As fotografias de Daniel Costa (1973-2000)
apresentadas aqui constituem parte de um conjunto que ele
próprio concebeu como alternância de duas séries – a de
fotografiasdenuvenseade coisasdepequenasdimensões.
Ambas as séries possuem de imediato características
muitomarcadas que as colocam em diálogo ou confronto. À
indeterminação das primeiras contrapõem-se a nitidez e o
rigordadelimitaçãodassegundas.Asnuvensestãoacimada
superfícieterrestre,entreestaeoespaçoinfinito.Constituem
umaespéciedecortinamóveldiantedoenigma.Amobilidadeé
nelasumelementofundamental.Éporqueomovimentovisível
fazpartedoseuserqueasnuvensmudamcontinuamentede
formaperanteaonossoolhar.Pormuitasexplicaçõescientíficas
que tenhamosdos fenômenos atmosféricos, elas continuarão
semprea servistas, imaginadas, comoefeitosde forçasque
escapamaonossocontrole.Acontemplaçãodaformainstável
deumanuvemprovocaemnósosentimentodosublime,pois
sentimosquedoseuprópriointerioroseulimitesetransformae
que,porconseguinte,umanuvemnuncaestáalidisponívelpara
onossoolhar.Damosumnomeaesseoperadordesublimidade:
vento.Então,notamosqueumaforçaquepodecausardesastres
terríveisévitalnanatureza,ondetudosemoveeserelaciona
semquealgumavezpossamoscompreenderesseTudo,deque
fazemosparte.
EscolhEr pEnsar
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Já repararamquemuitasvezes juntoàs
falésiasdaorlamarítimaasgaivotaspassamdeslizando
nabrisasemmexerasasas?Háumaexplicaçãosimples
paraessefenômeno.NãoháéexplicaçãoparaoTudo,
queérelação.Porisso,qualquerexplicaçãonumdado
momentopodefalhar.Ouseja,asnuvens,nasuacondição
mutável,lembram-nosqueomundoéumpermanente
fazeredesfazerdeformas,desentidos,animadopelo
enigmaaquepodemoschamarenergiacriadora,eque
somoslivresdesondar,delonge,comoàsferasquenão
pretendemosdomesticar.
O enigma não tem explicação. Mas
faz parte das aspirações mais elevadas do homem o
proporenigmasqueocelebrem.Aarteradicaaí.Como
manifestação artística, a fotografia debate-se com o
problema da proximidade. O que está ao alcance da
objetiva, como o que está ao alcance da mão ou do
discurso, pode aparecer como “o-que-está-diante-de-
nós”,oobjeto,pordefinição.Ora,talcomoopoetase
servedepalavrasparaacederàdimensãonãoobjetiva
dascoisas,assimofotógrafoseservedaspropriedades
daluzedosdispositivostécnicosqueutilizaparaproduzir
oseuapeloaoquelánãoestá,masé,nadistância–a
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energiaquedáàscoisasasuapresençanãopresente.
Tudo o que nos toca, toca-nos por essa
presençaqueconfereacadacoisaumareservaquea
torna inapropriável. Ela é a única em cadamomento,
porqueúnicoéoseupotencialparafazerpartedeum
tecidoprecárioe frágil aosnossosolhos,masaoqual
podemossuporaconsistênciadoqueinexoravelmentese
transformaporaçãodeapelos,choques,correntes,que
desdeopontomaisdistantechegamatéaliegarantem
omilagredadiversidadedasformas.
Aalternânciaentrefotografiasdenuvens,
emqueasdimensõesegradaçõesdetonsdesafiama
nossacapacidadededarformaestável,efotografiasde
pequenascoisasquesedestacamatravésdocontraste
nítidotemcomoefeitoprincipalodespertardeumsentido
daescala,e,porconseguinte,umarupturadalinearidade
davisão.Decadavezestasetemdeadaptar,passandode
umtipodepercepçãoquesedá,quercomorecordardos
limitesdomensurável,quercomoatualizaçãodetodas
asmemórias do céu que constituem a nossa cultura,
paraumtipodepercepçãomaisdesmunidaemqueà
partidasepercebealgoquenosremeteparaomundo
daspequenascoisas,aquelasdequenãorezaahistória
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porque se supõe definitivamente conquistadas para
omundo sem sobressaltos do quotidiano. Amudança
obriga-nosaparareasentirqueafinalnemtudoestá
ganho.Éesseo júbiloquedecorredanossaatenção:
as nuvens continuam enigmáticas ao exibirem as
múltiplasmaneirasdeseenlaçaremnaluz;aspequenas
coisas não são bemas pequenas coisas,mas aquelas
pequenascoisasaqueonegroconfereumadensidade
desconhecida.Nadaestáaliparanoscaptaroudesfazer,
mas como apelo na distância, como possibilidade de
umacomunicaçãoaquealgunschamamamor,aforça
que “moveo sol e os outros astros”.Comunicaçãode
desconhecidoadesconhecido.
Todasascoisasnanaturezadiferemquanto
àsuamaneiradesernotempo.Háasquepossuemuma
estabilidadequeasretiradocírculodasmetamorfoses
quotidianamente observáveis – as que pertencem ao
reinomineral;asquetêmumavidamuitobreve–uma
flor, umaplanta arrancadaà terra.A fotografia, como
fixaçãodeinstantes,dá-nosimagensondeasdiferentes
velocidades de transformação estão suspensas. Uma
pedra ou uma flor possuem aí o mesmo grau de
imortalidade.Ésobreessacapacidadedepersistircomo
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condiçãofundamentaldetudooqueé,quecadacoisa
podeseraalegriadeumtempopróprio, incomparável
–podeserapenasaintensidadedoseufulgor.Issonos
pede uma atenção à variabilidade das formas e das
memóriasnelainscritas.Podemosverqueháfotosem
quepredominamasmassassólidas,enquantonoutras
encontramos linhas frágeis que, sem deixaremde ser
nítidas,assinalamumcontatocomodesaparecimento,
umadespedida.Amorteeavidasurgemonipresentese
indissociáveis.Emváriasfotos,osindíciosdamortesão
asprovasdavida,osvestígiosdeixadosporumcorpo.É
ocasodosbúzios,queseimpõemcomoformasperfeitas,
mas que, todavia, sabemos terem sido originados na
relaçãocomumcorpo.
Domesmomodo,osorifícioscavadosem
algumas pedras assinalam umamatéria viva que elas
absorveram ao formar-se. A ausência é aí memória
inscrita – não é o nada, é o que forçou a forma, é a
marcadeuma força. Jánoutras fotos sãoospróprios
restos dos corpos que nos aparecem como estruturas
ocultasqueassinalamacontigüidadecomomineral.
Há,assim,umpermanenteremeterpara
as memórias do vivo, através de uma contenção em
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queaimagemdacoisaéumaespéciedehieróglifoem
que se entrelaçamamorte e a vida. Julgoque sóhá
uma exceção a esse jogo, a qual, como tal, se pode
tornarparticularmentesignificativa–afotodospeixes,
queintroduzadimensãodeturbulênciadavidaaoser
preenchida por formas que são signos de pujança e
avidez.
As fotos aqui apresentadas não têm a
pretensãodeprocurarnascoisassentidoshabitualmente
invisíveis,masqueserenderiamàevidênciaperanteo
poderdeumaobjetiva.Oquenostocaquandoasolhamos
épercebermosquenelastudoestádesarmado–atotal
escuridãoemquetudoserecortaéaafirmaçãodeuma
expectativaenãodeumdestino.Osentidonãoestálá,
comoumdepósitoougarantiaprévia;elenãoéanterior
aoolhar,masnascedoolhar.Nãosentimosaquiodisparo
dodispositivotécnicoquepersegueoflagrante.Aquihá
osilênciodequandoocontardotemposeinterrompee
sepropiciaogestodeondenasceosentido–umolhar
deaproximaçãoquerespeitaadistância.Essegestoé
confiançaemsi.Porissomesmoédádiva.
SilvinaRodriguesLopes
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EstecadErno dE lEitura feito peloColetivochão da FEira, foi paginado com a fonteVerdana e papel A4, escolhido paratornar mais simples a impressão, casoela seja feita. O texto, a nosso pedido,foigenerosamentecedidoporsuaautora,tendo sido já publicado, em 2003, pelaRevistaDevires,n.1.Lisboa,Fevereirode2012.
Este é o Caderno de Leituras n. 3.Outras publicações estão disponíveisno site das Edições Chão da Feira.www.chaodafeira.com