MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERALDivisão da Tutela Coletiva – São Paulo
3.º Ofício – Ordem Econômica e Consumidor
EXCELENTÍSSIMO SENHOR DOUTOR JUIZ DA 25.ª VARA CÍVEL FEDERAL
DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO – SP
O MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL, pelo Procurador
da República signatário, vem respeitosamente à presença de Vossa Excelência,
com fulcro nos artigos 127; 129, III, ambos da Constituição Federal; art. 6.º, XIV,
“b”, da Lei Complementar n.º 75/93 e nos artigos 1.º a 5.º da Lei n.º 7.347/85,
propor a presente
AÇÃO CIVIL PÚBLICA
pelos fatos e fundamentos a seguir expostos, em face
das empresas
GLOBO COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES
LTDA., pessoa jurídica de direito privado, inscrita no Cadastro Nacional de
Pessoas Jurídicas sob o n.º 27.865.757/0021-48, com sede na Estrada dos
Bandeirantes, 6700, Rio de Janeiro – RJ, sucessora da EDITORA GLOBO S/A;
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GLOBOSAT PROGRAMADORA LTDA., pessoa jurídica
de direito privado, inscrita no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas sob o n.º
00.811.990/0001-48, com sede na Rua Itapiru, 1209, Rio de Janeiro – RJ;
e
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, empresa pública
federal instituída pelo Decreto-Lei n.º 759 de 1969 e com Estatuto Social aprovado
pelo Decreto n.º 2.943/1999, inscrita no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas
sob o n.º 00.360.305/0001-04, com sede no SBS, Quadra 4, Bloco A, Lote n.º 34,
Brasília, DF.
1) Dos fatos
Em 18 de abril de 2006 foi recebida pelo Ministério
Público Federal noticia jornalística, encaminhada pela Exma. Procuradora da
República Dra. Cristina Marelim Vianna, abordando a realização de promoção
comercial na qual haveria o sorteio de prêmios, amplamente divulgados pela mídia
televisiva.
Aproveitando-se da realização da Copa do Mundo de
futebol em 2006, as empresas EDITORA GLOBO S/A (posteriormente incorporada
pela GLOBO COMUNICAÇÕES E PARTICIPAÇÕES LTDA.) e GLOBOSAT
PROGRAMADORA iniciaram, em abril daquele ano, a realização da promoção
comercial “Seleção do Faustão”, denominação utilizada em virtude do fato de que
o apresentador de televisão Fausto Silva “sorteava” os prêmios a serem
distribuídos dentre os participantes da promoção, prêmios estes que eram
exaustivamente noticiados na programação da emissora TV GLOBO LTDA.,
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pertencente ao mesmo grupo econômico das empresas organizadoras da
campanha promocional.
Para participar de tal promoção, cujo regulamento
consta a fls. 11-29 do Volume I do Procedimento n.º 1.34.001.002542/2006-77,
que acompanha a presente inicial, o interessado deveria enviar uma mensagem de
texto (SMS), por meio de seu aparelho de telefonia móvel, para sua respectiva
operadora, respondendo à pergunta “quantas vezes a Seleção Brasileira foi
campeã da Copa do Mundo?”.
A mencionada ligação tinha o custo de R$ 4,00, não
contabilizados os impostos que também eram arcados pelo participante. Em
contraprestação, este recebia um “pacote” com dez “notícias” e “curiosidades”
referentes ao Mundial de 2006. Tais notícias eram, em tese, enviadas ao
adquirente nos sete dias seguintes à compra dos intitulados boletins informativos,
via SMS, sendo permitida a aquisição de apenas um “pacote de notícias” por
semana.
A aquisição de tal pacote, juntamente com o envio da
resposta correta à pergunta acima referida, permitia ao interessado participar dos
sorteios de diversas premiações, ocorridos no abrangente período de 16 de abril a
09 de julho de 2006, fato este que era noticiado ao participante simultaneamente
ao recebimento da primeira “notícia” / “curiosidade”. Juridicamente, a fixação de
tal pergunta foi feita apenas para adequar a operação aos ditames da Lei n.º
5.768/71, enquadrando-a na modalidade “assemelhada a concurso”. Com efeito, o
“concurso” ocorreria por meio do teste dos conhecimentos do participante, que
seria “avaliado” por meio da pergunta acima referida, sendo o prêmio distribuído,
teoricamente, ao ganhador do “concurso”. Como a pergunta direcionada ao público
é de ridículo grau de dificuldade, propiciando que a (quase) totalidade dos
participantes a acerte, o desempate necessário à definição do ganhador do prêmio
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faz-se por meio de sorteio aleatório, através dos cupons referentes à cada
participação.
Para cada SMS enviado para a aquisição do “boletim de
notícias”, as empresas responsáveis pela promoção se comprometiam a emitir um
cupom físico, contendo o número da linha de telefonia móvel da qual partiu a
mensagem de texto enviado, o nome da operadora de telefonia correspondente à
mencionada linha e a resposta, bastante óbvia, à pergunta “quantas vezes a
Seleção Brasileira foi campeã da Copa do Mundo?”, sendo os referidos cupons
impressos diariamente e armazenados. Faria jus aos prêmios noticiados o titular
da linha móvel cujo cupom tenha sido sorteado, desde que a resposta à pergunta
acima referida se encontrasse correta.
Conforme noticiado no respectivo regulamento, a
promoção “Seleção do Faustão” previu a distribuição de 2006 (dois mil e seis)
prêmios, no valor total de R$ 12.008.211,00, sendo tais premiações especificadas
a fls. 13-14 do Volume I do procedimento investigatório promovido pelo parquet
federal. Em regra, o sorteio dos contemplados era realizado diariamente, às 9h00,
sendo os nomes dos participantes sorteados divulgados no sítio virtual das
empresas promotoras em até cinco dias úteis. No período de 8 de junho a 9 de
julho de 2006, os sorteios diários eram transmitidos parcialmente na programação
da TV GLOBO durante o mesmo dia do sorteio e naquele imediatamente posterior.
O êxito comercial de tal promoção pode ser vislumbrado
pelas informações prestadas ao Ministério Público Federal por uma das empresas
promotoras – a GLOBOSAT PROGRAMADORA LTDA., a qual informou, a fl. 144 do
Volume I do procedimento do MPF, que a receita líqüida por ela auferida em
virtude da promoção “Seleção do Faustão” foi de R$ 500.000,00. Destaca-se que
esse valor parte da declaração unilateral por parte da empresa promotora,
podendo ser, em verdade, maior (registre-se que a própria GLOBOSAT declarou à
imprensa, por ocasião do início da promoção in commento, que a empresa não
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esperava auferir lucro com a promoção realizada – fl. 7 do volume I da
representação promovida pelo parquet). Não se deve olvidar, por outro lado, que
este valor não abrange a receita líqüida auferida pela outra empresa participante
da promoção, a TV GLOBO LTDA..
Segundo a GLOBOSAT, durante a promoção “Seleção
do Faustão” foram recebidas validamente 28.625.250 mensagens de texto (fl. 144,
volume I), sendo impressos, portanto, igual número de cupons, que concorreram
aos dois mil e seis prêmios sorteados pelas empresas promotoras.
Tendo em vista que a promoção realizada incluir-se-ia
no âmbito de incidência da Lei n.º 5.768/71, a qual disciplina a distribuição
gratuita de prêmios mediante sorteio, concurso e gêneros similares, as empresas
organizadoras solicitaram a devida autorização da Caixa Econômica Federal – CEF,
a qual é o órgão público competente para a concessão de autorização para a
realização de promoções que visem à distribuição gratuita de prêmios.
Por essa razão, foi instaurado, no âmbito da referida
empresa pública federal, o procedimento administrativo n.º 90104.000168/06-81,
o qual autorizou – indevidamente, conforme se verá adiante – a realização da
promoção “Seleção do Faustão”.
Cópia de tal procedimento instrui a presente exordial.
Inicialmente, o pedido de autorização formulado pelas
empresas promotoras não foi acompanhado de todos os documentos exigidos pela
CEF, razão pela qual esta determinou a regularização do pedido formulado (fl. 49 –
apenso I). A fls. 100-101 do mesmo volume consta ata de reunião realizada entre
representante das empresas promotoras e da CEF em 23/6/2006, no qual foi dita
por preposto desta última que não havia “amparo legal para a autorização de
promoções baseadas em 'produto oportunista' como o produto referido no
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processo em questão, um 'boletim de noticias' sobre a copa do mundo, composto
apenas de uma notícia, ao valor de R$ 4,00”.
Tentando contornar tal constatação, a qual inviabilizaria
a promoção pretendida, a representante da TV GLOBO presente à reunião aduziu
que o produto a ser divulgado por meio da “Seleção do Faustão” seria boletim com
dez notícias “exclusivas” sobre a Copa do Mundo de 2006, bem como sobre as
anteriores. Na mesma reunião foram detectadas outras irregularidades no plano
de operação da promoção in commento, como a forma de escolha dos cupons
sorteados. Advertida de tal irregularidade, a representante da TV GLOBO
expressamente declarou que iria ignorar tal pendência, alegando que a sistemática
dos sorteios não poderia ser modificada naquele momento.
Apesar de serem identificadas irregularidades como
aquelas acima descritas, parte das quais já poderia ser identificada quando da
entrega do plano de operação por parte das empresas organizadoras, a promoção
“Seleção do Faustão” foi autorizada, a título precário, por meio do Certificado de
Autorização CAIXA n.º 6-0189/2006, expedido em 7 de abril daquele ano (fl. 282-
285 – apenso I), não tendo sido suspensa em nenhum momento.
Já iniciada a promoção, a CEF requereu, em 19 de abril
de 2006 – quando já iniciada a promoção - a realização de ajuste por parte das
empresas promotoras, uma vez que a divulgação desta enfocava tão-somente o
fato de que o envio de mensagem SMS para determinado número possibilitaria ao
interessado concorrer aos prêmios noticiados, sendo que o recebimento de
“notícias / curiosidades” sobre a Copa do Mundo estava sendo tratado de modo
secundário, como mero acessório, quando na verdade sua divulgação deveria ser o
objeto principal da campanha promocional autorizada pela Caixa Econômica
Federal (fls. 328-329 – apenso I).
Tal prática fez com que a CEF reconhecesse o
descumprimento do plano de operação aprovado, motivo pelo qual determinou a
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imediata paralisação da divulgação da promoção da maneira como ela estava
ocorrendo (fl. 331- apenso I). Resposta da GLOBOSAT (fls. 333-335 – apenso I)
justificou a publicidade que estava sendo feita sobre a promoção sob o argumento
de que, por ser tecnologia nova, as peças publicitárias deveriam se dedicar sobre o
correto envio das mensagens de SMS. Alegou-se, outrossim, que a publicidade
sobre a promoção “Seleção do Faustão” estava sendo feita em chamadas, as quais
se dedicavam individualmente a determinado aspecto da campanha promocional,
sendo que por esse motivo não haveria uma ênfase no produto divulgado em
todas as chamadas televisivas acerca da promoção.
Não obstante a infundada justificativa dada pela
GLOBO, a promoção prosseguiu, sendo que, em 21 de junho de 2006, nova
comunicação foi feita às empresas promotoras, a fim de que estas divulgassem
corretamente para os consumidores a maneira como o sorteio dos prêmios era
realizado, sendo que, pela publicidade realizada, transmitia-se a impressão de que
os sorteios eram promovidos no momento da divulgação do contemplado, o que
não correspondia ao procedimento efetivamente adotado pelas empresas
organizadoras (fls. 420-421, apenso I).
Tal determinação foi reiterada por meio do Ofício n.º
2218/GEPCO, em 4 de julho de 2006, conforme se constata pelo documento
encaminhado ao parquet pela CEF, constante a fl. 174, vol. 1. As alterações
implementadas pelas empresas promotoras da campanha “Seleção do Faustão”
não foram julgadas suficientes pela empresa pública federal, a qual, por essa
razão, fixou em face delas multa no valor de R$ 360.246,00. As empresas
promotoras interpuseram recurso administrativo em face da decisão que cominou
tal penalidade, sendo que a decisão administrativa definitiva no âmbito de tal
litígio não foi prolatada até o momento do ajuizamento da presente ação.
Tendo o parquet federal, após o recebimento da
denúncia que ensejou a instauração do procedimento investigativo n.º
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1.34.001.002542/2006-77, diligenciado no sentido de apurar a existência de
irregularidades no âmbito da referida promoção comercial realizada pelas
empresas GLOBOSAT PROGRAMADORA LTDA. e EDITORA GLOBO S/A, e aprovada
pela CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, houve a constatação de que tal evento foi
promovido e aprovado de maneira ilícita, por contrariar os dispositivos legais que
regem a realização de sorteios por particulares, presentes no âmbito da Lei n.º
5.768/71, sobre a qual se tratará adiante.
2) Observações Preliminares
2.1) Da competência da Justiça Federal e da Conexão com Ação Popular
fundada na mesma causa de pedir (Autos n.º 2006.61.00.014005-6)
A autorização e a fiscalização das promoções comerciais
realizadas por instituições não-financeiras, de acordo com o que dispõe o art. 18-
B, parágrafo primeiro, da Medida Provisória n.º 2.216-37 de 31/8/2001,
conservado ex vi do art. 27, § 9.º da Lei n.º 10.683/2003, são de atribuição da
Caixa Econômica Federal. Desta forma, é esta empresa pública federal que possui
o dever legal de atuar, desde o momento em que é apresentado o pedido de
autorização para se proceder à campanha publicitária de distribuição gratuita de
prêmios, até a prestação de contas referentes a este.
Sendo a CEF a entidade responsável pela aprovação da
realização da promoção in commento, conforme o Certificado de Autorização
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CAIXA n.º 6-0189/2006, sendo tal ato administrativo autorizador irregular, em
virtude da sua incompatibilidade com a disciplina legal instituída pela Lei n.º
5.768/71, conforme pormenorizadamente se verá adiante, tem-se justificada a
legitimidade passiva da referida empresa pública federal, cuja presença na
presente relação jurídico-processual enseja a fixação da competência da Justiça
Federal para o processamento e julgamento da presente demanda, com fulcro no
art. 109, I, da Constituição Federal.
Ademais, no que concerne à competência territorial,
cabe a apreciação da lide ao Juízo da Subseção Judiciária de São Paulo, levando-se
em conta que, embora o dano seja difuso e atinja toda a população brasileira, fica
consagrada a regra firmada pelo parágrafo 2.º do artigo 109 da Carta Magna:
“Art. 109. (...)
......................................................................
.
§ 2º - As causas intentadas contra a União
poderão ser aforadas na seção judiciária em que for domiciliado o autor,
naquela onde houver ocorrido o ato ou fato que deu origem à demanda
ou onde esteja situada a coisa, ou, ainda, no Distrito Federal.”
Por outro lado, faz-se necessária a distribuição da
presente ação civil pública à 25.ª Vara Cível da Subseção Judiciária em São Paulo
por força do disposto no art. 103 do Código de Processo Civil, o qual trata da
conexão. Com efeito, em 28 de junho de 2006 foi ajuizada ação popular pelo Sr.
Luiz Nogueira, o qual, com base nos mesmos fatos descritos nesta exordial,
relacionados à promoção “Seleção do Faustão”, requereu à época a suspensão da
referida operação, bem como a declaração de sua nulidade. À total identidade
entre as causas de pedir de ambas as ações se alia a identidade parcial entre os
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pedidos formulados na referida ação popular e na presente ação civil pública, além
da identidade parcial entre as partes inseridas no pólo passivo das duas
demandas, quais sejam, a CAIXA ECONÔMICA FEDERAL, bem como as empresas
GLOBO COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES LTDA. e GLOBOSAT
PROGRAMADORA LTDA..
2.2) Da legitimidade ativa do Ministério Público Federal
Impõe-se a presença do Ministério Público Federal no
pólo ativo do presente feito, tendo em vista tratar-se de matéria cuja legislação,
regulamentação e fiscalização competem à União Federal.
Por definição apresentada pelo artigo 127 da
Constituição Federal de 1988, é o Ministério Público órgão indispensável à
atividade jurisdicional do Estado, cabendo a ele zelar pela defesa da ordem
jurídica, pelo regime democrático e pelos interesses sociais e individuais
indisponíveis. Tal escopo se encontra inserido entre as funções institucionais do
órgão ministerial elencadas no artigo 129 da Carta Magna, o qual, no seu inciso
III, atribui ao parquet a atribuição de:
“Art. 129. (...)
III - promover o inquérito civil e a ação civil
pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio
ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”
Dentre os outros interesses difusos e coletivos a que
faz alusão o texto constitucional, insere-se o bem jurídico referente à ordem
econômica, expressamente prevista no inciso V do art. 1.º da Lei n.º 7.347/85
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como interesse cuja violação enseja a propositura de ação civil pública para
responsabilização pelos danos materiais e morais a ele causados.
Para propor a ação a que aqui se alude, dispõe a Lei n.º
7.347/85 sobre os órgãos que estão legitimados a fazê-lo, acompanhando a
Constituição Federal, de forma expressa, ao também atribuir a função ao órgão
ministerial, conforme está expressamente previsto no art. 5.º do referido diploma
legal.
3) Da incompatibilidade entre a promoção “Seleção do Faustão” e o
disposto na Lei n.º 5.768/91 e no Decreto n.º 70.951/72:
O inciso XX do art. 22 da Constituição Federal prevê ser
de competência privativa da União Federal a criação de normas jurídicas sobre
sistemas de sorteios, estando até mesmo os Estados e Municípios afastados, prima
facie, da possibilidade de legislarem sobre a instituição de loterias e outras
modalidades de sorteio.
Se tal capacidade é, em princípio, negada até mesmo
aos Estados-Membros, desnecessário dizer que a iniciativa para a realização de
sorteios por particulares deve se revelar extremamente restrita, sendo possível
apenas nas hipóteses em que a lei federal expressamente autorizá-la, uma vez
que tais iniciativas causam grande repercussão na ordem econômica, em razão do
elevado montante de dinheiro que é absorvido da coletividade.
Para refrear o resultado nocivo que tal prática produz na
ordem econômica (uma vez que o dinheiro despendido com a participação em tais
sorteios poderia ser empregado para o fomento da economia, por meio da
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realização de investimentos, aquisição de bens ou contratação de serviços), o
legislador sancionou a atividade de exploração ilegal de loterias na esfera criminal
e restringiu a realização de sorteios por parte de particulares aos casos
estritamente previstos em lei.
Neste momento, é oportuna a menção ao entendimento
do Min. Eros Grau, em voto prolatado perante o Egrégio Tribunal:
“A Constituição do Brasil determina
expressamente que compete à União legislar sobre sistemas de
consórcios e sorteios. A exploração de loterias constitui ilícito penal. Nos
termos do disposto no art. 22, inciso I, da Constituição, lei que opera a
migração dessa atividade do campo da ilicitude para o campo da licitude
é de competência privativa da União." (ADI 2.948, Rel. Min. Eros Grau,
D.J. 13.05.05 - sublinhamos).
A disciplina da realização de sorteios por particulares é
feita pela Lei n.º 5.768/71, que por sua vez é complementada pelo disposto no
Decreto n.º 70.951/72. Tais diplomas legais versam tão-somente sobre a
distribuição gratuita de prêmios a título de propaganda, ou seja, a utilização
de sorteios, vales-brinde, concurso ou operação assemelhada para impulsionar a
aquisição de determinado produto, disponível no mercado (art. 1.º), consistindo,
destarte, em uma operação de marketing utilizável por pessoas jurídicas que
exerçam atividade comercial, industrial ou de compra e venda de bens imóveis
(art. 2.º).
No caso da promoção “Seleção do Faustão”, realizada
pelas rés EDITORA GLOBO e GLOBOSAT PROGRAMADORA, verifica-se que os
sorteios realizados não foram dotados de gratuidade, nem serviram para fins de
dar publicidade a qualquer produto.
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Com efeito, a ausência de gratuidade se infere
facilmente, na medida em que, para participar da promoção in commento, o
interessado deveria adquirir onerosamente, com o custo de R$ 4,00, um pacote
com dez notícias e curiosidades acerca da Copa do Mundo de 2006, a serem
recebidas por meio de mensagens SMS em um período de sete dias.
Ademais, a ausência de correlação entre a
promoção e a publicidade de qualquer produto também se revela nítida, uma
vez que a aquisição de tal pacote de notícias/curiosidades nada mais era do que o
único meio pelo qual o interessado poderia concorrer aos prêmios exaustivamente
noticiados na mídia. Se o consumidor adquiria tal pacote, tal fazia por ser esse o
único meio de concorrer aos 2006 (dois mil e seis) prêmios sorteados pelas
empresas organizadoras.
No bojo do artigo jornalístico de fl. 8 (volume I)
encontram-se alguns exemplos de tais notícias/curiosidades, as quais eram
enviadas ao adquirente. Exemplificativamente, este recebia em seu celular
mensagens com informações semelhantes a “O alemão Emil Bilard, 57, motorista
da seleção, sonha com revanche na final entre Brasil e Alemanha”, ou “Parreira
não tem preferência por adversário nas oitavas de final. Pode ser Itália, Gana, R.
Tcheca ou Estados Unidos”.
Diante do risível “nível informativo” de tais notícias,
torna-se impossível aceitar que o consumidor se dispusesse a pagar R$ 4,00 para
receber uma dezena de mensagens desse teor, sendo tal preço manifestamente
alto, se comparado ao padrão das informações fornecidas ao consumidor, ainda
mais em uma sociedade como a contemporânea, onde as informações sobre um
evento de proporções globais, como o é a Copa do Mundo, possui acesso
extremamente facilitado, seja pela televisão, seja pelos jornais, seja pela internet,
meios de comunicação geralmente disponíveis para alguém que utiliza um
aparelho de telefonia móvel.
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Desse modo, embora o produto a ser teoricamente
divulgado por meio da promoção “Seleção do Faustão” fosse tal pacote de
notícias/curiosidades, bastante óbvio se revela que o consumidor não
desembolsaria R$ 4,00 para que se lhe fornecesse mensagens de tal quilate, mas
sim para concorrer à enorme quantidade de prêmios sorteados pelas empresas
organizadoras, os quais eram amplamente divulgados nos meios de comunicação,
inclusive em meio televisivo, conforme se atesta pela verificação das peças
publicitárias e sorteios constantes na fita VHS juntada a fl. 96 do volume I do
procedimento instaurado pelo órgão ministerial.
Diante do fato de que a divulgação do mencionado
“pacote de notícias/curiosidades” serviu apenas de escusa para o sorteio oneroso
de prêmios por parte das empresas organizadoras, verifica-se que a promoção
“Seleção do Faustão” não possuía qualquer idoneidade para ser realizada sob a
égide da Lei n.º 5.768/71, por se distanciar tanto da gratuidade quanto do escopo
publicitário, ambos elementos sem os quais a ordem jurídica não admite a
realização de sorteios por parte da iniciativa privada.
Dito isso, constata-se que a promoção sobre a qual ora
se versa também viola o disposto no art. 11, III, do Decreto n.º 70.951/72, o qual
prevê:
“Art. 11. Não serão autorizados os planos que:
......................................................................
.
III - Permitam ao interessado transformar a
autorização em processo de exploração dos sorteios, concursos ou
vales-brindes, como fonte de receita”
Conforme já explanado, a promoção “Seleção do
Faustão” não foi realizada com a finalidade de divulgar determinado produto
colocado à venda no mercado, que é a única permitida pelo disposto na Lei n.º
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5.768/71, uma vez que o que deveria ser o produto em questão, ou seja, o pacote
de notícias sobre a Copa do Mundo de 2006, consistia sobremaneira em um meio
oneroso de o interessado ter acesso à disputa pelos prêmios já referidos, não
consistindo ele, por si só e independentemente do sorteio promocional, um item de
interesse para o mercado consumidor.
Destarte, não se vislumbrando a existência de um
escopo publicitário que deveria permear sua realização (na medida em que não
houve a preocupação efetiva com a divulgação de qualquer produto, mas apenas
com o sorteio dos prêmios alardeados), infere-se que a promoção executada teve
apenas o intuito de que as rés auferissem receitas mediante o recebimento do
preço que deveria ter como contraprestação o pacote informativo, no valor de R$
4,00 cada, ou seja, a promoção não passou de um mecanismo que possibilitou à
GLOBOSAT PROGRAMADORA LTDA. e à EDITORA GLOBO S/A explorar os sorteios
realizados com intuito de auferir receitas, nos exatos termos da vedação contida
no inciso III do art. 11 do Decreto n.º 70.951/71.
4) Dos efeitos jurídicos das ilegalidades constatadas no âmbito da
promoção “Jogada da Sorte”:
O art. 4.º da Lei n.º 5.768/71 dispõe:
“Art. 4.º. Nenhuma pessoa física ou jurídica
poderá distribuir ou prometer distribuir prêmios mediante sorteios,
vale-brinde, concursos ou operações assemelhadas, fora dos casos e
condições previstos nesta lei, exceto quando tais operações tiverem
origem em sorteios organizados por instituições declaradas de utilidade
pública em virtude de lei e que se dediquem exclusivamente a
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atividades filantrópicas, com fim de obter recursos adicionais
necessários à manutenção ou custeio de obra social a que se dedicam”
(sublinhamos).
Por sua vez, o art. 8.º do Decreto n.º 70.951/72 prevê:
“Art. 8.º. Fora dos casos e condições previstas em
lei especial, neste Regulamento e em atos que o complementarem,
nenhuma pessoa, jurídica ou natural, poderá distribuir ou prometer
distribuir prêmios mediante sorteio, vale-brinde, concurso ou operação
assemelhada”.
Conseqüentemente, necessário o reconhecimento da
ilegalidade de toda distribuição de prêmios, promovida por particulares, que fuja à
disciplina dada pelos dois diplomas legais acima referidos. Conforme já se
demonstrou, a promoção “Seleção do Faustão” infringiu em diversos aspectos a
disciplina imposta pelo legislador a tais atividades, motivo pelo qual se revelam
plenamente cabíveis tanto a aplicação das sanções previstas na própria Lei n.º
5.768/71 (art. 12, inciso I c/c parágrafo único, e art. 13), quanto a pretensão de
que as empresas que figuram como rés no bojo da presente ação promovam o
integral ressarcimento das receitas por elas percebidas em virtude da realização
ilegal da mencionada promoção, uma vez que tal percepção, feita ao arrepio da lei,
configura flagrante hipótese de enriquecimento ilícito por parte da GLOBOSAT
PROGRAMADORA LTDA. e da EDITORA GLOBO S/A, as quais, às custas da
poupança popular e em violação à legislação que regula a distribuição de prêmios
por particulares, auferiram vultuosas quantias por meio da venda de pacotes de
notícias que condicionavam a participação dos interessados na promoção “Seleção
do Faustão”.
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5) Da subsunção dos atos praticados pelas co-rés ao disposto nos arts.
art. 12, I, e art. 13, da Lei n.º 5.768/71:
A própria Lei n.º 5.768/71 estabelece, em seus arts. 12
e 13, as penalidades que devem recair sobre as pessoas que realizarem as
atividades nela disciplinadas sem prévia autorização ou em desacordo com as
normas jurídicas que tratam da matéria. No que tange especificamente ao caso
ora em comentário, referente à realização, por particulares, de promoções
comerciais nas quais haja distribuição de prêmios por sorteios, vales-brinde,
concurso ou operação assemelhada, o referido diploma legal dispõe da seguinte
maneira:
“Art. 12. A realização de operações regidas por
esta Lei, sem prévia autorização, sujeita os infratores às seguintes
sanções, aplicáveis separada ou cumulativamente:
I - no caso de que trata o art. 1.º:
a) multa de até cem por cento da soma dos
valores dos bens prometidos como prêmios;
b) proibição de realizar tais operações durante o
prazo de até dois anos;
......................................................................
.
Parágrafo único. Incorre, também, nas sanções
previstas neste artigo quem, em desacordo com as normas aplicáveis,
prometer publicamente realizar operações regidas por esta Lei.
Art. 13. A empresa autorizada a realizar operações
previstas no art. 1º, que não cumprir o plano de distribuição de prêmios
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ou desvirtuar a finalidade da operação, fica sujeita, separada ou
cumulativamente, às seguintes sanções:
I - cassação da autorização;
II - proibição de realizar tais operações durante o
prazo de até dois anos;
III - multa de até cem por cento da soma dos
valores dos bens prometidos como prêmio”.
No presente caso, tendo em vista que as empresas
promotoras obtiveram da Caixa Econômica Federal autorização para a realização
da promoção “Seleção do Faustão” (como bem demonstra o processo
administrativo n.º 90104.000168/06-81, que consta em anexo à presente
exordial), sendo essa empresa pública federal o ente competente para autorizar
tais atividades (art. 18-B, parágrafo primeiro, da Medida Provisória n.º 2.216-37
de 31/8/2001 c/c art. 27, § 9.º da Lei n.º 10.683/2003), constata-se que as
empresas inseridas no pólo passivo da presente ação civil pública não incidem nas
sanções previstas nas alíneas do art. 12 da Lei n.º 5.768/71 em decorrência da
violação do caput do mencionado dispositivo.
Todavia, uma vez que o parágrafo único do referido
artigo prevê que nas mesmas penalidades incorre quem, “em desacordo com as
normas aplicáveis, prometer publicamente realizar operações regidas por esta Lei”,
cristalina se torna a incidência de tais sanções às empresas rés.
Com efeito, as empresas organizadoras da promoção
não apenas prometeram realizar a referida promoção, como efetivamente
executaram-na, sem embargos de todas as violações existentes em face da
legislação vigente. Desnecessário discorrer acerca da ostensiva promessa pública,
feita pelas rés, no sentido de promover a promoção “Seleção do Faustão” – tal se
evidencia tanto pela comercialização dos pacotes de notícias sobre o Mundial de
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2006, cuja diminuta atratividade econômica já foi aqui evidenciada, quanto pela
ostensiva publicidade televisiva que as empresas promotoras realizaram acerca
dessa campanha promocional, que culminou na realização de sorteios diários,
transmitidos pela televisão em rede nacional durante longo período.
Levando em consideração as irregularidades cometidas
pelas rés na execução da promoção ora em comentário, configurando plurais
violações ao dispostos na Lei n.º 5.768/71 e no Decreto n.º 70.951/72, à outra
conclusão não se pode chegar, que não a de que a GLOBOSAT PROGRAMADORA
LTDA. e a GLOBO COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES LTDA. devem submeter-se
às sanções previstas nas alíneas do inciso I do art. 12 da Lei n.º 5.768/71, ex vi
do disposto no parágrafo único do mesmo dispositivo.
Ainda que, ad argumentandum tantum, não se
reconhecesse a aplicabilidade de tais penalidades às rés por força do mencionado
art. 12, as mesmas teriam plena incidência em decorrência do que dispõe o art. 13
da Lei n.º 5.768/71.
Com efeito, enunciando esse dispositivo que as sanções
equivalentes à proibição de realizar tais operações durante o prazo de até dois
anos (inciso II) e à cominação de multa de até cem por cento da soma dos valores
dos bens prometidos como prêmio (inciso III) são imputáveis às empresas
autorizadas que desvirtuem a finalidade da operação, clara também se revela a
subsunção dos atos praticados pelas rés às prescrições legais que implicam na
aplicação de tais penalidades.
Esse desvio de finalidade se evidencia na medida em
que, conforme já explanado, as empresas rés acabaram por se utilizar da
promoção “Seleção do Faustão” como meio de auferir receitas pela venda de
fascículos que continham cupons que possibilitavam aos seus adquirentes
participar de sorteios de prêmios em mercadorias e em barras de ouro, e não para
promover a divulgação de determinado produto posto no mercado, o que
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corresponde à mens legis contida na Lei n.º 5.768/71 e no seu decreto
regulamentar. A outra conclusão não pode se chegar, ainda mais em se
considerando a vultuosa receita líqüida auferida pela GLOBOSAT PROGRAMADORA
LTDA. em decorrência da programação, conforme já mencionado.
Conforme já foi exposto, o pacote de notícias em
formato SMS oferecido ao público não continha, por si só, conteúdo que pudesse
interessar ao mercado consumidor, motivo pelo qual as peças publicitárias
referentes à campanha promocional ocuparam-se apenas em divulgar os prêmios
que seriam sorteados no decorrer da promoção. O único atrativo de tal mercadoria
consistia justamente no fato de que sua aquisição dava ensejo a que seu
adquirente concorresse às premiações sorteadas diariamente.
Destarte, patente se mostra o desvio de finalidade
ocorrido no âmbito da promoção “Seleção do Faustão”, o que configura, portanto,
razão adicional pela qual se deve imputar à GLOBOSAT PROGRAMADORA LTDA. e
à EDITORA GLOBO S/A as penalidades correspondentes à proibição de realizar
operações de distribuição gratuita de prêmios na forma da lei pelo prazo de até
dois anos e à cominação de multa de até cem por cento da soma dos valores dos
bens prometidos como prêmio, além da aplicação da pena prevista no inciso I do
art. 13 da Lei n.º 5.768/71, referente à “cassação da autorização” dada pela
entidade administrativa competente para a realização da promoção irregular em
razão de desvio de finalidade, pelo prazo de dois anos.
5) Do enriquecimento ilícito das rés e da obrigação jurídica de ressarcir o
montante indevidamente auferido em decorrência da promoção
ilegalmente realizada
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LIMONGI FRANÇA1 leciona que o enriquecimento ilícito
(enriquecimento sem causa) corresponde ao “acréscimo de bens que se verifica no
patrimônio de um sujeito, em detrimento de outrem, sem que para isso tenha
havido um fundamento jurídico”.
Assim, para a sua configuração, necessário que se
reúnam quatro requisitos, aferíveis pela leitura do caput do art. 884 do Código
Civil, quais sejam: 1) enriquecimento real por parte de alguém; 2) existência real
de prejuízo para outrem; 3) ausência de fundamento jurídico válido para o
enriquecimento ocorrido; 4) nexo causal entre o enriquecimento havido por uma
parte e o prejuízo sofrido pela outra.
Saliente-se, todavia, que, ao contrário do que parcela
considerável da doutrina e da jurisprudência inadvertidamente considera, o
enriquecimento ilícito/indevido não necessariamente implica no empobrecimento
de outrem. Conforme bem salienta o Enunciado n.º 35 da I Jornada de Estudos
Jurídicos promovida pelo Conselho da Justiça Federal, “a expressão ‘enriquecer às
custas de outrem’ não significa, necessariamente, que deverá haver
empobrecimento”.
Com efeito, para que se configure o enriquecimento
ilícito basta que este ocorra em prejuízo de outrem, ou seja, que o locupletamento
ocorrido coloque outra pessoa em situação desfavorável, inexistindo na situação
concreta fundamento jurídico para tanto.
No presente caso, evidente se mostra o enriquecimento
das empresas organizadoras em virtude da realização da promoção “Seleção do
Faustão”, uma vez que, como foi revelado por uma das empresas organizadoras, o
lucro advindo de tal promoção correspondeu a elevado montante.
1 LIMONGI FRANÇA, Rubens. Enriquecimento sem causa. In “Enciclopédia Jurídica Saraiva”, vol. 32. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 210.
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Sobejamente já se falou, por sua vez, acerca do caráter
ilícito da percepção de tal montante por parte das rés. Basta mencionar que, caso
as referidas empresas houvessem realizado a promoção in commento nos estritos
termos da lei, o montante acima mencionado não teria sido arrecadado,
permanecendo ele em poder das centenas de milhares de pessoas que adquiriram
onerosamente o incipiente pacote de notícias comercializado pelas rés. Vale dizer,
o montante percebido pela venda de 28.625.250 pacotes de notícia só foi auferido
em decorrência das graves e plurais violações ao disposto na Lei n.º 5.768/71 e no
Decreto n.º 70.951/72.
Uma vez demonstradas a existência de um
enriquecimento patrimonial por parte das rés, cujo valor deverá ser
adequadamente apurado em fase de liqüidação, bem como a ausência de
fundamento jurídico que o justificasse, necessário se abordar a questão do
prejuízo havido como consectário do locupletamento ilícito ocorrido por parte das
empresas que figuram no pólo ativo da presente ação civil pública.
Esse prejuízo assume dois aspectos, ambos decorrentes
do enriquecimento indevido por parte das empresas organizadoras.
Em primeiro lugar, fácil é perceber que tal
locupletamento ocorreu em prejuízo da própria ordem econômica, uma vez
considerado o elevado montante de dinheiro que foi captado pelas rés em razão da
realização ilegal da promoção “Seleção do Faustão”, sendo que tal quantia poderia,
como já foi dito em momento anterior, ter sido empregada, por aqueles que a
despenderam com a aquisição onerosa dos pacotes de notícia, de outro modo que
não pela prática de jogos de azar, podendo essa quantia ter sido utilizada para,
v.g., a aquisição de bens de consumo, contratação de serviços, constituição de
investimentos, etc..
Num panorama mais abstrato, mas igualmente de fácil
aferição, o prejuízo à ordem econômica é verificado em razão da própria violação
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das normas contidas na Lei n.º 5.768/71 e no Decreto n.º 70.951/72, que fixam
regras para a proteção da poupança popular, por meio da disciplina da distribuição
gratuita de prêmios à título de propaganda. Uma vez que a promoção realizada
pelas rés contrariou frontalmente essa disciplina legal, ofendendo a regra que tão-
somente admite a gratuidade, quando da realização de campanhas promocionais
nas quais ocorre distribuição de prêmios, tem-se verificada outra face do prejuízo
causado à ordem econômica pelo locupletamento indevido das rés.
Outrossim, é necessário reconhecer que o
enriquecimento ilícito ocorrido em favor da GLOBOSAT PROGRAMADORA LTDA. e
da EDITORA GLOBO S/A acarretou em prejuízo para as empresas que ocupam o
posto de concorrentes de ambas as rés. Tal se explica uma vez que as empresas
que figuram no pólo passivo da presente ação, ao infringir as disposições da Lei
n.º 5.768/71 e do Decreto n.º 70.951/72, aproveitaram-se de tais irregularidades
para angariar recursos vedados por lei. Uma vez que as outras empresas que
atuam no mercado editorial e televisivo não fizeram – por observância aos
regramentos contidos na legislação pátria – campanhas promocionais da mesma
índole daquela ilicitamente promovida pelas rés, tem-se outra faceta do prejuízo
causado pelo locupletamento ilícito das empresas organizadoras.
Desse modo, restando demonstrada a existência de um
enriquecimento indevido por parte das rés, ocorrido sem o devido fundamento de
direito e em prejuízo à poupança popular (bem jurídico inserido na própria idéia de
ordem econômica), plenamente demonstrada se revela a necessidade de que as
empresas rés sejam condenadas a restituir todo o montante indevidamente
auferido, por força do disposto no art. 884 do Código Civil.
6) Da responsabilidade da CAIXA ECONÔMICA FEDERAL pela aprovação da
promoção “Seleção do Faustão”
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Se por um lado as empresas GLOBOSAT
PROGRAMADORA LTDA. e EDITORA GLOBO S/A são diretamente responsáveis pela
prática de atos atentórios à disciplina jurídica estabelecida para a distribuição
gratuita de prêmios, prevista na Lei n.º 5.768/71 e no Decreto n.º 70.951/71, por
outro lado à CEF deve ser imputada a responsabilidade por aprovar a realização da
promoção “Seleção do Faustão” sem a observância das regras legalmente
estabelecidas, dentre as quais a exigência de gratuidade, cuja existência constitui
conditio sine qua non para a realização de sorteio de prêmios por entidades
privadas não-beneficientes.
Com efeito, por ocasião da realização da promoção, a
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL já possuía condições sobejas para constatar que a
promoção “Seleção do Faustão”, tal como arquitetada, estava servindo apenas
como forma de as empresas promotoras auferirem lucros, mediante o
condicionamento da compra de produto de valor econômico irrisório por preço
significativo (R$ 4,00) para a participação nos sorteios de prêmios.
Não é por outro motivo que, em 23 de junho de 2006,
foi realizada reunião – já mencionada alhures – entre representantes da CEF e das
empresas promotoras, sendo que nesta foi reconhecido, por representante da
empresa pública federal, que “não há amparo legal para a autorização de
promoções baseadas em 'produto oportunista' como o produto referido no
processo em questão, um boletim de notícias' sobre a copa do mundo, composto
apenas de uma notícia, ao valor de R$ 4,00”.
Em resposta a tal advertência, a representante das
organizadoras alegou apenas que, na verdade, o boletim era composto de dez
notícias, e não de apenas uma, como foi mencionado. Tal alegação, obviamente,
não elide a veracidade da afirmação feita pela CEF, na medida em que, como já
analisado, a mediocridade do produto oferecido pelas empresas, confrontada com
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o valor desproporcional a ele atesta por si só o fato de que a aquisição do boletim
de notícias servia apenas de requisito (oneroso) para a participação no sorteio dos
dois mil e seis prêmios noticiados pela promoção “Seleção do Faustão”, o que
configura total desvirtuamento da disciplina trazida pela Lei n.º 5.768/71.
Todavia, apesar de detectada tal irregularidade, e
reconhecida a sua ilegalidade, a CEF quedou inerte, omitindo-se na tomada de
providências para impedir o prosseguimento da promoção fraudulentamente
promovida pela GLOBOSAT e pela EDITORA GLOBO. Ignorando a realidade,
aceitou a surreal idéia de que o pacote de notícias já reiteradamente mencionado
seria um “produto” apto a atrair o mercado consumidor, e que o sorteio de mais
de dois milhares de prêmios seria, tão-somente, um meio de “promover” a venda
desse produto.
Tanto é que o assunto não foi mais mencionado pela
CEF, no decorrer do processo administrativo referente a tal promoção. Como já foi
dito, limitou-se ela a determinar que as organizadoras enfatizassem, nas suas
peças publicitárias, não o sorteio de prêmios, mas sim o “produto” comercializado,
como se este possuísse qualquer autonomia econômica.
Posteriormente, nova advertência foi feita às empresas,
agora no que tange às irregularidades detectadas na forma como a realização dos
sorteios de prêmios era divulgada aos público em geral. Entendendo que tal
irregularidade não foi contornada, foi fixada pela CEF a multa já referida, cuja
exigibilidade ainda depende de julgamento definitivo do respectivo processo
administrativo, não havendo qualquer providência, por parte da empresa pública
federal, no sentido de impor às empresas organizadoras sanções em decorrência
da ausência de gratuidade da distribuição de prêmios, bem como da ausência de
correlação entre a promoção realizada e a divulgação de qualquer produto.
Desse modo, impende reconhecer que a Caixa
Econômica Federal descumpriu seu dever legal (art. 18-B da Lei n.º 9649/98, com
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redação dada pela Medida Provisória n.º 2.216-37/2001) de fiscalizar e aplicar as
sanções correspondentes, quanto às atividades previstas na Lei n.º 5.768/71.
Caso cumprisse sua missão institucional, a CEF, analisado o plano de operação
apresentado pelas empresas organizadoras, deveria rejeitá-lo ou, ao menos,
reconhecer posteriormente os vícios intrínsecos à promoção realizada e decretar a
nulidade da autorização anteriormente outorgada, cominando às empresas
responsáveis as sanções legalmente previstas.
7) Dos pedidos
Por todo o exposto, o Ministério Público Federal requer
seja a presente ação julgada procedente, postulando-se desde já:
1. A declaração da nulidade do Certificado de Autorização CAIXA n.º 6-
0189/2006, o qual deferiu a realização da promoção “Seleção do Faustão”, à
revelia das regras previstas na Lei n.º 7.568/71 c/c Decreto n.º 70.951/72;
2. A condenação das rés GLOBOSAT PROGRAMADORA LTDA. e GLOBO
COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES LTDA. a promover o ressarcimento do
valor ilicitamente auferido em virtude da realização da promoção “Seleção
do Faustão”, o qual deve corresponder à receita líqüida auferida em razão
de tal evento, montante a ser determinado em posterior fase de liquidação;
3. A condenação das rés acima referidas à proibição de realizar as promoções
de que trata a Lei n.º 5.768/71 durante o prazo de dois anos, ex vi do art.
12, I, “b” e art. 13, II, do referido diploma legal;
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4. A condenação das rés acima referidas ao pagamento de multa, no montante
de 100% (cem por cento) do valor total da premiação, nos termos dos art.
12, I, “a” e art. 13, III, da Lei 5.768/71, em montante equivalente a R$
12.008.211,00 (doze milhões, oito mil, duzentos e onze reais).
5. A condenação da ré CAIXA ECONÔMICA FEDERAL à obrigação de não
autorizar planos de operação de distribuição gratuita de prêmios na hipótese
em que a inviabilidade econômica do produto ou a visível incompatibilidade
entre seu valor econômico e o preço a ele cominado, ou qualquer outro
fator, implicar na constatação de que ela está sendo realizada exclusiva ou
primordialmente como forma de auferir receitas por meio da realização de
sorteios de prêmios, desvirtuando a sua finalidade de divulgação de
determinado produto posto no mercado.
6. A condenação da ré CAIXA ECONÔMICA FEDERAL adotar as providências
necessárias para o cumprimento das providências requeridas nos itens “1” e
“3” acima, referentes à decretação da nulidade da autorização concedida às
demais rés, bem como à vedação de que estas realizem promoções nos dois
anos seguintes ao reconhecimento da procedência da presente ação.
Por fim, requer-se:
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1. a citação da Rés, na pessoa de seus representantes legais, postulando-se
desde já a expedição de carta precatória para a Seção Judiciária do Rio de
Janeiro, para fins de promover a citação das rés GLOBOSAT PROGRAMADORA
LTDA. e GLOBO COMUNICAÇÃO E PARTICIPAÇÕES LTDA.;
2. juntada dos autos da Representação MPF/SP n.º 1.34.001.002542/2006-77;
Protesta o Ministério Público Federal provar o alegado
por todos os meios de prova em direito admitidos, especialmente por meio de
prova documental e pericial.
Para fins de alçada. dá-se à causa o valor de R$
12.008.211,00 (doze milhões, oito mil, duzentos e onze reais).
São Paulo, 27 de novembro de 2007.
LUIZ FERNANDO GASPAR COSTA
Procurador da República
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