Download - Filosofia Da Libertacao - Enrique Dussel
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O MÉTODO DA FILOSOFIA DA LIBERTAÇÃO, SEGUNDO
ENRIQUE DUSSEL
Prof. Donato de Oliveira
Sem dúvida alguma, Enrique Dussel está entre os mais importantes
pensadores do nosso tempo. Nele se aliam de forma brilhante o rigor teórico e a paixão
política, típica dos grandes pensadores. Sua obra mais recente, Ética da Libertação: na
idade da globalização e da exclusão, publicada no México em 1998 e traduzida no Brasil,
pela editora Vozes, em 2000, constitui o mais importante esforço de crítica da tradição
filosófica ocidental. Trata-se de uma obra que propõe um discurso ético mais abrangente,
com a pretensão de fazer a crítica do ´sistema-mundo´ globalizado, a partir do pressuposto
de que essa totalidade mundo denominada ´globalização´ ao mesmo tempo que constrói
sua identidade — as revoluções do capital tecnológico e do mercado financeiro no sentido
do predomínio do capital fictício (como via Marx) — produz também o seu `outro´, ou seja,
a exclusão material das grandes maiorias da humanidade, agora denominadas `as vítimas do
sistema-mundo´. Segundo as palavras de Dussel,
Esta Ética deseja explicar essa dialética contraditória, construindo categorias e o
discurso crítico que permitam pensar filosoficamente este sistema perfomativo auto-
referente que destrói, nega e empobrece a tantos neste final do século XX. A morte
das maiorias exige uma ética da vida, e seus sofrimentos nos levam a pensar e a
justificar a sua necessária libertação das cadeias que as prendem.
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O tema da Ética da Libertação no pensamento de Enrique Dussel é o mesmo que o
da Filosofia da Libertação. Apresenta-se como um discurso que é construído de modo
abrangente, ao mesmo tempo que interpretante de particularidades. Um dos temas
importantes na filosofia de Dussel é o da compreensão do lugar da América Latina na
História mundial.
O tema da particularidade latinoamericana em confronto com a totalidade cultural
do Ocidente, européia ou europeizada, norteou Dussel em suas obras até esse início de séc.
XXI, influindo de modo crucial em seu projeto temático e metodológico. A filosofia da
libertação é, para Dussel, inicialmente, latinoamericana que, agora, tem maior abrangência
geo-política e conceitual – propõe-se intepretar a ética das vítimas do capital em sua época
planetária.
Nossa exposição a seguir, se deterá no projeto de uma filosofia da libertação
latinoamericana proposto por Dussel, seus pressupostos e seu método. Cremos que a quase
totalidade de suas obras tratam desse tema. Será a partir da particularidade latinoamericana
que sua filosofia adquirirá abrangência.
1 - A América Latina e a Filosofia
Nas seguintes obras de Dussel, Para uma Ética da Liberação Latinoamericana (5
volumes), Filosofia da Libertação, Ética Comunitária, Método para uma Filosofia da
Libertação, e Oito Ensaios Sobre Cultura Latinoamericana, apresentam-se duas tarefas
importantes:
A primeira, será interpretar a história e as filosofias européias a partir da história e
das culturas latinoamericanas. O pressuposto dessa interpretação será a relação de conquista
violenta e de domínio colonial imposto aos latinoamericanos, que resulta numa relação
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antagônica de opressor-oprimido, ser e não-ser. Segundo Dussel, a Europa, lugar
geopolítico e cultural, desde o século XVI, mantém uma relação de domínio político-
econômico e de segregação sócio-cultural sobre a América Latina, também lugar
geopolítico e cultural, impossível de ser mantida caso a América Latina compreenda seu
próprio ser, seu poder geopolítico e suas riquezas espiritual e material (hoje relegadas à
pobreza e ocultas sob ideologias conservadoras colonialistas).
O método da Filosofia da Libertação deverá oferecer os instrumentos reflexivos para
a construção da crítica às cadeias que há séculos dominam os laninoamericanos, travestidas
de belas ciências, filosofias profundas e tecnologias avançadas. Será a denuncia do caráter
fetichista e fetichizante dessas sabedorias elaboradas em outros contextos e a serviço dos
projetos de violência colonial e opressora, perante as quais a maioria dos latinoamericanos é
considerada ignorante.
A segunda tarefa de Dussel consistiu, então, na elaboração de categorias filosóficas
capazes de permitir aos homens e às mulheres latinoamericanas se auto-compreenderem,
através da análise do núcleos centrais das culturas humanas: a erótica, a pedagógica, a
política, a econômica, as ciências e as religiões.
O ponto de partida do método da Filosofia da Libertação é o reconhecimento de um
ethos cultural latinoamericano (sistema de valores pensados e vividos; os valores presentes
nos estilos de vida práticos, nos hábitos e nos costumes), constituído pôr heranças históricas
de elementos das culturas indígenas e negras, das culturas árabes-semitas, das culturas indo-
européias e da cultura da cristandade colonial européia. Trata-se, para Dussel, de filosofar
sobre esse ethos, nele e a partir dele; de ser capaz de, vivendo e conhecendo-o, re-conhecê-
lo e nele reconhecer a possibilidade de formulação de um discurso original e crítico.
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Ao partir do ethos dos povos latinoamericanos, o filósofo compreende seus valores e
se compromete com o resgate da vida dos oprimidos. A essa filosofia importa compreender
os valores, a religiosidade e a sabedoria dos distintos povos que tecem nosso ser afro-
latinoamericano. Apesar de os europeus terem dominado esse continente pelas armas e pela
imposição dos elementos de sua cultura, trata-se de reconhecer que esse domínio não se
realizou de modo abasoluto. Na Améria Latina, apesar do predomínio generalizado de
elementos da cultura européia, sobrevive, conservado e sempre reinventado o ethos das
maiorias oprimidas que marcaram a nossa cor e o nosso sangue.
Para cumprir seu projeto, a Filosofia da Libertação deve, então, realizar-se em duas
dimensões críticas importantes e complementares: a ético-antropológica e a histórica.
Na dimensão ético-antropológica, a Filosofia da Libertação visa resgatar o ser dos
comportamentos assumidos pelos povos latinoamericanos em suas lutas de resistência e
libertação: as lutas dos índios, dos negros, dos operários e dos lavradores, das mulheres e de
todos os grupos discriminados. Todas essas lutas nos ensinam importantes lições de
fraternidade, de prática da justiça, de exercício do poder, de cooperação, de educação
comunitária e de sabedoria compartilhada. Esse resgate passa, inicialmente, pela construção
de um discurso crítico dos projetos de conhecimento e de práticas político-culturais
etnocêntricos, que submetem um povo ao outro, um ser humano ao outro, quando uns
vivem às custas da morte dos outros. As teorias das ciências, das morais, das políticas, das
pedagógicas, das econômicas, das eróticas, principalmente, que dão justificativa ´racional´ a
esse projeto de dominação devem ser desmistificadas teoricamente e combatidas
politicamente. Por essa dimensão é o que o filósofo da libertação deve afirmar a eticidade
de todo discurso filosófico, e fazer a crítica ética de toda forma de conhecimento
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pretensamente ´neutro´. Para tanto, deve construir um método ou adotar métodos que lhe
permitam construir categorias superadoras das categorias e dos métodos etnocêntricos
europeus, principalmente aqueles que até hoje justificam as relações de dominação amorais,
imorais e antiéticas exercidas sobre os povos da América Latina.
Na dimensão histórica, a Filosofia da Libertação visa resgatar o profundo sentido
das culturas afro-latinoamericanas que se gestaram ao longo de muitos séculos. Não
significa estudar o ´folclore´, reivindicar direitos autorais sobre eventos hoje culturalmente
importantes, mas demonstrar como os ´índios´ e os negros nos trouxeram uma civilização e
formam povos com valores, religiosidade e sabedorias próprias. Contar a história do
massacre desses povos, a história de suas lutas e resgatar o que sobrou. Sabendo essa
história, encontraremos nossas raízes, nossa ancestralidade cultural, que é parte de nossa de
identidade de hoje, e da daí tiraremos os motivos da luta que devemos empreender para nos
libertar dos novos colonizadores que hoje nos oprimem com coca-cola, satélites e
espionagem e mísseis atômicos.
Segundo Enrique Dussel, a Filosofia latinoamericana terá sua originalidade ao se
fundar sobre um projeto ético-antropológico interpretante do ser do homem
latinoamericano. Esse projeto só poderá ser realizado se se constituir numa filosofia sobre
novas bases metodológicas e históricas. Será necessário ao pensamento latinoamericano
ultrapassar os modelos metodológicos das filosofias européias que geram a alienação do
homem latinoamericano. Tais métodos são métodos ideológicos alienantes, etnocentristas.
Também será necessário superar a concepção historiográfica européia no sentido crítico, de
ruptura com a visão de mundo eurocêntrica.
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No aspecto metodológico, Dussel, partindo de Marx e da tradição semita propõe
uma nova formulação metodológica: o Método anadialético. Trata-se de uma metodologia
filosófica original, porque distinta e superadora dos procedimentos e categorias
etnocêntricas da modernidade européia. Ao princípio da identidade (lógico e ontológico)
que milenarmente funda a tradição filosófica européia, o método da Filosofia da Libertação
terá seu ponto de partida no princípio da alteridade. O pressuposto intocável desse método
estabelece que o discurso filosófico tem um caráter eminentemente ético, para além de sua
dimensão lógica. O discurso é válido ou inválido não pôr sua correção lógica, mas por seu
acordo ou desacordo com a justiça. O pressuposto é de que o filosofar antes de ser lógico
deve ser justo. A justiça guarda uma relação fundamental do discurso ao outro. Realiza-se
numa comunidade de falantes; é uma ação dialogal. “O filósofo, antes de ser um homem
inteligente, é um homem eticamente justo, bom, discípulo”, diz Dussel. O filosofar deve,
então, reconhecer seu ponto de partida e seu fim, não como reflexão solipsista, egoística,
numa pretensa busca solitária da ´verdade`, mas no ato dialogal comunitário, interpretante
da palavra do outro, a partir do seu acolhimento.
Na obra Método para uma Filosofia da Libertação, Dussel faz uma exposição e
crítica dos usos que a tradição filosófica ocidental fez da dialética desde Platão até
Heidegger. Encontra nas obras de Karl Marx e de Emmanuel Levinas as categorias centrais
do seu projeto metodológico.
2 - O Método da Filosofia da Libertação
As palavras a seguir indicam o sentido que Dussel quer dar ao seu empreendimento
metodológico. Não se trata de mais um método de teorização, simplesmente; mas, de uma
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filosofia nova, feita a partir do contexto da América Latina e de uma atitude distinta das
filosofias da tradição européia.
Trata-se agora de um método (ou do domínio explícito das condições de
possibilidade) que parte do outro enquanto livre, como um além do sistema da
totalidade; que parte, então, de sua palavra, da revelação do outro e que com-fiado
em sua palavra, atua, trabalha, serve, cria...O método analético é a passagem ao
justo crescimento da totalidade desde o outro e para `serví-lo´ criativamente... A
verdadeira dia-lética tem um ponto de apoio ana-lético (é um movimento ana-
dialético). (DUSSEL, E., 1986, pp.196-197).
2.1) A PROXIMIDADE. A relação face-a-face entre Eu e o Outro é anterior ao
mundo, isto é, anterior à totalidade de sentido, de compreensão dos entes. É a partir do face-
a-face do povo em seu viver diverso e plural - enquanto negado pelo capitalismo - que se
constrói a filosofia da libertação.
O face-a-face, segundo Dussel, é movido pelo encontro original, do inusitado, do
desconhecido, do ver o outro e aproximar-se, alterativo, numa relação justa, de respeito
mútuo, de espanto, de acolhimento, amorosa. Práxis é um encontro alterativo, de alteridades
(outros-com-outros ).
A proximidade é ao mesmo tempo originária e histórica. Na sua origem, no seu
nascimento o ser humano nasce em alguém, alimenta-se de alguém, mama. A primeira
relação do ser humano anterior à própria compreensão de seu mundo é a relação com outro
humano. A proximidade primeira é o mamar os seios de uma mãe (acolhimento biológico e
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cultural). Esse ato é anterior a toda distância, a todo conhecimento, ao mundo enquanto
totalidade na qual se nasce.
Da proximidade original do nascer surge a proximidade histórica: o ser humano
nasce fraco e indefeso e depende dos outros, de sua atenção, dos conhecimentos, dos
produtos. Assim é que pouco a pouco o ser humano vai sendo parte de um povo, de uma
cultura, tem um mundo. É no calor da proximidade que o mundo se realiza como mundo. é
na e pela proximidade que o mundo é o que é, esse mundo.
No face-a-face, na proximidade o tempo como que se dilui na alegria de estar
juntos: o tempo de um é o tempo do outro. Não conta a duração, mas o encontro. A
espacialidade perde todo sentido perante a proximidade: a separação ganha sentido no
reencontro, no retorno do face-a-face, na escuta da palavra, no calor da presença. A
proximidade como raiz de toda práxis é essencialmente festa: tempo sem tempo.
Contudo, a proximidade feliz é essencialmente equívoca. Um beijo, por exemplo,
tanto pode ser uma manifestação de ternura e amor, como pode ser a utilização hedonista do
outro, uso objetual.
Os excluídos da história clamam pela proximidade humana originária, dos justos,
dos amorosos (que acolhem o outro ).
Na proximidade, a vida em comum no face-a-face alterativo é afirmada na
semelhança carnal, analogicamente, entre distintos e não, ontologicamente numa mesma
natureza (o gênero), como pensava Aristóteles. A abertura ao outro significa o recebimento
da novidade que ele guarda enquanto outro. Aproximar-se do outro como alguém que surge
do além da origem do meu mundo como condição desse originar; como alguém que
permanece novidade exterior àquilo que está feito (o factum, em latim). Diferente do
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aproximar-se que se põe na proximidade do outro é o dirigir-se às coisas, aos objetos
diferentes do ser humano e isto chama-se proxemia. A relação alterativa com o outro
humano realiza-se como relação analógica de dis-tinção (aquilo que tem outra cor, outro
tom). Com esse termo indica-se a situação na qual ocorre o reconhecimento amoroso, no
encontro erótico; o reconhecimento do filho, na família; o reconhecimento do irmão, na
política; e o reconhecimento do companheiro, no trabalho. A proximidade instaura-se na
dis-tinção, que exige uma atitude analógica, que afirmará as semelhanças; e as semelhanças
conduzem ao acolhimento e, do acolhimento, nasce o reconhecimento mútuo que forma a
comunidade.
O outro nunca é `um só´, mas também `vós´. Cada rosto no face-a-face é igualmente
a epifania de uma família, de uma classe, de um povo, de uma época da humanidade
e da própria humanidade como um todo, e ainda mais, do outro absoluto. O rosto do
outro é um aná-logos; ele é a `palavra´ primeira e suprema, é o dizer em pessoa, é o
gesto significante essencial, é o conteúdo de toda significação possível em ato.
(DUSSEL, E., 1996, p.197).
O pressuposto do método é, então, o que o encontro alterativo é um encontro
analógico, pelo caminho do diálogo, da criação de uma língua, de fala comum. Nesse
caminho não se pode cair na tentação de fazer da linguagem uma metafísica (fora dos
corpos), nem cair na ilusão de afirmar como `natureza comum´ a existência das
semelhanças. As formas da linguagem devem ser entendidas como possibilidades de
revelação daqueles que vivem uma vida em comum e as semelhanças devem ser vistas
como possibilidades analógicas, não como mesmidades ontológicas.
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2.2) A Totalidade. Da proximidade imediata outro-outro, o ser humano instaura
historicamente, a totalidade de um mundo, um projeto coletivo de ser. Estabelece múltiplas
relações com muitos seres humanos e com a natureza, organiza-se econômico, político e
socialmente. Cria um sistema de vida, de produzir, de agir, de viver. Isto forma uma
totalidade muito abrangente, que nem mesmo pode ser vista imediatamente, mas só
mediatamente, pelo conhecimento. Nas sociedades capitalistas, essa totalidade de mundo
forma-se em torno do capital, existe por ele e para ele. Deve-se usar a racionalidade
dialética para explicar a realidade considerada desse modo. Marx é quem melhor ensina o
uso do procedimento dialético, através de sua obra. Aí, a dialética mostra-se como um
trabalho de pensamento essencialmente histórico, visto que põe-se a pensar a realidade em
seus movimentos de mudança e transformação, como devir. O procedimento reflexivo
central consiste em apreender as totalidades históricas na forma de unidades e divisões pôr
oposições de contrariedade e de contradição. A análise dialética compreende, então, que é a
luta entre os interesses humanos é que movem a história. Pôr isso, a dialética é materialista
e histórica, porque apreende o modo como os seres humanos constróem suas vidas, criam
seus mundos.
2.3 - MEDIAÇÃO. A mediação é a qualidade de um ente servir como elemento
para a realização de um determinado projeto. Ora, sendo a proximidade a imediatez do
face-a-face com outro, e a totalidade o conjunto das relações culturais vividas no mundo em
função de um determinado projeto de vida, as mediações tanto podem possibilitar a
proximidade do face-a-face como a sua ruptura. As relações de trabalho constituem os atos
mediadores das relações humanas. Trabalho não deve ser pensado no sentido capitalista de
produtividade, mas de criatividade (poiesis), criação de “coisas-sentido”. O Ser humano
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descobre, retira da natureza aquilo que lhe interessa e o que lhe é necessário. Dá sentido e
importância a muitas coisas que julga necessário para viver. Por isso produz um mundo.
Entretanto, temos que distinguir a noção de valor da noção de sentido. O “valor”
refere-se à dimensão estimativa, operacional das relações humanas enquanto prático-
utilitárias. Insere-se na dimensão pragmática da vida humana e aí deve ser compreendido. O
“sentido” deve ser referido ao trabalho e às condições ético-antropológicas que possibilitam
sua efetivação. Há uma grande diferença entre produzir uma coisa para atender a
determinado uso e produzí-la para ser vendida no mercado capitalista.
2.4) A Exterioridade. À totalidade de mundo vigente contrapõe-se a exterioridade
daquilo que ela nega e a nega, que aparece como sua negação, seu lado ruim. Entretanto,
essa exterioridade deve ser vista como positividade ético-antropológica exterior e dis-tinta
(de cor diferente ). Na exterioridade é que o ser alterativo do ser humano guarda sua dis-
tinção, sua recusa à mesmidade do sistema vigente. É nela que a novidade está sendo
gestada e a solidariedade originária está sendo vivida. Para apreender esse aspecto da vida
humana é preciso um olhar analético ( ver além do dado, do feito, do fato, da totalidade ).
A razão sistêmica não dá conta de explicar a realidade radical do outro em sua revelação ao
mesmo tempo como semelhante e dis-tinto. Enquanto exterioridade livre da ontologia
totalizadora e autoritária do sistema vigente, o outro é a voz que denuncia a opressão
sofrida e reivindica a justiça. Os excluídos do sistema capitalista vigente o denunciam como
desumano, etocida e genocida. O discurso só assume criticidade radical ao demonstrar a
contraposição da exterioridade à totalidade vigente. Ao denunciar a ruptura da proximidade
humana originária. Há diversos níveis de exterioridade que cumpre investigar: a erótica, a
pedagógica, a econômica, a política, etc..
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2.5) A Alienação. A alienação consiste no fato se tomar o “outro enquanto
instrumento”( objeto prático, para...), isto é, enquanto um ser que serve de mediação para a
realização das vontades de alguém, aniquilando a semelhança e a dis-tinção. A alienação é
resultando de uma práxis de dominação, que é a afirmação de um projeto totalizador
opressor e autoritário. Nesse âmbito o projeto do sistema imperante impõe univocamente a
todos os seres seu horizonte de abrangência, utilizando e instrumentalizando a tudo e a
todos em função de uma cultura individualista, por exemplo. Para assegurar a realização
desse projeto seus interessados promovem diversos tipos de alienação, a do trabalho, da
cultura, a política, a religiosa, etc. Deve-se observar que a alienação apresenta-se não só na
forma do discurso, mas, principalmente, ao nível das ações práticas, das condutas.
2.6) A Libertação. A libertação consiste na desalienação das pessoas, povos,
culturas e instauração de uma nova ordem fundada no respeito à alteridade e exterioridade
ético-antropológicas.
No processo de desalienação é preciso cuidar para não compreender o outro apenas
como dimensão objetiva do mundo, um meio para realizar determinado “projeto
libertador”. O outro deve ser sempre o mistério insondável da fonte da criatividade e do
novo. É preciso cuidar para não construir uma totalidade na qual o outro aparece como
objeto da ação de outros. É preciso um crítica constante a toda ontologia de sistemas
totalizantes. O ethos, o caráter da libertação exige não repetir o mesmo, a ordem antiga,
mas criar o novo a serviço do outro. Esse ethos, segundo Dussel, se estrutura a partir da
comiseração ( acolhimento alterativo, amor de justiça, acolhimento do outro enquanto outro
), que nos leva a compartilhar de sua miséria, da miséria de um povo, dos sofrimentos dos
excluídos, dos explorados. Daí somos impulsionados à busca de relações fraternas e
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solidárias que nos motiva à subversão do sistema para reconstruí-lo numa justiça real que
afirma a dignidade alterativa humana. Por isso, não é a pura conquista do poder do Estado
que deve guiar a revolução, mas a bondade e a solicitude.
2.7 - Síntese
Assim, o momento analético que tem por princípio a distinção é o ponto de partida
para um discurso metódico ou ponto de apoio a novos desdobramentos; abre ao sujeito o
âmbito meta-físico referindo-se semanticamente ao outro homem, grupo ou povo para além
da totalidade, tendo por categoria própria esta exterioridade do outro que, ao ser afirmada,
supera a totalidade, sustentando a inovação do sistema. Este momento é somatória da
sequência de quatro outros: 1) A totalidade é questionada pela interpelação do outro; 2) a
escuta da palavra como consequência ética; 3) aceitação respeitosa da palavra por
impossibilidade de interpretá-la adequadamente; 4) o lancar-se do interpelado à práxis do
oprimido. Portanto, o momento analético é crítico e superador do método dialético triádico
( tese-antítese-síntese ), assumindo-o e completando-o; é afirmação da exterioridade, não
somente a negação da negação do sistema desde a afirmação da totalidade.
Sob outra perspectiva, o método analético é um método cujo ponto de partida é uma
opção ética e uma práxis histórica concreta. Aqui deve-se aliar o rigor teórico especulativo
e a ação ético-política prática em favor da libertação humana. A indiferença compactua com
o sistema vigente. A posição a-ética só é possível idealmente. Daí que, o intelectual, antes
de ser uma pessoa inteligente, deve ser eticamente justo, bom, discípulo. Não é pela lógica e
a eficácia que deve-se medir o conhecimento, mas pelo seu caráter humanizador, justo.
A partir dessa consideração, pode-se também fazer a seguinte crítica às filosofias e
às ciências, qual seja, a de que os discursos das filosofias ontológicas e das ciências
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positivas partem, em geral, de algum critério de verdade, mas que, seja qual for ele, terá a
pretensão de universalidade. E isto consiste em afirmar que alguma verdade conhecida é
toda a verdade, ou uma verdade absoluta. Essa pretensão é, sob a ótica a Filosofia da
Libertação, não só uma contradição lógica, mas antes de tudo, uma inegável contradição
ética, pois, alguma verdade só pode ser dita como toda a verdade se o discurso de quem a
profere pretende que o mesmo seja proferido tautologicamente pôr todos os seres humanos.
Entretanto, a pretensão ontológica totalizadora desse discurso torna-se inconsistente e
fluidifica-se perante o caráter da distinção alterativa do face-a-face humano originário, no
qual dá-se toda possibilidade de linguagem. Esse discurso totalizador pode, então, ser
criticado como encobrimento ideológico de negação do outro, como fetiche que oculta e
subssume o outro na ilusão de uma aparente homogeneidade.
Dussel se propõe a compreender o processo de construção da linguagem e do
conhecimento, não a partir dos procedimentos das filosofias e das ciências
homogenizadoras do ser humano e das culturas, mas, a partir da implicação radical de
conhecimento-linguagem-alteridade. Pôr essa implicação, conhecimento e linguagem
dão-se como escuta e acolhimento, numa relação amorosa e pedagógica. Pela palavra o
outro abre-se ao para-o-outro (como diria Heidegger), revela-se como origem da
possibilidade da palavra e do discurso. A palavra daquele que ouve torna-se assim,
recolhimento alterativo. No diálogo instaurado procura-se dizer a verdade, mas, no sentido
de uma verdade analógica, porque funda-se na analogia do ser distinto radical que os
envolve. Escutar e interpretar a voz do outro no sentido do seu acolhimento e recolhimento
para que, confiando na palavra vivida e compartilhada possamos viver nossas verdades e
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nossas culturas. Falar nossas linguagens constitui a máxima expressão da racionalidade, se
é que algo ainda pode ser significado com esse termo.
A filosofia, o filósofo, devolve ao outro sua própria revelação como renovada e re-
criada, crítica, interpelante. O pensar filosófico não aquieta a história ex-pressando-
a pensativamente para que possa ser arquivada nos museus. O pensar filosófico,
como pedagogia analética da libertação latinoamericana, é um grito, um clamor, é a
exortação do mestre que faz reincidir sobre o discípulo a objeção que antes havia
recebido; agora, como revelação reduplicadamente pro-vocativa, criadora.
(DUSSEL, E. 1986, p.211).
3 – Filosofia da História da América Latina
Uma filosofia da história da América Latina é uma decorrência necessária e uma
exigência prático-pedagógica da Filosofia da Libertação. Nesse tema são abordadas duas
questões cruciais para nossas gentes: a que investiga nossas origens étnicas – nossa arké,
segundo o modelo mítico grego – e a que investiga as distintas formações nacionais
decorrentes da processo de colonização européia. Que trajetórias seguiram os povos
latinoamericanos em suas formações? Que papel desempenharam as distintas etnias
envolvidas nesse processo? Que fatores atuam como características das variadas distinções
nacionais e que fatores atuam como unificadores de tradições comuns? Que jeitos de viver
dão a esse continente uma identidade comum – a latinoamericana? Poderá a filosofia pensar
o ser da América Latina a partir de sua história? Pôr onde deverá principiar o discurso dessa
história?
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Um pressuposto do qual devemos partir impõe-se pela constatação de que os
estudantes das nossas escolas encontram à sua disposição inúmeros manuais de ensino de
história que lhes apresentam uma exposição estereotipada das distintas formações dos
povos da América Latina. Essas obras de história apenas repetem, adaptam, ou
simplesmente copiam as filosofias e os métodos científicas e seus padrões conceituais,
elaborados no contexto das teorizações da historiografia européia e, como tal, norteadores
do modos de vida e dos projetos dos povos europeus. Em sua maioria, esses manuais tratam
da formação da América Latina como obra preponderante da ação dos europeus, isto é,
apresentam suas leis, sua iniciativas, suas guerras, seus heróis, seus empreendimentos, suas
formas religiosas e jurídicas, suas artes, entre outras, como se constituíssem a `alma´ do
`povoamento´ da América Latina.
Pode-se observar que em algumas obras de história da América Latina que seu
discurso é formulado a partir de uma visão evolutivo-funcionalista das sociedade humanas e
que isto torna, consequentemente, quase inevitável a formulação de classificações,
comparações e mesmo o estabelecimento de posições éticas eurocêntricas.
Observe-se a classificação das culturas dos povos americanos praticada pôr muitos
historiadores:
1 – Culturas Primitivas – no Brasil: Gês ou Tapuías, Botocudos, Xavantes,
Timbiras; no Uruguai: Charruas; na América do Norte: Esquimós.
2 – Média Cultura – na América do Norte: Pueblos; Antilhas e Norte da América do
Sul: Caribes e Aruaques; Colômbia e América Central: Chibchas; no Brasil: Tupi Guarani.
3 – Altas Culturas – nos Andes: Incas; México: Astecas; Guatemala e Península
mexicana de Iucatan: Máias.
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A questão que se impõe perante essa classificação é, sem dúvida, a de saber se há
critérios classificatórios de culturas diferentes e se é possível, do ponto de vista
antropológico, fundamentar tais critérios sem se colocar de um certo ponto de vista
etnocêntrico. É evidente que parece muito difícil a proposta de uma classificação qualquer
isenta de valoração e inocente pôr princípio. No mínimo, a leitura da vida cultural de povos
estranhos feita nessa ótica, é feita a partir dos elementos culturais relevantes da cultura do
historiador. Daí, as aberrações da classificação historiográfica em conceituar os povos
diferentes como `sem escrita´, `sem Estado´, `sem Religião´, `guerreiras´, `primitivas´,
`poligâmicas´, `nuas´, entre outras, insinuando que essas ausências são indícios de
inferioridade evolutiva; ou que essas formas de vida são anomalias sociais.
Mas há um outro tipo de narrativa da historiografia latinoamericana que nos parece
também produzir equívocos – é a que se faz intitulando-se como dialética. Apesar de
assumirem algumas categorias da filosofia marxista, terminam repetindo as figuras da
história objetiva do espírito tal como compreendia Hegel. Terminam pôr expor totalidades
histórico-temporais sem expor suas determinações práticas, suas diferenças e suas
contradições. E então, as figuras históricas aparecerão sem fundos práticos, sociais, sem
vida. A ciência da história nada mais será que uma narrativa ideológica que encobre as
relações coloniais sem relações de produção, sem trabalhadores, sem cansaços, sem
escravidão e sem lutas contra a escravidão. Aparece uma história como tentativa de
construir uma figura histórica que tem seu significado no próprio arranjo de certos eventos
já previamente escolhidos como históricos. Formula, então, um discurso que narra eventos
ocorridos fora da vida social, fora do dia a dia dos trabalhos do povo. É isto que denomino
uma história sem fundo. Tal como uma pintura sem fundo. Dessa forma, algumas dessas
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obras que se identificam como inspiradas no marxismo não escapam das garras do modelo
teórico positivista evolutivo, ficando de dialético apenas a roupagem linguística, enquanto o
conteúdo permanece eurocêntrico.
Pode-se observar também, particularmente, que vários autores de livros de história
do Brasil constróem seus discursos centrados no sistema cultural da vida urbana,
orientados pela perspectiva dos grandes centros urbanos. Fazem afunilar toda a diversidade
cultural em função de categorias compreensivas da vida urbana. Passam uma ilusão de
homogeneidade, a partir de uma preocupação explícita em narrar os processos de
hegemonia de figuras históricas centrais. Daí, perde-se a diversidade característica das
culturas humanas. A história perde seu fundo.
Com o termo fundo histórico quero apontar para a trama cultural vivida pelos povos
em suas múltiplas configurações e formações de modos vida. Pretende apontar para o
conjunto de relações assimétricas, de atividades e funções exercidas pelos membros de uma
coletividade. Um povo se configura como um povo particular na medida em que tem um
ethos próprio, um jeito de ser e de viver seu dia a dia. O fundo histórico é a dimensão das
atividades que uma gente realiza todo dia para permanecer vivo, para preservar seus
valores, para educar as novas gerações.
Narrar a história a partir de seu fundo é narrar a partir do ethos. Nessa perspectiva, a
história da América Latina ganha vitalidade e movimentação; deixa de ser a figura de povos
bonzinhos que recebem, com missa e presentes inocentes, aos estrangeiros, cedendo a eles
suas terras e seus corpos; deixa também de ser a história etnocêntrica da ação européia
`civilizadora´, doadora do valor e do sentido aos `lugares vazios´ e aos povos `sem cultura´,
tratados como se nada fossem; deixa de ser a história dos dominados, pobres, fracos e
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impotentes perante os dominadores ricos e poderosos. Um bom exemplo de narrativa
histórica sem fundo, esquecida do ethos das gentes é a que nos conta sobre o regime de
trabalho instaurado nas colônias espanholas e portuguesas: os sistemas de trabalho da
`mita´, da `encomienda´, da escravidão de índios e negros nas fazendas e nas cidades –
mostram a vida como se fosse feita de decreto régios e de obediência aos poderosos. Mas
dentro disso tudo, no fundo das instituições e dos grandes acontecimentos há de não se
esquecer dos valores de fazeres de uma gente, das capacidades que carregam de geração em
geração, das aprendizagens que realizam, das possibilidades que inventam.
Existem variados componentes dos sistemas culturais vividos pelos povos latino-
americanos, cuja significação só pode ser bem compreendida se formos capazes de lançar
um olhar pôr sobre os próprios sistemas; se formos capazes de expor não só as figuras
temporalmente dominantes, mas também expor seu fundo, que as transcende e lhes é
exterior, distinto.
Um exemplo pode ilustrar o que estou querendo dizer: a explicação de como se
formou a língua brasileira. A pesquisa diacrônica explica através de modificações na língua
portuguesa, acréscimos de termos emprestados de outras línguas e incorporação de
idiossincrasias. A pesquisa sincrônica explica a partir de contextos históricos específicos,
quando uns termos caem em desuso e outros modificam-se pôr força de hábitos, usos, ou da
ação institucional. Ora, dependendo do alcance dessas pesquisas elas mal saem do óbvio, do
que se pretende descrever. Se não saem do âmbito específico da linguística através de um
mergulho em outras dimensões da vida cultural prática – das práticas sociais, eróticas,
pedagógicas, religiosas, econômicas, artísticas, etc. – deixam sem fundamentação suficiente
o objeto da pesquisa, ficando apenas nas aparências do constatável. É insuficiente expor
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apenas a dinâmica das mudanças ocorridas na formação de uma língua. As lacunas não
podem ser preenchidas com casuismos. Para quem deseja fazer ciência de tal assunto, é
necessário expor os fundamentos condicionantes dessa dinâmica e das mudanças.
Outro exemplo de superficialidade consiste em pretender uma fundamentação
cultural para a afirmação de que o povo brasileiro é formado pôr uma `mistura de raças´; é
resultado de um “cadinho cultural”. Isso é vago, no mínimo uma afirmação improvável. Os
documentos da “colonização” revelam bem outra coisa. A partir deles, o que é preciso
admitir, em princípio, é que o europeu exerceu papel opressor em terras da América Latina.
Num primeiro momento, todos; depois, alguns. Os portugueses e os espanhóis ricos e
poderosos violentaram os índios e as índias, os negros e as negras, roubaram suas riquezas,
negaram seus modos de ser e os usaram como mercadorias e como objetos de prazer
irresponsável. É preciso compreender que as relações de aproximação e comunhão de
alguns europeus com negros e índios se deram não como “mistura” de coisas diferentes.
Juntos ficaram o negro e o índio oprimidos e os portugueses pobres, também oprimidos.
Comungaram uma cultura de oprimidos, pode-se supor. Ora, se as diferenças biológicas não
constituem critérios relevantes para a diferenciação antropológica e se se demonstra a
existência de uma unidade cultural entre eles, então, não há motivos para falarmos de
“mistura de raças”. O que ocorreu pode ser melhor compreendido como uma formação
social própria àquele dado momento histórico. Aliás, talvez inúmeras formações sociais
específicas. Assim, podem ser essas formações constituídas no interior do processo
colonial, envolvendo portugueses pobres, negros e índios, que produziram uma cultura
comum, cujos elementos explicam muitos elementos de nossa cultura atual.
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Se admitirmos a hipótese da reunião ou assimilação de diferentes raças com
elementos culturais diferentes, teremos de explicar a necessidade e possibilidade dessa
reunião. Uma explicação que pode ser dada consiste em atribuí-la a circunstâncias fortuitas,
ocasionais; outra, consiste em atribuí-la a sentimentos especiais da natureza humana, o que,
na verdade, não nos fornece uma explicação, mas apenas uma retórica vazia. Pôr esse
caminho a dificuldade só aumenta. Deve-se abandoná-lo. O que é preciso fazer e que é o
mais difícil, é pesquisar a existência das formações sociais em suas variadas configurações
contextuais em cada momento da nossa história, de tal modo que fique demonstrada a
existência de uma linha de continuidade cultural capaz de explicar nossa cultura de hoje em
dia.
Considero como uma interpretação insuficiente supor um “cruzamento de raças”
como mistura de coisas diferentes, como se fosse uma química. Na verdade, houve
segregação cultural, etnocentrismo por parte dos europeus. Aquilo que, equivocadamente,
alguns denominam cultura resultante da “mistura de raças” não provém de nenhuma
“mistura” que se queira tenha ocorrido, mas certamente é resultado de formações sociais
específicas. No plano social, não há nível de aproximação entre diferentes, mas somente
entre iguais. Para além de quaisquer diferenças biológicas que se possa suspeitar
predominou, de modo determinante, a unidade humana, a comunhão de valores, a
solidariedade necessária aos oprimidos. Pôr isso, a cultura brasileira não é resultado da
“mistura” de coisas diferentes, mas a comunhão de coisas iguais pôr um povo, pôr classes
de gente que, na opressão, forjaram um modo de ser e de viver a nós legado historicamente.
Há que se recontar a história das culturas latinoamericanas, particularmente, das
culturas brasileiras. Pelo caminho proposto, repito, das formações sociais, é muito mais
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difícil. Através da reflexão – do olhar sobre nós mesmos – atingiremos a consciência do
nosso ser cultural. Precisamos resgatar as culturas indígenas, africanas e populares que
permeiam nossos modos de ser. Devemos estudá-las pôr necessidade de esclarecimento da
nossa própria cultura, para demonstrarmos a proeminência nuclear desempenhada pôr essas
culturas na formação do nossa gente.
A metodologia de investigação da Filosofia da Libertação poderá revigorar os
estudos de história latinoamericana na direção em que estamos apontado, superando a
perspectiva historiográfica eurocêntrica. O método ana-dialético de Enrique Dussel poderá
expor a totalidade histórica a partir das múltiplas configurações culturais vividas
dinamicamente pelas etnias e grupos sociais, cujo ethos jamais está absolutamente incluído
no projeto de dominação das classes colonizadoras.
Nos oito ensaios sobre cultura latinoamericana, publicado na obra Oito Ensaios
sobre Cultura, em 1492: O Encobrimento do Outro e, na Introdução da Ética da
Libertação, Dussel aponta para a consideração da possibilidade da existência de uma
antiga rota de navegação pelo Oceano Pacífico ligando as costas do Chile e do Peru aos
povos asiáticos. Essa possibilidade nos abre uma nova compreensão da pré-história das
culturas ameríndias e oferece outra explicação sobre o povoamento do nosso continente.
Segundo Dussel, os estudos de história de da América Latina deveriam compor-se temporal
e culturalmente a partir das seguintes épocas: primeira, as culturas ameríndias; Segunda, a
cultura da cristandade colonial; terceira, a cultura dependente do capital industrial – e,
financeiro, atualmente - e, Quarta, a cultura popular pós-capitalista. Considerando a
relatividade da dimensão epocal dessa divisão, o mais importante é que essa proposta visa
compreender a história da América Latina a partir das práticas culturais comuns dos povos
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que a formam, em contraposição ao domínio da cultura européia e, ou norte americana,
fundadas na expansão da produção e dos mercados capitalistas.
A proposta de estudos historiográficos de Dussel intenta desvendar o ser sócio-
cultural das gentes da América Latina a partir da investigação de sua ancestralidade cultural
e, ou mítico-religiosa e produtiva, pôr um lado; e, pôr outro lado, intenta afirmar a
existência de uma identidade própria e singular dos povos da América Latina. Afirma a
existência do ethos de cada povo, distinto do ethos dos europeus; não igual nem inferior.
Para pensar, então, uma história da América Latina, Dussel propõe uma ruptura com o
modelo de exposição historiográfica da Europa.
Um pressuposto importante para pensar a história da América Latina a partir de sua
origem, consiste em negar a teoria da história evolucionista, em função da Europa, nascente
nos povos do Mediterrâneo e culminante nos Estados Modernos. Denunciar o caráter
ideológico e fetichista da divisão da história universal em “antiga, medieval, moderna e
contemporânea”, que repete um modelo eurocêntrico. Esse modelo parte do Paleolítico e
Neolítico da eurásia, ajunta as culturas desde a China, Índia, Pérsia, Grécia, Roma e Idade
Média, para só, graças à “audácia” de Colombo, “descobrir” a Ameríndia. Para Dussel, essa
é uma abordagem falsa e ideológica. Nega a história cultural originária dos povos
ameríndios. Não só porque nega é falsa, mas porque é incoerente com as próprias
investigações étno-antropológicas e históricas. Ao contrário dessa visão universalista
eurocêntrica, pode-se compreender melhor a origem criadora, o princípio gerador das
culturas ameríndias, como apontam investigações atuais, a partir de suas ligações com os
povos do Pacífico [ da Polinésia e Micronésia ], da Ásia Oriental e de todo o continente
euroasiático e africano.
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Segundo Dussel, a perspectiva arqueológica fundadora do começo da história
européia deve ser revista em seu significado cultural. A compreensão das formações
sociais avançadas entre os povos do Mediterrâneo Oriental e do mundoárabe deve conduzir
o historiador a estabelecer um ponto de partida a partir do Oriente, dos povos do oceano
Pacífico, para a seguir, compreendendo as culturas desses povos, acompanhar seu
movimento de expansão rumo ao Ocidente, rastreandoos sinais dessas culturas, ora
inovadores no novo contexto, ora fundadores de novo modo de vida. Nessa perspectiva, a
Europa perde sua centralidade e passa à posição de periferia. O início da emancipação
econômica e cultural da Europa só ocorre a partir de 1492, com as viagens de Colombo,
dando inícios à colonização espanhola, seguida pela colonização portuguesa do Brasil,
fazendo surgir a América Latina como terra de exploração de riquezas comerciais. A partir
do século XVI, graças ao uso à de novas tecnologias de navegação [como resultado da da
combinação de vários elementos adquiridos em suas viagens comerciais através do Oriente]
e da organização de um poderio bélico baseado no uso da pólvora é que a Europa adquiriu
uma posição de centralidade mundial. Com isso, ao constituir-se como centro colonizador e
desenvolver suas escolas de filosofia e de ciências, seus historiadores construíram uma
narrativa evolutiva, cujo ápice encerra-se nessa civilização. E é assim que, na perspectiva
dessa historiografia, a América Latina aparece como um mundo “bárbaro” e
subdesenvolvido a ser “civilizado”. Caberá aos historiadores latinoamericanos refutar essa
ideologia e denunciá-la como falsa ciência. Ou, ao menos, como ciência em favor da
manutenção da exploração colonialista sobre a América Latina.
Uma outra proposta importante para uma historiografia a partir da América Latina,
segundo a perspectiva de Dussel, é a afirmação de uma proto-história cultural dos povos
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latinoamericanos, constituída pelas culturas indoeuropéias, as culturas semitas [incluindo a
África] e a cultura da cristandade colonial. Esse estudo deverá nos revelar as origens de
múltiplos elementos da vida cultural latinoamericana: nas línguas, nas artes, nas religiões,
nas economias, nos sistemas jurídicos, nas organizações familiares, nos hábitos e costumes,
entre outros. Só assim poderemos desvendar e reconhecer a ancestralidade cultural dos
povos latinoamericanos e tornar possível a construção de nossa história como reveladora da
nossa identidade cultural, daquilo que tece a cor da nossa tez cultural.
As reflexões até aqui elaboradas são trilhas de uma caminhar que se está fazendo. O
seu sentido é o de reconhecer aquilo que já é conhecido e vivido: a dominação e exploração
colonial do nosso continente e de criticar os pressupostos históricos dos sucessivos
movimentos de recolonização a que somos submetidos ao longo de séculos a fio. No
estudo da nossa história precisamos compreender os elementos que nos vem das culturas
estrangeiras e, compreendendo-os desde sua origem, aprender a desprezar o que é
desprezível e nos faz mal. O importante para nós não é apenas julgar o olhar do estrangeiro
sobre nós, mas, sobretudo, o nosso olhar sobre nós mesmos, para que não nos vejamos com
olhar de estrangeiros.
Nota Bibliográfica
DUSSEL, Enrique. Filosofia da Libertação. SP, Louola, 1977.
------. Para uma Ética da Libertação Latinoamericana. 5 vol., SP, Louola, 1980.
------. Ética Comunitária. Petrópolis, Vozes, 1986.
------. Método Para Uma Filosofia da Libertação Latinoamericana. SP, Loyola, 1986.
------. Caminhos da Libertação Latinoamericana. 4 vol., SP, Paulinas, 1985.
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------. Oito Ensaios Sobre Cultura Latinoamericana e Liberatação. SP, Paulinas, 1977.
------. 1492: o Encobrimento do Outro. Petrópolis, Vozes, 1992.
------. Ética da Libertação – na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis, Vozes,
2000.