PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSO
PSICANÁLISE E LINGUAGEM: UMA OUTRA PSICOPATOLOGIA
FANTASIA E GOZO: UM RECORTE POSSÍVEL NO DIAGNÓSTICO DIFERENCIAL ENTRE A PSICOSE E A PERVERSÃO
JÚLIA ZENNI DE CARVALHO GUERREIRO
Orientadora: Sandra Dias
Monografia apresentada como parte dos requisitos para o certificado de Especialização
São Paulo
2008
DEDICATÓRIA
Ao meu amor,
próximo ou distante...mas sempre por perto.
JÚLIA ZENNI DE CARVALHO GUERREIRO: Fantasia e gozo: um recorte possível no
diagnóstico diferencial entre a psicose e a perversão. 2008
Orientadora: Sandra Dias
Palavras-chave: fantasia, gozo, psicose, perversão
RESUMO
O presente trabalho objetiva caracterizar a psicose e a perversão como estruturas
clínicas constituídas a partir da posição do sujeito diante da falta. O estudo faz um percurso
nas obras de Freud e Lacan, apresentando suas contribuições acerca da construção do conceito
de fantasia e gozo, respectivamente no primeiro e segundo capítulos. A terceira parte do
trabalho compreende uma apresentação a respeito da caracterização estrutural da psicose,
seguida, no capítulo seguinte, pela discussão com relação à perversão. A última seção
desenvolve a idéia de uma articulação possível entre a fantasia e o gozo como elementos
importantes e essenciais na configuração do diagnóstico diferencial entre as duas estruturas
trabalhadas anteriormente: a psicose e a perversão.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ------------------------------------------------------------------------------------- 01
1 – Fantasia: de Freud a Lacan -------------------------------------------------------- 04
1.1 – As Primeiras noções 04
1.2 – A Grande virada 12
1.3 – Os Acréscimos de Lacan 15
1.4 – A teoria da sedução e seus desdobramentos 21
1.5 - Últimas observações 23
2 – Gozo: de Freud a Lacan -------------------------------------------------------------- 31
2.1 – Os termos Wunsch e Lust 31
2.2 – O Gozo em Freud 33
2.2.1 As contribuições de “Além do Princípio do Prazer” (1920) 34
2.3 – Do Indizível ao submetimento à Lei do desejo 47
2.4 – O gozo fálico e o Outro gozo 52
3– Sobre a Psicose ----------------------------------------------------------- 54
3.1 – Primeiras notas 54
3.2 – A forclusão do significante e o fenômeno psicótico 59
3.3 – A psicose e o objeto a 65
3.4 – Últimas observações 68
4- Sobre a Perversão 72
4.1 - Primeiras considerações 72
4.2 - As contribuições de “Uma lembrança de infância de Leonardo da Vinci”(1910) 73
4.3 - A Verleugnung como resposta 75
4.4 - Acerca da perversão 80
5- Fantasia e gozo: possibilidades no diagnóstico diferencial 88
5.1 – Retorno à pulsão 88
5.2 - Real, fantasia e objeto a 89
5.3 - Acerca da psicose 92
5.4 - As contribuições de “Bate-se uma criança”(1919) 101
5.5 - Acerca da perversão 107
5.6 - As contribuições de “Kant com Sade”(1998) 112
PALAVRAS FINAIS ------------------------------------------------------------------------------------- 122
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS -------------------------------------------------------- 126
O presente trabalho é fruto de indagações e questionamentos surgidos a partir de um
caso trabalhado em supervisão. Trata-se de um atendimento realizado, por um período de,
aproximadamente, um ano por uma colega da equipe. Diante do relato do caso, buscava-se
sempre recortar cenas importantes da vida deste sujeito. Mediante algumas passagens ao ato e
sua posição na cena fantasmática, inferia-se sua posição subjetiva diante o desejo do Outro e,
assim, a configuração de sua estrutura clínica. Se tratava de uma psicose ou de uma
perversão?
Outro motivo presente na construção deste trabalho, é a pequena quantidade de
trabalhos que levam em consideração uma aproximação entre a psicose e a perversão.
Normalmente, o que se discute muito são as relações entre a neurose e a perversão, sendo esta
última uma estrutura clínica que desvela o que se encontra velado na primeira. Além disso,
não se pode deixar de mencionar o trabalho de Freud (1905) – “Os três ensaios sobre a teoria
da sexualidade”- em que o autor aproxima essas duas posições clínicas e afirma que a
neurose é o negativo da perversão. Com Lacan, será possível inverter isso, ao afirmar a
perversão como a positivação da neurose (Braunstein, 2007).
Desta maneira, o trabalho foi desenvolvido no intuito de apresentar elementos
importantes na discussão do diagnóstico diferencial entre a psicose e a perversão.
O primeiro capítulo traz a construção do conceito de fantasia em Freud. Inicialmente,
Freud não consegue diferenciar fantasia, recordação e devaneio. Esses termos ficam confusos
e indiferenciados, sem muito critério em suas utilizações. É bem verdade que ele, antes de
1919 – “Bate-se numa criança”- , não tem instrumentos que viabilizem uma distinção
considerável entre esses termos. Este artigo será de suma importância na discussão, aqui,
proposta. Em seguida, faz-se uma apresentação da noção de fantasia em Lacan. A construção
da fórmula $ ◊ a será mencionada e discutida naquilo que é relevante para compreender como
as estruturas clínicas estão posicionadas na fórmula, assim como o posicionamento do sujeito
diante da falta e do desejo do Outro.
2
O segundo capítulo retoma as noções de gozo em Freud e Lacan. É importante
marcar que apesar de conceber a noção de compulsão a repetição e nomear a pulsão de morte,
Freud não operacionalizou o gozo. Trata-se de um conceito do qual se tem indícios em alguns
casos clínicos descritos por Freud. O texto “Além do princípio do prazer” (1920) será
bastante discutido, devido sua importante contribuição na construção metapsicológica
freudiana. Ao ser retomado por Lacan, a partir da leitura dos trabalhos de Freud, o conceito
de gozo será operacionalizado; será diferenciado do desejo. O gozo estaria, assim, do lado da
Coisa, enquanto o desejo, do lado do Outro, vindo do Outro primordial.
A partir disso, o capítulo seguinte se propõe discutir o campo das psicoses. Retoma-
se alguns textos freudianos e delineia as construções posteriores advindas com Lacan.
Trabalha-se o fenômeno psicótico, suas produções delirantes e manifestações. A questão
central suscitada é a rejeição, a falta de um significante primordial que marca a estrutura da
psicose. A Verwerfung do Nome-do-Pai traz conseqüências graves ao sujeito. Diante de um
buraco, de uma falha na simbolização, o sujeito encontra-se em apuros quando demandado a
responder deste lugar. É isso que é retomado nos acontecimentos desencadeantes de uma
crise.
À perversão, foi dedicado o capítulo quatro do presente trabalho. Discute-se, neste
momento, as contribuições freudianas acerca da constituição da estrutura perversa. Alguns
textos, como “Leonardo da Vinci: uma lembrança de sua infância”(1910), “A divisão do Ego
no Processo de Defesa”(1938), “O Fetichismo”(1927) foram levados em consideração nesta
empreitada. Obviamente, não poderia deixar de constar, neste capítulo, as importantes e
fundamentais contribuições trazidas por Lacan. A Verleugnung – como mecanismo de defesa
perverso, a construção do fetiche e a transformação do desejo em vontade de gozo, constituem
alguns pontos da apresentação. Apesar de ser um texto de suma relevância, optou-se por
reservar a discussão de “Kant com Sade” (1998) para o último capítulo, tendo em vista suas
contribuições acerca da noção de objeto, além do posicionamento do sujeito frente ao gozo e
ao desejo.
Por fim, o último capítulo traz as colaborações lacanianas, tomando como referência-
primeira o artigo “Kant com Sade” (1998), conforme anteriormente mencionado. Nesta
última parte, almejou-se aproximar os ensinamentos lacanianos da clínica, a fim de viabilizar
uma configuração diagnóstica diferencial entre a psicose e a perversão. Para tal, utilizou-se
duas matrizes: a fantasia e o gozo; ambas noções muito trabalhadas e incansavelmente
3
discutidas por Lacan. Foi possível articular essas “categorias” ao posicionamento do sujeito
frente à castração. Ou seja, a partir deste trabalho, chegou-se a conclusão da viabilidade de
vislumbrar a estrutura clínica, a partir do posicionamento do sujeito na fantasia e em sua
relação com o gozo. Não cabe adiantar que divergências se dão, nesta relação, entre a psicose
e a perversão. Será construído, passo a passo, as marcas e os vestígios desta distinção. É
possível apenas dizer que é viável essa diferenciação diagnóstica, utilizando como referência
o viés do gozo e da fantasia. Estes elementos trazem consigo o posicionamento do sujeito no
campo do Outro; peça fundamental na estruturação e constituição do sujeito.
De uma certa maneira, o que se propôs neste trabalho foi uma discussão inicial a
respeito do tema da psicose e da perversão. É claro que esta produção não contempla todas as
considerações relevantes a este respeito. Limitou-se a alguns conceitos principais e
fundamentais para uma primeira tentativa de se colocar a perversão e psicose frente a frente.
Tem-se conhecimento de como este campo é vasto e complexo. Trata-se apenas de um ponta-
pé inicial para futuras discussões e aprofundamentos.
4
Fantasia1: de Freud a Lacan
(...) o significante, a partir do momento em que é introduzido, tem, fundamentalmente, um valor duplo. De que
modo se sente o sujeito, afetado como desejo pelo significante, na medida em que é ele que é abolido, e não o outro
que detém o chicote imaginário e, é claro, significante? Como desejo, ele se sente escorado naquilo que como tal o
consagra e o valoriza, ao mesmo tempo que o profana. Há sempre, na fantasia masoquista, uma faceta degradante
e profanadora, que indica ao mesmo tempo a dimensão do reconhecimento e o modo de relação proibido do sujeito
com o sujeito paterno. É isso que constitui o fundo da parte desconhecida da fantasia (Lacan, 1957-58, p. 255).
1.1 As Primeiras Noções
Desde seus momentos iniciais, pode-se dizer que Freud se ocupou das fantasias. É
bem verdade que nos primórdios de seu pensamento, Freud não tinha idéia da importância
que estas teriam para suas construções analíticas.
O termo Phantasie, em alemão, é utilizado para designar o mundo imaginário, as
imaginações e as próprias fantasias.
É interessante notar como a noção de fantasia vai sendo implementada na teoria
freudiana, juntamente com suas contribuições na formulação de uma metapsicologia; que
servem de apoio para o entendimento dos processos psíquicos e estruturais do sujeito.
1 É bem conhecida a discussão que há com relação à utilização dos termos e a tradução que melhor cabe para dar conta das questões que a mesma traz. Adverte-se que o objetivo do dado trabalho não é fazer uma discussão aprofundada sobre as questões terminológicas e os efeitos de tradução, mas sim discutir e tentar alcançar como a fantasia ou o fantasma podem estar articulados com a estrutura clínica do sujeito; além do mais, como ela/ele podem contribuir nas peculiaridades de um diagnóstico diferencial.
5
Em seus primeiros momentos, pensando a histeria, Freud (1897) escreve em seu
Rascunho L, anexo à carta 61, datada de maio de 1897, que as fantasias constituem-se em
fachadas psíquicas que bloqueiam o caminho direto às lembranças, ou ainda, o acesso às
cenas primárias; formadas de restos ouvidos e vistos. Há que se reconhecer, aqui, sua
aproximação com os sonhos; teorização que ocorre numa fase posterior, mas que encontra
seus germes desde essa época. Freud (1897), já neste momento, afirma ser viável perseguir
todo processo de estruturação e, ainda, todos os elementos fundamentais na construção da
fantasia. Outro ponto a ser considerado são as fantasias como defesas. O autor apenas aponta,
não desenvolve, neste momento, essa noção.
Em seu Manuscrito M (1897), intitulado “A Arquitetura da Histeria”, Freud afirma
que algumas cenas são, para o sujeito, acessíveis; em compensação, outras o são apenas por
meio das fantasias. Tudo acontece como se os acontecimentos estivessem dispostos em ordem
crescente de resistência, ou seja, as cenas menos investidas estão mais próximas da barreira da
consciência do que aquelas que se encontram em grau elevado de investimento. É claro que
estas cenas não vêm à tona completamente, já que estas mantêm conexão com aquelas que
foram recalcadas mais fortemente, se é que é possível assim dizer (Freud, 1897).
De maneira simples e inicial, pode-se afirmar que as fantasias são oriundas de uma
combinação inconsciente de restos ouvidos e vividos, de maneira a tornar remota e, de certa
forma, incessível as lembranças traumáticas da qual os sintomas decorrem e emergem. É
possível comparar a constituição da fantasia a um processo químico de amálgama e
decomposição de um elemento combinado com outro (Freud, 1897). A primeira etapa
consiste numa distorção da memória por meio de uma fragmentação da relação temporal e
cronológica. É perceptível, aqui, os germes da noção de atemporalidade inconsciente que se
postulará mais adiante nos trabalhos freudianos – “O Inconsciente” (1915).
6
Um fragmento da cena visual junta-se, depois, a um fragmento da experiência
auditiva e é transformado numa fantasia, enquanto o fragmento restante é ligado a
alguma outra coisa. Desse modo, torna-se impossível determinar a conexão original.
Em conseqüência da construção de fantasias como esta (em períodos de excitação),
os sintomas mnêmicos cessam. Em vez destes, acham-se presentes ficções
inconscientes não sujeitas à defesa. Quando a intensidade dessa fantasia aumenta
até um ponto em que forçosamente irromperia na consciência, ela é recalcada e
cria-se um sintoma mediante uma forca que impele pra trás, indo desde a fantasia
até as lembranças que a constituíram (Freud, 1897, p.302).
Neste mesmo artigo, ele (1897) vai marcar a diferença entre as fantasias na histeria e
na paranóia. Neste momento inicial, o que chama mais atenção é que, na última, as fantasias
são mais sistematizadas e estruturadas; enquanto, na histeria, são desarticuladas e
independentes entre si, de maneira até serem contraditórias. Este ponto constitui apenas um
acréscimo acerca do que será desenvolvido com maior rigor posteriormente. Há que se ter em
mente, apenas, que o foco principal do presente trabalho não está no diagnóstico diferencial
entre a neurose e a psicose, mas entre esta última e a perversão.
De forma sucinta, pode-se entender o funcionamento da histeria como tendo o seu
esqueleto relacionado com a reedição das cenas, umas com acesso livre, enquanto outras,
apenas por intermédio das fantasias; sendo estas frutos de coisas ouvidas e compreendidas no
“só - depois”. É interessante ressaltar o papel de defesa das fantasias, funcionando, por vezes,
como escudos protetores.
Acredita-se ainda que, apesar do processo de recalque, as fantasias e as cenas,
poderão ser, em algum momento, determinadas e caracterizadas. Esse pensamento inicial
7
freudiano marca e define o trabalho em análise, construído mediante a ponte transferencial
entre o analista e seu analisando.
Outra consideração freudiana, neste momento inicial da construção teórica da
histeria, é abordar que as estruturas psíquicas afetadas pelo processo de recalque não se
constituem lembranças, mas impulsos advindos da cena primária. De acordo com essa idéia,
tanto a histeria, como a neurose obsessiva e a paranóia – esta última considerada uma
patologia neurótica neste período – compartilham os mesmos elementos em suas formações:
fragmentos de memória, impulsos (oriundos das lembranças) e lembranças defensivas e
protetoras.
(...) e percebo que a irrupção na consciência, a formação de compromissos (isto é,
sintomas), ocorre nessas neuroses em pontos diferente. Na histeria, são as
lembranças, na neurose obsessiva, os impulsos pervertidos, na paranóia, as ficções
protetoras (fantasias) que penetram na vida normal, distorcidos pela formação de
compromissos (Freud, 1897, p.296-297).
A estrutura das fantasias histéricas encontra suas marcas na constituição dos
sintomas neuróticos. As origens dessas fantasias estão nos primórdios dos devaneios e desejos
infantis, sendo estes de duas categorias: desejos ambiciosos e desejos eróticos. Essas fantasias
são realizações de desejo; desejos estes que só puderam ser satisfeitos via fantasia, já que em
realidade, se constituíam como proibidos e insatisfeitos (Freud, 1908[1907]). É possível
perceber que, neste momento, as fantasias se apresentavam como núcleo central da causa dos
sintomas. É importante marcar que ainda não há, aqui, diferenciação entre o que é da ordem
da fantasia e o que é da ordem do devaneio.
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Os devaneios podem ser de duas ordens: inconscientes ou conscientes. Quando estes
se tornam inconscientes, podem se tornar patológicos, ou seja, tomar a forma de um sintoma
ou até mesmo de um ataque histérico. As fantasias inconscientes podem ter sido sempre
inconscientes ou, podem ter sido conscientes, passando para o inconsciente pelo processo do
recalque. Seu conteúdo pode, ou não, ter sofrido modificações significativas. É importante
mencionar que as atuais fantasias inconscientes são frutos de devaneios conscientes. Há uma
ligação relevante entre as fantasias inconscientes e o que se refere às questões sexuais do
sujeito, já que
(...) é idêntica à fantasia que serviu para lhe dar satisfação sexual durante o período
de masturbação. Nesse período, o ato masturbatório (...) compunha-se de duas
partes. Uma era a evocação de uma fantasia e a outra um comportamento ativo
para, no momento culminante da fantasia, obter autogratificação (...)
Originalmente, o ato era um processo puramente auto-erótico que visava obter
prazer de uma determinada parte do corpo, que pode ser denominada de erógena.
Mais tarde, esse ato fundiu-se a uma idéia plena de desejo pertencente à esfera do
amor objetal, e serviu como realização parcial da situação em que culminou a
fantasia. Quando, posteriormente, o sujeito renuncia a esse tipo de satisfação,
composto de masturbação e fantasia, o ato é abandonado, e a fantasia passa de
consciente a inconsciente. Se não obtém outro tipo de satisfação sexual, o sujeito
permanece abstinente; se não consegue sublimar sua libido – isto é, se não consegue
defletir sua excitação sexual para fins mais elevados – estará preenchida a condição
para que sua fantasia inconsciente reviva e se desenvolva, começando a atuar, pelo
menos no que diz respeito a parte de seu conteúdo, com todo o vigor de sua
necessidade de amor, sob a forma de sintoma patológico (Freud, 1908[1907], p.
150-151).
9
Neste sentido, devaneios inconscientes estão na fonte da manifestação dos sintomas,
inclusive, os histéricos. Pode-se dizer que esses sintomas histéricos nada mais são que
fantasias inconscientes que vêm à tona. Sendo os sintomas de ordem somática, tem-se que
suas manifestações motoras e sensações sexuais advêm dos devaneios quando estes ainda
eram inconscientes. Ao investigar a histeria, em vez do interesse se focar nos sintomas
referentes, o foco terá de ser nas fantasias que lhes deram origem. Sendo, os sintomas
histéricos são senão substitutos, que aparecem por meio conversivo, do retorno das vivências
traumáticas experenciadas pelo sujeito; estão a serviço da obtenção de prazer e são
compromissos entre dois impulsos afetivos e instintuais divergentes, um dos quais busca
satisfazer uma pulsão sexual inconsciente, enquanto o outro tenta recalcá-lo. A Psicanálise
possibilita intervir nesses sintomas e deles extrair suas fantasias motivadoras e, então,
devolvê-las ao sujeito. A partir da clínica, foi possível inferir que o conteúdo fantasístico dos
histéricos compunha a realização, no real, da satisfação no caso dos pervertidos2.
Esse método de investigação psicanalítica, que dos sintomas visíveis conduz às
fantasias inconscientes ocultas, revela-nos tudo o que é possível conhecer sobre a
sexualidade dos psiconeuróticos (...)Provavelmente devido às dificuldades que as
fantasias inconscientes encontram em seus esforços de expressão, a relação das
fantasias com os sintomas não é simples, mas, ao contrário, bem complexa. Via de
regra, quando a neurose está plenamente desenvolvida e persiste há algum tempo,
um determinado sintoma não corresponde a uma única fantasia inconsciente, mas a
várias fantasias desse gênero, e essa correspondência não é arbitrária, mas obedece
a um padrão regular (Freud, 1908 [1907], p. 151-152).
2 Esse é um ponto importante que será desenvolvido ao longo do trabalho.
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Há que se considerar duas características importantes com relação às fantasias. A
primeira é que são construídas diante de uma insatisfação. São os desejos não-satisfeitos que
possibilitam a formação dos devaneios. Diante disso, é possível pensar que, sendo assim, as
fantasias são, em sua essência, a realização de um desejo, uma espécie de “modificador da
realidade” antes insatisfeita e, posteriormente, adequada à satisfação e à experiência
prazerosa. A outra característica a ser ressaltada é que os desejos que culminaram na
constituição de suas fantasias são de ordem infantil e proibida (Freud, 1908[1907]).
Em “Escritores Criativos e Devaneios” (1907[1906]), Freud vai afirmar que as
causas desejantes podem ser de duas ordens: ambiciosas e eróticas. Apesar de fazer uma
pequena diferenciação de como isso está presente em homens e mulheres, Freud (1907[1906])
acentua a relevância de ter em mente que esses desejos motivadores, freqüentemente,
encontram-se unidos. Outro ponto importante é que o conteúdo do fantasiar é variável e
adaptativo às experiências vividas pelo sujeito. Dessa maneira, é possível marcar a relação
importante entre tempo e fantasia. Esta última articula passado, presente e futuro de forma
bem notória. Neste ponto, é importante refazer duas ressalvas: primeiro, quanto ao
inconsciente como uma estrutura atemporal e, segundo, a imprecisão de Freud com relação
aos termos devaneio e fantasia – comparecem, ainda como equiparados.
O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora
no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali,
retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual
esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a
realização do desejo. O que se cria então é um devaneio ou fantasia, que encerra
traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança.
Dessa forma, o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo
que os une” (Freud, 1907[1906], p.138).
11
É impossível não notar a proximidade que as fantasias têm das construções oníricas,
ou seja, dos sonhos. Assim como as fantasias, os sonhos também se constituem como
realizações de desejo. Quando obscuro, o significado desses últimos, nota-se a proximidade
daquilo que constitui o desejo como proibido e infantil. Neste sentido, tem-se o processo de
recalcamento que, como defesa, envia esses conteúdos traumáticos e desprazerosos para o
inconsciente. Não há como deixar de mencionar o trabalho de distorção onírica que permite
que o conteúdo, ao vencer a barreira da censura – que ignora e não percebe esse disfarce –
possa emergir para o sujeito.
É interessante marcar que o recalque não significa algo que foi dissolvido ou extinto
da memória, mas, ao contrário, algo que está sempre retornando e retomando a história do
sujeito, apesar das inúmeras dificuldades encontradas nesse processo.
Sendo,
É verdade que o reprimido3 (...) conserva uma capacidade de ação efetiva e, sob a
influência de algum evento externo, pode vir a ter conseqüências psíquicas que
podem ser consideradas como produtos da modificação da lembrança esquecida e
como derivados dela, e que, se não forem vistas por esse prisma, permanecerão
incompreensíveis (...)Tal retorno do que foi reprimido deve ser esperado com
particular regularidade quando os sentimentos eróticos de uma pessoa estão ligados
às impressões reprimidas – quando sua vida erótica sofreu as investidas da
repressão (...) quando o que foi reprimido retorna, emerge da própria força
repressora (Freud, 1907[1906],39-40).
3 É importante mencionar que ‘recalque’ seria a tradução mais precisa do termo. Contudo, optou-se por preservar ‘reprimido’, na presente citação literal, assim como nas demais posteriores, a fim de preservar a autoria da tradução na edição consultada para o presente trabalho.
12
Outro ponto importante a ser considerado é que o material inconsciente só se faz
presente por meio de uma conciliação com os determinantes conscientes. Freud nomeia como
uma formação de compromisso esse mecanismo de conciliação entre as moções conscientes e
inconscientes – é necessário que cada uma delas renuncie a um quantum de satisfação. São,
assim, sempre satisfações parciais, nunca satisfações totais ou completas.
Pode-se dizer que as fantasias são substitutas e derivações de lembranças recalcadas
que não atingem a consciência, senão de maneira transformada e distorcida. Essa distorção,
também notada nos processos oníricos, se deve ao trabalho do material inconsciente que visa
ultrapassar a barreira da resistência e da própria censura. Por meio desse compromisso,
resíduos inconscientes podem ultrapassar esse limite, sem que sejam impedidos de chegar à
consciência.
1.2 A Grande Virada
Em qualquer momento ou situação em que se fale de fantasias, será quase impossível
não se ouvir alguma citação ou referência com relação ao importante texto freudiano, datado
de 1919, “Bate-se numa Criança”.
Apesar de seu percurso já feito com relação a teoria da fantasia, Freud ainda não
conseguiu precisar a diferença entre devaneio, fantasia e recordação. Será somente com este
texto de 1919 que estas noções ficarão claras.
Optou-se por fazer uma retomada cautelosa das características abordadas nesse
artigo, tendo em vista sua importância na constituição da obra freudiana e no meio
psicanalítico; além do que, a utilização das idéias nele apresentadas que serão tanto quanto
úteis no desenvolvimento, compreensão e discussão do presente trabalho.
13
É muito comum que uma dada fantasia esteja presente no tratamento de casos
neuróticos: uma criança é espancada. Esta fantasia traz consigo sensações prazerosas e, por
vezes, satisfações masturbatórias percebidas nos genitais. Neste sentido, a fantasia encontra-
se investida com um alto teor prazeroso e teria sua descarga de cunho satisfatório e auto-
erótico. Inicialmente, isto ocorre com certa aceitação do paciente sendo transformada,
posteriormente, em algo involuntário e com características de ruminação.
A fantasia não é confessada com tranqüilidade e, muito menos, com freqüência. A
primeira vez que comparece, traz consigo a marca da dúvida, da incerteza, da vergonha e da
culpa. De acordo com Freud (1919) esta fantasia tem seu aparecimento datado antes mesmo
que a criança entre na escola.
É interessante ressaltar que, por vezes, a fantasia ‘uma criança é espancada’ surge
com outras atribuições, como: ‘uma criança está sendo espancada e estão lhe batendo no seu
traseiro nu’.
Uma fantasia dessa natureza, nascida, talvez, de causas acidentais na primitiva
infância, e retida com o propósito de satisfação auto-erótica, só pode, à luz do nosso
conhecimento atual, ser considerada como um traço primário de perversão. Um dos
componentes da função sexual desenvolveu-se, ao que parece, à frente do resto,
tornou-se prematuramente independente, sofreu uma fixação, sendo por isso,
afastadas dos processos posteriores de desenvolvimento, e, dessa forma, dá
evidência de uma constituição peculiar e anormal do indivíduo. Sabemos que uma
perversão infantil desse tipo não persiste necessariamente por toda a vida; mais
tarde pode ser submetida à repressão, substituída por uma formação reativa ou
transformada por meio da sublimação (...) Se esses processos, contudo, não
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ocorrem, a perversão persiste até a maturidade; e sempre que encontramos uma
aberração sexual nos adultos (...) temos motivos para esperar que a investigação
anamnésica revele um evento (...) que conduza a uma fixação na infância (Freud,
1919, p. 197-198).
É no período infantil que a libido é despertada perante situações reais e se articulam,
posteriormente, a determinadas questões na vida do sujeito. As fantasias de espancamento que
estão sendo tratadas aqui comparecem mais tarde, mais ao final desse período; estas sofrem
desenvolvimentos e modificações em amplos aspectos, principalmente, no que diz respeito ao
autor da fantasia, ao objeto, conteúdo e sentido.
A primeira etapa da fantasia de espancamento reside de épocas muito anteriores,
localizadas na infância. A criança batida não coincide com a que fantasia. A criança
espancada é uma menina ou um menino – irmãzinha ou irmãozinho. Não há relação direta
entre o sexo da criança que fantasia e daquela que é objeto. Neste sentido, não se trata de
atribuir um caráter masoquista nem sádico a dada fantasia, já que autor e objeto não
coincidem. O autor do espancamento não é revelado neste primeiro momento. O que se tem é
que não se trata de uma criança, mas sim de um adulto. Essa primeira etapa pode ser
representada pela sentença: ‘o meu pai está batendo na criança’.
Algumas mudanças ocorrem até a construção da próxima fase. É certo que o autor da
cena continua sendo um adulto – o pai – mas a vítima sofre uma correção. Não se trata de
uma criança qualquer, mas daquela mesma que cria a fantasia. A representação dessa fase
poderia ser assim representada: ‘Estou sendo espancada pelo meu pai’. Tem-se, aqui, uma
construção de cunho masoquista. Freud (1919) acredita que esta fase é, consideravelmente, a
mais significativa. “Pode-se dizer, porém, que, num certo sentido, jamais teve existência real.
15
Nunca é lembrada, jamais conseguiu tornar-se consciente. É uma construção da análise, mas
nem por isso é menos uma necessidade” (Freud, 1919, p. 201).
A terceira etapa é similar à primeira. O autor do espancamento nunca é a figura
paterna, é alguém que não se sabe quem é, ou é algum substituto do pai como, por exemplo,
um professor. Nesta etapa, a criança que cria a fantasia está no lugar de quem observa a cena
– ‘Provavelmente, estou olhando’. Em vez de uma, agora, várias crianças (desconhecidas)
estão sendo espancadas. Além disso, a cena pode sofrer novas configurações, não mais se
tratando apenas de espancamentos, mas, também, de situações de castigos e humilhações. É
importante ressaltar o caráter sádico em questão. Tem-se como característica diferencial dessa
etapa uma considerável excitação sexual, sendo um meio para prazeres masturbatórios. O
questionamento que se levanta é como essas fantasias sádicas de espancamento tornam-se
capazes de movimentar libidinalmente o sujeito.
1.3 Os Acréscimos de Lacan
É interessante notar que se a análise chega às fantasias de espancamento, ela nos
apresenta a dinâmica da criança envolvida com o casal parental.
Os sentimentos de afeição da menina estão relacionados ao pai. Este, provavelmente,
fez de tudo para conquistá-la; ao mesmo tempo em que seus sentimentos de ódio e rancor
estão direcionados à mãe.
16
Essa atitude existe lado a lado com uma corrente de dependência afetiva da mãe (...)
ou dar ímpeto a uma reação excessiva de dedicação à mãe. Não é, porém, com a
relação entre a menina e a mãe que a fantasia de espancamento está ligada. Há
outras crianças à volta (...) de quem não gosta por toda espécie de motivos, mas
principalmente porque o amor dos pais tem de ser compartilhado com elas, que,
ademais, por esta razão, são repelidas com toda a energia selvagem característica
da vida emocional nessa idade (Freud, 1919, p. 202).
Quando se trata de um irmão ou uma irmã, são desprezados e odiados pela criança;
enquanto os pais disponibilizam a esse irmão todo um cuidado e afeição – percepção essa
sempre vista pelo infans. Mais que rapidamente desenvolve-se a idéia de que ser espancado é
ser não ser amado, é ser humilhado. A concepção da cena do pai espancando essa criança
odiada é muito agradável, independente disto ter realmente ocorrido, ou não. A idéia
envolvida é ‘o meu pai não ama essa criança, ama apenas a mim’. É este o sentido da
fantasia de espancamento na primeira etapa. Neste momento inicial, ainda não há indícios de
envolvimento sexual genital com saídas masturbatórias.
O pai recusa, nega seu amor à criança espancada, irmãozinho ou irmãzinha. É por
haver uma denúncia da relação de amor e humilhação que esse sujeito é visado em
sua existência de sujeito. Ele é objeto de uma servícia, e essa servícia consiste em
negá-lo como sujeito, em reduzir a nada sua existência de desejante, em reluzi-lo a
um estado que tende a aboli-lo como sujeito. Meu pai não o (a) ama, eis o sentido da
fantasia primitiva, e é isso que dá prazer ao sujeito – o outro não é amado, ou seja,
não é estabelecido na relação propriamente simbólica. É por esse meio que a
17
intervenção do pai assume seu valor primordial para o sujeito, aquele do qual
dependerá tudo o que vem depois. Essa fantasia arcaica, portanto, nasce de saída
numa relação triangular, que não se estabelece entre o sujeito, a mãe e o filho, mas
entre o sujeito, o irmãozinho ou irmãzinha e o pai. Estamos antes do Édipo, e mesmo
assim o pai presente (Lacan, 1957-58, p. 246).
É evidente que esses prazeres incestuosos vão cair por terra, ou seja, vão ser
repreendidos e recalcados. Ao serem mandados para o inconsciente, surgirá um sentimento de
culpa que trará modificações significativas na etapa posterior.
Se a fantasia do período incestuoso era marcada pela representação ‘ele ama apenas
a mim, e não a outra criança, por isso bate nela’, o sentimento de culpa vai influenciar na
configuração da segunda etapa, que será ‘não, ele não ama você, pois está batendo em você’ –
transformada, adquire um caráter masoquista. Seguindo, tem-se ‘estou sendo espancada pelo
meu pai’, uma mescla de culpa e amor incestuoso sexual.
Não é apenas o castigo pela relação genital proibida, mas também o substituto
regressivo daquela relação, e dessa última fonte deriva a excitação libidinal que se
liga à fantasia a partir de então, e que encontra escoamento em atos masturbatórios.
Aqui temos, pela primeira vez, a essência do masoquismo (Freud, 1919, p. 205).
Diferentemente do primeiro, o segundo tempo da fantasia não é recordado; será
reconstruído em análise. Nunca, de acordo com Freud, comparece como lembrança. Esse
segundo tempo encontra-se ligado ao Édipo; de uma relação da menina com o seu pai. Nesta
18
fase, é ela quem é espancada pelo pai. De certa forma, isso está articulado com o desejo
edipiano da menina – de ser objeto do desejo paterno – e a culpa que isso traz – exigência de
ser espancada por isso.
Num momento posterior, depois da saída edípica, comparece uma outra
transformação. A figura do pai é alterada; transforma-se em um personagem tirano,
onipotente e ativo que exerce a ação de bater, enquanto o sujeito comparece na forma de
inúmeras crianças que são espancadas, onde independem seus sexos, femininos ou
masculinos.
Essa forma derradeira da fantasia, na qual alguma coisa é mantida, fixada,
memorizada, diríamos, permanece, para o sujeito, investida da propriedade de
constituir a imagem privilegiada na qual o que ele puder experimentar de
satisfações genitais irá encontrar seu apoio (Lacan, 1957-58, p. 247).
Na terceira etapa, a criança encontra-se como espectador, com um olhar voltado para
a cena. O pai continua como agente, podendo ser substituído por um professor ou qualquer
figura de autoridade. Outro ponto a ser considerado é que as crianças tidas, nesta fase, nada
mais são do que substitutos do próprio infans.
No primeiro tempo da fantasia, um ato simbólico ocorre. Isso é fundamental. A
relação do sujeito com o irmão ou irmã, ou ainda, com um outro rival qualquer não adquire
seu valor no campo da realidade, mas por se inscrever no registro do simbólico. Uma solução
fantasística é exigida nesse momento. O sujeito sendo abolido do campo simbólico, reduzido
a nada, a um simples objeto, desconsiderado de sua posição de sujeito desejante, recorre à
19
fantasia masoquista de fustigação. Antes mesmo de qualquer relação empática do sujeito com
aquele que sofre, o que comparece, antes de mais nada, é algo que risca, barra, encerra o
sujeito, ou seja, algo que vem do próprio significante. “A fustigação não atinge a integridade
real e física do sujeito. É justamente seu caráter simbólico que é erotizado como tal, e o é
desde a origem” (Lacan, 1957-58, p. 250).
Num segundo momento, a fantasia assume outra configuração. Freud vai afirmar
(1919) que aqui se encontra a gênese do masoquismo. Conforme dito anteriormente, ‘meu pai
me bate’ não chega como lembrança. A ideia inicial ‘o rival não existe, não é nada’ é, agora,
transformada em ‘você existe, e é até amado’. E ainda,
(...) a relação que liga o sujeito a qualquer imagem do outro tem um caráter
fundamentalmente ambíguo, e constitui uma apresentação perfeitamente natural do
sujeito à báscula que, na fantasia, leva-o ao lugar que era do rival, onde, por
conseguinte, a mesma mensagem chegará a ele com um sentido totalmente oposto
(Lacan, 1957-58, p. 256).
A última etapa é caracterizada por evidenciar a relação do sujeito com o outros (a);
significando que os indivíduos estão sujeitos, em sua constituição, ao jugo de alguém.
Entrar no mundo do desejo é, para o ser humano, suportar, logo de saída, a lei
imposta por esse algo que existe mais-além (...)É assim que, num determinado
sujeito, que entra na história por vias particulares, define-se uma certa linha de
evolução. A função da fantasia terminal é manifestar uma relação essencial do
sujeito com o significante (Lacan, 1957-58, p. 252).
20
É importante trazer a figura materna para este contexto. É interessante notar que a
relação mãe-criança não é formada apenas de satisfações e frustrações, mas, principalmente,
do objeto de desejo da mãe. Para ter acesso ao mundo dos significados, essa criança vai em
busca do que ela significa no desejo da mãe e de que se trata o seu próprio desejo. Neste
momento, entra em cena a função privilegiada do falo. Este é o significante-pivô em torno do
qual a construção da dialética do desejo vai se constituir.
O falo entra desde logo em jogo, a partir do momento em que o sujeito aborda o
desejo da mãe. Esse falo é velado e permanecerá velado até o fim dos séculos, por
uma razão simples: é que ele é um significante último na relação do significante com
o significado. Com efeito, há pouca probabilidade de que venha jamais a se revelar
senão em sua natureza de significante, ou seja, de que venha realmente a revelar, ele
mesmo, aquilo que, como significante, ele significa (...) desejo da mãe não é
simplesmente, nesse momento, o objeto de uma busca enigmática que deva conduzir
o sujeito, no correr de seu desenvolvimento, a rastrear esse sinal, o falo, para que
então este entre na dança do simbólico, seja o objeto preciso da castração e, por
fim, seja entregue a ele sob uma outra forma, para que ele faça e seja o que se trata
de fazer e ser. Ele o é, ele o faz, mas, aqui, estamos absolutamente na origem, no
momento, em que o sujeito se confronta com o lugar imaginário onde se situa o
desejo da mãe, e esse lugar está ocupado (Lacan, 1957-58, p. 249).
21
Partindo das idéias apresentadas, Freud (1919) afirma quão importantes são no
entendimento das perversões, acrescentado a noção fundamental de que a perversão não é
algo isolado no desenvolvimento infantil, mas sim constituinte de todo e qualquer processo de
desenvolvimento, inclusive os ditos ‘normais’.
Uma perversão na infância, como é sabido, pode tornar-se a base para a construção
de uma perversão que tenha um sentido similar e que persista por toda a vida, uma
perversão que consuma toda a vida sexual do sujeito. Por outro lado, a perversão
pode ser interrompida e permanecer ao fundo de um desenvolvimento sexual normal,
do qual, no entanto, continua a retirar uma determinada quantidade de energia
(Freud, 1919, p. 207).
É importante marcar as diferenças estruturais dessas fantasias em homens e
mulheres, não sendo possível estabelecer um paralelismo completo. O que há de se ter em
mente é que, em ambos os casos, as fantasias de espancamento tem suas origens na relação
incestuosa com o pai.
1.4 A teoria de sedução e seus desdobramentos
Cabe, neste momento, uma rápida consideração. A teoria de sedução surgiu com o
propósito explicativo da etiologia das neuroses. De acordo com ela, o pai da histérica seria
alguém que a teria introduzido no campo sexual. Freud percebeu, diante alguns fatos a
impossibilidade de manter essa idéia. Em primeiro lugar, a sua auto-análise, já que teria que
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propor o seu pai como um grande perversor; um segundo argumento deu-se na necessidade de
generalizar a perversão paterna para além dos casos de histeria, tendo em vista que a patologia
histérica só se constitui diante de um acúmulo de fatos e cenas traumáticas e um
enfraquecimento da defesa do sujeito. Em 21 de setembro de 1897, Freud escreve à Fliess:
“Confiar-lhe-ei de imediato o grande segredo que lentamente comecei a compreender nos
últimos meses. Não acredito mais em minha neurótica [teoria das neuroses] ...” (Freud, 1897,
p.309). Esse manuscrito – Carta 69 - é de grande importância, tendo em vista que Freud vai
se deparar com um obstáculo relevante e que trará modificações fundamentais na construção
metapsicológica de sua teoria. O autor vai se dar conta da existência de duas realidades
distintas: a realidade objetiva e a realidade psíquica. É bem verdade que no inconsciente não
há como se distinguir realidade de ficção. Isso é um ponto de grande relevância em sua teoria,
já que, a partir desse momento, não importa o que de fato ocorreu, mas o que disso ou dessa
situação ficou marcado pro sujeito. Neste sentido, há que se considerar a existência de uma
realidade outra, de uma realidade que vai além daquela verificada empiricamente, no
cotidiano (realidade material). Propôs-se, dessa forma, uma realidade psíquica, intrínseca ao
sujeito e que poderia ser utilizada para explicar as vivências sexuais e auto-eróticas da
primeira infância. Partindo dessa noção, a fantasia sexual envolvendo os pais seria
perfeitamente possível. Com o abandono da teoria da sedução, Freud reconheceu, em toda sua
amplitude, a sexualidade na infância.
23
1.5 Últimas observações
Em seu texto, Miller (2002) propõe uma segmentação clínica entre o sintoma e a
fantasia. Ele inicia afirmando que nem tudo, para Lacan, é significante; seu ponto de partida
se deu com a idéia do inconsciente estruturado como linguagem. Seu grande achado foi o
objeto a. A partir disso, modifica-se a noção do eu (Moi), de interpretação e transferência.
Lacan atrela a travessia da fantasia como término de análise. Segundo o autor (2002),
fantasia e sintoma são distinções entre significante e objeto, na medida em que o sintoma diz
de uma articulação significante, enquanto a fantasia, uma articulação com o objeto.
Entretanto, Miller acredita que há, também, algo de objeto envolvido no sintoma.
Se o paciente lamenta e reclama do seu sintoma, principalmente, quando se inicia um
processo analítico, da fantasia, quase nada se diz; e através dela obtém-se certo prazer. Dir-se-
ia: desprazer no sintoma e prazer na fantasia. Esta diz do íntimo do sujeito; por vezes, ele até
se envergonha delas, pois vai de encontro com seus valores morais. Sintoma e fantasia se
situam em lugares diferenciados.
É que geralmente tira o conteúdo da sua fantasia do discurso da perversão, coisa
que foi dita por Freud, por Lacan, e que também observamos na experiência. O fato
de que o neurótico tenha fantasias perversas não quer dizer que o seja. Um
obsessivo, por exemplo, que obtém sua fantasia do discurso da perversão, a tira do
campo de um gozo que não é o seu próprio gozo. E em geral, se mantém a uma certa
distância e preserva algo assim como ima margem de segurança com relação a suas
fantasias tirados do campo perverso (Miller, 2002, pp. 101-102).
24
Freud, em seus escritos iniciais, já pensava a fantasia como recurso contra o sintoma,
sendo a primeira uma produção imaginária que se encontra à disposição do sujeito em dados
momentos.
Ao escrever o “Bate-se numa criança” (1919), Freud relaciona a fantasia com a
vivência da masturbação, sendo essa satisfação, um gozo fálico. É importante observar que
não se trata de um gozo do Outro, mas, justamente, um espaço em que ambos podem se
separar (gozo fálico e gozo do Outro).
A idéia freudiana traz a fantasia como meio de obtenção de prazer, de alcance de
satisfação. A noção lacaniana a apresenta como meio de transformar o gozo em prazer.
Nesse sentido, a fantasia tem uma função semelhante à do brincar, que é – a partir
de uma situação tanto de gozo quanto de angústia – produzir prazer. Não devemos
esquecer que a condição necessária do fort-da é a ausência da mãe. É porque esse
Outro foi embora que a criança fica em situação angustiante, da qual obtém prazer
graças à sua maquinação lúdica. É importante recordar essa ausência porque é a
ausência do Outro que presentifica e põe em evidência seu desejo. A partir disso é
que Lacan constrói sua fórmula da metáfora paterna, pois o que lá aparece como
“desejo da mãe” é algo que vem ocupar o lugar deixado anteriormente pela
ausência da mãe. Quando não está, pode-se perguntar qual é o seu desejo, que é o
que deseja. Por isso, a criança do fort-da produz essa maquinação ao se evidenciar
o desejo do Outro. Mas o que ilustra é generalizável: a fantasia é uma máquina que
se põe em ação quando se manifesta o desejo do Outro (Miller, 2002, p. 103).4
4 Isso será muito importante na distinção dos quadros psicopatológicos: psicose e perversão.
25
Outra diferenciação apresentada faz referência à fantasia fundamental incitada no
segundo tempo da análise do “Bate-se numa criança” (1919); nunca comparece como tal,
como vivência; trata-se de uma marca limite do processo de análise, e que nem sempre é
alcançado num trabalho. Miller (2002) pensa a fantasia fundamental como o recalque
originário; algo que não é possível dizer e que não se finda: sempre haverá mais um. Não
cabe interpretação, mas sim, construção. É interessante notar que, ao contrário da
interpretação que é pontual e focal, a construção possibilita aberturas do discurso ao colocar o
sujeito diante de sua história; permite elaborações, ou melhor, perlaborações (Freud, 1937). O
que se espera é que na travessia da fantasia, o sujeito altere sua relação com a mesma,
modifique sua posição diante do fantasma.
Miller (2002) apresenta a fantasia em suas três vertentes: imaginária, simbólica e
real. No primeiro campo, tem-se um sujeito que pode produzir imagens, relacionados a si
mesmo ou às pessoas que estão a sua volta. Trata-se do primeiro campo problematizado por
Lacan, em que se figuram a relação a ← a’. No campo simbólico, tem-se a obediência às leis
da língua, na construção de uma história, de um roteiro. O artigo de Freud “Bate-se numa
criança” (1919) demonstra isso, ao apresentar uma fantasia que extrapola o nível de uma
frase, implicando-a em variações gramaticais, ou seja, numa elaboração gramatical. Outra
vertente é a do campo do real. Trata-se da fantasia dotada de seu quantum imodificável,
inalterável, impossível. “Por essa razão, para Lacan, o fim de análise é a conquista de uma
modificação da relação do sujeito com o real da fantasia” (Miller, 2002, p. 113).
Com relação ao sintoma, Miller propõe que a fantasia não tem a mesma característica
temporal do sintoma, ou seja, aquela se constitui como um momento, um instante, enquanto o
outro, como um tempo que retroage (Miller, 2002). Sendo, na fantasia, trata-se de
26
(...) uma formulação completamente separada do resto de seu discurso. Como um
monumento isolado que entretanto é, ao mesmo tempo, matriz do seu
comportamento (...) A fantasia é como um acordeão: pode recobrir toda a vida do
sujeito e ser, ao mesmo tempo, a coisa mais oculta e mais atômica do mundo (Miller,
2002, p. 115).
No artigo freudiano (1919), percebe-se alterações na gramática da fantasia, como a
passagem do passivo para a voz ativa. Com a leitura de Lacan, a ênfase cai não sobre a
gramática, mas sim sobre outra questão simbólica: a lógica da fantasia, ou seja, a fantasia
como axioma; no sentido da articulação significante poder encontrar-se no registro do real. O
axioma é a origem do sistema e, ao mesmo tempo, o que não se altera.
Em 1908, em seu artigo “Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade”,
Freud articula de forma clara a histeria, seus sintomas clássicos com as fantasias. Propõe que
a fantasia inconsciente envolvida é determinante na constituição do sintoma. Neste sentido,
poder-se-ia pensar que o conteúdo das fantasias seria a própria constituição do material
inconsciente. Dessa maneira, esse artigo incita que a prática analítica chegaria, pelos
sintomas, às fantasias que os determinam. Apesar de inovadora, essa concepção não
diferencia o imaginário do simbólico. Lacan vai ter que se a ver, inicialmente, com a mesma
questão.
Em seus primeiros trabalhos, Lacan vai marcar o sintoma como algo do simbólico e
a fantasia como algo do imaginário. Como é sabido, Lacan, no princípio, aposta na
supremacia do simbólico. Como resolver, então, a questão de que uma imagem pode ser
prevalente para o sujeito?
27
A primeira fórmula da fantasia (a ← a’) demonstra sua peculiaridade essencialmente
imaginária. Outra consideração importante é que Lacan propõe a prevalência imaginária no
sujeito devido a uma falta no simbólico. Aqui, já se percebe uma noção de uma ausência na
cadeia significante, possível de ser demonstrada em A, podendo ser preenchida com um
elemento imaginário. Uma última consideração importante desse primeiro modo lacaniano de
situar a fantasia é que, também, é a primeira vez que se consegue situar a instância
superegóica; quando ocorre uma falta na cadeia significante, advém do imaginário, a figura
do supereu.
É bem verdade que se trata da primeira forma de marcar a fantasia, embora não seja
o último. Sabe-se que: a ← a’ passa a ser $ ◊ a. Algo comparece de novo nessa outra
formulação. Apesar de já estar presente na primeira, é na segunda configuração que o objeto a
fica mais evidente e, ainda, passa de imaginário para real. Há algo muito interessante que
advém dessa nova construção: o sujeito como sujeito do significante presentificado na
fórmula da fantasia, isto é, sujeito como simbólico.
De acordo com Miller (2002), essa idéia já se encontra, de certa forma, no texto
freudiano de 1919, quando nos aponta dois componentes essenciais na formação da fantasia.
São eles: um gozo, uma satisfação advinda da zona erógena e uma representação de desejo. É
bem verdade que a própria fórmula da fantasia proposta por Lacan mostra que ambos – gozo e
representação de desejo – podem ser vistos: $ ◊ a, tais como em a, o gozo e em $, o sujeito
simbólico, do desejo.
Neste sentido, o que Lacan escreve como $ ◊ a é esse significante, lugar da fantasia
como axioma simbólico. É algo como o valor do que permanece quando a ordem
simbólica se desvanece junto com o que se pode chegar a dizer e a saber. Por isso,
28
ao chegarmos ao ponto mesmo da fantasia, não estamos diante de uma mera
reticência do sujeito, e sim diante de uma falta das palavras e do saber. “Batem em
uma criança” é o título do trabalho de Freud, mas quando ele introduz a frase
completa, tal como o paciente a enuncia, vemos que é assim: “Não sei mais, batem
em uma criança”. Esse “Não sei mais” é também muito importante, e corresponde
ao que se escreve como S (A). “Não sei mais”; em uma falta do saber se aloja esse
resto simbólico, totalmente resistente, que é o axioma fantasmático (...)
Fundamentalmente, é algo posto ao princípio (...) A fantasia fundamental, para
Lacan, está ligada a uma significação absoluta. Uma separação descolada,
separada de tudo. A significação de “batem em uma criança” não tem motivação
anterior e é, em si mesma, um começo absoluto (...) (Miller, 2002, p. 135-136).
Essa articulação é paradoxal em Lacan, pois relaciona dois elementos essencialmente
diferentes em suas estruturas.
Para concluir, tem-se que a fantasia é a janela pela qual o sujeito encara a realidade;
aquilo que é tido como real é falseado, pode-se assim dizer, pela fantasia; janela perante o
indizível, ou seja, àquilo que não é representável. Quando essa fantasia não está presente, o
sujeito vai ao encontro de representações devastadoras – esse é o caso das psicoses. Pode-se
afirmar que sua apropriação se dá via enodamento. Trata-se de um sujeito imerso no gozo
mortífero do Outro, nas palavras, nas mensagens vindas desse lugar. É nesse momento que a
criança se faz objeto do desejo do Outro que, na maioria das vezes, é encarnado pelas figuras
parentais.
29
(...)Objeto do desejo do Outro, destacando, especificando, um gozo para sempre
indizível, desembocando, Lacan nos diz, em quatro configurações, quatro objetos
topológicos que delimitam um furo, quatro objetos ‘a’ que a clínica revela: o seio, as
fezes, a voz e o olhar, real de um gozo do qual temos apenas o rastro nas diferentes
imaginarizações dos objetos de substituição: objetos dos roteiros dos sonhos e
devaneios, objetos fetichizados da vida erótica (...) (Tyszler, 2007, p. 102).
Diante de sua relação com o desejo, pode-se dizer que a fantasia nos mostra a própria
direção desejante; tendo em sua face defensiva, uma tentativa de mascarar o real do desejo,
em seu aspecto impossível e desprazeroso.
Uma consideração importante feita por Tyszler (2007) revela que a dimensão do
olhar, especular está sempre presente no fantasma.
Tem-se que
Há um ponto do real que escapa ao sentido e à representação, trata-se do dejeto da
operação pela qual o sujeito privilegiou tal gozo do Outro. Ele se fez boca, merda,
olhar ou voz de um gozo que o envolveu como o plano projetivo, de um gozo do qual
ele não se destacou, mas que ele não pode perceber (que ele não pode imaginar, ao
qual ele não pode dar sentido, ao qual ele não pode dar imagem). Esse objeto, esse
resíduo, é a matemática do sujeito; ele faz furo em toda enunciação, toda inclinação,
toda tentativa mesmo intelectualizada; em uma palavra, tudo que numa vida tem
peso de realidade desejante (Tyszler, 2007, p. 107).
Lacan extraiu desse contexto considerações muito relevantes na construção de sua
teoria a respeito das perversões. O artigo freudiano de 1919 será retomado em inúmeros
30
momentos ao longo deste trabalho. No próximo capítulo, estarão presentes germes de algumas
questões fundamentais para a discussão do diagnóstico diferencial entre a psicose e a
perversão.
31
Gozo: de Freud a Lacan
Freud não estabeleceu o conceito de gozo (Genuss) em sua obra. Utilizou, contudo, a
noção de prazer (Lust). Apesar disso, em seus casos clínicos, é possível apreciar indicações da
operatividade do gozo. É bem verdade que, para ele, o gozo é um vocábulo, mas não um
conceito. Freud não operou com ele em sua teoria.
Considerou-se relevante retomar alguns conceitos antes de prosseguir com a temática
do gozo. Optou-se por fazer uma retomada de alguns termos encontrados em Freud, a fim de
esclarecer algumas terminologias.
2.1 Os termos Wunsch e Lust
De acordo com Hanns (1996), o termo Wunsch pode ser traduzido por ‘desejo’.
Contudo, tem-se que o termo, em alemão, designa algo mais específico. Refere-se ao que é
almejado, idealizado. No que diz respeito ao imediato, ao querer, as palavras Lust (vontade) e
Wille (querer) são mais utilizadas.
Na obra freudiana, Wunsch articula-se muito à ordem representacional,
diferenciando-se de Lust (vontade, desejo, prazer) e de Begierde (desejo intenso), ou seja,
Wunsch circula nas regiões do pensamento, do sonho, da fantasia, do imaginado, do
alucinado, da loucura (Hanns, 1996).
Freud, em seus trabalhos, articula o desejo (Wunsch) à realização e a pulsão (Trieb) à
satisfação. O inverso é muito raro. O primeiro traz a idéia do idealizado, almejado; enquanto o
32
segundo, traz uma idéia de satisfação da necessidade para que o sujeito não entre em
sofrimento.
A pulsão (...) é inquietante e aguilhoa o sujeito, necessitando ser apaziguada; sua
meta é obter o prazer (Lust), desconsiderando qualquer mediação. Sua expressão
mais imediata é a Lust (desejo-vontade e sensações de prazer). Sendo uma
manifestação mais direta do Trieb, o qual desconsidera a realidade, a Lust constitui-
se numa “tendência”ou “vontade” e não propriamente num “desejo. Expressa uma
verdade do corpo de forma direta, quase sem mediação do objeto (...) Enquanto Lust
é de cunho mais auto-erótico, o Wunsch se dirige a um objeto investido e imaginado,
o qual faz a triangulação entre o Wunsch e a Lust (Hanns, 1996, pp. 143-144).
O termo Lust (vontade/desejo/prazer) diverge, assim, de Wunsch (desejo), de
Begierde (“fissura”), Genuβ (fruição, prazer) e do termo ‘gozo’ (no sentido do pico de prazer,
orgasmo).
Lust designa a sensação advinda da atividade prazerosa. Está relacionada à ação e
não ao objeto em si. Diz respeito ao que brota no corpo, aquilo de mais imediato na sensação,
antes do prazer intenso do gozo.
33
O prazer de Lust é diferente de gozo, no sentido de que gozo pode significar um
ápice, um orgasmo, enquanto Lust enfatiza mais o processo e a sensação de “ser
afetado/estimulado/sensibilizado corporalmente nas suas sensações”. Também é
diverso da palavra “prazer”, a qual pode descrever uma fruição plena e desdobrada
de certas sensações. A Lust permanece ligada à fronteira entre a disposição
(vontade), o “prazer antecipatório” e as sensações que começam a brotar (Hanns,
1996, p. 149).
2.2 O Gozo em Freud
Em sua obra, o termo Genuss comparece no caso clínico do Homem dos Ratos
(1909) em que o relato do suplício dos ratos é marcado por uma expressão de intenso prazer,
no auge do horror. Outro momento, é na experiência do fort-da, ao observar o seu neto; é
como se ele sentisse na dor desse par presença-ausência, uma espécie de prazer. Há outro
episódio importante que se pode notar a expressão desse júbilo na obra freudiana. Trata-se do
caso Schreber (1911) e sua transformação em um corpo feminino – emasculação.
A teoria freudiana apresenta um aparelho psíquico, com princípio regulador que visa
a satisfação e tenta evitar o desprazer, ou melhor, que almeja diminuir a tensão no aparelho,
que é sentida como desprazer. A satisfação estaria, assim, ligada ao rebaixamento da tensão e
a volta ao estado de repouso. Esse princípio regulador pode, também, ser chamado de
princípio da constância e é constituído pelo princípio do prazer/princípio da realidade. Em seu
artigo Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental (1911), Freud afirma
que as pulsões buscam satisfação imediata, contudo, a realidade lhes impõe alguns
adiamentos desse prazer. Cabe ressaltar que o prazer do qual a psicanálise trata está muito
além da necessidade, das pulsões de autoconservação.
34
É verdade que a pulsão se constitui a partir da necessidade, antes de destacar-se
dela, de modo que, por exemplo, o prazer de comer pode ter como efeito em retorno
uma erotização da necessidade, que pode ser assim profundamente perturbada
(Valas, 2001, p. 19).
A experiência clínica, como anteriormente citada, demonstra algumas tensões já
vividas com intenso prazer, entrando em choque com a proposta inicial freudiana do
funcionamento do aparelho psíquico. Freud percebe isso e desfaz o paralelismo direto
prazer/rebaixamento de tensão e desprazer/tensão. Isso será retomado em seu artigo Além do
princípio de prazer (1920).
2.2.1 As Contribuições de “Além do Princípio do Prazer” (1920)
“Além do Princípio do Prazer” (1920) é um texto de suma importância na obra
psicanalítica. É um texto que vai, pela primeira vez, apresentar o conceito de pulsão de morte
e natureza pulsional da compulsão à repetição. Refere-se a este último como sendo um
fenômeno que comparece nas experiências infantis e no trabalho de análise; atribuindo à
mesma, conforme mencionado, a qualidade de pulsão. É, também, neste artigo que Freud vai
diferenciar a pulsão de vida (Eros) da pulsão de morte, embora seja somente em 1923, em seu
texto “O Eu e o Isso” que esta distinção fique melhor consolidada e argumentada.
Outros dois pontos importantes deste artigo de 1920 são: a proposta de uma nova
configuração para o aparelho psíquico e a destrutividade como possibilidade e qualidade
inerente a todo sujeito.
35
Ao longo do desenvolvimento de sua obra metapsicológica, Freud deixa claro o
princípio do prazer como regulador dos processos psíquicos. Parte-se da idéia que a cada vez
que há acúmulo de energia, a tensão no aparelho aumenta e, como reação, o aparelho busca
diminuir essa retenção, evitando o desprazer e alcançar o prazer. Neste sentido, pode-se
perceber a característica econômica que este sistema engendra.
O prazer e o desprazer estariam associados ao quantum de excitação presente no
psiquismo, sendo o primeiro caracterizado pela diminuição e o segundo, pelo aumento de
tensão no aparelho. Freud coloca que, muito provavelmente, a sensação prazerosa, ou não,
deriva do nível, da magnitude, ou seja, de quanto esse nível aumentou ou diminuiu num dado
período de tempo. O aparelho, dessa forma, se manteria numa tendência de reduzir a tensão
ou deixá-la num nível constante.
(...) se o trabalho do aparelho psíquico visa a manter a quantidade de excitação em
nível baixo, então tudo aquilo que for suscetível de aumentá-la será necessariamente
sentido como adverso ao funcionamento do aparelho, isto é, como desprazeroso. O
princípio de prazer deriva do princípio de constância (...) (Freud, 1920, p. 136).
Contudo, Freud reconhece não há como afirmar a prevalência do princípio do prazer
na vida psíquica, já que, a grande parte dos processos psíquicos não são intensamente
prazerosos e nem mesmo nos conduz a ele. Em contrapartida, o que se percebe são
experiências desprazerosas e com baixos níveis de satisfação. É importante conceber, assim,
que há uma tendência significativa ao princípio do prazer na vida psíquica, mas que, ao
mesmo tempo, há forças outras que fazem o movimento em sentido contrário, nem sempre
sendo possível atingir a satisfação, o prazer.
36
É interessante ressaltar que o princípio do prazer segue um modo de funcionamento
primitivo no aparelho psíquico denominado processo primário. Seria muito complicado supor
que esse funcionamento estaria de acordo com as exigências da realidade. O que ocorre é que
(...) ante as dificuldades do mundo exterior, o princípio de prazer desde o início
revela-se ineficiente e um perigo para a necessidade de o organismo impor-se ao
ambiente. Assim, ao longo do desenvolvimento, as pulsões de autoconservação do
Eu acabam por conseguir que o princípio de prazer seja substituído pelo princípio
de realidade. Entretanto, o princípio de realidade não abandona o propósito de
obtenção final de prazer, mas exige e consegue impor ao prazer um longo desvio que
implica a postergação de uma satisfação imediata, bem como a renúncia às diversas
possibilidades de consegui-la, e a tolerância provisória ao desprazer. No entanto, o
princípio de prazer continua sendo ainda por muito tempo o modo de trabalhar
próprio das pulsões sexuais, as quais são mais dificilmente “educáveis”. Assim,
sempre volta a ocorrer que, a partir das pulsões sexuais ou a partir do próprio Eu, o
princípio de prazer consegue sobrepor-se ao princípio de realidade (...) (Freud,
1920, p. 137).
É bem verdade que não se pode atribuir a esta substituição (princípio do prazer pelo
princípio da realidade) todas aquelas vivências desprazerosas e insatisfatórias. De acordo com
Freud (1920), os próprios conflitos do Eu promovem a liberação do desprazer.
Certas pulsões possuem metas intoleráveis e insuportáveis ao Eu, enquanto outras,
possuem alvos possíveis que não trariam dificuldades para o sistema. De acordo com o autor,
a solução encontrada para tal seria isolar essas pulsões que trariam consigo material
37
insuportável e que poderia ocasionar danos ao aparelho. Essa separação se daria pelo processo
do recalque, mantendo em níveis inferiores esse material intolerável. A princípio, essas
pulsões ficariam impossibilitadas de alcançar suas metas, ou seja, a satisfação.
Entretanto, caso consigam (...) pelejar até chegarem por desvios diversos a obter
uma satisfação direta ou ao menos uma satisfação substitutiva, esse resultado, que
normalmente teria sido uma possibilidade de sentir prazer, será sentido pelo Eu
como desprazer (...) Em conseqüência de um antigo conflito psíquico que acabou
por resultar em um recalque, o princípio de prazer volta a sofrer uma nova ruptura
quando certas pulsões, justamente na obediência a esse princípio, tentavam obter
novamente prazer (...) Não há dúvida de que todo prazer neurótico é dessa espécie:
um prazer que não pode ser sentido como tal (Freud, 1920, p. 138).
Neste artigo, Freud tenta elucidar como se dariam os fenômenos oníricos daqueles
que sofrem de neurose traumática. Com muita freqüência, esses indivíduos sonham com o
evento traumática, com o acidente para, logo em seguida, despertar assustado e, muitas vezes,
angustiado.
Freud (1920) acrescenta que essa vivencia traumática, devido sua intensidade,
sempre retorna ao sujeito, sendo em sua vida corriqueira ou em suas produções oníricas. Ele,
segundo o autor, estaria fixado no trauma; o que pode, também, ocorrer na histeria. De acordo
com ele, os histéricos sofrem de reminiscências (Freud, 1893).
Apesar desses fatos comparecerem em sua clínica, Freud se questiona como isso
seria possível, tendo em vista sua noção-chave de que os sonhos seriam realizações de desejo
38
e que, em estado de vigília, esses indivíduos não despendem de seu tempo para retomar essas
vivências traumáticas. O autor, numa tentativa explicativa, supõe tendências masoquistas
inerentes ao Eu.
Em 1924, em seu texto “O Problema Econômico do Masoquismo”, Freud trará uma
discussão significativa sobre o fenômeno do masoquismo. Em artigos anteriores tais como,
“Os Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (1905), “Pulsões e suas Vicissitudes”
(1915) e “Bate-se numa Criança” (1919), o masoquismo é tido como uma conseqüência de
um sadismo anterior; não se considera ainda a idéia de um masoquismo primário. Esta noção
vai ser esboçada a partir do conceito de pulsão de morte debatido em seu artigo “Além do
Princípio do Prazer” (1920). É importante afirmar que se nesse momento anterior havia um
esqueleto desse masoquismo primário e, neste artigo de 1924, isso vai ser tomado como certo.
A idéia de um masoquismo inicial é fundamentada na “fusão” e “defusão” das duas
classes de pulsão: pulsão de vida e pulsão de morte. Neste intuito, o autor demonstra que esse
masoquismo erógeno conduz a duas possibilidades: uma delas pode ser chamada de
“feminina” e uma outra que pode ser denominada de “masoquismo moral”.
No início do texto, Freud faz a proposta de que seja possível pensar o princípio do
prazer não apenas como cuidador da vida psíquica, mas como cuidador da vida como um
todo. É importante dizer que o aparelho psíquico guarda a função de reduzir a zero o quantum
de excitação que a ele chega, ou, no mínimo, mantê-la num nível mais baixo possível. Essa
tendência foi chamada de Princípio de Nirvana. Neste sentido, todo desprazer deveria
coincidir com uma elevação da tensão e, por conseguinte, o prazer, como uma redução do
quantum de excitação. Sendo, o Princípio de Nirvana estaria a serviço das pulsões de morte –
seu objetivo seria passar de um estágio de instabilidade, inerente à vida, à estabilidade do
estado anorgânico.
39
Nesse contexto, a função do princípio de Nirvana seria a de advertir contra as
reivindicações das pulsões de vida – isto é, da libido – que insistem em interferir no
intencionado curso da vida. No entanto, agora essa afirmação nos parece
necessariamente equivocada. Tudo indica que os aumentos e as diminuições das
magnitudes de estimulação são diretamente percebidos como uma seqüência de
sensações de tensão e obviamente há tensões que são sentidas como prazerosas, bem
como distensões percebidas como desprazerosas (...) Tivemos de nos dar conta de
que, no curso do desenvolvimento dos seres vivos, houve uma modificação que
transformou o princípio de Nirvana, associado à pulsão de morte, no princípio de
prazer. Portanto, a partir de agora não mais consideraremos o princípio de Nirvana
e o princípio de prazer como uma mesma coisa (Freud, 1924, p. 106).
Tem-se, neste sentido, que o princípio de Nirvana revela a tendência da pulsão de
morte; o princípio de prazer representa a sua mudança em reivindicação libidinal e, por fim, o
princípio de realidade, a influência externa. Eles, é bem verdade, não se destituem entre si;
eles, pelo contrário, convivem juntamente, apesar dos conflitos, por vezes, serem inevitáveis,
já que uma parte leva em consideração a redução quantitativa da excitação, outra parte, a
qualidade da diminuição dessa carga e, uma terceira, um adiamento do escoamento das
excitações acumuladas, exigindo uma aceitação temporária da tensão ocasionada pelo
desprazer (Freud, 1924).
É importante afirmar que o masoquismo se apresenta de três maneiras: erógeno,
feminino e moral. O masoquismo erógeno, ou seja, o prazer derivado da dor, embasa os
outros dois tipos. O dito moral se manifesta por uma culpa, normalmente, inconsciente. A
última forma é a mais fácil de ser observada. Trata-se de ser colocado, por exemplo, em uma
40
situação tipicamente feminina, isto é, ser castrado, objeto de coito ou dar à luz. E, é
justamente, no momento de culpa no masoquismo feminino que deriva o masoquismo moral.
É importante reafirmar que o masoquismo feminino é fundamentado pelo masoquismo
primário.
A função de exercer a moralidade e a consciência moral está sob os encargos do
supereu, instância herdeira do complexo de Édipo.
Ocorre que, ao longo do tempo, as pessoas que deixaram de ser objeto das moções
libidinosas do Id passaram a atuar no supereu como instância da consciência moral.
Contudo, elas pertencem ao mundo real externo do qual, aliás, foram extraídas.
Portanto, o poder dessas pessoas – atrás do qual se escondem todas as influencias
do passado e da tradição – foi outrora para a criança uma das manifestações da
realidade mais perceptíveis. Assim, é graças a essa coincidência que o supereu,
substituto do complexo de Édipo, pode também se tornar o representante do mundo
real externo e, portanto, um modelo a ser seguido pelos esforços do eu” (Freud,
1924, p. 112-113).
No final do artigo, Freud (1924) vai fazer uma afirmação fundamental que revela que
mesmo no processo destrutivo há um quantum de satisfação pulsional e libidinal.
Depois das considerações sobre o masoquismo, voltemos às questões suscitadas no
texto de 1920 – “Além do Princípio do Prazer”.
Freud, em suas observações acerca do brincar infantil, descreveu o fort-da como um
jogo de desaparecimento e aparecimento.
41
A criança estava segurando um carretel de madeira enrolado com um cordão (...)
atirava o carretel amarrado no cordão com grande destreza para o alto, de modo
que caísse por cima da beirada de seu berço cortinado, onde o objeto desaparecia
de sua visão, ao mesmo tempo que pronunciava seu ‘o-o-o-o’ significativo; depois,
puxava o carretel pelo cordão de novo para fora da cama e saudava agora seu
aparecimento com um alegre ‘da’ (Freud, 1920, p. 141).
Freud interpretou esse joguete com a renúncia pulsional que a criança conseguiu
alcançar – renúncia a satisfação pulsional, por permitir que o Outro se retirasse e, em seu
lugar, pudesse brincar de fazer “aparecer e desaparecer”. É importante notar que o fort-da
traz, em si mesmo, uma experiência que fora desprazerosa para criança – desaparecimento do
Outro (‘fort’); apesar do brincar possibilitar o “retorno”, o aparecimento do Outro (‘da’).
Freud nota que apenas um ganho de prazer poderia justificar essa brincadeira. Desta maneira,
ao repetir a vivência desprazerosa no joguete, haveria um ganho prazeroso, uma satisfação
que seria de outra ordem e, ao mesmo tempo, vinculado a esse modelo de repetição.
É relevante afirmar que a repetição, aqui, não está relacionada ao simples movimento
de jogar e recolher o carretel, mas a um movimento que vai muito além disso. Trata-se da
repetição do material recalcado e que o sujeito nem, ao menos, se dá conta. Pensa em algo que
é atual, cotidiano e não como um evento passado e que estaria sendo recordado. Neste
sentido, tem-se que, na clínica, a relação transferencial está permeada de vivências passadas
de cunho sexual infantil, ou seja, na vivência edípica do sujeito, atualizada na relação que se
estabelece com o analista. A compulsão à repetição seria, de acordo com o autor, algo muito
arcaico, elementar, inicial, puro pulsional; estaria suplantando o princípio do prazer, ou seja,
um mais além do princípio do prazer.
42
Neste sentido,
(...) surge a questão de como se estabelece a relação do princípio de prazer com a
compulsão à repetição, que é a manifestação da força do recalcado. É claro que
quase tudo que a compulsão à repetição consegue fazer o paciente reviver outra vez
causa muito desprazer ao Eu, pois nesse processo as atividades de moções
pulsionais recalcadas são expostas. Mas (...) trata-se de um desprazer que não
contradiz o princípio de prazer, pois é ao mesmo tempo desprazer para um sistema e
prazer para outro (Freud, 1920, p. 145).
Outro ponto importante é que a qualidade de conservação das pulsões induz a busca
por um estado inorgânico primevo. Ao se pensar que tudo o que está vivo retorna, em algum
momento, ao inorgânico – morte – é possível afirmar que : “o objetivo de toda vida é a morte
(...) O inanimado já existia antes do vivo (...) Essas pulsões que preservam a vida na verdade
foram originalmente serviçais da morte (Freud, 1920, p. 161 - 162).
De acordo com Roza (2004), o termo pulsão poderia ser permeado por dois campos:
o do aparelho psíquico - que compreende o inconsciente, o pré-consciente e o consciente - e o
para além do princípio do prazer - que seria o próprio local das pulsões. O primeiro setor
corresponde ao campo da representação, ou melhor, o representante da representação. Trata-
se do local da ordem e da lei, constituído pela rede significante e regida pelos dois princípios
fundamentais: princípio de prazer e princípio de realidade. A pulsão encontra-se no segundo
setor, acima da ordem e da lei, para-além da linguagem: lugar do acaso, do inesperado.
43
A pulsão traz consigo a marca da repetição. Ela é o que se repete. É importante dizer
que não se trata de repetição do mesmo, mas sempre de uma produção, algo do acaso, que traz
o novo, a criação e que implica em incitação de diferença (Roza, 2004). Neste sentido, o autor
recusa a idéia da pulsão de morte como uma tendência à repetição. É possível encará-la como
uma vontade de destruição, não implicando a agressividade – mesmo que esta possa ser um
efeito da primeira. Deve-se entender que isso não implica uma noção de maldade ou
crueldade.
A aceitação de uma destrutividade autônoma, não derivada da sexualidade ou não
ligada a ela, era de difícil aceitação por parte de Freud (...) O verdadeiro além do
princípio do prazer vamos encontrar (...) exposto em O Mal-estar na Cultura, sob a
afirmação da plena autonomia da pulsão de morte entendida como pulsão de
destruição (Roza, 2004, p. 133).
Tinha-se, no início freudiano, uma articulação da pulsão de morte com as pulsões
sexuais. A noção de destrutividade sempre aparecia atrelada à sexualidade e não como
destrutividade autônoma. A pulsão de morte, de acordo com a idéia concebida por Freud, era
silenciosa e invisível. Em seu texto O Mal-estar da Cultura (1930[1929]), ele reconhece a
agressividade e a destruição como fora do erótico, como não-sexual.
44
Essa onipresença da destrutividade custava Freud reconhecê-la. Ou melhor, não era
tanto a sua onipresença que provocava a resistência de Freud, mas, acima de tudo,
sua autonomia. Reconhecer uma pulsão destrutiva como algo totalmente
independente da sexualidade, era reconhecer a maldade fundamental e irredutível
do ser humano. Não se trata mais de uma sexualidade que, regida pelo princípio do
prazer, lança mão da agressividade para atingir seu objetivo, mas sim de uma
disposição pulsional autônoma, originária, do ser humano (Roza, 2004, p. 134).
Ainda segundo Roza (2004), a pulsão de morte seria, para Lacan, anti-natural,
enquanto que anti-cultural, de acordo com a concepção freudiana. Isto não significa afirmar
que seu alvo era a destruição da natureza ou da cultura, mas sim no sentido de questionar
ambas, de recusar-se à insistência do mesmo, ou seja, de instigar tanto nas formas naturais
como culturais a emergência de novas produções e criações. De acordo com as noções
trazidas por Lacan, a pulsão deteria uma dimensão histórica. Em si mesma, a pulsão estaria na
posição do a-histórico. Contudo, é fundamental pensar que a pulsão só é considerada como tal
devido ao simbólico. Para que seja apreendida numa dada rememoração fundamental, é
necessária a cadeia significante, na qual esta rememoração é viável. Ao ser capturada pela
cadeia significante, a pulsão alcança sua dimensão histórica. É importante mencionar que
aquilo que não é capturado mantém-se como potência dispersa, indeterminado e não-
memorável.
Retomando a noção de pulsão de morte como vontade de destruição, Roza (2004)
propõe uma nova terminologia: potência de destruição. Essa nova denominação afasta o
equívoco no termo ‘vontade’, como também distancia a noção de ‘vontade’
schopenhaueriana. Pensar a pulsão de morte como potência destrutiva é suscitar a disjunção e
45
a não-união, advinda do Eros. Por assim dizer, tem-se que a cultura marca a presença de Eros,
enquanto uma tentativa de reunião de indivíduos, anulando-se as diferenças e constituindo
uma totalidade que é a própria humanidade. A singularidade particular seria “reduzida” à
humanidade totalizante.
Ora, se entendermos o desejo como pura diferença, o projeto de Eros seria o da
eliminação da diferença e, portanto, do desejo, numa indiferenciação final que é a
humanidade. A pulsão de morte, enquanto potência destrutiva (e princípio
disjuntivo) é o que impede a repetição do mesmo, isto é, a permanência de
totalidades, provocando pela disjunção a emergência de novas formas. Ela é,
portanto, criadora e não conservadora, posto que impõe novos começos ao invés de
reproduzir o ‘mesmo’. A verdadeira morte – a morte do desejo, da diferença –
sobrevém por efeito de Eros e não da pulsão de morte (Roza, 2004, p. 136-7).
Por fim, tem-se que não tendo objeto próprio, o objeto será ofertado pela fantasia;
isto implica afirmar que a caracterização do sexual só é possível via articulação significante e
a submissão pulsional. “Anteriormente a essa submissão, o sexual carece de significado. É em
termos de significantes que o sexual vai se constituir como diferença. Não há pulsão sexual. A
sexualidade constitui-se a partir da captura das pulsões pela rede significante” (Roza, 2004, p.
144).
É necessário fazer uma última consideração a respeito deste texto freudiano tão
importante para que, assim, seja possível pensar a noção de gozo postulada por Lacan. A
pulsão, é verdade, é o próprio movimento, ou seja, aquilo que não cessa de não se inscrever; é
eterna tentativa de se satisfazer.
46
A pulsão recalcada jamais renuncia à sua completa satisfação, a qual consiste na
repetição de uma experiência primária de satisfação. Todas as formações
substitutivas ou reativas, bem como as sublimações, são insuficientes para remover
sua tensão contínua. É da diferença entre prazer efetivo obtido pela satisfação e o
prazer esperado que surge o fator impelente que não vai permitir ao organismo
estacionar em nenhuma das situações estabelecidas, mas ao contrário, (...)
‘indomado, sempre impele para adiante’ (Freud, 1920, p. 165).
Um aspecto importante a se pensar são as formações do inconsciente e o retorno do
recalcado. Sendo o sintoma um exemplo, tem-se que não se trata apenas de um desejo
inconsciente que fora recalcado, mas, também, de um quantum de satisfação na manutenção
desse sintoma. Este traz em sua essência, tanto o prazer como o desprazer. De fato, na clínica,
o sujeito comparece enredado em seus sintomas, dividido entre a ambição de livra-se e as
dificuldades encontradas para tal. Isso está ligado ao aspecto inconsciente do sintoma e ao
próprio trabalho do recalque que, em linhas gerais, busca afastar o desprazer. É possível
afirmar que o quantum de prazer estaria relacionado, justamente, com a satisfação da pulsão e
a realização parcial do desejo, nesse retorno do recalcado.
Há, na vida psíquica,
(...) uma tendência à repetição, uma tendência cuja pulsação se afirma sem levar
em conta o princípio de prazer, situando-se acima dele, impondo o sujeito a prova
de uma satisfação mórbida (...) Mais-além do princípio do prazer, manifestam-se as
pulsões de morte, forças de desligamento da vida (Tânatos), que não se podem
apreender em estado puro, pois estão ligadas às pulsões de vida (Eros) (...) O fato
47
de que os instintos de morte possam ser obstáculo para o princípio de prazer,
manifestando-se por fenômenos repetitivos que geram o prazer na dor, leva Freud a
encara a existência de um masoquismo primário (...) (Valas, 2001, pp. 23 - 24).
2.3 Do indizível ao submetimento à Lei do desejo
Na teoria freudiana, a neurose está marcada na vivência passiva do infans no
encontro com o sexual, com a sedução vinda de um outro5. A criança tem esse registro da
irrupção do real sexual. Essa lembrança provoca uma elevação da tensão que não consegue
ser descarregada. Dessa maneira, essa lembrança não se acopla ao sistema de representações.
Trata-se de uma lembrança traumática que é vivenciada como uma ameaça a integridade do
eu.
“É assim que a lembrança se torna traumatismo, ao mesmo tempo ferida e arma
ferina que não se pode tolerar; dor e tortura de uma memória inconciliáveis com o eu (...) O
sujeito (...) separa-se horrorizado dessa lembrança” (Braunstein, 2007, p. 21). De fato, o
recalque traz consigo um afastamento; o que há de ser lembrado é que esse afastamento é
parcial, já que o trauma não desaparece ou é esquecido, mas, pelo contrário, é eternizado.
O que ocorre é que o eu tem em si mesmo um inimigo; o desencadeante de situações
inesperadas e indesejadas se colocado em liberdade. No entanto, para mantê-lo em cárcere, é
necessário um dispêndio de energia e uma eterna luta contra esse material que insiste em
querer fugir - o que acontece quando as defesas falham. O eu vira escravo de daquele
conteúdo que ele próprio aprisionou. O traumático que antes era a experiência introduzida
pelo Outro, passa a ser a lembrança em si.
5 Optou-se por escrever “outro”, com “o” minúsculo por estar fazendo referência à obra freudiana. Com as contribuições de Lacan, sabe-se que esse “outro” estaria no lugar do “Autre”, ou seja, “Outro”.
48
O paradoxo é evidente: o princípio de prazer determinou o ostracismo e a exclusão
da lembrança traumática. Para se proteger do desprazer, o aparelho decretou a
ignorância dessa presença do Outro e de seu desejo que intervém sobre o corpo de
uma criança, objeto indefeso do qual abusa para gozar. Mas, ao cindir-se como
núcleo reprimido de representações inconciliáveis com o eu, este réprobo do
psiquismo, metamorfoseado em memória inconsciente, conserva-se para sempre,
torna-se indestrutível, atrai e liga a ele as experiências posteriores e retorna,
opressivo, às vezes, nas posteriormente chamadas “formações do inconsciente”,
entre as quais o sintoma é a mais sensacional (...) O sujeito, aquele do inconsciente,
experimenta a si mesmo na tortura dessa memória recorrente que o põe em cena
como objeto da lascívia do Outro (Braunstein, 2007, p. 21-22).
Neste sentido, tem-se que na introdução do sexual, o corpo da criança é um pedaço
de carne, ou seja, passivo e indefeso diante do desejo do Outro. É objeto demandado pelo e
para o Outro. A sedução se dá nos primeiros cuidados, na relação da satisfação das
necessidades e com o submetimento do corpo e do sujeito a esse Outro desejante. É
importante observar que o sujeito vai assumir diferentes posições no desejo, assim, como no
fantasma do Outro (Braunstein, 2007). Essas considerações são de suma relevância e farão
mais sentido nos próximos capítulos, em que se apresentarão as diferenças diagnósticas no
campo da psicose e da perversão.
É possível afirmar que a sedução originária e primordial, marca o gozo no corpo do
sujeito e o prepara para o momento que será experenciado posteriormente. O gozo, como o
indizível, o excesso, o impossível será submetido à lei, à linguagem, ou seja, à castração.
49
Essas formulações compreendem a primeira teorização da etiologia das neuroses. A
teoria do trauma, desse Freud inicial, apresenta o excesso desse quantum energético, dessa
carga, desse gozo inarticulável e intolerável; esse excedente que ultrapassa as leis da
representação. É a partir desse momento inicial que o conceito de gozo vai se desprender,
conceito esse que acompanhará para sempre a história da psicanálise.
A carne do infans é desde o princípio um objeto para o gozo, para o desejo e para o
fantasma do Outro. Ele deverá conseguir representar para si seu lugar no Outro, ou
seja, deverá constituir-se como sujeito passando, imprescindivelmente, pelos
significantes que procedem desse Outro sedutor e gozante e, ao mesmo tempo, inter-
ditor do gozo. O gozo fica assim confinado por essa invenção da palavra, em um
corpo silenciado, o corpo das pulsões, da busca compulsiva de um reencontro
sempre fracassado com o objeto (...) O sujeito (...) produz-se, então, como função de
articulação, de dobradiça, entre dois Outros, o Outro do sistema significante, da
linguagem e da Lei, por um lado, e o Outro que é o corpo gozante incapaz de
encontrar um lugar nos intercâmbios simbólicos (...) (Braunstein, 2007, p. 23-24).
A lei entra neste lugar de barra, de contenção do gozo. De fato, a lei se estabelece
nesse limite, nessa proibição. Freud, em sua teoria, nomeia essa interdição de complexo de
castração. Trata-se da contenção deste gozo que tem como ícone o falo. É neste sentido que se
pode afirmar que a lei que rege o prazer entra na cadeia simbólica; o caminho de entrada é via
Lei desejante. A partir da marca da falta – inscrita pela entrada no simbólico e na linguagem
via complexo de castração e metáfora paterna – é que o sujeito pode desejar. O sujeito
renuncia a esse gozo primordial em troca de uma promessa de um outro gozo; renúncia essa
50
que identifica o sujeito da lei. Deste modo, a lei que viabiliza o desejo, impõe, para tal, uma
renúncia ao gozo. O gozo da Coisa se perde na imersão do sujeito na palavra.
(...) o sujeito vê-se levado, primeiro à localização do gozo em um lugar do corpo e,
segundo, à proibição do acesso a esse gozo localizado se não passar antes pelo
campo da demanda dirigida ao Outro (...) O gozo originário, gozo da Coisa, gozo
anterior à Lei, é um gozo interdito, maldito, que deveria ser inclinado e substituído
por uma promessa de gozo fálico que é consecutiva à aceitação da castração (...) O
gozo fálico é possível a partir da inclusão do sujeito como súdito da Lei no registro
simbólico, como sujeito da palavra que está submetido às leis da linguagem. O gozo
sexual faz-se assim, gozo permitido pelas vias do simbólico (Braunstein, 2007, p.
32).
Dessa maneira, pode-se afirmar que o sujeito se constitui, como tal, por estar fora
desse gozo inicial (Das Ding), não simbolizável. Em seu processo de constituição, o infans irá
se orientar pela primazia fálica, com o falo como significante e “imã” para todo o resto da
cadeia de significação e significante. Neste sentido, diz-se de uma passagem da Coisa ao falo,
ou seja, a inscrição da castração e do Nome-do-Pai. Desse processo fica, ainda, um resto.
Trata-se do resto indizível, não simbolizado; diz-se do real ao qual tenta-se apreender com os
significantes, com a linguagem; contudo, ele sempre escapa “(...) escorre e, além disso, se
produz como efeito de discurso pela própria palavra, o objeto a, o fugidio mais de
gozo”(Idem, p. 42).
Em meio a essa formulação da noção de gozo, é fundamental fazer uma breve
retomada do conceito de supereu, tendo em vista a relação estreita entre ambos. Trata-se de
51
uma instância sempre atenta; que vigia e castiga aquilo que está para-além do permitido.
Aqui, as transgressões não são muito bem aceitas. De acordo com a idéia inicial freudiana, o
supereu estaria por trás de conflitos que trazem à tona o que se satisfaz e o que é da ordem do
desejo. Em acréscimo, o supereu se faz imperativo do sacrifício, do suplício para o sujeito;
como se já não bastasse, exclama, a todo momento, o seu mandado categórico: goze!
É pela presença dessa instância que a culpa comparece no campo do sexual e do
erótico. De acordo com Braunstein (2007), o supereu substitui o prazer pelo gozo. Esse
mandado de gozo faz marcas no sujeito.
(...) esse imperativo é também um chamado: você não está a serviço de si mesmo,
mas presta contas a algo que lhe é superior e que é sua causa, sua Causa. A
existência lhe é oferecida e deve prestar contas dela, ainda que não a tenha pedido,
deve oferecer sua libra de carne a um Deus inclemente. (...) E o gozo é
consubstancial ao sacrifício. Em sua oferenda é o sujeito que se oferece, se submete
ao jugo que o instala na comunidade, que o inclui dentro do vínculo social, fazendo
partícipe do clã (p. 46).
52
2.4 O gozo fálico e o Outro gozo
Do gozo primeiro nada resta, a não ser sua representação, sua mitificação desde o
momento em que se foi para todo o sempre. Nunca mais será recuperado em sua formatação
original. O corpo, como reservatório inicial do gozo, vai sendo destituído deste lugar; esse
material vai deixando esse corpo e preenchendo narcisicamente o eu, através das imagens e
palavras. Tem-se, neste sentido, um gozo delimitado, submetido à lei e às imposições do ideal
do eu, do supereu, com uma errônea e pretensiosa idéia de que a Coisa possa ser recuperada.
É interessante lembrar que nada se sabe do real, a não ser por intermédio das construções
míticas viabilizadas pela linguagem.
Passa-se, assim, do gozo do ser para o gozo fálico. Deste momento primeiro, restam
apenas os objetos que se substituem na busca do encontro com essa Coisa do princípio, como
objeto absoluto do desejo, ou ainda, com essa vivência sem renúncia do gozo. Ao ser marcado
pela limitação da lei, da linguagem, o gozo passa a ter uma constituição, uma significação
fálica. Neste sentido, tem-se a inscrição significante no gozo corporal. Ao interditar o sujeito
ao gozo do corpo, à Coisa, a Lei oferta a possibilidade do sujeito aceder ao gozo que lhe é
acessível e permitido: o gozo fálico.
A renúncia ao gozo fechado e estranho da Coisa permite ao sujeito que aceita a Lei
de interdição ter acesso à função simbólica da fala no campo da linguagem. Com
isso, o gozo fálico se abre para ele, pelo meio da fala e do discurso (...) O gozo
fálico, sendo ligado à linguagem, se manifesta como uma satisfação verbal. É o gozo
do blábláblá, que se produzirá como tal no nível das formações do inconsciente
(Valas, 2001, p. 63).
53
Para além dessas duas categorias em que o gozo se dispõe, há uma outra “mais-
além”, do qual a linguagem e o homem encontram-se excluídos. Trata-se do gozo feminino –
aquele não inscrito na lógica e que se aproxima do amor na ausência de limite, de borda. O
amor, de acordo com Lacan é ofertar aquilo que não se tem. É a partir dessa noção que ele
pode atravessar o emparelhamento ser/ter, numa tentativa de recobrir a falta fálica com o
amor. O gozo feminino não foi perdido pela castração, mas surgiu como um “a mais”, ou seja,
a mulher não se encontra referida, totalmente e por completo, à lógica fálica, mas a uma outra
lógica que vai além do falo e que indica um gozo a mais, excedente, sem limite.
Optou-se por apenas mencionar a categoria de gozo feminino, tendo em vista que o
interesse do presente trabalho se concentra, significativamente, nas duas primeiras categorias
trabalhadas, ou seja, no campo do gozo do ser e do gozo fálico.
Retomar-se-á essas formulações ao final do trabalho, a fim de configurar um viés
possível, juntamente, com a lógica da fantasia na disposição estrutural do sujeito nos quadros
psicóticos e perversos.
54
Sobre a Psicose
3.1. Primeiras notas
Freud (1924 [1923]), no artigo Neurose e Psicose, afirma que a neurose é o resultado
de um conflito entre o Eu e o Isso, no qual o eu se coloca a serviço da realidade exterior e do
Supereu; enquanto a psicose seria uma conseqüência análoga de um conflito semelhante nas
relações entre o eu e o mundo externo. Logo depois, no texto A Perda da Realidade na
Neurose e na Psicose, Freud (1924) retoma essa questão, descrevendo tanto a neurose como a
psicose em dois momentos. Na neurose, primeiramente, há um conflito do Eu com o Isso. É
importante ressaltar a diferença que marca a instalação e a própria neurose em si. Esta última
se instaura quando
o pedaço elidido do isso ressurge e vai, por assim dizer, se chapar sobre uma outra
parte da realidade que não aquela que está em conflito com o isso. É o tempo do
fracasso do recalcamento e do retorno do recalcado que define a neurose como tal e
do qual resulta o afrouxamento das relações com a realidade (Safouan., 1991,
p.216-217).
Na psicose, por sua vez, há, inicialmente, um conflito com a realidade e é a partir
disso que surge uma ruptura dos elos com o mundo exterior. O segundo tempo se constituiria
como uma necessidade de compensação dessa perda ou como substituição dessa realidade
perdida.
55
A diferenciação entre neurose e psicose comparece quando afirmamos que enquanto
na psicose a perda da realidade ocorre num primeiro momento, num tempo antes da própria
instalação, constituindo um esforço de preenchimento do vazio criado, o afrouxamento com
as relações com o mundo externo é, na neurose, o efeito de um retorno do recalcado para o
real (Safouan, 1991).
No seminário III (1955-56) – As Psicoses – Lacan sugere um retorno a Freud numa
tentativa de compreender como os fenômenos psicóticos poderiam ser compreendidos. A
princípio, toma-se a relação do sujeito com a realidade e as conseqüentes diferenças na
estrutura neurótica e psicótica.
Freud distingue a realidade psíquica e a realidade material, empírica. Ele vai afirmar
que, na neurose, trata-se da supressão de uma parte da realidade psíquica. Apesar de
esquecida, ela continua a se fazer ouvir, se impondo via uma significação própria, ou seja, via
simbólico (Lacan, 1955-56). Em compensação, na psicose, as coisas não funcionam bem
assim.
Na neurose, é no segundo tempo, e na medida em que a realidade não é plenamente
rearticulada de maneira simbólica no mundo exterior, que há no sujeito, fuga
parcial da realidade, incapacidade de enfrentar essa parte da realidade,
secretamente conservada. Na psicose, ao contrário, é realmente a própria realidade
que é em primeiro lugar provida de um buraco, que o mundo fantasístico virá em
seguida cumular (Lacan, 1955-56, pp. 56-57).
56
Lacan apresentará o caso de uma paciente a fim de elucidar algumas questões acerca
da psicose.
O caso: uma certa vez, ao sair de sua casa, esta mulher cruzou com um homem no
corredor. Tratava-se de um rapaz casado, muito mal-educado e que mantinha relacionamentos
extra-conjugais com a vizinha desta paciente. Ao se cruzarem, ela diz: Eu venho do
salsicheiro. De acordo com ela, o rapaz lhe ofende, dizendo: Porca.
Lacan se indaga: “Quem será que fala?”. O que se tem é uma palavra ouvida –
porca. O que o autor considera é que ela tenha vindo do real.
(...) para o sujeito, é manifestamente alguma coisa de real que fala. Nossa paciente
não diz que é um outro qualquer atrás dela que fala, ela recebe dele sua própria
fala, mas não invertida, sua própria fala está no outro que é ela mesma, o outro com
minúscula, seu reflexo no espelho, seu semelhante. Porca é replicado toma lá dá cá
(...) Eu venho do salsicheiro. Ora, quem vem do salsicheiro? Um porco cortado. Ela
não sabe que diz isso, mas o diz assim mesmo. Esse outro a quem ela fala, ela lhe diz
de si mesma – Eu, a porca, eu venho do salsicheiro, já sou desconjuntada, corpo
espedaçado, membra disjecta, delirante e meu mundo se vai em pedaços, como eu
mesma (Lacan, 1955-56, pp. 63-64).
57
Dessa maneira, é necessário e crucial se considerar a psicose como uma estrutura
clínica bastante diferente da neurose, cada uma com suas peculiaridades e especificidades.
Quinet (2003) afirma que ao falar em psicose, ao invés de psicoses, acentua-se aquela como
uma estrutura clínica que se apresenta no dizer do sujeito e que corresponde a uma forma
particular de articulação dos registros do real, simbólico e imaginário. Trata-se de uma
estrutura da linguagem, ou melhor, da relação do sujeito com o significante.
Em 1911, com a publicação do caso Schreber, Freud irá fazer algumas considerações
a respeito das questões implicadas na psicose. O autor irá descrever a formação delirante
como o retorno do que foi abolido internamente. Lacan irá retomar essa frase de Freud para
afirmar que o que é forcluído no simbólico retorna no real (Lacan, 1955-56). É baseado nisso
que o recalque se difere significativamente da forclusão6. Lacan irá propor a forclusão como o
mecanismo central da psicose.
A proposta conceitual de Lacan é a de considerar a foraclusão do Nome-do-pai como
o mecanismo específico da psicose levando-nos de imediato a duas considerações: a
primeira é que o retorno do foracluído não é a mesma coisa que o retorno do
recalcado (...) Em segundo lugar, recoloca-se no cerne a teoria psicanalítica das
psicoses a referência ao Édipo até então restrita aos mecanismos de defesa do eu (...)
O Édipo é a armadura significante mínima que condiciona a entrada do sujeito no
mundo simbólico. E é a partir da ordem simbólica que se deve pensar a questão da
psicose (Quinet, 2003, p.6-7).
6 Apesar de ambos os termos serem encontrados na bibliografia utilizada – foraclusão e forclusão – priorizou-se a apresentação deste último, neste trabalho. Contudo, respeitar-se-á a escolha dos autores nas citações literais.
58
Diante da castração, ou melhor, perante a forma com que cada indivíduo lida com
esta, o sujeito irá dispor de mecanismos de defesas próprios para com este fenômeno lidar.
Com isso, pode-se pensar que a estrutura do sujeito será calcada nesta postura tomada pelo
mesmo diante da castração, juntamente com seus mecanismos utilizados defensivamente
diante o perigo.
Lacan vai postular a Bejahung como a afirmação, a simbolização primordial que
precede toda a dialética neurótica, na qual a neurose é uma palavra articulável em que
recalcado e retorno do recalcado se aproximam, ou seja, são uma só e mesma coisa (Lacan,
1955-56). Contudo, pode ocorrer que essa marca primordial, ao invés de recalcada, seja
rejeitada. Isto é, uma Verwerfung primitiva, que não viabiliza a simbolização, ocasionando
um retorno desse material do campo do real. É isso que a psicose vem mostrar.
(...) o fenômeno psicótico é a emergência na realidade de uma significação enorme
que não se parece com nada – e isso, na medida em que não se pode ligá-la a nada,
já que ela jamais entrou no sistema da simbolização – mas que pode, em certas
condições, ameaçar todo o edifício (Lacan, 1955-56, p. 102).
E ainda,
Quando, em condições especiais (...) alguma coisa aparece no mundo exterior que
não foi primitivamente simbolizada, o sujeito se vê absolutamente desarmado (...)O
que se produz então tem o caráter de ser absolutamente excluído do compromisso
simbolizante da neurose, e se traduz em outro registro, por uma verdadeira reação
59
em cadeia ao nível do imaginário (...) Uma exigência da ordem simbólica, por não
poder ser integrada no que já foi posto em jogo no movimento dialético sobre o qual
viveu o sujeito, acarreta uma desagregação em cadeia, uma subtração da trama da
tapeçaria, que se chama delírio (Lacan, 1955-56, pp. 104-105).
3.2 A Forclusão do significante e o fenômeno psicótico
Retomando, o termo forclusão foi a tradução encontrada para a palavra de origem
francesa forclusion. Este termo, proposto por Lacan, foi tomado de empréstimo do
vocabulário jurídico e significa que quando, por exemplo, um processo está forclos, equivale
afirmar que não se pode apelar, por se ter perdido o prazo legal, ou seja, a exclusão de um
direito ou de uma faculdade que não foi utilizada em tempo útil. Sendo assim, a tradução é
um neologismo que se utiliza para apresentar a não inclusão e, ainda, o significante da lei que
está fora do circuito, sem deixar, no entanto, de existir, de estar, de certa forma, presente; já
que o que está forcluído do simbólico retorna no real (Quinet, 2003).
De acordo com a teoria lacaniana, o inconsciente é estruturado como uma linguagem.
Mas, a fim de que o indivíduo possa atribuir significado aos seus significantes e, assim, à sua
existência, é necessário que ele marque a sua entrada no simbólico; entendendo que a função
simbólica constitui um universo no interior do qual tudo que é humano pode ordenar-se. A
entrada do sujeito no campo simbólico se dá por intermédio do Édipo.
Segundo a teoria freudiana, a função imaginária do phallus é a questão central do
processo simbólico, que marca no ser humano a questão própria do sexo: o complexo de
castração. Este ocorre em dois tempos: na possibilidade da perda do pênis nos períodos de
masturbação infantil e, num segundo momento, na descoberta da ausência do pênis na mãe.
60
Quando o complexo de castração tem resultado, há um abandono da atitude edipiana, ou seja,
o naufrágio do complexo de Édipo, o qual sucumbe ao recalque (Quinet, 2003).
O Édipo é o preço que se paga para advir como sujeito da linguagem que é, portanto,
condenado a lidar com a falta, com a castração simbólica e com o recalque,
impedindo que a verdade do sujeito jamais possa ser dita por inteiro (Quinet, 2003, p.
15).
Não pagar esse preço do comprometimento simbólico marca a entrada para o campo
das psicoses. É na articulação com o significante que se situa a questão da loucura. Assim
sendo, para Lacan, a condição essencial da psicose constitui a forclusão do Nome-do-pai no
lugar do Outro e o fracasso da metáfora paterna.
Partindo-se da idéia de que a inscrição do Nome-do-pai no Outro marca a entrada no
simbólico, é possível afirmar que a forclusão deste significante na psicose corresponde à
abolição da lei simbólica, colocando em evidência todo o sistema do significante. É a
inscrição do Nome-do Pai que permite com que o sujeito entre na linguagem e articule sua
cadeia de significantes, passando a fazer parte, assim, da cultura.
Perante essa falta de referência simbólica, o psicótico funciona no nível do registro
imaginário, onde o outro caracteriza-se como modelo de identificação imediata. Este outro é
‘incorporado’ apenas pelo registro imaginário, este último marcado pela relação especular .
A fim de que o indivíduo ingresse na ordem simbólica e exerça uma função de
sujeito, é necessário que haja a inscrição da lei no Outro. De acordo com a teoria lacaniana, o
Édipo, dito em poucas palavras, pode ser resumido ao se afirmar que o Nome-do-Pai substitui
61
o desejo da mãe com o qual o pequeno sujeito se identifica como sendo seu objeto. A
conseqüência é a inclusão do Nome-do-Pai no Outro e o acesso à significação do phallus, que
possibilita o sujeito a dar significação aos seus significantes e situar-se diante da diferença
entre os sexos. A inscrição do Nome-do-Pai no Outro barra o acesso do sujeito ao gozo e
impede com que este seja objeto de gozo do Outro (Quinet, 2003).
Para aquele sujeito que atravessou as implicações edipianas, ou seja, o neurótico, o
Outro é barrado, cindido, não-absoluto, pelo fato de conter o significante da castração. O
Outro do sujeito neurótico é, assim, inconsistente e se apresenta a partir das formações
arranjadas pelo inconsciente, tais como os lapsos, sonhos, chistes. Esse Outro traz consigo a
marca da inscrição da lei, da norma – o Nome-do-Pai – que barra o gozo da mãe e a
impossibilita de considerar a criança como seu objeto. O Outro do neurótico é, nesse sentido,
esvaziado de gozo, pela intervenção da metáfora do pai. “A conseqüência da castração
simbólica é uma perda de gozo que no neurótico torna-se um gozo localizado correlacionado
a um objeto, objeto a causa do desejo” (Quinet, 2003, p. 30).
A partir da evidência levantada por Lacan da problematização da psicose como
sendo a forclusão do Nome-do-Pai e diante do buraco, deixado por este último, na ordem
simbólica, é possível afirmar que o fenômeno psicótico é o resultado da emergência e
exigência na realidade de um chamado a uma significação à qual o sujeito não pode responder
na medida em que esta jamais fez parte da sua estrutura.
Em seu artigo Neurose e psicose (1924[1923]), Freud afirma que o delírio se
constitui como um remendo no lugar em que originalmente apareceu um vazio, um buraco na
relação do sujeito com o mundo externo. A carência da metáfora paterna no simbólico
corresponde a esta fenda, preenchida via delírio, isto é, via construção de uma nova realidade
na qual o sujeito caiba.
62
A forclusão do Nome-do-Pai na psicose põe em causa toda a cadeia de significantes
que assume, então, sua independência e se põe a falar, à revelia do sujeito. A lei do
significante exercerá seus efeitos sobre este e o fará falar numa língua por ele
ignorada. As alucinações objetivam o sujeito numa linguagem sem dialética que se
impõe sem cessar (...) O sujeito é senão testemunho de seu inconsciente. O Outro
como portador da lei está excluído na psicose e o sujeito (...) se encontra assim à
mercê da onipotência deste e de seus imperativos (Quinet, 2003, p. 31).
No processo de simbolização, há uma mediação entre a criança e a mãe que não se
reproduz sozinha, mas a partir da intervenção de um terceiro, que introduza a lei interditora,
proibitiva, como uma negação à reintegração da criança pela mãe e uma negação à criança
como objeto de uso e de gozo da mãe. É, neste momento, que aparece a instância paterna
como a metáfora do Pai, ou seja, aquilo que no discurso da mãe diz do pai: o Nome-do-pai.
Este significa para a criança que o desejo da mãe se encontra em um outro lugar e que ela, por
sua vez, também é subordinada a uma lei (Quinet, 2003). “A experiência do Édipo, de sua
decepção, da lei que é imposta, tudo isso revela ao sujeito que, em vez e no lugar da falta da
mãe, não existe ele próprio, enquanto falo dessa mãe, mas o pai” (Waelhens, 1972, p. 118).
É via discurso materno que o pai comparece exercendo a (dupla) proibição; ao filho:
‘não dormirás com a tua mãe’ e à mãe: ‘não reintegrarás o teu produto’. Ressalta-se que o
discurso materno só se efetiva como porta-voz da Lei, se a mãe aceita esta última. De acordo
com Lacan, esse momento de estabelecimento da Lei constitui-se sob a perspectiva de uma
metáfora, ou seja, um significante que vem ocupar o lugar de um outro significante (Lacan
apud Mucida, 1998). O pai é, dessa forma, um significante que vem substituir o significante
63
do desejo da mãe que será recalcado. É importante afirmar que não se trata de um pai real ou
de uma presença efetiva, mas sim de um aspecto simbólico que marque o significante do Pai.
Este comparece como um terceiro que cerceia o elo mãe – filho. Dessa forma, o Nome-do-pai
refere-se ao pai enquanto função simbólica, e não enquanto presença real. A inclusão desse
significante no Outro inscreve no sujeito a possibilidade de sua entrada na ordem simbólica e
permite a inauguração da cadeia de significantes no inconsciente, implicando as questões
relacionadas à sexualidade e a existência desse mesmo sujeito.
Há uma diferença crucial entre um significante recalcado no sujeito e descoberto
mediante as formações de compromisso, ou seja, sob a forma de sintoma, lapso, chiste, etc, e
um significante forcluído, marca que caracteriza a psicose. É somente a submissão à Lei que
permite que o sujeito se torne um ser desejante. É por esta falta primordial que ele tornará
viável o imperativo metafórico de só poder ser, subordinando-se a esse lugar para todo o
sempre inacessível e, ao mesmo tempo, fundador (Mucida, 1998). A carência do significante
impede o psicótico a produção de um discurso. Esse buraco, ou seja, essa falta ao nível do
significante, o psicótico tenta “recuperar” via delírio e alucinação. Assim, os significantes
forcluídos não são integrados no inconsciente do sujeito; eles retornam do real, numa tentativa
de preenchimento dessa falta, desse vazio.
A psicose envolve justamente essa dificuldade relativa à castração; efeito
incontestável do reconhecimento do Nome-do-pai. Na ausência desse significante e, assim,
forcluído desse Nome, o psicótico se apresenta como um sujeito possuído pela linguagem, em
que não se coloca como sujeito de seu discurso. De acordo com Lacan, ele não fala, ele é
falado. “Se é falado, ele não produz, efetivamente, um discurso enquanto um campo no qual o
emissor emite uma mensagem ao receptor, referenciando-se no objeto. O psicótico é a
referência e o objeto de sua fala” (Mucida, 1998, pp. 87-88).
64
A base simbólica efetiva, como já anteriormente assinalado, advém do Édipo. Na
questão psicótica observa-se forcluída a castração simbólica e, conseqüentemente, o pai, ou
melhor, o Nome-do-pai. A hiância que comparece no pólo Nome-do-pai tende a ser
preenchida pela metáfora delirante. Dessa maneira, esta comparece no real como forma de
suprir esta hiância advinda da forclusão do Nome-do-pai. É necessário afirmar que a própria
metáfora delirante induz um quantum de estabilização do delírio, permitindo-lhe uma certa
restauração da ordem simbólica (Mucida, 1998).
Freire (2000) afirma que “a psicose é a encarnação do real como impossível” (p. 56).
Este impossível enquanto impossibilidade de circunscrever, de simbolizar a diferença sexual,
na medida em que não há na linguagem, ou no simbólico, um representante que acople e
aborde a diferença sexual ou que demarque o lugar que o sujeito deve ocupar diante da
diferença sexual.
Perante esta não possibilidade, alguns sujeitos reagem a essa não garantia não
aceitando um pai que, visto de uma forma simbólica, seja fiador do valor da diferença entre os
sexos. Assim sendo, eles rejeitam o lugar do pai com fiador, marca simbólica da diferença.
A vivência fenomênica do transbordamento dessa impossibilidade, ocorre, na
realidade, devido à rejeição ou não aceitação da própria perda, da castração, feita
pela linguagem. Essa opção é mais cruel, em um certo sentido, do que aquela de uma
aceitação dessa impossibilidade, pois muitas vezes, essa rejeição da perda, da
castração é vivida como o inconsciente a céu aberto, isto é, uma invasão sem
recalque, sem limites desse ilimitado, desse excesso – do que Freud nomeou excedente
sexual e Lacan de gozo (Freire, 2000, p. 57).
65
É importante afirmar que esta impossibilidade é constituinte e imanente à construção
do saber, ou seja, há sempre um não todo, uma impossibilidade, algo real que não é possível
de se representar pela linguagem. Esse não todo pode ser observado nos tipos de falhas na
linguagem do sujeito psicótico; falhas que comparecem no campo da linguagem, seja pelo
negativismo, como afirmaria Freud (1925), seja pelos fenômenos de código e da mensagem,
segundo Lacan (1988). De acordo com os fenômenos de código, três experiências são
possíveis: os neologismos, os fenômenos em que o vazio da significação aparece como falas
sem sentido e, por fim, vivências em que o não todo próprio da linguagem é vivenciado como
certeza. Segundo os fenômenos de mensagem, destacamos os fenômenos das mensagens
interrompidas características dos pacientes psicóticos. Estes são vividos em sua forma radical
e excessiva, expressando uma vivência imaginária daquilo que, na realidade, constitui a
própria estrutura, isto é, o impossível próprio do simbólico. Transbordamentos imaginários
que levam ao impossível imanente à estrutura, já que o simbólico caracteriza-se pelo buraco,
pela incompletude do saber poder significar, representar e simbolizar tudo o que acontece no
real e que afeta o sujeito (Freire, 2000).
3.3. A Psicose e o Objeto a
É interessante apresentar a relação da psicose com o conceito lacaniano objeto a.
Este constitui-se como o real silencioso, como a causa do desejo. É pela retirada desse objeto
pelo fenômeno da castração que é possível condensar o gozo para além do corpo, tornando-o
o gozo fálico, ou seja, um gozo que falta, justamente, por incluir a falta. “Torna-se patente a
relação do psicótico com o objeto a: não havendo a extração desse objeto, o psicótico tem,
como solução, de ser ele o próprio obturador da falta (objeto a)” (Mucida, 1998, p.91). O
objeto a compreende, assim, justamente o não-apreensível, o não–simbolizável dessa falta.
66
(...) falta como na primeira experiência de satisfação em Freud, falta porque
nenhuma representação poderia reconstruir essa plenitude, falta que designa, nos
termos de Lacan, o gozo como plenitude impossível. O objeto a designa o não
simbolizável do gozo ou desse resto que se desprende do corpo” (Freire, 2000, p. 61).
Tendo o objeto a como o que compreende o não-representável do gozo impossível, o
psicótico que o leva consigo tem como vivência a invasão desse gozo, no sentido de que ele
não aceita a resposta paterna de circunscrevê-lo como gozo impossível. Na realidade o Nome-
do-Pai é o que introduz o phallus como o que designa a possibilidade de simbolizar esse gozo
impossível. O sujeito psicótico forclui esse significante do Nome-do-Pai (Freire, 2000).
Pinheiro ressalta que na psicose a unidade corporal permanece inacabada. A autora
afirma que a perda do objeto foi forcluída e não o objeto em si mesmo (Pinheiro, 2000 apud
Porto, 2000).
A metáfora do Nome-do-pai constitui um espaço de autenticação do pai simbólico.
Este significante, ao operar na simbolização da Lei, ordena acesso ao Simbólico, que marca
para o sujeito a sua posição desejante, estruturando, dessa forma, o sujeito como barrado.
Assim sendo, é a forclusão do Nome-do-pai que induz a instauração do processo psicótico. “O
furo aberto no significante o Nome-do-pai e a ruptura entre os três registros mostram que não
houve substituição do significante desejo da mãe pelo significante Nome-do-pai. Isto justifica
a conseqüente organização subjetiva psicótica” (Porto, 2000, p.163).
Freud irá pensar a psicose como uma forma de alterar a realidade inadmissível da
castração. Sendo a dimensão da linguagem algo abolido pelo sujeito psicótico, ele, então
literaliza a linguagem, tomando as palavras como coisas e as tornando literais. O delírio se
constitui como o resultado deste trabalho. O retorno do real da castração exige um esforço de
67
re-arranjamento da realidade, que é delirante, pretendendo inscrever simbolicamente a
castração, via delírio. Este último equivale a uma metáfora que inscreve a castração, que
promove a recuperação da função paterna de suporte da castração.
Na psicose, o Eu é máquina auto-erótica invadida pelo significante puro. O Eu
submerge ao excesso da proliferação autônoma do significante puro, aproximando-se
do ‘sujeito do inconsciente’(...) Na psicose, a palavra não remete a um significado
inconsciente recalcado, mas é o próprio inconsciente, a coisa que se mostra. Isto nos
permite pensar que a psicose é a manifestação radical do inconsciente, porque se
expõe à castração sem o véu das fantasias paternas. Isto nos permite tomar as
palavras como coisas e as coisas como manifestação mais direta do inconsciente
(Porto, 2000, p. 165).
O que está em jogo na estrutura psicótica, a partir do que foi insistentemente
colocado, é o significante condicionante do recalque originário e do acesso do sujeito do
inconsciente à significação do phallus, ou seja, o Nome-do-Pai. Ou ainda, o acesso a ordem
sexual do inconsciente, pela metáfora paterna. Sendo forcluído do simbólico, o que
comparece é um buraco, uma ausência.
68
O psicótico é o sujeito estruturado de tal forma que, para ele ,o inconsciente se
apresenta sob uma forma não interiorizada, não concernente à sua subjetividade
enquanto passível de uma apreensão individualizável; O Outro psicótico é
consistente, absoluto, gozador, não-barrado. O Real não se constitui como impossível,
perfurando a barreira do recalcamento originário e presentificando-se para o sujeito
como (...) alucinação. (...) O psicótico não tem a sua subjetividade sexualizada,
parcializada, mas situa-se fora-do-sexo (horsexe), do que decorre a sua invasão pelo
gozo do Outro (absoluto), e pelo correlato gozo do corpo (real) (Elia, 1991, p.76).
É importante notar que a condição subjetiva da psicose é marcada pela decomposição
de seus elementos estruturais em seu estado fragmentário e elementar.
3.4 Últimas observações
A análise clínica permite a emergência das formações do inconsciente, as incidências
do registro simbólico, por meio de um rearranjo da configuração imaginária e narcísica do
sujeito. Ao tomar o narcisismo e o registro imaginário como as marcas da interiorização na
estrutura neurótica, o processo de análise constitui-se no fazer falar, no fazer com que o
sujeito produza a partir da sua divisão e, por fim, promover o confronto não apenas com
aquilo que a sua estrutura de sujeito fará sempre faltar-lhe, mas principalmente, que ao Outro
também lhe falta, que não é completo e absoluto e, sendo assim, não poderá suprir a falta do
indivíduo por pura impossibilidade estrutural (Elia, 1991).
Com relação às psicoses, levando em consideração, obviamente, todas as suas
implicações, é necessário que o analista possa, de alguma maneira, tornar inconsistente, não-
69
absoluto, o Outro do psicótico, ou seja, barrá-lo de sua condição de Outro absoluto e gozador.
Tal exercício só poderá constituir-se na relação transferencial, onde o sujeito psicótico institui
a consistência do Outro – está se falando, inclusive, do próprio analista – e em condições
possíveis de ser suportado o confronto com a ausência e a falta desse Outro (idem).
Não se trata, para o analista de psicóticos, de neurotizá-los, de produzir
recalcamento, de torná-los sujeitos “barrados”. Trata-se, antes, de fazê-los
deslocarem-se de sua posição de objeto do gozo do Outro, a fim de que organizem sua
subjetividade como lhes for possível, no interior de suas formas próprias de
organização subjetiva, que são diferentes das formas neuróticas (Elia, 1991, p. 77).
Obviamente, o elemento que foi forcluído não é detectável na clínica, já que, de certa
forma, o que caracteriza este fenômeno é, realmente, o fato de ser impossível encontrá-lo
integralmente. Diferentemente da psicose, o elemento recalcado na neurose é possível de ser
reconhecido, claramente, nos seus disfarces e substitutos, ou seja, nas suas deformações que
os tornam possível de comparecer. Assim sendo, “o elemento forcluído é, por natureza,
inacessível enquanto tal” (Leclaire, 1991, p.250). Este se apresenta pela própria ausência que
constitui, marcando uma profunda depressão, um enorme buraco.
O sinal que se mostra clinicamente, diante da forclusão, é uma espécie de
convergência desordenada e, ao mesmo tempo irresistível, que aponta para um centro que
aparece como vazio, como uma fenda original.
70
Ao contrário do núcleo de uma neurose que ordene uma convergência sintomática
que pode ser decifrada racionalmente depois de um trabalho de restituição contrário
ao da censura, do deslocamento ou da projeção, a convergência sintomática da
forclusão é desordenda total, como um reflexo vazio do símbolo rejeitado, do
significante recusado; ela constitui uma espécie de estrutura própria, original, no
interior da qual organiza-se um novo microcosmo de questões capciosas (...)
(Leclaire, 1991, p.250).
Para finalizar, é interessante observar a afirmação de Freud (1937), em seu texto
Construções em Análise.
Os delírios dos pacientes parecem-me ser os equivalentes das construções que
erguemos no decurso de um tratamento analítico – tentativas de explicação e de cura
embora seja verdade que estas, sob as condições de uma psicose, não podem fazer
mais que substituir o fragmento da realidade que está sendo rejeitado no presente por
outro fragmento que já foi rejeitado no passado remoto. Será tarefa de investigação
individual revelar as conexões íntimas existentes entre o material de rejeição atual e o
da repressão original. Tal como nossa construção só é eficaz porque recupera um
fragmento da experiência perdida, assim também o delírio deve seu poder convincente
ao elemento de verdade histórica que ele insere no lugar da realidade rejeitada (p.
286).
71
É necessário que se entenda que não adiantará tentar convencer o sujeito do “erro”
do seu delírio ou da contradição com a realidade (Checchinato, Kossin Sobrinho, Steffen &
Souza Filho, 1985). Não cabe ao analista esta posição, mas sim o reconhecimento, nestas
saídas, por que não dizer de saúde, encontradas pelo sujeito, de seu núcleo de verdade,
significação e sentido.
A clínica psicótica, não há como negar, é intensamente rica. O sujeito psicótico
instiga qualquer certeza vinda do analista, obrigando-o a questionar suas próprias questões. É
possível afirmar que a relação com o outro é o único caminho para encontrar, juntamente com
esse sujeito que, por vezes, se tornou estranho a si mesmo, palavras com as quais este possa se
expressar. Assim, a transferência que se instala diante de pacientes psicóticos deve permitir
que o analista ocupe uma posição em que este possa ser-lhe um espaço onde é possível ser o
que se é, sem que se extraia deste paciente a sua subjetividade e a sua singularidade,
encontrando assim, um terreno para o sujeito ser sujeito de sua própria fala, na busca de um
sentido para estar no mundo.
72
Sobre a Perversão
4.1 Primeiras considerações
O termo perversão tem, em uma conotação leiga, o sentido de perversidade, de
maldade, crueldade, uma implicação de cunho moral e religioso. É importante marcar que o
termo é empregado de forma indevida e equivocada. Este trabalho, dentre outros objetivos,
busca uma discussão a respeito da estrutura clínica e suas produções. O próprio Freud (1905)
marca a impropriedade na utilização do termo em seu artigo “Três Ensaios Sobre a Teoria da
Sexualidade”; além disso, aponta para as proximidades dos quadros neuróticos e perversos –
um escândalo na época e, talvez, até hoje, em tempos atuais.
Nesta texto, o autor aponta a criança como perverso-polimorfa, tanto quanto ao
objeto como quanto ao objetivo, já que a sexualidade infantil é mediada por pulsões parciais,
com objetos que se localizam em lugares diferenciados (pulsão oral, anal, escópica e
evocante) e fora do genital. Apesar disso, Freud não se mantém na idéia de definir a perversão
como a não realização do instinto reprodutivo; ele avança à medida que seu trabalho com
relação às teorias sexuais infantis começam a marcar novas configurações, tais como a
constatação de que as crianças atribuem um falo às mulheres; não obstante, Freud (1910) ao
escrever seu texto “Uma Lembrança de Infância de Leonardo da Vinci” produz novas
articulações importantes com relação a esta problemática.
73
4.2 As contribuições de “Uma lembrança de infância de Leonardo da
Vinci”(1910)
O trabalho, em italiano no original, não é lido por Freud. Este tem contato com a
obra á traduzida para o alemão. Tal fato terá desdobramentos significativos. No período em
questão, Freud ainda não tem os elementos necessários para se fazer a diferenciação entre
lembrança e fantasia. A confusão dos termos estará presente, também, neste artigo. O autor
trata a lembrança, a recordação de Leonardo como uma fantasia. Em alguns momentos, toma
esses elementos como sinônimos.
No atual momento de sua obra, Freud (1910) acredita que a construção da fantasia
está enraizada em um acontecimento real7 do passado e sua articulação a um evento posterior,
depois do complexo edípico. Neste aspecto, a fantasia estaria ancorada num pequeno detalhe
que foi vivenciado, pelo sujeito, em sua vida empírica. Cabe notar que outros acontecimentos
ulteriores ressignificariam esse detalhe. É importante perceber, aqui, germes do que seria
trabalhado em seu texto “Bate-se numa Criança” (1919).
O que o autor se pergunta, neste trabalho, é se existiria, de fato, uma verdade
histórica por trás desta lembrança ou fantasia8. É importante dizer que ele parte de uma versão
imaginária da fantasia. Contudo e, apesar de todas as dificuldades, Freud vai ler a fantasia a
partir do significante infantil. O que na língua italiana comparece como milhafre, no alemão,
Freud lê abutre. Ele vai articular o abutre a uma figura egípcia que é, ao mesmo tempo,
masculina e feminina. A seqüência se daria da seguinte maneira: abutre ⇒ pássaro ⇒ cauda
⇒ pênis. Neste sentido, a equivalência se daria com o abutre, significando a mãe (egípcia),
dotada de um pênis que entraria em contato com a mucosa da boca de Lenardo, revelando 7 Neste ponto, o que está sendo considerado é o real enquanto realidade, enquanto empírico. 8 Cabe ressaltar que, neste momento, Freud ainda não porta conceitos importantes que o permitam tal distinção. Apesar de aparecerem como sinônimos neste trecho, vale a ressalva de que se trata de termos distintos, colocados em posição sinonímica a fim de demonstrar a confusão freudiana naquele momento de sua obra.
74
uma fantasia de felação e fustigação. De acordo com Freud, essa sua lembrança fora retratada
em trabalhos e pinturas importantes de Leonardo. É possível observar que não se trata de uma
leitura imaginária do autor, mas de uma perspicaz leitura significante a partir de alguns
elementos enunciados por Leonardo.
Freud vai se dar conta de que a figura paterna não comparece nas recordações de Da
Vinci. O que se apresenta é uma mãe fálica e que não tem falta. Leonardo, em sua fantasia, foi
beijado na boca pela sua mãe, satisfazendo-a e oferecendo sua boca para ela gozar. O que
salta em suas obras é isso: uma mãe que goza de beijar um filho na boca. O autor, assim, tenta
reconstruir uma fantasia em que a mãe ocupa um papel extremamente importante. Em seus
trabalhos, Leonardo traz alguns elementos que fazem referencia a essa recordação. Não há
como não notar o sorriso da mulher em suas obras. Pode-se pensar em um sorriso que remete
ao gozo desse Outro.
Neste trabalho de 1910, Freud deu pequenos passos como relação à elaboração da
fantasia. É necessário dizer que ele precisará caminhar um pouco mais na teorização do gozo
a fim de que possa marcar uma distinção significativa entre a recordação, a lembrança e a
fantasia. A teoria do desejo que é a ferramenta que ele porta, até então, não dará conta das
questões que envolvem o âmbito da fantasia.
75
4.3 A Verleugnung como resposta
Neste sentido, Freud vai caminhando para uma reformulação da perversão. Não se
trata de ser pré-edipiana, mas, ao contrário, da posição do sujeito frente ao complexo de
castração. Nestes casos, a reposta frente à ameaça não seria o recalque – Verdrangung - nem a
rejeição (forclusão) – Verwerfung - , mas a renegação , o desmentido – Verleugnung, ou seja,
um duplo posicionamento frente à castração – há o reconhecimento da falta e, ao mesmo
tempo, uma renegação dessa percepção. É disso que a perversão vem falar: da indiferença
sexual – as mulheres são dotadas do falo. É importante marcar que ‘desmentir’ só é possível
se há, no sujeito, a marca do desejo, isto é, da falta no Outro; não se desmente o que não se
tem. Há que se ter uma inscrição inicial para que, assim, o sujeito possa vir a recusar. Neste
sentido, pode-se pensar nos quadros psicóticos como estruturas em que esse momento
primeiro nem chegou a se realizar. Não há inscrição, não há metáfora; trata-se de algo que
atravessa, que se encontra fora do circuito.
Lacan, a partir de uma re-leitura freudiana, irá dispor as estruturas clínicas a partir do
sistema real, simbólico e imaginário. Se, inicialmente, Freud faz uma leitura partindo da
realidade empírica - ausência do órgão peniano na mulher - Lacan vai traduzir isso e afirmar
que não se trata do real, mas do falo simbólico e imaginário.
Em seu artigo “O Falo e a Mãe Insaciável”, in seminário IV (1956-57) , Lacan
inicia sua fala afirmando aquilo que a frustração não é, ou seja, ela não se constitui como a
recusa de um objeto de satisfação, sendo satisfação algo articulado à noção de necessidade. É
bem verdade que a idéia de necessidade não engendra a manutenção do desejo. Nenhuma
relação pode ser garantida entre frustração e permanência do desejo. É importante afirmar que
Freud nunca mencionou o termo frustração. Ele vai falar de Versagung, podendo ser traduzida
por denúncia.
76
Conforme mencionado no início, a frustração não diz respeito à recusa de um objeto
que venha satisfazer a necessidade do sujeito. Pode-se pensar que, inicialmente, a frustração é
articulada a recusa do dom, como sinal de amor. Afirma Lacan,
O dom implica todo o ciclo da troca, onde o sujeito se introduz tão primitivamente
quanto possam supor. Só existe dom porque existe uma imensa circulação de dons
que recobre todo o conjunto intersubjetivo. O dom surge de um mais-além da
relação objetal, já que ele supõe atrás de si toda a ordem da troca em que a criança
ingressou, e só pode surgir deste mais-além com o caráter que o constitui como
propriamente simbólico. Nada é dom se não for constituído pelo ato que,
previamente, o anulou ou revogou. É sobre um fundo de revogação que o dom surge,
é sobre esse fundo, e como signo de amor, inicialmente anulado para ressurgir em
seguida como pura presença, que o dom se dá ou não ao apelo (Lacan, 1956-57, p.
185).
Diz-se de apelo, pois aí está o primeiro momento em que a palavra se dá. É o
instaurador da ordem simbólica. Sendo assim, tem-se que o dom se mostra ao apelo; e o apelo
se faz escutar na ausência do objeto (Idem). Quando o objeto encontra-se presente, ele se
mostra essencialmente como dom, como signo de amor, e não como objeto de satisfação. É
importante mencionar que toda satisfação posta em causa na frustração surge sobre o caráter
de decepção no campo simbólico.
A dialética presença-ausência do objeto constitui uma relação de grande importância
para o sujeito, à medida que aniquila, na satisfação, a insaciedade original que marca essa
relação.
77
É preciso pensar, neste momento, o que ocorre no instante em que a satisfação da
necessidade é transformada em satisfação simbólica. Pela substituição, em si, já ocorre uma
transformação. A ênfase e o caráter simbólico são dados à atividade, ou seja, ao modo de
apreensão, que coloca a criança como possuidora desse objeto.
É assim que a oralidade se torna o que é. Sendo um modo instintual da fome, ela é
portadora de uma libido que conserva o próprio corpo, mas não é somente isso.
Freud se interroga quanto à identidade dessa libido: será a libido da conservação
ou a libido sexual? Certamente, ela visa à conservação do indivíduo: ela é de fato o
que implica de amor pela satisfação, ela é uma atividade erotizada. Ela é libido a
destrudo, mas, precisamente, porque entrou na dialética da substituição da
exigência no sentido próprio, e libido sexual (Lacan, 1956-57, p. 187).
Outra questão relevante diz respeito ao ingresso da criança na dialética da frustração.
A partir daí, o objeto real não precisa ser específico, já que não é o objeto que desempenha o
papel fundamental, mas sim o fato de que a atividade assumiu seu papel erógeno no campo
desejante, ordenado no plano simbólico.
É interessante pensar como o falo seria introduzido, assim, na dialética da frustração.
Tem-se que, de acordo com a teoria freudiana, as meninas passam por um processo muito
mais complicado que os meninos, no que tange o complexo de Édipo e a diferenciação sexual.
A menina precisa entrar em contato, justamente, com aquilo que nela não está presente: o
falo. Obviamente, não se trata de questões orgânicas ou disposições anatômicas, mas sim de
uma representação fálica imaginária. É bem verdade que Lacan trocou o termo pênis, muito
78
utilizado por Freud, por falo; justamente intencionado a evitar certas confusões – entre aquilo
que se refere ao campo biológico e aquilo que vai muito além das disposições fisiológicas.
O falo imaginário está no cerne de numerosos ocorridos na vida do sujeito. A saída
desse labirinto, desse jogo em que a criança se encontra é dada pela percepção de que a mãe é
castrada e, já que o falo lhe falta, ela, assim, o deseja.
É por razões inscritas na ordem simbólica, transcendendo o desenvolvimento
individual, que o fato de ter ou não o falo imaginário e simbolizado assume a
importância econômica que tem no nível do Édipo. Isso é o que motiva ao mesmo
tempo a importância do complexo de castração e a preeminência das famosas
fantasias da mãe fálica (...) Trata-se do falo, e de saber como a criança realiza mais
ou menos conscientemente que sua mãe onipotente tem falta, fundamentalmente, de
alguma coisa, e é sempre a questão de saber por que via ela vai lhe dar esse objeto
faltoso, e que sempre falta a ela mesma (...) O falo é fundamental como significante,
fundamental neste imaginário da mãe a que se trata de unir, já que o eu da criança
repousa sobre a onipotência da mãe. Trata-se de ver onde ele está e onde não está.
Ele nunca está realmente ali onde está, e nunca está completamente ausente ali onde
não está (Lacan, 1956-57, pp. 195-197).
Neste texto, Lacan (1956-57) coloca que a questão primordial encontra-se antes do
Édipo, ou seja, entre a relação de frustração e o início do complexo edípico. Segundo ele, este
é o momento em que a criança se encontra na dialética intersubjetiva do engodo (Lacan,
1956-57). A fim de satisfazer o desejo materno que, por sinal, é insaciável, a criança percorre
um caminho de fazer-se ela mesma esse objeto enganador e tamponador da falta fundamental
79
da mãe. Esse desejo que não pode ser satisfeito, é enganado. “Precisamente na medida em que
mostra à sua mãe aquilo que não é, constrói-se todo o percurso em torno do qual o eu assume
sua estabilidade. As etapas mais características são sempre marcadas (...) pela ambigüidade
fundamental do sujeito e do objeto” (Lacan, 1956-57, p. 198).
Em seu seminário X (1962-63), o artigo intitulado ‘A causa do Desejo’ traz uma
consideração importante em relação à lei e ao desejo; ambos compartilhariam do mesmo
objeto. O mito edípico traz em si essa idéia. Na origem, o desejo, como desejo paterno e a lei
são a mesma coisa. Essa relação é tão próxima que é possível afirmar que a função da lei
marca o caminho desejante. O desejo, como desejo pela figura materna, é como a função da
lei. É no momento em que esse desejo é barrado que a lei impõe desejá-la. Neste sentido, tem-
se que desejamos no próprio mandamento, que o desejo do pai é o criador da lei.
O efeito central dessa identidade que conjuga o desejo do pai com a lei é o complexo
de castração. A lei nasce da transmudação ou mutação misteriosa do desejo do pai
depois de ele ser morto, e a conseqüência disso, tanto na história do pensamento
analítico quanto em tudo que podemos conceber como a ligação mais certeira, é o
complexo de castração (Lacan, 1963 p. 120).
Para uma criança neurótica a significação do desejo da mãe está marcada, não está
forcluída, como na psicose; ela aponta o que lhe falta, ou seja, o falo como significante do seu
desejo. Esse simbólico institui efeitos sobre o imaginário.
80
Se a criança recebeu de sua mãe a significação fálica de sua falta, então ela pode
para mãe fazer-se objeto fálico como imagem (Lacan nota-o pequeno φ). O sujeito,
menino ou menina, é, pela imagem de seu eu [moi], o que falta à mãe. É isto que
está em jogo para o não-psicótico. A mãe não tem o falo, logo eu o sou...para ela!
(Julien, 2002, p. 107).
Sendo a criança um objeto ofertado a tamponar o desejo materno, cabe saber como
aquela ofertará à mãe esse objeto que lhe falta e como estar à altura do que a mãe deseja. Do
impossível de responder a essa questão surge a angústia de castração. Ser o objeto fálico para
preencher o desejo materno é a própria angústia de ser devorado e engolido por ela. Diante do
horror da castração na mulher, a perversão se instaura aí, como uma conseqüência dessa
angústia avassaladora.
4.4 Acerca da perversão
A Verleugnung constitui-se na renegação de que a mãe não tem o falo. Ali onde nela
o falo simbólico está ausente, o sujeito coloca no lugar um fetiche como falo imaginário. A
mulher, assim, “tem” o falo sobre um fundo de “ausência”, ou seja, daquilo que ela não tem.
O objeto fetiche, então, é eleito a fim de que essa falta seja encoberta.
É a um só tempo um e outro: há clivagem, divisão, disjunção. E o fetichismo torna-
se o paradigma de toda perversão. O splitting do lado do objeto materno tem efeito
de splitting do lado do sujeito: ele é o falo e não o é, já que a mãe não tem o falo
enquanto desejante, e ela o tem como fetiche enquanto preenchida. Assim, o sujeito
81
não escolhe entre to be or not to be o falo. O fetiche é, portanto, uma defesa contra a
angústia do desejo da mãe; é bem por isso que ele tem a mesma função que a fobia:
colocar uma proteção em posto avançado diante do perigo de ser engolido pelo
desejo insaciável do Outro (Julien, 2002, p. 108).
É importante notar que a compreensão da teoria freudiana se esclarece no momento
em que Lacan oferece a noção dos três registros: simbólico, real e imaginário. Sem essa
diferenciação, parece muito complicado entender a razão pela qual ele considera a perversão
sobre o fundo da renegação da diferença sexual.
Se tomarmos o sintoma como o paradigma da neurose, a alucinação como o
paradigma da psicose, teremos, em paralelo, o fetiche para a perversão. Em seu seminário IV
(1956-57) “A Relação de Objeto”, Lacan vai apresentar a estrutura a partir de seu elemento
paradigmático - o fetiche, ao apresentar a função dupla do véu. Este, ao mesmo tempo que
esconde, permite que compareça. No caso da perversão, trata-se de escamotear a falta fálica
na mãe; contudo, por intermédio do véu, essa falta está marcada, apresentada. O fetiche tem
essa peculiaridade de colocar o véu, a cortina, diante do buraco da falta. “O véu esconde o
Nada que está para além do Objeto enquanto desejo do Outro: a mãe não tem o falo. Mas, ao
mesmo tempo e mesmo assim, o véu é o lugar onde se projeta a imagem fixa do falo
simbólico: a mãe tem o falo” (Julien, 2002, p. 112).
Em seu artigo “O Fetichismo”(1927), Freud aponta para uma atitude infantil de
posição dupla frente à castração: o reconhecimento da falta fálica à mulher e a recusa desta
constatação. Diante do horror, ergueu-se um objeto. Este é o signo, em si mesmo, da negação
e, simultaneamente, da afirmação da castração na mulher. Freud vai enunciar que a escolha
82
desse elemento substituto se dá no momento pontual e anterior a esta constatação
insuportável.
Neste sentido, a criança se recusou a perceber a falta de um pênis na mulher. Pode-se
pensar que esta recusa adveio com a ameaça da castração de seu próprio membro. No conflito
entre a observação desagradável e a força de seu contra-desejo, ergueu-se um compromisso,
tal como só é possível por intermédio das leis inconscientes. Para esse sujeito, a mulher teve
um pênis e este sofreu uma substituição. No momento da constituição do objeto fetiche ocorre
algo que remete à interrupção da memória na amnésia do trauma. Dessa forma, o interesse do
sujeito é marcado por uma interrupção a meio caminho, ou seja, como se a derradeira
impressão antes daquela dotada de traumática ficasse retida como fetiche (Freud, 1927).
Em “A divisão do Ego no Processo de Defesa”(1940[1938]), Freud apresenta que o
preço pago diante da intolerável falta materna e, conseqüentemente, seu desmentido é uma
cisão no eu da qual o sujeito jamais se vê livre dela. É a inscrição da recusa inscrita na própria
estrutura subjetiva. Sendo assim, ao se deparar com o vazio da castração, o infans, em seu
processo de defesa frente à ameaça, sofre uma divisão no próprio eu. De um lado, rejeita-se a
realidade e recusa-se a qualquer espécie de proibição e, por outro, reconhece a ameaça real e
reage com medo disso que o assusta. É bem verdade que paga-se um preço nessa escolha:
“uma fenda no ego, a qual nunca se cura, mas aumenta à medida que o tempo passa. As duas
reações contrárias ao conflito persistem como ponto central de uma divisão (splitting) do ego”
(Freud, 1940[1938], p. 293).
Esse objeto eleito como substituto – de algo que não existe: o falo na mulher – é um
condensador de gozo, no sentido de que tampona uma falta e possibilita o acesso ‘A’ mulher,
em referência ao Outro gozo, mencionado no capítulo anterior. Trata-se de um objeto que atua
no gozo do sujeito, ao desmentir a castração e anunciar a mulher como toda, a fim de
83
desmentir uma constatação no campo do real que é intolerável. O que o perverso almeja é
tamponar a falta fálica, a hiância do Outro com o seu próprio gozo; a referência original é do
gozo do Outro, tomada pelo sujeito como vontade de gozo.
Qualquer objeto que se destaque do corpo e percorra as entranhas do Simbólico pode
se tornar um substituto do falo que falta à mãe, ou seja, qualquer elemento que marque o
desaparecimento do desejo, substituindo-o pela vontade de gozo.
O fetiche se situa num encontro com um significante após os dois tempos do
desmentido: o do reconhecimento da castração do Outro e o da recusa da castração.
Há, portanto, um tempo em que se precipita o fetiche, e essa temporalidade lógica é
a do gozo em sua gozação. Para o perverso, o fetiche se constitui numa estratégia, a
partir do significante, de evitação da angústia de castração, castração do Outro
materno (Dias, 2003, p. 173).
É importante acrescentar que o substituto é um elemento que aponta e sustenta o
desejo na perversão, desejo esse marcado pela vontade de gozo, ou melhor, o fetiche como
objeto a que completa a falta e o gozo do Outro (Dias, 2003). Com isso, o perverso ocuparia
uma posição de causa, como o Outro assustador da cena fantasmática, com um gozo que não
lhe pertence por ser do Outro, mas que é tomado como seu e transformado em vontade de
gozo - injunção categórica prevalente nos quadros perversos.
É a esse lugar do objeto, no exterior, e anterior a qualquer internalização que a idéia
de causa está articulada. Lacan se utiliza do fetiche para desenvolver essa noção, já que no
fetiche se desvela a dimensão do objeto como causa de desejo. Não se trata, por exemplo, do
84
sapato, do pedaço de tecido; o fetiche causa o desejo e, este último agarra-se onde puder. “O
fetiche é a condição mediante a qual se sustenta seu desejo” (Lacan, 1963, p. 116).
Na perversão, o sujeito toma o Gozo do Outro como ponto de partida inicial,
assumindo-o como vontade de gozo. É com essa noção que Lacan vai enunciar como o
perverso estaria localizado diante do desejo do Outro. Assumindo a Verleugnung como defesa
diante da castração e sendo eleito um objeto substituto que venha velar e, ao mesmo tempo,
desvelar a falta estrutural materna, o perverso se posiciona como instrumento do gozo do
Outro; não se angustia9, mas goza em provocar a angústia no outro, em dividí-lo no seu limite
mais fundamental; o perverso goza em apontar, desvelar e mostrar onde o outro goza, naquilo
que há de mais íntimo e originário, daquilo que o neurótico não quer saber. O que a neurose
tenta burlar e escamotear, a perversão desnuda.
O perverso só tem acesso ao gozo na medida em que paga o preço de um simulacro
da castração, simulacro repetido e com isso anulado: pouco importa que ofereça seu
corpo em holocausto ou que oficie sobre o corpo do outro. O próprio do fantasma é
manter sempre intacta e total a função primeira de suporte e guardião da
onipotência do pensamento. Ele é mudo, é um ato de pensamento cuja verbalização
frente ao Outro Real tem valor de desmistificação: o que escuta se separa do que
fala, a realidade psíquica se separa da cena do Real. A dor é prazer, o horror é
fascinação e a castração é gozo (Dias, 2003, p. 183).
9 É importante diferenciar que a colocação acima ‘o perverso não se angustia’ não significa dizer que essa estrutura está isenta da angústia – o afeto que não mente. Nada melhor para contextualizar isso que a vivência ameaçadora da castração e a incessante tarefa de preencher a falta do Outro, inclusive, para que este Outro exista.
85
Seguindo, Lacan (1963) faz algumas breves considerações a respeito das funções do
sadismo e do masoquismo.
De acordo com as idéias apresentadas, tem-se que, por exemplo, o desejo sádico só
pode ser apreendido a partir da divisão, da dissociação que ele deseja produzir no parceiro,
impondo-lhe o intolerável até o limite em que essa cisão comparece no sujeito, marcando uma
clivagem entre sua existência enquanto sujeito e o que ele sofre ou o que pode sofrer em seu
corpo. Contudo, é importante dizer que não se almeja o sofrimento do parceiro, mas provocar
a divisão e a angústia deste.
A angústia do outro, sua existência essencial como sujeito em relação a essa
angústia, eis o que o desejo sádico tenciona fazer vibrar (...) Na realização do seu
ato, de seu rito (...) o que o agente sádico não sabe é o que procura, e o que ele
procura é fazer-se aparecer, ele mesmo, como puro objeto, fetiche macabro (...) na
medida em que aquele que é seu agente caminha para uma realização (...)
Totalmente diferente é a posição do masoquista, para quem essa encarnação de si
mesmo como objeto é o objetivo declarado (...) Em suma, o que ele busca é sua
identificação com o objeto comum, o objeto de troca. É-lhe impossível apreender-se
pelo que ele é, uma vez que, como todos, ele é um a (Lacan, 1963, p. 117-118).
O perverso busca o outro em sua divisão, em seu limite, em sua angústia. Neste
sentido, o perverso atua procurando as marcas da inscrição que limita e barra o sujeito, de sua
falta colocando-se como aquele que sabe do gozo do outro e, ao mesmo tempo, como
oferenda de preenchimento daquele buraco, daquela fenda. Não se trata, como na neurose, de
um saber a ser atingido, mas de desmentir aquilo que marca o sujeito como dividido – a
86
castração. O saber, de fato, encontra-se do lado do perverso. Ele sabe do gozo e seu desejo se
inscreve como vontade de gozo. Ele seduz o neurótico pelo seu “saber gozar”.
A perversão afirma e traz consigo a possibilidade do acesso ao gozo. Ergue-se uma
nova lei, um outro contrato, que diz da desconsideração e do abuso do outro sem que este
precise dar o aval. Trata-se de uma ordenação categórica do gozo que necessita de um outro
para se firmar; diz respeito à violação de um outro para que se aceda ao gozo supremo. Neste
sentido, é um gozo que “conta” com a participação do outro, mas que não “conta” com seu
desejo, pois estar aliado ao desejo e consentimento do outro vai na direção contrária à
satisfação perversa. A coincidência no gozo não produziria a fenda, a divisão no sujeito, ou
seja, o perverso não atingiria seu objetivo. Nestas circunstâncias, tem-se a incongruência no
par perverso-perverso. O que se poderia deduzir que como par, um perverso tem sempre um
neurótico ou um psicótico.
Como já mencionado, na perversão, o desejo foi reduzido a vontade de gozo e a
outra lei, criada nestes casos. O que está em jogo são leis que incitam o gozo e o fundamental
direito a gozar do corpo alheio, sem o seu consentimento ou autorização. O sujeito perverso
aponta onde o outro goza, ou seja, o perverso desmonta aquilo que a tela da fantasia neurótica
tentou desde sempre velar.
(...) perverso além do desejo, destinado ao exercício de uma vontade que atua como
imperativo universal (...) De uma vontade que não é nem o livre arbítrio em o
capricho, mas justamente o contrário da liberdade, a submissão acrítica, enervada e
apática a uma norma absoluta que impede transitar por caminhos alternativos e que
legisla como ferocidade. De uma vontade que faz do gozo o princípio racional e
ineludível da ação, colocado em uma dialética de oposição e de subtração recíproca
87
do gozo entre os participantes o ato perverso. De uma vontade que não nasce da
decisão elaborada de um querer, mas de uma coação que exige escapar da lei do
Édipo e da castração (...) De uma vontade que leva o perverso viver para o gozo,
para apoderar-se dele, para organizá-lo, administrá-lo, antecipá-lo e adiá-lo (...)
(Braunstein, 2007, p. 253-254).
88
Fantasia e gozo: possibilidades no diagnóstico diferencial
Num tentativa de estabelecer as possibilidades de se fazer um diagnóstico diferencial
pela via da fantasia e do gozo, retomar-se-á algumas considerações importantes anteriormente
já feitas.
5.1 Retorno à Pulsão
Diante do conceito de pulsão como ponto fundamental na constituição psíquica do
sujeito e daquilo que já foi discutido com relação ao gozo, tem-se que ambos estão envolvidos
no acesso do sujeito à linguagem. Sendo a castração como marca da falta que inscreve o
sujeito na cadeia significante - pelo cerceamento do gozo, sendo pelo próprio movimento
característico da pulsão; aquela que circunda o objeto a, causa de desejo. Este objeto é aquilo
que cai, que resta de um saber que vem significar o S1 inaugural da cadeia.
Neste movimento, tem-se algo que se perde. Há, na dimensão pulsional, algo que não
poderá ser capturado nem circunscrito. Este não-apreensível diz do real, do sem sentido, do
não-representável.
Sabe-se que não é possível o acesso direto à pulsão. O que se conhece são os seus
representantes. Apesar da incessante busca pela satisfação, o movimento pulsional consegue
apenas satisfações parciais. O recalque não incide sob a pulsão, mas sob seu representante
ideativo, ou seja, sob a idéia. A pulsão não cessa de insistir. Ela é o movimento em si. O outro
elemento constituinte da pulsão é o afeto, a qualidade da energia pulsional que pode estar, ou
não, ligado à idéia.
89
É importante notar que a satisfação pulsional parcial se encontra no próprio
movimento da pulsão, em sua insistência, em sua repetição. No movimento de circunscrição
do objeto a, comparece, como efeito, um quantum de satisfação e prazer. Tem-se a
(...) idéia do objeto a como um envelope, como um emblema, sua relação com o
sujeito é através da fantasia, a fantasia articula desejo e pulsão, sua função é de
articular dois elementos heterogêneos, um da ordem Simbólica, do Outro, do desejo
e da representação do sujeito e o outro elemento, do registro real, da satisfação
pulsional, do gozo (...) (Zelis, s.d, p. 5).
5.2 Real, a fantasia e o objeto a
O que a fantasia vem permitir é um encobrimento, uma tela diante do real
insustentável; marcando o sujeito numa posição perante o desejo do Outro. É, assim, pelo viés
da fantasia que a pulsão insere-se nos trâmites da lei e do interdito; ou seja, nesta
possibilidade de que o gozo pulsional original, do corpo possa ser cerceado e limitado,
abrindo os caminhos para o gozo fálico.
90
Neste sentido, tem –se que
A relação do sujeito e do objeto é a relação do inconsciente e da pulsão. Porque o
objeto recobre o vazio, a essência do sujeito, o sujeito desconhece o que causa seu
desejo, e a fantasia vem auxiliar nessa procura (...) A emergência no simbólico do
pulsional, na sua dimensão real seria a angústia, angústia como experiência (...)
sentida no corpo sem nenhum tipo de representação significante onde há – falta da
falta – que faz emergir o vazio que a fantasia sempre tenta velar (Zelis, s.d, p. 5).
Em Freud (1900) encontra-se a noção de que o objeto alvo do desejo, objeto no qual
se teria satisfação plena, encontra-se para sempre perdido. O que resta, são traços deste
objeto. Ele estará para sempre perdido e, assim sendo, fora do espectro representacional. A
pulsão comparece e contorna um dado objeto, que lhe é indiferente, um buraco, um vazio,
delimitando-o (Dias, 1998).
Lacan, ao retomar os textos freudianos, estabeleceu o inconsciente, a repetição, a
transferência e a pulsão como os quatro grandes conceitos fundamentais em psicanálise. Esses
conceitos foram apoiados e amarrados pelo suporte do registro do Real. Neste sentido, o Real,
em psicanálise, trata-se do ser de gozo. Sendo a linguagem, a possibilidade advinda do
cerceamento pulsional, que não cessa de não insistir e se inscrever.
A Lei da interdição cunha um saber que barra ao sujeito ultrapassar um limite do
gozo, e este limite lhe é dado pelo prazer. O circuito do desejo para o prazer é muito
curto e é por isso que o sujeito é empurrado a repetir, na busca do retorno a um
91
estado inicial de inércia, o mais além do princípio do prazer. O princípio de
realidade ou de desprazer não sujeita por completo o empuxo ao prazer. Sua
substância se emaranha na incoercível busca para preencher a falha fálica
imaginária, pela suplência do objeto a, para o ressarcimento do gozo perdido ao
entrar no reino da linguagem (Araújo, 2006, p. 2).
No seminário XI – “Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise” (1963-64),
Lacan vai se utilizar dos conceitos da óptica e da geometria para constituir o objeto a como
causa de desejo. É bem verdade que ele abrirá mão disso e se valerá da topologia a fim de
constituí-lo e caracterizá-lo na estrutura.
De acordo com o que já fora discutido, tem-se que o objeto a, inicialmente,
encontra-se referenciado no corpo, melhor dizendo, daquilo que escapa da imagem corporal;
trata-se do que se destaca do corpo e, sendo assim, daquilo que não tem imagem especular.
Como característica própria, é possível destacar a parcialidade. Esse objeto destacado do
corpo, das zonas erógenas compõe uma série: seio, fezes, olhar, voz, placenta e falo.
O desejo visa um objeto perdido e a pulsão se satisfaz ao contornar um vazio. O que
se destaca nos dois campos é o movimento e, se o objeto foi alcançado, o movimento
(pulsional ou desejante) cessa. Por conseguinte, é a estrutura de hiância (abertura)
dos dois campos que causa movimento, isto é, a constituição de um vazio, o nada
que causa a ação pulsional e a ação desejante (...) A pulsão contorna um objeto
indiferente (o que evoca uma carência) enquanto o desejo busca reencontrar o
objeto da satisfação plena, do qual só se tem pistas de sua ausência (...) A presença
e um movimento em torno de um vazio nos campos da pulsão e do desejo revela um
92
isoformismo topológico que permite construir o vazio da pulsão, o resto da pulsão (o
seu objeto) como causa do desejo (...) É esse vazio que determina o desejo do
sujeito, o qual Lacan nomeará de objeto (...) (Dias, 1998, p. 52-53).
5.4. Acerca das Psicoses
Em Freud, a pulsão se constitui antes do desejo, já que sua teoria postula o auto-
erotismo precedente ao recalque originário, sendo este o fundante do inconsciente e do
movimento desejante. É claro que para que o desejo se instaure, é preciso que esses objetos
destacados do corpo se constituam como perdidos. Inicialmente, eles se situam no campo do
real, passando, posteriormente, a integrar o registro do simbólico (registro da falta). Sabe-se
que essa inscrição não se faz no campo das psicoses. Nestes casos, tem-se um indivíduo não
marcado pelo desejo, ou seja, puro objeto pulsional oferecido ao gozo do Outro. Não
ocorrendo a substituição do desejo materno pelo significante Nome-do-Pai, a castração
simbólica não se efetua; não há a queda de objeto decorrente da relação que se estabelece
entre o significante primordial da castração e o saber que se constitui disso (S1 – S2).
Retomemos, rapidamente, os primórdios da constituição do sujeito.
A alienação como vivência inicial e fundante de todo sujeito se constitui como um
processo em que o Outro é referência e princípio significante. Neste momento inicial, a
criança, em suas necessidades essenciais, evoca o Outro todo-poderoso para que este
compareça respondendo à altura daquilo que necessita. A princípio, trata-se de uma
necessidade, de fato10. O que acontece, no decorrer desta comunicação, é que ao responder, o
10 É importante notar a dificuldade de segmentar esses processos, tomando um princípio, um ponto de partida e, demarcando cronologicamente os processos subseqüentes. Ressalta-se que se trata de uma marcação didática a
93
Outro devolve não somente aquilo que alimenta, mas o devolve com algo a mais; não se trata
apenas de satisfação da fome, por exemplo, mas de uma satisfação que está para-além disso. É
demanda. Não é o alimento que mata a fome, mas esse “algo a mais” naquilo que é ofertado e
que sacia o sujeito de forma parcial. Nesta conjectura, tem-se que esse Outro não responde a
tudo. Ele, é importante lembrar, está marcado pela falta. Fica, assim, um resto, uma hiância
que este Outro não consegue abarcar. É, aqui, que o desejo se impõe; nesta operação de
subtração entre a necessidade e a demanda. É naquilo que o Outro não consegue responder
que o desejo comparece. Não se pode deixar de notar a marca de uma falta presente na própria
constituição desejante.
O sujeito, assim, não pode ser todo. Há sempre uma perda. Dessa maneira, é possível
afirmar que o ser se constitui enquanto sujeito no campo do Outro; assujeitado aos
significantes e desejo desse Outro primordial. O sujeito é, assim, efeito de linguagem.
A falta-a-ser que constitui a alienação instala-se ao reduzi-la ao desejo (...) porque
ele ocupa este lugar através dessa encarnação do sujeito chamada castração, e pelo
órgão da ausência em que ali se transforma o falo. É esse o vazio tão incômodo de
abordar (Lacan, 2003, p. 324).
A castração vem subverter o sujeito ao mundo da linguagem, ou seja, a Lei de
proibição ao incesto, possibilitando abertura para a constituição do ser desejante. A renúncia à
mãe como objeto primeiro de desejo é imprescindível para que a castração se processe. O
desejo enigmático materno é substituído pela inscrição do Nome-do-Pai. Este traz consigo o
anúncio de que não é possível ser o falo. Este último, como significante, é aquilo que circula.
fim de facilitar a compreensão. De fato, o que ocorre, é um processo lógico e, sendo assim, impossível de delimitar cronologicamente.
94
Não se trata de ser – ou não ser, mas de uma dinâmica que coloque este significante em
circulação, como matriz de referência para as posteriores perdas que o sujeito virá a enfrentar
ao longo de sua história. O pai castrador doa ao infans o falo simbólico, oferece aquilo que,
por estrutura, a mãe frustra. Cria, assim, uma possibilidade do desejo emergir, indicando que
o falo existe em circulação.
A ascensão ao falo simbólico (Φ) demarca a impossibilidade de acesso ao gozo para
os falantes. A inscrição da castração, em seu registro imaginário, e a marca que dela se
acarreta é revelada ao se introduzir o sinal negativo antes do ϕ (-ϕ). Posteriormente, esse falo
imaginário poderá vir a ser substituído por vários elementos pertencentes à cadeia simbólica –
bebê, dinheiro, etc. - ofertando ao sujeito, uma ilusão da possibilidade de completude
narcísica. Se o sujeito pôde chegar até aqui, pode-se afirmar que houve o cerceamento do
gozo puro, gozo do corpo e o alcance do gozo fálico, mediado pelo significante, marcado fora
do corpo (Machado, Disitzer, Costa & Brandão, 2005).
É importante lembrar do mito trazido por Freud em seu texto “Totem e Tabu” (1913
[1912-13]). Em poucas palavras, este traz em si o assassinato do pai, a fim de se alcançar a
possibilidade de gozar de todas as mulheres. Trata-se de um gozo experimentado pelo pai
mítico, sem bordas e sem limite ao gozo. São os primórdios da organização social, por meio
de uma Lei, de uma interdição e um lugar que, apesar de desejado, ninguém poderia ocupar,
de fato. O que daí se sucede é a instância superegóica que
garante a ameaça de se repetir o ato parricida e prevaricar o incesto (...) O pai real
é ainda quem vigia o ponto desta complexa castração simbólica, como uma dívida
da libra da carne, que não se paga por este gozo e se verificou que o gozo era
furado e o objeto falo a ser alcançado estava perdido. O pai real engendra a marca,
95
a castração é a própria interdição e o objeto imaginário é negativo, posto que
ausente. Mais adiante, Lacan pôde estabelecer como uma metáfora, sob a égide do
NP e daí é, que recebe na significação fálica imaginária de um objeto, que falta o
seu valor daquilo que para o Outro é significado como desejo, o falo simbólico
operador da castração. Se a lei do nome do pai, substitui o caprichoso gozo sem lei
do desejo da mãe DM, ordenando-o, teremos o êxito do significante fálico ao extrair
o gozo do sexual do falo à fala” (Araújo, 2006, p. 2).
O que dizer, então, daqueles que, de alguma forma, não atingiram esta marca?
Lacan, em seu seminário V – “As Formações do Inconsciente” (1957-58) postula o
Nome-do-Pai como o significante que marca a Lei, ou seja, a inscrição da falta e a
possibilidade desejante no sujeito.
A afirmação primordial – Bejahung como operação que viabiliza o acesso ao
simbólico não está presente no casos psicóticos, assim como
(...) o acesso ao simbólico, no que ele aponta para as leis de alternância e equívoco
da cadeia significante. O Édipo, enquanto lei de simbolização, também fracassa, o
significante do Nome-do-Pai não se inscreve como falta simbólica no Outro (...) o
psicótico se situa fora da lógica fálica, principal conseqüência da operação da
metáfora paterna, aquela que condena o neurótico a girar em torno de um centro
único, medida de todas as coisas: o falo, que, do ponto de vista simbólico, partilha e
alinha os sexos e que, do ponto de vista imaginário, aponta para o desejo, se
inscreve como objeto de desejo do Outro (...) O sujeito (...) fica sem rumo frente a
96
uma enxurrada de significações que não lhe bastam: os significantes correm fora da
cadeia, o sujeito permanece na errância, sem o arrimo do significante (...) não
suporta o não sentido, o fato de o significante não dizer tudo, seu equívoco, seu
princípio de alternância (...) na ha meia verdade, o psicótico coloca uma palavra
como verdade absoluta na boca do Outro (...) (Lacet, 2004, pp. 4-5).
Neste sentido, não há ponto de basta possível, acarretando uma inviabilidade de
articulação da cadeia significante. As redes de sentido estão perdidas por essa não-amarração.
Palavra e coisa se confundem; o atributo simbólico da palavra não se encontra preservado.
É importante notar que é o significante fálico que moldura o simbólico e abre as vias
de acesso ao desejo. Tendo sido forcluído esse significante, o psicótico fica imerso no gozo
puro e ilimitado. O gozo não descola do corpo e o sujeito encontra-se impossibilitado de
ascender ao gozo fálico.
(...) o significante faltou e seu trabalho de separar o gozo do corpo, falhou em sua
função de negativá-lo, esvaziá-lo do corpo para depois recuperá-lo como “mais-de-
gozar”, espécie de mais-valia, um resto de gozo limitado às bordas e orifícios
anatômicos onde a pulsão, contornando o vazio do objeto em objeto perdido,
extraído e separado do corpo, objeto a, encontra aí sua satisfação (Santos in Lacet,
2004, p. 9).
97
No fracasso deste recurso, o que advém é um deslizamento metonímico e o retorno
daquilo que não fora simbolizado, como um conteúdo que comparece como vindo de fora, do
real.
Pode-se mencionar a psicose como resposta a essa não demarcação do gozo absoluto,
da Coisa. Trata-se de um gozo não mediado pela intrusão significante, pela castração. Tem-se,
assim, um gozo fora do circuito da linguagem, invasor, fora da renúncia e não inscrito na Lei
do desejo. A psicose está articulada ao registro do falo real. Neste sentido, tem-se que, na
psicose, o que não foi simbolizado retorna do real. Ou seja, trata-se do retorno do forcluído.
Na psicose, o sujeito, ‘livre’ de passar pela castração simbólica, não pode se
manifestar em um discurso no qual o objeto se constitui perdido. Experimenta (...)
um gozo louco, incomunicável, alojado em um corpo que escapa à simbolização e
prescinde do Outro. (...) o fracasso da metáfora paterna impossibilita a extração do
objeto a. O sujeito psicótico não pode inscrever-se na função fálica e isso produz
estragos – não pode simbolizar e nem localizar o gozo mediado pelo significante
fálico e é invadido por esse gozo não simbolizado, não localizado. Assim, na psicose,
o objeto a não inclui o -ϕ da castração imaginária. Ele funciona como puro real,
não pode enganchar-se ao desejo do Outro porque para o Outro ele não foi mais
que objeto de gozo (Machado et al., 2005, p. 59).
O Nome-do-Pai é o significante que vai dar significação ao desejo materno até então
enigmático. A metáfora paterna, ao se inscrever, interdita, cerceia o gozo e instaura a falta-a-
ser no sujeito. Neste sentido, marca-o como desejante ao mesmo tempo que traz consigo a
98
proibição do incesto. A castração é a marca da falta com a qual o sujeito precisa lidar para que
se abram as portas do desejo.
Sem esta falta fecunda, sem que se cumpra a função imaginária de -ϕ, nada fica por
buscar no campo do Outro (...) O Falo não cumpre sua função como significante per
se, senão por meio de outro significante, o do nome-do-Pai, que permite a
instauração de um tronco fundamental, significante um (S1), ao qual poderão se
articular os significantes dois (S2) do saber inconsciente. O Falo barra a Coisa e
permite a emergência do sujeito ao se fazer representar pelo significante do nome-
do-Pai que permite a significação fálica. Se este tronco que é o nome-do-Pai falta
(...) não há limite para o gozo. Não há canal para a palavra articulada (Braunstein,
2007, p. 268).
Apesar de não estar fora da linguagem, o psicótico encontra-se fora do discurso. Em
contraposição ao neurótico, que oferece um testemunho permeado pelas suas insígnias e
marcas, o psicótico nos oferta um uma fala direta. Ele é habitado pela linguagem, diz de algo
que lhe falou. A sua relação com a palavra não tem mediação com o outro da imagem (a ∏
a’), mas vem direto do Outro. Na psicose, o sujeito é falado, revelando um código absoluto e
enigmático, muitas vezes, não compartilhado. Não há, nestes casos, um significante de
referência, de enodamento que permitiria a inscrição de uma trilha por onde os subseqüentes
significações passariam.
Nestes casos, há um gozo que insiste, puro momento originário e que se encontra
aquém da palavra. Trata-se de um gozo indizível, que se origina no Outro e que não tem a
99
marca do simbólico. A palavra não tem, neste sentido, sua função moduladora. O sujeito
encontra-se inundado e devastado pelo Outro, este Outro que faz dele seu objeto de gozo.
Já que não pode contar com o saber suposto do pai, o psicótico é obrigado a
sustentar, sozinho, uma significação que permite um ordenamento da sua relação
com o mundo externo, os objetos e seu corpo. Na construção delirante de Schreber,
as coisas vão tão longe que o mundo inteiro está tomado neste delírio de
significação, de modo que não ha nada do que o cerca, que, de certo modo, não seja
ele. Em compensação, tudo o que o cerca é, de certa maneira, vazio dele próprio
(Masagão, 2004, p. 6).
O psicótico fica, assim, a deriva diante do desejo do Outro. Ele não porta de
significantes que o permitam significar o desejo materno. É assim que esses sujeito se
posicionam no fantasma: como objeto do gozo do Outro, como dejeto, resto que ocupa o lugar
de preencher o que falta ao Outro, no campo do real. o gozo, desta maneira, encontra-se do
lado do Outro. É o Outro que goza. O psicótico encontra-se apenas como objeto parcial para
este Outro gozar.
A psicose, assim, marca a não inscrição da castração simbólica, não comparecendo o
desgarramento do gozo do corpo e nem mesmo o registro do objeto como para sempre
perdido. O psicótico está em contato direto com esse objeto, não há metáfora ou metonímia
possível para que ele entre na cadeia significante. Aqui, não se abre mão do gozo, não há
perda; não há relação com o objeto perdido, tendo-se em mente que ele não se encontra
perdido. Ele está logo ali.
100
Solal rabinovich in Machado et al (2005) diz que ‘nunca perdido, o objeto não é a
ser achado, ele está ali. É no seu corpo que se produzem os efeitos do corte
significante, do qual o sujeito é exilado’. Um ‘além’ do falo que marca a passagem
do sujeito psicótico pela linguagem mas que, entretanto, ex-siste ao discurso. Além
da linguagem e aquém da palavra, pois os psicóticos são sujeitos cujo o corpo é um
cenário onde se derrama sem limites a palavra do Outro. Em que a ‘palavra’ opera
como um real alucinatório e a ‘linguagem’ pode chegar, pela via do delírio, da
suplência, para frear o gozo, mesmo que precariamente. Trata-se, nestes sujeitos,
de uma ‘economia’ em que ‘reina’ o imperativo: goze! (Machado et al, 2005, p. 61).
Ao faltar a inscrição da metáfora paterna, o canal central de todas as outras e
posteriores significações fica bloqueado; os demais elementos vagam desorientados, sem uma
direção a seguir. O sujeito, neste sentido, fica a mercê de um gozo Outro, inefável e indizível,
submetido a um desejo materno que é devastador.
O Pai vem dar fim ao pior. Não resta nenhuma dúvida de que ele é um impostor e
que a conseqüência de sua impostura é a submissão do sujeito às ataduras do
discurso. Pela interferência do Nome-do-Pai o sujeito é desalojado do gozo, da
sarsa ardente da Coisa. Impostura não é em contrapartida, o desejo da Mãe; esse
sim é bem real. Sabe-se de seus efeitos quando a impostura fracassa, quando o
101
sujeito não entra nessas formações de discurso e formações do inconsciente que não
são semblante. Sobrevém o pior (...) (Braunstein, 2007, p. 273).
5.5 As Contribuições de “Bate-se numa criança” (1919)
Se os trabalhos iniciais de Freud começam a tratar a perversão como limitada ao
campo do sexual; eles também permitem avançar no sentido de que a trazem para o âmbito da
normalidade. Encontra-se, inclusive, uma certa dificuldade para separar o que é da ordem do
normal e do patológico, principalmente, ao afirmar a presença da sexualidade na infância – a
sexualidade infantil é perverso-polimorfa (Freud, 1905).
A princípio, tinha-se uma paridade entre a pulsão e a perversão. A partir de 1915,
Freud, em seu texto “Pulsão e suas Vicissitudes”, vai iniciar a separação entre a pulsão e a
perversão, marcando suas diferenças e particularidades. Há, neste sentido, uma tentativa de
destacar o que é da ordem pulsional e da perversão. A pulsão constituiria, assim, um
movimento, uma dinâmica.
É bem verdade que no intuito de fazer essa separação, Freud irá precisar dar um
passo a mais e que, só foi possível pelos seus avanços com relação à teorização da fantasia.
Está se falando do célebre texto “Bate-se numa criança”(1919). A partir deste trabalho, a
perversão estará articulada ao complexo edípico do sujeito e a fantasia será teorizada a partir
de alguns elementos importantes, tais como as vivências edípicas do sujeito, os percursos
pulsionais e a constituição do objeto.
Cabe ressaltar que perversão não é pulsão, não é fantasia e, muito menos, se refere a
comportamentos de cunho maldoso ou cruel. O presente trabalho vem mostrar que não é disso
102
que se trata. Não se pode, a partir de referências tão simples e, muitas vezes, fenomenológicas
estabelecer um diagnóstico. Para tal, é de suma importância levar em consideração a posição
que o sujeito ocupa no desejo do Outro e sua relação com o fantasma.
No início da construção freudiana a respeito das fantasias, não se tem uma distinção
clara entre os termos fantasia, recordação e devaneio. Há quase que uma equiparação destes
elementos. Freud utiliza um ou outro, sem muito rigor na diferenciação entre eles.
Em “Fantasias Históricas e sua relação com a bissexualidade” (1908), Freud propõe
a fantasia como núcleo central da formação do sintoma. Ou seja, a fantasia como causa da
configuração sintomática do sujeito. Pelo processo de recalque, a fantasia se tornaria
inconsciente e forneceria, assim, todos os elementos para a constituição do sintoma. Neste
sentido, o trabalho do clínico se daria em torná-la consciente, em busca de uma eliminação
dos sintomas. O caminho seria, dessa forma, recuperar o conteúdo fantasmático – já
inconsciente- e dispor esse material ao saber do sujeito. Este seria o intuito da interpretação
(Vidal, 1993).
Grandes e importantes mudanças nas formulações freudianas são alcançadas a partir
de seu texto de 1919: “Bate-se numa criança”. Trata-se de um outro momento de sua clínica;
neste momento, trata-se da construção de um fantasma no processo analítico, ou seja, de uma
construção que permita uma aproximação e um contorno desse indizível, do real. Há muito11,
ele dizia que a fantasia se constitui de restos ouvidos e vistos, não compreendidos pelo
sujeito.
O fantasma seria, então, uma construção a posteriori, em que esses conteúdos vistos
e ouvidos, referentes às cenas primárias, teriam um apoio.
11 Ver em suas cartas a Fliess – carta 61 (1897) e no Manuscrito M (1897).
103
Esse real primeiro, excluído do significante, é matéria do fantasma. Produz-se uma
passagem do acontecimento traumático real ao real indizível do trauma. Esse
“encontro” com o fantasma é considerado momento inaugural da psicanálise (...) A
teoria analítica recorre à construção do fantasma para escrever o real impossível,
separando assim, a ficção do ilusório. O estabelecimento do fantasma fundamental é
uma operação de construção da teoria (Vidal, 1993, p. 99).
Em seu texto “Além do Princípio do Prazer”(1920), Freud define três tempos do
trabalho analítico: a interpretação do material inconsciente; vencer as resistências na
devolução da construção ao sujeito e reaver uma lembrança esquecida. A pulsão de morte,
apresentada neste trabalho, se constituiria um marco fundamental na constituição de uma
outra clínica (Vidal, 1993). Haveria algo não representável e que se repete. Aqui, há um
anúncio do momento de virada freudiano, de uma clínica da construção do fantasma, que
marca a repetição, o gozo, o mais-além.
A construção tem a função de estabelecer um texto onde há algo impossível de ser
dito. A construção não pretende dar uma resposta de significação ao desejo.
Constrói-se em torno do faltante; um enigma é relançado (...) A verdade toca o real,
as palavras faltam para dizer a verdade toda (...) A necessidade da construção se
desprende da impossibilidade que o recalque primário instaura: algo que nunca teve
104
acesso à consciência, à palavra, isto é, o que se constitui fora do campo da
representação (Vidal, 1993, P. 99).
Lacan entende que o processo analítico envolve a construção de uma frase que
articule o fantasma. No princípio, ele acreditava que a fantasia se revelava a partir de sua
vertente imaginária. De acordo com Vidal (1993), o tripé dessa estrutura se apresenta da
seguinte forma: a cena calcada sobre a imagem do corpo próprio, o objeto e o eu em sua
alienação e rivalidade; a fixidez da captação da imagem. O fantasma está relacionado ao eixo
a ∏ a’ do esquema L, ou seja, na relação imaginária eu ∏ outro; relação esta que perpassa a
direção da mensagem vinda do Outro.
Freud (1919) vai articular fantasia e perversão. O autor admite uma realidade
psíquica, realidade esta que é da ordem da fantasia. Trata-se da forma que o sujeito interpreta
e lê o movimento pulsional, articulado às questões edípicas. Diz respeito a uma espécie de
cena-enredo frente a qual o sujeito se encontra numa posição de apassivamento, revelando o
modo de apropriação libidinal. É um momento de suma importância, pois marca a separação,
a barra ao gozo materno mortífero e a possibilidade fundante do sujeito. Pela incidência do
105
Nome-do-Pai, a criança imersa no gozo materno, ascende ao gozo fálico. Não há
possibilidade de ser o falo; a lógica se altera: do ser para o ter.
O primeiro tempo da fantasia, configura-se em um adulto que bate em outra criança.
Isto pode ser lido como : o pai bate em uma criança, no rival, naquele que é odiado. O sujeito
encontra-se numa posição de quem vê, assiste a cena, como um observador detentor de gozo –
olhar de gozo. A idéia é: o pai não ama aquela criança. Só ama a mim.
No segundo tempo da fantasia, o bater transforma-se em ser amado. Ser batido é o
nome do gozo do sujeito; ele goza disso. Na dor, há prazer e no prazer, há dor. Quando, na
passagem gramatical, o ‘bater’ se declina em ‘ser batido’, o sujeito se apresenta em seu gozo
masoquista. Quando esta cena é colocada à luz, adquire uma característica perversa. É
importante mencionar que uma fantasia colocada em ação não diz da perversão como
estrutura, mas sim de um traço perverso. Há que se diferenciar isso, pois este traço pode estar
presente em qualquer das estruturas.
O Nome-do-Pai é o significante que vem nomear o enigma do desejo materno e
amarrar os três registros: real, simbólico e imaginário, instaurando o campo do empírico e da
realidade. O Nome-do-Pai, como metáfora paterna, se inscreve como Lei, interditando o
desejo materno e, instaurando, no campo do imaginário, a significação fálica. Neste sentido, o
Nome-do-Pai produz uma barra, um cerceamento do gozo pela via fálica, da castração. O
supereu e o mandato de gozo comparecem como as decorrências deste processo.
O fantasma, em sua formulação $ ◊ a, marca o sujeito como barrado, inscrito na
linguagem, na articulação significante. Isto ocorre como efeito de uma falta constatada no
Outro.
106
É dessa falta que o Outro é suposto desejo. Dele retorna ao sujeito a pergunta sobre
o insondável do desejo: Che Vuoi? Mais além de seu discurso, do que diz, que é o
que o Outro quer? Perguntas que conduzem o sujeito ao enigma do desejo. O
fantasma é uma resposta: “o pai me bate”, que significa, “o pai me ama”. É no
fantasma que o sujeito se faz coisa, joguete de vontade desse Outro déspota e
tirano. Com a abolição de sua autonomia, mostra no fantasma sua verdadeira
condição: ser sujeitado ao desejo do Outro. O ser falante é apenas falta de ser que o
significante instaura. A consistência, esse “pouco de realidade” é trazido pelo outro
elemento do fantasma: a (...) estatuto real de a (...) borda topológica que sustenta o
campo R da realidade (...) borda funcionante entre Sujeito e Outro, articulação que
instaura o fantasma e a realidade. Alienação ∏ separação são operações
ininterruptas do ser falante, que determinam o Sujeito a partir do Outro, e o objeto
na interseção da falta entre Um e Outro (Vidal, 1993, pp. 100-101).
Neste sentido, tem-se que o sujeito se oferece como objeto para o pai para ser amado,
gozado. Isso é de suma relevância, pois vem em substituição à imersão do sujeito no campo
do gozo materno – verdadeiro incesto, sem barra, sem limite ou cerceamento; trazendo
conseqüências graves ao sujeito.
A partir do recalque originário, o representante da pulsão se inscreve no
inconsciente, ao mesmo tempo em que o objeto a se separa, firmando-se como mais-de-gozar,
como satisfação. Conforme já mencionado, a pulsão não se esgota em sua representação, ou
seja, não é totalmente representável. É neste contexto que a pulsão de morte advém, como
sem representante, como além, como um “a mais” impossível de ser dito. O masoquismo
primário é o nome deste gozo real, puro, deste resto da divisão que funda e inscreve o sujeito.
107
A frase do fantasma construída analiticamente - “eu sou batido pelo meu pai”- situa o sujeito
na dimensão masoquista do gozo, num momento jamais lembrado, que nunca acedeu à
consciência. “O fantasma conjuga o gozo erógeno da pulsão com o pai obsceno e cruel que
escapa à regulação da lei e da castração” (Vidal, 1993, p. 101).
5.6 Acerca da Perversão
Conforme, anteriormente trabalhado, a sexualidade infantil é regida pela premissa
fálica de que todos têm o falo. A criança, neste momento inicial, recusa a percepção da falta
materna. Neste sentido, o infans percebe a diferença sexual – castrados e não-castrados e, a
partir disso, posiciona-se frente a essa falta.
De acordo com o que já fora trabalhado, tem-se a Verdrängung (recalque), a
Verwerfung (recusa, forclusão) e Verleugnung (desmentido) como posições subjetivas que
derivam de uma defesa frente à irrupção da pulsão no aparelho psíquico. O fracasso, é
importante mencionar, viabiliza três possibilidades de retorno do recalcado: na neurose, o
sintoma; na psicose, a alucinação; na perversão, o fetiche.
O que ocorre na perversão é que a renegação é a defesa primária. O sujeito perverso
recusa essa falta no Outro primordial12. Há quase que uma obstinação da criança em a mãe ser
detentora de um falo. Ele renega a castração materna, renega a percepção que indica a falta do
12 É importante mencionar que isso ocorre em todas as estruturas; a renegação e a recusa estão presentes na base inicial de constituição de todos os sujeitos. O cerne da diferenciação entre as estruturas se dá na posição que o sujeito ocupa diante dessa conjuntura.
108
falo13 no Outro. Outra consideração importante é que na perversão, não se trata de
ambivalência, mas de contradição lógica, ou seja, do desmentido.
Nos casos de perversão, além da renegação, o sujeito dá um passo a mais: criação do
fetiche. Este permite situar a presença/ausência do pênis materno; diz respeito à apreensão
subjetiva para o pênis faltante. Não se trata de um substituto para qualquer pênis, mas sim de
um substituto de um pênis da primeira infância, que fora perdido. O fetiche configura-se
como o substituto do pênis materno situado a partir de uma crença imaginária
(crença/percepção – rejeição – fetiche). De acordo com as contribuições trazidas por Lacan, é
possível dizer que o fetiche, assim como o sintoma, é um compromisso criado a partir de um
processo metafórico e metonímico.
A constituição do objeto fetiche se dá na última percepção vista antes da criança
vislumbrar a falta no Outro – é a castração do Outro que vai retroceder como ameaça de
castração sobre o sujeito. Neste momento, há uma fixidez, um congelamento, uma fixação da
pulsão ao seu objeto. O fetiche ergue-se como uma defesa frente ao horror da castração, ao
mesmo tempo, que se constitui como um monumento que indica a falta. Melhor dizendo, o
fetiche indica e esconde a falta, defendendo o sujeito da angústia de castração. É da ordem do
artifício, da invenção, sendo usado para tamponar e elidir o furo, a castração no Outro.
A castração, assim, é vivida de forma terrorífica, a angústia é avassaladora. O fetiche
comparece não como substituto do pênis materno, mas como o substituto da falta fálica;
comparece metonimicamente, enraizado na falta; é o equivalente da castração. Não se trata de
substituto metafórico; pois, assim, seria possível a equivalência na cadeia: bebê, dinheiro...
Mas não se trata disso.
13 Há que se considerar o falo como diferente do órgão pênis. Trata-se de um objeto de desejo; desejo esse assentado na falta e que se dirige a um objeto simbólico.
109
(...) o fetiche é estanque. Pode-se dizer que ele é a cristalização do ‘vaivém entre
recusa e reconhecimento’ em uma posição extrema, e neste sentido ele difere
fortemente da solução neurótica. Contudo, esta posição extrema não corresponde a
uma anulação radical do reconhecimento. A recusa fetichista não consegue tornar
efetivamente não-ocorrida a falta. O fetiche só existe porque a mãe não tem o pênis
(...) A Verleugnung nunca é a recusa de uma presença, mas sempre recusa da falta
(...) O dispositivo fetichista e a operação neurótica se situam em um mesmo nível, os
dois sendo decorrentes da possibilidade de desconhecimento (ou mal-conhecimento)
da falta da coisa (Rivera, 1997, p. 3).
Ao considerarmos a célebre colocação freudiana de que a neurose é o negativo da
perversão, tomada em seu artigo “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905), é
possível invertê-la, com Lacan, ao pensar a perversão como a positivação da neurose
(Braunstein, 2007). Antes do citado trabalho, não se reconhecia uma aproximação clara entre
essas duas estruturas clínicas. Posteriormente, percebeu-se que mesmo os neuróticos
poderiam ser fisgados pelo fetiche. Além disso, a noção de patologia foi reconsiderada,
alegando que um quantum patológico era perceptível em muitos dos casos de normalidade.
No campo das neuroses, neste momento em que o eu se silencia e o sujeito se mostra
barrado, em sua divisão inaugural o gozo se faz ver de várias maneiras, seja pelo sintoma, seja
pelo sofrimento que o sujeito traz em sua fala. A castração sofrida pelo neurótico o inscreve
na linguagem e na Lei; ela, o sujeito repudia; e o seu sofrimento diz muito do não saber o que
fazer com ela. Neste sentido, esses sujeitos experenciam o gozo sem saber – gozam de não
saber. Aqui, encontra-se a paixão da ignorância neurótica descrita por Lacan. A neurose recria
e disfarça o gozo com a roupagem do sintoma. Nestes casos, o gozo se faz presente nas cenas
fantasmáticas do sujeito. São momentos importantes do processo analítico e ocorrem com
110
uma certa dificuldade do analisante em recordar ou confessar essa vivência 14 (Braunstein,
2007).
É sabido que, na neurose, o gozo não é, de fato, realizado. Está condenado a se
manter guardado; por vezes, poderá ser utilizado, colocado em cena; contudo, não sem a
vivência do asco, da culpa, do remorso e da decepção.
Desta maneira, é possível pensar que a diferenciação entre a neurose e a perversão
não está na atuação, mas na posição subjetiva, ou seja, na posição que o sujeito ocupa diante
do Outro, diante da cena.
Com efeito, se o neurótico (...) busca um saber que lhe permita recuperar o gozo
perdido, queixando-se do Outro que goza, imaginando com vergonha que é um
desavergonhado, o perverso toma uma atitude que é o contrário, o positivo dessa
negatividade. Ele vive para o gozo, sabendo quanto é dado saber sobre o próprio
gozo e alheio, pregando seu evangelho, afirmando seus direitos sobre o corpo,
ostentando seu domínio. O que em um é falta e dever, no outro é haver e saber
(Braunstein, 2007, p. 245).
Lacan, em seus trabalhos, vai posicionar a castração e o gozo em oposição, ou seja,
é necessário um corte de gozo, que se recuse a ele para que se alcance a castração. É porque
houve essa renúncia que se pode aceder à Lei do desejo. Apesar disso, não se pode afirmar
que o perverso não tem desejo. O desejo, neste caso, está apenas pervertido. De uma certa
14 O próprio Freud reconhecera essa dificuldade. Em seu texto “Bate-se numa Criança”(1919), mencionará o segundo tempo da fantasia como algo dificilmente relembrado e confessado pelo sujeito. Tratar-se-á de uma temporalidade a ser construída em análise.
111
forma, a inscrição da renúncia se fez (“eu sei, mas mesmo assim...”) – por isso perverso e não
psicótico – embora sempre tente alcançar esse gozo. Essa renúncia que se faz desejo e, ao
mesmo tempo, divide o sujeito – sujeito barrado. Isso não impede que esse desejo seja
transformado em vontade de gozo; contudo delimita as bordas até onde a vontade de gozo
pode chegar.
De acordo com Godim (2006), na perversão, não se trata de reconhecer para depois
negar.
É justamente a particularidade de ser a um só golpe – reconhecimento e negação –
o que caracteriza a Verleugnung como mecanismo próprio da perversão. Este é o
imperativo que precisa se manter no cerne da questão perversa quanto à castração e
que se apresenta como vontade de gozo. Manobra que, pode ser situada no matema
do fantasma perverso, entre $ e S ... ao nível da flecha $ → S que põe em jogo ao
mesmo tempo a falta ($) e um prazer referido ao falo enquanto ele não falta (S) (pp.
118-119).
Diante dessa configuração, o sujeito ergue um substituto que, ao mesmo tempo, vela
e revela a falta fálica. Ou seja, o fetiche comparece como substituto do pênis faltoso no Outro
e protege o sujeito da ameaça de castração. De fato, é uma via de mão dupla.
112
Além da reposta do sujeito diante da falta, é preciso considerar que o infans assume
uma posição frente ao desejo do Outro. Diante do enigma daquilo que o Outro deseja, o
sujeito responde com a criação da fantasia. Há que se considerar que os sujeitos se
posicionam de forma diferenciada em relação ao desejo do Outro primordial. Este ponto será
utilizado para a constituição do diagnóstico diferencial. No presente trabalho,
especificadamente, a posição do sujeito frente ao desejo do Outro e na fantasia, como base
essencial na diferenciação diagnóstica entre a psicose e a perversão.
Em seu texto Kant com Sade (1998), Lacan traz a fórmula do fantasma perverso,
levando em consideração os trabalhos de Kant e Sade.
5.8 As contribuições de “Kant com Sade” (1998)
Este texto deveria ter sido publicado com prefácio para o livro sadiano A Filosofia na
Alcova. Fora, contudo, publicado na revista Critique – n° 191 de Abril de 1963, como uma
resenha da edição das obras de Sade.
Neste artigo, Lacan fará algo que, minimamente, é inusitado: vai fazer uma
aproximação entre Sade, tido como imoral e subversivo e Kant, tido como alguém que
promove a moral e a ética. De acordo com esse último, nenhum fenômeno pode se fundar ou
prevalecer numa relação constante de prazer. É impossível enunciar uma lei dessa natureza,
isto é, portanto, uma lei que defina como vontade o sujeito que a introduz em seus costumes.
É importante afirmar que, ainda segundo Kant, tem-se que
(...) é no momento em que o sujeito já não tem diante de si objeto algum que ele
encontra uma lei, a qual não tem outro fenômeno senão alguma coisa já significante,
que é obtida de uma voz na consciência e que, ao se articular nela como máxima,
propõe ali a ordem de uma razão puramente prática, ou vontade. Para que essa
113
máxima sirva de lei, é necessário e suficiente que, na experiência de tal razão, ela
possa ser aceita como universal por direito de lógica. O que, lembremos sobre esse
direito, não quer dizer que ela se imponha a todos, mas que valha para todos os
casos, ou, melhor dizendo, que não valha em nenhum caso, se não valer em todos
(Lacan, 1998, p. 778).
Kant é um grande filósofo moral que contesta os princípios aristotélicos. De acordo
com ele, a lei moral não pode estar ligada a um objeto material. A lei não depende de um
objeto sensível e empírico; neste sentido, o sujeito só acede à lei quando não mais padecer do
objeto, quando o objeto não mais ditar as regras, ou sejam quando o lugar de objeto for
esvaziado. Sendo, só é possível ser moral, ético, se houver o esvaziamento do objeto.
Em contrapartida, Sade vai discutir a natureza e a verdade do objeto kantiano. Trará
à tona toda a barbárie humana, afirmando que o bem supremo do homem é a sua maldade.
Neste sentido, é possível adiantar que o suporte da lei que Kant sustenta é o próprio objeto de
gozo que ele recalca.
Lacan enxerga o perverso como um grande moralista, por ensinar a verdade sobre a
ética. Diante de um sujeito moral, adaptado em sua vida medíocre e cotidiana, o perverso
comparece para desvelar o gozo do sujeito, para apontar onde ele goza; ponto este,
desconhecido e recalcado pelo sujeito; aquilo que lhe traz horror e ele não quer saber.
O bem supremo diz do gozo, da maldade que é inerente a todo sujeito. Assumir essa
essência abre a possibilidade de uma ética. De acordo com a proposta sadiana, renunciar a
pulsão é negar que o que move o sujeito é o gozo. Sade nomeia aquilo que Kant não
conseguiu definir. A ética, neste sentido, não é fundada no desejo, mas no gozo.
114
Eis a máxima sadiana: “Tenho o direito de gozar de teu corpo, pode dizer-me
qualquer um, e exercerei esse direito, sem que nenhum limite me detenha no capricho das
extorsões que me dê gosto de nele saciar”. Esta é pronunciada pela boca do Outro,
desmascarando a fenda, normalmente, escondida do sujeito. É bem verdade que o gozo é
aquilo que pelo qual se transforma o fenômeno sadiano. Gozo esse que se encontra preso no
Outro. A fantasia sadiana possui uma estrutura na qual
(...) o objeto é apenas um dos termos onde pode extinguir-se a busca que ela
representa. Quando o gozo se petrifica aí, ele se torna o fetiche negro em que se
reconhece a forma efetivamente oferecida em um certo tempo e lugar, ainda nos dias
atuais, para que nela se adore seu deus. É isso que advém do executor na
experiência sádica, quando sua presença se resume, em última instância, a não ser
mais do que seu instrumento. Mas o fixar-se seu gozo nela não o livra da humildade
de um ato em que ele não pode entrar senão como ser carnal e, ate a medula, servo
do prazer (...) O desejo, que é o fautor dessa fenda do sujeito, sem dúvida se
conformaria em se dizer vontade de gozo. Mas essa denominação não o tornaria
mais digno da vontade que ele invoca no Outro, provocando-a até o extremo de sua
separação de seu pathos, pois, para fazê-lo, ele já começa derrotado, fadado à
impotência (Lacan, 1998, 784).
115
Neste sentido, pode-se mencionar o desejo perverso como vontade de gozo, assim
como afirmou Lacan neste texto de 1998. O autor situa a vontade de gozo como imperativo
categórico kantiano, marcando o desejo como um dever.
A perversão está do lado do saber e vai mostrar ao neurótico ou ao psicótico onde ele
goza. O primeiro deseja estourar, ultrapassar os limites do outro, visa o obsceno. A Lei que
vem do Outro é a lei do gozo, que situa o perverso como seu instrumento. O perverso busca
desvelar a divisão ao sujeito, em seu princípio, ali onde o sujeito começa dividido e alienado
ao Outro; revela a posição do sujeito em relação ao Outro primordial. Não se busca o
sofrimento e a dor, como alguns acreditam. O que se almeja é a divisão e a angústia do
sujeito. É neste ponto que o perverso goza.
De acordo com essa noção, o sádico não almeja provocar o sofrimento de seu
parceiro. O que ele busca
(...) é a sua divisão subjetiva que o sofrimento permite fazer emergir da vítima, isto
é, separar o logos do pathos. Na cena da tortura, o sádico se apodera da totalidade
do logos(...). Ele sacrifica sua subjetividade a um Outro gozador (...) reduz-se a ser
apenas uma voz que enuncia o mandato do gozo, e um instrumento que o executa
como um funcionário zeloso. A vítima, o sujeito a ponto de desaparecer, se divide
entre corpo e fala, sofrendo todo peso da angústia (Dias, 2003, p. 175).
Na cena de tortura, entre o sádico e o masoquista, resta a este último apenas o
grito. Neste apoderamento do logos o que resta é o grito do outro; desvelado em sua divisão.
116
A perversão anuncia a Lei simbólica como uma lei do gozo absoluto. É relevante
ressaltar que o perverso não está fora da Lei ou do Outro. Encontra-se articulado ao Édipo e à
sua lei, embora decante o desejo em desejo de gozar. Essa lei é referenciada e se enuncia no
Outro, postulando o desejo como vontade de gozo. Trata-se de uma lei que se impõe por um
“capricho” e que em nada está relacionado a racionalidade ou vontade. Não há força de
discurso, consideração ou motivação. Trata-se de ser porque é; de um caráter absoluto. Quase
um “quero porque quero”, se pudéssemos ser bem sucintos.
Desta maneira, pode-se mencionar a posição que o perverso ocupa: de objeto, dejeto
diante do Outro. Especificando melhor, instrumento do gozo do Outro. Esta é sua posição
fantasmática.
A fórmula da fantasia que para o neurótico se coloca como $ ◊ a, se apresenta na
perversão como a ◊ $. Enquanto a neurose interroga o Outro a respeito do desejo e o demanda
uma posição localizada no próprio desejo do Outro, o perverso se apresenta como a resposta.
Não se trata de uma questão que será colocada, mas de uma imposição, de uma resposta
categórica. É neste sentido que é possível afirmar que o perverso é a causa pela qual o sujeito,
o parceiro se divide. Cabe ressaltar que é aí que ele, o perverso, se torna instrumento do gozo
do Outro; não está subvertido aos enlaces da cadeia significante, pois se identifica com o
resto, com o impossível, com o real que torna possível aceder ao gozo do Outro, com a causa
de desejo do Outro. Vira resto, meio, utensílio, objeto através do qual o Outro alcança o gozo.
É o próprio objeto a.
É do lugar de objeto, e para uma vontade de gozo, (...) que o perverso a fim de
provocar no Outro a emergência de uma divisão do sujeito, faz vibrar a angústia ao
lado de suas vítimas. A posição singular do perverso frente à castração vem colocar
117
uma questão quanto à divisão subjetiva. O sinal dessa divisão é a angústia e sua
prova, nesses casos, é buscada no Outro. A manobra perversa vai fazer com que a
angústia sempre apareça do lado de seus parceiros. É imprescindível que ela se
apresente assim. Sua posição de objeto visa essa angústia, mas a angústia de que se
trata aqui, é a angústia do Outro (...) Isso equivale a dizer que, nas cenas (...) o
perverso se coloca no lugar de objeto a – embora de forma denegada – buscando a
angústia do Outro (Gondim, 2006, p. 118).
Essa configuração não se mantém sozinha. O perverso precisa ter um par com quem
possa atuar sua fantasia, provocando a divisão subjetiva e a angústia extrema do sujeito. Seu
desejo metaforseado em vontade de gozo depende de uma não autorização do par em gozar de
seu corpo. O perverso vive o gozo e para o gozo.
Sua aposta consiste em saber, sempre mais, mais ainda, sobre o possível corporal
ante o impossível da relação sexual. Sonha com um trazer de volta no real, por sua
atividade encenadora do fantasma, daquilo que a castração lhe obrigou a entregar.
Desaparece como sujeito para ser, desde o lugar do objeto, o senhor do gozo
invulnerável à divisão, essa divisão que translada sobre o outro. Procura,
incansável, fazer passar o gozo pelos desfiladeiros do discurso e assim controlá-lo
(Braunstein, 2007, p. 259-260).
118
O matema invertido na perversão, assim, aponta a posição de objeto ocupado pelo
sádico – e não de sujeito do fantasma – apresentando-se como instrumento da vontade de
gozo absoluto de um Outro gozador.
Daí se dirige à vítima, a quem é deixado todo peso da subjetividade, e a divide de
modo mais profundo entre a submissão à voz imperativa e a revolta contra a dor, até
que ela desmaie. Ele visa produzir um sujeito mítico, nunca atingido, um puro
sujeito do prazer, isto , um sujeito que só experimenta prazer ao gozar (...) As
servícias infligidas visam extrair do gozo sua parcela de dor, isolar aquilo que, no
gozo, é o mal, a fim de revelar um puro prazer, sem mistura (Dias, 2003, p. 176).
A vontade de gozo se impõe e personaliza a estrutura perversa. Trata-se de
ultrapassar o bem estar, a baixa tensão, a diminuição do prazer em busca de um bem supremo:
o gozo! Ele afirma a existência de um prazer pleno e o desnuda. O perverso é o mestre que
instaura o gozo como possível. O desejo, nestes casos, é reduzido à pulsão, ou seja, há uma
indiferenciação quanto ao objeto, numa busca desenfreada pela satisfação. O objeto, neste
sentido, é a própria satisfação. O desejo, assim, se apresenta como vontade de gozo. Ao
enunciar o gozo do sujeito, o perverso desnuda a posição do sujeito enquanto objeto do gozo
do Outro, isto é, o masoquismo original.
É fundamental pensar como essa estrutura se coloca no matema da fantasia. Sendo
esta
(...) uma resposta à pergunta sobre o desejo (...); trata-se da relação do ser ao gozo,
momento de elipse do sujeito e de sua passagem para o objeto. Nesta ligação entre o
119
sujeito do inconsciente e o objeto a ($ ◊ a), o sujeito está no traço do corte, constata-
se sua presença no momento de dessubjetivação que se precipita no terceiro tempo
da fantasia, destacando um puro olhar e bater. O objeto na fantasia não se reduz ao
objeto da pulsão parcial (o seio, o excremento, o olhar e a voz), o resto é tomado
como função (o que resta mais-além, inalcançável) (Dias, 2003, p. 174).
Ao considerar a fantasia em sua função de apoiar o desejo na neurose, isso se
diverge nos casos perversos. Nestes, o desejo se faz vontade de gozo; implicando um
desaparecimento do próprio sujeito, já que este se coloca como vontade do gozo do Outro. É
esta sua posição na fantasia. Almeja apreender o objeto a no Outro, ali onde objeto a e gozo
do Outro estão misturados, sem delimitação.
Como tela de anteparo erguida frente ao Real e ao gozo, a fantasia, em seu matema
$ ◊ a, representa a posição do sujeito diante desse Outro. Enquanto o neurótico se afirma em
sustentar o desejo do Outro, o psicótico está posicionado como objeto do gozo do Outro,
enquanto o perverso, como instrumento do gozo - para o Outro gozar. O que o perverso
desconhece é que ao acreditar fazer do outro seu objeto, é ele mesmo que está como objeto do
Outro na lógica da fantasia. “(...) o perverso, confrontado muito mais de perto com o impasse
do ato sexual (...) faz das malhas da fantasia o aparelho condutor pelo qual furta, em curto-
circuito, um gozo do qual nem por isso o lugar do Outro o separa” (Lacan, 2003, p. 327).
Ao se considerar agente da ação, o perverso não é nada mais que objeto, ferramenta
útil ao gozo do Outro. Conforme afirma Lacan (1963): (...) o que ele não sabe é o que ele
procura (...) fazer aparecer a si mesmo como puro objeto (p. 118)
120
Ele se torna funcionário do Outro, alienando seu trabalho para que um Outro
continue a gozar. Não é nada mais que um utensílio, um objeto a serviço do gozo do Outro.
Ele é o fetiche que venera, é o chicote com que flagela sua vítima, é o contrato com
escraviza seu flagelador (...) Em suma, ele é a, um a que positiviza o falo, que nega
que o falo falte, que assegura que o gozo se falifica no Outro (...) Pois esse Outro a
que se consagra o perverso não é – se bem ele não queira sabê-lo – um Outro
absoluto que está fora do gozo; o Outro é a sede de um gozo que lhe é próprio e que
o perverso desconhece, um gozo que é possível precisamente pela falta do órgão
que, para ele, imaginariza o falo ( Braunstein, 2007, p. 256).
Sendo assim, pode-se afirmar que, na cena perversa, quem comanda é o ser de gozo.
O que a fórmula da fantasia apresenta, nestes casos, é que o perverso se posiciona como
objeto causa de desejo para causar a divisão do Outro; para levar o Outro àquilo que o causou,
a suas origens, ao seu masoquismo original, como alienado ao Outro, como objeto para o
Outro gozar.
O perverso tenta ocupar o lugar do objeto causa de desejo, do falo que não tem e
não é para consagrar o Outro ao gozo e, gozando, acentuar no Outro sua divisão. O
objeto da fantasia na perversão está fora do Outro significante, por isso, ele não
coloca o analista no lugar de sujeito suposto saber – ele tem certeza de seu gozo,
não espera a resposta de um psicanalista, sua verdade chega sempre na hora certa
121
(...) Ali onde o neurótico foge, o perverso se precipita, revelando a defesa e sua
erotização, pois, na renegação da castração da mãe, transforma a castração em
gozo, o horror em fascinação (Dias, 2003, p. 175).
Ao desmentir a castração, o desejo e a pulsão são convertidos em vontade de gozo. O
horror da castração é transformado em gozo. Neste sentido, é possível pensar que o perverso
está muito próximo do desejo do Outro. E, apesar de muitas discussões aprovarem o
contrário, o perverso encontra-se numa angústia dilacerante frente a esse Outro.
Por fim, uma consideração... alheia à psicose.
O sujeito, através das operações de alienação e separação, é lançado na articulação
significante, indicadora da falta no Outro e, ao mesmo tempo, reconhecimento de
sua própria falta. Na escuta do fantasma, uma nova clínica se faz. Algo de fora de
todo o simbólico, excluído do significante, vindo sob a forma de repetição (...) Na
impossibilidade de um DITO, a construção vem se fazer presente, não para dar
significação ou preenchimento do vazio. A “restituição” do fantasma fundamental
que sustenta os símbolos até o acesso à verdade inconsciente vai revelar ao sujeito
– de seu vazio – seus restos como produção a partir de um significante primevo.
122
Uma frase, arrastando a gramática, vai implicar que se articule uma lógica, lógica
do NÃO-TODO. A verdade ganha, na impossibilidade de dizê-la toda, seu estatuto
(...) A verdade do desejo funda o estatuto ético do inconsciente, e é como vai operar
a partir desse lugar: colocando em questão seu próprio desejo (...) O Outro não dá
ao sujeito barrado o significado da sua existência, mas o significante de sua falta
(...) ( Mader, 1993, p. 123).
Palavras Finais
“Assim a loucura nos mostra uma imagem da liberdade que é alheia aos normais, os mais ou menos neuróticos ou
perversos, os que nos defendemos do real por meio do simbólico, nos agarramos à nossa imagem narcísica e nos instalamos
em uma suposta “realidade” que está feita de enlaces arbitrários entre significantes e significados. Tal “realidade” não é mais
que uma formação fantasmática compartilhada por muitos bem-pensantes e que nos deixa a ilusão de não estar loucos”
(Braunstein, 2001, p. 270).
123
Apesar de exaustivamente discutido a questão fantasmática e do gozo na psicose e na
perversão, optou-se por fazer essas considerações finais a fim de reunir em poucas palavras o
que fora apresentado.
Se por um lado, a psicose é marcada pela forclusão do Nome-do-Pai, a perversão se
escreve pelo desmentido da castração.
Há que se reconhecer que a defesa, nos casos de perversão, é menos radical do que
aquela que a psicose engendra, tendo em vista que há dois movimentos: um que reconhece e
outro que desmente a falta. Diferentemente, na psicose, percebe-se uma alucinação do pênis;
um resto não simbolizado que retorna do real devido a uma não inscrição de sentido do
desejo materno, ou seja, a uma ausência do Nome-do-Pai como metáfora que significa o
desejo da mãe.
A ausência do significante Nome-do-Pai marca o sujeito numa posição peculiar. Não
se trata de liberdade total, mas de um sujeito submetido ao inefável gozo do Outro, ou seja, ao
bem dizer do desejo materno. Na psicose, o sujeito está entregue ao Outro; não responde por
si, não é dono de si mesmo. Nestes casos, o gozo não está limitado, cerceado. O objeto não se
encontra perdido; não há possibilidade de metáfora ou metonímia em sua relação com os
outros significantes da cadeia.
O limite ao gozo possibilita a inserção do sujeito na linguagem; como resto dessa
operação, resta algo inacessível ao sujeito: ‘a’. Este processo falha na psicose; não há limite
para o gozo; a palavra e o discurso ficam comprometidos. Na cadeia, S1 não representa o
sujeito para S2. Isso trará conseqüências na configuração fantasmática no psicótico.
Tomando a fantasia como meio do sujeito se distanciar do objeto causa de desejo (a),
ou seja, do objeto de gozo, tem-se que, na psicose, o sujeito não se encontra protegido desse
gozo inefável. O losango que manteria distância entre o sujeito e o objeto de gozo – proibido -
124
é falho. Na psicose, o sujeito fica imerso nesse gozo; é nada mais que o objeto do gozo do
Outro.
O psicótico não se sustenta à distância do gozo, habita nele; está identificado com
seu gozo. Ele é gozo. A alucinação não é uma percepção de alguém (...) Faltando o
losango que afasta o sujeito do gozo do objeto a, a condensação é agora produzida
entre os dois termos do fantasma (...) na alucinação, o sujeito está fundido,
confundido, com seu objeto. Não são dois, mas apenas um, não guardam uma
relação de exterioridade recíproca (Braunstein, 2007, p. 277-278).
Na perversão, o que ocorre é uma transformação do desejo em vontade de gozo. E,
como já fora dito, é o desejo e sua causa que estão a sustentar a fantasia. Nestes casos,
diferentemente da psicose, a renúncia e a limitação do gozo compareceram. Sendo assim, o
Nome-do-Pai não está forcluído. O perverso encontra-se na ordenação edípica e na Lei do
desejo, mesmo que este se converta em vontade de gozo. Neste casos, a configuração
fantasmática se apresenta tal como: a ◊ $.
O que explicaria, então, a tomada da fantasia $ ◊ a para sua inversão em a ◊ $? É
compreensível, ao se tomar a configuração da estrutura perversa.
O perverso que se toma e que pretende ser visto como um sujeito absoluto que porta
e aporta o gozo, um ser sem barra, é levado pela lógica mesma de sua estrutura e
de seu desejo a converter-se em um objeto, em um instrumento, em um complemento
125
que está a serviço do Outro (...) ele é o a, um a que positiviza o falo, que nega que o
falo falte, que assegura que o gozo se falifica no Outro (Braunstein, 2007, p. 256).
Em sua posição de a, o que o perverso busca é a divisão do sujeito; almeja remetê-lo
a suas origens, ao seu masoquismo original, alienado no desejo do grande Outro, posicionado
como objeto diante desse Outro primordial.
Diante destas últimas palavras, cabe ressaltar a importância clínica da posição do
sujeito na configuração do seu fantasma e dos seus modos de gozar a fim de que se possa
alcançar uma maior compreensão da dinâmica do sujeito na estrutura.
O presente trabalho buscou elevar as “categorias” do gozo e do fantasma como
ferramentas fundamentais a serem utilizadas no critério diagnóstico. Há que se deixar claro
que não se trata de engessar o sujeito perante suas possibilidades, mas de uma orientação
necessária que viabilize o manejo clínico no atendimento destes casos. Apesar de ser uma
produção eminentemente teórica, acredita-se nos ganhos clínicos que poderão advir como
conseqüência. Inclusive, porque não se constitui uma clínica sem teoria, nem uma teoria sem
respaldo clínico.
Bom, o trabalho apenas começa...
126
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