Download - Florestan Fernandes O Desafio Educacional
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
1/23
Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP)(Fundao Joaquim Nabuco. Biblioteca)
Oliveira, Marcos Marques de. Florestan Fernandes / Marcos Marques de Oliveira. Recife:Fundao Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. 164 p.: il. (Coleo Educadores) Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7019-525-81. Fernandes, Florestan, 1920-1995. 2. Educao Brasil Histria. I. Ttulo.
CDU 37(81)
ISBN 978-85-7019-501-2 2010 Coleo Educadores
MEC | Fundao Joaquim Nabuco/Editora Massangana
Esta publicao tem a cooperao da UNESCO no mbitodo Acordo de Cooperao Tcnica MEC/UNESCO, o qual tem o objetivo a
contribuio para a formulao e implementao de polticas integradas de melhoriada equidade e qualidade da educao em todos os nveis de ensino formal e no
formal. Os autores so responsveis pela escolha e apresentao dos fatos contidosneste livro, bem como pelas opinies nele expressas, que no so necessariamente as
da UNESCO, nem comprometem a Organizao.As indicaes de nomes e a apresentao do material ao longo desta publicao
no implicam a manifestao de qualquer opinio por parte da UNESCO
a respeito da condio jurdica de qualquer pas, territrio, cidade, regioou de suas autoridades, tampouco da delimitao de suas fronteiras ou limites.
A reproduo deste volume, em qualquer meio, sem autorizao prvia,estar sujeita s penalidades da Lei n 9.610 de 19/02/98.
Editora MassanganaAvenida 17 de Agosto, 2187 | Casa Forte | Recife | PE | CEP 52061-540
www.fundaj .gov.br
Coleo EducadoresEdio-geralSidney Rocha
Coordenao editorialSelma Corra
Assessoria editor ialAnton io Laurentino
Patrcia Lima
RevisoSygma Comunicao
IlustraesMiguel Falco
Foi feito depsito legalImpresso no Brasil
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:074
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
2/23
119
A formao poltica e o trabalho do professor75?
O tema que me foi proposto extremamente complicado e
exige muita meditao. No cheguei a preparar um plano expositivo.
Esperava encontrar, na relao com o auditrio, uma forma de
saturar o debate de trs preocupaes centrais, a partir das quais
procurarei desenvolver a minha parte, vamos dizer, autoritria desse
mesmo debate. Autoritria, porque farei a exposio e vocs no
podero escolher as minhas ideias.
Acho que um primeiro ponto essencial o que diz respeito
tradio cultural brasileira e ao que ela tem representado na limi-
tao do horizonte cultural do professor, menos na teoria que na
prtica. Se ns comparssemos o professor ao proletrio, que preo-
cupou as reflexes de Marx naqueles clebres manuscritos de 1944,
diramos que o professor foi objetificado e ainda o na sociedade
brasileira. Essa afirmao curiosa, porque se ele no trabalha com
as mos, um intelectual. preciso tentar compreender essa
brutalizao cultural, que se faz desde o passado mais longnquo, e
que chegou e ainda chega a ser tenebrosa com relao a professores,
por exemplo, que se dedicam ao ensino de crianas as clebresprofessoras primrias. Sou de uma poca em que se lia em peque-
75Transcrito de: Fernandes, Florestan. O desafio educacional. So Paulo: Cortez; Autores
Associados, 1989d. (Educao contempornea), pp. 157-175. Publicado originalmente em:
CATANI, Denice; MIRANDA, Herclia; MENEZES, Luiz Carlos; FISCHMANN, Roseli (Orgs.).
Universidade, escola e formao de professores. So Paulo: Brasiliense, 1986, p. 13-37.
TEXTOS SELECIONADOS
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08119
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
3/23
120
nos livros de memrias de uma professora, por exemplo, a hist-
ria de uma professora que trabalhou numa fazenda. preciso
pensar nisto: desde esse professor at aqueles outros, como Mario
Schenberg, que so considerados como grandes cabeas tericas.
Todos somos professores. Todos somos, fomos e seremos brutali-
zados. Esse um tpico importante. O segundo tpico diz respeito
prpria correlao entre a atividade do professor, numa socieda-
de subdesenvolvida, e o carter poltico do que ele faz e do que
deixa de fazer. E dentre as sociedades subdesenvolvidas, o Brasil seapresenta com caractersticas peculiares, por ser uma sociedade com
desenvolvimento desigual muito forte e, portanto, por apresentar
contrastes e contradies muito violentos. O ltimo ponto seria uma
tentativa de propor a minha posio, que no passado eu no tornava
explcita, respeitando um certo ecletismo que fazia parte da orien-
tao bsica da universidade e que, hoje, desde que fui lecionar na
Universidade de Toronto, tenho procurado tornar evidente. O que
um marxista pensa, quando se coloca diante de um assunto como
este? A ento se colocam os trs pontos centrais da exposio. claro que eles so amplos. No estou aqui para dar receitas, nem
propor solues. Venho participar de reflexes, com vocs, e minha
funo a de provocar um debate.
Quanto ao primeiro ponto, sabido que a orientao mais ou
menos fechada, que prevaleceu no perodo colonial em relao
cultura e educao, ela no foi desagregada com a Independn-
cia nem com a proclamao da Repblica. Mesmo as reformas
pombalinas de instruo pblica tiveram repercusses modestas
no Brasil. No se chegou a transferir para o Brasil o conjunto de
transformaes que ocorreram na sociedade portuguesa, e istoporque Portugal entravava o processo de crescimento cultural da
colnia, e a aristocracia senhorial, posteriormente, tratou o Brasil
como a antiga Coroa: fechou os horizontes. De modo que a gran-
de tradio cultural brasileira de um elitismo cultural fechado,
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08120
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
4/23
121
cerrado, numa sociedade na qual se cultivou, sempre, o conheci-
mento, o livro e at a filosofia da ilustrao.
algo muito curioso, porque a desconfiana em relao ao
intelectual seguia paralela a uma atitude intelectual mais ou menos
aberta, dependendo naturalmente de quem se fala. Quando vocs
ouvem falar de um homem como o velho Conselheiro Nabuco,
vocs tm um ponto de referncia para avaliar o que foi essa elite
num momento de apogeu. Um homem que estava preocupado
com o marco das leis, com a transformao da sociedade brasileiraem termos de uma organizao institucional que garantisse um m-
nimo de liberdade e reduzisse o despotismo, sempre inerente es-
cravido, que se manifestava em todas as direes na relao do
senhor com o escravo, nas relaes do senhor com os homens po-
bres livres, que eram equivalentes humanos dos escravos (sem as
garantias sociais que estes tinham por ser propriedade), nas relaes
do senhor com sua mulher, com todas as mulheres, com seus filhos,
com todos os jovens. Era uma sociedade altamente hierarquizada.
Mas, ao mesmo tempo, era tambm uma sociedade que precisavado intelectual. E o caminho que se descobriu para utilizar o intelec-
tual foi o mesmo que orientou o seu uso pela Igreja Catlica.
As instituies-chave foram taxativamente circunscritas a um
permetro de defesa exasperada da ordem existente. Mesmo nas
escolas superiores isoladas, que foram o que ns conhecemos de
mais avanado, graas vinda da Corte para o Brasil e ao desen-
volvimento posterior do Segundo Imprio, mesmo a, o interesse
que havia pela atividade intelectual propriamente dita estava vincu-
lado atividade administrativa e poltica indispensvel desses pro-
fissionais liberais. O prprio professor interessava medida queera um agente puro e simples de transmisso cultural. Sua relao
com o estudante no era sequer uma relao criadora. Era a de
preservar os nveis alcanados de realizao da cultura por imi-
tao. Nesse contexto, o intelectual era, por assim dizer, domesti-
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08121
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
5/23
122
cado, quer fosse de origem nobre ou de origem plebeia, automa-
ticamente se qualificava como um componente da elite e, quando
isso no ocorria, como sucedeu com os professores de primeiras
letras, ele era um elemento de mediao, na cadeia interminvel de
dominao poltica e cultural.
E a tendncia perdura at hoje. Quando se fundou a Faculdade
de Filosofia, os prprios fundadores tinham a ideia de uma renova-
o das elites. A ideia de que no estavam plantando, no Brasil, a
sementeira de uma revoluo cultural, mas sim, tentando renovar,fortalecer seus quadros humanos, para ganhar no campo da cultura
a batalha que haviam perdido no campo da poltica. Portanto, uma
tradio cultural que empobrece a viso do que seria a cultura cvica.
muito importante a amplitude da cultura cvica de uma nao.
Uma nao da periferia pode importar todas as tcnicas sociais,
todas as instituies-chave, todo o sistema de valores de uma dada
civilizao, mas nem por isso pode importar os dinamismos pelos
quais essas tcnicas, essas instituies e esses valores se reproduzem,
crescem e se transformam. Esse lapso, que nos perseguiu de formasecular, tornou a inveno uma ocorrncia efetiva, mas espordica,
possvel apenas quando surgiam pessoas de tal porte criador que a
represso cultural no era capaz de inibir.
Se se aceita esta perspectiva entende-se por que o professor
nunca foi posto num contexto de relao democrtica com a so-
ciedade. Ele era considerado como instrumento de dominao e,
muitas vezes, ficava nas cadeias mais inferiores do processo, como
aconteceu com o padre em relao ao escravo. O professor era
aquele que ia saturar as pginas em branco, que caam sob suas
mos, e ia marc-las com o ferrete daquela sociedade. Eu me lem-bro de livros nos quais estudei e que foram elaborados para crian-
as, no fim do sculo XIX e no incio do sculo XX. Por acaso
caram em minhas mos e por a eu aprendi muita coisa. Eram de
bom nvel, at em termos de nvel intelectual, superior aos livros
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08122
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
6/23
123
que as crianas usam hoje. Mas marcavam, de uma maneira quase
que hiertica, o carter mecnico, autoritrio da educao. A crian-
a ia para a escola, no para se desenvolver como uma pessoa,
mas para ser uma espcie de maquininha na sociedade em que iria
viver. A diferena se faria naturalmente pela capacidade das fam-
lias de reenriquecer esse empobrecimento cultural, porque era, de
fato, um empobrecimento aprender tcnicas divorciadas da capa-
cidade de pensar e de ser diferente.
Por que a cultura cvica era to circunscrita, to fechada? Por-que no Imprio a democracia era a democracia dos senhores. Na
Repblica foi uma democracia de oligarcas. Ou seja, aquilo que os
antroplogos, que estudaram a frica do Sul, chamaram de de-
mocracia restrita e que os nossos cientistas polticos tm medo de
aplicar sociedade brasileira. Para essa democracia restrita dis-
pensvel uma cultura cvica e, quando existe alguma coisa parecida
com uma cultura cvica, ela acessvel somente queles que fazem
parte de uma minoria privilegiada, em termos de riqueza, em pri-
meiro lugar, em termos de poder, em segundo lugar, e em termosde saber, em terceiro lugar. Essas trs coisas eram interdependentes
e se interligavam. No horizonte intelectual predominante, para aque-
les que eram formados luz da imaginao, da personalidade-
statusdos membros das classes dominantes, das aspiraes sociais
das suas elites culturais no cabia a ideia de que h uma cultura
cvica que de toda a nao. A nao eram eles. Aquele pequeno
ns coletivo, que era o mesmo praticamente de norte a sul.
preciso refletir objetivamente sobre isso, mas no construir mitos,
fantasias, porque essa a nossa realidade histrica.
H um processo que no tenho tempo de discutir aqui, relativoao modo pelo qual a Repblica deu origem a escolas primrias,
vinculadas a concepes pedaggicas diferentes, e como isso foi um
elemento acumulativo, que depois influenciou tendncias renovado-
ras manifestadas nas faculdades de Direito, Medicina, Engenharia
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08123
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
7/23
124
etc. Na carncia de uma cultura cvica, a sociedade civil no era uma
sociedade civil civilizada. Era uma sociedade civil rstica, uma soci-
edade civil na qual o despotismo senhorial ou do mandonismo, com
outros componentes, tinham um papel vital. Pode-se avaliar isso
quando surgem os primeiros educadores que fogem a esse padro.
Esses educadores so naturalmente rebentos da burguesia, princi-
palmente da burguesia urbana, embora alguns, como o caso de
Ansio Teixeira, tenham razes na sociedade senhorial, e outros, como
Fernando de Azevedo e mais uns trs ou quatro, sejam pessoas defamlias tradicionais, algumas que se mantiveram importantes, ou-
tras que decaram socialmente. Esses educadores trouxeram para o
Brasil, em nvel de conscincia social, uma perspectiva revolucion-
ria sobre a educao. Anteciparam mudanas, que seriam potencial-
mente possveis e necessrias, numa sociedade capitalista, mas que as
classes dominantes brecaram, impediram. Ao ler oManifesto dos edu-
cadores, v-se que o grande componente sociolgico desse docu-
mento est na tentativa de transferir para o Brasil os ritmos avana-
dos das sociedades europeias. Era como se a Revoluo Francesadesabasse sobre ns, no plano educacional, sem ter desabado no
plano econmico e poltico. Portanto, uma conscincia utpica, mas
uma conscincia articulada. Vejam o que aconteceu, lendo a terceira
parte do livro de Fernando de Azevedo. A cultura brasileira depara-
se, ali, com o drama da resistncia terrvel que os centros mais tradi-
cionais, e principalmente a Igreja Catlica (que chegou a exercer um
semimonoplio sobre a educao), mantiveram; a resistncia tenaz
que se moveu contra eles, e inclusive a tentativa de desmoralizao
sistemtica daquelas pessoas, embora alguns, como o caso de
Fernando de Azevedo e Ansio Teixeira, fossem homens da casa,com formao religiosa. O prprio Fernando de Azevedo afastou-
se da ordem dos jesutas quando ia tomar votos. Naquela clebre
meditao antes de tomar voto, ele descobriu que sua vocao era
outra e separou-se da Igreja. Foi uma campanha tremenda, que pro-
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08124
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
8/23
125
duziu resultados nefastos. Por a se tem um horizonte cultural clara-
mente delimitado, porque, afinal de contas, a cultura cvica era a
cultura de uma sociedade de democracia restrita, inoperante, na re-
lao da minoria poderosa e dominante com a massa da sociedade.
Essa massa era a gentinha; e, para ser a gentinha, a educao seria
como uma prola, que no deveria ser lanada aos porcos (ou en-
to, seria uma espcie de ersatz, uma coisa elementar, rudimentar,
que ajudaria a preparar mquinas humanas para o trabalho).
Assim, tem-se um circuito histrico, que foi quebrado pelaprpria dinmica do desenvolvimento da luta de classes no Brasil,
da expanso do capitalismo e que ainda vigente quando se d
um avano notvel a criao de um Instituto de Educao que
a imaginao de Fernando de Azevedo e dos seus companheiros
concebeu segundo um padro que poderia ter sido o francs.
Quando se pensa naquela instituio, pensa-se de uma maneira que
responde a essa conscincia utpica. Assim, o educador precisa
aprender biologia educacional, psicologia educacional, sociologia
educacional, administrao escolar, educao comparada, didticageral, didtica especial e o que se v so compartimentos, como se
isso fosse uma espcie de saleiro. A gente pe um pouco de vina-
gre, um pouco de azeite, nenhuma matria que diga respeito
capacitao poltica do professor, para enfrentar e compreender
os seus papis. O professor, quanto mais inocente sobre essas coi-
sas, ser mais acomodvel e acomodado.
Esse debate nos leva, naturalmente, a um circuito que se monta
aos poucos. Ansio Teixeira fala, com acerto, que, com a implanta-
o da Repblica, a educao deixou de ser uma educao de prn-
cipe para ser uma educao da massa dos cidados. uma afirma-o terica, vamos dizer, abstrata. Na verdade, a massa de cidados
continuou a ser ignorada como antes, mas a Repblica criava esta
obrigao para o estado e criava para o professor a necessidade de
ser um agente ativo, que ia alm daquilo que as elites culturais, eco-
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08125
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
9/23
126
nmicas e polticas estavam dispostas a admitir. Mas, no circuito das
transformaes, acabou prevalecendo a ideia, que era essencial na
calibrao dos professores, tanto na Escola Normal e no Instituto
de Educao, quanto na Faculdade de Filosofia, segundo a qual o
professor deve manter uma atitude de neutralidade tica com rela-
o aos problemas da vida e com relao aos valores. Essa batalha,
que foi travada nos Estados Unidos e que to bem estudada por
Wright Mills, em um dos seus livros, no qual ele procura explicar
por que o pragmatismo norte-americano falhou, aqui foi travadanum campo muito pobre. Como um professor pode ser neutro na
sala de aula? Como um investigador pode ser neutro em suas pes-
quisas? E, principalmente, como um tcnico, em nvel de cincias
aplicadas, de tecnologia, pode ser neutro em relao ao controle de
foras materiais, sociais, culturais, psicolgicas etc.?
Esse debate sobre neutralidade tica implica a ideia de uma res-
ponsabilidade intelectual. Isto , ela o caminho pelo qual o especi-
alista, saindo da escola normal ou da universidade, norteia-se em
termos de uma relao de responsabilidade com a sociedade, isto ,com a ordem. Ele no colocado numa relao de tenso, mas de
acomodao. E quando ele abre o caminho da tenso por outras
vias que no so estimuladas a partir do ensino e da pesquisa, nas-
cem apesar das imposies e limitaes formuladas em seu nome.
A essa concepo correspondeu a ideia de que era necessrio sepa-
rar o cidado do cientista e do professor. Essa disjuno foi fatal
para a minha gerao. Eu posso pensar o que eu quiser. Posso ser
socialista, sempre fui socialista, desde que me tornei gente, conscien-
te da minha relao com o mundo. Como professor, o socialismo
no deve ser dimensionado em sala de aula, pois a deve prevalecerum ecletismo, que vai desbotar as implicaes socialistas do pensa-
mento do professor. O cidado est num lado, o educador est em
outro. Entretanto, o principal elemento na condio humana do pro-
fessor o cidado. Se o professor no tiver em si a figura forte do
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08126
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
10/23
127
cidado, acaba se tornando instrumental para qualquer manipulao,
seja ela democrtica ou totalitria. Todos os regimes manipulam. O
totalitarismo no manipula sozinho a personalidade humana ou os
pequenos grupos, as grandes massas. Manipulaes so feitas em
termos de interesses dominantes e com frequncia de forma repres-
siva e opressiva. Este um tema muito vasto para nossa exposio,
mas de qualquer forma ajuda a entender a pobreza do circuito da
cultura civil. Ela era to esmagada, to pobre que at esse trao da
personalidade do professor essencial no conjunto, como chave, paraentender outras coisas. Deveria ser despojado da dimenso de ci-
dado, na sua prtica educacional, na sala de aula. Mas, justamente ali,
o professor precisa ser professor-cidado e um ser humano rebelde.
Isso levou certos crculos, que saram da Faculdade de Filoso-
fia e de outros centros de estudo, a um radicalismo que esteve
vinculado ao radicalismo dos pioneiros, mas que possua um cam-
po independente. A convergncia foi produto do momento his-
trico. Eu, por exemplo, trabalhei com Fernando de Azevedo; fui
assistente dele, nunca aluno, nunca pensei como ele. Tnhamosmuitas afinidades, eu sentia muita admirao por ele, mas pens-
vamos de modo diferente, para o nosso bem... Foi vantajoso para
ele pensar por conta prpria e permitir que eu fizesse a mesma
coisa. Mas esse radicalismo, que foi produto dos rebentos, das
transformaes que ocorreram na esfera do ensino escolarizado,
levou muitos a uma amarga e elaborada concepo ctica, porque
parecia que, por meio da escola, no se podia fazer nada, porque
a escola, afinal de contas, no era a sociedade. A grande mudana
s pode ser provocada na sociedade e, portanto, o essencial era
sair da escola, ir para a sociedade e ali travar a grande batalha nocampo da revoluo poltica.
Respeitando o que h de verdade nessa posio, que seria um
extremismo e, se absorvida pedagogicamente, seria um extremis-
mo pedaggico , ela falha num ponto. que, com frequncia, para
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08127
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
11/23
128
se usar um conceito que foi operativo na dcada de 1940, e aplicado
pelos antroplogos, h mudanas antecipadas, que ocorrem em
primeiro nvel de uma instituio e podem avanar em relao s
transformaes da sociedade global, percorrendo depois outras es-
feras da sociedade. O professor no pode estar alheio a esta dimen-
so. Se ele quer mudana, tem de realiz-la nos dois nveis dentro
da escola e fora dela. Tem de fundir seu papel de educador ao seu
papel de cidado e se for levado, por situao de interesses e por
valores, a ser um conservador, um reformista ou um revolucion-rio, ele sempre estar fundindo os dois papis. Esse debate, hoje,
tem uma grande atualidade, porque a cultura cvica agora deixa de
ser um elemento mistificado e mistificador. Deixa de ser um fetiche,
algo improvvel ou algo de circuito estreito. A cultura cvica passa a
ser aquilo que a sociedade toda est construindo, nas piores condi-
es possveis que poderamos imaginar e, portanto, decisivo que
o educador volte a pensar em como fundir os seus papis dentro da
sala de aula, com os seus papis dentro da sociedade, para que ele
no veja no estudante algum inferior a ele, para que se desprendade uma vez de qualquer enlace com a dominao cultural e para que
deixe de ser um instrumento das elites. claro que o professor
pode ser, como diz um socilogo colombiano, membro de uma
antielite. A criao da antielite no est na vontade de um professor
isolado, mas parte de um processo sociocultural e, nesse processo,
os professores tm um papel decisivo.
O segundo ponto o mais importante em toda a nossa conver-
sa aqui. claro que um professor que leciona numa sociedade rica,
desenvolvida, pode no ter de se preocupar com certos temas. A
mesma coisa acontece com o clero. O clero da Europa avanada edos Estados Unidos tende a ser muito mais leniente para com os
poderosos do que o clero que vive, por exemplo, os dramas huma-
nos do Nordeste ou das favelas de So Paulo. Os que tm experin-
cia com o pensamento de Paulo Freire j sabem qual essa pedago-
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08128
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
12/23
129
gia dos humilhados e ofendidos, dos oprimidos, e qual o mnimo
que diz respeito elaborao de uma pedagogia dos oprimidos e
que, dialeticamente, s pode ser uma pedagogia da desopresso.
No existe uma pedagogia dos oprimidos, existe uma pedagogia da
desopresso, da liberao dos oprimidos.
A controvrsia, a, seria a de se saber se pela via da instituio,
se pela via dos professores ou das elites culturais que os oprimi-
dos se emancipam. Em geral, essas fontes apenas ajudam. Podem
dar um pontap inicial, mas o processo precisa ser muito forte edinmico na sociedade, para que isso se propague e para que um
pedagogo rebelde e o conjunto dos professores, que estejam
porventura envolvidos num processo de transformao, pensem
a realidade politicamente. Pensar politicamente alguma coisa que
no se aprende fora da prtica. Se o professor pensa que sua tarefa
ensinar o ABC e ignora a pessoa de seus estudantes e as con-
dies em que vivem, obviamente no vai aprender a pensar poli-
ticamente ou talvez v agir politicamente em termos conservado-
res, prendendo a sociedade aos laos do passado, ao subterrneoda cultura e da economia.
A est um problema essencial. Na poca em que frequentei a
Faculdade de Filosofia, estava muito na moda um livro de Kilpatrick:
Educao para uma civilizao em mudana. muito importante refletir
sobre o ttulo desse livro e o quanto ele mistificador. As palavras
civilizaoe mudanaprendem a imaginao do leitor a dois smbolos;
e h quem no queira civilizao e quem rejeite mudana. O impor-
tante no dito ali. Eu prprio demorei algum tempo at decidir-
me a escrever uma introduo de certa envergadura terica, sobre a
natureza da mudana. A mudana, em qualquer sociedade, umprocesso poltico. fundamentalmente uma tentativa das classes
dominantes de manterem a dominao, de as classes intermedirias
se associarem em seu proveito dominao ou alterarem o seu
contedo e as suas formas. Em sentido inverso, uma tentativa das
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08129
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
13/23
130
classes subalternas no sentido de modificar ou destruir a dominao.
Pode-se ver que a polarizao muito complexa. O conservador
quer a mudana. Se no houver mudana, a prpria dominao
pode ser destruda, sofrer uma crise. No se pode manter uma so-
ciedade sem transformao. At a ditadura recente, de governo a
governo, promoveu mudanas substantivas para continuar existin-
do, crescendo, mantendo-se como ditadura. O conservador deseja
mudana, mudana essencial para manter o conservantismo, para
vitalizar o conservantismo. O reformista no reformista se nofor capaz de definir programas de mudana mudanas que, a,
passam a ser essenciais, porque para o reformista no se trata de
preservar uma ordem, trata-se de ir ao fundo das potencialidades
de transformao dessa ordem, como quiseram, por exemplo, os
pioneiros da educao nova. Se temos uma sociedade capitalista
podemos explorar todos os elementos que so possveis dentro
dessa sociedade. E o reformista pode tambm querer alguma outra
coisa, querer um socialismo que, alm de forar essa revoluo den-
tro da ordem, queira juntar a essa revoluo o comeo de umatransio para novas formas econmicas, sociais e polticas. Por fim,
o revolucionrio tambm quer mudanas, e mudanas que partam
da revoluo contra a ordem, que enterrem a ordem existente e,
junto com ela, conservadores e reformistas.
Toda essa problemtica era deixada de lado, porque a conscin-
cia utpica, que reinava na pedagogia, era mistificadora. Ela se para-
lisava diante da ideia de mudana. curioso que voltemos a isso. O
mudancismo, hoje, parece ser um sinapismo. Serve para tudo,
inclusive para despertar falsas esperanas e crenas na transforma-
o automtica da sociedade. Mudana requer luta e luta social entreclasses. Um professor deve aprender a pensar em termos de lutas
de classes, mesmo que no seja marxista. No sei se vocs chegaram
a ler Marx no original, ou se porventura leram a antologia que eu
organizei,Marx-Engels: Histria. Nessa antologia, h uma leitura so-
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08130
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
14/23
131
bre isso. Marx dizia: Eu no criei a ideia de classe, no criei a ideia
de luta de classes. Ele explica o que fez de novo, que no foi cunhar
a palavra classe, nem inventar o conceito de luta de classes. Isso ele
encontrou pronto e acabado, na obra de historiadores, economistas
e filsofos, que haviam produzido uma vasta obra a partir do s-
culo XVIII em diante. Pode-se, porm, fazer como os telogos da
libertao, ou seja, absorver estes conceitos sem absorver o marxis-
mo e, at, combater os marxistas, de uma maneira que no agra-
dvel para mim, como o faz Frei Betto. Tudo isto importantedizer, porque mudana implica luta e luta social. Se o conservador
quer mudar alguma coisa, quer faz-lo para preservar suas posies
de poder ou, ento, para amplific-las, para no correr riscos; o
reformista quer mudar para conquistar posies de poder; por sua
vez, o revolucionrio quer mudar porque se identifica com classes
que so portadoras de ideias novas a respeito da natureza, do con-
tedo da civilizao e da natureza do homem.
O debate que se travava dentro da universidade, por exemplo,
a respeito daquele livro de Kilpatrick, era pobre. Cheguei a escre-ver um pequeno artigo em Educao e sociedade no Brasil, no qual
fazia certas ironias, o que foi mal recebido pelos pedagogos. Eram
comentrios muito srios, mas envolviam ironias com endereo
certo. Mudana, substantivamente, sempre mudana poltica. Se
o professor pensar em mudana, tem que pensar politicamente.
No basta que disponha de uma pitada de sociologia, uma outra
de psicologia, ou de biologia educacional, muitas de didtica, para
que se torne um agente de mudana. E nesse caso, por exemplo,
Dewey e sua escola deram uma prova muito rica do que o prag-
matismo norte-americano conseguiu fazer, usando a escola comoinstrumento de transformao do meio social ambiente. muito
importante estudar o que foi feito nos Estados Unidos, tentando
aproveitar os recursos materiais e culturais do ambiente, para
modificar a relao do estudante com a sociedade. s vezes uma
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08131
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
15/23
132
sociedade de mineradores, decadente, podia encontrar na escola o
eixo da luta contra a pobreza, contra a estagnao econmica,
contra o indiferentismo diante da catstrofe. A escola no to
neutra, desde que ela seja projetada numa esfera de ao propria-
mente poltica. Num pas como o Brasil, pela prpria natureza da
situao, os educadores, mais at que os polticos, so pessoas que
convivem com os problemas essenciais da sociedade em relao
ao nvel poltico. Isso curioso. Antes que os sacerdotes rebeldes
tivessem dado seu grito, os educadores haviam dado o seu, masno encontraram meios de organizao institucional, porque a
mquina do estado opressiva, a empresa privada tambm e, as-
sim, os educadores ficaram impotentes, mesmo quando tinham
conscincia do que podiam e deviam fazer.
Observe-se, por exemplo, o que disse certa vez um padre:
um ser humano no pode ser cristo no Brasil nas presentes con-
dies materiais, sociais e culturais de vida. No h elementos que
criem a humanidade desse ser e que nele despertem a conscincia
de uma humanidade, que pode sentir-se ofendida e rebelar-se con-tra a opresso. Para que o catolicismo se torne possvel, preciso
criar um novo tipo de homem. No se trata aqui da revoluo
socialista em Cuba ou de criar um homem socialista, como dizia
Guevara. Trata-se de encontrar o homem na situao brasileira, de
desobjetificar e de humanizar o ser humano que vai para a escola
despojado das condies mnimas para passar pelo processo edu-
cacional. No sei quantos de vocs leram o trabalho do prof. Luiz
Pereira, A Escola numa rea metropolitana, dissertao de mestrado
orientada por mim. V-se ali o professor travando contato com
esse estudante de origem mais modesta, de populaes migrantes,que transferem do Nordeste para o Sul suas misrias, deficincias
e carncias, como diria Darcy Ribeiro. E constata-se que o profes-
sor no possui formao necessria para entender, cabalmente, o
que lhe compete fazer. Luiz Pereira, a partir do material emprico,
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08132
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
16/23
133
traa atitudes de afastamento e da avaliao negativa por parte do
professor desses estudantes. Professores de pequena burguesia, de
classe mdia, que, naquele momento, estavam com o horizonte
obscurecido pelas noes das classes dominantes, noes que vm
daquela concepo mandonista, herdada da sociedade colonial,
imperial e que vicejou na Primeira Repblica. No entanto, muitos
professores aprenderam novos papis (tenho uma cunhada que
trabalha numa escola da periferia e vejo como as coisas ocorrem;
ela e suas companheiras andam atrs de material e praticamenteconfraternizaram-se com os miserveis) e no tm mais aquela
atitude de distanciamento e sim uma atitude de confraternizao.
O professor foi rebaixado em seu nvel social e respondeu a isso
positivamente. Em vez de se considerar degradado, procurou na-
quele ser humano, que antes no compreendia, um igual, que ape-
nas est em condies piores e que ele procura ajudar em termos
de cooperao social. A amplitude desta ao muito mais assis-
tencial que qualitativamente poltica, mas j um posicionamento,
j uma ruptura, uma vitria da percepo de que o elementohumano que vai para a escola realmente precisa ser a compreen-
dido e transformado, dentro dos limites possveis.
Agregue-se a isto outros dados, como o clima de violncia. A
violncia desaba nas escolas primrias, secundrias, e at nas escolas
superiores, em termos de destruio de equipamentos, de salas de
aulas, de brutalizao de estudantes, de professores e diretores. E h
outra ordem de problemas. A deteriorao que ocorreu no sistema
de ensino, da qual exemplo a recuperao do mandonismo, levou
as classes dirigentes a empobrecerem a revoluo nacional e retira-
rem da educao aquele mnimo que antes a caracterizava. E qual foia consequncia? Houve uma deteriorao rpida de todas as escolas,
tanto em nvel de ensino pr-primrio e primrio, quanto em nvel
de ensino mdio e superior. Esses problemas aparecem na pesquisa
e na produo intelectual e h problemas ainda mais graves, porque,
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08133
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
17/23
134
afinal de contas, nesse despertar, estudantes e professores entendem
que formam uma comunidade. Eles querem expandir-se como uma
comunidade, quebrar aquelas barreiras, que antes introduziam dife-
renciais de classe no efetivos nas relaes de estudantes e professo-
res. E encontram o caminho barrado, por meio de vrias vias:
incompreenso dos meios de comunicao de massa, incompreenso
do prprio estado que, na sua essncia, opera como um estado de
classe altamente conservador. Haveria ainda muitos problemas a
salientar, inclusive o desnivelamento pelo qual passa a atividade doprofessor, que um desnivelamento profissional e tambm econ-
mico e, sendo as duas coisas, acaba sendo cultural. O professor que
perde prestgio como profissional, perde renda e tambm perde
tempo para adquirir cultura e melhor-la, a fim de ser um cidado
ativo e exigente. Existem problemas ainda mais complexos, que
dizem respeito s relaes entre o Brasil e outras sociedades capita-
listas, por exemplo, a dominao imperialista da Europa avanada,
dos Estados Unidos e do Japo, sobre o Brasil. Ou ainda o fato de
ns termos ganho uma comisso MEC-Usaid, que acabou cali-brando toda a reordenao jurdica de nosso sistema educacional.
notria a introduo de concepes que degradam e subestimam o
ensino pblico, enaltecendo o ensino privado e que acabam por
fortalecer a ideia de que a educao, para ser responsvel, precisa ser
sobretudo uma mercadoria. Assim, possvel arrolar vrios proble-
mas e temas que mostram a necessidade de o professor, no seu
cotidiano, ter uma conscincia poltica aguda e aguada, firme e exem-
plar. No que ele deva se tornar um Quixote ou um espadachim.
Mas ele precisa ter instrumentos intelectuais para ser crtico diante
dessa realidade e para, nessa realidade, desenvolver uma nova pr-tica que v alm da escola.
Isso efetivamente est acontecendo. Seria impossvel, por exem-
plo, quando me tornei assistente na faculdade, ouvir algum profes-
sor dizer que ganhava salrio. Um professor no dizia isso. Ele
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08134
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
18/23
135
tinha proventos. A concepo estamental era to forte, que ele se
sentiria degradado se fosse considerado (ou se se considerasse)
um assalariado. Hoje, no s quer ser assalariado, mas quer lutar
como assalariado, quer at imitar os operrios na luta econmica e
poltica. Para ver se tem xito, impe-se certas normas na
revalorizao econmica da categoria profissional e na conquista
de maior liberdade em outro espao cultural. Ento, faz parte da
situao de um pas subdesenvolvido a existncia de uma infini-
dade de situaes nas quais o professor precisa estar armado deuma conscincia poltica penetrante. Ele uma pessoa que est em
tenso poltica permanente com a realidade e s pode atuar sobre
essa realidade se for capaz de perceber isso politicamente. Por-
tanto, a disjuno da pedagogia ou da filosofia e das cincias ou da
arte, com relao poltica, seria um meio suicida de reagir. algo
inconcebvel e retrgrado. O professor precisa se colocar na
situao de um cidado de uma sociedade capitalista subdesenvol-
vida e com problemas especiais e, nesse quadro, reconhecer que
tem um amplo conjunto de potencialidades, que s podero serdinamizadas se ele agir politicamente, se conjugar uma prtica pe-
daggica eficiente a uma ao poltica da mesma qualidade.
O ltimo tpico nos leva a uma questo um pouco mais delica-
da, que me permite ser mais eu mesmo. Eu no sou s marxista.
Sou um marxista que acha que a soluo para os problemas dos
pases capitalistas est na revoluo. Dizer isso no uma
fanfarronice. assumir, de forma explcita, o dever poltico m-
nimo que pesa sobre algum que militante, embora no esteja em
um partido comunista e que, afinal de contas, tentou, durante toda a
vida, manter uma coerncia que liga a responsabilidade intelectual condio de socialista militante e revolucionrio. Se se olha para a
sociedade brasileira de hoje, constata-se que o professor tem muitas
promessas diante de si. Ele no precisa criar o ponto de partida de
uma ao pedaggica politicamente orientada. Esse ponto de parti-
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08135
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
19/23
136
da, que foi um sonho para todos ns e que nos levou runa,
medida que tentamos cri-lo, acabou surgindo espontaneamente e,
em grande parte, graas s transformaes do modo de produo
capitalista e do regime de classes sociais no Brasil.
A sociedade avanou, criou novas oportunidades histricas, e
o fez por meio da diferenciao do regime de classes. A produo
capitalista alterou-se, a incorporao aos pases de economia cen-
tral permitiu o florescimento de uma industrializao que esteve
longe do alcance das nossas mos no passado, e esse longo e com-plexo processo de formao de uma classe proletria e indepen-
dente atingiu, enfim, o seu clmax. curioso que isso tenha acon-
tecido sob uma ditadura e contra a vontade dessa ditadura. Por
qu? Porque uma ditadura no pode impor os limites de cresci-
mento e de transformao de uma sociedade. Os capitalistas no
podem ter as duas melhores coisas ao mesmo tempo: o cresci-
mento do capital e o esmagamento do trabalho. Se o capital cres-
ce, o trabalho cresce e se o trabalho cresce, o conflito social tam-
bm. Se h represso quanto ao conflito social, o conflito vai semanifestar de uma maneira clandestina, no subterrneo da socie-
dade. E foi o que ocorreu aqui em So Paulo: operrios que ado-
taram ideias que eram defendidas na dcada de 1950, mas que s
se tornaram uma prtica rotineira nos ltimos anos, na dcada de
1970, por exemplo, e nesses ltimos momentos. A comisso de
fbrica, a comisso de bairro. Ou seja, a fbrica como um lugar
onde no apenas se trabalha e se explorado, mas como um lugar
no qual o operrio luta pelo reconhecimento de sua pessoa e do
seu valor. Comea-se por a. Ao mesmo tempo que se criam con-
dies para a concluso do processo de constituio de uma classeproletria independente, criam-se as condies da luta poltica contra
a supremacia burguesa e contra a dominao burguesa. Derrotar
essa supremacia , afinal de contas, uma necessidade orgnica dos
trabalhadores. E as grandes dificuldades existentes dizem respeito
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08136
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
20/23
137
aos meios institucionais de autodefesa coletiva. Esses meios foram
forjados a partir do desafio da represso. Sindicatos que se trans-
formam, modos de ao conjugada que se alteram e tentativas de
inibir o despotismo do capital, dentro da empresa e na sociedade
global. Uma luta tenaz para conquistar peso e voz na sociedade
civil. Isso marca, portanto, um novo rumo da histria.
Estamos na vertente de uma fase ainda no encerrada, mas
que j adquiriu as condies de clmax, e em uma fase, ora iniciada
(possvel de se analisar, em alguns aspectos, por meio do livro doprofessor Celso Frederico, e em relao qual se pode conhecer
outros elementos importantes no livro do professor Lus Flvio
Rainho). fcil ver como aquele peo, que est ao mesmo tempo
se proletarizando, se tornando um morador da cidade, se enlaa
num processo de luta de classes altamente complicado e no qual
ele acaba sendo um elemento decisivo, porque ele quem d o
significado de massa e ele quem, com frequncia, levanta as exi-
gncias mais ardentes e mais insufocveis. Assim, estamos no limi-
ar de uma nova era e aqui se justifica a reflexo que Marx faz arespeito da necessidade de se pensar na educao do educador:
quem educa o educador?. O educador educa os outros, mas ele
tambm educado. No processo de educar, ele se educa, se ree-
duca e quando pratica uma m ao no sentido gestaltiano ele se
autopune, aprende alguma coisa.
A educao do educador um processo complexo e difcil.
importante que se perceba o que est acontecendo na sociedade
brasileira de hoje. O educador est se reeducando, em grande parte,
por sua ao militante, medida que aceita a condio de assalaria-
do, que proletariza sua conscincia, portanto seus modos de ao.Isto apesar de ser uma pessoa da pequena burguesia ou da classe
mdia. Ele rompe com seus padres ou ento passa por um com-
plicado processo de marginalidade cultural, porque compartilha de
duas formas de avaliao: uma, que mais ou menos elitista; a outra,
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08137
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
21/23
138
que mais ou menos democrtica e divergente. Nessa situao-
limite, o professor se v obrigado a redefinir sua relao com a
escola, com o contedo da educao, sua relao com o estudante,
com os pais dos estudantes e com a comunidade em que vivem os
estudantes. E isso vai to longe que, se um professor primrio, que
antes era um zero, sair para uma greve, arrastar consigo no s os
seus companheiros, a sua categoria, mas tambm estudantes, pais de
estudantes, a manifestao de massa. Isso muito importante, quer
dizer, assiste-se a um processo novo, um processo em que odesnivelamento econmico, social e poltico criou a possibilidade de
que o professor defina a sua humanidade em confronto com a tra-
dio cultural e com a opresso poltica.
No segundo prefcio de O capital, Marx apresenta um de-
bate muito interessante a respeito dos economistas alemes. O
que eles poderiam fazer, depois que os economistas clssicos
haviam criado a teoria econmica? O que poderiam fazer de
original? Qualquer coisa que pudessem fazer seria uma repetio;
consequentemente, eles tinham que pensar aquela teoria de for-ma crtica e redefinir a sua relao com a sociedade. Ou aceita-
vam a teoria econmica dos clssicos e se convertiam em sacer-
dotes da burguesia ou procuravam saber qual era o sentido
imanente da histria do presente. Qual era a classe que estava
lutando pela revoluo? E at que ponto fazer a crtica da eco-
nomia poltica no era fazer uma nova teoria econmica, uma
economia poltica do proletariado? A mesma coisa se pode pen-
sar do educador. No se trata de colocar o educador naquela
perspectiva de dio s instituies. Vamos acabar com as escolas,
elas so prises. Todas as prises precisam ser destrudas. No setrata disto. Instituies e valores so sempre redefinidos na mar-
cha das civilizaes. O homem nunca se livrou de certas insti-
tuies. Seria o caso de perguntar ao padre Illich, por exemplo,
por que as escolas so ms numa sociedade capitalista? Por que
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08138
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
22/23
139
poderiam ser boas dadas certas reformas ou dadas condies
histricas que garantissem uma revoluo social?
Seria preciso deslocar uma reflexo utpica abstrata para um
circuito realista, que vincule a conscincia de transformao a uma
ao prtica inconformista ou rebelde. exatamente isso que o
professor est tentando fazer agora. claro que no a massa dos
professores. No so todos os professores. Pode ser uma minoria,
mas essa minoria que est levando frente um processo novo.
Eu fiz uma conferncia, ainda este semestre, no ltimo congressoorganizado pela Apeoesp. Foi uma surpresa para mim. Havia mais
de 6 mil pessoas no auditrio. V-se por a o grau de mobilizao.
O que isso representa? No eram mais de seis mil pessoas pleite-
ando, do governo Sarney, nomeao para os escales interme-
dirios. Eram mais de 6 milpessoas que estavam ali preocupadas
com a relao do educador com a sociedade, com a humanizao
do homem que nessa sociedade despojado da sua humanidade.
Voltando ao exemplo de Marx, o educador tem uma liberda-
de muito grande. Pode identificar-se com uma classe ou com ou-tra, pode identificar-se com a classe dominante, com as classes
intermedirias ou com as classes subalternas. claro que o educa-
dor, tendo liberdade de escolha, pode dispor de uma ampla mar-
gem de atuao poltica na sociedade. Para uma pessoa que est na
minha posio, posso dizer que lamentvel que muitos professo-
res usem essa liberdade para tornarem-se conservadores e at re-
acionrios, inclusive, para fazerem listas de punio de colegas dos
quais gostariam de se livrar por motivos ideolgicos, polticos e,
s vezes, at de competio intelectual. Pode-se lamentar o teor
dominante das tendncias reformistas mais ou menos ambguas.Mas, de qualquer maneira, existe uma vasta gama de potencialidades
que se exprimem no campo real, ou seja, possvel conjugar a
conscincia pedaggica dos problemas da sociedade a uma nova
forma de ao prtica. isto que garante a transformao subs-
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08139
-
7/22/2019 Florestan Fernandes O Desafio Educacional
23/23
140
tantiva. A transformao no produto do avano na esfera da
conscincia e tambm no produto de uma elaborao espont-
nea da realidade. preciso que a ao prtica transformadora se
encadeie a uma conscincia terica e prtica, que seja, num sentido
ou noutro, dentro da ordem ou contra a ordem, revolucionria.
Essa uma perspectiva que no mais proclamada apenas
como uma possibilidade. Ela algo no s virtual. algo que
podemos considerar vicejando, na sociedade brasileira, com um
mpeto to grande, que assustou os setores mais sofisticados daburguesia e levou, inclusive, a cpula do PMDB a fazer uma alian-
a espria com polticos egressos do governo ditatorial, com ex-
poentes militares da prpria ditadura e a uma conciliao que lhes
permite, enfim, ganhar tempo e criar caminhos de interesse para
as classes dominantes. Observam-se transformaes que esto
ocorrendo e que so de profunda significao no meio histrico
brasileiro, definindo de maneira diferente a posio e as perspec-
tivas dos educadores.
claro que eu no posso seno sugerir isto e, ao faz-lo,naturalmente, usei meu sistema de referncia, sob o aspecto mar-
xista: o encadeamento de conscincia da situao com a ao
prtica modificadora. Esse encadeamento substantivo, essen-
cial e especificamente poltico. No se trata de proclamar uma
utopia e dizer ns temos uma frmula, graas a esta frmula
vamos produzir a nova escola, e esta vai gerar a nova sociedade,
que, por sua vez, formar a nova gerao. Isso tudo conto da
carochinha. J se acreditou nisso, no s no Brasil, como tambm
na Europa e nos Estados Unidos. A realidade que as transfor-
maes so conquistadas a duras penas. Os professores entram,agora, nas mais difceis condies de uma nova era, tal como est
acontecendo com os proletrios.
FLORESTAN FERNANDES_fev2010.pmd 21/10/2010, 08:08140