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ENTREVISTA 1 JOSÉ PASTORE
Alexandre - No fim de outubro, o senhor escreveu um artigo para O Estado de S.Paulo em que pergunta, retoricamente, se "O Brasil é o único certo''. O
texto cn·tica a oposição arraigada de sindicatos brasileiros quanto à meritocracia e à busca de ganhos de produtividade. No seu entendei; esse apego ao que chama de "remuneração desvinculada de desempenho" é um fenômeno brasileiro?
Pastore - É um fenômeno internacio
nal. Existe uma tendência mundial
de os sindicatos quererem manter a remuneração homogênea ou isonômica, desvinculada de produtividade.
Alexandre - É o que temos visto em Nova York e em outras grandes cidades americanas, onde os prefessores resistem à ideia de se estabelecerem rankings de melhores escolas e premiar os prc!fzssionais com resultados acima da média.
Pastore - Sim, mas, ao mesmo tempo
em que há resistência dos sindicatos, há avanços nas negociações. Nos Es
tados Unidos, muitas cidades já estão
contratando professores com base no desempenho. É o caso também da
Coreia do Sul.
Alexandre - Em que sentido o senhor jaz essa provocação: se o Brasil sen"a o único país certo?
lada ao desempenho. Não só dos professores, mas em outras áreas. Será
que o Brasil é o único certo? Porque outros países, apesar da resistência,
estão conseguindo avançar e fazer contratações ligadas ao desempenho.
Alexandre - Talvez a resistência à meritocracia seja mais presente em nossa sociedade.
Pastore - Na nossa sociedade, ela é
vitoriosa. Nos países avançados, não. Ela é debatida, mas já se veem avanços no sentido de superá-la.
Alexandre - A resistência à meritocracia não é nova no Brasil, mas tem se tornado até violenta. Que valores o senhor entende estarem por trás da postura de prcifessores do Rio de Janeiro que _ficaram em greve por três meses e invadiram a Câmara Municipal duas vezes, justamente porque não querem ser avaliados e submetidos a esse sistema meritocrático?
Pastore - Temos uma cultura baseada na crença de que as únicas proteções
que funcionam são aquelas garantidas pelo governo. Isso tem raízes históricas. Durante o período colo
nial, tudo era garantido pelo Estado. Arrastamos essa herança cultural até hoje. Se analisarmos a Constituição
Federal do Brasil, verificaremos que
Pastore - O Brasil insiste em detonar a palavra "direito" aparece 76 vezes, todos os planos de remuneração atre- enquanto a palavra "dever" é citada
Se analisarmos a Constituição Federal do Brasil, verificaremos que a palavra "direito" aparece 76 vezes, enquanto a palavra "dever" é citada apenas quatro vezes
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apenas quatro vezes. A palavra "produtividade" aparece duas vezes e a palavra "eficiência", uma. Então, veja
que na nossa Carta Magna já há essa concepção de que a lei é para garantir
mais direitos do que deveres.
Alexandre - A nossa Constituição dificulta a introdução da meritocracia na sociedade?
Pastore - Há, dentro da nossa Consti
tuição, muitas fontes de agravamento da desigualdade e do protecionismo.
Por exemplo: como você pode explicar racionalmente o fato de estu
dantes da classe média alta e da elite passarem pelas melhores escolas
médias, que custam muito dinheiro, e, na hora em que entram numa universidade pública, como a USP,
reivindicam, batem o pé e conseguem gratuidade? Isso é garantido pela lei.
Uma lei de má qualidade, no meu entender, porque ela exacerba a de
sigualdade. O Brasil não tem falta de leis, tem falta de leis de boa qualidade.
Alexandre - Quando vivemos, em junho, as grandes manifestações populares de rua, a presidente Dilma Rousseff levantou, por poucos dias, a bandeira da convocação de uma assembleia constituinte. A ideia de se mexer na nossa Constituição lhe parece boa?
Pastore - Muita coisa poderia ser me
lhorada sem mexer na Constituição. Agora, se houver disposição para pro
duzir uma Constituição mais moderna e ajustada ao mundo globalizado
e competitivo, eu nada tenho contra. Mas não sinto que o ambiente seja este. Se houver a mudança, é capaz de
termos mais protecionismo, porque
' ..
os nossos constituintes vão visar o voto, e não o país.
Alexandre - Alguns dos valores dos sindicalistas que o senhor criticou são compartilhados por uma parcela importante dos estudantes, a qual tem se mostrado ainda menos disposta a negociar. Em São Paulo, alunos da USP arrombaram a porta da reiton"a, na base da marretada, porque o Conselho Universitário não mudou a forma de escolha do reitor.
Pastore - A juventude é parte dessa
cultura do garantismo legal. Tudo tem de ser garantido, sem nenhuma contrapartida de responsabilidade e deveres. A ideia do equilíbrio entre
direitos e deveres, que há na cultura anglo-saxónica, é praticamente desconhecida entre nós. No campo do trabalho, isso é bem mais claro. N assa tradição trabalhista é a de estabelecer
todos os direitos por lei, e não por negociação. Na nossa legislação, só
há dois direitos negociáveis: salário e participação em lucros e resultados. Todo o resto é fixado por lei, como se fosse uma tarifação. Isso é diferente em países avançados, onde uma parte
pequena é garantida por lei e o restante, tradicionalmente, é negociado.
Alexandre - Já se falou muito sobre reforma trabalhista no Brasil, mas ela sumiu do debate político.
Pastore - Não vejo evolução nesse campo. O Brasil está vivendo uma crise institucional no que tange aos valores que sustentam as instituições, a Justiça do Trabalho, a legislação do trabalho, a área educacional etc.
Nós temos uma invasão crescente do garantismo legal, que se choca
A ideia do equilíbrio entre direitos e deveres, que há na cultura anglo-saxônica, é praticamente desconhecida entre nós. No campo do trabalho, isso é bem mais claro
contra a ideia de conquista negociada,
baseada no desempenho e no aperfeiçoamento. O Brasil tem chances de ir
bem na economia, mas tem ido mal
do ponto de vista institucional.
Alexandre - Só que muitos problemas institucionais acabam vazando, por assim dizer, para a economia.
Pastore - Sem dúvida. O Brasil não está isolado no mundo, onde parceiros e concorrentes estabelecem uma competição selvagem, baseada em
inovações, pesquisas e conquistas. Estamos ficando isolados dessas cadeias globais de valor. Isso acontece porque não temos uma estimulação da criatividade, do desempenho.
Alexandre - Isso resulta na estagnação da produtividade da indústn·a.
Pastore - A produtividade só cresceu, na indústria brasileira, na década de
1970. Dos anos de 1980 para cá, ela evoluiu de forma desprezível. Ultimamente, está parada. Parece até um eletrocardiograma de morto, enquanto a produtividade de outros países está disparando, em especial a da China e a da Alemanha - um dos países que pagam os salários mais altos no mundo. Lá, a produtividade é tão alta, que é barato pagar salários mais elevados.
No Brasil, é caro pagar m~smo os salários mais baixos. Na área de serviços,
embora a baixa produtividade não
seja tão grave quanto na indústria,
está aquém do padrão internacional. Nossos serviços são precários e caros.
Alexandre - O que está por trás dessa estagnação tão prolongada da produtividade no Brasil?
Pastore - Em primeiro lugar, é a falta de investimento em pesquisa e inovação. A indústria fica defasada. Em
segundo lugar, é a baixa qualificação média dos trabalhadores. Por último,
ainda há muita empresa que trabalha com administração retrógrada.
Alexandre - O Jato de a qualificação média do trabalhador brasileiro ser baixa tem relação com a entrada de muita gente no mercado formal de trabalho?
Pastore - O tema é bem complexo. Uma linha de raciocínio diz que nos últimos dez anos o Brasil estimulou o crescimento baseado no consumo,
por meio de linhas de crédito, redução do IPI e desoneração da folha de
pagamentos. O estímulo ao consumo gerou muitas oportunidades de trabalho no setor de serviços, mas, como
na maioria dos casos são serviços de baixa qualidade, as pessoas que entraram no mercado de trabalho também têm baixa qualificação. Então, na média geral, isso compromete a produtividade total do país. Essa é uma posição teórica defendida por muitos economistas de respeito.
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ENTREVISTA 1 JOSÉ PASTORE
Alexandre - Isso, por si só, não seria negativo. As pessoas podem até não ser qualificadas, mas é melhor vé-las incorporadas à força de trabalho, não?
Pastore - Melhor dentro do trabalho do que fora. Agora, no trabalho, elas adicionam pouco. Em re lação aos nossos concorrentes internacionais, elas nos deixam para trás. A corrida é em relação a um ponto móvel. Por exemplo: enquanto aumentamos em 1% a nossa produtividade, o coreano registra um ganho de 5% por lá. O alemão também, o japonês idem. Não podemos dizer que está melhor porque eles [os trabalhadores pouco qualificados) estão trabalhando. Mas em função daquilo que o país precisa, como parte da economia global, isso significa pouco, bem pouco.
Alexandre - O senhor começou a responder à pergunta sobre a estagnação da produtividade falando de inovação. Na realidade, os índices de inovação que tenho visto estão caindo, e não aumentando, com a provável exceção do setor agropecuário, no qual a inovação é importante por conta da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). No último ranking internacional de inovação, o Brasil perdeu posições e aparece apenas no 56° lugar. ..
Pastore - O caso da agropecuária foi bem lembrado, porque mostra que, quando você investe em ideias,
como a Embrapa, a economia brilha, o país se desenvolve e desponta como líder mundial. Se você mantém tudo na base da proteção, tudo garantido por lei ou pelo Estado, os agentes econômicos são pouco estimulados a inovar. O Brasil sofre desse mal, secularmente. Aqui, existe um excesso de proteção. Para usar a palavra mais certa, de protecionismo.
Alexandre - Olhando por uma perspectiva histórica mais ampla, o senhor acredita que estamos vivendo um momento turbulento numa rota de evolução da nossa democracia que um dia nos levará a ser uma sociedade mais meritocrática e inovadora? Ou serà que estamos limitados, por uma questão histórica e cultural, em nossa capacidade de avançar por essa via?
Pastore - Eu não tenho bola de cristal, mas penso que o Brasil chegou a um ponto desafiador. O modelo de proteção pelo Estado não dá mais conta de manter a eficiência da economia. Não há condições de se construir uma economia mais eficiente com esse protecionismo estatal que inibe a inovação, a criatividade, o desempenho, a produtividade e o avanço. Nos últimos 20 ou 30 anos, o mundo disparou. A produtividade da Coreia do Sul, por exemplo, é quase tão alta quanto a da Alemanha. O mundo em desenvolvimento foi convergindo para altos níveis de produ-
O Brasil está vivendo uma crise institucional no que tange aos valores que sustentam as instituições, a Justiça do Trabalho, a legislação do trabalho, a área educacional
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tividade. Nós ficamos estagnados. Se nós não mudarmos os estímulos, para instigar mais criatividade e produtividade, o Brasil não terá muita chance.
Alexandre - Qual é o peso de fatores históricos na relação dos brasileiros com o trabalho?
Pastore - Não há dúvida de que o que acontece hoje tem raízes no passado. O
peso da história é grande. Fomos um país por muito tempo colonizado por um povo extremamente autoritário, que instigava pouco a criatividade. A empresa moderna dá aos empregados as linhas gerais do trabalho. Quem tem de encontrar as soluções são eles. Historicamente, nunca tivemos essa cultura de autonomia. Na escravidão, o senhor definia a tarefa especifica que o escravo tinha de cumprir. Essa raiz histórica vai longe.
Alexandre - Fica a sensação de que uma parcela da nossa cultura nacional é parte oculta do que chamamos de custo Brasil, em termos de competitividade.
Pastore - Concordo.
Alexandre - De onde mais vêm essas crenças e esses valores que Jazem o Brasil ser o país que é hoje?
Pastore - Aqui vou me valer do Sérgio Buarque de Holanda. Temos uma cultura que começou com o espírito da apropriação. Ele teve um aspecto predatório muito grande para o crescimento do país no período do Brasil Colônia. Teve também reflexos na formação da personalidade do brasileiro.
Alexandre - Aproveito sua capacida-
, . •
de de análise: é possível mudar valores
tão arraigados de um povo?
Pastore - Estamos vendo muitos países mudando valores. Em relação
à educação, ao trabalho, à ética pessoal. É o caso da China, da Coreia do Sul, de Israel e de alguns países da América Latina, como o Chile. São
países que estão avançando. Não tenho bola de cristal, mas sei que uma mudança desse tipo só pode dar cer
to se acontecer de baixo para cima. Ou seja, se for induzida da economia
para a sociologia, da infraestrutura material para a superestrutura de valores. Precisamos sofrer mais para entender melhor a necessidade de
concorrer e competir. Na hora em que o país passar por um choque grande, talvez comece a mudar.
Alexandre - O senhor mencionou a
China, que passa por transformações
prefundas. Este exemplo, porém, leva a
uma discussão relevante: como lideran
ças políticas identificadas com valores
meritocráticos e com o aumento da
produtividade, da inovação e da cria
tividade poderiam promover reformas
igualmente profundas num ambiente
democrático, onde não cabe a ideia da
coerção de cima para baixo?
Pastore - No caso da China, que tem um regime autoritário, os governantes perceberam que só podem sobreviver se a economia se desenvolver. Enquanto isso, no Brasil, o governante sabe que a economia só pode crescer e se desenvolver enquanto lhe garantir votos. Para garantir o voto, o governo tem de satisfazer os valores do eleitorado - que são os valores da proteção e do estatismo.
Se você mantém tudo garantido por lei ou pelo Estado, os agentes econômicos são pouco estimulados a inovar. O Brasil sofre desse mal secularmente. Aqui, existe um excesso de proteção
Alexandre - Por essa análise, não há
saída. Se os valores do eleitorado são
de manutenção desse status quo e a
exigência do processo democrático é
atender a esses anseios, não vamos nos
mover, vamos?
Pastore - Esta é uma pergunta angustiante que faço para mim mesmo.
Alexandre - O Brasil é um dos poucos
países, entre as grandes economias, que
têm uma justiça do Trabalho indepen
dente. De algum modo, isso é parte do
problema?
Pastore - É parte sim, mas o Brasil
não é o único. Outros países também têm Justiça do Trabalho, mas a maneira como a nossa opera é bem
peculiar.
Alexandre - Por quê?
Pastore - Porque a nossa Justiça do Trabalho tem poder normativo. Quer dizer, ao dar uma sentença, o juiz tem
a competência de expandi-la para toda uma categoria ou toda uma região. Isso não existe em outras Justiças do Trabalho, até onde eu entendo.
Alexandre - A partir de esforços pon
tuais, como programas de treinamento
de aprendizes do Senai/Senac, e de
casos conhecidos de empresas cha
mando para si a responsabilidade por
melhorar a educação da sua força de
trabalho, como o senhor avalia o papel
da iniciativa pn'vada como indutora de
mudanças?
Pastore - Temos todos os tipos de empresário. Temos os empresários avançados, querendo melhorar o
capital humano do país. Isso é importante não só para as empresas, mas também para o desenvolvimento da nação. Você vê muito empresário que
investe dinheiro próprio em pesquisa e desenvolvimento. Vê empreende
dores que se arriscam bastante, mas ao lado deles está uma grande quantidade de empresários que continuam
querendo o protecionismo governamental. Aqui, você pode incluir até algumas multinacionais, que vêm aqui buscar a proteção do governo.
Alexandre - O que o Brasil tem a
ganhar enfrentando o desafio de uma
transformação cultural pró-meritocra
cia, pró-livre iniciativa, pró-produtivi
dade?
Pastore - O país ganharia mais liberdade, mais competência, melhores condições para concorrer no mercado mundial, empregos melhores, educa
ção de boa qualidade, saúde e segurança como não existem hoje.
Alexandre - E qual será a consequên
cia de manter o rumo atual?
Pastore - Estagnação.
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