (org.). História da Criança no Brasil. 1991.
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Em qual contexto verifica-se a necessidade do governo em implantar, em
voltar o olhar para a situação dos menores abandonados, sem assistência,
suscetíveis a renderem-se às drogas, bebidas, ociosidade e, muitas vezes – devido
as circunstâncias antes expostas – acarretando em crimes contra a ordem da
sociedade? De modo geral, desde o início do século XX aqueles que não se
adequavam a ordem estabelecida já eram vistos como um problema a ser
revolvido, mas é na década de 1940 e posteriormente que medidas mais drásticas,
mais enfáticas, são tomadas e necessitadas. Segundo André Ricardo Pereira,
analisando este objeto através de uma metodologia pautada na longa duração,
“quando o espetáculo da pobreza tomou conta dos centros urbanos, crianças e
adolescentes pobres começaram a ameaçar a propriedade privada”7. Erradicar a
preguiça e promover o apreço pelo trabalho como condição inerente a existência
humana fazia parte daquelas que seriam as condições para suprimir do cotidiano
as mazelas sociais e diminuir a criminalidade.
O país passava por um processo de transformação e industrialização, e na
esteira deste processo, a sociedade deveria enfrentar suas tradições e costumes e
disciplinar-se diante das novas condições de convívio, no sentido que E.P.
Thompson8 conceitua o termo “disciplina”, para enquadrar-se às mudanças. As
dificuldades daí surgidas acarretaram na intensificação do combate aos
marginalizados, não somente como forma de repreensão, mas de educação.
Qual seria a melhor forma para se compreender a instituição do Serviço de
Assistência ao Menor? A análise dos próprios documentos oficiais pode esclarecer
os motivos, uma vez que a existência de um discurso oficial visa justamente atestar
que aquilo ao que ele se opõe, de fato existe. Ou seja, neste sentido, no art. 19 do
regimento do S.A.M., em relação à Divisão de Integração Social, consta o seguinte:
7 PEREIRA, André Ricardo. A criança no Estado Novo: uma leitura na longa duração. Revista brasileira de História. vol.19 n.38 São Paulo, 1999.
8THOMPSON, em Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicional demonstra a dinâmica da adaptação da sociedade frente a insurgente industrialização dos meios de produção. No tocante aos homens e o cotidiano, analisa os processos referentes às necessidades de adequação do povo no que se refere a seus costumes.
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 458-469.
“Art. 19. À Divisão de Integração Social (D.I.S.) compete promover, segundo os princípios técnicos do Serviço Social, e com o concurso das demais Divisões do S.A.M., o ajustamento social dos menores e a sua integração na sociedade.”
Segundo nos informa este artigo do regimento, o simples fato de propor o
ajustamento e a integração de menores, significa, claramente, que havia
desajustados e marginalizados. As atribuições do S.A.M. não se limitavam àqueles
que infringiam as leis, mas também aos menores impossibilitados de
enquadrarem-se na sociedade, como órfãos, por exemplo.
A intenção em controlar e assistir os necessitados e legislar quanto aos
crimes cometidos por menores significava, antes de tudo, intensificar o combate a
valores divergentes e degradantes circulantes, em consonância com as intenções
propagadas pelo Estado Novo, ideia decorrente das políticas empregadas na
capital no início do século XX. Tendo em vista esta extensão das medidas já
realizadas através da reforma de Pereira Passos, no Estado Novo as medidas
visavam não somente a correção dos menores infratores e o auxílio à educação
daqueles incapazes, mas também higienizar os desfavorecidos. Higienizar no
sentido lato, compreendendo também os cuidados médicos necessários para a
garantia de uma plena saúde dos marginalizados. A correção passava pelo viés da
educação e da salubridade.
Em teoria, o supracitado consiste naquelas que deveriam ser as atribuições
e obrigações do S.A.M. O que se verificou nos anos seguintes foi uma demasiada
gama de dificuldades provenientes de fatores diversos, envolvendo fatores de
ordem política e econômica, acrescentando-se também as dificuldades logísticas.
Um relatório do Ministério da Justiça de 1946, quando dirige-se a investigar a
situação estrutural e o funcionamento do Órgão Central do S.A.M., menciona que
“A impropriedade de suas instalações e deficiência de pessoal habilitado propiciam incidentes diários, exercendo sobre o menor, que nele tem o primeiro contato com o serviço, uma impressão desagradável que influi consideravelmente sobre a sua atitude em face do S.A.M.”
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463 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 458-469.
As deficiências da situação do S.A.M. vieram a conhecimento do público
através dos periódicos. No ano de 1946, o periódico Gazeta de Notícias9 relata que
a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados recebeu “[...] a visita do
Sr. Matos de Alencar, que apresentou circunstanciado relatório sobre as graves
deficiências de que se ressente o Serviço de Assistência ao Menor no Distrito Federal [...]”
O jornal A Manhã10 relata que o diretor do serviço em 1951, o padre João
Peduen11, “[...] fez minucioso relatório sobre a situação daquele Serviço, apontando
as falhas e expondo a maneira de corrigi-las.” A Gazeta de Notícias ainda
acrescenta, na mesma matéria acima citada, que havia uma precariedade quanto a
infraestrutura do S.A.M., que não possuía leitos suficientes para suprir a demanda.
A notícia de que o governo pretendia tomar providências quanto à situação do
órgão que deveria assistir os menores foi veiculada em diversos periódicos. Além
dos já citados, o Diário de Notícias e o Diário Carioca, ambos de 3 de agosto de
1951 disponibilizaram a informação ao grande público.
Buscando solucionar as deficiências acima expostas, em particular a
superlotação dos leitos e a consequente incapacidade de suportar toda a demanda,
foram tomadas medidas que visavam implantar instalações provisórias, como
relata o A Manhã12
“Alojamentos provisórios foram agora construídos nas dependências do S.A.M. Vindo esta providência facilitar a internação na sede daquele serviço, de numerosos menores que se encontram, presentemente, desabrigados. Está, assim, o governo proporcionando uma ampla política de assistência aos menores abandonados e delinquentes que ali, também, encontram orientação segura.”
Neste mesmo relato, o padre Pedron, dirigente da instituição, esclarece os
motivos e as intenções por trás das mudanças:
“Quero deixar bem claro, para que não haja mais dúvidas, que os alojamentos provisórios visam abrigar menores de ambos os
9Gazeta de Notícias, 17 de outubro de 1946, primeira seção, terceira página. 10 Jornal A Manhã, 03 de junho de 1951. 11 Esta edição do jornal escreveu o nome do diretor de forma equivocada. Verificando matérias jornalísticas posteriores, encontramos a grafia correta, “Pedron”. Optou-se por manter a forma original utilizada pelo periódico. 12Jornal A Manhã, 27 de março de 1952.
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sexos, em vias de internação nas diferentes escolas que constituem a rede assistencial do S.A.M. Durante sua permanência nesses locais, os candidatos e submetem a exames médicos, testes de nível mental13 e de escolaridade, depois do que serão encaminhados aos estabelecimentos adequados a um processo eficiente de recuperação.”
Neste contexto, o periódico A Noite14 noticia que um novo estabelecimento
vigorará na Ilha das Flores, suportando a internação de dois mil e quatrocentos
menores. Tentando dar maior visibilidade à luta que travavam estes setores contra
a criminalidade e o abandono de menores, foi realizada em 1952 a “Semana do
Menor Abandonado”, mais precisamente entre os dias 14 e 19 de abril. Foi
“organizada pelo Juiz de Menores e [...] destinada a debater os problemas da
infância desajustada do país”15. O interesse era tamanho no projeto, na
disseminação e conscientização do povo para a situação, que a Semana contava
com a participação do ministro Saboia Lima, “que abordará os principais aspectos
do problema” e também a presença de Adalgisa Lourival Fontes, presidente da
Associação Brasileira de Ajuda ao Menor (ABAM), que ficara responsável pela
organização do evento, entre outros indivíduos ligados à cargos governamentais.
Após a inauguração do evento, ficou nítido o caráter socioeducativo do
projeto e dos ideais políticos. As conferências realizadas abordavam
questionamentos tanto referentes às medidas socioeducativas, a necessidade de
reeducação dos marginalizados quanto às questões estruturais dos órgãos
responsáveis.16
Tinha-se também a consciência de que a criança não era o embrião, a gênese
do problema, e, desta forma, o governo e órgãos dele derivados se importavam
também com as mães, gestantes, implantando toda uma política de assistência e
educação maternal, denominada Programa de Proteção Materno-infantil, sob os
auspícios do Estado Novo em 1940, que se inseria neste contexto da prevenção da
13 Entre as atribuições do S.A.M. figurava a necessidade do amparo psiquiátrico. Em matéria veiculada pelo periódico A Noite, de 15 de outubro de 1955, é disponibilizada uma matéria jornalística justamente a respeito dos projetos e assistências psicológicas e psiquiátricas para os menores. 14A Noite, 10 de setembro de 1955. 15Correio da Manhã, 26 de março de 1952. 16Correio da Manhã, 15 de abril de 1952.
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465 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 458-469.
criminalidade e desfavorecidos que aqui tratamos. Neste sentido, André Ricardo
Pereira17 comenta que
“Ao erradicar concepções advindas da ignorância, o médico permitiria o retorno àquele idealizado "estado de natureza", no qual os caminhos da saúde e do perfeito desenvolvimento físico e moral seriam dados. Propondo a criação e dirigindo o Posto de Puericultura equipado com um Lactário (unidade para extração e redistribuição de leite materno), o médico estaria estimulando a amamentação ao peito - considerado o mais perfeito alimento para o indivíduo na primeira infância. Trabalhando em estreita colaboração com o Prefeito, poderia sugerir medidas de saneamento local, evitando a propagação de doenças, tidas como outros elementos desviantes do caminho natural.”
E acrescenta ainda que
“Em resumo, preservar a saúde da criança pela manutenção da estabilidade de sua família implicava na constituição de meios que executassem esta dupla tarefa, promovendo, ao mesmo tempo, a integração social. Para tanto, os meios físicos deveriam propiciar a assistência material – atendimento médico, distribuição de alimentos etc. – e moral – educação das mães e das crianças –, orientadas pelo Estado e contando com a participação de quem já tinha tais problemas resolvidos.”
Na esteira deste processo de intensificação das ações na década de 1950,
surge a ideia da construção do Instituto Padre Severino, e o jornal Diário de
Notícias18 faz um apelo em suas páginas:
“CUIDEMOS DAS CRIANÇAS DO BRASIL – DOZE MIL CRIANÇAS NO SAM; Há cem mil menores abandonados no Brasil, dizem os entendidos – (...) Construção do Instituto Padre Severino e da Granja Escola, na Ilha do Governador – Quatro oficinas e ateliês de música e pintura – Futuramente, a Bolsa de Trabalho, para interessar as firmas industriais.”
Na mesma matéria, verifica-se a atenção dada a esta questão, onde
jornalistas visitaram as instalações do S.A.M., e passaram “onde outrora nenhum
jornalista entrava sem emoção e ao mesmo tempo ódio”. Tudo estava sendo
17Op. Cit. p. 177. 18Diário de Notícias, 06 de fevereiro de 1955.
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 458-469.
reestruturado. A visão sobre como o Estado brasileiro encarava o problema dos
desvalidos, transviados e delinquentes juvenis estavam transformando-se em algo
positivo. A antiga visão dos maus-tratos era eclipsada mediante as constantes
atividades e projetos, reformulações legais ou estruturais e ampliação das
instalações. Não mais tinha espaço na mentalidade brasileira, leitora destes
periódicos aqui tratados, termos como “depósito de menores”. O Instituto Padre
Severino seria a ilustração principal deste processo. Após sua inauguração,
planejava-se alocar em seu interior uma série de oficinas culturais e
profissionalizantes.
As tentativas proliferavam, mas havia ainda certa resistência quanto a parte
administrativa do S.A.M. Encarava-se, ao menos na visão da imprensa, que a
administração era regida de acordo com interesses políticos e não socioeducativos.
Houve um congresso em Curitiba em 1953 que visava realizar um debate com
autoridades acerca da situação presente do menor abandonado. O sr. Mourão
Russel, primeiro Juiz de Menores, em entrevista para o Diário de Notícias19, relata
que
“O congresso foi muito bom; trabalhamos muito, analisamos seriamente os problemas que dizem respeito à criança em geral e aos abandonados em particular, mas um Congresso não é executivo...”
Analisando a fala do juiz, pode-se afirmar que as tentativas de
reorganização institucional ficavam demasiadamente restritas ao âmbito teórico,
entravado em diversos debates. A este respeito, o jornal critica a organização e o
comprometimento por parte do S.A.M. quanto a situação calamitosa vivenciada no
Distrito Federal: “O cargo de diretor do Serviço de Assistência ao Menor (SAM) que
devia estar nas mãos de um entendido, é hoje um cargo político”20
Com esta situação, especulava-se a saída do padre Pedron do cargo de
diretor do S.A.M. Interessa-nos demonstrar que, com esta especulação, gerou-se na
capital uma corrida para ver quem ocuparia o cargo que ficaria vago. Segundo este
mesmo jornal, o desejo crescente em ocupar o cargo de diretor de uma instituição
19Diário de Notícias, 09 de julho de 1953. 20Op. Cit.
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467 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 458-469.
que zelava pela recuperação de abandonados ou criminosos não se fazia no que diz
respeito a interesses socioeducativos, mas antes devido à verba que o S.A.M.
recebia, ou seja, a questão política, conforme denunciada pelo Diário de Notícias
tomava corpo, ganhava exemplificação neste contexto.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É importante salientar que o presente estudo não tem o intuito de
solucionar um questionamento historiográfico, antes disto, visa elaborar um
levantamento e exposição de fatos significativos no que se refere às atitudes e as
preocupações das autoridades brasileiras quanto a situação em que se
encontravam os menores abandonados e vitimados pelas ações criminosas. A
utilização dos periódicos contemporâneos ao período tratado é elucidativa no
sentido de podermos compreender a importância política que era dada a questão.
Homogeneizar, zelar pela coesão da brasilidade tornava-se um dos eixos principais
da política instaurada após 1930 com Getúlio Vargas. Neste âmbito, não tinham
espaço na sociedade aqueles que divergissem do modelo sociopolítico
apresentado, tendo que se disciplinar ou sofrer as represálias.
Neste sentido, percebe-se o diálogo existente entre o objeto do presente
estudo e a política trabalhista varguista: segundo as autoridades, fazia parte deste
projeto sociopolítico a preparação e subsequente encaminhamento para postos de
trabalho, ou seja, as etapas consistiam em retirar o transviado do seio da
sociedade, para que não a contamine e alocá-lo em uma espécie de reformatório,
saindo então devidamente moldado ou preparado para ocupar um posto de
trabalho, base da ideologia varguista.
No atual estado da pesquisa, desenvolve-se no CEDOM21 um projeto ligado
ao Novo Degase, no Rio de Janeiro, que tende a resgatar parte significante da
história do menor em dificuldades com a lei desde a década de 1920. Uma vasta
documentação encontra-se ainda inutilizada devido aos maus tratos do tempo e a
falta de conscientização social no que e refere a compreensão da importância
21 Centro de Documentação e Memória.
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destes documentos. São eles, majoritariamente, prontuários, fichas cadastrais,
documentos pessoais, etc.
BIBLIOGRAFIA
Fontes primárias
- Regimento do Serviço de Assistência ao Menor;
- Decreto nº 16575 de 11.09.1944;
- Correio da Manhã;
- A noite;
- Diário de Notícias;
- Diário Carioca;
- A Manhã.
Referências Bibliográficas
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adolescente. Revista Perspectiva. Florianópolis, v. 14, n. 26, p. 203 – 220, jul/dez
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República ao Estado Novo. s/d
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Raphael Santos/Marco Carvalho
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RIZZINI, Irene. Crianças e menores: do pátrio poder ao pátrio dever. Um histórico
da legislação para a infância no Brasil. In: PILOTTI, F. e RIZZINI, Irene. A arte de
governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à
infância no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Interamericano Del Nino, Editora
Universitária Santa Úrsula, Amais Livraria e Editora, 1995.
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 470-489.
O RAMBO RUSSO: A DESMONUMENTALIZAÇÃO DO HERÓI AMERICANO E A
MONUMENTALIZAÇÃO DO HERÓI SOVIÉTICO ATRAVÉS DO CINEMA1
Moisés Wagner Franciscon2
Resumo: O sucesso internacional da série Rambo e sua gritante mensagem
antissoviética possibilitou à URSS a oportunidade de produzir um filme de ação
nos mesmos moldes, desconstruindo o discurso americano e enaltecendo a
autoimagem do país. Nesse processo, os soviéticos construíram e reafirmaram a
representação que faziam dos Estados Unidos. Misto de propaganda oficial e de
exigência do sistema de produção cinematográfico, como seu similar ocidental,
Odinochnoye Plavaniye permite uma maior aproximação com a complexidade da
sociedade soviética, geralmente ocultada pelas teorias do totalitarismo. Para sua
análise foi empregada a história social do cinema de Marc Ferro, juntamente com
os conceitos de monumentalização e desmonumentalização de Marcos Napolitano.
Palavras-chaves: Cinema. Monumentalização. Desmonumentalização. União
Soviética.
Abstract: The international success of the Rambo series and its blatant anti-Soviet
message has enabled the USSR the opportunity to produce an action movie in the
same way, deconstructing the American discourse and praising the self-image of
the country. In this process, the Soviets built and reaffirmed the representation
made over the United States. Mixed official propaganda and requirement of
cinematic production system similar to its western, Odinochnoye Plavaniye allows a
closer relationship with the complexity of Soviet society, usually hidden by the
theories of totalitarianism. For their analysis was employed the social history of
1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 23/11/2013.
2 Mestre em História Política e Movimentos Sociais pela Universidade Estadual de Maringá. E-mail:
Moisés Wagner Franciscon
471 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 470-489.
film by Marc Ferro, along with the concepts of monumentalization and
demonumentalization of Marcos Napolitano.
Keywords: Cine. Monumentalization. Demonumentalization. Soviet Union.
INTRODUÇÃO
Odinochnoye Plavaniye recebeu diferentes nomes, até mais de dois, segundo
o país em que foi exibido: The russian hero, The detache dmission, Solo Voyage:
the revange, Le soviet, Sovit: la respuesta. A melhor tradução seria “Viagem
solitária”. É um filme soviético de fins de 1985, dirigido pelo georgiano Mikhail
Tumanishvili e é considerado como a versão russa de Rambo. Quando os
distribuidores internacionais passaram a acrescentar o subtítulo de “revanche”,
puderam descrever bem ao filme. A obra se insere como mais um capítulo da
rivalidade entre os Estados Unidos e a União Soviética no período conhecido como
Segunda Guerra Fria (HALLIDAY, 1983). Promove a desconstrução da imagem do
herói americano (bem como da imagem que os soviéticos faziam do americano
típico) a partir da própria visão tradicional soviética de heroísmo. Como gênero, se
assemelha a uma forma híbrida entre o realismo socialista praticado na URSS e o
filme de ação americano. A rivalidade em sua composição impôs a absorção de
elementos do cinema do inimigo ideológico.
O discurso embutido no filme é melhor percebido com o uso dos conceitos
de monumentalização e de desmonumentalização na escrita fílmica, de Marcos
Napolitano. Como produto social e também um olhar de uma sociedade sobre
outra, a teoria da história social do cinema de Marc Ferro, possui um papel
importante e necessário para a análise do filme.
Odinochnoye Plavaniye não trata de eventos históricos passados, mas de
eventos ficcionais baseados no presente, que procuram prender e dar a dimensão
ao expectador da tensão política existente na primeira metade dos anos 1980, bem
como do alegado pacifismo soviético e do belicismo americano. Pode ser
considerado, portanto, obra de propaganda? O cinema ocidental costuma não ser
O Rambo russo
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 470-489.
visto como obra de propaganda política. Seus criadores, estúdios, orçamento,
dependem da iniciativa e de recursos privados. O avesso do sistema de produção
soviético, em que os diversos estúdios de cinema são empresas estatais, geridos
por agências centrais encarregadas da burocracia e da censura, dependentes do
crédito e das encomendas governamentais. A filiação entre cinema e regime é
muito mais palpável na URSS que nos Estados Unidos. Como ponto final,
argumenta-se que a indústria cinematográfica ocidental curva-se ao mercado – os
estúdios produzem o que o consumidor quer ver. Se Rambo foi um sucesso, isso se
deve unicamente às massas de expectadores americanos ávidos por violência e
mensagens conservadoras e nacionalistas. Justifica-se que o cinema soviético seja
percebido apenas como propaganda porque o regime utilizava agências
declaradamente de propaganda para seu fomento ou que era um regime que a tudo
politizou (TAYLOR, 1998), pelo uso confesso pelos líderes (PEREIRA, 2012) ou
ainda pela extensão econômica do Estado (OVERY, 2009). O termo traz um aspecto
vazio e artificial, como se nada no cinema fizesse parte também do imaginário
social, das massas que participaram da luta armada ou da construção do socialismo
e se identificassem com o que foi produzido3. Ou então como algo que penetra no
indivíduo, com uma transmissão plena, sem releituras, interpretações ou negações.
Maria Helena Capelato entende a propaganda do Estado no cinema como a
tentativa de causar emoções por meio da narrativa fílmica, não para transmitir
uma mensagem clara, mas para produzir determinados efeitos pretendidos sobre
as massas, como seu apoio. O sucesso da propaganda política não consiste na
lavagem cerebral, mas sim em sua vinculação e em sua capacidade de apreensão
do momento, em seu apelo junto às massas. O sucesso desse tipo de campanha
pode ser de tal ordem que a propaganda possa fazer parte dos pilares de
sustentação do regime. Mas ela não nasce nem se sustenta do nada, da pura
retórica (CAPELATO, 1999, p.170; 178). Mas o uso dos sentimentos não foi
monopólio do cinema dito totalitário. Basta lembrar-se do próprio material sobre o
3 Isso fica bem claro com a definição dada por Taylor: “‘Propapanda’ é concernente com a transmissão de idéias e/ou valores deuma pessoa, ou grupo de pessoas, para outro. Onde a ‘propagação’ é a ação, a ‘propaganda’ é a atividade. seria, portanto, sensato, em vez de analisá-la em um plano mais abstrato para uma definição mais satisfatória, começar com as particularidades eexaminar mais de pertoas várias fases do processo de transmissão” (TAYLOR, 1998, p.7).
Moisés Wagner Franciscon
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qual Odinochnoye Plavaniye foi elaborado: Rambo presencia seus compatriotas em
inanição serem espancados por soldados vietnamitas bem armados, uma jovem ser
assassinada e,o menino-soldado que luta contra os ocupantes soviéticos. Enredos
que não possuem diferença profunda com filmes como o stalinista Padeniye Berlina
ou o nazista: O jovem hitlerista Quex. Inimigos demonizados, ideais defendidos pelo
regime enaltecidos. Qual é, portanto, a diferença entre alguns produtos do cinema
das democracias liberais e o dos regimes que se afirma serem totalitários?
Os interesses do Estado podem se expressar no cinema de diferentes
formas, sem ser necessária uma ligação umbilical com o mesmo. Principalmente se
o considerarmos como instituição controlada por facções pertencentes à classe
dominante, da mesma forma que esta pode controlar os estúdios – propriedade
sua, e o trabalho dos diretores – em última instância, seus empregados. A
propaganda de bens de consumo, uma necessidade no modelo americano de
cinema, principalmente com o surgimento como blockbusters e suas exigências de
financiamento, também continham em seu âmago mensagens do sistema
econômico. O que Capelato (1999, p.177) afirma para o Estado Novo e os
fascismos, de que ideias e mercadorias eram vendidas concomitantemente,
também vale para a produção cinematográfica americana. Silva (2009), amparado
nos referenciais gramscianos, aponta para a propagação dos ideais conservadores
já existentes em amplos segmentos da sociedade e do meio político americanos
para outros campos dessa mesma sociedade e para outros países. O mesmo se
pode afirmar da produção soviética. Ela não era algo aéreo, com mensagens
deslocadas de sua sociedade, o que o tornariam uma voz oca e contrária aos
interesses do regime. Por essa visão, o cinema no ocidente ou no leste mais se
assemelha do que se distancia como afirma Marc Ferro:
Desde que os dirigentes de uma sociedade compreenderam a função que o cinema poderia desempenhar, tentaram apropriar-se dele e pô-lo a seu serviço: em relação a isso, as diferenças se situam ao nível da tomada de consciência, e não ao nível das ideologias, pois tanto no Ocidente como no Leste os dirigentes tiveram a mesma atitude. Painel confuso. As autoridades, sejam as representantes do Capital, dos Sovietes ou da Burocracia, desejam tornar submisso o cinema. Este, entretanto, pretende permanecer autônomo, agindo como contra-poder [...]. Esses cineastas, conscientemente ou não, estão cada um a serviço de uma causa, de
O Rambo russo
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uma ideologia, explicitamente ou sem colocar abertamente as questões. Entretanto, isso não exclui o fato de que haja entre eles resistência e duros combates em defesa de suas próprias ideias (FERRO, 1992a, p. 13-14).
O argumento do mercado todo poderoso para a produção ocidental e da
plena liberdade do diretor tem falhas essenciais. Não explicam, por exemplo,
decepções com o público pagante ou com as pressões que retiraram dos diretores
poder real sobre a produção desde o surgimento dos executivos de Hollywood4.
Tampouco os soviéticos não enfrentavam qualquer desafio similar. Como o Plano
Quinquenal estipulava, além do orçamento dos filmes, fornecedores, preços dos
ingressos, também estimativas para a audiência nas salas de exibição (KENEZ,
2008). Esse mercado imposto na prática obrigava os estúdios a rodar filmes com
algum apelo popular. Essa pressão aumentou a partir dos anos 1960, quando o
financiamento da indústria cinematográfica passou a enfrentar a ameaça
representada pela diminuição de público pagante e os estúdios das repúblicas
soviéticas aumentaram sua produção mas majoraram seus prejuízos. O cinema de
entretenimento, sempre o mais apreciado pelas massas soviéticas, teve um
incremento nas comédias – que costumavam ter o maior público – e no até então
menos frequente gênero de filmes de aventuras. Concomitantemente, os cineastas
e produtores discutiam se o cinema deveria ser comercial ou autoral, refinado ou
destinado às massas (BEUMERS, 2009, p.146-149). O desenvolvimento dos filmes
de ação soviéticos, como um gênero destacado do cinema bélico, ou, como prefere
Troncale, kinovoeniana (LAWTON, 1992, p.192), demonstra a maior força da
última corrente.
Napolitano, pensa no filme político ou filme de propaganda dentro de
limites bem mais estreitos. Para ele, o filme político caracterizado por ser
propagandístico e apoteótico não é algo tão comum quanto se pode imaginar. É
difícil conceituar um filme assim porque todos trazem uma visão ideológica,
4 Antes da concepção do cinema como indústria e linha de montagem, o diretor poderia decidir desde o orçamento – sempre alongando mais e mais as filmagens e gerando novas necessidades, quanto a duração da obra ou toda e qualquer alteração no roteiro. Os empresários recorreram à industrialização e aos executivos como forma de tomar o controle dos diretores, assegurando assim seu lucro e impondo tudo o que julgassem necessário para a preservação deste (PEREIRA, 2012).
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declarada, latente ou secund|ria. Filmes políticos devem ser aqueles “nos quais o
tema da política é o eixo do roteiro e da narrativa” (NAPOLITANO, 2011, p.83).
TRAMA, MONUMENTALIZAÇÃO E DESMONUMENTALIZAÇÃO
Odinochnoye Plavaniye inicia-se com uma introdução às operações
secretas da CIA. Explica que elas são atividades dirigidas contra nações
estrangeiras, orquestradas de tal forma que jamais a culpa dessas ações recaem
sobre os Estados Unidos. Seguem-se imagens do porta-aviões nuclear Nimitz. Um
reportar da fictícia rede de TV ASB, na ponte do porta-aviões, diz que exercícios
militares na junção dos oceanos pacífico e índico reuniram os países membros da
OTAN, sob a batuta americana. Simultaneamente, os soviéticos realizariam seus
próprios exercícios militares com a esquadra do pacífico. Os dois lados vigiam-se e
o clima é tenso. Um incidente poderia desencadear uma guerra. Ao mesmo tempo
as lideranças das superpotências planejam um encontro para tratar do
desarmamento.
A cena seguinte passa-se na Flórida. O major Jack Hessalt (interpretado
pelo ator letão Arnis Licitis) tem um encontro com o alto escalão da CIA,
encabeçado por Frank Crowder (o também letão Janis Melderis). Hessalt e seu
braço direito, o sargento Eddie Griffith (Nikolay Lavrov), são mercenários que são
periodicamente usados pela CIA em suas operações secretas. Hessalt é
atormentado pelas lembranças de sua última ação no Vietnã, onde comandava
missões punitivas que incendiavam aldeias e matavam os camponeses. Crowder
oferece uma última missão. Enquanto entretém os mercenários com dançarinas
cubanas exiladas, revela a existência de um arquipélago não mapeado próximo do
local de realização dos exercícios militares das esquadras da OTAN e da URSS. Foi
construída uma base militar no local, controlando todo o tráfego marítimo entre os
dois oceanos. Era guarnecida por um submarino e dois barcos lança-mísseis.
Continha silos atômicos equipados com míssil Cruise de longo alcance. Um míssil
com carga convencional deveria ser empregado contra um navio de passageiros da
rota San Diego-Cingapura. Após dispensá-los, em reunião com outro agente, revela
seus planos de eliminá-los para manter a operação em segredo absoluto: “De que
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você tem pena, Michael? O maldito é um sádico. Incendiou toda uma aldeia perto
de Saigon, cheia desses amarelos”.
A cena seguinte ocorre num campo de golfe. Grandes magnatas do
complexo industrial-militar americano, em meio a seu jogo, comentam e defendem
a operação planejada pela CIA. Como maiores interessados e patronos da operação,
temem o fim dos contratos governamentais com suas empresas, o fim das
pesquisas com o sistema de defesa estratégico, ou Guerra nas Estrelas, bem como
outros programas como; mísseis intercontinentais, a ampliação da frota, os
bombardeiros B1 e F-117 Stealth. O preço da amizade entre os povos seria de 460
bilhões de dólares e o trabalho de 1/5 dos americanos. Tendo em mãos a manchete
dos jornais para os próximos dias, preveem que o ataque ao cruzeiro de Cingapura
colocaria a opinião pública mundial contra os soviéticos e contra os encontros
diplomáticos pelo desarmamento.
O expectador é apresentado ao major Shatokhin (Mikhail Nozhkin) e ao
seu pelotão da infantaria naval, “marines” soviéticos apelidados de cassacos negros
devido aos seus uniformes. Após meses em alto-mar, numa viagem solitária, sua
fragata toma parte nos exercícios militares antes de regressar à União Soviética.
Seu regresso é adiado quando são chamados pelo Alto Comando para resgatarem
um casal de americanos naufragados no arquipélago. Seu barco foi destruído pelo
míssil lançado pelos homens de Hessalt numa tentativa frustrada de atingir o
cruzeiro. Os almirantes soviéticos sabem que a explicação para o disparo do míssil
está nessa ilha, que ela é de importância geoestratégica para a URSS por controlar
as rotas marítimas essenciais para o país5 e para lá enviam os fuzileiros de
Shatokhin.
Após tentar eliminar os náufragos americanos, Hessalt desenvolve um
plano contra Crowder. Ele sabe o verdadeiro significado de sua última missão para
a CIA e confidencia a Griffith que serão eliminados assim que a operação for
realizada. Tomam de assalto a base, metralhando os soldados pertencentes à força
aérea americana. Instalam uma carga atômica num míssil cruise e decidem
5 Em uma época em que a passagem nordeste do Ártico ainda era impraticável pelo gelo, a URSS dependia da navegação de circunavegação da África e da Ásia para ligar seus portos europeus aos do extremo oriente asiático.
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bombardear a esquadra soviética, iniciando uma guerra no Pacífico. A CIA e as
forças armadas decidem varrer o pequeno arquipélago do mapa com um
bombardeio feito por um B2, que levará horas para chegar. Shatokhin derrota os
homens de Hessalt nos arredores da base para em seguida adentrá-la. Impedem o
lançamento, e com a ajuda de sua fragata, derrotam o submarino e os dois barcos
lança mísseis.
Após uma década de arrefecimento nas relações entre as superpotências,
marcada pelos encontros entre seus líderes e a assinatura de acordos
desarmamentistas, de limite territoriais, de direitos humanos ou que punham
limites à corrida militar estratégica, entre 1969 e 1979 (como os acordos SALT I, II
e o Tratado de Helsinque), os revesses dos Estados Unidos na política externa –
sempre explicados pelos setores conservadores americanos como obra de Moscou
– a eleição de Reagan e a expansão do campo formado por países socialistas no
Terceiro Mundo levaram ao fim do período da Détente e ao início da Segunda
Guerra Fria (HALLYDAY, 1993). A tensão chegou ao limite entre os anos de 1982 e
1983. Em 1982 EUA e URSS, utilizando respectivamente a OTAN e o Pacto de
Varsóvia, empreenderam grandes exercícios militares junto à Cortina de Ferro sem
prévio aviso, gerando a apreensão em cada um dos lados de uma invasão iminente.
Em 1983, o voo 007 da Korean Airlines invadiu o espaço aéreo soviético e
sobrevoou importantes bases militares secretas na península da Kamchatka.
Abordado por caças soviéticos, a tripulação não respondeu à exigência de mudar
sua rota. O avião foi derrubado, causando a morte de 269 pessoas. Ronald Reagan
logo em seguida ao incidente acusou a URSS de ser o império do mal, em seu
célebre discurso. Os soviéticos alegaram imaginar que se tratasse de um avião
espião e não de um Boeing 747. Em seguida, afirmaram que o voo de nome
sugestivo tratava-se de uma missão secreta promovida pelos EUA e pela ditadura
sul-coreana que empregava os passageiros como escudo humano. A crise dos
euromísseis levou centenas de milhares de cidadãos dos Estados Unidos e da
Europa Ocidental às ruas, insatisfeitos por verem a OTAN implantar silos nucleares
nos países europeus membros ou por verem os impostos cobrados por Reagan
terem esse destino. Ainda no mesmo ano, a garotinha americana Samantha Smith,
que virara um ícone dos movimentos pacifistas após escrever uma carta para o
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secretário-geral do PCUS Yuri Andropov, morreu em um acidente aéreo em solo
americano. Esses acontecimentos formam o argumento do filme.
Para Rosenstone, o cineasta que produz filmes do gênero de época, filmes
históricos, faz o mesmo trabalho que o historiador. Com o diferencial de possuir
uma narrativa mais rica e interessante que a escrita, a qual o historiador está
preso.
Todos [historiadores e cineastas] parecem obcecados e oprimidos pelo passado. Todos continuam voltando a tratar do assunto fazendo filmes históricos, não como uma fonte simples de escapismo ou entretenimento, mas como uma maneira de entender como as questões e os problemas levantados continuam vivos para nós no presente (ROSENSTONE, 2010, p.173-174).
Desse modo, para ele, o historiador seria:
Alguém que dedica uma parte significativa da sua carreira a criar significado a partir do passado, independentemente da mídia/linguagem. Ao fazer isso, os diretores tornam o passado significativo, no mínimo, de três maneiras diferentes – criam obras que visualizam, contestam e revisam a história (ROSENSTONE, 2010, p.173-174).
A necessária continuidade dessa linha de pensamento levaria a conclusão
de que diretores que produzem filmes que abordam cenários políticos
contemporâneos fazem o mesmo trabalho que cientistas políticos. Ambas as
afirmações parecem injustificadas.
Napolitano toma o conceito de monumentalização criado por Eduardo
Morettin para analisar dois filmes de ambientação histórica. Um monumentaliza,
enaltece fatos e personagens, o outro os desconstrói. Para esse processo de
desconstrução por meio da narrativa fílmica Napolitano cunhou o termo
desmonumentalização. Todo monumento é uma busca de sentido no passado – de
eventos e personagens. Podemos afirmar o mesmo para o presente. Ao ser
descontruído, permite perceber camadas de historicidades, o discurso de poder, e
o cinema é um dos campos mais propícios a essa tarefa:
Como parte das estratégias de representação que dão sentido político aos filmes históricos, a questão de monumentalização de eventos e personagens (ou sua desconstrução enquanto
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“monumentos”) tem um papel central na escrita fílmica da história. A monumentalização, por sua vez, encontra no cinema – linguagem espetacular por excelência – um grande potencial de realização (NAPOLITANO, 2011, p.65).
A monumentalização pode ser igualmente a exaltação de características
tidas como nacionais ou ligadas ao regime por meio de um personagem real ou
fictício. As estratégias de monumentalização e os limites a esse mesmo processo
dependem,tanto do nível técnico6 da indústria cinematográfica quanto da memória
social que se quer trabalhar, sobre o qual atua o “específico fílmico” que com sua
linguagem própria tenta moldar ou trabalhar a memória histórica(MORETTIN,
2011). Além da memória social, pode ser elencada a percepção que essa sociedade
faz de algo além de seu passado – como outras sociedades e regimes de sua mesma
época. Um passo necessário é a reconstrução e silenciamento do passado (ou do
presente, no caso de Odinochnoye Plavaniye) dissonante da narrativa. O
monumento histórico é embelezado e não é real. Mais ainda: é construído sobre
tensões e contradições.
A desmonumentalização é a inversão da narrativa tradicional louvatória. É
criar um enredo ácido que nega as características heroicas ou monumentais de
personagens e processos. As antigas certezas tornam-se fluídas e vagas. A
dicotomia construída entre bem e mal, com o monumento sempre representando o
bem, é rompida, dissolvida ou tornada o contrário do costumeiro. É uma tentativa
de desmontar mitos e discursos estabelecidos, ou de se arranhar a imagem de
quem se pretende criticar. Invés da visão heroicizada, sobre-humana de
personagens, mostra corrupção, vileza, interesse onde antes existia apenas o
idealismo. Ou as fraquezas humanas naturais onde antes estas não apareciam,
mostrando homens no lugar de semi-deuses:
Procuramos destacar uma operação central em filmes históricos que é o da monumentalização ou da demolição de monumentos
6 Os filmes soviéticos costumam ser bem apurados quanto ao armamento empregado, como os tanques tiger que foram retirados de museus para as filmagens de Osvobozhdenye. Este não foi o caso de OdinochnoyePlavaniye. A única arma de fabricação americana em cena é a carabina M1, alimentada com balas de pistola. A outra arma ocidental é o fuzil G3, de fabricação alemã ocidental. As outras armas são armas soviéticas ou do Leste Europeu, como a tchecoslovaca ZB26 (imitando uma BAR?). Até o histórico rifle de assalto STG-44, da Alemanha nazista, aparece disfarçado, para se assemelhar ao M16 americano.
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(desmonumentalização). Nesse processo, ocorre um diálogo específico entre obras cinematográficas, tradições historiográficas e memoria social. Não e trata, portanto, de decidir se a história é ciência ou ficção literária (ou cinematográfica). Não se trata de avaliar o filme pelo seu grau de fidelidade aos eventos representados. Não se trata de proferir juízos de valores, opondo filmes “manipuladores”, a filmes “críticos”, diretores alienados e diretores críticos, mas também na tensão entre expectativa geral e produto final. Analisar a relação entre cinema e história é tentar entender o sentido que esses monumentos e ruínas adquirem nas telas, como parte da batalha pela representação do passado. Trata-se de refletir acerca da capacidade de refletir acerca da capacidade de reflexão histórica proposta pelo cinema, a partir de sua linguagem própria, sem cobrar dos filmes uma encenação fidedigna dos eventos ocorridos. É como material fragmentado, parcial e muitas vezes anacrônico em relação aos eventos representados, que o filme pode se revelar como documento histórico da época e da sociedade que o produziu (NAPOLITANO, 2011, p.83-84).
Jack Hessalt é a desconstrução do próprio John Rambo. Frank Crowder
ocupa o papel do coronel Sam Trautman. O agente do governo americano não vai
até ele. Ele é que é chamado e se apresenta. Não é um soldado valoroso, defensor
de jovens vietnamitas, mas um sanguinário cheio de sequelas, usado para o serviço
sujo e descartado logo em seguida. Rambo troca sua libertação da prisão com
trabalhos forçados pela missão de reconhecimento e resgate na Indochina. Hessalt
o faz pela promessa de retorno à sua pátria. Não é a imagem da correção, pelo
contrário, pode-se insinuar que os “unguentos tibetanos” que utiliza são drogas
injetáveis (mais um sinal da decadência ocidental, segundo a retórica soviética).
Ele não é um exército de um homem só. Apenas dá ordens aos seus subordinados.
Ele não possui um coração bondoso que o faz desrespeitar ordens diretas para não
se engajar na luta pelo bem de outrem. Pelo contrário, fuzila à traição, de surpresa
e pelas costas, os soldados ainda leais à CIA e à força aérea. Ele não se afasta de
tudo para obter paz interna, mas adora a guerra. Ele não salva os americanos
perdidos em alto-mar. Estes são abandonados à própria sorte. Essa tarefa cabe aos
soviéticos. Ele não protege, ele mata americanos perdidos num naufrágio na calada
da noite. Não há fidelidade entre os oficiais, mas sim desconfiança e perfídia.
Não é apenas o ideal individualista americano presente na figura de John
Rambo que é desfeito pela narrativa fílmica. O olhar soviético incide também sobre
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outras auto-representações de sua sociedade. O casal Harrison considera as ilhas
inabitadas, “terra de ninguém”, como sua propriedade privada (a ponto de serem
reprovados pela marine soviético como sendo “capitalistas”). Pertencentes à classe
média, esperam encontrar não só a fortuna como também sem a necessidade de
trabalho árduo, por meio da descoberta de um navio que naufragou na
região7.típicos capitalistas predatórios. O serviço secreto e as forças armadas
trabalham para as corporações do complexo industrial-militar e não para a
segurança da pátria. O próprio sistema democrático liberal norte-americano é
desmontado pela acusação de não ser de fato uma democracia. É o que expressa a
metonímia de uns dos empresários que jogam golfe enquanto discutem como
forçar a retirada dos Estados Unidos da mesa de negociação desarmamentista:
“Afinal, a democracia não é apenas o direito de votar a favor ou contra, mas
também o de abster-se”. O regime guia-se não pela vontade das massas expressa
por seus representantes, mas por seus interesses. Além da narrativa, outros
elementos da linguagem fílmica contribuíram para a desconstrução do inimigo
ideológico. A trilha sonora nas cenas em que os americanos aparecem é preenchida
por um rock agudo, frenético e cacofônico, quase uma caricatura do gênero. A
trilha sonora executada nas cenas com os soviéticos é composta por melodiosos
acordeões, evocando as raízes russas. O contraste é acentuado por uma fala do
major Shatokhin, de que nos Estados Unidos não existem rouxinóis, que não estão
acostumados ao seu canto. As representações soviéticas acerca da vida nos Estados
Unidos não podem ser generalizadas (ENGLISH, 2000). Como tudo na URSS, eram
marcadas por um dualismo gritante. Havia a ideologia oficial propagada pelo
regime nas campanhas oficiais e uma autonomia da sociedade soviética, que
poderia reproduzir assimilar, confrontar ou negar ao todo essa mesma
representação, substituindo-a por outras. Diferentes camadas e grupos possuíam
visões igualmente diferentes, passando da percepção negativa dos EUA, como
imperialista, belicista, etc., até o de sociedade desejável.
7 O argumento pode ser fruto da descoberta feita pela família Fisher do galeão espanhol Nuestra Señora de Atocha, em Key West, Flórida, carregado com 40 toneladas de outro e prata, no mesmo ano de 1985 e que se converteu num fenômeno na mídia americana e em fonte de motivação para caçadores de tesouro.
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Fig. 1. À direita, o Major Shatokhin com seu RPG-2. À esquerda, boina verde
americano ferido pelos marines soviéticos.
Do outro lado, presenciamos a monumentalização dos princípios e ideais
presentes na sociedade soviética e em sua ideologia oficial. O major Shatokhin é a
imagem do herói positivo defendido pelo realismo socialista. Essa corrente do
cinema soviético, imposta aos cineastas e estúdios por Stalin, Zhdanov, os
ministérios e as agências cinematográficas nos anos 1930, já estava em refluxo
fazia décadas. Após a morte de Yosip Stalin e a desestalinização promovida por seu
sucessor, Nikita Kruschev, uma sucessão de ondas rejuvenescedoras atingiram a
produção fílmica soviética. Entre outras, sentiu-se uma forte influência do realismo
italiano e do cinema francês nos anos 1950 e 19608. As diretrizes do regime foram
negadas, os diretores puderam ter maior liberdade (LABARRÉRE, 2009), testando
os limites da nova autonomia obtida e da leniência das autoridades. Os 20 anos da
imposição do realismo socialista deixaram marcas profundas. Foi um gênero que
8 O experimentalismo, tão marcante até o fim dos anos 1920, voltou com a criação de um estúdio dirigido por Chukhrai dentro dos da Mosfilm. Uma nova geração de cineastas desmantelava o realismo socialista peça por peça. Houve espaço até para uma Segunda Onda (1974-78) ou Nova Onda (1986-91) (LABARRÉRE, 2009, p.311; 341).
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se arraigou nos estúdios e que subsistiu, em meio às novas correntes presentes no
cinema, com o apoio governamental, dos setores que se sentiam confortáveis com
sua mensagem e dos cineastas que esperavam fazer carreira dentro da máquina
estatal atendendo a essas demandas. Como mostra o trabalho do cineasta Alexei
German (LAWTON, 1992, p.273), mesmo aqueles que se utilizavam da
desmonumentalização para criticar o próprio regime, encontravam emprego nos
estúdios e, aos solavancos, conseguiam levar a maior parte de sua obra aos
cinemas9. O limite do aceitável parece ter sido a politização da fala dos cineastas,
como Andrei Tarkovsky que, após criticar publicamente o governo, acabou sendo
exilado quando se encontrava em viagem pela Europa Ocidental, perdeu a
cidadania soviética e foi impedido de retornar.
Kenez (2008, p.57; 5) aponta como características do realismo socialista a
presença da coletividade ou de forças correlatas a ela, com “trabalhadores heroicos
cujo maior objetivo de vida é a construção do socialismo”. As diferentes
apresentações da arte (uma vez que o realismo socialista atingiu a literatura,
arquitetura, escultura, pintura e cinema) deveriam ser claras, abertamente
didáticas, otimistas, relativamente simples, com uma história linear – o avesso da
arte dos anos 1920, com suas dificuldades de atingir e prender a atenção das
massas, bem como de transmitir alguma mensagem que fosse considerada valiosa
ou interessante pelo regime (LAWTON, 1992). O herói como homem do povo
9 “Na realidade, o filme não se afastava dos grandes temas (Guerra Civil, Segunda Guerra Mundial), porém eram tratados de maneira mais íntima, sem ênfase excessivo e evitando, na medida do possível, os clichês impostos habitualmente: o indivíduo antes que a massa, os sentimentos pessoais antes que as regras coletivas, o amor antes do heroísmo”, revitalizando o cinema autoral, que existia mesmo sob Stalin. No cinema bélico foi marcante a obra de TarkovskyIvanovodetsvo, de 1962, que “rompeu com a tem|tica e, sobretudo, com a estética prevalecente até então de forma radical: rechaço da narrativa tradicional, retorno { interioridade, lirismo e espiritualidade”, no desinteresse pelos temas sociais, instaurando uma nova fotografia, uma nova forma de filmar em que havia espaço para a crítica (LABARRÉRE, 2009, p.431; 343) – inclusive a da atuação do país na Segunda Guerra, como as acusações de privilégios em Quando voam as cegonhas. O realismo socialista, com seus temas tabus e sua pressão por seguir um manual para o cinema foi tachado de malokartinnyi, tempo das limitações. A Nova Onda era “a escola poética do cinema que se assemelha a escola de Pudovkin, Eisenstein, Vertov e Dovzhenko, que foram, de uma forma ou de outra, poetas. A nova escola foi chamada de escola “arcaica” porque lidava principalmente com eventos e épocas passadas, folclore abrangente, contos de fadas, religião e poesia” (LAWTON, 1992, p.173; 174). As montagens, ao estilo de Vertov, retornaram com Fascismo Ordinário, de Romm (BEUMERS, 2009, p.129). Apesar da força da Nova Onda, o realismo socialista, com heróis positivos e temas ideológicos, subsistia.
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também gerava empatia entre a plateia composta de operários e camponeses com
o personagem e sua mensagem edificante e pró-regime.
Essa empatia tem início com a apresentação dos soldados do pelotão. São
homens simples do campo e da cidade, com um histórico familiar de luta pela
Rússia desde os tempos de Napoleão ou que conheceram as forças armadas como
fonte regeneradora. Shatokhin possuí um único desejo: retornar para sua aldeia
natal na região de Vladimirov após sete anos de ausência, para apreciar a
primavera da região, caçar e ajudar seu pai já idoso com a carpintaria na pequena
casa. Mas se diferencia de seus homens por sua função e capacidades de
organização, decisão, experiência. Sabe a importância do trabalho coletivo e se
mostra um líder nato. Treina seus homens para os momentos de necessidade.
Consegue passar comandos e tirá-los das situações mais complicadas, como se
desvencilhar após serem rendidos pelos mercenários da CIA. O major Shatokhin é
um exemplo não só para seus homens, como também para o casal de náufragos
americanos, ganhando sua confiança e adesão. Tumanishvili pretendeu criar heróis
de carne e osso. Após Shatokhin disparar seu lança-rojão, ao estilo de Rambo, e
afundar um dos barcos americanos, não o faz lançando uma frase de efeito. Ele e
seus soldados precisam se ajudar mutuamente para conseguir que suas mãos
trêmulas pudessem acender seus cigarros.
CONCLUSÃO
Após os anos de criticismo social no cinema da URSS, demonstrado acima de
tudo pela comédia (FRANCISCON, 2013), um filme nacionalista como Odinochnoye
Plavaniye representava a força dos setores conservadores na sociedade soviética.
As visões negativas do país são deixadas de lado por uma que endossa sua
contribuição para a paz mundial e a importância de suas forças armadas. Não foi a
primeira obra do gênero que se opunha ao cinema autoral e crítico feito pelo
diretor Tumanishvili. Em 1984 produziu Sluchay v kvadrate 36-80, em que os
soviéticos impedem a explosão de um submarino americano com problemas em
seu motor nuclear. Uma quase inversão dos fatos. O apoio de Tumanishvili aos
setores conservadores parece ser condicional. Ou sua filiação muda conforme o
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ambiente. Em 1993, com o governo Yeltsin e a restauração capitalista, a moda era a
visão do passado do país como totalitarista, segundo as concepções dos autores
mais profundamente antissoviéticos do Ocidente. Nesse ano dirigiu Zaveshchaniye
Stalina, em que retrata o significado de Stalin para o país apenas sob viés negativo.
A filiação pró-ideologia oficial de Odinochnoye Plavaniye não é completa,
entretanto, como demonstra o momento da troça entre o major Shatokhin e um
marine soviético sobre a terminologia do materialismo histórico. Ao lembrar que
não h| rouxinóis nos Estados Unidos, conclui afirmando que é um “fato histórico”.
A resposta do marine é que não atingiram as condições materiais necessárias.O
nacionalismo presente no filme mais se assemelha ao pan-russo do que em outros
filmes patrióticos, especialmente sobre a Segunda Guerra Mundial. Nestes é
frequente a aparição de soldados das várias nacionalidades da URSS, como
caucasianos, túrquicos e mongólicos. Em Odinochnoye Plavaniye a diversidade
étnica aparece com um dos marines do pelotão, Parshin (Nartai Begalin),
aparentemente da Ásia Central. O padrão nacionalista também pode ser arrolado
como pan-russo tradicionalista, pela referência a Deus. “Que Deus te ouça”, como
fiz o major Shatokhin. Expressões comuns mencionando Deus, gestos religiosos e
mesmo críticas ao ateísmo do partido comunista da União Soviética (PCUS)
deixaram de ser exceção nos anos 1970 com a disseminação dessa vertente
tradicionalista do nacionalismo eslavo, que via no cristianismo ortodoxo uma de
suas características mais importantes (LAWTON, 1992, p.229). É também
expressão do renascimento religioso acontecido no país sob o secretário-geral do
PCUS Leonid Brejnev, após o período de ateísmo militante de Nikita Kruschev10.
Como monumentalização, Odinochnoye Plavaniye oculta fatos e distorce a
realidade, para dar ao seu discurso o aspecto da realidade palpável. Busca impedir
a identificação de o aparelho militar soviético com a mesma lógica e o mesmo
complexo industrial-militar criticado aos americanos. Os volumosos gastos com as
forças armadas, na ordem de 18% do PNB nos anos 1970-80 (SEGRILLO, 2000,
p.124) são mostrados para o público interno e externo como uma imposição, vital
10 Entre 1959 e 1964 ¾ das igrejas cristãs foram fechadas no país, bem como quase todas as mesquitas e sinagogas (BROWN, 2010, p.259). Esse período de tendência antirreligiosa, que se sucedeu ao de relativa tolerância religiosa da época de Stalin após a concordata com a Igreja Ortodoxa, preparou o caminho para a impulsão na direção oposta na década seguinte.
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para a sobrevivência do país diante do assédio americano, e com ótimos
resultados, como a moderna e poderosa marinha soviética construída sob Brejnev,
rompendo o isolamento que a preponderância dos Estados Unidos nos mares havia
imposto à URSS até meados do século XX.
Para Ferro, “as grandes obras fílmicas da contra-história [...] provém
naturalmente das sociedades onde o regime político não deixa à história sua
liberdade e onde, para se exprimir, ela toma uma forma cinematogr|fica” (FERRO,
1976, p.204). O cinema das minorias é um complemento à história escrita, uma vez
que possibilita uma outra versão histórica que não cabe ou é rejeitada e ocultada
pela história oficial. Outra possibilidade de contra-história é aquela feita por
classes sociais e grupos antagônicos, ou regimes rivais, como é o caso do filme
analisado.
Como Capelato (1998) demonstra no caso do varguismo e do peronismo,
dever-se-ia procurar averiguar mais a representação que um regime pretende
encorajar ou fazer de si mesmo do que rotulá-lo como totalitário. O que é
importante para o quadro do cinema soviético. Por fim, o regime, tido por
monolítico no exterior, mostrou-se plural, com várias facções, como pacifistas,
belicistas, ocidentalistas, eslavófilos, marxistas-leninistas, socialdemocratas,
liberais, etc.(BROWN, 2010, p.415), condenando filmes como Odinochnoye
Plavaniye (e correntes políticas soviéticas com posições similares) ao ostracismo
quando as negociações desarmamentistas deslancharam após a reunião de cúpula
de Reykjavík, de 1986.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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BEUMERS, Birgit. A History of Russian Cinema. Nova York: Berg, 2009.
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REAÇÃO EM CADEIA: O DESCOBRIMENTO DA FISSÃO NUCLEAR E A CRIAÇÃO
DE ARMAMENTOS ATÔMICOS1
Suâmi Abdalla-Santos2
Resumo: O presente trabalho aborda o contexto científico e tecnológico em
meados do século XX, com foco nas pesquisas que resultaram na criação das
primeiras bombas atômicas. A pesquisa histórica utilizada mantém um diálogo
com elementos da engenharia, da física e dos estudos estratégicos de defesa.
Percebe-se que a pesquisa sobre a fissão nuclear foi um dos primeiros grandes
projetos da nova maneira de se fazer ciência, a Big Science, que viria a influenciar
outros projetos em um futuro próximo.
Palavras-chave: Segunda Guerra Mundial; Bomba Atômica; Ciência
Abstract: This paper discusses the scientific and technological context in the mid-
twentieth century, focusing on the research that resulted in the creation of the first
atomic bombs. Historical research used in a dialogue with elements of engineering,
physical and strategic defense studies. It is perceived that research on nuclear
fission was one of the first major projects of the new way of doing science, Big
Science, which would influence other projects in the near future.
Keywords: World War; Atom Bomb; Science
Introdução
Desde o início da era humana, diversas ferramentas e aparelhos foram
criados para facilitar os trabalhos braçais, reduzir o desgaste físico e diminuir o
tempo empregado nas tarefas cotidianas. No entanto, a conquista de territórios e
bens de consumo tornou-se alvo de cobiça entre os homens, logo, o mesmo 1 Recebido em 04/10/2013. Aprovado em 16/11/2013.
2 Graduado em História pelo Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge). Mestre em História das
Ciências pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). E-mail: [email protected]
Suâmi Abdalla-Santos
491 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 490-498.
machado que havia sido desenvolvido para facilitar o corte de madeira, acabou
sendo empregado para cortar as cabeças dos inimigos.
A criação de máquinas e equipamentos mais eficazes tornou determinado
povo mais poderoso que outros. Mesmo sem perceber, alguns povos estudavam
conceitos de física e matemática que eram adaptados para suas máquinas mortais.
A cada cálculo bem-sucedido, uma cova coletiva era utilizada para acomodar a
crescente massa de cadáveres que se formava durante as batalhas, nos saques e
nas pilhagens de cidades e vilas conquistadas.
A utilização e a adaptação de veículos para fins militares não é novidade: a
cavalaria armada; os navios; os automóveis; e, recentemente, os aviões, são alguns
exemplos desse tipo de prática.
O controle do espaço aéreo, por exemplo, era de fundamental importância
para os líderes políticos, pois, eliminando diversas fronteiras e obstáculos, alvos
inatingíveis, como a ilha da Inglaterra, se tornariam terrenos normais de
bombardeios. Podemos ver total interesse das autoridades militares em explorar
essas novas descobertas científicas em uma carta do Ministério da Guerra da
França endereçada ao inventor Alberto Santos-Dumont:
Senhor, durante o desfile de 14 de julho, notei admirado a facilidade e a segurança com que o senhor dirigia seu balão. Seria impossível deixar de constatar o progresso que o senhor proporcionou à navegação aérea. Aparentemente, graças ao senhor, deve-se aplicá-la doravante a questões práticas, sobretudo de um ponto de vista militar. Estimo que dessa maneira a navegação aérea seja muito útil em tempos de guerra. (SANTOS-DUMONT, 1918, p.73)
A Primeira Guerra Mundial foi inconfundível com a primeira utilização das
máquinas voadoras e dos gases letais, além das trincheiras da morte, onde as
tropas ficavam semanas defendendo suas posições e bloqueando o avanço inimigo,
porém, com o custo de ficarem impedidos de levantar, avançar ou recuar.
Já na Segunda Guerra Mundial, a ciência que obteve maior destaque foi a
física. A descoberta da fissão do núcleo de urânio e uma consequente reação em
cadeia com liberação de grande quantidade de energia tornou possível a criação da
bomba com maior poder de destruição já criada pelo homem até então.
Reação em cadeia
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 490-498.
Durante a Guerra Fria o medo era o principal combustível para uma corrida
armamentista em um mundo bipolar. A superação tecnológica era motivo de
orgulho nacional e também servia como aviso aos inimigos. A "Corrida Espacial",
travada pelos Estados Unidos e União Soviética, mostrava ao mundo a crescente
capacidade de carga que seus foguetes poderiam carregar, além de insinuar que
não havia um ponto no globo terrestre que estivesse a salvo de um ataque com
armas atômicas.
Veremos agora uma breve análise do desenvolvimento da física durante a
Segunda Guerra Mundial com foco nas pesquisas com partículas atômicas que
culminaram na criação das primeiras bombas nucleares.
A descoberta do poder nuclear
O domínio da fissão atômica trouxe ao mundo não somente uma nova forma
de geração de energia, como também um poder destruidor de proporções tão
gigantescas que até os dias atuais, quase 70 anos depois, discute-se o direito de
alguns países em possuir esta tecnologia.
Mais impactante que as armas químicas utilizadas na Primeira Guerra
Mundial, as bombas nucleares ditariam um novo modelo de política de segurança
internacional nos anos que seguiram o de 1945.
[...]Uma história técnica das Armas de Destruição em Massa é muito importante, esta importância é potencializada pelo seu envolvimento político e efeito estratégico na política mundial. (DAVIS ; GRAY, 2002 p.255)
Conhecidamente, as primeiras bombas atômicas foram construídas pelos
Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, contudo, a descoberta da fissão
do núcleo de urânio foi anunciada na Europa, primeiramente na Alemanha - por
Otto Hahn e Fritz Strassmann, em 1939 - e, posteriormente, na Inglaterra - por
Otto Frisch e Rudolf Peierls, em 1940.
No caso, Hahn e Strassmann haviam publicado o resultado da experiência
que haviam feito, onde, depois de ser bombardeado com um nêutron, o núcleo de
urânio parecia ter se dividido em dois, tornando-se bário. Já a publicação de Frisch
Suâmi Abdalla-Santos
493 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 490-498.
e Peierls deixava claro, já no seu título, a possibilidade de produção de uma
"superbomba" (SANCHEZ RON, 2000, p.149).
A publicação de Frisch e Peierls foi recebida com tanta seriedade que foi
criado um comitê para pesquisa e desenvolvimento da reação em cadeia
decorrente da fissão atômica (JOHNSON, 1994, p.341). O "Comitê Maud"
desenvolveu suas atividades por pouco mais de um ano, até que, em 1941,
publicou o seu relatório final, em que estava descrito a real possibilidade de se
criar uma reação em cadeia através da fissão do núcleo do urânio 235 (U-235) e
também métodos de como separar o U-235 (físsil) do urânio comum (U-238).
Nesta época, a Grã-Bretanha estava muitos meses a frente de qualquer
outra nação, e andava rápido. Os projetos para uma fábrica de separação nuclear
foram completados em dezembro de 1940 e, em março seguinte, a bomba atômica
tinha deixado de ser um assunto de especulação científica e estava se instalando
nas áreas da tecnologia industrial e da engenharia. Em julho de 1941, o relatório
do Comitê Maud, intitulado “O uso do urânio para a bomba”, argumentava que tal
arma, prevista pelo Comitê para estar pronta em 1943, seria muito mais barata, em
custo por libra, que os explosivos convencionais, sendo altamente econômica no
seu poder de destruição, mais concentrada e de profundo efeito na moral do
inimigo. (JOHNSON, 1994, p.341)
Foi somente após o relatório final do Comitê Maud que os Estados Unidos
inclinaram seus interesses para a fissão nuclear e começaram a trabalhar o tema
em parceria com a Inglaterra.
Os cientistas soviéticos já haviam manifestado interesse na fissão nuclear
desde as primeiras publicações na Europa. Alguns físicos como Igor Kurchatov
acompanhavam as informações britânicas com seriedade, mas a invasão da União
Soviética pelo exército alemão, em 1941, fez com que as principais instalações
científicas soviéticas fossem desfeitas e realocadas para regiões do interior.
(SANCHEZ RON, 2000, p.167) Além disso, as atenções de Stalin, neste momento, se
voltaram para as batalhas de resistência, mantendo os cientistas trabalhando em
apenas questões com resultados mais imediatos.
Reação em cadeia
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 490-498.
O físico de Leningrado, Igor Kurchatov, havia pedido recursos para
construir um reator no fim da década de 30, em resposta à profusão de dados
ocidentais publicados. Quando um de seus alunos notou que este fluxo tinha
cessado, Kurchatov alertou seus superiores políticos (maio de 1942) e,
eventualmente, conseguiu a criação do Instituto de Urânio, localizado em Moscou.
O programa soviético começou poucos meses depois do Projeto Manhattan, mas
com uma baixa prioridade de recursos, o que refletia a dúvida sobre a factibilidade
da bomba. Segundo Nikita Khruchtchev, só no dia seguinte ao da explosão de
Hiroshima foi que Stalin encarregou o chefe de sua polícia secreta, Beria, de um
projeto de execução imediata, com absoluta prioridade sobre todos os outros no
país. (JOHNSON, 1994, p.342)
Os Estados Unidos decidiram investir pesado no projeto nuclear após o
ataque japonês em Pearl Harbor e a consequente declaração oficial de guerra.
Foram feitos sólidos investimentos para a construção da estrutura do
Projeto Manhattan, ao passo que, em pouco tempo os Estados Unidos já haviam
ultrapassado a Inglaterra nas pesquisas para a construção da bomba. No comando
do projeto estava o oficial militar Leslie Groves.
Em julho de 1945, o laboratório de Los Álamos, que era chefiado por Robert
Oppenheimer, havia produzido uma bomba de plutônio (Pu-239), que era um
elemento alternativo ao U-235, igualmente físsil. A bomba "Trinity" serviu como
teste, uma vez que os cientistas não estavam completamente certos da eficácia do
Pu-239 para a geração de uma reação em cadeia.
Segundo Sanchez Ron (2000, p.157), em 16 de julho de 1945 a bomba
Trinity foi detonada em um deserto no estado americano Novo México. O artefato
funcionou perfeitamente e gerou uma explosão equivalente a 20.000 toneladas de
dinamite (20 kilotons). O poder destrutivo da energia atômica havia sido
confirmado.
A dúvida sobre a funcionalidade de uma bomba de plutônio já não existia
mais, a bomba de urânio era considerada uma realidade, restava agora aplicá-las
na guerra.
Suâmi Abdalla-Santos
495 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 490-498.
As reuniões que aconteceram entre abril e maio de 1945 selecionaram
Hiroshima e Nagasaki como alvos principais dentre outras opções como Kioto,
Yokohama, Kokura e Niigata.
Estas reuniões eram compostas por representantes do governo dos Estados
Unidos, entre eles o Secretário de Estado Henry Stimson. Também estavam
presentes autoridades militares como Leslie Groves e importantes cientistas como
Robert Oppenheimer.
A decisão de utilizar a bomba era considerada inevitável. As projeções
militares estimavam que uma invasão convencional ao Japão iria prolongar a
guerra por mais dois anos e as baixas seriam elevadas, para ambos os lados.
O objetivo principal do lançamento das bombas era o de causar o maior
impacto possível na moral japonesa, forçando uma rendição imediata. Para isso, foi
acertado que o alvo deveria ser um ponto militar ou uma fábrica de armas, mas
que estivesse cercada de casas ou outras edificações, para que o tamanho da
devastação pudesse ser visualizada pelos japoneses. Isso também era muito
conveniente para observação dos resultados obtidos com as novas armas.
Dentro destas características, estavam Kioto, Hiroshima e Nagasaki, mas
Kioto logo foi excluída dos planos por ter sido a antiga Capital Imperial e possuir
inúmeros tesouros e monumentos de valor sentimental aos japoneses. Temia-se
que a destruição de Kioto pudesse causar o efeito contrário ao esperado e motivar
os japoneses a lutar até o fim (SANCHEZ RON, 2000, p.160-161).
Reação em cadeia
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 490-498.
Um nêutron é lançado contra o núcleo de um
elemento físsil. (ex. U-235 ou Pu-239)
O núcleo é dividido em dois, gerando energia e liberando mais nêutrons (dois ou três), que irão colidir com outros
núcleos físseis, gerando uma reação em cadeia.
nêutron
nêutron nêutron
nêutron
núcleo físsil
núcleo dividido
núcleo dividido
Por se tratar de um projeto extremamente caro, com um orçamento inicial
de dois bilhões de dólares, também não se poderia perder a oportunidade de testar
os seus resultados. A bomba lançada sobre Hiroshima, chamada Little Boy, era feita
com urânio e a utilizada no bombardeio de Nagasaki, chamada Fat Man, era uma
bomba de plutônio.
Assim, em 6 de agosto de 1945, o famoso bombardeiro B-29, conhecido
como Enola Gay, decretava a ruína de Hiroshima ao despejar a bomba Little Boy,
que possuía potência equivalente a 13.000 toneladas de dinamite (13 kilotons).
Cerca de 145.000 pessoas morreram naquele dia, somando um total de 200.000
nos anos seguintes por consequência dos efeitos da radiação.
Figura 1 - Processo de fissão nuclear.
Fonte: Ilustração do autor
Suâmi Abdalla-Santos
497 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 490-498.
A vez de Nagasaki chegou três dias depois. A bomba Fat Man, que possuía a
mesma potência da anterior, varreu a cidade em uma onda de destruição que
resultou na morte de 70.000 pessoas.
Os ataques renderam o efeito esperado: no dia seguinte ao ataque de
Nagasaki, o imperador japonês anunciou publicamente o seu desejo por paz. Os
termos foram aceitos no dia 14 de agosto e no dia 16 as tropas japonesas estavam
oficialmente derrotadas.
A União Soviética só conseguiu retomar o seu projeto nuclear em 1944,
depois de reativar seus reatores que foram deslocados às pressas depois da
invasão alemã. O serviço secreto soviético teve um papel importante, onde
conseguiu extrair informações confidenciais inclusive do Projeto Manhattan, por
meio de espiões (SANCHEZ RON, 2000, p.169).
Depois das explosões nucleares ocorridas nas cidades japonesas, o governo
soviético deu prioridade máxima ao seu projeto nuclear. Em 29 de agosto de 1949,
a União Soviética realiza seu primeiro teste de armamento atômico. O sucesso do
projeto soviético foi detectado pelos Estados Unidos, que apelidaram a bomba de
"Joe 1".
Concluindo
O século XX protagonizou inúmeros avanços da ciência e da engenharia.
Utilizando o sentido stricto sensu da palavra "século", podemos perceber uma
imensa disparidade entre o seus anos iniciais e finais, no que diz respeito ao
contexto de produção científica.
Segundo o historiador Eric J. Hobsbawm, durante o período aqui citado,
houve uma imensa geração de "mão-de-obra científica" ao passo que
Em 1910, todos os físicos e químicos alemães e britânicos juntos chegavam talvez a 8 mil pessoas. Em fins da década de 1980, o número de cientistas e engenheiros de fato empenhados em pesquisa e desenvolvimento experimental no mundo era estimado em cerca de 5 milhões [...] (HOBSBAWM, 1995, p. 504)
Reação em cadeia
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 490-498.
Esse elevado aumento de formação de cientistas possibilitou que outros
países também pudessem investir em produção tecnológica.
O centro das atividades científicas migrou para os Estados Unidos, uma vez
que a Europa foi atormentada com duas guerras mundiais durante esse período,
afastando grandes pesquisadores dos seus países de origem.
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Historien (Petrolina). ano 4. n.9. Jul/Dez 2013: 499-509.
O PAPEL DA EDUCAÇÃO NO CONTEXTO DA CRISE ESTRUTURAL DO CAPITAL1
Débora dos Santos Silva2
Resumo: A partir da crise estrutural do capital este artigo busca analisar qual o
verdadeiro papel da educação dentro deste contexto, através das ações do Banco
Mundial e das iniciativas de grandes empresários para se modificar o status de
insegurança e pobreza em que se encontram os países em desenvolvimento, se
percebe quais as medidas que os países industrializados tomaram para manterem
sua hegemonia sobre os demais países e as políticas estabelecidas para que não
houvesse uma disseminação de ideologias socialistas que “alienassem” as massas a
respeito do sistema capitalista que rege a vida mundial. A partir da deturpação do
conceito de educação o Banco Mundial justificou seus atos, mas no fundo suas
ações levam apenas a permanência do trabalhador como mero instrumento de
obtenção de lucros por parte dos grandes empresários.
Palavras- chave: Educação. Capital. Desenvolvimento.
Abstract: From the structural crisis of capital this article seeks to analyze what the
true role of education in this context, through the actions of the World Bank and
the initiatives of big business to change the status of insecurity and poverty that
are developing countries , one realizes that the measures that industrialized
countries have to maintain their hegemony over other countries and the policies
established that there was no spread of socialist ideologies that "divest" the
masses about the capitalist system that governs the global life. From the
perversion of the concept of education the Bank justified their actions, but in the
1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 23/11/2013.
2 Graduanda do curso de História/Licenciatura da Universidade Estadual do Ceará – UECE. E-mail:
[email protected]. Orientadora: Profª Ms. Joeline Rodrigues de Sousa.
O papel da educação...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 499-509.
end their actions lead only residence of a worker as mere instruments of profit-
taking on the part of big business.
Keywords: Education. Capital, Development.
A partir da crise estrutural do capital este artigo busca analisar qual o
verdadeiro papel da educação dentro deste contexto, através das ações do Banco
Mundial e de outras iniciativas dos grandes empresários para se modificar o
status de insegurança e pobreza em que se encontram os países em
desenvolvimento, se percebe quais as medidas que os países industrializados
tomaram para manterem sua hegemonia sobre os demais países e as políticas
estabelecidas para que não houvesse uma disseminação de ideologias socialistas
que “alienassem” as massas a respeito do sistema capitalista que regem a vida
mundial.
Entende-se como capitalismo um modo de produção fundado na divisão da
sociedade em duas classes essenciais: a dos proprietários dos meios de produção
(terra, matérias-primas, máquinas e instrumentos de trabalho) - sejam eles
indivíduos ou sociedades - que compram a força de trabalho para fazer funcionar
as suas empresas; a dos proletários, que são obrigados a vender a sua força de
trabalho, porque eles não têm acesso direto aos meios de produção ou de
subsistência, nem o capital que lhes permite trabalhar por sua própria conta.
Os países desenvolvidos perceberam que para que a condição de
subdesenvolvimento e a facilidade com que esses países têm de se deixarem levar
por ideologias que se voltam contra o sistema capitalista vigente não ameaçassem
o seu objetivo maior que é a obtenção de lucros, passaram a ver a educação como
meio para se manterem a salvo de futuros obstáculos ao seu funcionamento.
Assim usando a educação como ferramenta de intervenção nos países em
desenvolvimento o Banco Mundial conseguiu ditar quais seriam as diretrizes
Débora dos Santos Silva
501
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 499-509.
educacionais que levariam o homem a se integrar ao sistema capitalista sem
perceber a condição de servidão e pobreza que ele permaneceria.
O conceito de educação para o banco mundial e alguns organismos internacionais seria o processo de “internalização” pelos indivíduos da legitimidade da posição que lhes foi atribuída na hierarquia social, juntamente com suas expectativas “adequadas” e as formas de conduta “certas”, mais ou menos explicitamente estipuladas nesse terreno (MÉSZÁROS, 2008, p.44).
Portanto percebem-se que o conceito de educação não foi levado a sério
pelas políticas adotadas pelo Banco Mundial, eles deturparam o sentido do termo
educação para que seus atos fossem aceitos e justificados como sendo algo que
levaria a educação a erradicar a pobreza e a insegurança dos países em
desenvolvimento, sendo que no fundo suas ações levam apenas a permanência do
trabalhador com mero instrumento para obtenção de lucros por parte dos
grandes empresários.
A crise estrutural do capital é concebida como a queda da taxa de lucro
decorrente dos seguintes elementos: 1º queda da taxa de lucros causada pelo
aumento do preço da força de trabalho que surge pós – 45 e pela intensificação
das lutas sociais nos anos 60 reduzindo o nível de produtividade do capital.
2º esgotamento do padrão de acumulação taylorista/fordista de produção
resultante da incapacidade de responder a retração do consumo que se
acentuava.
3º hipertrofia da esfera financeira gerada pela posição prioritária do
capital financeiro para especulação na nova fase do processo de
internacionalização.
4º maior concentração de capital pelas empresas monopolistas e
oligopolistas graças a fusões entre elas.
5º crise do estado capitalista e retração dos gastos públicos e sua
transferência para o capital privado.
O papel da educação...
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 499-509.
6º aumento das privatizações e flexibilização do processo produtivo, dos
mercados e da força de trabalho.
Em conjunto esses seis elementos manifestam o sentido destrutivo da
lógica do capital presente na intensificação da lei da tendência decrescente do
valor de uso das mercadorias, quanto da incompatibilidade do sistema de
metabolismo social do capital desmoronando o mecanismo de regulamentação
que vigorou durante o pós-guerra.
Para saírem dessa crise estrutural os países desenvolvidos resolveram
recompor a divisão internacional do sistema capitalista através do aumento da
competitividade e a concorrência inter-capital o que significa dizer o uso de novas
tecnologias de gerenciamento da força de trabalho, liberação comercial e novas
formas de domínio técno-científicos, deixando de fora desse processo de
reorganização os países que não se encontravam no centro da economia
capitalista, legando a eles a posição de subordinados e de aceitarem o aumento da
jornada de trabalho e destruição da força de trabalho humana.
O Banco Mundial voltou suas políticas para a educação dentro deste
contexto da crise estrutural do capital, onde Mecnamara o presidente do banco na
década de 60 mudou toda a forma de funcionamento desse organismo econômico
que passou de políticas de assistência financeira para auxiliar os países em
desenvolvimento a saírem da pobreza e da insegurança a políticas educacionais; a
educação passou a ser o meio com que o Banco Mundial garantiria a segurança
dos países em desenvolvimento3 auxiliando-os a erradicarem a pobreza.
A educação é o maior instrumento para o desenvolvimento econômico e social. Ela é central na estratégia do Banco Mundial para ajudar os países a reduzir a pobreza e promover níveis de vida para o crescimento sustentável e investimento no povo(LEHER, 1999, p.25).
3Sua hegemonia como potencia econômica e a ausência de movimentos ideológicos que pudessem gerar problemas a ideologia dominante do capitalismo.
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 499-509.
O Banco Mundial desenvolve essas políticas na área da educação porque
seus dirigentes acreditam que: “as pessoas pobres do mundo devem ser ajudadas,
senão elas ficam zangadas,... a pobreza pode gerar um clima desfavorável aos
negócios”. Verifica-se ai que a pobreza dificulta o capitalismo em sua gênese; que é
gerar lucros aos grandes empresários, e para que eles não tenham prejuízos
devem-se criar meios para que os obstáculos que os impedem de gerar mais lucros
sejam abolidos. Assim o Banco Mundial começa a gerir as diretrizes da educação
como novo capital4 dessa nova era em que vivemos, passa-se a ver a educação
como saída para a crise estrutural do capital.
A educação torna-se um instrumento de alienação das massas para que
continue submissa à ideologia do capital5 o trabalhador deve aceitar que sua
educação o prepara apenas para ocupar um lugar no mercado de trabalho em que
o que ele vai precisar é apenas saber a obedecer a uma ordem que o leva a repetir
um movimento não necessitando de um pensamento critico.
O sistema capitalista empurra para o homem a culpa do não
desenvolvimento do seu país e da situação de pobreza em que se encontra, devido
às más escolhas que ele fez, se tivesse feito escolhas corretas como ter estudado e
se qualificado para atender as necessidades do mercado de trabalho ele não estaria
em péssimas condições.
A partir dessa concepção a educação básica e o ensino superior vão ter
suas diretrizes modificadas, o ensino fundamental passa a ser minimalista, ou seja,
o que interessa para o sistema é que a criança aprenda a ler, escrever, e utilizar as
quatro operações da matemática (somar, subtrair, dividir e multiplicar) essa é a
base que ela vai precisar futuramente para se colocar no mercado de trabalho,
aliada ao ensino fundamental o ensino superior deve apenas complementar mais
uma etapa do processo de formação do operariado capacitando esse futuro
4 Nesta nova era do capitalismo, o principal capital é o intelectual e, por isso, a educação, na condição de capital tornou-se assunto de managers e não mais de educadores. 5 As massas devem aceitar sua condição de seres propensos a submissão de um sistema em que o lucro define seu status e o lócus a ser ocupado na sociedade.
O papel da educação...
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operário a assumir um cargo dentro de uma indústria, e é em decorrência disso
que os CFETs6 foram sendo transformados em IFCEs7 para que o jovem ao concluir
o ensino médio faça sua profissionalização8 para que seja o mais rápido possível
inserido no sistema capitalista.
Através de declarações e metas que reafirmam a educação como meio que
possibilita o desenvolvimento e a participação de países emergentes nas
sociedades e nas economias mundiais do séc. XXI o Banco Mundial camufla seu
verdadeiro objetivo que é superar a crise estrutural do capital mantendo essa
população pobre calma e controlada, por meio dessa atmosfera ilusória de
prosperidade e desenvolvimento gerada pela diminuição da pobreza, aumento da
produtividade, melhoria das condições de vida e proteção do meio ambiente.
A rigor essas ações priorizam a manutenção da ordem econômica atual
neoliberal, para obter êxito em sua empreitada o Banco Mundial adota a tática de
estimular a competência, a eficácia e a produtividade da força de trabalho
recomendando a parceria dos setores sociais, ONGs, estados e municípios com os
organismos internacionais para que se invista na educação básica nos países
periféricos, assim o mundo capitalista pode continuar seu caminho de acumulação
de capital sem maiores riscos de crise.
Por educação entende-se como uma relação de troca entre o educador e o
educando, levando a ambos a estar sempre num processo de formação conjunta,
que leva ao desenvolvimento do homem, este por sua vez se apresenta não como
mero receptáculo do conhecimento, mas como ser ativo e construtivo do processo
de ensino e aprendizagem.
Educar é mais que transmissão de conhecimento, é levar um individuo a
observar e dialogar com o mundo que o cerca, ou seja, é levar a consciência de
que a realidade pode ser mudada e que tal mudança se concretiza á partir de sua
6 Escola Técnica Federal. 7 Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia. 8 Aquela que o mercado de trabalho (sistema capitalista) necessita no momento.
Débora dos Santos Silva
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atuação crítica e lógica. É mostrar que a educação não pode ser dominada por seu
sentido sirito: atender a classes dominantes, mas que deve ser elevada a seu
sentido lato, ou seja, a da formação do homem, sua humanidade.
A educação deve ser usada com meio de formação de sujeitos subjetivos e
lógicos capazes de construir um pensamento critico a cerca da sua realidade
resultando num sujeito agente de uma mudança, mudança essa que deve se iniciar
na sua própria experiência de vida, ou seja, na possibilidade de transformação da
sua realidade. Ela deve ser vista como meio de mudança da lógica do capital, ela
pode romper com as amarras que o sistema capitalista prende a sociedade, a partir
da reformulação do quadro social ao qual as praticas educativas estão inscritos
para que haja uma mudança no sistema econômico global vigente é preciso
transformar a consciência da sociedade9.
A educação como instrumento que rompe com a lógica do capital10 deve
utilizar suas técnicas de instrução para mostrar como o sistema capitalista age e
funciona, esclarecendo as massas que a dominação ideológica do capital deve ser
abolida para que exista uma sociedade realmente justa, onde os lucros obtidos com
o crescimento do país sejam divido equitativamente entre as classes sociais que o
formam.
Para transpor a lógica do capital a educação deve modificar as praticas
educacionais da sociedade em sua totalidade, ou seja, ao invés de utilizar a
internalização para legitimar a hegemonia hierárquica social do capital, ela pode
internalizar nos indivíduos que é possível modificar a ordem social vigente com o
capitalismo, que pode haver uma alternativa a esse sistema e que a educação é um
meio de construção de um ser objetivo, lógico, critico e completo.
9A mudança que se busca na sociedade deve ser realizada levando-se em conta que o social é composto por três campos o cultural o político e o econômico, e uma mudança efetiva deve se realizar nessas três esferas. 10 A lógica do capital estabelece aos homens que devem se deixar explorar sua força de trabalho sem nenhuma resistência por parte do trabalhador que aprende desde cedo que ele é destinado a serem submissos e explorados.
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Além de revelar que o ambiente físico escolar, ou seja, a sala de aula não é
o único meio de obtenção do conhecimento, o conhecimento é composto pelo que
se aprende na escola e pelo que apreendemos em nossa realidade, em nossa
experiência de vida, portanto é nesse ambiente da realidade vivida que se tem uma
alternativa de romper com a lógica do capital, temos de reivindicar uma educação
plena para toda a vida, para que seja possível colocar em perspectiva a sua parte
formal, a fim de instituir, também ai uma reforma radical.
A educação se efetiva como fator primordial da reforma da sociedade,
porque ela pode mudar a ordem organizadora do capitalismo para outro sistema
que levaria a transformação nas condições de existência da humanidade assim com
de toda maneira de ser, ela levaria a uma mutação do estado político existente
resultando numa reestruturação ampla da sociedade.
O papel da educação é soberano, tanto para a elaboração de estratégias apropriadas e adequadas para mudar as condições objetivas de reprodução como para a automudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente(MÉSZÁROS, 2008, p.65.).
Através da universalização da educação e do trabalho como atividade
humana autorrealizadora é possível se desvencilhar da lógica do capital e
promover mudanças significativas nos aspectos político, econômico, cultural e
social de um país, a educação regida pelo propósito de ir além do capital pode
alcançar êxito.
A reformulação da ordem social é possível através da consciência da
existência entre os seres sociais da automediação, do autocontrole e da
autorrealização alcançada por meio da liberdade substantiva e da igualdade, o que
significa dizer que as regras que regem o comportamento social dos indivíduos
podem ser modificadas estabelecendo-se entre eles através da educação o
sentimento de igualdade e solidariedade existente entre os homens, resultando na
construção de uma consciência social que altera a forma como é vista a política e a
economia, instaurando um sistema econômico político que rege a sociedade
através da educação e do trabalho alcançando o desenvolvimento econômico e
Débora dos Santos Silva
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social do país sem impor entre os indivíduos um constante sentimento de
rivalidade e competitividade, sem explorar exaustivamente os trabalhadores que
são os responsáveis pela formação da riqueza de bens que serão partilhados pelo
corpo social que o compõe.
Ensinar vai além da certeza de que está ajudando a formar sujeitos críticos
conscientes, ensinar exige que o docente compreenda que a educação, o seu
trabalho, é uma forma de intervir no mundo, de mostrar aos alunos que é possível
mudar a realidade, a sua realidade; já que participam de uma coletividade e que
por meio da educação constituem-se em sujeitos conscientes de seu papel na
sociedade.
Pode-se mudar a ordem vigente do capital fazendo com que essas metas e
declarações criadas para aumentar o poder do sistema capitalista sobre as massas,
realmente atinjam o objetivo de elevar a educação a um nível de internalização dos
indivíduos levando-os a perceber o papel que cada um compõe dentro da estrutura
social a qual estão inscritos, compreendendo que podem através do conhecimento
mudar a ordem vigente que os massacra e retira todos os direitos a condições
básicas de sobrevivência e implantar um sistema que possa colocar todos os seres
sociais dentro de uma conjuntura em que as diferenças sociais não se estabelecem
nem muito menos se perpetuam.
As transformações propostas para a educação devem ser levadas a
concretude, ou seja, deve-se colocar em prática a formação continuada dos
professores, o direito que o profissional da educação tem de buscar melhorar cada
vez mais sua atuação através de programas de pós-graduação e especialização que
garantirão uma formação cada vez mais completa ao professor que poderá
desempenhar seu papel de educador.
Todas essas modificações proposta no âmbito educacional não se
realizarão se o profissional da educação não for subsidiado por meios que o
possibilite transformar o ensino e por sua vez levar aos educandos a possibilidade
de mudar a ordem social vigente.
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O educador consciente do seu papel como profissional da educação, que
possui o domínio do conhecimento a ser repassado de forma critica e consciente ao
educando e não de forma mecânica, ciente da crise estrutural do capitalismo, que
compreende a luta de sua classe por melhorias na educação transformadora que é
solidário com aqueles que se mobilizam para continuar as lutas contra essa ordem
vigente do capital possibilitará a educação a consolidará uma nova ordem
estrutural social livre da lógica do capital.
Portanto através das observações feitas para construção desse artigo
verifica-se que uma educação para além do capital é possível, basta que haja
políticas educacionais voltadas para o horizonte que não é o capitalismo e sim um
novo sistema que pode ser estabelecido a partir da consciência de que a educação
aliada ao trabalho, à reestruturação social, consciência de uma nova forma de ser
do individuo, a internalização de uma ideia de transmutação da ordem vigente e da
autorrealização do individuo possibilitam a educação realizar seu papel
transformador e construtor.
A educação para além do capital existe aliada a modificação da consciência
social dos indivíduos e do auxílio ao profissional da educação a desempenhar seu
papel de formador de um ser critico e lógico a cerda da sua própria realidade, o
professor é uma das chaves para a realização dessa educação além do capital ele é
o meio com que a educação chegará aos indivíduos sociais.
Referências
ANTUNES, Ricardo, Dimensões da crise estrutural do capital. In. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo. Boitempo editorial, 2005, p. 29-34.
JIMENES, Susana; SOARES, Rômulo; CARMO, Hansilene; PORFIRIO, Cristiane. Educação para todos: A política dos organismos internacionais. In. Contra o pragmatismo e a favor da filosofia da práxis: uma coletânea de estudos classistas. Fortaleza: EdUECE, 2007, p.135-153.
Débora dos Santos Silva
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LEHER, Roberto. Um novo senhor da educação? A política educacional do Banco Mundial para a periferia do capitalismo. Outubro – Revista do Instituto de Estudos Socialistas. Nº03. São Paulo, 1999, p.19-30.
MENDEL, Ernest. O Capitalismo, Enciclopédia Universal 1981. Disponível em:
<http://www.marxists.org/portugues/mandel/1981/mes/capitalismo.htm>
Acesso em: 03/05/2013.
MÉSZÁROS, István, 1930. A educação para além do capital. 2. Ed. São Paulo: Boitempo, 2008, p.23-77.
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RESENHAS
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SALLES, Catherine. Nos submundos da antiguidade. 3.ed. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987.1
Francisco Fabrício Pereira da Silva2
Catherine Salles, historiadora francesa, é doutora em Letras e professora de
Letras Clássicas, ensina “Civilização Romana” na Universidade de Paris X Nanterre.
Além de suas numerosas contribuições a diversas obras sobre o mundo clássico
romano, é autora de Nos submundos da Antiguidade (1983), traduzido para vários
idiomas; Tibério, o segundo César (1985), Spartacus e a revolta dos
gladiadores (1990), A mitologia grega e romana (2006).
Os povos do Mar Mediterrâneo são considerados os “fundadores” do mundo
ocidental. Uma enorme quantidade de livros, revistas, filmes faz questão de
reforçar essa ideia. Não discordo. No entanto, o mundo mediterrânico apresentado
por eles excluiu e continua excluindo aquilo de mais humano – humano no sentido
de natural, instintivo – naquele período. Em outras palavras, é uma escolha seletiva
do que deve ou não ser lembrado: grandes homens, guerras, a filosofia, a
racionalidade, o Direito. Os grandes feitos.
Contudo, há muito se sabe que a história – entendida aqui como o produto
das relações entre os homens em sociedade – não é feita somente pelos grandes.
Mulheres, escravos, pobres, anônimos, loucos, todos fazem parte da produção da
vida representada pela História – produção de um saber acerca do passado vivido
pelos homens em sociedade. Esse livro vem romper com essa ideia de um passado
ordenado pela razão, onde não há conflitos cotidianos, a não ser nas guerras: um
passado feito por homens e mulheres comuns, vivendo vidas ordinárias, no
1 Recebido em 07/10/2013. Aprovado em 10/12/2013.
2 Graduando em História na Universidade Estadual do Ceará (UECE), com interesse em História Urbana e Teoria da História. E-mail: [email protected]
Francisco Fabrício Pereira da Silva
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entanto, com uma animosidade especial por serem “vividas” de modo natural.
Homens e mulheres que ficaram de fora das decisões dos deuses. A História feita
pelos habitantes dos submundos.
Na obra, a autora recria um passado que não se tornara História. Um passado
que “faltara ao seu destino”, parafraseando com uma expressão mesopotâmica que
exprimia a vida daqueles que não seguiram as normas sociais da família como base
da sociedade (BOTTÉRO, 2011). Lançando luz sobre os becos, as vielas e os locais
de pior reputação no mundo antigo, ela narra histórias e estórias que acabam por
“costurar” a História dos grandes feitos. A partir da análise do texto pode-se inferir
que a sua vinculação teórica está próximo da História Social. Por vezes prendendo-
se a uma personagem e tomando-a como o fio da narrativa ou então um livro,
como, por exemplo, o Satyricon de Petrônio, essa narrativa sempre resulta em uma
análise complexa sobre a vida dos ignorados da História. Não obstante, seria
ousado vincular a autora à teoria da micro-história, mesmo com esse tipo de
construção da narrativa histórica.
O livro é dividido em duas partes. Na primeira parte é abordada a Grécia, na
segunda, Roma. Nota-se uma preocupação por parte da autora em dar uma
explicação acerca da estrutura da cidade em ambas as partes, como esse fator vai
influenciar no decorrer da narrativa. Essa característica não é única dos
historiadores da chamada Escola dos Annales, do qual essa autora faz parte ou que,
pelo menos, influencia o seu trabalho. A cidade – estrutura física – há muito passou
a ser considerada um fator importante na análise das sociedades. Na França, essa
importância que a cidade tem para História se dá devido o fato de Paris –
especialmente a Paris de Haussman do século XIX – ser o exemplo mais claro de
como a urbanização age na mente da população que lá reside, trabalha ou vagueia
(RAMINELLI, 1997). Voltando para o período antes de Cristo, percebe-se que a
cidade possui uma função semelhante. Os lugares de mais difícil acesso são aqueles
que comportam os excluídos, os marginais, aqueles que não fazem parte do seleto
grupo de cidadãos de uma cidade contraditoriamente racional e estamentada, onde
nem todos usufruíam de serviços básicos para a própria sobrevivência. Claro, há as
Resenha: Nos submundos da antiguidade
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diferenças geográficas entre Grécia e Roma, não obstante, os problemas
populacionais e de urbanização são bastante semelhantes.
Trazendo a problemática para a atualidade – aliás, uma realidade que parece
ser cíclica – a “cidade dos excluídos” – que muitos afirmam severamente e até
mesmo, cegamente, se tratar de um mal da modernidade –, revela uma realidade
que não é comum aos olhos daqueles que produzem o passado e daqueles que
consomem esse passado, mas ironicamente, grande parte dos frequentadores dos
submundos, como se pode inferir a partir da presente obra, são aqueles cujas
condições sociais não correspondem àquelas dos que compõem esses locais.
Imperadores, mulheres e filhas de Imperadores, membros da nobreza, etc., todos
aqueles que desprezam através das leis e normas sociais os que não são,
engrossam a clientela e até mesmo as integram, não por necessidade, mas por puro
fetiche. A questão sexual é outro ponto de análise que sua semelhança com o
presente salta os olhos.
A distância temporal entre o presente e a antiguidade clássica não fora
suficientemente eficaz para extinguir – e dificilmente será – atividades que ainda
hoje choca quem as presencia, seja de forma direta ou indireta. O tráfico de
pessoas, principalmente de crianças, cidades que tinham a função única de
proporcionar prazer àqueles que a visitavam, a prostituição infantil, tanto feminina
quanto masculina, a impunidade daqueles que causam danos a outras pessoas
sabendo que a sua condição social não permitirá punições ou mesmo só por
vadiagem – tal como filmes de ficção científica de Stanley Kubrick –, entre outras
coisas.
A partir da análise visual do texto, nota-se que a própria autora mostra-se
surpresa com muitas coisas apresentada por ela. A quantidade de pontos de
exclamação utilizada por ela demonstra o quanto esse trabalho foi produtivo para
ela, pois, quem o lê tem a impressão de estar lendo junto com a autora. A tradução
também revela algo de interessante. Alguns termos, por vezes, são apenas
“aportuguesados” e outros, talvez, não são adaptados de forma correta – isso é uma
possibilidade – e acabam transmitindo uma ideia de anacronismo. No mais, os
Francisco Fabrício Pereira da Silva
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demais termos não surpreendem tanto, alguns chegam até a serem cômicos, como,
por exemplo, “A ‘puta imperial’”.
A autora vai traçando as histórias de vida das personagens as mais variadas,
anônimas e conhecidas, com uma enxurrada de nomes de pessoas e lugares, o que,
devido à própria morfologia das línguas utilizadas na antiguidade clássica, acaba se
tornando um pouco cansativo. Alguns nomes demasiadamente semelhantes
acabam por confundir as demais tramas e acabam por exigir uma atenção maior ao
leitor.
O livro ainda contém, quase que geometricamente na sua metade, ilustrações,
reproduções de artefatos da época, tanto do período grego quanto do romano.
Desde utensílios até imagens produzidas somente para o fim de representação, tal
como retratos, mostram como a vida dada às luxurias da antiguidade tinham um
lugar especial na mentalidade das pessoas do período, principalmente os
banquetes. Pessoas vomitando, hetarias se preparando para festa, jogos de cottabe,
tabernas, gladiadores, entre outras coisas revelam esse fascínio – às vezes desejado
por muitos, mas não consumado devido ao controle moral do período – e acabam
por auxiliar os próprios estudos do período que, como foi afirmado alhures,
contém um número limitado de fontes. Outro ponto que chama à atenção,
relacionado com as imagens do livro, diz respeito ao estilo artístico dos povos da
antiguidade clássica. Observando-as, percebe-se que os estilos do desenho, das
formas geométricas relacionadas à figura humana e até as vestimentas, de certo
modo, mostram como a cultura grega em quase toda a sua amplitude foi absorvida
pelos romanos.
Ainda relacionado com as imagens presentes na obra, há as representações
cartográficas, que servem tanto para direcionar geograficamente o leitor com para
demonstrar como a posição de cada cidade define a sua atuação e sua importância
no mundo antigo. No entanto, mesmo sendo uma forma de ajudar o leitor, a
representação através de mapas podem mascarar uma realidade de desordem,
pois, vista de cima, a cidade é perfeita, um imagem plana onde não há conflitos,
aglomerados humanos, apenas uma representação racional e estruturada da
Resenha: Nos submundos da antiguidade
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realidade (SILVA FILHO, 2001). Racional no sentido da cidade ser estruturada a
partir de uma visão racional do real, como a cidade de Alexandria, constituída por
retas e paralelas, tal como as cidades modernas da atualidade.
No final do livro há, ainda, um anexo contendo as cronologias grega e
romana, no modelo tradicional data-nome. Há também um amplo glossário que
contém termos utilizados na obra, no entanto, nem todos os termos estão
presentes nesse glossário, o que pode comprometer um pouco a compreensão de
certos trechos do livro. Por fim, há, nas palavras da própria autora, “um repertório
dos nomes próprios (personagens históricos, locais geográficos)”, demonstrando,
de certa forma, que apesar de todas as mudanças historiográficas ocorridas ao
longo dos anos, a figura do poder e os grandes homens não podem ser excluídos da
análise histórica, mesmo que as suas participações sejam apenas em glossários e
anexos, mas como no presente trabalho não estão sendo discutidos os aspectos
teórico-metodológicos da disciplina, não me aprofundarei na discussão.
A metodologia utilizada pela a autora é a análise literária, principalmente
por conter em suas fontes obras literárias clássicas, como os textos de Plutarco,
Petrônio, Plauto, entre outros, já que os seus relatos revelam características mais
completas sobre a realidade dos submundos do que os próprios livros de história,
que também são utilizados como fonte (Heródoto, Tucídides, Tito Lívio, etc.). Além
desses tipos de fontes, obras filosóficas que descrevem os hábitos de certos grupos
relatados, como O banquete de Platão, ou as obras de Cícero e Horácio (filósofo,
além de poeta). A partir da análise das próprias fontes citadas nas notas de rodapé,
nota-se que a autora pode ter tido uma maior dificuldade na análise grega do que
na romana. Tal fato pode ser explicado pelo próprio grau cronológico de cada
civilização. De certa forma, essas fontes podem revelar mais do que o próprio
texto. Como se sabe, a documentação sobre o período antigo ainda é o maior
problema, a veracidade dos textos não pode ser considerada absoluta. Nesse
momento, cabe ao historiador o papel de “juiz”, pois, ele é o responsável pelo a
promoção do passado à história (CARDOSO, 2012). A própria decisão sobre quais
fontes usar já revela muito sobre o trabalho do historiador.
Francisco Fabrício Pereira da Silva
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A primeira parte do livro é dedicada em sua maior parte à questão do prazer
físico no mundo grego. A prostituição é o fio condutor de toda atrama nesse
primeiro momento da obra. Desde a compra e venda das crianças, passando por
personagens “ilustres” desse submundo até a participação de camadas mais
abastadas da sociedade grega no mundo dos prazeres mundanos.
No geral essa parte não é tão ampla quanto a segunda, pois, como foi
afirmado antes, a distancia cronológica entre as duas civilizações ocasionou novas
situações e problemas. Nesse primeiro momento, o instinto sexual e a busca pelo
prazer individual é a preocupação dos gregos, algo que não passa de características
instintivamente humanas, claro, estas características se adaptam ao mundo social
construído dentro da sociedade grega – que como toda e qualquer sociedade –, um
mundo repleto de falhas, como fica bastante claro durante toda a obra, e esta
característica se aplica tanto aos gregos quanto aos romanos.
Na primeira parte do livro, denominada “O Mundo Grego: Homens, Mulheres
e Crianças”, a autora dá as características das três cidades das quais ela considera
as mais importantes do mundo grego, Atenas, Corinto e Alexandria.
A cidade mais importante é a de Atenas, “o berço da democracia”, que tinha
uma estrutura desordenada, o que favorecia a criminalidade e a prostituição, já
que essa era a única forma de sobrevivência para boa parte da população de
miseráveis que não tinham o título de cidadão. No entanto, essa última atividade, a
prostituição, em Atenas – ao contrário do que acontecia em outros lugares onde ela
era conhecida e até mesmo na atualidade – funcionava de forma “organizada”, pois,
era regulamentada pelo Estado, que por seu turno cobrava os devidos tributos
referentes à atividade, havia leis rigorosas acerca de quem podia ou não se
prostituir. A prostituição tinha uma função que ia além da mera busca pelo prazer.
“A legislação de Solon sobre a prostituição se apresenta, antes de mais nada, como
uma medida de saúde pública, destinada em primeiro lugar a preservar a pureza
da raça.”, essas são as palavras da autora em relação ao tema.
Resenha: Nos submundos da antiguidade
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Não obstante, mesmo as prostitutas tendo certa função social e sendo
regulamentadas para o trabalho, aos olhos da sociedade elas eram mal vistas,
serviam apenas como objeto de desejos físicos, instintivos, pois, os gregos
acreditavam que o verdadeiro amor, o “amor grego” era privilégio apenas dos
rapazes, erastas e erômenos. Além das prostitutas, os seus “patrões/proprietários”
também faziam parte dos renegados da sociedade, porém, não tanto quanto os
lenos romanos. Havia também os casos de desordem pública causada por jovens
delinquentes, que, na maioria dos casos, eram de famílias ricas e influentes, cientes
de que não iriam ser punidos, e de fato não o foram.
A segunda cidade, Corinto, devido a sua localização geográfica, tornara-se
uma “cidade do prazer”. Como era o principal porto da Grécia, homens de diversas
partes de todo o mundo conhecido da época, quando lá desembarcavam logo
procuravam as suas variadas atividades de distração. Corinto era luxuria. Tudo
isso fazia dessa cidade “um lugar inteiramente à parte no mundo das cidades
gregas”.
Alexandria já se mostrava uma representação da mudança de mentalidade da
época. Construída a partir de um plano geográfico racional, ela rompia com aquilo
que Atenas representava. De dimensões descomunais para a época, Alexandria
representava a modernidade, até mesmo na sua subdivisão, onde bairros eram
delimitados de forma coerente. Em relação aos prazeres, Alexandria tinha uma
espécie de “cidade-satélite” chamada Canope, onde havia as diversas atividades
relacionadas ao prazer e às distrações do período.
Após apresentar o pano de fundo onde acontecem as histórias, a autora
começa a descrever o real “submundo” grego. O primeiro assunto tratado é a
prostituição e a escolha das crianças que são vendidas para se tornarem
prostitutas. O que surpreende é a idade com que elas são vendidas, geralmente de
5 a 9 anos. O que para nós é assustador, na época era algo extremamente comum,
às vezes era a única saída para muitas famílias que não tinham como sustentar
essas crianças, e viam na prostituição um negócio rentável a tal ponto que levava
algumas mães a se tornarem proxenetas das suas próprias filhas.
Francisco Fabrício Pereira da Silva
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Apesar do fatoda profissão ser malvista por grande parte da sociedade grega,
algumas prostitutas conseguiam destaque social. Geralmente por cair nas graças
de algum político ou aristocrata de prestigio. Isso ocorria de acordo com a beleza
física da cortesã. Como era comum na época, quanto mais se “apegava” à cortesã,
mais ela pedia e mais ela era obrigada a pedir. Algumas chegaram a se tornarem
célebres no mundo antigo, como a hetaira Laís ou Frinéia, que devido a sua beleza
“divina” evitou até mesmo de ser julgada. Isso demonstra uma realidade paradoxal
e contraditória, pois, a cortesã que adquire um status maior devido aos seus lucros,
passa a ser mais aceita na sociedade ao mesmo tempo em que há uma resistência à
sua presença por ela ser prostituta, ou seja, havia uma preocupação em deixar
claro que mesmo ela sendo rica, ainda não fazia parte daquele mundo, mesmo o
integrando como qualquer outra. Caso semelhante pode ser percebido nos séculos
XVI e XVII, onde uma burguesia moderna cada vez mais rica com o comércio queria
integrar o mundo dos decadentes aristocratas de raízes medievais, que por seu
turno os aceitavam, mas faziam questão de deixar clara a distinção existente entre
essas duas classes, ora por títulos de nobreza, ora pela etiqueta dos bons costumes
(COSTA; SCHWARCZ, 1998).
Além das prostitutas mulheres, havia também a prostituição masculina. Estas
eram bastante solicitadas, gerando em alguns casos conflitos de maiores
proporções. Um representante dessa modalidade de prostituição era Timarco, um
jovem que logo cedo se entrega aos prazeres mundanos e todas as suas
consequências. Ao lado de Neera, ele ajuda a autora a ir construindo a sua obra,
pois, ambos tiveram uma vida agitada e ambos usufruíram de todos os prazeres da
antiguidade grega.
Um ponto bastante curioso nessa primeira parte diz respeito aos banquetes,
os mesmos eternizados pelos filósofos clássicos. O que se conclui a partir da leitura
é que esses banquetes eram – anacronismos a parte – verdadeiras orgias. As
pessoas bebiam muito, comiam, jogavam e se entregavam aos prazeres carnais,
tanto com homens quanto com mulheres, as flautistas. O que tinha de original é
que durante essas cerimônias eles “filosofavam”, exercitavam a mente de forma
excepcional, sempre a base de álcool. Esse tipo de cerimônia era muito comum e
Resenha: Nos submundos da antiguidade
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523.
muito lucrativo para quem “agenciava” as cortesãs, pois, era solicitada uma grande
quantidade de mulheres e todas apresentavam habilidades, sejam elas musicais ou
artísticas – não desconsiderando a música como uma forma artística –, além, claro,
dos belos atributos físicos.
Assim como qualquer outro mortal, a cortesã também estava sujeita às ações
do tempo. Quando ela não consegue um bom casamento para mantê-la – as
cortesãs tinham um alto custo de vida, muitas viviam desde cedo em um “mundo
de luxo e ostentação” –, a única saída para ela conseguir manter um padrão de vida
alto era ela mesma se tornar proxeneta, o que geralmente acontecia, como a
própria Neera. Nesses casos, geralmente eram as suas próprias filhas que eram
inseridas no mundo da prostituição.
Como foi afirmado antes, essa primeira parte está relacionada mais às
questões sexuais. É na segunda parte, quando a autora fala sobre Roma que os
temas se alargam de forma impressionante.
A cidade de Roma foi o “mundo inteiro” da Antiguidade. O seu gigantismo era
algo descomunal. Uma cidade com dimensões continentais. Inevitavelmente esse
aspecto iria acarretar em diversos problemas hoje considerados “problemas de
cidade grande”. Muita gente para pouco espaço, essa era a realidade da cidade de
Roma. Além disso, muitos eram os escravos e os miseráveis que viviam na cidade
sem a mínima condição de sobrevivência ou amparo do Estado. A cidade era mal
concebida. Muitos tiravam proveito dessa característica para garantir a sua
sobrevivência. Os problemas de Roma são os mais variados. Há, nesse caso, um
verdadeiro “submundo” em Roma, onde os problemas são maiores do que na
Grécia. Porém, como foi afirmado alhures, essa diferença também é resultado da
distância cronológica entre Grécia e Roma.
Um dos primeiros temas abordados em relação a Roma são as catástrofes
naturais. As enchentes, as epidemias e a fome. Tudo isso gerou uma imigração
desordenada para a parte central da cidade. Como a cidade não tinha a menor
estrutura para suportar tal carga populacional, os problemas foram surgindo. Um
dos que mais chamam a atenção é o da distribuição de alimentos. O Estado romano
Francisco Fabrício Pereira da Silva
520 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523.
era quem distribuía comida para os miseráveis da cidade, mas como a população
aumentou de forma desordenada, essa distribuição passou a ter critérios mais
rigorosos, uma vez que só que podia ter esse direito eram os cidadãos romanos.
Muitos imigrantes famintos tentavam se passar por romanos, o que aumentou o
rigor na distribuição. A autora narra um episódio onde, por falta de alimento para
todos os famintos, eles invadem o Grande Circo exigindo a distribuição de comida e
sugerem até mesmo a distribuição de carne humana!
Roma assimilou muito da cultura grega, e isso inclui também o gosto pelo
prazer mundano. O termo pergraecari, ou “viver à grega”, representa como era a
relação com esses costumes gregos voltados para o prazer. Em Roma, os lenos são
os “patrões”, os lupanares são os locais onde há a prostituição, que diferentemente
da Grécia, não é regulamentada e grande parte das prostitutas apresentam
características moribundas devido à fome e as péssimas condições de vida. Além
disso, os banquetes gregos também são recriados em Roma, porém, não com as
mesmas características. Os romanos se reúnem apenas para comer e beber até
passarem mal, e, na maioria das vezes, o resultado é uma grande confusão.
Uma característica interessante da civilização romana é a diferenciação social
através de marcas visíveis. Marcas na roupa, as cores das vestimentas, o corte do
cabelo e até mesmo “coleiras” – estas utilizadas para identificar escravos fugidos.
Isso mostra como o Estado, aceitando a sua incapacidade de controle social, utiliza-
se de artifícios para que os próprios indivíduos, de acordo com a sua classe,
mantenham as relações sociais controladas. Pode-se considerar isso também uma
forma de dominação e demonstração de poder por parte do Estado, que mesmo em
toda a sua incompetência, mostra-se presente através dos seus cidadãos.
Alguns problemas semelhantes à Grécia são relatados pela autora, porém, a
dimensão da ação dos romanos mostra-se mais cruel. Desordem, invasões e brigas
por prostitutas são as mais comuns. Jovens invadem lupanares, saqueiam-no,
sequestram as moças que mais lhe agradam, espancam o leno até a morte. Tudo
isso é “justificado” pelo papel social tanto dos que cometem os crimes quanto por
quem é vítima. O policiamento nesses casos é ineficiente, pois, poucos são aqueles
Resenha: Nos submundos da antiguidade
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523.
responsáveis por manter a ordem da cidade, principalmente à noite, quando
aqueles que precisam se esconder de dia saem às ruas.
Como as relações sociais em Roma são mais complexas, os problemas
também assim se tornam. “A violência se torna política” como afirma a autora.
Muitas das disputas política atingem o âmbito social, o que acaba por ocasionar
uma grande violência. Grupos armados e de (o)pressão são formados por políticos
poderosos. A maioria dos integrantes desses grupos eram pessoas excluídas pela
sociedade romana e jogadas nos submundos do crime. Além disso, as manobras
políticas do período se estendem à “compra de votos”, por parte dos políticos. Para
os eleitores era dada uma espórtula, que era uma “cesta contendo uma refeição”,
mostrando, assim, o gênese da compra de votos, atividade tão comum hoje em dia.
Mas as mazelas sociais eram bastante variadas na cidade de Roma. Pedintes,
bêbados vagando nas ruas e causando confusões, charlatães que se aproveitam da
fé dos ingênuos e os próprios ladrões noturnos. Havia todos os tipos de atividades
marginais possíveis, quase todos os “problemas de cidade grande” presente nas
grandes metrópoles da atualidade. Porém a autora cita rituais de feitiçaria que
chamam à atenção por ocorrerem de forma frequente e também por envolverem
assassinatos de crianças, tendo, geralmente, a mutilação como característica
principal.
Fatos curiosos também estão presentes na obra. Em uma parte chamada de
“O cônsul arrieiro, o senador gladiador, o imperador proxeneta”, a autora mostra
como os prazeres mundanos eram desejados por todos, independentemente do
lugar social. Todos buscam o prazer. E não só o prazer, mas também a adrenalina
da vadiagem, como é o caso do Imperador Nero, que se passara por baderneiro
convencido que ninguém o reconheceria.
Nos Submundos da Antiguidade é um livro excepcional, pois, lança luz sobre
onde só há escuridão. Nesse trabalho percebe-se um esforço em esclarecer as
características do mundo antigo em todas as suas dimensões. Em certos momentos
o livro torna-se repetitivo e cansativo, mas a autora sempre tenta trazem algo de
novo onde parece ser algo repetido. Novamente, a grande quantidade de nomes
Francisco Fabrício Pereira da Silva
522 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 511-523.
próprios acaba por dificultar a compreensão de algumas partes do livro, mas a
autora não é culpada pela morfologia dos idiomas antigos! Há também o caráter
anedótico da obra, como, por exemplo, esse último exemplo citado, o de Nero, que
logrou em crer que ninguém o reconheceria nas ruas à noite, mas que na realidade
todos sabiam que era ele quem fazia as badernas.
Essa leitura não é indicada para todos os públicos. O seu conteúdo é denso.
Por se tratar de uma obra de História Antiga, seus temas podem parecer distantes,
mas ao analisar, o leitor perceberá que se trata de uma realidade brutal que ainda
hoje assola a maior parte das cidades, não só do Brasil, mas do mundo e alguns
temas, como prostituição infantil, tráfico de pessoas e orgias ainda chocam muitas
pessoas. Tudo faz parte da realidade humana, não há como fechar os olhos para
isso.
Algumas coisas vêm acontecendo e se repetindo há séculos. Isso levanta um
questionamento, a meu ver, muito importante: teria a História falhado em sua
tarefa de magistra vitae e/ou os homens estão fadados a viver em ciclos por toda a
eternidade? Eu queria muito ser capaz de responder essa pergunta, mas muito
ainda tem que ser pensado e estudado para que o passado não seja apenas um
quadro inanimado e a vida uma realidade imutável.
BIBLIOGRAFIA AUXILIAR:
BOTTÉRO, Jean. No começo eram os deuses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
BURKE, Peter. A Escola dos Annales (1929-1989): A revolução francesa da historiografia. 2ª.ed. São Paulo: Editora da Unesp, 2012.
CARDOSO, Ciro Flamarion. “História e conhecimento: uma abordagem epistemológica”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Novos domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
COSTA, Ângela Marques da; SCHWARCZ, Lilia Moritz. “Como ser nobre no Brasil”. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. As barbas do Imperador: D. Pedro II, um monarca nos trópicos. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
Resenha: Nos submundos da antiguidade
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RAMINELLI, Ronald. “História Urbana”. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (Orgs.). Domínios da História: Ensaios de teoria e metodologia. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1997.
REIS, José Carlos. História & Teoria. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003.
_______. Desafio historiográfico. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2010.
SILVA FILHO, Antônio Luiz Macedo e. Fortaleza: Imagens da cidade. Fortaleza: Museu do Ceará; Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001.
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 524-533.
SILVA, Eduardo; REIS, João J. . Negociação e Conflito: a Resistência Negra no Brasil Escravista. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.1
Arthur Rodrigues Fabrício2
Liliane Tereza Pessoa Cunha3
O personagem principal deste livro é o escravo. O enredo é a sua
resistência permanente a ser um mero objeto nas malhas do
sistema. É a história de homens e mulheres vivendo os seus
limites. (SILVA, Eduardo; REIS, João J. , 2009: 7).
Nessas primeiras linhas de Negociação e conflito, obra publicada em
primeira impressão em 1989, o historiador e cientista social, João José Reis, e o
igualmente historiador, Eduardo Silva, explicitam o eixo temático a ser trabalhado
ao logo dos capítulos que se seguirão: o escravo é o personagem principal de sua
própria história, tendo como enfoque sua resistência contínua a ser tratado apenas
como um objeto da sociedade. Para a realização do trabalho foram usadas diversas
fontes primárias, como cartas de senhores, ofícios do governo, documentos
policiais, atas de câmaras e outras fontes relativas ao século XIX presentes em
arquivos públicos. A obra encontra-se estruturada em seis capítulos – os três
primeiros escritos por Silva e os três últimos por Reis – antecedidos por uma
introdução e seguidos por um apêndice, em que documentos utilizados como base
nas análises são apresentados na íntegra para a consulta do leitor. É importante
salientar que os capítulos presentes no livro são na realidade artigos publicados
pelos autores, cuja apresentação faremos abaixo, em revistas de difícil acesso ao
grande público, tendo sido revistos e reformulados para atender ao objetivo
temático que a obra proporciona: entender que havia espaços de conflitos e
1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 16/11/2013.
2 Licenciado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Graduando em História na modalidade Bacharelado pela UFRN. E-mail: [email protected] 3 Licenciada em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Graduanda em História na modalidade Bacharelado pela UFRN. E-mail: [email protected]
Arthur Fabrício/Liliane Cunha
525 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 524-533.
negociações no sistema escravista, deixando de lado visões clássicas que
entendiam o escravo como objeto de opressão contínua ou como heróis
incontestáveis.
Um dos autores de Negociação e Conflito, o historiador e cientista social João
José Reis, mestre (1977) e doutor (1982) em História pela University of Minnesota,
é atualmente Professor Titular do Departamento de História da Universidade
Federal da Bahia, onde desenvolve pesquisa nas áreas História Social, Antropologia
e História Cultural da escravidão no Brasil, bem como sobre a resistência escrava e
movimentos sociais no Brasil do século XIX. Participou em diversos momentos
como membro do Comitê Assessor de História do CNPq, instituição federal da qual
é Pesquisador de nível 1A. Em 2004 e 2010, foi homenageado com a Comenda do
Mérito Científico do Ministério da Ciência e Tecnologia e da Grã Cruz,
respectivamente. É, ainda, Membro Honorário Estrangeiro Vitalício da American
Historical Association, instituição americana que promove estudos históricos, bem
como a coleção e preservação de documentos e artefatos, incentivando a pesquisa
e servindo como espaço de debate privilegiado para seus membros. A morte é uma
festa, seu livro lançado em 1991, uma das principais referências da historiografia
brasileira atual, recebeu o Prêmio Jabuti de Melhor Obra na categoria Ensaio em
1992 e o Prêmio Haring da American Historical Association em 1997. É autor ainda
de diversos artigos, capítulos de livros e obras completas, com destaque para
Rebelião escrava no Brasil: a historia do levante dos malês (1986); Domingos Sodré,
um sacerdote africano: escravidão, liberdade e candomblé na Bahia do século XIX
(2008); e seu livro mais recente, publicado em 2010 em parceria com Marcus de
Carvalho e Flávio dos Santos Gomes, O alufá Rufino: tráfico, escravidão e liberdade
no Atlântico negro (c. 1823 - c. 1853).
O outro autor da obra tratada, o historiador Eduardo Silva, é mestre (1979)
em História pela Universidade Federal Fluminense e doutor (1992) em História
pela University College London. É atualmente Sócio Titular do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro (IHGB), membro da Real Academia de la História (Espanha),
da Academia Nacional de la Historia (Argentina), bem como de outras instituições
nacionais e internacionais de renome. É pesquisador atuante desde 1976 da
Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, instituição que se constitui como
Resenha: Negociação e conflito
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 524-533.
importante espaço de trabalho com pesquisa, consulta de livros e documentos,
tendo como proposta a preservação da memória nacional. Silva desenvolve
pesquisa nas áreas de história política, social e cultural, tendo como ênfase maior o
período que compreende a transição do Brasil Império para a República. Atua,
ainda, em temas ligados a escravidão, cultura negra, classes populares e pós-
abolição. É autor de diversos livros, como Barões e escravidão (1984); As queixas do
povo (1988); Prince of the People: the Life and Times of a Brazilian Free Man of
Colour (1997) e seu mais recente, As camélias do Leblon e a abolição da
escravatura: uma investigação de história cultural (2003).
Como tratado acima, na apresentação dos autores, ambos possuem como
área principal de pesquisa a História Social. É nesse campo da História que
Eduardo Silva e João José Reis constroem toda a obra, tendo em vista os objetos de
estudo, autores e conceitos comumente utilizados por pesquisadores inseridos em
tal campo. Pensando na atuação do próprio campo da História Social, o historiador
José D’Assunção Barros, afirma que a academia brasileira, desde a década de 1970,
deparando-se com necessidades burocráticas que obrigavam os programas de Pós-
Graduação a explicitar suas áreas de concentração, optou pelo sentido mais
abrangente do termo, entendendo que “toda a História que hoje se escreve é de
algum modo uma História Social – mesmo que direcionada para as dimensões
política, econômica ou cultural. (BARROS, 2004: 115-116). Reis e Silva, em
Negociação e Conflito, visam compreender o escravo como agentes ativos de sua
própria história. Nesse sentido, a historiadora especialista em escravidão, Hebe
Castro, reafirma em Domínios da História (1997), em capítulo dedicado a História
Social, que a problemática comum a trabalhos da área gira em torno da
constituição de atores sociais enquanto sujeitos históricos, costumeiramente
entendidos como construções de práticas discursivas. (CARDOSO; VAINFAS, 1997:
88-89).
No que se refere aos debates desenvolvidos na obra em questão, João José
Reis e Eduardo Silva dialogam, de forma primária, com uma ala da historiografia
brasileira que enxerga o escravo a partir de uma tradição dicotômica a que a obra
pretende se opor: o escravo como oprimido ou o escravo como herói. Nessa linha,
os autores dialogam com nomes consagrados da academia, como Raimundo Nina
Arthur Fabrício/Liliane Cunha
527 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 524-533.
Rodrigues, em sua obra Os africanos no Brasil (1932); Gilberto Freyre, com o
clássico, Casa-grande & Senzala (1933); e Jacob Gorender, com seu O escravismo
colonial (1978).
Nesse sentido, é importante realçar a posição do historiador norte-
americano, Stuart Schwartz, que atuou como orientador tanto de mestrado, como
de doutorado, de João José Reis, na University of Minnesota. De forma clara, a
influência de Schwartz na formação acadêmica de Reis é evidenciada no debate
que o último estabelece com seu orientador: na área, Schwartz publicou um
capítulo no livro The hispanic american historical review (1977), intitulado
“Resistance and Accomodation in 18th Century Brazil: the Slaves’ View of Slavery”.
O capítulo estabelece paradigmas iniciais para que os autores discutam a
importância de se pensar as resistências e acomodações dos escravos, partindo do
ponto de vista dos próprios escravos, dos mesmos com sujeitos participantes e
ativos de seus próprios destinos, capazes de modificar as próprias estruturas do
sistema escravista, ao seu favor. De forma adicional, a partir de outro autor
referenciado e utilizado consideravelmente, Robert Slenes, Reis e Silva trabalham
com ideias relativas à existência de famílias escravas bem constituídas e mantidas
no seio da sociedade escravocrata, bem como as estratégias de fugas desses
escravos, que em muitos casos temiam pela vida e proteção dos seus entes
queridos.
A partir da proposta dos autores, que pensam os conceitos de negociação e
conflito – que tanto aparecem juntos, vendo os conflitos abrirem portas para as
negociações; como separados - como ponto de partida para a negação dos escravos
como agentes ativos de sua própria história, Reis e Silva demonstram
exemplificações de espaços de negociações que “funcionaram”, como, por exemplo,
a Brecha Camponesa. Para tratar de conceitos como Brecha camponesa - cuja
importância é debatida melhor no segundo capítulo da obra - que a historiografia
brasileira não possui forte tradição, um dos autores utilizados na discussão é o
historiador Ciro Flamarion S. Cardoso que, em sua obra, Escravo ou camponês?
(1987), estimula o debate em nível de Brasil de um conceito que, para o mesmo,
será caracterizado pelo acesso a terra, cedida pelo senhor, uma economia de
subsistência baseada em trabalho predominantemente familiar, além de certo grau
Resenha: Negociação e conflito
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de autonomia que possibilitaria ao escravo, por exemplo, vender seus produtos,
com certa freqüência, ao seu próprio senhor,gerando renda revertida em moeda ou
benefícios.
Apesar da riqueza conceitual que a obra contém, dois deles são
fundamentais para entender a proposta do livro. O primeiro deles, o conceito de
identidade étnica, é visto como o laço que “conseguiu unir escravos e libertos
africanos no cotidiano e na rebelião.” (REIS; SILVA, 2009: 107). Ainda para Reis, “a
identidade étnica foi em grande parte uma elaboração local de materiais culturais
velhos e novos, materiais trazidos e materiais aqui encontrados, todos eles
reinventados sob a experiência da escravidão.” (REIS; SILVA, 2009: 107). Dessa
forma, se estabelece a própria existência do termo aplicado a realidade dos
escravos apresentada na obra. O segundo conceito fundamental é o de classe, que
será debatido no último capítulo, tendo em vista o diálogo conduzido por José Reis,
a partir das ideias de Marx, Hobsbawn e Thompson.
Ao tratar da opção metodológica utilizada pelos autores em seus capítulos,
torna-se necessário salientar que, apesar da escravidão ser um dos temas mais
dinâmicos da historiografia brasileira, a dificuldade de encontrar fontes relativas
ao escravo como ator principal de sua história acaba por forçar os historiadores da
área a trabalharem com as fontes que possuem, não com a que desejam. (REIS;
SILVA, 2009: 107). Essa dificuldade reflete-se na metodologia primária empregada:
por falta de quantidade, passa-se a utilizar como arma principal a análise
qualitativa, que possui forma destacada nos capítulos através de estudos de caso,
focado primariamente por Reis e Silva na Bahia e no Rio de Janeiro.
Tendo em vista as considerações apresentadas anteriormente, é
indispensável a retomada da ideia central da obra: os escravos não teriam sido
vítimas e/ou heróis durante todo o tempo, como se fizeram acreditar diversos
estudiosos da historiografia clássica, eles transitariam, com bastante frequência
em zonas intermediárias de indefinição entre essas duas posições. Sendo assim,
para os autores, ao lado das violências corriqueiras do sistema escravista, haviam
espaços sociais construídos tanto de barganhas quanto de conflitos. (REIS; SILVA,
2009: 7). É com base nesta ideia que o primeiro capítulo da obra, “Entre Zumbi e
Pai João, o escravo que negocia”, ser| construído. Para Eduardo Silva, que aponta
Arthur Fabrício/Liliane Cunha
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as já apresentadas dificuldades de pesquisa com a temática, a expressiva presença
de escravos na população territorial do século XIX seria utilizada como arma
principal nessas negociações e sabedorias políticas: “o temor da violência” da
grande quantidade de escravos, em detrimento da quantidade de homens livres,
gerava em muitos casos, esses espaços de diálogo entre o senhor e os negociantes.
(REIS; SILVA, 2009: 14) Ainda para o autor, a liberdade podia ser alcançada fora da
proposta da violência, das fugas e das insurreições, contando com casos em que
elementos como a criatividade, a inteligência e o azar deram conta de satisfazer as
condições necessárias à liberdade. Dessa forma, eram através de negociações que
os escravos lutavam pelo seu direito a cultuar sua religião livremente, a obter
folgas nos finais de semanas, e a ter o direito de possuir uma terra só sua, que
ajudasse na sua subsistência e constituísse uma forma de renda.
É partindo dessa situação de negociação entre senhores e escravos que se
estabelece a chamada brecha camponesa, cuja função ideológica constitui o eixo
central do segundo capítulo da obra. Para Silva, a existência desse espaço
econômico próprio do escravo é tradicionalmente negligenciada pela historiografia
brasileira, que apenas o interpreta como uma indicação da extensão da liberdade
dos senhores - que consistiria, dentre tantas funções, num mecanismo de
manutenção da ordem escravista - deixando de lado o valor que possui nesse
contexto de negociações escravo-senhor. Para um dos autores trabalhados na obra,
Antonio Barros de Castro, a prática da brecha camponesa teria surgido do choque
entre senhores e escravos: os últimos buscando construir um espaço próprio,
enquanto os primeiros tentavam resistir, cedendo ante as reivindicações ou aos
próprios interesses econômicos. (REIS; SILVA, 2009: 29). Ainda sobre essa disputa,
Eduardo Silva afirma que “o sistema escravista – como qualquer outro – não
poderia, evidentemente, viabilizar-se apenas pela força.” (REIS; SILVA, 2009: 31).
Apesar da função ideológica restritiva desse “pequeno direito de propriedade”, que
visava manter o escravo na fazenda sob a ilusão de autonomia e relativa liberdade,
cabia aos negociadores a manutenção e ampliação desse direito, como
exemplificado por Silva no caso do engenho de Santana de Ilhéus, onde os escravos
realizaram uma “greve”, exigindo como solução para a retomada dos trabalhos a
ampliação da brecha camponesa.
Resenha: Negociação e conflito
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 524-533.
No terceiro capítulo, intitulado “Nas malhas do poder escravista: a invasão
do candomblé do Accú”, Eduardo Silva expande os limites da negociação além do
apresentado no capítulo anterior: a materialidade dá lugar à defesa por uma vida
espiritual e lúdica autônoma (REIS; SILVA, 2009: 8). O capítulo se desenvolve a
partir do ataque ao candomblé, como aquele realizado pela polícia em meados de
1829, na cidade da Bahia, mostrando que os negros não se intimidam. Pelo
contrário, buscam vias legais de negociar com aquelas instituições repressivas,
aliando-se com libertos, crioulos e brancos pobres livres. Para Silva, os negros
buscavam a afirmação de seu direito de expressão – de tocar, dançar, cantar e
brincar em homenagem a seus deuses – sem serem constantemente reprimidos. O
autor demonstra como o candomblé ganha espaço nas negociações, constituindo
uma instituição exemplar para a realização de um estudo de caso mais aprimorado.
No quarto capítulo da obra, “Fugas, Revoltas e Quilombos: os limites da
negociação”, João José Reis apresenta uma perspectiva de crescente interesse da
historiografia nacional pela temática: novas questões são levantadas em relação às
resistências físicas, diárias ou mesmo socioculturais. Nesse sentido, Reis entende
que a unidade básica de resistência ao sistema escravista teria sido as fugas, sejam
elas individuais ou coletivas, com destinos a quilombos ou não. Para o autor,
mesmo os suicídios seriam considerados, a despeito dos exageros comuns, um
“meio de libertação”. No entanto, José Reis afirma que, na realidade, poucos
escravos conseguiram efetivamente “escapar”, tendo em seus feitos, contudo,
causado prejuízos e estabelecendo uma afronta à posição hegemônica dos
senhores. Para o autor, então:
A fuga, como insurgência, não pode ser banalizada: é um ato
extremo e sua simples possibilidade marca os limites da
dominação, mesmo para o mais acomodado dos escravos e o mais
terrível dos senhores, garantindo-lhes espaço para negociação no
conflito. (REIS; SILVA, 2009: 63)
Tendo em vista esses espaços criados para a negociação, o autor distingue
em seu texto dois tipos de fugas: fugas-reivindicatórias e fugas-rompimento. A
Arthur Fabrício/Liliane Cunha
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primeira consistiria, não pretendendo um rompimento radical com o sistema, em
espécies de “greves” por melhores condições, ou por outras questões relativas à
sobrevivência dentro do complexo negociação/resistência. (REIS; SILVA, 2009:
63). O segundo tipo de fuga teria clara intenção de rompimento total com o sistema
escravista, abandonando aquele espaço opressor e visando novas alternativas de
subsistência. No entanto, o sistema escravista fazia parte da totalidade da ordem
dessa sociedade, no século XIX, o que Reis denomina de “paradigma ideológico”.
Ainda para João José Reis, tais fugas podiam acontecer como reflexo de quebras de
acordo, que ameaçavam os pequenos direitos conquistados pelos escravos, ou
quebras de costumes, que provocavam fortes reações coletivas. Ambas resultariam
na abertura de novos processos de negociações e conflitos dentro do sistema.
Os últimos dois capítulos da obra constituem os principais estudos de caso
do livro, apresentados por João José Reis. O capítulo cinco, intitulado “O jogo duro
do Dois de Julho: o ‘Partido Negro’ na independência da Bahia”, tem como enfoque
as lutas pela Independência na Bahia, chegando até o momento do Dois de Julho de
1823. O desenrolar do texto se detém na análise das atitudes de negros, pardos,
homens livres e escravos diante dos acontecimentos, discutindo as reações e os
medos de uma elite branca à existência de um terceiro partido – além do partido
dos brasileiros e do partido dos portugueses - presente naquela situação. O autor
enxerga a elaboração desse terceiro partido, “O Partido Negro”, como reflexo de
construções ideológicas da elite, que temiam que os negros, os homens-livres
pobres, os libertos e as camadas mais baixas da população se revoltassem quanto a
sua condição, tomando as rédeas de seu destino e passando a agir com consciência
de grupo. O medo dessa elite, como Reis aponta, não é apenas imaginário: esses
grupos, cada qual a sua maneira, teriam negociado participação no movimento de
Independência, ou buscado a subversão da ordem escravista, durante o próprio
conflito. (REIS; SILVA, 2009: 63). O outro estudo de caso, presente no capítulo seis,
“Levante dos Malês: uma interpretação política”, tem como objetivo demonstrar o
escravo como agente político, a despeito da construção da época que entendia que
as classes mais baixas não teriam direito a felicidade ou liberdade, pois a última
estaria submetida à necessidade de ter propriedades físicas e, sendo assim, por não
possuírem liberdade, tornavam-se propriedades de outros, que possuiriam
direitos e dignidade. (MATTOS, 2004: 128). Dessa forma, Reis afirma seu objetivo
Resenha: Negociação e conflito
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 524-533.
como sendo às políticas do conflito, deixando um pouco de lado as negociações, e
entendendo que na rebelião de 1835 houve lutas de classe, lutas religiosas e lutas
étnicas, discutindo as relações entre esses elementos – classe, religião e etnia –
neste contexto.
À guisa de conclusão, a obra Negociação e Conflito, apresenta de forma clara
e bastante didática, uma nova perspectiva, que vai de encontro à clássica visão dual
do escravo como heroi e/ou oprimido, tão veiculada por grandes nomes da
historiografia brasileira de vanguarda, como Nina Rodrigues, Gilberto Freyre e
Jacob Gorender. Para João José Reis e Eduardo Silva, o escravo, em seu dia-a-dia,
conseguia romper barreiras sociais aparentemente intransponíveis, abrindo
espaços para negociar sua condição, buscando uma vida melhor para si e sua
família. Os conflitos levados à frente pelos escravos, em grande medida, eram a
porta de entrada para que essa negociação ocorresse, gerando medos, ou ao
menos, receios nas classes superiores que temiam os negros, em grande
quantidade. A partir de tais considerações, a obra, que reúne discussões valiosas
sobre tal temática tão pouco explorada na academia brasileira, teve em sua época
de lançamento, grande repercussão. Apesar disso, livros didáticos e professores do
ensino básico continuam repassando para o grande público os mesmos valores e
significados agregados {s definições “cl|ssicas”. É preciso, que as discussões
presentes em Negociação e Conflito ultrapassem as fronteiras do núcleo acadêmico
a que a obra acabou restrita, trazendo ao debate, novos e importantes elementos
ao estudo da escravidão na História do Brasil imperial.
Referências
BARROS, José D’Assunção. O Campo da História – Especialidades e Abordagens, Petrópolis: Vozes, 2004.
BURKE, Peter. História e teoria social. São Paulo: Unesp, 2002.
CARDOSO, C. F. S. A Brecha Camponesa no Sistema Escravista. Agricultura, Escravidão e Capitalismo. Petrópolis: Vozes, 1979.
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Arthur Fabrício/Liliane Cunha
533 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 524-533.
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Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.
HARTOG, François. Evidência da História: o que os historiadores veem. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2011.1
Luiz Henrique Bonifacio Cordeiro2
Os debates sobre o fazer histórico são perenes desde que à historiografia
foram impostos métodos para dar-lhe o rigor que uma disciplina séria deve
possuir. François Hartog, historiador francês, membro do Centre Louis Gernet de
Recherches Comparées sur les Sociétés Anciennes e Centre de Recherche
Historique, além de membro-fundador da Association des Historiens da França,
titular da cadeira de historiografia antiga e moderna da École de Hautes Études de
Sciences Sociales (EHESS - França), é um nome central nos debates da
historiografia atual, com erudição singular. Com tese sobre a escrita do outro a
partir de Heródoto 3, Hartog é estudioso da escrita da história na antiguidade e das
formas históricas de temporalização, sendo um dos responsáveis por trazer ao
centro do debate historiográfico a questão do tempo, que é fundamental para o
trabalho do historiador, mas muitas vezes é negligenciada ou pouco refletida;
ainda neste campo, o referido autor produziu o conceito de "regimes de
historicidade"4, bastante difundido desde então.
1 Recebido em 07/10/2013. Aprovado em 19/11/2013.
2 Mestrando em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Licenciado em História pela Universidade de Pernambuco - Campus Mata Norte. Membro do Leitorado Antiguo – grupo de ensino, extensão e pesquisa da UPE; desenvolve pesquisa acerca do caráter político das comédias de Aristófanes. 3 Le Miroir d'Hérodote. Essai sur la représentation de l'autre. Paris: Gallimard, 1980. 4 Na obra ora resenhada, o autor discute brevemente os "regimes de historicidade", reconhecendo que atualmente eles possuem um lugar privilegiado nas reflexões historiográficas, tornando-se uma das problemáticas a serem abordadas pelos historiadores, exatamente porque "nossas relações com ele deixaram de ser evidentes" (HARTOG, 2011, p. 201), pois reconhece-se que há diversos modos de temporalidades. A obra em que Hartog detém-se a esse debate é: Régimes d'historicité. Présentisme et expériences du temps. Paris: Le seuil, 2002.
Luiz Henrique Bonifácio Cordeiro
535 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.
O livro ora resenhado, Evidência da História: o que os historiadores veem,
publicado originalmente na França em 2005 e traduzido para o Brasil em 2011,
trata de questões chave para o trabalho do historiador, como as formas de escrever
a história, a importância do tempo, o tipo de escrita que se impõe aos documentos
e quem deve se impor (o documento, a escrita ou o escritor). Ainda na parte
introdutória, Hartog (2011, p. 14) é claro ao defender que a evidência do
historiador é aquela que busca o 'por que', o 'como se dá' a visão do fato, unindo o
que em Homero é representado por energeia (a visão do fato), evidentia (como
pensar o fato) e evidence (testemunho, isto é, a fonte). Refletir sobre o estatuto da
evidência na História é refletir sobre a própria História. Hartog afirma que a
evidência, que tem a ver com a narrativa do historiador, nunca será completa.
A primeira parte do livro apresenta e discute como foi vista e feita a história
na antiguidade greco-romana. Hartog relaciona o que questiona nessa primeira
parte à segunda, observando uma íntima relação entre memória, escrita e
instituição. Todavia, é lembrado que a falta de cientificidade dos antigos está no
fato deles não refletirem sobre a evidência da qual tratavam, sem formulação de
regras para a produção.
Hartog afirma que a relação do historiador com a História é como a do aedo
com Minemosyne 5, promovendo uma visão dos acontecimentos como instrumento
para conhecê-los melhor. O historiador, a partir de Heródoto, transforma-se em
figura subjetiva, imiscui-se com seu conhecimento. No século IV a. C., historiador e
filósofo 'trocam figurinhas', ação para o bem da História; todavia, fazem com que
essa torne-se a história moralizante, a 'mestra da vida', ação importante para a
historiografia antiga. Os gregos são inventores do historiador mais do que da
própria história, pelo foco narrativo e pelo ato de identificar-se no texto. É também
com os gregos que o historiador filosofa sobre seu fazer; incessantemente, a
produção historiográfica passa por uma revisão filosófica feita pelos próprios
historiadores, que rebuscam sempre a questão da memória, mostrando que a
história é filosófica.
5 Deusa grega da memória, que dá voz ao aedo, revelando-lhe os segredos da memória.
Resenha: Evidência da história
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.
Na relação história-memória, Hartog considera a história como um
processo. O tempo do qual ela se serve só recentemente passou a ser visto como
vetor para o progresso e é o princípio organizador dos objetos de que trata a
história, estando imiscuído à evidência do historiador. Entretanto, o tempo faz
parte de uma relação problemática com a memória e com o indivíduo, pois as
lembranças nem sempre são justapostas.
Hartog (2011, p. 26) denomina "cultura da memória" à relação entre
História e Memória; o historiador é o novo Heródoto, ao tentar ser "senhor da
imortalidade" (da memória). Contrapondo-se a essa imortalidade e a esse poder da
memória, o autor afirma que "se a história e a memória tiveram, de saída, um
projeto comum, suas relações efetivas foram complexas, mutáveis e conflitantes".
Contra Heródoto, Tucídides defendia que a memória seria sempre falível,
exatamente pela sua confusão com o tempo. A busca da memória, contudo, é como
uma busca das origens, intrínseca à vida humana, além de permitir compreender
escolhas, sendo fundamental ao processo da história. Ir em direção aos primórdios
é formular escolhas, esboçar rupturas. A evidência, então, pode ser relativa, ampla,
complexa...
A história é produzida através de narrativas, isto é, não se pode desvalorizar
a boa articulação das palavras. Igualmente, a importância da palavra não deve ser
negligenciada ao se observar as sociedades grega e romana, pois os oradores e sua
eloquência foram fundamentais nessas sociedades e é a partir dessa importância
que a história ocidental começou a ser escrita. Por isso, para Cícero, a cidade
romana só se formou, saindo da vida 'selvagem', graças à força da palavra. Nessa
relação entre fala e ação a palavra política foi de fundamental importância nas
cidades antigas, mas enquanto há as falas que vêm depois da ação, imortalizando-a,
há, paradoxalmente, as que controlam ou agem a partir de uma escolha sobre a
situação. Hartog afirma que, como o orador, que tenta se perpetuar, o historiador
visa a dar uma sobrevida a sua obra e, consequentemente, a si. Além disso, ele
conclui que a eloquência busca a paz, mas floresce em meio a distúrbios.
Luiz Henrique Bonifácio Cordeiro
537 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.
A escrita da história é como a eloquência do orador, passível de ocorrências.
No entanto, não é possível captar o tempo como ocorreu, por olhar a partir do
presente; é preciso reconstituí-lo, por isso, o resultado será sempre diferente do
ocorrido: será sempre uma recriação, por isso, pode-se afirmar que o historiador é
passível de narrativas.
A narrativa, que é uma montagem, dá à história o status de independente, e
Hartog (Ibidem, p. 61) apresenta a etimologia dessa independência. Na etimologia
da palavra e do fazer História, em Tucídides, estando ligado ao verbo historien
(investigar) como o policial, que reconstitui, o histor é tomado por testemunha, não
aquele que viu diretamente, mas aquele que dá seu parecer. Em um segundo
sentido, mais inclinado a Heródoto, que também recorre à historie (procedimento
de investigação), como oráculo, estando ligado ao verbo semainein (revelar), o
histor esclarece a verdade para que se saiba viver com ela.
Ao contrário do que a priori possa parecer, historien e semainein se
complementam na prática historiográfica. A história funciona, nesse sentido, como
uma autópsia à medida que impõe uma crítica ao testemunho da fonte e apresenta,
por fim, um 'parecer'. A história trata, em suma, de um fato morto. O histor faz a
autópsia do fato, por isso um sentido 'melancólico' da história, que sempre busca
saber por que aconteceu; nunca age para evitar a catástrofe; aparece depois. Esse
presente utiliza-se do passado, que já não existe de fato, para refletir sobre suas
próprias incertezas. "Convocado como modelo, o passado é naturalmente um
passado constituído por fragmentos escolhidos" (Ibid., p. 69).
Com a investigação, Tucídides impõe à história um status de verdade,
afastando-se do projeto promovido por Heródoto, que, segundo aquele, falha ao
querer revelar o que acha que deve ser revelado. Para Tucídides é preciso
imprimir uma rigorosa crítica. Hartog se apropria dos posicionamentos
tucidideanos valorizando que, ao se afastar dos poetas que miram exclusivamente
ao passado, o historiador parte do e para o presente.
Em Tucídides, opsis (a vista) vale mais do que akoe (o ouvido), em prol de
um conhecimento claro e distinto: "Não só o que vi, pessoalmente, aquilo que
Resenha: Evidência da história
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.
outros dizem ter visto, mas a condição de que essas visões (tanto a minha quanto
as outras) resistam a uma rigorosa crítica" (HARTOG, 2011, p. 79). O histor que em
Heródoto é revelador, em Tucídides se porta como "avalista em um litígio"
(Ibidem, p. 81); ou seja, os indícios encontrados, que em Heródoto são recebidos a
partir da imaginação, em Tucídides são testemunhas passíveis de questionamento.
Sobre esse impasse entre os posicionamentos contrastantes entre os historiadores
gregos, Hartog afirma que "impunha-se a existência de Tucídides para que
Heródoto pudesse aparecer como mentor" (Ibid., p. 84), já que foi com esse que,
com justa medida, ficou o título de pai da história, apesar de ter sido com o outro
que a história passou a exercer uma crítica.
Heródoto e Tucídides não rompem com a tradição de apresentar dois polos
antagônicos dos indivíduos de que tratam ao impor sua autópsia, enquanto Políbio,
historiador do século II a.C., não pretende apresentar categorias ou justiçamentos,
mas o movimento e o momento da movimentação, representando um
Mediterrâneo globalizado, ao buscar causas e mostrar-se presente. Ele defendia,
segundo Hartog (Ibid., p. 103), "que não houvesse separação entre fazer a história
e fazer história, pelo fato de que, provavelmente, ele se tornou historiador porque
já não podia ser um homem de ação". Políbio inaugura, segundo Hartog (Ibid., p.
107), a sunopsis, "capacidade de ver em conjunto, de abranger em um só golpe de
vista". A prática historiográfica, com Políbio, estreia uma nova fase por não se
limitar a investigar (historien) ou a revelar (semainein); esse autor passa a unir a
ação à palavra, impondo universalidade e dinamicidade ao trabalho da história. É
com Políbio que abre-se o caminho para os historiadores romanos, que passam a
valorizar a retórica e o acontecimento, tendo boa receptividade em seu tempo. O
maior destaque ressaltado pelos historiadores romanos foi então as
transformações em prol de um conhecimento verossímil.
A segunda parte do livro 6 é, na verdade, uma continuação dos debates e
temas empreendidos na primeira, mas localizados em autores chave da
6 Evidência nos Tempos Modernos.
Luiz Henrique Bonifácio Cordeiro
539 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.
historiografia do XIX e do XX. O primeiro capítulo 7 inicia-se com uma observação
arqueológica do olhar do historiador, onde Hartog afirma que desde a antiguidade
até o século XIX houve vários regimes historiográficos em consequência dos
diversos posicionamentos dos historiadores, que acreditavam produzir
veridicamente por incluírem-se em sua observação, não se afastando seu presente
da produção e por portarem-se como decifradores desse presente.
Buscando o passado, desfalecido por si só, a história visa a refletir sobre a
vida; nas palavras de Hartog (HARTOG, 2011, p. 148), "evoca-se o fluxo das coisas".
Aos que são pessimistas e consideram a história idealista e presa ao mundo das
ideias, Hartog responde que não enxergam atuação de seu tempo em tudo o que
produz 8. Nosso autor salienta, no entanto, que a visibilidade real na história não é
imediata, mas gradativa, por gerar fundamental preocupação com a vida e dar
importância à morte para que essa preocupação prevaleça: a história é, nesse
sentido, um exercício fúnebre que prima pela vida; é o que ele chama de
"visibilidade invisível" 9, onde os arquivos são mortos, mas, a partir do olhar do
historiador, transformam-se em vozes para a história.
Outro regime de visibilidade do XIX aparece como uma "ilusão", a partir de
Fustel de Coulanges, que luta para impor uma 'história-ciência'. Esse autor visa a
ver os fatos e, para não cair na visibilidade iludida, defende que se feche os olhos
ao presente. No entanto, Hartog (Ibid., p. 159) afirma que "[...] ao opor um visível
ilusório a um real que se deve aprender a ver, [...], ele não deixa de depender de um
pressuposto de método: o historiador - em nome de sua competência - é aquele
que, entre o visível e o invisível, "encontra os fatos" e consegue "vê-los" ou vê as
coisas como elas são".
Ao contrapor Thierry, Michelet e Coulanges, discordando ou não deles,
Hartog (Ibid., p. 161) reconhece que todos pretendem estabelecer continuidade
7 O olhar do historiador e a voz da história, p. 143-161. 8 Hartog faz referência direta ao teórico francês do XIX Augustin Thierry (Ibid., p. 149). 9 O teórico responsável pela ideia de história que vai de encontro à de Thierry é Jules Michelet (Ibid., p. 151).
Resenha: Evidência da história
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.
para a história em sua complexidade de real 10, o que lhe permite a afirmação de
que "[...] o "realismo" é plural, e a visão não se limita a ser uma questão de ótica
[...]". Há, nesse sentido, a intencionalidade de fazer emergir uma observação da
ação humana no tempo, independente de como seja essa observação. Esse
posicionamento é ratificado pelos Annales, com Lucien Febvre e Fernand Braudel,
entre outros, que valorizam a complexidade da vida humana.
Ao discutir o lugar da narrativa, Hartog reconhece que ela teve vários
sentidos ao longo da trajetória da história como conhecimento. Já depois de bem
consolidada a história social dos Annales 11, que se contrapunha à narrativa, como
ao indivíduo e ao acontecimento, é em Paul Ricoeur, no entanto, que há reflexão
profunda acerca da relação entre a narrativa e a história. Ricoeur, segundo Hartog
(HARTOG, 2011, p. 175), ao desbravar o "mistério do tempo", conclui que "seria
impossível existir história sem um vínculo, por mais tênue que fosse, com a
narrativa". Seria mais sensato falar em "eclipse da narrativa", parafraseando
Ricoeur (Ibid., p. 177), e reconhecer que o acontecimento é como uma "variável da
intriga": "com funções diversas, ele pertence a todos os níveis [...]" (Ibid., p. 183).
A narrativa se configura como aspecto intrínseco ao saber histórico ao
voltar à tona por nunca ter desaparecido. Hartog afirma que o que mudou foram as
maneiras de usá-la. A discussão sobre sua epistemologia, no entanto, é recente,
além de ser responsável por recolocar o historiador no trabalho que produz,
devido a questionamentos centrais: o que faço? o que vejo? como faço?
Com olhar em perspectiva sobre a evidência, Hartog afirma que os objetos
da história podem ser observados de fora dela. A partir de Claude Lévi-Strauss,
com o "olhar distanciado" do estruturalismo, foi possível ao historiador dar passos
mais largos, dialogando com a linguística e a etnologia. Nesse sentido, o historiador
10 Literalmente, "reatar o fio da tradição" (MICHELET apud HARTOG, 2011, p. 161), que quer significar um elo entre passado e presente. 11 Para Hartog, os Annales abandonam a narrativa em prol do contrário do que era cultivado naquela história metódica do XIX, ao valorizar o social e o global: "sob seu microscópio, o acontecimento deixa de ser "visível", legível" (Ibid., p. 176), e o deixa devido ao social, que trabalha com o tempo das estruturas. Entende-se, daí, que acontecimento e narrativa são inerentes um ao outro.
Luiz Henrique Bonifácio Cordeiro
541 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.
forneceu "uma arquitetura lógica a desenvolvimentos históricos que podem ser
imprevisíveis, sem nunca serem arbitrários" (Ibid., p. 191).
Se no início do livro os historiadores gregos, que diríamos aqui os
inauguradores da escrita da história foram considerados uma espécie de
testemunha enquanto pesquisadores, na parte final, o lugar reservado à
testemunha é colocado em xeque, para que se produza reflexão e posicionamento
também neste aspecto. Propõe-se um retorno à testemunha, entendendo-a como a
fonte, fazendo, a partir daí, um aprofundamento epistemológico da discussão sobre
a própria história. Com firmeza, Hartog (Ibid., p. 203) afirma: "a testemunha não é
um historiador, e o historiador – se ele pode ser, em caso de necessidade, uma
testemunha – não deve assumir tal função; e sobretudo ele só é capaz de começar a
tornar-se historiador ao manter-se à distância da testemunha". Refletir sobre a
testemunha e sobre o testemunho é refletir sobre o que vê ou sobre o que escreve
o historiador. Hartog faz-nos ver que há testemunhas diversas, mais e menos
experientes, talvez mais ou menos importantes – ele dá o exemplo das vítimas do
Holocausto.
Sobre a condição da testemunha na escrita da história hoje, Hartog faz
observações sem pretender encerrar o debate. Primeiramente, reconhece que
vivemos em um período em que a "economia midiática" gera o "imperativo do ao
vivo" (HARTOG, 2011, p. 209), onde tende-se a acreditar que a testemunha não
mente, tende-se a ouvir as singularidades. Em segundo lugar, o imediatismo e o
sucesso da testemunha fazem com que se amplie a noção do que vem ela a ser. Em
terceiro lugar, paradoxalmente, a "impossibilidade do testemunho" (Ibid., p. 211);
sobre esta última observação, Hartog afirma que há um espaço entre o que foi e o
que poderia ter sido um acontecimento, o que permite afirmar que a testemunha
permite uma reconstituição e não uma reconstrução. Testemunha-se o que já não
se pode ver e uma testemunha é apenas um dos caminhos possíveis a se seguir.
Teria a testemunha alguma autoridade? Ela é importante para o
estabelecimento de uma tradição, no entanto, é necessário interrogá-la, fazer a
autópsia, tal como o historiador grego, ou entendê-la como um auctor (fiador)
Resenha: Evidência da história
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 534-542.
latino. O que não se pode é calar o historiador perante a testemunha. O "paradigma
do vestígio", questão premente do XX, faz Hartog mobilizar mais uma vez Ricoeur,
com a narrativa, que depende do testemunho, que por sua vez deve possuir
credibilidade e que está ligado à memória e à sua tradição. Outra observação: "a
testemunha de hoje em dia é uma vítima ou o descendente de uma vítima" (Ibid., p.
227); nasce a dúvida entre o que seria autêntico e o que seria real ou verdadeiro.
Reconhece-se a "questão da urgência a dar testemunho e da transmissão" (Ibid., p.
228).
Hartog propõe que se valorize mais os arquivos com os quais se trabalha e
se lhes compreenda mais a fundo, para que se possa julgá-los como convém na
prática historiográfica. O próprio ato de 'julgar' é tema de reflexão, pois o
historiador não deve se portar como absoluto, nem deixar ser 'absolutizado' pelo
objeto. A crise atual, entendida como o momento de reflexões variadas de que é
objeto a própria história, contudo, é tida por Hartog como um momento de
transformações 12.
12 Essas são questões do último capítulo: Conjuntura do final de século: a evidência em questão? p. 229-251.
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 543-548.
CHEVITARESE, André Leonardo e FUNARI, Pedro Paulo A. Jesus Histórico. Uma
brevíssima introdução. Rio de Janeiro, Kliné, 2012.1
Juliana B. Cavalcanti 2
André Leonardo Chevitarese e Pedro Paulo Funari André Chevitarese e
Pedro Paulo Funari são pesquisadores que têm voltado os seus estudos para as
experiências religiosas no mundo antigo e sua recepção ao longo da história.
Repensando os aspectos multiculturais, a complexidade e o dinamismo em que se
dão as relações de alteridade: o “nós” e o “eles”. Os autores, ainda fazem uma
projeção de sua pesquisa no imaginário popular cristão brasileiro. Fazendo leituras
de como a oralidade e a escrita se fundem e ampliam a complexidade destas
experiências religiosas.
Entre as principais publicações de André Leonardo Chevitarese estão:
Cristianismos. Questões e debates metodológicos (2011), Judaísmo, cristianismo e
helenismo (2007) e Jesus de Nazaré: uma outra história (2006). Das principais
obras de Pedro Paulo Funari podemos citar: Os Manuscritos do Mar Morto (2012) e
Identidades Fluidas no Judaísmo Antigo e no Cristianismo Primitivo (2010).
O livro tem como proposta introduzir e refletir sobre a busca pelo Jesus
histórico e o desdobramento do movimento em torno desta figura. Estudo este que
apresenta uma larga trajetória no cenário mundial. No entanto, a maior parte dos
estudos em torno desta questão permaneceu no campo da teologia, a partir de
1 Recebido em 10/10/2013. Aprovado em 25/11/2013.
2 Graduanda em história pela UFRJ. Publicações relevantes: “Há, portanto, muitos membros, mas
um só corpo”: uma breve análise sobre o programa paulino de Reino de Deus, aceito para publicação na próxima edição (Ano VI, Volume 11) da Revista Jesus Histórico. E-mail: [email protected]
Resenha: Jesus Histórico
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 543-548.
denominações confessionais de cunho cristão. E, consequentemente, todas as
reflexões sobre o referido assunto estavam direcionadas ao campo da crença.
Com o advento da modernidade e tendo como arcabouço o Iluminismo,
tema em questão passou a demandar novas preocupações. A partir de então,
menos relacionadas com o aspecto religioso. Iniciava-se a busca pela historicidade
deste personagem de grande importância para o mundo ocidental. Neste sentido, a
proposta do livro é apresentar o que se sabe e as discussões sobre a vida de Jesus.
A presente obra está fragmentada em nove capítulos que podem ser
agrupados em quatro eixos temáticos:
(a) Jesus, um homem: neste ponto os autores indicam a importância de se
estudar o Jesus histórico. Evidenciando o impacto da personagem e de seu
movimento no pensamento ocidental. Bem como, os impactos no estudo histórico
da personagem a partir do advento do Iluminismo no século XVIII.
(b) Como conhecer o Jesus histórico: a preocupação neste eixo é a
apresentação da documentação para se acessar a vida da personagem Jesus de
Nazaré. Os autores dividem essa documentação em três blocos:
- Neotestamentária: fruto da construção de memória sobre o movimento
que se desdobrou pós-Jesus. Seriam os vinte sete livros que conformam o chamado
Novo Testamento. Pode-se agrupá-los em quatro categorias: evangelhos (tendo
destaque para os relatos da vida de Jesus), livro ‘histórico’, epístolas ou cartas e
profético. Os autores aproveitam este ponto para abrir uma discussão sobre
memória. Afirmando que memória é um elemento que esquece, relembra e
interpola. Por isto é importante à reflexão destes relatos que são escritos muito a
posteriori aos eventos. Criando-se assim, camadas e camadas de questões e
reflexões destas comunidades que registraram escritos sobre Jesus e seu
movimento;
- Arqueológica: contribui para reconstruir e confirmar alguns personagens e
circunstâncias mencionadas na documentação neotestamentária. E mais do que
Juliana B. Cavalcanti
545 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 543-548.
isso, são úteis para ampliar os estudos sobre a mesma. Possibilitando perceber e
questionar aspectos que muitas das vezes se encontram limitados pela fonte
escrita. Pode-se citar:
1. Gamla e Jodefat: aldeias judaicas do tempo de Jesus;
2. Massada e Qumram e a resistência judaica à ocupação romana;
3. A inscrição do prefeito Pôncio Pilatos.
- Outras fontes literárias: Flávio Josefo e Evangelho de Tomé estão entre
elas. Este bloco refere-se a toda e qualquer documentação que fale sobre a
personagem ou o seu movimento e que não pertença à documentação
neotestamentária. Estas fontes contribuem para uma maior dimensão deste
movimento, principalmente no que diz respeito às diferentes tradições que se
conformam. Ou melhor, esta documentação contribui para a percepção de que este
movimento já nasce pluralizado.
(c) A vida de Jesus: Chevitarese e Funari apresentam alguns dados sobre os
principais eventos da vida de Jesus: infância, movimento Batista e Jesus, ministério
de Jesus, milagres e crucificação. O autor fala que sobre a infância de Jesus são
construções a posteriori numa busca de grupos cristãos em dar respostas a
indivíduos de fora destes grupos. Um exemplo apresentado é com relação à
concepção de Jesus pelo Espírito Santo que não é presente na comunidade
marcana, mas está nas comunidades mateana e lucana. Os milagres se inserem
neste mesmo contexto. Onde Jesus ora é apresentado nestas construções como um
curandeiro ora como um homem divino.
Sobre o movimento de Batista e Jesus e o ministério de Jesus. Os autores nos
trazem uma informação interessantíssima. Ao contrário do que possa se pensar
num primeiro momento. O movimento de Jesus deriva-se do movimento de
Batista. Estes movimentos com caráter messiânicos foram próprios do período.
Dado que, o contexto de instabilidade político-social na Palestina contribuía para o
mesmo.
Resenha: Jesus Histórico
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 543-548.
(d) A busca pelo Jesus Histórico: a preocupação é apresentar o elemento
divisor de águas no estudo sobre o Jesus Histórico. Este elemento divisor será o
advento do Iluminismo; um evento que marca no pensamento ocidental a
dissociação entre Estado e religião. O Iluminismo, mais do que promover esta
separação. Evoca o interesse pelo estudo até mesmo para responder demandas de
estudiosos do campo religioso que ao produzirem evangelhos harmônicos
deixavam explícito o interesse pela vida de Jesus. E é nesse contexto que em finais
do século XVIII emergem as primeiras biografias sobre Jesus. E seguiam as
seguintes lógicas:
1. Tudo pode ser interpretado a partir de um paradigma consistente;
2. Exclusão do material evangélico que não preenchia o paradigma;
3. Reflexão de uma reflexão não oriunda dos Evangelhos.
Estas biografias, segundo os autores, inauguram a primeira busca pelo Jesus
Histórico. Entre os principais autores temos: Reimarus, Ernest Renan.
Estas biografias vão acabar por acarretar uma visão cética e de não
possibilidade da personagem enquanto campo de pesquisa. Schweitzer, um autor,
próprio desta fase, verifica que a personagem Jesus e o seu movimento estava
muito vinculado aos discursos contemporâneos e que o estudo de Jesus (em níveis
metodológicos) era impossível e que a níveis teológicos era desnecessário. Suas
críticas resumem-se em três aspectos:
1. A busca pelo Jesus da história só havia obtido resultados negativos;
2. Jesus fora atualizado pelos pesquisadores. “Portava vestes por demais
modernas” (CHEVITARESE; FUNARI: 2012: 45);
3. Exatidão e relevância históricas não são mutuamente excludentes. E os
pesquisadores falharam neste sentido.
Em outras palavras, ao propor um ‘retrato’ do Jesus da história. Schweitzer
alerta para a ausência de estudos sobre o elemento escatológico (Jesus se revela
Juliana B. Cavalcanti
547 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 543-548.
como um profeta anunciando que o fim dos tempos estava próximo e que o Reino
de Deus estava por vir) e sobre o papel da oralidade (estaria presente nas frases
curtas, na repetição de palavras, na recorrência de fórmulas orais sempre
repetidas). Ao concluir que Jesus seria uma figura estranha e enigmática,
Schweitzer acaba por afirmar que o estudo sobre Jesus deveria ser deixado de lado.
O campo toma novos rumos com o professor Käseman. Sobre o contexto de
Segunda Guerra Mundial e toda a teologia nazista que pregava o sentimento anti-
judaico, Käseman defendeu que o estudo sobre Jesus histórico passava a gozar de
bases metodológicas. A partir de então se instaura a chamada Segunda onda ou
fase pela busca do Jesus Histórico. Entre os principais autores desta fase temos:
1. Günther Bornkamm: estava preocupado em estabelecer as motivações ou
autoconhecimento de Jesus. Sua crucificação é interpretada como resultado da
oposição feita por Jesus às autoridades político-religiosas;
2. Norman Perrin: seu trabalho abarca os ensinamentos e linguagem de
Jesus.
A terceira onda inicia-se com o The Jesus Seminar (ou Seminário de Jesus).
The Jesus Seminar tinham inicialmente a intenção de examinar cada fragmento
das tradições atreladas a Jesus. Com o tempo o trabalho passou abarcar o estudo
sobre as atitudes e ações atribuídas a Jesus. Sendo divida em três momentos:
1. Esforço em determinar o que Jesus teria dito. Sendo uma retomada, em
certo sentido, as preocupações dos primeiros grandes estudos sobre o Jesus
histórico;
2. Busca-se pelos verdadeiros atos de Jesus;
3. Culmina com a publicação do livro “Jesus, o homem”, tendo como objetivo
a descrição do contexto político-histórico em que o personagem se insere.
John Crossan aparece como o grande divulgador do grupo Jesus Seminar.
Sua base teórico-metodológica consiste em três níveis:
a. Microcósmico: tratamento da documentação literária, por intermédio de
um ‘inventário das tradições sobre Jesus (idade da fonte e número de atestações
independentes para a tradição);
Resenha: Jesus Histórico
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 543-548.
b. Mesocósmico: reconstrução do tempo e espaço em que Jesus viveu.
c. Macrocósmico: análise do movimento de Jesus na perspectiva da
antropologia cultural e social. Buscando reconstruir a dinâmica e a estrutura social
do mundo em que Jesus viveu.
Por fim, são apresentadas as novas tendências no campo de pesquisa. Estas
tendências são marcadas por três grandes eixos:
1. Marcado pelo interesse de se ter uma compreensão racional de Jesus:
Bento XVI;
2. Caráter judaico de Jesus e emprego crescente da documentação
arqueológica: Charlesworth;
3. Caráter social de Jesus: Hosley.
Assim, estes eixos têm como ponto norteador reflexões sobre o estudo do
Jesus Histórico e o seu movimento. Para isto, os autores abrem uma discussão
sobre o que fomentou os estudos e o que possibilitou que a personagem Jesus e seu
movimento se tornassem linha de pesquisa em ambientes laicos.
O fato de apresentar todas as fases ou momentos deste estudo culminando
no momento atual não torna a obra apenas relevante por ser um material que
introduz e sintetiza muito bem os principais eixos de estudo. Mas sua relevância se
encontra também por ser um material produzido por pesquisadores brasileiros
que traz consigo reflexões sobre experiências plurais no movimento de Jesus.
549
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013
ENTREVISTA
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 550-558.
CONVERSANDO SOBRE ENSINO DE HISTÓRIA – ENTREVISTA COM CARLOS
AUGUSTO LIMA FERREIRA
Rafael de Oliveira Cruz1
As reflexões sobre a prática de Ensino e formação de professores de
História têm sido pauta de inúmeros debates entre pesquisadores brasileiros.
Dimensionar os papéis do professor enquanto pesquisador e mediador de
conhecimento vêm sido visto com preocupação e interesse, e para discutir sobre
essa realidade convidamos o Prof. Carlos Augusto Lima Ferreira para
conversarmos2 sobre a realidade atual na formação do professor de História e os
desafios e as novas possibilidades na prática docente em História.
O Prof. Carlos Augusto é Licenciado em História (1985) e Especialista em
Metodologia e Didática do Ensino Superior (1992) pela Universidade Católica do
Salvador, Mestre (1998) e Doutor (2003) em Educação pela Universidade
Autônoma de Barcelona. Atualmente é Professor Adjunto da Universidade Estadual
de Feira de Santana (UEFS) onde coordena o Grupo de Estudos e Pesquisa em
Ensino de História – GEPENH.
Rafael Cruz: Gostaria de iniciar pedindo que o senhor falasse um pouco da sua
formação acadêmica e por que esse interesse em trabalhar com a prática do Ensino
de História.
Prof. Carlos Augusto: Bom, eu sou formado em História pela Universidade
Católica do Salvador e tenho Especialização em Metodologia do Ensino Superior;
tenho Mestrado e Doutorado em Educação com uma discussão sobre Ensino de
História e as Novas Tecnologias na Universidade Autônoma de Barcelona. Foi,
porém, na Especialização que eu comecei a discutir as questões relativas ao Ensino
de História e a Formação de Professores. E daí, desenvolvi um trabalho sobre
Ensino de História e História Local, depois esse interesse foi cada vez mais se
fortalecendo na medida em que eu fui me deslocando da disciplina que eu
trabalhava, que era História da Bahia, para as disciplinas de Metodologia do Ensino
de História, Estágio Supervisionado I e II, e Didática, que naquela época era
1 Mestrando em História pela Universidade Federal da Bahia. Licenciado em História pela Universidade de Pernambuco – Campus Petrolina. Professor da Rede Estadual da Bahia. E-mail: [email protected] 2 Agradeço a Janilly Santos de Carvalho por fazer a transcrição da entrevista.
Rafael de Oliveira Cruz
551 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 550-558.
Didática especifica para o curso de Pedagogia, mas que ela se ampliava pra todas as
licenciaturas. Ainda que fosse nessa perspectiva, procurava dar um recorte da
Didática Geral pra pensá-la no Ensino de História e isso foi crescendo, crescendo e
resolvi no Mestrado, trabalhar com o Ensino de História. Então foi isso que me
fascinou e fascina até hoje, e já vai um longo tempo, trabalhando na área do Ensino
de Historia.
RC: Como o senhor avalia o espaço que a investigação, a pesquisa sobre o Ensino de
Historia tem nos cursos de Pós-Graduação?
CA: Olha, a temática nos cursos de Pós-Graduação é extremamente restrita. Para
não dizer que ela é imperceptível do ponto de vista do conjunto de Pós-Graduações
em História que existem no Brasil. Eu não saberia te precisar, se não me falha a
memória, mas devemos ter hoje entre sessenta e quatro a setenta cursos de Pós-
Graduação no Brasil, destes apenas três programas, discutem o Ensino de História,
que são: na Universidade Federal da Paraíba, o primeiro que tivemos no Brasil, o
da Universidade Estadual de Londrina e recentemente a UNIRIO. Eu acho que isso
mostra o quanto está distante da formação do professor, o quanto está distante da
discussão nos Programas de Pós-Graduação em História as questões ligadas ao
Ensino de História, que, todavia, são privilegiadas nos Programas de Educação. E
que não deveria ser, porque eu quero crer que o debate acerca do Ensino de
História deve ser também, objeto de reflexão dentro da história e isso
lamentavelmente não acontece.
RC: Recentemente fala-se muito da criação de Programas de Pós-Graduação, com
Mestrados Profissionais em Historia. Será que também não abre a possibilidade pra
um debate sobre Ensino?
CA: Eu acho que é um Programa de extrema importância e esperança para a área
do Ensino de História. Eu acho que não deveria ser dessa forma, mas já que a
CAPES começa a incentivar e incentivar com muita força os Mestrados
Profissionais na área de Ensino e o de História foi aprovado (recentemente),
inclusive com nota quatro e que é uma nota máxima para programas de mestrado.
Agora, que isso não fechasse as portas nos programas dos Mestrados Acadêmicos e
dos Doutorados Acadêmicos. O Programa de Mestrado Profissional em História foi
aprovado em rede e é capitaneado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Agora é interessante notar que ele vai ser um Programa sobre Ensino de Historia,
mas na grande maioria esmagadora dos docentes que fazem parte desse Mestrado
em rede, são professores oriundos dos Programas de Historia. Com o que, acho que
é mais uma prova de que essa discussão deveria estar dentro do Ensino, desculpe,
dentro da História. Mas já que isso ainda não é possível, sim, eu vejo com muito
bons olhos a introdução dos Mestrados Profissionais, principalmente porque ele
vai ser direcionado pra os professores da rede, e neste momento, faz com que os
Entrevista – Prof. Carlos Augusto Ferreira Lima (UEFS)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 550-558.
professores da rede tenham a possibilidade de ingressar no stricto sensu,
discutindo dentro da Historia as questões pertinentes ao Ensino de História.
RC: O Senhor mantém lá na Universidade Estadual de Feira de Santana, um grupo de
pesquisa que trabalha com ensino de história...
CA: É o GEPENH que visa discutir e pesquisar o ensino de história e formação de
professores...
RC: O senhor pode falar um pouco sobre ele e sobre o que ele tem pesquisado?
CA: Quando nós criamos esse grupo, nós tínhamos exatamente o pensamento de
fazê-lo com que fosse aberto uma área de possibilidade de que essa discussão
saísse da área de Educação e efetivamente fosse pra área de História. Então ele é
um grupo de pesquisa ligado ao Departamento de Educação, mas ligado também à
subárea do Ensino de História. Portanto, temos um grupo de estudantes e de
professores de História que dialogam no grupo de pesquisa e isso foi bem vindo
tanto na graduação quanto no Mestrado, tanto eu, quanto o outro colega, que
somos líderes do grupo de pesquisa, o Professor José Augusto Ramos da Luz, já
temos algumas pessoas interessadas em discutir o Ensino de História dentro do
Programa de Pós-Graduação em História. Inclusive, eu tenho uma orientanda
(Dulcinea Coutinho Barros) que discute Ensino de Historia não em Educação, mas
em História. O que eu acho que é extremamente louvável. E do ponto de vista do
debate sobre Ensino de História, é o primeiro trabalho que está sendo realizado no
Programa de Mestrado em História da UEFS.
RC: E a partir desse momento então, como é que o senhor avalia que é construída a
formação do professor de Historia dentro da academia. De que forma a academia
pensa a formação do professor? Ou ainda é um curso que são basicamente voltados
para uma formação de pesquisa histórica?
CA: Apesar de termos avançado muito na questão do Ensino de História esta ainda
é uma questão subalternizada nos cursos de Formação de Professores de História.
Eu acho isso um tanto quanto ruim, porque você termina dicotomizando a
formação. Eu vou te dar como exemplo o meu curso: nós somos um curso de
Licenciatura em História, que efetivamente descuidada formação de professores,
ou seja, é um curso de Licenciatura em História, mas que tem uma cara
absolutamente bacharelesca. Então, isso inclusive para o aluno é ruim porque ele
potencialmente não vê possibilidade de discutir Ensino de História no contexto da
formação de História, por conta de um olhar enviesado de todos nós que fazemos o
curso de História. E isso não é um problema único e exclusivo do curso de história
da UEFS, não. Ele é um problema generalizado. Se esse debate ainda permanece, é
por conta exatamente da questão que claramente dicotomiza ensino e pesquisa.
Rafael de Oliveira Cruz
553 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 550-558.
Como se o professor fosse incapaz de ser um sujeito que pensa, que pesquisa, que
vê na discussão sobre o Ensino da Historia um objeto de reflexão, um objeto,
portanto, de pesquisa. Eu acho que isso é algo duro, e inclusive isso tem um legado
negativo, senão vejamos: Alguns cursos de História têm feito concurso pra área de
Ensino de História, solicitando Graduação, Mestrado e Doutorado em Historia,
fechando, por exemplo, a porta àquele profissional que buscou a qualificação em
Ensino de História nos programas de Educação, por exemplo. Eu acho que isso é
um olhar enviesado para a questão, por que termina se fechando as possibilidades
aos sujeitos que não conseguiram fazer a pesquisa de ensino em história nos
programas de História e foram buscar isso nos programas de Pós Graduação em
Educação e ficam impossibilitados de fazerem os concursos, porque nesta hora, os
departamentos de história bloqueiam qualquer possibilidade... Esse ano tivemos
três casos emblemáticos sobre essa questão, o que motivou uma posição muito
interessante do GT de Ensino de História e Educação da ANPUH. Eu recomendaria
que as pessoas acessassem o site da ANPUH Brasil para conhecer o documento
RC: E também não seria o caso de a própria academia repensar, por exemplo,
durante muito tempo se focou em um curso de Bacharelado e o curso de Licenciatura
separado e normalmente eram os cursos de bacharelado em que o formado, o
bacharel em História que prosseguia fazendo Mestrado e Doutorado, já que se
acreditava que o licenciado não estava preparado para a pesquisa. E depois, esse
Doutor em Historia que só fez o Bacharelado, retorna para academia como professor,
para trabalhar com a formação de novos professores de História. Não seria o
momento de a academia repensar também em seu corpo docente e como é que eles
vão lidar com a formação de professores?
CA: Sem dúvidas se constitui um equívoco essa postura. Porque o professor é um
sujeito que reflete, que pensa e que produz conhecimento. E eu não gosto,
inclusive, de trabalhar na perspectiva em que um pesquisa, o outro ensina, não. O
professor pesquisa, o professor pensa e também ensina. Entendeu? Eu não faço
separação. Ainda ontem eu perguntava pra uma aluna minha que está trabalhando
com uma discussão sobre religião, como é que ela ia trabalhar com a temática na
sala de aula. E ela disse que não tinha se dado conta, de que efetivamente ela
estava em um curso de Licenciatura e como é que amanhã ela ia se deparar com
esse desafio em sala de aula, sendo pautada pelos alunos... e não sabia como fazer.
Por quê? Porque ela nunca foi preparada, e olhe que é dentro do curso de
Licenciatura. Ela nunca foi preparada pra pensar essa temática como uma
potencial fonte de pesquisa e investigação no campo do Ensino de História
também. Então, eu acho que isso está ligado a um equívoco e uma perspectiva
absolutamente bacharelesca que nós temos nos cursos. E creio que esse debate
está longe de terminar, porque cada vez mais isso, ao invés de ser repensado, ele só
se acirra. Por exemplo, você [entrevistador] está em um Programa de História, que
Entrevista – Prof. Carlos Augusto Ferreira Lima (UEFS)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 550-558.
não existe a mínima possibilidade de haver discussão sobre Ensino de Historia.
Quem quiser fazer Ensino de história no Programa de História na UFBA, não
conseguirá, tem que ir para a Faculdade de Educação. Eu tenho um colega que fez
Mestrado e Doutorado na UFBA e o debate dele foi sobre História da Educação,
mas ficou durante muito tempo sem orientação, por conta da ausência de pessoas
que pesquisavam e faziam esse debate dentro do Programa de Historia. E nós
estamos falando de um Programa de História que tem Mestrado e Doutorado
qualificado na região Norte e Nordeste, o que eu lamento!Porque pela importância
que tem deveria estar trazendo pra dentro do Programa esse debate. E eu não vou
dizer que há uma recusa dos programas, mas, boa vontade também não se há para
que esse tema seja refletido, seja debatido e, por conseguinte, sejam incorporados
aos Programas.
R:Recentemente, o Ministério da Educação propôs a ideia de reunir as disciplinas a
partir de Núcleos Comuns, como por exemplo, as disciplinas História, Geografia,
Filosofia e Sociologia, seriam agrupadas em Ciências Humanas e suas Tecnologias.
Mas a academia não se manifestou. Inclusive alguns gestores, tinham colocado que
algumas dificuldades de se promover essa mudança seriam porque os professores são
formados em áreas especificas, e não em um conceito geral de Ciências Humanas.
Para o senhor, há uma omissão no debate? Como o senhor avalia isso?
P: Olha, esse é um debate que está começando a ser realizado. Porque, a
perspectiva que está posta, é a perspectiva interdisciplinar. A academia tem muito
o discurso da interdisciplinaridade, mas as nossas atitudes são absolutamente
disciplinares. Eu acho que vai ser um bom debate, e que em certa medida o
Ministério coloca essa discussão pra mobilizar um debate nacional acerca disso, e
eu lhe confesso que eu não tenho nenhuma opinião formada sobre isso, até porque
não conheço o documento que está sendo produzido pelo Ministério, mas vejo com
bons olhos um debate sobre a questão, que pelo menos nos mobiliza a entender
essas novas possibilidades. Até porque, por exemplo, a Universidade Federal da
Bahia e as novas universidades que estão nascendo aqui na Bahia, estão discutindo
as suas formações pelo viés da interdisciplinaridade, com os bacharelados
interdisciplinares que consideram a dimensão das Ciências Humanas. Como eu já
disse, eu não tenho opinião formada, mas acho que o debate é pertinente na
medida em que nos força a repensar os modelos de ensino que a gente tem. E nesse
sentido, sermos provocados pelo Ministério, é salutar, pelo menos instiga o debate.
R:Uma coisa que a gente percebe é a ausência muito do debate, é sobre o Ensino de
Historia nas series iniciais, até porque, a formação do professor de História, ela é
voltada pra o Segundo Ciclo do Ensino Fundamental e para o Ensino Médio, não uma
formação pra o Ensino, antigamente chamado de Primário, hoje de Fundamental I,
que é território exclusivo dos formados em Pedagogia. Como se debater hoje o Ensino
Rafael de Oliveira Cruz
555 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 550-558.
de Historia dentro dessas séries iniciais e até algumas políticas públicas, como por
exemplo, do estado de São Paulo, que retirou a disciplina de historia do currículo das
séries iniciais.
P: É, isso é uma questão política, não é? e novamente nos coloca um desafio na
medida em que a gente tem que se posicionar.Eu tenho uma colega do
Departamento de Educação que diz com muita propriedade que um dos problemas
da educação brasileira (entre tantos outros)está na base, por conta de que os
pedagogos não têm uma formação pra lidar com as especificidades, por exemplo,
com a História, com a Geografia, com a Matemática, com a Língua Portuguesa,
porque não é em seis meses que você tem uma boa preparação. Se você já não tem
em quatro anos... Eu diria a você que é um desafio que está posto. Eu co-oriento
uma professora no Doutorado em Educação, na Universidade Federal da Bahia,
cuja tese gira em torno dessa discussão, ou seja, o Ensino de História nas séries
iniciais. Um grande desafio, para ela, porque a produção acerca dessa discussão é
muito pequena e também porque isso não é área de pesquisa do Ensino de
História, isso é área de pesquisa da Pedagogia. Eu estou convencido de que a gente
vai ter que, em algum momento, debater sobre isso em algum momento se
posicionar sobre isso e mais, buscar também trabalhar nas séries iniciais, porque
nossa contribuição nesta formação é por demais sentida, e dessa forma, eu acho
que a gente não vai poder se ausentar do debate, ele está muito próximo a
acontecer e eu acho que já tem trabalhos que começam a surgir com muita
consistência nessa área. Tem um grupo no Paraná, inclusive a professora Sandra
Regina Ferreira de Oliveira, da Universidade Estadual de Londrina, é umas
pesquisadoras dessa área, inclusive ela coordenou no último Encontro Nacional de
Pesquisadores em Ensino de História, que aconteceu no mês de outubro, na
Universidade Federal de Sergipe, um grupo de trabalho sobre Ensino de História
nas séries iniciais. Ora, se esse grupo lá, teve vida, é porque isso já uma discussão
que começa a tomar conta da área dos pesquisadores do ensino da historia, e eu
vejo com muito bons olhos. E a gente não vai poder se ausentar dessa discussão.
R:Dentro da prática docente, muito se fala hoje é sobre inserção das novas
tecnologias, mas ainda é preciso também preparar o terreno, porque alguns
professores possuem resistência, até mesmo em trazer essas novas tecnologias. Como
repensar, como as tecnologias podem ser um auxílio, mas também não depender
exclusivamente da tecnologia em sala de aula e não se fazer refém dela, no momento
da construção do ensino-aprendizagem?
P: Essa é uma discussão que inclusive começa a se fortalecer na área da História.
Há hoje um conjunto de sujeitos que trabalham com o Ensino de História e Novas
Tecnologias, eu inclusive, a minha tese de doutorado foi sobre Ensino de História e
Novas Tecnologias, só que naquele momento, eu me deparei com uma realidade
Entrevista – Prof. Carlos Augusto Ferreira Lima (UEFS)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 550-558.
muito dura, que foi deparar-me com uma constatação: se o professor não estava
bem formado para as discussões das questões historiográficas e de ensino, que
dirá para as novas tecnologias. O que inclusive me fez mudar o foco da tese.De
novas tecnologias, ela passou a ser formação de professores. Ainda que eu
entendesse que as novas tecnologias naquele momento já era uma discussão que
começava a se fortalecer notadamente no campo da Educação. Depois da primeira
tentativa de consolidar a Associação Brasileira de História e Computação, que
depois de cinco ou seis encontros nacionais (não me lembro ao certo) veio a
desaparecer. Vejo uma exitosa retomada e que existe uma movimentação no Brasil
de pesquisadores com trabalhos na área de Ensino de História voltado para as
Novas Tecnologias. Ontem mesmo eu escrevi para o pessoal do Rio Grande do Sul,
da Federal, que acabou de publicar um livro muito interessante sobre Jogos e
Ensino de História. Tem um grupo de pesquisa na Federal de Uberlândia, que
trabalha com Novas Tecnologias e Ensino de História, na Federal de Sergipe com o
Prof. Dilton Maynard, que inclusive vai fazer a palestra final da ANPUH de
Pernambuco sobre Ensino de História e Internet eu poderia ficar aqui enumerando
vários grupos e pessoas que estão dialogando e pesquisando sobre o tema. E isso é
fundamental, pois o historiador não pode abrir mão de se apropriar dessa questão
porque ela está presente no mundo, inclusive no universo escolar os nossos alunos
respiram tecnologia. Quero ressaltar, porém, que devamos refletir sobre o impacto
e o papel dessa tecnologia no ensino e não se submeter a elas. A tecnologia por si
só não faz o melhor ensino, a tecnologia por si só não faz uma melhor aula. A
tecnologia por si só não demanda uma relação com o sujeito. Você tem que ter uma
intermediação, e essa intermediação é papel do professor.
RC: E aí nesse momento também se repensar a interdisciplinaridade em sala de aula,
já que estando na academia a gente faz essa “disciplinaridade”, como o senhor falou
e volta na escola a repetir essa “disciplinaridade”, até mesmo há uma dificuldade de
diálogo entre o profissional de História com as outras áreas de Ciências Humanas.
Volta e meia o professor de História não consegue até mesmo lidar com o aluno na
técnica de mapas e cartografia.
CA: Até porque essa questão de pensar o mapa, ou quando a gente pensa o mapa, o
estudante pensa que é Geografia. Quando também o historiador deve ser um
sujeito que reflita sobre mapa, sobre território, e a gente não se dá conta disso, não
é? Principalmente na Educação básica. Então, essa dificuldade nossa de dialogar
com as outras áreas do conhecimento, eu acho que a tendência é se dissipar, na
medida em que entendamos que o mundo hoje exige a interdisciplinaridade, e a
rapidez das informações vai fazer com que dialoguemos com as outras áreas do
conhecimento, sem dúvida. Eu acho que isso é uma questão que logo, logo a gente
supera. É difícil? É! Mas não é impossível.
Rafael de Oliveira Cruz
557 Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 550-558.
RC: Como o senhor avalia a perspectiva hoje da formação dos professores e quais as
necessidades do debate que precisam ser pautadas com mais urgência nesse
momento, pra está se discutindo sobre formação, sobre ensino e a necessidade de
demonstrar que o professor também é um pesquisador e que o que a pesquisa tem
que ser levada pra sala de aula também?
CA: Primeiro devemos acabar com essa questão da dicotomia que ainda é tão
presente nas formações de professores de História. Se entendermos que o
estudante que estamos formando é um sujeito que vai refletir, que vai pensar, que
vai pesquisar, tanto o campo da historiografia quanto o campo do ensino,
estaremos superando essa dimensão. Enquanto não superarmos essa dicotomia,
mesmo no curso de Licenciatura, eu acho que a tendência é permanecer. Mas não
dá mais para falarmos num professor que não é pesquisador, não podemos falar de
um sujeito que não pesquise, que não pense as fontes, que não pense toda essa
dimensão historiográfica no campo de ensino. Agora, para isso, é preciso que a
mudemos o nosso fazer, que mudemos a perspectiva dos currículos que estão
postos e construídos de forma a privilegiar muito mais a investigação do que a
docência. Assim, contribuiremos decisivamente pra formarmos melhores
professores(as). E olha que aliado a esse ainda temos um problema com o conjunto
de sujeitos que adentram ao curso de História, que é a questão de identidade com o
curso. Esse é um outro problema que não estamos tratando. Os estudantes que
adentram ao curso de História por opção primeira, por ser a carreira que sempre o
encantou se constitui minoria. E na medida em que não se tem identidade com
aquilo que se faz, vai ser problemático no momento de atuação profissional. Mas eu
creio que estas questões que apontei e que, ao meu ver, são a pauta do dia, vamos
poder superar, e ao superá-las, termos uma formação que sempre quisemos. Não
sei se é ideal, mas pelo menos pensar uma formação onde o ensino e pesquisa
fazem parte do mesmo curso.
RC: E nessa questão da formação, até incentivar que o profissional que esta na
Educação Básica, também possa fazer um Mestrado, Doutorado, e se mantenha na
Educação Básica. E pra ele também há possibilidades dentro da Educação Básica.
CA: Há isso é fundamental! Principalmente quando o professor depois de adentrar
ao curso stricto sensu e concluí-lo, retorne pra Educação Básica. Desde que o stricto
sensu que ele faça, tenha conexão com a Educação Básica. É o ideal! Eu acredito que
o professor(a) pode sim efetivar a sua ida aos programas de pós graduação, basta,
também, para isso, que comecemos a repensar essas relações. O que não dá é que
pensemos uma relação hierárquica com a universidade e o stricto sensu virando as
costas pra educação básica, e mais, que a temática ensino de história e formação de
professores, não seja objeto de reflexão dos cursos de Pós-Graduação de História.
Entrevista – Prof. Carlos Augusto Ferreira Lima (UEFS)
Historien (Petrolina). ano 4. n. 9. Jul/Dez 2013: 550-558.
RC: Bom, Prof. Carlos Augusto, queria agradecer muito por o senhor ter tido essa
disponibilidade de conversar com a gente.
CA: Eu que agradeço. E espero que essa discussão que travamos aqui, possa
contribuir com os leitores e pelo menos provocar outros tantos.