EVANILDO BECHARA: DIZER SOBRE A LÍNGUA NAS GRAMÁTICAS E NO JORNAL
Thaís de Araujo da Costa (Doutorado – UFF)Orientadora: Profa. Dra. Vanise Gomes de Medeiros
“A gramática sobrevive ao tempo. Há varianças, mas seu lugar de instrumento político de regulação da prática linguageira permanece.” (Agustini, 2004, p.47).
I. Introdução
Em nossa pesquisa de doutorado, do lugar de encontro entre a História das Ideias
Linguísticas – Sylvain Auroux (2009a/ 2009b), Colombat, Fournier e Puech (2010), Eni P.
Orlandi (2001) e Eduardo Guimarães (2004) – e a Análise de discurso – Michel Pêcheux
([1975]2009) e Eni P. Orlandi (2007c) –, propomo-nos a refletir acerca do funcionamento dos
dizeres sobre língua filiados ao nome de autor Evanildo Bechara. Com esse intuito, tomamos
como objetos de análise diferentes materialidades produzidas sob distintas condições de
produção, a saber: (a) a 1ª. edição da Moderna gramática portuguesa – 1961; (b) a 37ª. edição
da Moderna gramática portuguesa – 1999; (c) a 1ª. edição da Gramática escolar da língua
portuguesa – 2001; e (d) 110 colunas publicadas no jornal O Dia – de 2010 a 2012.
Considerando que Evanildo Bechara é um nome marcante na história do conhecimento
linguístico-gramatical brasileiro, tendo contribuído com uma vasta produção bibliográfica
produzida a partir da sua inscrição em diferentes lugares sociais (Grigoletto, 2008) – tais
como: discípulo de Said Ali, filólogo, gramático, professor de ensino básico, notadamente do
Colégio Pedro II, professor do nível superior na Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
na Universidade Federal Fluminense, autor de manuais e compêndios gramaticais, colunista
do Jornal do Brasil em meados do século XX, colunista do Jornal O Dia no início do século
XXI, membro da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Brasileira de Letras, único
representante brasileiro nas negociações referentes à implementação do Novo Acordo
Ortográfico da língua portuguesa1 etc. –, passou a interessar ao nosso gesto de leitura
investigar os efeitos produzidos a partir da projeção desses distintos lugares em seu dizer,
mais especificamente no que diz respeito à relação estabelecida entre estes e a função-autor, o
imaginário de língua e a forma de gramática/coluna encontrados nos objetos analisados. Neste
1 Na verdade, o brasileiro Antônio Houaiss foi quem participou da idealização e da elaboração do novo Acordo Ortográfico em 1990. Porém, com seu falecimento, quando em 2007 o então presidente do Brasil Luís Inácio Lula da Silva anunciou seu interesse em que esse acordo fosse efetivamente implementado, a Academia Brasileira de Letras indicou Evanildo Bechara para ser o novo representante brasileiro nas negociações com os representantes-membros das delegações dos demais países envolvidos.
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artigo, temos por objetivo apresentar o percurso traçado e as conclusões preliminares a que
chegamos até o presente momento.
Uma vez constituído os nossos corpora, três questões iniciais de imediato se
impuseram, passando a nortear a nossa leitura, quais sejam:
1. Como esses diferentes lugares se fazem significar nos dizeres filiados ao nome de
autor Evanildo Bechara sobre a língua que nestes é posta como portuguesa, isto é, como os
distintos lugares sociais ocupados por Bechara se projetam no discurso sobre essa língua nele
se fazendo significar?;
2. Como distintos instrumentos linguísticos (Auroux, [1992]2009a) produzidos em
diferentes conjunturas a partir de distintos lugares significam e são significados na história
dos estudos linguístico-gramaticais no/do Brasil?;
3. Tendo em vista a sua inscrição como colunista, como o deslocamento do lugar de dizer
sobre a língua da gramática para o jornal produz efeitos em seu dizer?
Assim sendo, num primeiro momento de nossa investigação, julgamos necessário
fundamentar as bases teóricas que sustentam a nossa pesquisa, propondo, a partir do
dispositivo teórico subsidiado pela AD-HIL, alguns deslocamentos necessários para a
interpretação de nossos objetos. É assim que, a partir das reflexões tecidas por Pêcheux
([1975] 2009), Orlandi (2007c) e Grigoletto (2008), temos pensado o duplo efeito de
determinação entre lugar social e prática discursiva e entre lugar discursivo e prática social.
II. Percurso analítico
Considerando que as práticas discursivas determinam os lugares sociais ocupados pelo
sujeito do mesmo modo que as práticas sociais por ele desempenhadas desses lugares se
fazem significar no seu dizer, temos pensado a produção do gesto de autoria procedido pelo
sujeito-gramático ao dizer sobre a língua na sua relação com o efeito de identidade produzido
para o nome do autor a partir da instauração de um processo de designação (Guimarães, 2005)
que ressignifica no cerne de uma sociedade o nome atribuído pela família – Evanildo
Cavalcante Bechara –, constituindo-o enquanto um nome de autor – Evanildo Bechara ou,
simplesmente, Bechara. Nesse ponto, a partir de Foucault (2006), temos pontuado, ainda, o
efeito de dupla determinação entre o nome do autor e os dizeres a ele filiados – aquele produz
sentidos sobre estes, impondo-lhes determinadas leituras, do mesmo modo que estes, isto é, a
leitura a partir deles depreendidas, produzem sentido naquele.
A partir da noção de instrumento linguístico, conforme trabalhada por Auroux (2009a),
Colombat, Fournier e Puech (2010) e Orlandi (2001), tomamos a(s) língua(s) cuja descrição
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se supõe encontrar nas gramáticas e nas colunas como construções imaginárias (línguas
imaginárias, v. Orlandi, 2008a) e temos proposto ainda uma reflexão, mobilizando a noção de
discurso sobre (Orlandi, ibidem) e de acontecimento linguístico (Orlandi, 2001), acerca da
relação entre o gesto de autoria procedido pelo sujeito gramático sob determinadas condições
de produção, a forma de gramática / coluna e o imaginário de língua produzidos quando desse
gesto.
Entendemos que a produção da gramática/coluna e a da língua (imaginária) que nesses
espaços comparece caminham juntas e estão associadas a uma determinada função-autor
(Orlandi, 2007c). Contudo, no que diz respeito às gramáticas, devido ao funcionamento do
discurso sobre, esse processo de produção é apagado, produzindo uma ilusão de completude
do seu dizer sobre a língua que se sustenta e se legitima no que Dias (2001) chama de efeito
de idiomaticidade. A língua significada como idioma de uma nação impõe, conforme o autor,
um imaginário de unidade que, a nosso ver, corrobora o efeito do discurso da gramática
enquanto discurso sobre.
Compreender as gramáticas como da ordem da modalidade do discurso sobre implica,
portanto, considerar que elas falam sobre o seu objeto (a língua) como se dissessem do seu
lugar próprio. Como efeito, esse deslocamento do lugar de onde se fala produz o
silenciamento da heterogeneidade constitutiva da língua brasileira (Orlandi, 2009), de modo
que o discurso gramatical – instituído como A Gramática – passa a funcionar como-se-fosse
(Orlandi, 2008a, p. 44) tudo o que pode ser dito sobre a Língua Portuguesa do Brasil,
apagando-se, para que prevaleça como a interpretação de um lugar ‘universalizado’, a
materialidade das suas condições de produção.
Posta essa relação entre língua, instrumentos linguísticos, discurso sobre e gesto de
autoria, fomos levados a (re)pensar, para melhor compreendermos as condições de produção
em que foi publicada a primeira edição da Moderna gramática portuguesa (MGP), o processo
de historicização do português no/do Brasil instaurado a partir do final do século XIX, mais
especificamente no que diz respeito ao relacionamento entre os processos de gramatização
(Auroux, 2009a) e de disciplinarização (Orlandi, 2008a; Dezerto, 2013) dos conhecimentos
sobre essa língua. Nesse momento, como pontua Orlandi (2002), houve o deslocamento do
lugar de produção do conhecimento sobre a língua nomeada portuguesa de Portugal para o
Brasil, instituindo-se, assim, o lugar de autoria do gramático brasileiro.
Como colocamos inicialmente, as noções de lugar social e discursivo são
fundamentais à análise que nos propomos a depreender. Entendemos lugar social, tal como
propõem Orlandi (2007c) e Grigoletto (2008), como o lugar que ao sujeito é determinado
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ocupar na sociedade, ressaltando que um sujeito pode ocupar mais de um lugar social – o de
gramático, o de colunista, o de linguista etc. Já a noção de lugar discursivo para nós,
diferentemente do que propõe a última autora, diz respeito, no que tange ao gesto de autoria,
ao conjunto de diferentes imagens projetadas no discurso de e a partir de um ou mais de um
lugar social, as quais representam os posicionamentos possíveis de serem assumidos pelos
sujeitos da enunciação. Isto significa dizer que, em nossa reflexão, estamos considerando,
partindo da proposta de Indursky (2006-2008) de fragmentação da forma-sujeito (Pêcheux,
ibidem), que, em uma dada Formação Discursiva (Pêcheux, [1975] 2009), há diferentes
lugares discursivos e que é através destes, mais especificamente, dos posicionamentos neles
comportados, que o sujeito irá se relacionar com a forma-sujeito e, por conseguinte, com a FD
por ela organizada.
É, pois, sob essa perspectiva, que, tomando o que pontua Grigoletto (2008), pensamos
o “duplo efeito de determinação” entre lugar social e prática discursiva e entre lugar
discursivo e prática social. Os diferentes lugares sociais ocupados pelo sujeito produzem
efeito, ao se projetarem no discurso, na prática discursiva do mesmo modo que esta determina
os lugares sociais a serem ocupados pelo sujeito e, portanto, as práticas sociais a estes lugares
veiculadas.
Sendo assim, considerando o fazer gramatical enquanto prática discursiva e levando
em consideração que a gramática produzida no Brasil do final do século XIX até meados do
século XX exercia quatro funções – era um instrumento normativo (tendo em vista que, ao
prescrever determinados usos e proscrever outros, impunha um efeito de imutabilidade à
língua), pedagógico (dado o seu emprego recorrente nas escolas, produzindo o efeito de
homogeneidade linguística), científico (visto que, para produzir conhecimento sobre a língua,
precisavam estar filiadas às teorias em voga na Europa, em especial às de orientação
historicista) e político (uma vez que atuavam ao lado do Estado no processo de
constituição/firmação da identidade nacional) –, consideramos haver nesse período um efeito
de sobreposição entre processo de gramatização e de disciplinarização e, tendo em vista,
como pontuam Medeiros e Pacheco (2009), que é a inscrição do sujeito no lugar de professor
que a esta época institui/legitima a sua prática como gramático, e a sua inscrição no lugar de
gramático, filiado à orientação dita comparativista, que legitima a sua prática enquanto
professor, propomos a designação do lugar de autoria do gramático instituído nesse momento
no Brasil como lugar do gramático-professor.
Pensar o funcionamento da função-autor instaurada nesse primeiro momento da
gramatização/disciplinarização do português do/no Brasil fez-se de extrema importância para
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compreendermos a tensão existente entre a Gramática Expositiva de Eduardo Carlos Pereira,
cuja primeira edição foi publicada em 1907 e a última em 1950, e a primeira edição da
Moderna Gramática Portuguesa de Bechara, isto é, entre as duas formas de autoria nelas
engendradas. Bechara havia sido convidado para adaptar a gramática de Pereira à
Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB), mas quando entregou o primeiro capítulo por
ele (re)formulado, foi reconhecido não como um adaptador, mas como o autor de uma outra
gramática. E isso porque, como propõe Orlandi (2002), neste encontram-se distintos o que em
Pereira não está, ou seja, o lugar de produção de conhecimento sobre a língua e o lugar de
transmissão deste sob a forma de saber da língua.
Com a implementação da NGB e a projeção da chamada ciência linguística no Brasil,
distinguem-se, então, em conformidade com Oralndi (ibidem), o lugar do linguista e o do
gramático, desfazendo-se, assim, a sobreposição entre processo de gramatização e de
disciplinarização que pontuamos anteriormente. A autoridade sobre a produção do
conhecimento linguístico antes da alçada deste é passada para aquele, de modo que às então
chamadas gramáticas normativas passa a não caber mais a produção do conhecimento
científico sobre a língua, mas a didatização desse conhecimento visando à sua transmissão no
ensino.
Desse modo, considerando com Orlandi (ibidem) que a função-autor está
estreitamente relacionada à forma de gramática e à língua que nela comparece, temos
buscado, em nosso gesto de leitura, compreender os efeitos produzidos no dizer do gramático
sobre a língua a partir dos deslocamentos ocorridos em função desses dois acontecimentos.
Mobilizando as noções de acontecimento discursivo (Pêcheux, 2006) e censura
(Orlandi, 2007a), entendemos que a terminologia oficial passa a regular a memória do
discurso gramatical brasileiro, determinando o que (não) pode e (não) deve comparecer no
corpo das gramáticas e restringindo, assim, o gesto de autoria do sujeito gramático, que, para
dizer da língua nesse espaço, é impelido a se identificar aos sentidos pela terminologia oficial
instituídos. Nesse ponto, caracterizamos, ainda, com Baldini (1999), o discurso da NGB como
um discurso fundador (Orlandi, 2003), no sentido em que a partir da reestruturação da
memória do discurso gramatical brasileiro, rompe com determinadas regiões de sentido, as
quais são silenciadas, e elege uma outra, legitimando-a e, com isso, fundando memória. A
NGB, assim, quando da sua significação na história da produção do conhecimento linguístico-
gramatical brasileiro, serve-se do já-dito, para instaurar uma nova ordem de sentidos, a qual, a
partir de então, passa a se colocar como a única memória possível para o discurso gramatical
brasileiro. É, pois, nesse sentido que, temos pensado a aproximação entre o discurso da NGB
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e a tradição gramatical por ela instalada, entendendo tradição, a partir de Colombat, Fournier
e Puech (2010), como o conjunto de técnicas (nomes, sentidos, descrições, modos de dizer
sobre a língua de um determinado lugar num determinado tempo) que se naturalizam como
próprias a uma determinada prática. Nesse sentido, pontuamos ainda que, estando a gramática
brasileira, como propõe Pereira Dias (2012), filiada em sua constituição à gramática clássica e
à gramática portuguesa e também a outras formas de saber sobre a língua, a NGB passa a
funcionar como uma mediadora entre essa memória e o que (não) pode/deve comparecer no
corpo da gramática, tornando-se a própria tradição gramatical, ou seja, uma memória oficial
(Orlandi, 2007b) que se coloca como tudo o que pode ser dito do lugar da gramática sobre a
língua.
Desse modo, considerando que a NGB se significa a partir daquilo que silencia, assim
como pontuamos em nossa dissertação de mestrado (Costa, 2010), entendemos que, embora a
partir da sua implementação tenha sido criada uma nova FD (FD pós-NGB) à qual, por
imposição do interdiscurso no seu funcionamento como pré-construído (Pêcheux, [1975]
2009), os sujeitos gramáticos passam a ter que se filiar, as demais FDs (FDs pré-NGB) por ela
silenciadas continuaram a fazer parte da memória do discurso gramatical brasileiro e nele,
apesar de estarem interditadas, continuaram a produzir sentido. Dada, então, essa necessidade
que se coloca de comparecimento do que impõe a NGB no corpo da gramática, designamos, a
partir do que propõe Baldini (2009), a função-autor que se instaura nesse momento como
lugar do gramático-comentarista.
A noção de comentário, tal como proposta por Foucault (2007), embora coloque como
condição a repetição do mesmo, isto é, no caso das gramáticas pós-NGB, dos sentidos
tornados oficiais, também coloca como possibilidade, nesse movimento de repetição, o
comparecimento de sentidos outros. Assim, tomando como lugar de entrada inicial o prefácio
da primeira edição da MGP, temos buscado depreender como se dá a relação entre o mesmo e
o diferente, entre paráfrase e polissemia no dizer de Bechara sobre a língua. Em nossa análise
do prefácio, tal relação se colocou como uma tensão entre o que é posto como tradição
gramatical e o que se coloca como “modernos estudos da linguagem”. Foi então que,
adotando o trajeto temático (Guilhaumou; Maldidier, 2010) como dispositivo de leitura,
adentramos o corpo da gramática, em busca dos significantes que, filiados a esses dois eixos
temáticos, promoviam a manutenção/(re)atualização dessa tensão. Como têm demonstrado as
análises depreendidas por nós até o presente momento, esta comparece ao longo de toda a
gramática, produzindo efeitos na forma da gramática (no título, na definição da função da
gramática, na organização dos capítulos, na abordagem dos conteúdos etc.) e no imaginário de
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língua que nela comparece.
No que diz respeito à forma de gramática, o dizer sobre a língua desse lugar é
atravessado pelo discurso científico, de modo que depreendemos o que chamamos de um
duplo efeito de ruptura e manutenção. Devido à imposição da NGB, para dizer da língua na
gramática, faz-se preciso romper com os sentidos filiados à tradição gramatical anterior e
filiar-se aos sentidos instituídos/legitimados pelo discurso oficial. No entanto, na primeira
edição da MGP tal imposição é contornada a partir da mobilização do argumento do novo,
compreendido nessas condições como um argumento de cientificidade (Orlandi, 2001-2002).
Aqui é preciso colocar que também a NGB para se instituir lançou mão desse argumento,
mas, ao ser significada na história da produção do conhecimento linguístico-gramatical
brasileiro, ela passou a ser tomada, como temos proposto, como tradição gramatical voltada
principalmente para o ensino.
Assim é que, na primeira edição da gramática de Bechara, instaura-se um segundo
movimento de ruptura, agora em relação ao que é posto como tradição, em prol de uma
abordagem que leve em conta “os modernos estudos da linguagem”. Já no prefácio a análise
dos procedimentos parafrásticos colocou para nós a polissemia que recobre essa expressão,
ora associada, a partir dos nomes linguística americana e estudos fonêmicos, ao chamado
estruturalismo, ora associada, a partir do que se tem por estudos estilísticos e da citação de
nomes de autor como o de Said Ali, aos chamados estudos filológicos.
As análises depreendidas até aqui têm sugerido que a tensão entre o que se coloca
como modernos estudos da linguagem e o que se coloca como tradição no prefácio é retomada
na definição de gramática como arte e ciência e se faz significar não só a partir do
comparecimento de termos não instituídos/previstos pela NGB e em capítulos teóricos em que
são mobilizados nomes de autores filiados à chamada linguística moderna, mas também no
corpo da gramática, quando após uma regra, comparece um comentário em que se legitima a
transgressão dessa regra.
Assim sendo, parecem distinguirem-se, na forma de gramática da primeira edição da
MGP capítulos estritamente teóricos e capítulos normativos, em que por vezes comparece um
comentário teórico. Naqueles a diferença comparece no corpo da gramática a partir da filiação
a sentidos filiados ao discurso que se coloca como científico. Nestes a diferença comparece à
margem das regras em observações e notas de rodapé, isto é, à margem do dizer oficial.
No que concerne ao imaginário de língua que comparece na primeira MGP,
depreendemos nesse lugar de dizer sobre a língua (lugar do gramático-comentarista) duas
posições-distintas. A primeira, filiada ao lugar do português que fala sobre a sua língua,
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comparece em três lugares: (1) na seção em que se define o que se entende por língua,
produzindo um imaginário de língua portuguesa como instrumento que serve a diferentes
povos – Portugal, Brasil e colônias ultramarinas – e que nos foi deixada pelos portugueses
como “traço de civilização”, como “patrimônio cultural”; (2) nas seções que dissemos serem
mais teóricas, associadas a um posicionamento dito purista sobre a língua, em que o que se
coloca como falar dos brasileiros é significado como da ordem do erro; e (3) nas seções
prescritivas no lugar da norma, da regra.
A segunda, filiada a um lugar do brasileiro que fala sobre a sua língua, comparece em
dois lugares: (1) nas seções teóricas, produzindo um efeito de distinção, embora ainda a partir
de um imaginário de unidade linguística entre Brasil e Portugal, entre o que é posto como
pronúncia brasileira e pronúncia lusitana, as quais são significadas como possibilidades
estético-expressivas; e (2) nas seções prescritivas como comentários à margem das regras.
Em nossa reflexão, temos proposto que a primeira posição, filiada ao lugar do
português e atribuída ao que se tem por A Gramática, materializa, ainda, o posicionamento do
que, no prefácio da primeira edição da MGP chama-se de “tradição secular” e a qual dissemos
ser mediada pelo discurso da NGB. A segunda posição, diferentemente, lançando mão da
legitimidade que lhe é atribuída pelo argumento de cientificidade, estaria filiada ao que se tem
como linguística moderna, a qual, como dissemos, diz respeito tanto aos sentidos que se
colocam no Brasil com a assunção da chamada ciência linguística, como aos sentidos
silenciados pelo discurso da terminologia oficial.
III. Conclusões preliminares e perspectivas de análise
Para Orlandi (2002), a relação com a chamada ciência Linguística se materializa na
primeira edição da MGP a partir das citações de linguistas estrangeiros reconhecidos, como
Sapir, Malberg, Bally, entre outros. Para nós, como temos depreendido em nossas análises,
além dos linguistas estrangeiros, comparecem também citações de linguistas brasileiros, como
Mattoso Câmara Jr e, a partir do que chamamos de deslocamentos dos sentidos filiados ao
domínio da filologia para o da linguística, Said Ali, Martinz Aguiar, entre outros. Essa rede de
filiações que se estabelece na gramática de Bechara a partir do mecanismo de citação, a nosso
ver, não só reafirma e legitima o lugar dessa ciência enquanto detentora da autoridade sobre a
produção do conhecimento linguístico, bem como a sua função enquanto patrocinadora do
saber do gramático, constituindo-se como um modo de resistência à imposição do discurso
oficial, como também produz uma fissura na forma da gramática a partir da oscilação entre
seções teóricas e prescritivas, em que se alterna a predominância de posições ora mais
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identificadas à forma-sujeito que organiza a formação discursiva instituída com a NGB, ora
dela mais distante, ou, ainda, pelo funcionamento do interdiscurso como discurso transverso
(Pêcheux, [1975] 2009), ora filiadas a outras formações discursivas, como ocorre quando são
mobilizados dizeres filiados à chamada linguística moderna, na sua relação com distintas
formas de saber.
Publicada num período de interpretação (Baldini, 2009) dos sentidos chamados
oficiais e, portanto, de transição de uma forma de autoria para a outra, a primeira edição da
MGP traz a diferença na sua materialidade. É, pois, nesse sentido que entendemos que a
função-autor engendrada na primeira edição da MGP, bem como a constituição do nome de
autor Evanildo Bechara, é atravessada por diferentes dizeres sobre a língua. Essa
heterogeneidade, no entanto, é silenciada pelo efeito de harmonia entre as partes (Dias, 2001)
produzido a partir do gesto de interpretação do sujeito ao se significar como autor. Silenciam-
se assim as diversidades recobertas pelos nomes tradição e linguística moderna, arte e ciência,
bem como, ao trazer via discurso da estilística para o corpo gramatical o que com Agustini
(2004) chamamos de desvios estéticos-expressivos, a diversidade na língua e das línguas
presentes no espaço de enunciação brasileiro (Guimarães, 2005), projetando, com isso, a
ilusão de completude (Dias, op. cit.) do dizer da gramática sobre a língua. Contudo, apesar
desse silenciamento, acreditamos, como estamos tentando comprovar em nossa investigação,
que a heterogeneidade constitutiva da língua, da gramática e do sujeito-gramático faz-se
significar de diferentes modos no dizer do gramático sobre a língua.
A partir dos resultados alcançados nesse esboço inicial de análise, passamos a
(re)pensar os demais objetos que constituem os nossos corpora. De acordo com Dias e
Bezerra (2006, p. 15), na 37ª. edição da MGP houve “uma substancial modificação, guiada
por orientações advindas da linguística moderna”, que promoveu o rompimento com aquilo
que era tido como o “padrão tradicional de gramática”. Já Pereira Dias (2009) assinala a
existência nesta edição em relação à primeira de uma tensão presente na capa/contracapa entre
o mesmo (nome do autor – Evanildo Bechara –; título do compêndio – Moderna Gramática
Portuguesa; movimento das (re)edições – da 1ª. à 37ª.) e o diferente (subtítulo – Curso médio
e Edição Revista e ampliada –; editora – Nacional e Lucerna –; outra cidade – São Paulo e
Rio de Janeiro).
O efeito de mesmo nos parece ser corroborado ainda pelo comparecimento na 37ª dos
prefácios referentes a essas duas edições. No prefácio da 37ª, apaga-se a referência à NGB e
afirma-se tratar-se de um “livro novo”, amadurecido pela “leitura atenta dos teóricos da
linguagem”. Esse efeito de amadurecimento é significado, posteriormente, como atualização e
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enriquecimento: “atualização no plano teórico da descrição do idioma e enriquecimento por
trazer à discussão e à orientação normativa a maior soma possível de fatos gramaticais”
(Bechara, 1999, p. 19), o que nos faz pressupor que ainda há nessa edição o atravessamento
entre saber descritivo e normativo. Tal pressuposição é corroborada pela citação, já no
prefácio, de determinados nomes de autores. Ao lado dos nomes mobilizados na primeira
edição (notadamente Said Ali e Mattoso Câmara Jr.), outros comparecem, tais como: Mário
Barreto, Epifânio Dias, Herculano de Carvalho e Eugênio Coseriu – os dois primeiros,
significados como “melhores estudiosos de língua portuguesa”, o terceiro como “ilustre
colega de reflexão linguística” do quarto, e o quarto, “teórico profundo e admirado”. A partir
da citação desses nomes, coloca-se, ainda, uma situação de aparente manutenção da relação
estabelecida, na primeira edição da MGP, entre os estudos desenvolvidos no Brasil pré-NGB e
os estudos filiados à chamada ciência linguística.
Além disso, na 37ª. o espaço de circulação da gramática não é colocado, apenas se diz
que ela é destinada aos colegas do magistérios e pesquisa, alunos (De onde? Da escola? Da
universidade?) e público estudioso de língua portuguesa. No prefácio da Gramática escolar
(2001), no entanto, coloca-se que esta se destina à atividade do professor e ao preparo dos
alunos das últimas séries do ensino fundamental e de todo o ensino médio, por isso nela, em
nome do que se toma por “boa didática”, oferece-se “ao leitor o maior número de
informações”, acompanhado de partes expositivas e inúmeros exercícios. Há ainda nesse
prefácio a atribuição de um sentido de falta à Gramática escolar a partir da sugestão ao leitor
de que consulte a Moderna gramática caso sinta a necessidade de se aprofundar em algum
assunto.
A especificação do público e do espaço de circulação da Gramática escolar, bem
como a sugestão de consulta à MGP e a inclusão de colegas de pesquisa no prefácio da 37ª
edição desta, a nosso ver, diz o que no prefácio da 37ª. não é dito, isto é, que esta edição não é
voltada para o ensino básico, mas para o superior, tendo como local de circulação as
universidades e não as escolas.
Diante disso, impuseram-se novas questões à leitura que ainda pretendemos
desenvolver: 1) se, como tem sugerido a nossa análise, por encontrar-se num período de
transição em que ainda se distinguiam os saberes filiados ao lugar da gramática e ao lugar da
linguística e por ser voltada para o ensino na instituição escolar, a primeira edição da MGP
tem uma estrutura cindida pelos sentidos inscritos nessas duas formas de saber, como se faz
significar na 37ª o atravessamento entre esses dois lugares, uma vez que esta diferentemente
daquela não sofre (ou pelo menos não deveria sofrer) determinação do discurso da NGB?; 2)
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O que significa na 37ª. edição da Moderna estudos linguísticos?; 3) Como nela se articulam
os estudos brasileiros pré-NGB e aqueles que são filiados à ciência linguística tal como
formulada a partir do século XX?; 4) o que se coloca como estudos normativos e onde eles
comparecem?; e 5) Quais os efeitos produzidos no dizer do gramático na 37ª. edição a partir
do deslocamento do local de circulação da escola para a universidade?
Em outras palavras, na continuação desta pesquisa, pretendemos investigar a forma de
relação estabelecida entre função-autor, forma de gramática e imaginário de língua presente
na 37ª. edição e na Gramática escolar, pensando ainda como se dá o comparecimento de
sentidos filiados ao que se coloca como da ordem do científico e do normativo. Uma vez que
a 37ª. edição não tem por finalidade o ensino na instituição escolar, pressupomos que a
função-autor nela engendrada distingue-se daquela que comparece na primeira edição em
função da aparente não determinação pelo discurso da NGB. Quanto à Gramática escolar, a
investigação buscará depreender até que ponto há manutenção/ruptura entre o que se diz sobre
a língua nas outras gramáticas e o que nela comparece, analisando também os efeitos da
imposição dos sentidos instituídos pela NGB quarenta anos após a sua implementação.
Por fim, no que tange às colunas, além da depreensão do funcionamento desses
espaços de se dizer sobre a língua no jornal e da sua relação com o discurso gramatical, isto é,
dos efeitos produzidos a partir do deslocamento do lugar de se dizer sobre a língua da
gramática para o jornal, interessa-nos ainda investigar especificamente os efeitos produzidos
pelo imaginário de língua que nesses espaços é significada não mais como patrimônio cultural
que nos foi deixado por Portugal, mas, aparentemente em conformidade com o imaginário
que sustenta e é sustentado pela CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa)
(Branco, 2013), como “patrimônio político e cultural compartilhado entre nações”.
REFERÊNCIAS
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