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GRAZIELLE ROCHA FRANÇA
A MEDICALIZAÇÃO DO CONFLITO FAMILIAR PELA REDE DE
PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE DO MUNICÍPIO DE
PENHA/ SC
Itajaí (SC)
2019
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UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO MESTRADO PROFISSIONAL EM
SAÚDE E GESTÃO DO TRABALHO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO: SAÚDE DA FAMÍLIA
GRAZIELLE ROCHA FRANÇA
A MEDICALIZAÇÃO DO CONFLITO FAMILIAR PELA REDE DE
PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE DO MUNICÍPIO DE
PENHA/ SC
Dissertação submetida à Universidade do Vale do Itajaí
como parte dos requisitos para a obtenção do grau de
Mestre em Saúde e Gestão do Trabalho
Orientador: Prof. Dr. George Saliba Manske
Itajaí (SC)
Julho de 2019
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Ficha Catalográfica
Bibliotecária Eugenia Berlim Buzzi CRB 14/963
F844m
França, Grazielle Rocha, 1977-
A medicalização do conflito familiar pela rede de proteção à criança e ao adolescente do
município de Penha/ SC.
[Manuscrito] / Grazielle Rocha França. – Itajaí. SC. 2019.
105 f. ; il. ; fig.
Inclui referências bibliograficas: f. 76-84
Cópia de computador (Printout(s)).
Dissertação submetida à Universidade do Vale do Itajaí como parte dos requisitos para a
obtenção do grau de Mestre em Saúde e Gestão do Trabalho.
“ Orientador: Profº. Dr. George Saliba Manske .”
1. Conflito Familiar. 2. Rede de proteção à criança e ao adolescente. 3. Gestão em Saúde. I. Universidade do Vale do Itajaí. II. Título.
CDU: 159.922.8
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AGRADECIMENTOS
O meu coração está cheio de alegria, e neste momento tão esperado escrevo os
meus agradecimentos.
Agradeço imensamente ao meu irmão, ao meu pai e a minha mãe, meus
amados patrocinadores, que entraram neste sonho comigo, e me oportunizaram uma
realização pessoal. Depois que eu me formei em Psicologia, passamos por tantas coisas
nessa montanha russa da vida, e sempre estivemos juntos. Desejo que a vida lhes cubra
de gratidão. Eu sei que muitas vezes vocês pagaram as mensalidades, deram o dinheiro
para a Donel, para o lanche, até para a cervejinha do boteco, pagaram gasolina,
emprestaram o carro, e que isso fez falta em casa. Mas eu jamais iria conseguir, porque
abri mão de um emprego público, ganho pessimamente mal no outro, e precisei de todo
esse amparo financeiro para chegar até aqui. Se não fossem vocês, principalmente, meu
irmão, jamais teria conseguido numa universidade privada. (Já estou chorando... coisas
de Gra). Meu obrigada mais sincero também ao meu cachorro Rico França,
companheiro de leituras. Maninho, amo você meu dog.
Agradeço ao meu “namorido” Alfredo, chamado carinhosamente por mim de
Love, que entrou nesse barco quando eu já estava a quilômetros do porto, por ter
segurado a minha mão nas minhas crises de ansiedade, por ter dormindo mal nas minhas
noites de insônia, por ter assumido tantas contas da nossa casa, por ter aprendido a me
respeitar nessa escolha de estudar, pelas broncas que me deu quando eu esquecia que
havia vida fora da dissertação, por estar presente nesse sonho e na minha vida. Obrigada
por tudo! Obrigada por nós!
Agradeço ao meu orientador George por ter me apresentado aos Estudos
Culturais, por ter me acompanhado nesse processo de tornar-me mestre em saúde, por
ter me acalmado em muitos momentos, principalmente, quando me percebi empacada
num mundo de materiais empíricos e referenciais teóricos. Para o resto da minha vida
quando for o meu aniversário, vou lembrar de você! Meu muito obrigada George!
Agradeço com um carinho grandioso ao meu querido amigo Sandro Alex, que
foi a pessoa depois do orientador, que mais leu os meus escritos, que esteve no mesmo
barco quando parecíamos dois náufragos, mas que como um bom marinheiro, ajudava-
me sempre a segurar o leme e buscar a ancora. Quero passear lá em Brusque para
conhecer a quase uma dúzia de cachorrinhos. Muito obrigada!
Agradeço com o coração cheio de boas memórias ao nosso Bonde das
Falcatruas – Renata, Aldry, Marcos, Theo, Thiago, Sandro, e Marcelo. Que a vida nos
proporcione novos encontros regados à batatinha (com bacon, queijo e cebolinha), só
que com uma cerveja melhorzinha. Obrigada pelas risadas, pelos bons momentos que
vivemos juntos.
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Agradeço aos professores do mestrado, especialmente, ao professor Carlos
Eduardo, que foi meu supervisor de estágio no curso de Psicologia, e que me viu crescer
na profissão de psicóloga atuante no SUS. Acho muito legal que durante todos os anos
que se passaram já tivemos vários momentos de nos reencontrarmos.
Deixo um abraço a professora Rita, que para mim sempre foi um referencial de
humanidade neste curso, e de entusiasmo e respeito pelo SUS.
Agradeço aos demais colegas do mestrado e do GEPEC pelas trocas que
realizamos neste dois anos de convivência.
Agradeço a minha psicóloga Ana Lúcia que nesses dois anos me escuta falando
do mestrado quase todas as semanas, me retroalimenta com a segurança de que
baixando a ansiedade tudo vai dar certo. Ana, você não tem ideia das vezes em que eu
me senti desmoronando, e você com todo seu suporte fazia com que eu me encontrasse
e que visse que em outros momentos da vida me senti tão ansiosa quanto nesse, e
consegui chegar até o fim.
Agradeço aos SUS, o lugar especial em que eu me encontrei como psicóloga,
aos anos de atuação como psicóloga de crianças, de adolescentes e de suas famílias, a
esse campo de trabalho e de pesquisa tão vasto e encantador. Agradeço aos profissionais
da Rede de Proteção à criança e ao adolescente que toparam participar desse estudo, e
que assim como eu almejam mudanças nos nossos processos de trabalho. E por fim, às
famílias reais que me motivam a levantar todos os dias cedinho para a clínica
psicológica, que me proporcionam encontros e desencontros nesse contexto clínico e de
vida.
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A MEDICALIZAÇÃO DO CONFLITO FAMILIAR PELA REDE DE
PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE DO MUNICÍPIO DE
PENHA/ SC
Grazielle Rocha França
Julho/2019
Orientador: George Saliba Manske, Doutor em Educação.
Área de Concentração: Saúde da Família.
Número de Páginas: 105.
RESUMO: Objetivou-se nesta pesquisa compreender como os profissionais da Rede de
Proteção à Criança e ao Adolescente do município de Penha (SC) acionam
representações de sujeitos a partir dos encaminhamentos realizados para a clínica
psicológica do Sistema Único de Saúde (SUS) tendo como justificativa a queixa de
conflito familiar. Tratou-se de uma pesquisa orientada pelos métodos qualitativos no
campo dos Estudos Culturais com técnicas de pesquisa de campo. Mapeando-se a Rede,
bem como, descrevendo as instituições e os profissionais, realizaram-se entrevistas no
período de 23 de novembro de 2018 a 29 de janeiro de 2019, com cinco sujeitos,
posteriormente transcritas na integra. Além disso, registraram-se observações, reflexões
e impressões no Diário de Campo. Por meio de análise cultural amparada no campo dos
Estudos Culturais, duas categorias de representação de sujeito foram elencadas: o
sujeito caracterizado em atraso de desenvolvimento pela família conflitante; e o sujeito
da garantia de Direitos. Em seguida, elencou-se uma terceira categoria: o governamento
das crianças, adolescentes, famílias e profissionais da Rede. Por fim, por se tratar de um
mestrado profissional, como tecnologia social, um material pedagógico foi construído
para educação permanente dos profissionais da rede protetiva que realizaram os
encaminhamentos das crianças e dos adolescentes. Como conclusão apontou-se que
apesar de não haver uma definição do que é conflito familiar, por mais que houvesse
uma tentativa de fixar uma concepção, nenhum sentido seria possível de abarcar
situações tão peculiares nas diversas dinâmicas familiares, culturais e sociais. Ainda,
que o dito atraso no desenvolvimento, o rompimento do vínculo familiar, a cisão na
garantia dos direitos, por mais que aparentem devolver o direito às crianças, tratam-se
de formas de governamento e de medicalização do conflito familiar. Nesses
encaminhamentos das famílias há um jogo de poder de quem encaminha e é
encaminhado, lutas e resistências até que as relações de violência ajam coercitiva ou
punitivamente. A Tecnologia Social proposta vem como uma nova forma mais sutil de
governamento, diferente da forma direta de encaminhar as crianças e os adolescentes
para avaliação psicológica, visando um laudo técnico, mas ainda por ter um cunho
terapêutico, encontra-se no viés medicalizante do conflito familiar.
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Palavras-chave: Conflito Familiar; Medicalização; Rede de proteção à criança e ao
adolescente; Representação do sujeito.
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MEDICALIZATION OF FAMILY CONFLICT BY THE NETWORK OF
PROTECTION OF CHILDREN AND ADOLESCENTS OF THE
MUNICIPALITY OF PENHA / SC
Grazielle Rocha França
July/ 2019
Advisor: George Saliba Manske, Doctor of Education.
Area of Concentration: Family Health.
Number of Pages: 105.
ABSTRACT: The objective of this research is to understand how the professionals of
the Child and Adolescent Protection Network of the city of Penha, state of Santa
Catarina, trigger representations of subjects from the referrals made to the psychological
clinic of the Sistema Único de Saúde – SUS (Brazilian Unified Health System) after a
complaint of family conflict. The research was guided by qualitative methods in the
field of Cultural Studies using field research techniques. After mapping the network out,
and describing institutions and professionals, interviews were carried out in the period
from November, 23rd 2018 to January, 29th 2019, with 5 (five) subjects, interviews were
recorded and subsequently transcribed in full. In addition, observations, reflections and
impressions were registered in a Field Journal. Through cultural analysis based on the
Field of Cultural Studies, two categories of subject representation were listed: the
subject characterized as having developmental delay by the conflicting family; and the
subject of rights guarantees. Next, a third category was listed: the control of children,
adolescents, families and professionals of the Network. Finally, since this is a
requirement for a professional master's degree, as a social technology, a pedagogical
material was created for the in-service training of the professionals of the protection
network who referred the children and adolescents to other professionals. As a
conclusion, it was pointed out that although there is no definition of what is family
conflict and regardless of an attempt to define it, not one single meaning would be able
to encompass such peculiar situations within the diverse family, cultural, and social
dynamics. In addition, the said developmental delay, the breach in family bonding, the
termination of the assurance of rights, although they may seem to return to the child the
guarantee of rights, they are mere ways of control and medicalization of family conflict.
In these referrals of families, there is a game of power of those who makes the referral
and those who are referred, struggles and resistances until the relations of violence take
place in a coercive or punitive manner. The Social Technology proposed comes as a
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new subtle way of control, differing from the direct way of referring the child and
adolescent to psychological evaluation, aiming at a technical opinion, and also having a
therapeutic nature; it tends to be a medicalization of the family conflict.
Keywords: Family Conflict; Medicalization; Child and adolescent protection network;
Representation of the subject
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LISTA DE ABREVIATURAS
CID – 10 – Código Internacional das Doenças
CFP – Conselho Federal de Psicologia
CRAS – Centro de Referência de Assistência Social
CREAS – Centro de Referência Especializado de Assistência Social
ESF - Estratégia de Saúde da Família
GEPEC – Grupo de Estudos Culturais
NAM – Núcleo de Atenção à Mulher e a Criança
NASF – Núcleo de Apoio à Saúde da Família
SUAS – Sistema Único de Assistência Social
SUS – Sistema Único de Saúde
UBS – Unidade de Saúde Básica
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO............................................................................................ 15
2 DESENVOLVIMENTO.............................................................................. 21
2.1 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA/FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA...... 21
2.1.1 O conflito familiar.................................................................................. 21
2.1.2 A medicalização...................................................................................... 29
2.1.3 A rede de proteção à criança e ao adolescente..................................... 32
2.1.4 A representação do sujeito…………………………………………… 35
2.2 MATERIAL E MÉTODOS…………………………………………….. 40
2.3 RESULTADOS E DISCUSSÃO.............................................................. 43
2.3.1 ESCARAFUNCHANDO OS ENCAMINHAMENTOS CLÍNICOS 43
2.3.1.1 Mapeando os profissionais e a rede de proteção do conflito
familiar.............................................................................................................
43
2.3.1.2 A representação do sujeito da Instituição Saúde caracterizado pelo
atraso do desenvolvimento.....................................................................
50
2.3.1.3 O sujeito da Assistência Social encaminhado para garantir seus
Direitos..............................................................................................................
55
2.3.1.4 O governamento das famílias e dos profissionais da rede por meio da
medicalização dos conflitos familiares............................................
59
2.3.1.5 A educação permanente dos profissionais da rede de proteção à
criança e ao adolescente como tecnologia social...........................................
67
3 CONCLUSÃO.............................................................................................. 71
REFERÊNCIAS............................................................................................... 75
APENDICE...................................................................................................... 85
ANEXO............................................................................................................. 103
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1 INTRODUÇÃO
A estagiária de Psicologia me procura e avisa-me que o Conselheiro Tutelar me
aguarda. Sinto arrepios. Recebo três requisições de serviço público. Nelas constam
“conflito familiar” [sic] e nada mais. O motorista do Conselheiro Tutelar abre a porta do
consultório como se estivesse em casa, na ânsia de me entregar o encaminhamento.
Mais uma criança encaminhada devido ao conflito familiar. Nas palavras do conselheiro
“a criança reside com a genitora e o padrasto, existe conflito instalado entre genitora e
genitor. A genitora menciona que cada vez que a criança vai visitar o genitor, retorna
bastante triste, talvez em virtude dos comentários realizados pelo genitor à criança”
[sic].
Encaminhamentos com esse padrão de queixa principal, como os acima citados,
fazem parte da minha rotina de trabalho. Todavia, antes de conversamos sobre isso,
desejo me apresentar, pois parafraseando Foucault (2002), um autor só existe quando sai
do anonimato.
Muito prazer! Sou Grazielle, psicóloga, especialista em psicologia clínica de
crianças e de adolescentes, psicopedagoga e psicoterapeuta, inserida nesse universo da
medicalização da infância e da adolescência há mais de 15 anos, sendo os 10 últimos no
contexto da saúde pública.
Costumo brincar que eu sou aquela profissional que medicaliza, pois faço
avaliações psicológicas de crianças e de adolescentes, que chegam até mim pela Rede
de Proteção à Criança e ao Adolescente. Realizo encaminhamentos para as
especialidades Psiquiatria, Neurologia, e Neuropediatra para avaliação de diagnóstico
diferencial, bem como para prescrição medicamentosa. Escrevo relatórios, laudos e
pareceres psicológicos que perpassam escolas, médicos, juízes e promotores, e afirmam
um diagnóstico, motivo que muito já me orgulhou pela qualidade deles, e elogios que
recebi na minha trajetória profissional. Além disso, sou também uma sujeita
medicalizada, pois faço acompanhamento sistemático com psiquiatra e psicóloga, para
tratar dos efeitos hormonais e colaterais da Tensão Pré-Menstrual, chamada
carinhosamente de Medicalização da TPM.
Com a minha inserção no mestrado profissionalizante, naquela fase de
reconhecer um tema significativo que contribuísse para alguma transformação social,
passei a perceber que muitas crianças e adolescentes estavam sendo encaminhados com
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a queixa de conflito familiar. Todavia, não há um critério claro que defina o que é
conflito familiar por esses profissionais da rede de proteção à criança e ao adolescente.
Percebo uma generalização no uso do termo.
Os conflitos familiares ainda não foram enquadrados nos manuais de psiquiatria
como uma psicopatologia, mas já estão sendo monitorados do ponto de vista do cuidado
à atenção clínica. As crianças e adolescentes encaminhados para a clínica psicológica
com a queixa de conflito familiar chegam com a solicitação de que se realize um
diagnóstico nosológico e psicopatológico, explicando as relações familiares conflitantes
por meio de uma doença psicopatológica. Porém, não é para a família ser avaliada, e
sim a criança ou o adolescente, pois são quem apresentam os sintomas. Na Psicologia
Clínica chamamos isso de bodes expiatórios das relações familiares conflitantes.
Corrêa (2010) nos recorda que as crianças que não fornecem uma resposta
esperada são tratadas como doentes. Entendo que a resposta esperada socialmente tanto
para as crianças quanto para os adolescentes relaciona-se a um comportamento calmo,
sem traços de agitação ou de ansiedade, atento, concentrado, obediente, disciplinado,
educado, extrovertido (e não introvertido, ou tímido) com desempenho satisfatório na
escola (boas notas), capaz de seguir regras e normas de conduta no espaço escolar,
doméstico e social. Para Corrêa (2010) a criança que apresenta sintomas psicológicos,
comportamentais e emocionais precisa ser contida por medicações. Algo bem
semelhante já ocorreu com os comportamentos desviantes, com a atenção, com o corpo,
com a sexualidade, com as dificuldades para aprender, com a TPM, com a timidez, que
são tratados como problemas médicos, e agora ocorre, de modo semelhante, com os
conflitos familiares.
Zorzanelli, Ortega e Bezerra Junior (2014) explicam que uma das possibilidades
de compreensão da medicalização implica em determinar um comportamento social
como um problema médico, descrevendo um processo pelo qual problemas não médicos
são definidos em termos e doenças ou transtornos. Gaudenzi e Ortega (2012) apontam
que a recusa do diagnóstico representa um processo de desmedicalização, um ato de
resistência inerente a qualquer relação de poder.
A pesquisa em questão acerca da medicalização dos conflitos familiares foi
inserida no campo dos Estudos Culturais, com aporte no Pós-Estruturalismo. Os
Estudos Culturais trata-se de um campo acadêmico e teórico sobre culturas. A cultura é
definida como um conjunto de crenças, valores, códigos, costumes que são produzidos e
compartilhados de forma coletiva, através da linguagem. As pesquisas neste campo de
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estudo iniciaram-se na Inglaterra em 1960, buscando compreender a relação entre
cultura, sociedade e mudança social.
A partir do tema medicalização dos conflitos familiares é possível perceber sua
inserção em aspectos substantivos e epistemológicos da cultura. Hall (2000) define
como aspecto substantivo o lugar empírico de materialidades na cultura, como na
organização das atividades, instituições, relações na sociedade, em qualquer momento
histórico particular. A seguir apresento algumas situações que compõem os aspectos
substantivos da cultura no que se refere à temática em questão.
Observando os vídeos sobre conflitos familiares do Canal YouTube, percebo que
há religiosos, psicólogos, pedagogos, advogados, filósofos, sociólogos, neurocientistas,
psicanalistas abordando o tema, e ensinando o que fazer para a resolução dos conflitos.
Noto que há uma ânsia social de se viver em paz e harmonia, tanto que o poder
judiciário por meio de uma técnica chamada Constelação Familiar tem utilizado esse
recurso para resolver situações familiares conflitantes, e tem conseguido realizar
conciliações em massa, reduzindo a morosidade dos processos.
As charges do Armandinho, personagem criado em 2009 por Alexandre Beck,
agrônomo, publicitário e ilustrador, pela primeira vez para homenagear as famílias dos
envolvidos com o gravíssimo acidente na Boate Kiss em Santa Maria (RS), e que
ganhou espaço na Rede Social Facebook com mais de 135 mil seguidores, com tirinhas
a respeito de pais, mães e filhos, aborda as questões familiares. Numa delas o pai diz à
Armandinho, “não existe receita de família, filho. Família pode ser de todo o tipo... com
todo o tipo de ingrediente”. Armandinho responde, “eu sei, mas estou falando dos
biscoitos da vovó”. No cinema o filme “Álbum de Família”, ano 2013, protagonizado
pelas atrizes Julia Roberts e Meryl Streep, aborda os conflitos familiares que foram por
muito tempo escondidos, e revigoraram após o suicídio do patriarca da família... no
filme chama-me atenção a frase “a família nos dá forças, a família nos consome”. Além
desses exemplos é possível destacar, também, comerciais de margarina que projetam
famílias perfeitas, felizes e sorridentes, reunidas à mesa. Compreendo que a noção de
família circula nesses espaços culturais, nos exemplos mencionados, seja modelando um
ideal de família, seja postulando o que não se adequa ao ideal, no intuito de adequar-se.
Porém, como afirma Mello (1992) nos últimos tempos houve importantes modificações
no modelo familiar considerado normal, tratando-se dos aspectos epistemológicos da
família, enquanto cultura.
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Por outro lado, em relação aos aspectos epistemológicos da cultura, segundo
Hall (1997), estes se referem às questões de conhecimento e conceitualização
envolvidas em determinados fenômenos, ou seja, como a cultura é utilizada na
compreensão, explicação e modelos teóricos. No caso do tema deste estudo, os aspectos
epistemológicos se referem às famílias que não seguem um padrão normativo de
estrutura familiar, que vem sido cada vez mais tratadas como doentes. As famílias que
apresentam comportamentos tidos como problemáticos são taxadas como
desorganizadas, e acabam sendo desqualificadas, e seus comportamentos são
compreendidos e traduzidos em transtornos. Analisando a relação entre cultura e
sociedade, Mello (1992) aponta que a família nuclear monogâmica com pai, mãe e
filhos, é um modelo ordenador, de representação da família ideal, uma família isenta de
conflitos. Para a autora, esse é um modelo interiorizado pelas pessoas, no qual há um
modelo estereotipado de afeto. Essa representação de perfeição de família mostra como
as famílias deveriam ser e não como realmente são, e isso não significa que os conflitos
não ocorram.
Outros modelos de família que fujam da norma são vistos com preconceito. Por
exemplo, Mello (1992) aponta que nos aglomerados familiares, mesmo havendo tantas
trocas, ajudas, colaborações, ainda há brigas. Segundo a autora, nas classes populares,
enfatiza-se a desorganização familiar acentuada, como a responsável pelo fracasso
moral de seus membros. Para Mello (1992) esse olhar estigmatizante ressalta os
conflitos, deixando de se importar com a qualidade das relações, desqualificando as
famílias das classes populares.
Percebo que há uma diferença no modo como se lida com filhos de famílias
oriundas de setores menos favorecidos da sociedade em relação as de setores mais
favorecidos. Em um condomínio de luxo na cidade que resido, muitas famílias foram
alertadas que as crianças e os adolescentes de diferentes idades estavam se envolvendo
em brincadeiras sexuais, e o assunto encerrou-se por ali. Pela experiência profissional
que tenho, se isso tivesse acontecido em algum bairro de periferia, teriam acionado o
Conselho Tutelar, assim como outras vezes já fizeram, e essas famílias seriam
notificadas por violação de direitos, e muitas dessas crianças seriam encaminhadas para
avaliação ou acompanhamento psicológico.
A cultura enquanto um sistema de representações e de significados opera nos
conflitos familiares regulando a conduta das famílias que não se encaixam nesse modelo
tido como ideal, ordenador e normativo. Ainda há um viés conservador e tradicionalista
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arraigado às famílias, e quem não se adequa a esse padrão é encaminhado para a
Psicologia e para a Medicina, aos tratamentos baseados no modelo biomédico, para
submeter-se ao diagnóstico e ao tratamento. Assim, acaba por existir um tipo específico
de sujeito, o sujeito medicalizado. Do mesmo modo, isso ocorre com as famílias,
transformadas em famílias medicalizadas, reguladas nessa cultura, e isso influencia na
representação social das mesmas, como afirma Hall (2000), afetando as identidades e as
subjetividades das pessoas enquanto atores sociais. Para o autor, essa homogeneização
cultural acaba com as particularidades e diferenças locais, que causam impacto no viver.
A partir do exposto, a seguinte questão de pesquisa foi elaborada: como os
profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente do município de
Penha/SC acionam representações de sujeitos a partir dos encaminhamentos realizados
para a clínica psicológica do município tendo como justificativa a queixa de conflito
familiar?
O referencial de análise teórica que norteou esse estudo ancorou-se no conceito
de sujeito e os processos de subjetivação elaborados por Michel Foucault. A discussão
acerca desses conceitos está situada mais adiante nesta dissertação. Por ora, cabe
destacar que Williams (2013) afirma que Michel Foucault e outros pós-estruturalistas
penetraram nos estudos culturais, transformando-se num poderoso referencial teórico
para a análise da sociedade, cultura e economia, vistas como sistemas de significação. O
pós-estruturalismo, conforme Peters (2000), começou na França no início dos anos 60,
inspirados nos trabalhos de Friedrich Nietzsche e Martin Heidegger. Para Peters (2000,
p. 28), o pós-estruturalismo é um movimento de pensamento interdisciplinar, por ter
variadas correntes filosóficas, caracterizado por um “modo de pensamento, um estilo de
filosofar e uma forma de escrita”.
Peters (2000) ressalta que os pensadores pós-estruturalistas desenvolveram
formas de análise para à crítica de instituições, dentre elas, as escolas, as famílias, a
clínica, o Estado... Consoante Peters (2000, p. 36) o pós-estruturalismo critica a
pretensão da universalidade, cuja ênfase tende a excluir grupos sociais e culturais que
agem de acordo com critérios sociais diferentes. Para tanto, Mello (1992) aponta que o
pesquisador traz um modelo para o que ele pretende observar. Porém, como não há
famílias isentas de conflitos, quebrar o conceito de normalidade é necessário, pois como
afirma a autora “quando o pesquisador se liberta do modelo, liberta-se do preconceito,
vê as famílias como elas são, não como deveriam ser” (MELLO, 1992, p. 127). Tal
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exercício é realizado diariamente por mim enquanto psicóloga clínica, e com certeza,
como pesquisadora foi reforçado.
Desse modo e a partir do exposto, organizei o seguinte objetivo geral de
pesquisa: Compreender como os profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao
Adolescente do município de Penha/SC acionam representações de sujeitos a partir dos
encaminhamentos realizados para a clínica psicológica do município tendo como
justificativa a queixa de conflito familiar.
Na continuidade do objetivo geral, elenquei os seguintes objetivos específicos de
pesquisa: Mapear a Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente; Descrever os
profissionais e as instituições que realizam os encaminhamentos; Identificar a
concepção de conflito familiar pelos profissionais que encaminham; Relacionar os
processos de encaminhamento às tendências de medicalização da sociedade
contemporânea; Construir material pedagógico para a formação continuada de
profissionais que fazem parte da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente acerca
dos encaminhamentos que compõe o conflito familiar.
O texto segue abarcando a seguinte estrutura: um incurso pela revisão da
literatura sobre os temas centrais e abordagem de conceitos de fundamentação teórica;
os aspectos metodológicos que guiaram a pesquisa; discussão do material empírico
produzido e, por fim, as conclusões gerais do trabalho.
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2 DESENVOLVIMENTO
2.1 REVISÃO BIBLIOGRÁFICA/FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1.1 O conflito familiar
Fonte: Google Imagens
A foto da Cinderela e do Príncipe Encantado é provocativa. Todos os contos de
fadas da Disney encerram-se com o famoso “e foram felizes para sempre” (aspas
minhas). Este ideal de relacionamento do mundo da fantasia é muitas vezes mantido e
almejado na vida real. No entanto, diferentemente da fantasia, no mundo real os
desenhos não abordam o que ocorre quando o casal vai morar junto no castelo, quando
a princesa engravida, quando há pilhas de boletos para pagar, quando a rainha se
intromete na vida deles e na educação dos filhos, quando o marido passa o sábado no
bar e volta para casa bêbado, quando brigam, quando discutem sobre os filhos, quando
se separam, quando começam a vivenciar os “conflitos familiares”.
Para uma primeira aproximação ao termo “conflitos familiares”, desmembrarei a
composição destas palavras. Consoante Ferreira (2017) “conflito” como um substantivo
masculino significa guerra, luta armada entre países, enfrentamento, divergência,
oposição de interesses e de opiniões. De acordo com o dicionário nos diferentes estados
de saberes, na altercação, significa discussão intensa e oposição recíproca entre as partes
que disputam o mesmo direito (FERREIRA, 2017). Já na ciência psicológica, seguindo
as definições do mesmo dicionário, conceitua-se conflito como condição mental de
quem apresenta perturbação ou insegurança. No Teatro é visto como o elemento inicial
da narrativa. Por fim, na Literatura como oposição, choque de interesses, normalmente
entre o personagem principal, o ambiente externo ou a si mesmo (FERREIRA, 2017).
Ferreira (2017) apresenta como sinônimos de conflito: perturbação, tumulto,
revolta, motim, agitação, divergência, guerra, alvoroço, espalhafato e enfrentamento. O
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dicionário Michaelis (2008, p. 213) é mais sucinto nas definições, conceituando como
“1 Luta, combate. 2 Barulho, desordem, tumulto. 3 Momento crítico”.
Ao buscar conhecer a origem da palavra conflito e sua etimologia, segundo o
site a “Origem da Palavra” (2017, pergunta 165), situo-me com o fato de que esta vem
do latim – conflictus [sic], particípio passado de confligere, “bater junto, estar em
desavença” (aspas do autor). Tais acepções indicam que o conflito está associado à luta,
denotando até mesmo uma ação corporal agressiva, que visa atingir o outro, num estado
de ataque. Fonseca (2004, p. 20) explica que a violência, a agressividade, é uma “arma
mais ou menos aceita para a resolução de conflitos e, nesse sentido, podemos dizer que
a força física é um elemento importante”. Desse modo, essa conotação bélica faz muito
sentido nos tempos atuais, em que os conflitos por territórios, bens materiais, e entre
pessoas são tão vigentes, aonde verdadeiras guerras físicas e psicológicas são traçadas a
ferro e fogo.
No que se acena à família, complemento do termo “conflito” deste estudo,
Michaelis (2008, p. 385) indica que se trata de “1 Pessoas do mesmo sangue, que vivem
ou não em comum. 2 Conjunto de ascendentes, descendentes, colaterais e afins de uma
linhagem. 3 O pai, a mãe e os filhos”. De outro modo a palavra família é definida por
Ferreira (2017, p. 243) de um modo mais extenso, como:
1 Conjunto de parentes de uma pessoa, e principalmente, dos que
moram com ela; 2 Conjunto de formado pelos pais e pelos filhos; 3
Conjunto formado por duas pessoas ligadas pelo casamento e pelos
seus eventuais descendentes; 4
Conjunto de pessoas que têm um ancestral comum; 5 Conjunto de
pessoas que vivem na mesma casa; 6 Raça e estirpe; 7 Conjunto de
vocábulos que têm a mesma raiz ou o mesmo radical; 8 Grupo de
animais, de vegetais, de minerais que têm caracteres comuns; 9 Grupo
de elementos químicos com propriedades semelhantes; 10 De família:
familiar; íntimo; sem cerimônia. 11 Família miúda: filhos pequenos.
12 Sagrada família: representação de Jesus com a Virgem Maria e
José.
Piris (2007) assinala que a palavra família é derivada do latim familiae [sic]
entendido como escravo doméstico. Conforme o autor, o termo surgiu na Roma Antiga,
para nomear um grupo social que nasceu nas tribos quando essas pessoas foram
introduzidas à agricultura. A “Origem da Palavra” (2017) traz como etimologia da
palavra família, grupo doméstico, que incluía os servos da casa, chamados de famuli.
Acerca da acepção da palavra, compreendo que tratava-se de pessoas que estavam às
23
ordens ou à disposição, o que implicava numa relação de hierarquia estabelecida. Sarti
(2007) aponta sobre o padrão tradicional de autoridade e de hierarquia, presentes nas
obrigações morais, e no modo de pais e filhos se relacionarem.
Trazendo um pouco da história da família, Alves (2014) explica que na Grécia a
família era monogâmica, com a figura do homem dominante sobre a mulher, que tinha
como procriar seu único papel na sociedade. O autor explica que os filhos eram bens do
homem, e que somente ele poderia romper com o matrimônio, caracterizando o poder
paterno, no qual estão todos submetidos às vontades do paterfamilia. Conforme Alves
(2014) em Roma o paterfamilia era um poder absoluto do homem sobre a esposa e seus
filhos e filhas. Segundo o autor, o pater seria um chefe político e juiz do lar,
concomitantemente. A esposa passava por uma única transição de filha à mulher, sem
autonomia, não possuindo direitos próprios perpetuamente. Alves (2014) ainda
complementa dizendo que todos os membros estavam sob a jurisdição do pater, cujo
poder sempre centralizava-se no primogênito ou em outro homem inserido nesta
família.
De acordo com Ariés (1981) a vida em família até o século XVII era pública,
pois tudo acontecia num movimento de uma vida coletiva, e as famílias conjugais se
misturavam nesse meio. Conforme o autor, a partir do século XVIII lentas
transformações deram início no interior das famílias, surgindo um “sentimento de
família” [sic], marcado pelo desejo da privacidade. Segundo Moreira e Vasconcelos
(2003), citados por Andrade (2010, p. 49) começaram inclusive a surgir mudanças no
espaço físico no qual as famílias viviam, assim “a família começou a se manter à
distância da sociedade. Emergiram as noções de intimidade, discrição e isolamento, ao
se separar a vida mundana, a vida privada, cada uma circunscrita a espaços distintos”.
Para Andrade (2010) nesse movimento instaura-se a família burguesa.
Andrade (2010, p. 50) afirma que o modelo de família burguesa provoca
alterações no contexto familiar, como por exemplo, na divisão e na diferenciação dos
papeis sexuais. De acordo com a autora, neste novo contexto “o homem passa a ser
visto como provedor, devendo, portanto, fazer parte do mundo público, e a mulher,
responsável pela casa e educação dos filhos, fazendo parte do mundo privado”. Ainda,
segundo Andrade (2010) com a burguesia surgiu um novo sentido de família,
apresentando o modelo nuclear, trazendo também um novo sentimento de infância, que
coloca a criança numa relação diferenciada do adulto. Para a autora, a família precisava
24
manter as relações sociais e produtivas do modelo capitalista, garantindo aos seus
membros a sobrevivência física, social e psicológica.
O poder centrado no pai de família com o passar dos anos perdeu seu
encantamento. Alves (2014) explica que esse enfraquecimento ocorreu na Idade Média,
caracterizado pelo Teocentrismo, devido as influências da religião. Conforme o autor, a
família tornou-se uma instituição divina, e para que nem homens e mulheres vivessem
no pecado, ordenou o casamento como forma de solução, ditando que somente a morte
poderia dissolver a união.
Conforme Alves (2014) a Constituição Federal de 1988 e o Código Civil de
2002, desvincularam a família do matrimônio, exaltando a socioafetividade,
descaracterizando o modelo clássico de pai, de mãe e de filhos. Conforme Diniz (2002,
p 11) uma família monoparental é desvinculada da ideia de um casal com seus filhos,
pois “estes vivem apenas com um dos seus genitores, em razão de viuvez, separação
judicial, divórcio, adoção unilateral, não reconhecimento de sua filiação pelo outro
genitor, produção independente”.
Alves (2014) ainda aborda as famílias homoafetivas, bem como as poliafetivas.
Relata que as famílias homoafetivas são formadas por pessoas do mesmo sexo, que
mantem laços afetivos entre si. Cita uma decisão de 2011 do Supremo Tribunal Federal
que considera a União Homoafetiva como entidade familiar. Quanto às famílias
poliafetivas, refere que se trata de uma configuração familiar composta por três ou mais
pessoas, independente do sexo das mesmas. Cita uma jurisprudência de 2012, na qual
três pessoas oficializaram uma união, garantindo o direito da constituição familiar
(ALVES, 2014). Ainda, o autor Travis (2003) aborda a respeito das famílias dos
recasamentos. Trata-se da tentativa de repetição do casamento, quando um dos novos
cônjuges já foi casado, e se casa outra vez.
Outros modelos de família que fujam da norma são vistos com preconceito. Por
exemplo, Mello (1992) aponta que nos aglomerados familiares, mesmo havendo tantas
trocas, ajudas, colaborações, ainda há brigas. Segundo a autora, nas classes populares,
enfatiza-se a desorganização familiar acentuada, como a responsável pelo fracasso
moral de seus membros. Para Mello (1992) esse olhar estigmatizante ressalta os
conflitos, deixando de se importar com a qualidade das relações, desqualificando as
famílias das classes populares, tal como refere Fonseca (2004, p. 30), que ressalta que
“a cultura da pobreza explica tudo”. Sarti (2007) complementa dizendo que
culturalmente a família é vista como um lugar onde se combinam e se socializam os
25
efeitos da pobreza. Para a pesquisadora, o pobre é avaliado como bom pobre ou mau
pobre, e há uma concepção que relaciona a pobreza como um mal social, promulgador
da violência, degradação moral e promiscuidade.
Observando os temas pesquisados compreendo que em se tratando de conflito
familiar, a maioria dos estudos se dá na área da saúde, bem como, na área de humanas,
principalmente, na Psicologia, Psiquiatria, Psicanálise, e em outras áreas, no Direito e
Ciências Políticas. Todavia são temas abrangentes que enfocam o relacionamento
conjugal, do casal com seus filhos e filhas, na saúde mental, na psiquiatria forense, e nas
diversas instâncias relacionadas ao Direito (adoção, separação, divorcio, custódia e
guarda da criança).
Não há em nenhum dicionário uma definição clara e objetiva do que se define
por conflito familiar, e caso houvesse, seria uma tentativa de fixar sentidos e
significados para dinâmicas culturais tão diversas e díspares tais como a que temos
conhecimento. Consultando dicionários específicos de Direito e de Psicologia, percebo
que também não há uma definição epistemológica. Porém, os conflitos familiares têm
sido objetos de estudo de advogados, psicólogos, assistentes sociais, juízes, promotores,
conselheiros tutelares, dentre outros profissionais. A Pontifica Universidade Católica de
Minas Gerais oferece um curso de extensão de 48 horas sobre o assunto, ensinando
“tudo” (aspas minhas) sobre o conflito familiar.
Do ponto de vista do Direito, os advogados Souza, Peres, Carvalho e Cabral
(2017) explicam que os conflitos são inerentes às relações humanas. Segundo os
autores, atualmente um desajuste emocional instalou-se nas famílias, devido a
separação, partilha de bens, conflitos de diferença, e desentendimentos entre pais e
filhos. Explicam que como as famílias estão num processo dinâmico, os conflitos
surgem quando há oposição de interesses. Muller, Cruz e Beiras (2007) identificam
conflitos familiares em casos de questões patrimoniais, separações, disputa de guarda, e
investigações de paternidade.
Muller, Cruz e Beiras (2007) afirmam que a complexidade dos tipos de famílias
enseja situações que demandam estudos de diversos profissionais. Para os autores, os
operadores do Direito, não desenvolveram competências para lidar com os aspectos
psicológicos gerados pelos conflitos. Eu como psicóloga também assinalo que não cabe
aos profissionais desenvolver. Os autores citados acreditam que é a esfera psicológica
que acarreta e sustenta o conflito. Por isso, faz parte da conduta dos operadores
encaminharem os conflitantes para a Psicologia Clínica.
26
Em se tratando da Psicologia Clínica, Fonseca (2004) salienta que há um
argumento em que afirma que pessoas criadas em famílias tidas como desorganizadas,
reproduzem comportamentos disfuncionais, aprendidos com os próprios pais e mães.
Numa linguagem mais corriqueira, trata-se daquele famoso ditado popular, “filho de
peixe, peixinho é” (aspas minhas). Segundo Fonseca (2004) o olhar da Psicologia volta-
se para a patologia e para a inadaptação, no qual qualquer desvio da norma é visto como
implicitamente problemático.
Para Teodoro, Cardoso e Freitas (2010), ainda do ponto de vista da Psicologia
Clínica, o conflito familiar é caracterizado como uma gama de sentimentos que pode
gerar estresse e agressividade dentro do sistema familiar. Teodoro, Cardoso e Freitas
(2010) apontam que o sistema familiar é reconhecido como de fundamental importância
para a socialização e formação da identidade da criança. Os autores pontuam que a
interação entre os familiares vem sendo estudada, considerando que famílias de
relacionamento adequado são fatores de proteção para alguma psicopatologia infantil.
Fonseca (2004) complementa dizendo que há um modelo de comportamento certo, bem
como um modelo ideal de família que norteia. Para a autora, a família tem forças,
justamente porque no espaço privado ocorrem as fontes de organização da cultura.
Rohenkohl e Castro (2012) afirmam que as famílias transmitem crenças, ideias e
conceitos, e influenciam o comportamento das crianças. Realizaram um estudo a
respeito do nível de afetividade, conflito familiar e problemas de comportamento,
revelando que quanto maior o conflito entre pais e filhos, maiores os problemas de
comportamento infantil (ROHENKOHL e CASTRO, 2012).
E abordando o viés social, Sarti (2007) esclarece que a família como uma esfera
social tem uma dinâmica própria, e não apenas reproduz os mecanismos da sociedade.
Para a autora, “a família não é apenas o elo afetivo mais forte dos pobres, é o núcleo de
sua sobrevivência material e espiritual” (p.68). Patterson, Reid e Dishion (1992) citados
por Rohenkohl e Castro (2012), abordam, do ponto de vista social, que desajustamento
do casal, problemas sociais, desvantagens sociais dos pais, conflitos entre vizinhos,
relacionamento entre pais e filhos como possíveis conflitos.
Consoante Rohenkohl e Castro (2012) o conflito é caracterizado por emoções
negativas no âmbito familiar. Além disso, abordam o nível socioeconômico e o contexto
social e cultural das famílias. Para os autores, por exemplo, quando se fala em famílias
de baixa renda, deve-se considerar suas condições de vida e como isso influencia nas
interações entre seus membros. As mesmas pontuam sobre a cultura social e pessoal que
27
influencia as práticas educativas dos filhos. Sarti (2007) afirma que na família estrutura-
se o mundo simbólico dos indivíduos, e que se estabelecem padrões de relacionamento
que vão se reproduzir na vida social.
Realizando uma consulta no Bireme em 13 de fevereiro de 2018, constato que
não há artigos ou pesquisas que relacionem a rede de proteção à criança e ao
adolescente aos conflitos familiares. Todavia, pesquisando no Google Notícias em 31 de
janeiro de 2018, não fico surpresa quando em vários lugares do país, os conflitos
familiares lideram o ranking em primeiro lugar, do número de ocorrências nos
Conselhos Tutelares. Por exemplo, a Vara da Infância e da Juventude do Distrito
Federal, no ano de 2013, dispôs de uma cartilha de – Violação dos Direitos das Crianças
e dos Adolescentes, que elenca como ameaça ou violação de direito: o abandono
material, os conflitos familiares, a negligência e as violências (sexual, física e
psicológica). Nessa cartilha, ainda definem como rede de proteção, qualquer serviço que
preste atendimento à criança ou ao adolescente, tais como, entidades de acolhimento,
escolas, creches, conselho tutelar, delegacias, hospitais, centros de saúde, órgãos do
Ministério Público e Poder Judiciário.
Howe (1992) aponta que as famílias são objetos de inquérito de psicólogos,
assistentes sociais, promotores e juízes que compõe a rede protetiva à criança e ao
adolescente. Segundo o autor, os profissionais da rede atuam como investigadores e não
como colaboradores para a resolução dos conflitos familiares. Sarti (2007) refere que a
pobreza ainda é considerada como uma ausência de direitos. Para a autora, essa
obsessão por diagnósticos das famílias está preocupada em medir e avaliar se o pobre é
alienado ou consciente.
Falando sobre os conflitos familiares, a American Psychiatric Association
(2017) não os trata como um transtorno mental. Todavia, trata como outras condições
que podem ser foco na atenção clínica. Não há nada dito sobre os conflitos, porém há
uma categoria que aborda os problemas de relacionamento entre os adultos íntimos e os
pais, cuidadores e filhos. Consoante a American Psychiatric Association (2017) os
problemas de relacionamento são objetos na atenção clínica porque as pessoas procuram
atendimento quando isso se torna uma dificuldade. No livro organizado pela associação
citada, DSM 5, há uma categoria geral que se chama – Problemas Relacionados à
Educação Familiar, na qual se enquadram os problemas de relacionamento entre pais e
filhos, os problemas de relacionamento entre os irmãos, a educação longe dos pais, e
28
por fim, quando a criança é afetada por sofrimento na relação dos pais (AMERICAN
PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2017).
Ainda, segundo a American Psychiatric Association (2017) nesta mesma linha
de foco na atenção clínica, há a categoria - Outros Problemas Relacionados ao Grupo de
Apoio Primário. Aqui encontram-se o sofrimento na relação com o cônjuge, a ruptura
familiar pela separação ou divórcio, o nível de expressão emocional, e o luto sem
complicações (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2017).
Outro importante manual é o Compêndio de Psiquiatria (KAPLAN, 1997),
utilizado para a realização de diagnósticos, prognósticos e comorbidades em psiquiatria
e psicologia. No índice remissivo nada consta sobre o conflito familiar, quando
procurado especificamente pelo termo, bem como sobre relações familiares conflituosas
ou crise familiar.
Aqui retornamos a American Psychiatric Association (2017) falando sobre
outras condições que podem ser foco na atenção clínica, como por exemplo, os
problemas de moradia e econômicos. Numa subcategoria encontra-se o
desentendimento com vizinhos e baixa renda.
Ainda, a American Psychiatric Association (2017) aborda as questões da ordem
do ambiente social, englobando os problemas relacionados à fase adulta, ao morar
sozinho, ao não se adaptar a uma nova cultura, e a exclusão ou rejeição social. Nos
problemas relacionados à fase da vida, encontram-se o “ingresso ou formatura escolar,
término do controle dos pais, casamento, início de uma nova carreira, paternidade,
maternidade, adaptação ao ninho vazio após a saída de casa, ou aposentadoria”
(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 2017, p. 724).
Compreendo que como não há claramente definido o que é conflito familiar,
qualquer dificuldade na vida, nas relações interpessoais, além dos clássicos, como por
exemplo, separação, comprovação de paternidade, partilha de bens, disputa de guarda,
pensão alimentícia, relacionamento entre pais e filhos, acordo de visitas, são encaixados
como se fossem. Talvez por causa disso, a Disney quis esconder o que ocorre realmente
nos relacionamentos familiares, já que quaisquer contratempos podem ser identificados
como conflitos, e isso assustaria muito as pessoas, e acabaria com o término fantasioso
do “e foram felizes para sempre” (aspas minhas).
29
2.1.2 A medicalização
Fonte: Pinterest
“Aqui filho! Comprei para você tomar... Oba! O que é? Rumo na vida” (aspas
minhas). O que parece um pacífico meme da internet e causa graça, vem trazendo
sentido às nossas vidas e ganhando importância por tratar dilemas, problemas pessoais
de um modo medicalizado, como se os remédios que entram pela boca dessem conta do
recado, e os diagnósticos patológicos trouxessem alívio. Inicialmente, esse jeito de
medicalizar a vida foi muito utilizado para os pacientes conhecidos como doentes
mentais, devido as suas incapacidades intelectuais, relacionais, e afetivas, estendendo-se
posteriormente a quem não desse conta de tomar rumo na vida, ou seja, não fosse capaz
de administrá-la dentro do que se espera socialmente. Nesse processo os problemas
nossos de cada dia foram sendo compreendidos e compilados por transtornos médicos,
psiquiátricos ou de comportamento, e a medicalização tornou-se prescrição terapêutica
para encontrar a cura, e a vida voltar ao normal.
Corrêa (2010) nos informa que essa lógica da medicalização domina os olhos
dos profissionais da saúde e da educação. Consoante Zorzanelli, Ortega e Bezerra Júnior
(2014), a partir da década de 90 a medicalização se fortaleceu também por fatores não
médicos. A classificação das doenças, transtornos e síndromes são feitas de acordo com
os critérios médicos. Todavia, conforme Corrêa (2010) há um discurso de proteção e de
cuidado da infância, que configura numa crescente patologização, seguindo o mesmo
itinerário terapêutico do adulto. Esses sujeitos são encaminhados para a clínica
psicológica ou médica para uma avaliação que deve identificar algum transtorno,
enquadrá-lo num diagnóstico, que culmine no uso de uma “camisa de força químico
social” (CORRÊA, 2010, p. 02).
30
Segundo Gaudenzi e Ortega (2012) o termo medicalização surgiu no final da
década de 1960, para indicar que os modos de vida do homem estavam se tornando
médicos. Conforme os autores no século XVIII os profissionais da saúde e educadores,
tornaram-se especialistas, intervindo na intimidade das pessoas. Assim, a Medicina
passou a estabelecer um controle sobre o corpo individual e coletivo, possibilitando o
exercício do poder sobre a vida.
Zorzanelli, Ortega e Bezerra Junior (2014) definem a medicalização como um
processo no qual problemas não médicos passam a ser tratados como se fossem
entendidos como transtornos ou doenças. Para os autores qualquer grupo que utilize a
linguagem médica representa uma força medicalizante. Foucault (2010) afirma que a
saúde se converteu num objeto de intervenção médica ao longo dos séculos XVIII e
XIX. Conforme o autor, a Medicina possui um poder autoritário com funções
normalizadoras. Para ele a sociedade é regida pela distinção do que é normal ou
patológico, a fim de restabelecer a normalidade. Nesse processo de normatização a
autoridade médica é uma autoridade social.
Zorzanelli, Ortega e Bezerra Junior (2014) explicam que o termo
medicalização visa definir como transtornos médicos os comportamentos que são
considerados transgressivos e desviantes. O foco inicial foi para os desvios, que
incluíam o alcoolismo, a homossexualidade, a delinquência, os problemas sexuais, as
dificuldades de aprendizagem, a falta de atenção... Todavia, Gaudenzi e Ortega (2012)
salientam que processos comuns da vida, como menopausa, menstruação, morte,
envelhecimento, estão sendo apropriados pela Medicina.
Corrêa (2010) enfatiza que o fato é que o conhecimento médico exerce uma
força tamanha, sendo transformado em uma verdade que não permite questionamentos,
que normatiza e regula nossas relações. Por isso, as crianças e os adolescentes que se
diferenciam dos ditos normais, necessitam ser controlados por psicotrópicos, para que
sejam contidos, e isso deve ser incontestável, pois quem medica é o médico.
Gaudenzi e Ortega (2012) citando Ivan Illich (1975) explicam que a
medicalização da vida foi o resultado da industrialização, que profissionalizou e
burocratizou a medicina. Foucault (2010) elucida que a Medicina é intermediária entre a
indústria farmacêutica e a demanda do cliente. Para o autor é necessário compreender os
vínculos entre a economia, o poder e a sociedade, para entender a medicalização.
Partindo das leituras a respeito de Foucault compreendo que o corpo do sujeito se
converteu num objeto de intervenção do Estado. Nos seus estudos a respeito da
31
Medicalização, Foucault (1979) aborda o nascimento da biopolítica, esclarecendo que o
Estado atua na contenção, no controle, e no registro das doenças. Como se o cuidado
com o corpo assegurasse ao sujeito o status de cidadão. Porém, fala como isso é
imposto, independente das pessoas estarem doentes ou não.
Ainda, consoante Zorzanelli, Ortega e Bezerra Júnior (2014, p. 1865), a
capacidade dos sujeitos se mobilizarem, a transformação do paciente em consumidor
ativo que busca diagnósticos, mostra que muitas vezes é “menos o imperialismo
médico, e mais a posição do paciente como consumidor, em busca de legitimar, pela
figura do médico, os sintomas que experiencia [...]”.
Para Gaudenzi e Ortega (2012) a medicalização causa uma série de iatrogêneses:
a clínica que se refere as consequências dos próprios cuidados em saúde; a social que se
trata de um sinônimo da medicalização, e dos efeitos sociais causados; ainda, aborda a
invasão farmacêutica, no qual o corpo é submetido a regulação do medicamento, e
torna-se paciente, o que causa uma dependência das pessoas quanto às prescrições
médicas. Os autores abordam o controle social pelo diagnóstico, resultante da
medicalização das categorias sociais, da etiquetagem das diferentes idades da vida
humana. Por fim, a iatrogênese cultural que transforma o sofrimento e a dor num
problema técnico. Para eles trata-se da produção de uma cultura medicalizada.
Quanto aos tipos de documentos relacionados à Medicalização, segundo o
Bireme, predominam-se artigos e teses. Quanto ao tipo de estudo, prevalecem os
estudos de caso, e na sequência encontram-se as avaliações de tecnologias de saúde, os
ensaios clínicos controlados, e os estudos de corte. Há 61 estudos direcionados às
crianças, 42 relacionados aos adolescentes. E quando digitado o termo medicalização da
família, aparecem 88 textos, associados à atenção primaria à saúde, à estratégia de saúde
da família, à saúde da família, ao uso de medicações, às relações profissionais e
famílias, e às relações familiares. Percebo que a medicalização dos conflitos familiares
ainda é um estudo inédito, e que a maioria dos estudos se referem à saúde pública.
A medicalização da vida está sendo inerente a todas as etapas do
desenvolvimento humano, da infância à velhice. Por exemplo, o Ministério da Saúde
avalia a possibilidade de realizar de forma obrigatória uma avaliação psicológica em
mulheres gestantes a fim de detectar a depressão pós-parto e as dificuldades que possam
surgir na relação mãe-bebê. Quanto à infância, no presente estudo tem se revelado que a
Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente tem mobilizado um número significativo
de pacientes com a queixa de conflito familiar, cabendo a Psicologia, como um suporte
32
qualificado à rede, acolher essa criança ou adolescente, diagnosticá-lo, e tratá-lo, a fim
de resolver seu conflito. Como cita Ferreira (2010), a avaliação complementar desta
criança ou adolescente precisa ser feita pelos profissionais do serviço de saúde, visando
a atenção integral como forma de garantia de direitos. Zilda Arns já dizia “as crianças
quando bem cuidadas, são uma semente de paz e esperança”. Entenderemos como
funciona a rede protetiva e quais são os objetivos da mesma a seguir.
2.1.3 A rede de proteção à criança e ao adolescente
Em março de 2008 nós brasileiros ficamos atônitos quando os noticiários
relataram o assassinato de uma menina chamada Isabella Nardoni, pelo seu próprio pai e
pela madrasta, que até hoje negam a autoria do crime. Segundo os noticiários, a menina
foi arremessada pela rede de proteção do seu quarto. No apartamento localizaram a
tesoura usada para cortar a rede. Os jornalistas diziam que o caso Nardoni vinha de uma
história de desagregação familiar e muitos conflitos, mas que a motivação maior foi
ciúmes. Relatos dos jornais televisivos na época diziam que os vizinhos presenciavam
brigas e discussões frequentes, que o pai de Isabela já havia ameaçado sua ex-esposa de
morte devido as pensões em atrasos. O mais triste desta história, e que não é só
simbólica, é que a rede de proteção à criança foi cortada.
A Constituição Federal Brasileira de 1988 reconhece as crianças e os
adolescentes como sujeitos de Direito. Com o Estatuto da Criança e do Adolescente –
ECA (1990) definiu-se que:
“É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder
público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos
referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao
lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária.” (Art. 4º)
O ECA (1990) deliberou uma política de atendimento dos direitos da criança e
do adolescente por meio de um contíguo articulado de ações governamentais e não
governamentais. Desta forma, objetivou romper com as práticas assistencialistas, dando
origem ao Sistema de Garantia de Direitos. Tal sistema é formado por três eixos:
promoção, defesa e controle. De acordo com o Conselho Nacional das Crianças e dos
33
Adolescentes – CONANDA (2006), o eixo promoção é constituído por órgãos
governamentais e não-governamentais, que formulam e implementam as políticas
públicas para as crianças e os adolescentes. Segundo Aquino (2004), trabalham
coletivamente os órgãos que executam as políticas públicas nas áreas da educação,
saúde, assistência social; os conselhos paritários de deliberação sobre as diretrizes
dessas políticas, as entidades públicas e privadas e os Conselhos de Direitos, dentre
outros.
Já o eixo defesa, contemplado pelo Poder Judiciário, Ministério Público,
Conselhos Tutelares, Secretarias, segundo o CONANDA (2006), tem a obrigação de
certificar o cumprimento e a exigibilidade dos direitos estabelecidos na legislação,
responsabilizando de maneira judicial, administrativa ou social às famílias, ao poder
público e ou à própria sociedade pela violação. Por fim, o eixo do controle, composto
pela sociedade civil e outras instâncias não governamentais.
Falando da minha realidade, as ações dos Poderes Judiciário, Ministério
Público e Conselho Tutelar, órgãos de defesa para a garantia de direitos, ou seja,
garantia de que a criança ou adolescente receberá acompanhamento psicológico na rede
pública (no meu caso, no centro de especialidades do munícipio em que eu atuo),
chegam à Secretaria de Saúde, por meio de encaminhamentos, solicitações e intimações,
com um prazo restrito de normalmente 15 dias para agendamento. Casos assim, acabam
ganhando prioridade, tanto que essas crianças e ou adolescentes não aguardam na fila de
espera, não tendo este seu direito à saúde violado, acessando brevemente o serviço.
De acordo com Brasília (2013, p. 01), a violação de direitos é “toda e qualquer
situação que ameace ou viole os direitos da criança ou do adolescente, em decorrência
da ação ou omissão dos pais ou responsáveis, da sociedade ou do Estado, ou até mesmo
em face do seu próprio comportamento”. Conforme Brasília (2013, p. 02), “abandono,
negligência, conflitos familiares, convivência com pessoas que fazem uso abusivo de
álcool e outras drogas, além de todas as formas de violência (física, sexual e
psicológica), configuram violação de direitos infanto-juvenis”.
A rede compreende uma atuação integrada e interssetorial que envolve todas as
instituições que atuam na atenção à criança e ao adolescente (RIZZINI ET AL., 2004).
Sendo assim, segundo a Cartilha de Violação de Direitos de Brasília (2013) compõem a
rede protetiva todos os serviços que prestam atendimento à criança ou o adolescente,
dentre eles, as entidades de acolhimento (abrigos, casas de passagem, repúblicas),
creches, conselhos tutelares, escolas, delegacias locais, hospitais, centros de saúde,
34
órgãos do Judiciário, Ministério Público, serviços que atendam a clientela infanto-
juvenil, ou qualquer cidadão, ou pessoa de direito.
Becker, Souza, Oliveira e Paraguay (2014) assinalam que essas instituições
devem agir de forma integral para atender às crianças e adolescentes que estão em
situação de risco pessoal. Conforme os autores, uma rede de proteção é eficaz quando
proporciona para a criança ou adolescente, um crescimento livre de riscos sociais e de
violência.
Lorencini, Ferrari e Garcia (2002, p. 298) definem rede como “um espaço de
formação de parcerias, cooperações e articulações dos sujeitos institucionais”. Para
Ferreira (2010) o trabalho em rede favorece uma visão ampliada das situações, permite
o planejamento de ações integradas, bem como, de responsabilidades. Conforme a
autora para o trabalho efetivo da rede são consideradas como características básicas:
“flexibilidade, diversidade, horizontalidade, multiliderança, corresponsabilidade,
compartilhamento, autonomia e sustentabilidade” (2010, p. 204).
Aquino (2004) explica que as redes de proteção objetivam o atendimento
integral à criança e ao adolescente. Conforme o autor, a perspectiva de rede exprime a
trama de conexões entre os órgãos e instituições que devem proteger a criança e ao
adolescente.
Moreira, Muller e Da Cruz (2012) apontam que a rede envolve uma construção
coletiva de ações, que abrangem a recepção e o encaminhamento dos ditos casos, por
todos os profissionais envolvidos no atendimento. Nesse sentido, a rede de proteção
concebe uma nova forma de atenção voltada para a infância e adolescência, que visa à
atuação integrada e articulada das instituições, órgãos e atores que atuam no
atendimento de crianças, adolescentes e suas famílias (OLIVEIRA, PFEIFFER,
RIBEIRO, GOLÇALVES, & RUY, 2006).
Lorencini, Ferrari e Garcia (2002) identificam como ações da rede, dentre
outras: que os casos sejam discutidos de forma sistemática ou em situações de crise por
todos os profissionais envolvidos no atendimento; que esses profissionais tenham
acesso aos registros de prontuários e processos judiciais; que haja visitas aos locais de
atendimento, como abrigos, fórum, escola, clínica, serviço de saúde, domicílio; que
sejam interinstitucionais para troca de saberes e experiências.
Para Ferreira (2010) o trabalho em rede é um mecanismo eficaz para a
interrupção da violência, favorece uma visão ampliada das situações, e permite que se
planejem ações integradas. Além disso, para a autora é uma forma de compartilhar
35
responsabilidades sobre os casos, permitindo que cada setor atue com foco nas questões
que lhe cabem.
Como já mencionei anteriormente, conforme um levantamento prévio a
respeito dos encaminhamentos recebidos na clínica de Psicologia do município, o
Conselho Tutelar é um dos órgãos do sistema de garantia de direitos, que mais realiza
encaminhamentos para a solicitação de atendimento psicológico. Todavia, respeitam
uma hierarquia, e caso não consigam priorizar o atendimento, acionam o Judiciário ou
Ministério Público. A grande questão é que os profissionais que trabalham na rede são
responsáveis por atender todas as crianças do município, respeitando os princípios do
Sistema Único de Saúde (SUS) que deve atender a todos, sem exceção. Num telefonema
da Secretaria de Saúde fui avisada que havia 15 encaminhamentos para avaliação
psicológica para diagnóstico diferencial na mesa da regulação, em janeiro de 2018,
entregues para solicitação de serviço público em caráter de urgência pelo Conselho
Tutelar e Assistência Social. Assim, como é impossível pela demanda infantil e juvenil
gerada, trabalho com prioridades em relação às crianças e adolescentes que correm
risco. Como o leitor pode ver, minha rede também é cortada.
Como afirmam Collares e Moysés (1994), voltamos a discussão da
medicalização, no qual procura-se transformar problemas eminentemente de origem
social e política, em questões médicas. Becker, Souza, Oliveira e Paraguay (2014)
lembram que atribuir aos problemas de ordem social e política às causas de origem
orgânica, causa um processo de estigmatização, por afetar a representação do sujeito,
cuja discussão virá a seguir.
2.1.4 A representação do sujeito
Fonte: SENAD
36
A imagem anterior elucubra uma situação de conflito familiar. É utilizada pela
Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD) para mostrar o impacto de uma
família com problemas sociais sobre seus membros familiares. Descrevendo seus
componentes eu percebo uma certa indiferença da mãe, uma postura agressiva do pai,
uma atitude acolhedora da irmã, e uma criança ou adolescente chorando. Das quatro
pessoas representadas nessa imagem, qual delas seria encaminhada para
acompanhamento psicológico?
As crianças e adolescentes que chegam à clínica psicológica do SUS trazem
um histórico de problemas comportamentais e emocionais que vem ocorrendo há algum
tempo; chegam com a intenção de que se realize uma avaliação e um tratamento que
vise rapidamente a redução dos sintomas. Porém, como abordam Becker, Oliveira,
Souza e Paraguay (2014, p. 247), tratar problemas não médicos como se fossem, trata-se
de uma “omissão por parte das instituições médica, escolar e familiar em relação aos
problemas de cunho emocional e psicológico da criança”.
Foucault (1979) explica que a família se tornou o agente mais constante da
medicalização. Segundo o autor a partir do século XVIII a família foi alvo da acultura
médica, e a política médica passou a se organizar em função da família e dos seus
membros, focando na medicalização do indivíduo.
Nessa sintomatologia social, cultural e educacional de adoecer crianças e
adolescentes e os conflitos que ocorrem dentro de suas famílias, surge uma nova
perspectiva de sujeito, um novo modelo de sujeitos e de famílias medicalizadas.
Lembrando que um dos objetivos desse trabalho foi compreender como os profissionais
da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente do município de Penha/SC acionam
representações de sujeitos a partir dos encaminhamentos realizados para a clínica
psicológica do município tendo como justificativa a queixa de conflito familiar. Assim
sendo, esclarecerei de quem falamos quando falamos do sujeito.
O Dicionário Aurélio (2018, sem página) traz as seguintes definições para a
palavra sujeito:
1 - Pessoa de quem se omite ou desconhece o nome. 2 - Pessoa
dependente de um rei ou suserano. 3 - Assunto, tema. 4 - Função
sintática desempenhada por palavra ou grupo de palavras de natureza
nominal com que concorda e sobre que se expressa o predicado. 5 -
Entidade que tem a capacidade de conhecer, por oposição ao objeto. 6
- Pessoa ou coisa de que o verbo afirma ou nega alguma propriedade
ou atributo. 7 - Sujeito expletivo: sujeito gramatical que não pode ter
um referente, apenas com função de estilo ou de ênfase (como em ele
37
acontece cada coisa). 8 - Sujeito indeterminado: sujeito que se refere
a uma entidade indefinida (como em dizem que amanhã dá sol; diz-se
que fugiu do país). 9 - Sujeito nulo: sujeito que não se encontra
expresso em palavras na frase (como em hoje acordei tarde). 10 - Que
se sujeitou a algo ou alguém. 11 - Dependente, subordinado. 12 -
Domado, subjugado, submetido. 13 - Que está sob determinado dever,
obrigação, etc. 14 - Obediente; dócil, cativo. 15 - Que apresenta
determinada vulnerabilidade ou possibilidade. 16 - Função sintática
desempenhada por palavra ou grupo de palavras de natureza nominal
com que concorda e sobre que se expressa o predicado. 17 - Que se
sujeitou a algo ou alguém. 18 - Dependente, subordinado. 19 -
Domado, subjugado, submetido. 20 - Que está sob determinado dever,
obrigação, etc. 21 - Obediente; dócil, cativo. 22 - Que apresenta
determinada vulnerabilidade ou possibilidade. 23 - Que apresenta
determinada vulnerabilidade ou possibilidade.
O Dicionário da Língua Portuguesa (2008) traz como etimologia da palavra
sujeito o latim subjectu. O Dicionário Brasileiro dos Insultos escrito por Aranha (2002),
afirma que subjectu em latim significa “posto debaixo” (aspas do autor). “Designa o que
é sujeito ao comando de alguém. Como insulto é o homem desprezível que nem merece
ter o nome mencionado” (p. 328).
Fonseca (2012) ressalta que a constituição do sujeito perpassa toda obra de
Foucault. De acordo com o autor, o sujeito está associado às relações de poder, bem
como, às práticas de saber de si, uma resistência as determinações estruturadas pela
subjetivação, que será explicada logo em seguida. Para Fonseca (2012) Foucault volta-
se para a determinação histórica desse sujeito. Conforme o autor, no texto o Sujeito e o
Poder, Foucault esclarece sobre a necessidade de tratar de sujeitos livres, considerando
uma transformação possível em sujeitos éticos.
Outrora, segundo o próprio Foucault (2004) mais importante do que determinar
quem é o sujeito, é compreender as causas pelas quais está ele submetido ou
subordinado, assim como, como se dão as formas de resistência. Ainda, qual seu status
no real ou no imaginário para se desenvolver num legítimo sujeito. Trata-se de
determinar seu processo de subjetivação, ou como explica o próprio Foucault (2004)
determinar os modos de objetivação que transforam os seres humanos em sujeitos.
Assim, o autor se refere ao sujeito objetivado, importando-se com o como a constituição
histórica do tipo de sujeito irá formá-lo.
Segundo Pinto (1989) citado por Fischer (2001) os sujeitos não são causas,
nem origens do discurso, mas são efeitos discursivos. Consoante Pez (2008) é
necessário cautela quando tentarmos definir o conceito de sujeito na obra de Foucault.
38
Pez (2008) explica que o termo sujeito serve para designar o indivíduo preso a uma
identidade que reconhece enquanto sua. Todavia, Fonseca (2012) afirma que o filósofo
Foucault não emprega o termo como sinônimo de pessoa ou forma de identidade, porém
ressalta que emprega num sentido de relação consigo mesmo. Ferraz (2005) salienta
que Foucault se afasta da crença de um sujeito autocentrado, inaugurando um método
que pensa nas relações de poder. Conforme o autor, não se quer buscar quem está por
trás das estratégias, mas “identificar como se exercem e se processam seus mecanismos
em nossos corpos e vidas” (FERRAZ, 2005, p. 79).
Para Foucault (2004) o poder está em todos os lugares e é peculiar das relações
que nós humanos estabelecemos. Para o autor uma definição de poder é tentar dirigir ou
determinar a conduta do outro, aproximando-se daquilo que vem a ser o governo dos
outros e de si. O filósofo considera que as instituições de acordo com seus estatutos
sociais são capazes de determinar a formação de determinados tipos de sujeitos,
impondo algumas formas de vida aos seus indivíduos. Consoante Fonseca (2012, p.
149) “essa concepção de poder permite a Foucault pensar as relações de poder em seu
aspecto positivo, como um mecanismo gerador de ações e produtor de realidades,
comportamentos e saberes, e enfim, numa produção de verdades sobre os sujeitos”.
Ferraz (2005) cita que Foucault aborda que em um solo histórico emerge
formas históricas de subjetivação, de percepção e de determinadas concepções do corpo.
Para tal, Ferraz (2005) utiliza a exemplificação da passagem do regime analógico e
digital, que causam efeitos na forma de ver, perceber e conhecer, não remetendo ao
mesmo sujeito, mas as transformações do próprio corpo e da percepção.
Foucault (1984) afirma que um pensamento é diferente do conjunto de
representações implicadas em um comportamento. Além disso, consoante o filósofo um
pensamento é completamente diferente das atitudes que podem formá-lo. “O
pensamento não é o que se presentifica em uma conduta, dá um sentido” (FOUCAULT,
1984, p. 231). O autor explica que quando um comportamento entrou no domínio do
pensamento, foi porque perdeu sua familiaridade, ou porque ao redor dele surgiram
inúmeras dificuldades. Foucault (2004) ressalta que a família deve representar a
articulação dos objetivos relativos à boa saúde do corpo social com o desejo e o cuidado
de seus membros familiares. Quando não cumpre seu papel, caberá a alguma instituição
encaminhá-la à medicalização.
Em uma consulta realizada na base de dados Scielo, em 18 de fevereiro de
2018, ao digitar como palavra-chave “a representação do sujeito em Foucault”,
39
elencam-se três artigos, dois brasileiros e um colombiano, no período de 1989 a 2012,
todos nas áreas da ciência humanas. Na base de dados da Biblioteca Virtual em Saúde,
na mesma data em questão, elencam-se três artigos e três teses no período de 2006 a
2011, na área de ciências humanas, cujos assuntos principais referem-se à humanidade,
estética, psicanálise e crianças. Trata-se de pesquisas qualitativas.
A seguir, apresento os materiais e métodos utilizados nessa dissertação bem
como, como foram os procedimentos de coleta e de análise de dados.
40
2.2 MATERIAL E MÉTODOS
O presente estudo foi realizado no município de Penha, que se encontra no
litoral norte do Estado de Santa Catarina, Sul do Brasil. Segundo dados do IBGE do
censo demográfico de 2017, a população atual de Penha é estimada em 31.025 mil
pessoas, chegando a ultrapassar os 100 mil na temporada de verão. Na cidade de Penha
está localizado o parque multitemático Beto Carrero World, maior da América Latina.
Outro atrativo no município são as 19 praias localizadas ao longo da costa, atrativos
para visitantes, famílias e surfistas.
De acordo com informações sobre a história do município, que constam no site
da Prefeitura, a região de Penha foi colonizada a partir do século XVIII por portugueses
vindos dos Açores, que haviam colonizado primeiramente Desterro (Florianópolis). No
entanto, com a invasão dos espanhóis na Ilha, tais pescadores rumaram a outros locais
para caçar baleias. Segundo o histórico, a Praia de Armação do Itapocoroy se tornou
uma das maiores armações baleeiras do sul do Brasil. A Penha em 21 de junho de 1958
foi municipalizada, conquistando sua autonomia política, e o município foi efetivamente
instalado em 19 de julho do mesmo ano.
Conforme o IBGE (2017), quanto à educação, a taxa de escolarização (para
pessoas de 6 a 14 anos) foi de 97.6 em 2010. Esse índice posicionou o município na
colocação 209 de 295 dentre as cidades do Estado de Santa Catarina, e na colocação
2733 de 5570 dentre as cidades do nosso país. Quanto aos dados epidemiológicos, ainda
segundo informações do IBGE (2017) a taxa de mortalidade infantil média na cidade é
de 13.3 para 1.000 nascidos vivos. Em se tratando de internações por causa de diarreias
estima-se de 0.2 para cada 1.000 habitantes. Por isso, quando comparado com os
municípios do estado, fica nas posições 90 de 295 e 235 de 295, respectivamente.
Quando comparado as cidades do Brasil todo, essas posições são de 2427 de 5570 e
4284 de 5570, respectivamente (IBGE, 2017).
Devido à colonização de pescadores vindos dos Açores, a cultura e a tradição
açoriana são marcantes no município, nas festas, culinária e gastronomia, bebidas,
cultivo de marisco, sotaque dos pescadores, na pesca artesanal, e até no momento que
velam seus mortos (muitos são velados em casa).
A minha relação com Penha teve início na minha infância, porque meus avós
paternos saíram de Curitibanos para morar aqui, devido indicação médica. Devo ter
41
vindo ao município pela primeira vez aos nove anos de idade. Passei algumas férias por
aqui durante a minha infância e adolescência, até firmar residência em 2006, por ter
passado em um concurso público na prefeitura de Piçarras, município vizinho. Na
prefeitura de Penha efetivei-me em 2015. Como psicóloga clínica da rede nesses quase
quatro anos de experiência, tenho observado que muitas das famílias atendidas vieram
do interior do Paraná, do Norte e Nordeste do país, de Blumenau, de Indaial, de Luis
Alves (principalmente após as enchentes de 2012), em busca de emprego, pois com o
Parque Beto Carrero instalado na cidade, além de oferecer inúmeras vagas de emprego,
a forte rede hoteleira também é um chamariz.
Essa pesquisa foi realizada em duas instituições da Rede de Proteção à Criança e
ao Adolescente de Penha (SC), especificamente nos setores de Atenção Especializada
das Secretarias Municipais de Saúde e de Assistência Social. A coleta de dados
realizou-se na instituição de saúde no Núcleo de Atenção à Mulher e à Criança (NAM);
na instituição de Assistência Social, no Centro de Referência Especializado de
Assistência Social (CREAS), no Conselho Tutelar, e na Instituição de Acolhimento
(abrigo municipal).
Ressalto que a Secretaria de Educação e setores adjacentes não participaram da
pesquisa por não atenderem aos critérios de seleção, que incluíam somente os
profissionais da Rede que encaminharam crianças ou adolescentes com queixas de
conflito familiar para a clínica psicológica do SUS. Na medida em que os
encaminhamentos oriundos da Educação não registravam a queixa de conflito familiar,
não foram inclusos no processo de pesquisa, pois não atendiam ao critério de inclusão
previamente elaborado. Outro critério de seleção de entrevistados era que fossem
profissionais que trabalhassem há mais de dois anos em suas funções, para que
pudessem contribuir com suas experiências.
Por meio de um levantamento dos encaminhamentos recebidos entre abril de
2017 a abril de 2018 foram mapeados as instituições e os profissionais que comporiam o
estudo. Estimava entrevistar 11 profissionais, porém com a eleição de novos
conselheiros tutelares e exoneração de alguns funcionários da Rede, após contato
telefônico e apresentação da pesquisa, elenquei cinco profissionais para serem sujeitos
da pesquisa, sendo: duas fonoaudiólogas do NAN; um psicólogo do CREAS; uma
psicóloga do abrigo; e um conselheiro tutelar. Depois de assinarem os Termos de
Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os mesmos foram entrevistados em seus
locais de trabalho, no período de novembro de 2018 a janeiro de 2019. As entrevistas
42
foram guiadas por um roteiro no qual perguntava-se o que os profissionais entendiam
sobre conflito familiar; se poderiam citar exemplos; quando identificavam que a família
estava numa situação conflitante; quais as características que tais crianças e
adolescentes que vivenciam esses conflitos apresentavam; quais etapas para encaminha-
los à clínica especializada, e ainda, quais os papeis da família e das instituições da Rede
na situação conflitante em questão. Além das entrevistas, foram utilizados registros em
diários de campo a respeito das notas, reflexões e impressões dos pesquisadores.
Após a realização das entrevistas e transição do material empírico, utilizei o
conceito de representação tal como proposto no campo dos Estudos Culturais como
operador analítico. Tomando, então, a compreensão de que os processos de atribuição
de significados por meio da linguagem se dão através de mecanismos de representação
sobre algo, compondo sentidos vinculados ao mundo em que estamos inseridos,
procurei atentar para as formas pelas quais determinados significados compunham o que
viriam a ser considerados sujeitos com queixas de conflito familiar, de modo que estas
significações acionam representações de sujeito. Nesse ínterim, o conceito de
representação foi organizador das categorias de análise, na medida em que a partir de
sua compreensão encontraram-se dois tipos de usuários a serem considerados como
necessários de atendimento, a saber, o sujeito caracterizado em atraso de
desenvolvimento pela família conflitante; e o sujeito da garantia de Direitos. Em
seguida, surgiu a terceira categoria: o governamento das famílias e dos profissionais da
Rede por meio da medicalização dos conflitos familiares.
Destaco que os conceitos selecionados para a discussão não apenas permitiram a
organização do material empírico e suas problematizações, mas também,
potencializaram a perspectiva sobre o objeto de estudo do modo como aqui se apresenta.
Tais conceitos serão mais bem apresentados no decorrer da discussão na medida em que
estes fazem sentido em seus usos consoante a problematização dos dados de pesquisa.
Esta pesquisa foi submetida e aprovada no Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da
Universidade em que foi desenvolvida, tendo sido aprovado sob parecer número
3.024.446.
43
2.3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
2.3.1 ESCARAFUNCHANDO OS ENCAMINHAMENTOS CLÍNICOS
2.3.1.1 Mapeando os profissionais e a rede de proteção do conflito familiar
Eu gosto da palavra escarafunchar, utilizada na abordagem em que tenho
formação – Gestalt-Terapia. Foi bem isso que fiz lendo encaminhamentos para a
Psicologia Clínica recebidos no período de abril de 2017 a abril de 2018, selecionando
os pertinentes ao estudo em questão. Como psicóloga clínica da Secretaria Municipal de
Saúde do município de Penha, recebo encaminhamentos de crianças de 01 a 13 anos de
idade de várias instituições da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, dentre as
mais significativas, escolas públicas e privadas, Unidades Básicas de Saúde (UBS),
Conselho Tutelar, Casa de Passagem, Poder Judiciário e Ministério Público. Sei que as
pessoas ficam pasmas quando me escutam falando sobre o atendimento psicológico de
bebês, mas é comum para rastrear o autismo, por exemplo. Porém, a faixa etária
encaminhada para a clínica especializada de Psicologia de maior predominância são as
crianças em início da alfabetização, nas idades de seis a oito anos, que devido as suas
dificuldades de aprendizagem ou comportamento, confrontam o que a instituição escola
espera delas.
A palavra encaminhamento é conceituada pelo dicionário como “ensinar o
caminho a; guiar; dar um bom conselho; ir direto a; dirigir-se a; tender a um fim”
(SILVA, sem p., 2018). Lembro-me das aulas no mestrado com o professor Marco
Aurélio Da Ros em que nos dizia que vivemos da era da “medicina ao”, referindo-se
justamente sobre os encaminhamentos para a clínica especializada, realizados ao
psicólogo, ao fonoaudiólogo, ao psiquiatra, ao cardiologista, ao dermatologista, ao
reumatologista, e assim por diante.
Encaminhar é muito mais do que passar o paciente para que outro profissional
atenda. O endosso a esse argumento está presente em documento oficial elaborado pelo
Ministério da Saúde (MS), intitulado “Caminhos para uma Política de Saúde Mental
Infanto-Juvenil” (BRASIL, 2005), e indica que no processo de encaminhamento de
44
casos clínicos e de usuários no Sistema único de Saúde (SUS) três autores devem ser
incluídos, quais sejam:
O sujeito/caso a ser encaminhado, o profissional/ serviço que
encaminha e o profissional/serviço a quem se encaminha,
mediatizados pela gestão, por outros serviços, pela família, pela
comunidade ou por outros agentes (BRASIL, 2005, p. 53).
Como psicóloga clínica no município de Penha atuo no Núcleo de Atendimento
à Mulher e à Criança (NAM), que não é uma porta de entrada para o atendimento por se
tratar de uma clínica especializada, diferente de uma Unidade Básica de Saúde (UBS),
em que o paciente pode se dirigir ao balcão da recepção e solicitar uma marcação de
consulta. Isso significa que para a pessoa ou família ser atendida no NAM precisa ter
sido encaminhada ou referenciada1 por algum profissional ou serviço, não podendo sem
um documento de encaminhamento solicitar um agendamento de consulta de forma
espontânea ou por livre demanda.
Contextualizando os encaminhamentos para a clínica psicológica do NAM
enfatizo que não há um documento comum utilizado por toda a Rede de Proteção à
Criança e ao Adolescente. Cada instituição encaminha à sua maneira. A Instituição
Educação encaminha as crianças e os adolescentes por meio de um relatório
educacional, a respeito de como os alunos se comportam e aprendem, solicitando ao
final do documento uma avaliação psicológica. Já a Instituição Assistência Social
encaminha por meio de uma ficha, explicando a demanda e os motivos pelos quais está
acompanhando a família, solicitando avaliação e acompanhamento psicológico. O
Conselho Tutelar costuma encaminhar uma ficha, em que constam data e horário para a
primeira consulta, a fim de ser devolvida aos conselheiros pelas famílias após a triagem
psicológica, como forma de monitorar a presença. Todavia, na Instituição Saúde os
profissionais encaminham por meio da Referência2, que constam os motivos da
1 Para que o leitor possa melhor compreender, Santos (2015) corrobora afirmando que o sistema de
referência e de contrarreferência em saúde foi criado pensando na perspectiva de saúde global do
paciente. Funciona por meio da troca de informações entre os setores e instituições. Segundo o autor, é
utilizado para diminuir o número de encaminhamentos desnecessários. 2 Ressalto que o Sistema de Referência está além de um modo de encaminhamento, Conforme Santos
(2015) o sistema de referência e de contrarreferência funciona dentro de uma hierarquia, transitando pelo
fluxo da rede de assistência em diferentes níveis. Para tanto, referenciar significa “indicar o paciente para
outro nível de cuidado” (SANTOS, 2015, p. 17).
45
consulta, queixas, histórico pregresso, sintomas identificados e relacionados ao Código
Internacional das Doenças (CDI), conduta do profissional que encaminha, solicitação do
procedimento (avaliação e conduta), e por fim, recomendações. No caso do médico
neurologista ou psiquiatra é corriqueira a solicitação de relatório ou laudo psicológico
para avaliação de diagnóstico diferencial, e avaliações bem diretivas, solicitando a
aplicação de um teste psicológico específico, por exemplo.
Geralmente os profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente que
encaminham casos, situações ou usuários para clínicas de psicologia inseridas no SUS
objetivam o retorno de informações da avaliação ou tratamento psicológico. Corrobora
Noal (2009) afirmando que a pessoa que realiza o encaminhamento e a forma como o
faz revelam ser aspectos fundamentais para a busca de uma compreensão do que se
espera de uma avaliação psicológica. Wainstein (2011) autentica tal assertiva
assegurando que o profissional que realiza o encaminhamento almeja uma suposta
avaliação cognitiva, da personalidade e do emocional de um sujeito.
Todavia, o encaminhamento para uma avaliação gera a expectativa da devolução
por meio de um material impresso, o laudo psicológico. Wainstein (2011) salienta que o
encaminhamento busca auxiliar não só a criança e ao adolescente, como também,
colaborar com a fonte que os encaminhou. Entendo que com o retorno desses dados em
forma de documento psicológico o encaminhador pauta-se nos resultados analíticos da
devolutiva, podendo traçar com mais propriedade seu plano terapêutico perante à
criança ou ao adolescente encaminhado.
Dentre os inúmeros motivos e intenções de encaminhamentos oriundos de
diferentes profissionais das instituições da Rede de Proteção à Criança e ao
Adolescente, participantes desse estudo, para a clínica especializada de Psicologia, a
queixa de conflito familiar é a mais abundante. Nos encaminhamentos realizados pela
Rede de Proteção deste estudo observei que os conflitos familiares, mesmo na falta de
uma denominação clara, coesa e explicativa do que ocorre com os membros da família,
são motivos importantes para que a criança e o adolescente se consultem com o
psicólogo clínico.
Lacerda e Junior (2013) em um estudo a respeito dos encaminhamentos de
crianças para acompanhamento psicológico enfatizam que o surgimento de distúrbios
psicológicos em crianças é precedido pelo pressuposto de conflito familiar, o que
corrobora para o encaminhamento maciço das mesmas. Na mesma direção, Alberto et
al. (2008) definem que a atuação do psicólogo que recebe sujeitos tidos em conflito
46
familiar deve ser de diagnosticar a situação, planejar ações de enfrentamento, e ainda,
mobilizar os profissionais da Rede tendo em vista à prevenção e o tratamento. No caso
dos encaminhamentos do Ministério Público ou Judiciário, por intermédio de
Instituições da Assistência Social como ocorre no município pesquisado,
o psicólogo prestador de serviço para as Varas de Família, da Infância
e Juventude tem trabalhado bastante na mediação familiar, visando à
resolução de conflitos, como também, proporcionando aos envolvidos
a responsabilidade acerca de seus problemas (CRUZ, COSTA e
CAMPOS, 2006).
Santos e Costa (2007) numa perspectiva interdisciplinar, reconhecem que
enquanto a Psicologia Clínica busca conhecer a dinâmica familiar com um paradigma
compreensivo, o Direito aplica a normatividade às questões familiares visando regular o
comportamento de seus membros. Compreendo que em algumas situações, como por
exemplo, no caso de uma violência familiar perpetuada pelo pai ou pela mãe ao filho,
entendo necessário o acompanhamento psicológico dependendo da capacidade de
resiliência do infante. Todavia, questiono a banalidade dos encaminhamentos frente às
queixas de conflito familiar, no qual não são todos os membros familiares
encaminhados para processos psicoterapêuticos, e sim somente os menores de 18 anos,
voltando ao que Foucault (1979) se refere à medicalização do indivíduo e, nesse caso,
da criança. Azevedo (2001) apoia esta argumentação afirmando que se trata de uma
negação dos direitos que as crianças e os adolescentes possuem de serem tratados como
sujeitos em condição peculiar de desenvolvimento. Por isso, na legitimidade do direito,
encaminham-se para a clínica especializada do SUS.
Para a minha surpresa, no intervalo de tempo de abril de 2017 a abril de 2018,
não encontro encaminhamentos realizados pelas escolas, representadas na Rede
protetiva pela Secretaria Municipal de Educação, especificamente com a queixa de
conflito familiar. Eu como psicóloga clínica entendo que isso ocorra pelo modo de
administração das queixas escolares, sempre pautado no sujeito que apresenta os
sintomas, que não lê, não se concentra, é agitado, não para um minuto, é agressivo, é
tímido, é isso ou aquilo, sem vê-lo dentro de uma configuração sistêmica que
compreenda que esse sujeito possa estar assim apresentando os referidos sintomas em
função das relações que estabelece com as pessoas da sua família. Por isso, o motivo do
encaminhamento dos escolares não é por conflitos familiares, e sim, pelos sintomas que
a criança e o adolescente apresentam na escola e, principalmente, em sala de aula.
47
Portanto, nenhum profissional das escolas foi selecionado a participar deste estudo, em
virtude que o critério de inclusão eram os encaminhamentos especificamente descritos
como conflitos familiares.
Entrementes, nesse levantamento, percebo que o excedente de encaminhamentos
vinha do Conselho Tutelar, e sempre dos mesmos quatro conselheiros que escreviam em
suas folhas de encaminhamento: “Conflito Familiar”. Desses quatro conselheiros que
encaminham os clientes um é formado em Direito, dois não possuem curso superior e
outro é técnico de enfermagem. Com a espera da liberação do Comitê de Ética em
Pesquisa (CEP), o tempo previsto para a coleta de dados se prolongou e, em julho de
2018, uma nova eleição do Conselho Tutelar ocorreu, culminando na substituição dos
possíveis entrevistados pelos novos conselheiros eleitos. Por meio de telefone eu entrei
em contato com dois conselheiros, sendo que um se recusou a participar não retornando
as mensagens e o outro estava de atestado médico e me indicou entrevistar seu parceiro
de trabalho. Os demais não estavam mais trabalhando no Conselho e os novos não
atendiam aos critérios de seleção para participarem da pesquisa, que além de
encaminhar com a queixa de conflito familiar, era que fossem profissionais que
trabalhassem há mais de dois anos em suas funções, para que pudessem contribuir com
suas experiências. Então, apenas um conselheiro tutelar participou desta investigação. A
entrevista com o profissional foi realizada na própria sede do Conselho Tutelar. Conta-
me o conselheiro que em “virtude da troca de profissionais no Conselho o número de
encaminhamentos para a saúde caiu” (Diário de Campo, 29/01/2019), referindo-se a
dois profissionais que costumeiramente encaminhavam crianças e adolescentes com a
queixa de conflito familiar.
Em outro desdobramento acerca dos sujeitos a serem ouvidos nesta pesquisa
procurei entrevistar os cinco profissionais da Assistência Social que estavam elencados.
Através do psicólogo do CREAS3 fui informada que uma Assistente Social e duas
3 O CREAS é um programa federal de Assistência Social, de alta complexidade, que oferece apoio e
assistência às famílias e sujeitos em situação de ameaça ou violação de direitos. Segundo informações do
site da Assistência Social do Governo Federal, há no país 2.155 CREAS, locais ou regionais, prestando
cerca de 65 mil atendimentos anuais. É um serviço que tem como foco principal a família e a
reconstrução de vínculos familiares. A equipe mínima preconizada pelo Ministério de Desenvolvimento
Social (MDS) é um psicólogo, um assistente social, e um advogado. Fonte: BRASIL. Centro de
Referência Especializado de Assistência Social (CREAS). Disponível em:
>http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2011/10/centro-de-referencia-especializado-de-assistencia-
social-creas>. Acesso em: 29/03/2019.
48
Psicólogas haviam pedido exoneração do município. Assim, entrevistei dois
profissionais da Secretaria Municipal de Assistência Social, um do CREAS e outra da
Casa de Passagem. Tal, como anotei no meu Diário de Campo (07/12/2018), foram
“mais três baixas de entrevistados”.
Até então, portanto, tive dois entrevistados da Assistência Social, uma psicóloga
e um psicólogo, ambos colaboradores da Secretaria Municipal da Assistência Social.
Para entrevistar a psicóloga, visitei a Casa de Passagem do Município, percebi a
precariedade em termos de espaço físico, conversei com crianças que estavam curiosas
e também queriam ser entrevistadas.
O psicólogo foi entrevistado no escritório dele no CREAS. Foi a primeira vez
que eu o visitei na nova sede, bem localizada no município. Apresentou-me a estrutura
física do local, os equipamentos recém adquiridos pela prefeitura e os banners dos
trabalhos que já exibiu a respeito da Rede protetiva.
Por fim, apresento a descrição dos sujeitos da pesquisa mapeando os
profissionais da saúde que seriam entrevistados. Enquanto fazia meu levantamento notei
três profissionais que encaminharam pacientes com a queixa de Conflito Familiar, a
saber, um médico de Unidade Básica de Saúde (UBS) e duas fonoaudiólogas da
Atenção Especializada4. O médico (residente em Psiquiatria) no contato que tivemos
disse-me que escreveu conflito familiar no encaminhamento porque o documento na
Rede passa por várias pessoas, ressaltando as questões sigilosas, registros esses
realizados no diário de campo. As duas fonoaudiólogas participaram das entrevistas sem
nenhum contratempo ou observação feita. Como se tratava de duas profissionais muito
próximas a mim, ambas foram entrevistadas no nosso local de trabalho, nos consultórios
fonoaudiológicos, em momentos separados respeitando a privacidade, o que nos
proporcionou uma sensação de intimidade. Tanto que ao final dessas entrevistas as
profissionais relembraram casos atendidos em comum, no qual o conflito familiar está
evidente.
Assim, no total foram cinco profissionais participantes desse estudo, sendo:
4 A respeito da clínica especializada, no SUS trata-se do maior grau de complexidade em cuidados, sendo
por tanto a Referência. Quanto a Contrarreferência, Santos (2015) identifica como o menor grau de
complexidade, quando a necessidade da pessoa é mais simples, e ela pode ser atendida no seu próprio
território. Afirmar que o paciente foi contrarreferenciado, por tanto, denota que o mesmo pode ser
acompanhando na UBS mais próxima a sua residência, ou seja, no seu território, sem necessitar de
atendimento em clínica especializada.
49
✓ Entrevistada 1: Uma fonoaudióloga, Rede Saúde, Instituição NAN,
profissional de atendimento especializado e atenção básica, atua
com crianças;
✓ Entrevistada 2: Uma fonoaudióloga, Rede Saúde, Instituição NAM,
profissional de atendimento especializado, atua com crianças,
adolescentes e adultos;
✓ Entrevistada 3: Uma psicóloga, Rede Assistência Social, Instituição
Casa de Passagem, atua com crianças, adolescentes e famílias;
✓ Entrevistado 4: Um psicólogo, Rede Assistência Social, Instituição
CREAS, atua em alta complexidade com as famílias;
✓ Entrevistado 5: Um conselheiro tutelar, Rede Assistência Social,
Instituição Conselho Tutelar, atua com crianças, adolescentes e
famílias.
Enquanto pesquisadora pretendi, nesta discussão dos resultados, compreender
como os profissionais entrevistados acionam representações de sujeitos a partir dos
encaminhamentos realizados para a clínica psicológica tendo como justificativa a queixa
de conflito familiar. Para tanto, como percebido procurei mapear a Rede de Proteção à
Criança e Adolescente, bem como descrever os profissionais que encaminham os
clientes para a psicologia clínica infanto-juvenil. Além disso, intentei relacionar esses
processos de encaminhamento às tendências de medicalização da sociedade
contemporânea. Por fim, construí um material pedagógico para a formação continuada
dos profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente acerca dos
encaminhamentos que compõe o conflito familiar.
Para a apreciação dos dados empíricos nesta pesquisa utilizei análise cultural
alicerçada no Campo dos Estudos Culturais. Segundo Hall (2000) na análise cultural o
pesquisador deve buscar em termos substantivos e epistemológicos o sentido das coisas.
Para tanto, utilizei as categorias de representação e de identidade para dar respostas aos
objetivos almejados. Tais conceitos foram organizadores das categorias de análise na
medida em que a partir de suas compreensões é que se possibilitou manusear o material
empírico de modo específico, ou seja, os conceitos aqui elencados funcionaram como
mediadores e operacionalizadores das análises realizadas. Cabe salientar que estes
conceitos serão mais bem apresentados nas seções de análise que seguem, destacando
dois aspectos, a saber, sua definição conceitual, e em segundo lugar, os modos como
50
permitiram inferências e análises acerca do material empírico de pesquisa. Como ponto
de partida das possibilidades de análise pela ótica dos aspectos culturais ressalto que a
partir do tema medicalização dos conflitos familiares foi possível perceber sua inserção
em aspectos substantivos e epistemológicos da cultura. Hall (2000) define como aspecto
substantivo o lugar empírico de materialidades na cultura, como na organização das
atividades, instituições, relações na sociedade, em qualquer momento histórico
particular. Encontro no material empírico da pesquisa os aspectos substantivos no modo
em como o SUS se organiza no sistema de Referência e Contrarreferência, bem como
na organização da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, representada nesse
estudo pelas Instituições Saúde e Assistência Social.
Por outro lado, em relação aos aspectos epistemológicos da cultura, segundo
Hall (2000), estes se referem às questões de conhecimento e conceitualização
envolvidas em determinados fenômenos, ou seja, como a cultura é utilizada na
compreensão, explicação e modelos teóricos. No caso do tema deste estudo, os aspectos
epistemológicos se referem ao campo do saber, à representação do conflito familiar e à
manutenção da identidade da família, dentro dos padrões de normalidade, visando sua
autorregulação e o governamento das mesmas.
No intento de discussão dessa problemática os pesquisadores guiaram-se para
compreensão dos fenômenos estudados pelo conceito de representação tal como
desenvolvido no campo dos Estudos Culturais. Para Woodward (2000, p.17) “a
representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos
quais os significados são produzidos, posicionando-se como sujeitos”. Desse modo,
questões norteadoras para a discussão do problema foram elaboradas, tais como: que
representações de sujeito são produzidas pela Rede de Proteção, que frente aos conflitos
familiares impõe uma intervenção na criança ou adolescente? Que representações de
sujeito são essas que em nome da garantia de Direitos ofertados pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) necessita de uma intervenção pela Rede de Proteção?
Em suma: que representação de sujeito é construída para que justifique a necessidade de
tais processos medicalizantes? Tais indagações orientam as discussões que seguem.
2.3.1.2 A representação do sujeito da Instituição Saúde caracterizado pelo atraso
do desenvolvimento
51
Daí quando eu identifico alguma situação, algum conflito familiar que
está interferindo no desenvolvimento do adolescente ou da criança,
geralmente eu faço um encaminhamento (Entrevistada 1).
O profissional de saúde entrevistado neste estudo e que atende crianças e
adolescentes encaminhados com queixas de conflito familiar se aproxima, em seu
trabalho, de uma perspectiva desenvolvimentista e comportamentalista do ser humano.
Não obstante, disciplinas de Psicologia do Desenvolvimento e Psicologia da
Aprendizagem compõem o repertório das formações acadêmicas e norteiam os olhares
da clínica especializada. Cada vez em que se avalia clinicamente uma criança ou
adolescente compara-se o indivíduo em questão aos demais de sua faixa etária e mesmo
sexo, analisando o que se espera em termos desenvolvimentistas em cada idade e sexo.
No campo da Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem, várias teorias
direcionam a perspectiva de construção do que é o desenvolvimento humano, tal como
corrobora Stubbe (2008, p. 19) ao descrever alguns autores e seus respectivos campos
teóricos inseridos nesse escopo. Para o referido autor, são eles: “os teóricos do
desenvolvimento primário, Sigmund Freud (estágios psicossexuais), Erick Erikson
(estágios psicossociais) e Jean Piaget e Vygotsky (estágios cognitivos)”.
Entendo que nos serviços de saúde, na prática da clínica especializada, o
encaminhamento por atraso no desenvolvimento infantil é comum, assim como relata a
Entrevistada 1 na epígrafe desta seção. Compreendo que pensar em termos de
desenvolvimento é medicalizante. Porém, quando uma criança ou adolescente é
encaminhado devido à queixa de conflito familiar, tem-se duas representações: a do
sujeito em pleno desenvolvimento e a do sujeito em atraso de desenvolvimento pela
família conflitante.
No sistema de representações, conforme Woodward (2000) há de se ter que
marcar as identidades pela diferença, pois a identidade é sempre relacional. Conforme a
autora, uma identidade depende da existência de outra. Trazendo para os sujeitos deste
estudo, infere-se que só pode ser percebido o sujeito cujo conflito familiar interfere no
seu desenvolvimento se este for marcado como diferente do ideal de sujeito em
desenvolvimento pleno, no qual sua família lhe proporciona possibilidades de
desenvolver-se normalmente. Esta problematização das representações dos sujeitos a
serem atendidos pela clínica especializada de Psicologia se manifesta também no
seguinte trecho de entrevista:
52
Quando o paciente chega, a gente sempre procura estar ouvindo os
pais, ver o que eles têm de acompanhamento em casa, para reconhecer
a rotina deles, e ali a gente consegue estar identificando, se é uma
família que tem uma rotina, se é uma família que estabelece algumas
regras, se é uma família que tenha os mesmos objetivos, enfim, que
anda em conjunto, né, se participa ou não, quanto participa, se começa
a atrapalhar já o desenvolvimento da criança e do adolescentes, nesse
momento, principalmente nesse estágio inicial de contato com o
paciente, de estar conhecendo, anamnese e tal, a gente consegue
identificar (Entrevistada 2).
Stubbe (2008) refere que pensar em termo desenvolvimentista é considerar as
áreas em que a criança apresenta bom desenvolvimento, e aquelas em que precisa de
intervenção. A autora compreende desenvolvimento como “uma interação complexa
entre o potencial genético, as capacidades biológicas, e o ambiente de criação” (p.17).
Ressalto que é justamente o ponto de vista ambiental que enfatiza a necessidade de
análise da dinâmica familiar, entendida por Azevedo (2001) pela “forma de
funcionamento de uma família, ou seja, suas regras, hierarquias, padrões de
comunicação” (p. 37). Culturalmente espera-se que as famílias tenham dinâmicas
comuns quanto à forma de funcionar e de exercer seu papel perante as crianças e aos
adolescentes, ou seja, espera-se um padrão de comportamento social que quando não é
atendido, quando há um desvio ou anormalidade, é preciso investir em sua regulação, e
neste caso, de forma medicalizante.
Zorzanelli, Ortega e Bezerra Junior (2014) explicam que uma das possibilidades
de compreensão da medicalização implica em determinar um comportamento social
como um problema médico, descrevendo um processo pelo qual problemas não médicos
são definidos em termos e doenças ou transtornos. Algo semelhante ocorre com as
famílias, e principalmente com as crianças e adolescentes, que por meio de um
encaminhamento para a clínica psicológica chegam à solicitação de que se realize um
diagnóstico que explique o que a criança apresenta.
Assim, nessa comparação entre um sujeito em pleno desenvolvimento e sujeito
outro com seu desenvolvimento comprometido, é possível inferir a partir de Woodward
(2000) que os significados produzidos pelas representações dão sentido a experiência e
aquilo que somos. De acordo com a autora, a representação, compreendida como um
processo cultural, estabelece identidades e os sistemas simbólicos se baseiam em
fornecer respostas sobre quem é o sujeito.
Em se tratando de crianças e de adolescentes, os significados aprendidos com os
conhecimentos e experiências na clínica especializada, exigem que, além dos infantes,
53
avaliem-se as famílias. Stubbe (2008) afirma que para uma boa avaliação do
desenvolvimento, bem como das psicopatologias, faz-se necessário uma avaliação
completa da criança, do adolescente e da família. Entendo que além da avaliação
cognitiva, emocional e de personalidade, cabe avaliar a família e a conduta dos seus
membros familiares. Tais pressupostos fazem-se presentes quando um entrevistado
explana os processos de encaminhamento e atenção que organizam sua prática:
“Daí a gente começa a atender a família, e se há necessidade de
acompanhamento psicológico e gente encaminha para o NAN, para o
psiquiatra” (Entrevistado 4).
Woodward (2000) aponta que a produção de significados e a produção de
identidades posicionadas nos sistemas de representação estão estreitamente vinculadas.
Compreendo que neste ponto de vista a construção de saberes acerca dessa criança ou
adolescente e os conflitos vivenciados na família dela buscam definir quem ela é; assim
como, quando se deve encaminhar uma criança ou adolescente que não se desenvolve
como esperado para a sua idade e sexo por causa do conflito familiar. Assim, nesse
processo de construção de representações, identifica-se um tipo de sujeito caracterizado
pelo atraso de desenvolvimento causado pela família conflitante que, portanto, necessita
de tratamento psicológico.
Nesse ínterim Féres-Carneiro (2011) explica que na avaliação da família é
importante observar como os membros interagem, e principalmente, como
desempenham seus papéis familiares (pai, mãe, avó, avô). Esses pressupostos
manifestam nortear intervenções dos profissionais aqui investigados, tal como no
excerto abaixo:
O que é muito comum eu receber é conflito assim entre a educação
dos pais. Disputa entre os pais na educação dos filhos, na forma que
eles querem conduzir as coisas, é... Ou entre os avós. Tem os pais e
tem os avós. É muito comum aqui na nossa cultura, na nossa região,
morar, né, mora com o pai, com a mãe, com a avó paterna ou com a
avó materna. Então tem muito conflito assim. Às vezes quem traz para
o atendimento é a avó e aí ela já relata várias situações de conflito
familiar, conflito com a nora, conflito com o filho, então...
(Entrevistada 2).
Bee (1997), pesquisadora do desenvolvimento humano, estudando os papeis
familiares destaca que em todas e diferentes culturas há a exigência e expectativa de que
54
os adultos aprendam e executem um conjunto de papéis. Tratando das representações de
família, enfatizo que teorias psicológicas e psicossociais reforçam o quanto a definição
dos papéis familiares, bem como a manutenção da hierarquia, são fundamentais para um
desenvolvimento dito sadio. Marcelli (1998) aponta que para os psicanalistas o período
de conflito pode ser gerador de ansiedades e de angústia, comprometendo o
desenvolvimento da criança ou do adolescente. Ou seja, é comum no campo da
Psicologia orientado por tais perspectivas, modelar uma representação de família e
sujeitos e atuar sobre aquelas que não atendam ao esperado pela produção teórica da
área, muitas vezes não relativizando com as dinâmicas sociais, culturais, econômicas e
regionais que marcam a formação de diferentes formas materiais de família.
Compreendo que numa avaliação psicológica e familiar avalie-se a performance
da criança e do adolescente, e de sua família na resolução das situações conflitantes.
Woodward (2000) aponta que podem ser levantadas questões a respeito do poder de
uma representação. Para a autora, “todas as práticas de significação que produzem
significados envolvem relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído
e quem é excluído” (p.18).
O profissional de saúde ao observar o desnivelamento desenvolvimental e os
conflitos familiares, faz esse movimento de decidir quem será incluído ou excluído da
clínica psicológica. A Entrevistada 2 recorda “de um adolescente que chegou a
fonoaudióloga com 12 anos, com a fala muito comprometida, porque a família
acreditava que Deus iria curar, e na ignorância levou tempo demais para procurar o
serviço devido ao conflito familiar em função da religião” (Diário de Campo,
26/11/2018). Neste caso, a entrevistada compreendeu que o conflito prejudicou o
desenvolvimento, encaminhando o adolescente para a psicoterapia.
Durante as entrevistas, perguntei aos profissionais da Rede quais as
características das crianças e dos adolescentes que vivem conflitos familiares. No
atendimento a este questionamento, obtive a seguinte resposta:
A gente percebe uma criança extremamente insegura, ou eu percebo as
vezes uma alteração grande no humor, ou eu vejo que é uma criança
muito apática, muito triste, ou é uma criança que resolve tudo de uma
forma sempre agressiva, independente do conflito, às vezes é um
probleminha simples, e a criança resolve da maneira mais agressiva
(Entrevistada 1).
55
Noto que o referencial para o encaminhamento à clínica especializada, segundo
a Entrevistada 1, refere-se à alteração no humor ou no comportamento. Percebo que se
trata de uma avaliação individual no qual os sintomas que a criança manifesta servem de
parâmetro para aquilo que se espera de uma criança tida como saudável ou normal, o
que refere, novamente, aos processos de formação de uma identidade relacional.
A respeito de uma série de práticas e intentos que buscam uma regulação dos
comportamentos sociais através de representações culturais de determinados sujeitos,
com efeitos de produção de indivíduos saudáveis, Rose (2013) afirma que faz algum
tempo que as práticas biomédicas desempenham um papel na modelação das
subjetividades. Menciona que o cuidado com o corpo se estendeu à mente, surgindo
novas ciências neurológicas, comportamentais e farmacêuticas, que prometem não
somente o combate ou a cura, “mas a correção e o incremento dos tipos de pessoas que
somos ou queremos ser” (p. 45). Tais esforços contemporâneos com base nos saberes
biomédicos constroem formas de subjetividades e representações de sujeito que se
ajustam às demandas aqui investigadas de medicalização de comportamentos.
Percebo que os próprios profissionais da saúde sofrem os efeitos da modelação
da subjetividade em suas condutas clínicas, e até mesmo na forma em que são moldados
como profissionais da Rede Protetiva. Rabinow e Rose (2006) referem-se aos modos de
subjetivação, através dos quais as pessoas são levadas a atuar sob certas formas de
autoridade, em relação aos discursos de verdade em nome da saúde. Os profissionais do
NAM aqui investigados, em nome das representações de sujeito em pleno
desenvolvimento e de sujeito adoecido pela família conflitante, subjetivados em nome
da saúde e da garantia de direitos, escolhem os melhores encaminhamentos a serem
tomados. Assim, o sujeito adoecido pela família conflitante precisa de uma avaliação
psicológica que confirme atrasos de desenvolvimento, e de um posterior
acompanhamento psicológico para reestabelecer o curso adequado. Ressalto que a
conduta medicalizante recai sobre o menor, pois não é sua família que foi encaminhada
para a clínica especializada, e sim somente o membro tido como sintomático.
2.3.1.3 O sujeito da Assistência Social encaminhado para garantir seus Direitos
Quanto aos sujeitos encaminhados pelos setores da Assistência Social com a
queixa de conflito familiar, ocorrem duas situações distintas, complementares. Quando
56
uma família é encaminhada ou assistida pelo CREAS5, na prática significa que os
vínculos familiares estão rompidos, e cabe aos profissionais trabalharem a reconstrução
dessas relações familiares e das situações envolvidas. Por isso que as pessoas atendidas
pelo CREAS necessariamente estão ou vivenciaram alguma situação de maus-tratos,
negligência, abandono, violência, discriminação, cumprimento de medidas
socioeducativas, em situação de rua... Já as crianças ou adolescentes encaminhados pelo
abrigo foram acolhidos e retirados de sua família, com vistas a assegurar a reintegração
familiar e a garantia de seus direitos e de proteção, como previstos no ECA. Sobre a
casa de passagem segue uma reflexão:
De todos os lugares o abrigo reflete os Conflitos Familiares, e
me lembra as tentativas não muito bem-sucedidas da família na
conduta com seus filhos. Na verdade, o abrigo caracteriza o
fracasso familiar, fracasso das relações em que deveriam
oferecer suporte emocional e material às crianças; fracasso do
pai, da mãe, do avô, da avó, da família extensa que falhou no
seu papel. Tenho esse pensamento reflexivo, por também
inserir-me na Rede, e ser efeito do discurso de cuidado e de
proteção (Diário de Campo, 27/11/2018).
De qualquer forma entendo que nesses setores citados, os sujeitos são
representados como aqueles que tiveram seus vínculos familiares rompidos, por isso,
tiveram uma privação de um dos direitos garantidos pelo ECA, devendo por tanto, ser
encaminhados para serviços de saúde, que como consta no documento oficial (BRASIL,
2005) deve oferecer um atendimento integral à criança e ao adolescente,
preferencialmente dentro de uma equipe multiprofissional, justificando o
encaminhamento dos profissionais da Assistência Social para a psicóloga clínica, como
consta no ECA, Capítulo I, que dispõe dos Direitos à Vida e a Saúde:
Art. 11 - Art. 11 - É assegurado atendimento integral à saúde da
criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde,
garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para
promoção, proteção e recuperação da saúde. (Redação dada pela Lei
nº 11.185, de 2005) ECA.
5 O CREAS é um programa federal de Assistência Social, de alta complexidade, que oferece apoio e
assistência às famílias e sujeitos em situação de ameaça ou violação de direitos. Segundo informações do
site da Assistência Social do Governo Federal, há no país 2.155 CREAS, locais ou regionais, prestando
cerca de 65 mil atendimentos anuais, tendo como foco principal a família e a reconstrução de vínculos
familiares. Fonte: BRASIL. Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS).
Disponível em: >http://www.brasil.gov.br/cidadania-e-justica/2011/10/centro-de-referencia-
especializado-de-assistencia-social-creas>. Acesso em: 29/03/2019.
57
Ressalto duas compreensões de sujeitos: o sujeito com vínculo familiar que
possui seus direitos garantidos; e o sujeito com vínculos familiares rompidos e privado
de seus direitos, portanto, em situação de risco. Azevedo (2001) aponta que a violação
de direitos é um atentado aos direitos das crianças e dos adolescentes estabelecidos no
ECA. Trata-se de “negligências por parte dos pais ou responsáveis; vivências nas ruas
ou em instituições de abrigo; violência física, psicológica ou sexual” (p.110). Cruz et al.
(2006) explicam que o ECA tem em sua instância garantir a integridade física e
psicológica de crianças e adolescentes em situação de risco. Marcelli (1998) corrobora
afirmando que é mais uma preocupação com o estado futuro da criança ou do
adolescente, do que o estado presente. Por isso, conforme o autor muitas vezes ordena-
se uma medida de consulta, isto é uma avaliação ou acompanhamento psicológico.
Conforme o autor essa medida profilática é muito comum...
“Tanto que muitas vezes as crianças ou adolescentes acolhidos na casa
de passagem são encaminhados pelo juiz para a avaliação psicológica,
sem apresentar sintomas, isso é, desenvolvendo-se plenamente dentro
dos padrões de normalidade esperados” (Diário de Campo,
27/11/2018).
Stubbe (2008) assinala que as crianças e adolescentes acolhidos são
encaminhados por apresentarem problemas legais. Ou seja, por serem assistidos por
instituições regulamentadoras de condutas, tais como a Vara da Infância e da Juventude
ou Ministério Público.
Hall (2000) explica que os significados são atribuídos aos objetos, pessoas e
eventos através da estrutura de interpretação. Para o autor, tem efeitos reais e regulam as
práticas sociais. Os profissionais da Assistência Social interpretam o rompimento de
vínculo como um motivo para encaminhar as crianças e os adolescentes. Para tanto,
utilizam o modelo ideal de família no qual todos os membros estão vinculados uns aos
outros como referencial. Hall (2000) pontua que possuímos um conjunto de
representações mentais a respeito das coisas. Enfatizo que a respeito da família, ainda
há um viés conservador e tradicionalista, e uma imagem de membros vinculados, tal
como a do comercial de margarina. Quando isso não ocorre, os profissionais da Rede
protetiva necessitam encaminhar os membros menores de 18 anos à clínica psicológica,
para resolver os conflitos, restaurando o equilíbrio. Assim, acaba por existir um outro
tipo específico de sujeito, o sujeito (a ser) medicalizado.
58
As famílias também estão sendo transformadas em famílias medicalizadas,
reguladas nessa cultura, e isso influencia na representação social das mesmas, como
afirma Hall (2000), afetando as identidades e as subjetividades das pessoas enquanto
atores sociais. Para contribuir com a discussão, apresenta-se uma das falas do
Entrevistado 5 quanto às subjetividades das mães:
“Antigamente as famílias chegavam no Conselho Tutelar com
duas ou três crianças para entregar porque as mães tinham que
ser felizes, viver a vida... Agora elas chegam com os
adolescentes, muitas querem ver seus filhos no abrigo. Lá eles
são cuidados” (Entrevistado 5).
Conforme o excerto do Entrevistado 5, a cultura de garantia de direitos e de
proteção aponta por exemplo, que o abrigo é um local seguro que garante o
desenvolvimento de uma criança ou adolescente, tanto que algumas mães querem
entregar as crianças. Neste caso, cabe ao Conselheiro reforçar aos responsáveis os seus
papeis perante o que exige o Estado. Rose (2013) explica que em nome da saúde há
diversos instrutores em modelação da forma de vida, tais como os conselheiros
(Conselheiros sexuais, conselheiros da família, conselheiros de relacionamentos,
conselheiros educacionais, conselheiros genéticos). Percebo que o psicólogo clínico
entra aqui como um deles, visando trabalhar o conflito familiar, porque como aponta
Féres-Carneiro (2011, p.28) “os conflitos são positivamente valorizados quando as
diferenças e as discordâncias entre os membros da família são vistas por eles, não como
ameaça, mas sobretudo, como algo que pode ser construtivo, na medida em que
estimule o crescimento familiar”. Assim, de uma forma medicalizante cabe ao psicólogo
trabalhar para que a família cresça, ou seja, volte à normalidade funcional. Então, em
nome da garantia de direitos de uma criança cujos vínculos foram rompidos,
encaminha-se para clínica especializada a fim de tratá-la, para que seu direito ao
cuidado seja restabelecido.
Por outro lado, Ribeiro (2017) aborda em uma reportagem sobre a medicalização
na infância trazendo um questionamento: “garantia de direitos ou controle social?”
(p.01). Nessa discussão cita que muitos abrigos no Estado de São Paulo tinham a cultura
de medicar as crianças em situação de rua ou vulnerabilidade social. Menciona que
durante 10 anos esses menores de idade foram medicados nessa estrutura de doença. A
autora aponta uma reflexão na qual o sujeito criança e o sujeito adolescente estão sendo
controlados pelo Estado. Tal discussão será abordada a seguir.
59
2.3.1.4 O governamento das famílias e dos profissionais da rede por meio da
medicalização dos conflitos familiares
No caso deste usuário, conforme nosso combinado,
devo previamente informar ao Ministério Público e
ao CREAS sobre as datas das consultas, bem como,
sobre a frequência às mesmas. Tal conduta foi
tomada visto se tratar de um adolescente de 11 anos,
em situação de vulnerabilidade social, com histórico
de fracasso escolar (reprovou cinco vezes no terceiro
ano), que transita de bicicleta de Penha para
Navegantes (cidade vizinha), cujo pai e mãe não
conseguem exercer seus papeis, segundo o poder
público, nem possuem autoridade sobre ele. A
promotora reforçou que se esse jovem não se
submeter a uma avaliação psicológica, será acolhido
pela equipe da Casa de Passagem, e sua família
perderá o poder familiar6. O pai, pescador,
semianalfabeto, não compreende a necessidade de
trazer seu filho ao psicólogo por causa disso,
justamente porque seu filho mais velho passou pelas
mesmas dificuldades. Após a avaliação do paciente
(termo utilizado pelo SUS) citado a pedido do MP
devo encaminhar o laudo psicológico para um
médico neurologista avaliá-lo (Diário de Campo,
29/01/2019).
O caso relatado nesta discussão de abertura enquadra-se em várias formas de
governamento e sobre diferentes tipos de sujeito, como do adolescente, da família e dos
profissionais da Rede das Instituições de Saúde e da Assistência Social que se tornam
responsáveis pelos atendimentos da rede. Conforme exposto, os comportamentos tidos
como desviantes referem-se à evasão escolar, a dificuldade de leitura e de escrita, e não
adesão aos tratamentos medicalizantes por parte do adolescente e de seus familiares.
Como a família não está cooperando com a determinação da promotoria, infere-se sobre
seus membros um modo coercitivo de controlá-los e de governá-los para que prossigam
com a avaliação psicológica.
Brzozowiski e Caponi (2013) pontuam que quando uma criança é avaliada por
um profissional de saúde a responsabilidade pelo comportamento desviante é
6 Conforme o site Jus.com.br o poder familiar é utilizado para designar o complexo de direitos e deveres
que compete aos pais em relação aos filhos menores de 18 anos. Fonte:
<https://jus.com.br/artigos/35295/patrio-poder-x-poder-familiar>. Acesso em: 16/05/2019.
60
compartilhada com ele. Segundo as autoras, o controle social é uma forma pela qual a
sociedade minimiza ou normaliza o comportamento desviante, ou seja, qualquer
conduta indesejável socialmente. Para elas, os grupos sociais definem as regras de
conduta, bem como a existência de desvios. Explicam que o profissional de saúde é um
agente oficial de controle social, com o objetivo de mudar o comportamento inaceitável.
Veiga-Neto (2002, p.29) assinala o termo governabilidade, referindo-se “a qualidade
daquilo ou daquele que é governável, que se deixa governar, que é dócil”. O autor
reflete sobre o governamento dos corpos, por volta do século XVIII, com o
desenvolvimento de técnicas de disciplinamento e docilidade. Além disso, refere-se a
modos em que o Estado foi se tornando governamental. No caso anteriormente
apresentado, a família não se deixou facilmente governar, tanto que questionou e
ofereceu resistência à conduta medicalizante, mas como há uma relação hierárquica já
que envolve os profissionais da Rede e o MP, e uma possível punição caso não
compareça, frequenta as sessões sem cumprir com o enquadre espaço-temporal da
clínica psicológica, em outras palavras, leva o adolescente para as consultas somente
quando estão dispostos.
Veiga-Neto (2002) fazendo uma retrospectiva sobre os estudos foucaultianos
aponta que governar não se restringe somente a gestão política e estatal, e sim à maneira
de dirigir as condutas das pessoas. Foucault (1995, p.244) exemplifica várias formas de
governo “das crianças, das almas, das comunidades, das famílias, dos doentes”.
Todavia, ainda segundo Foucault (1995, p.240), o Estado coloca em jogo as relações
entre os indivíduos, como parceiros, no qual “as ações se induzem e se respondem umas
às outras”.
Trazendo o governamento e as relações de poder para o presente estudo,
compreendo que quando uma criança ou adolescente com a queixa de conflito familiar é
encaminhado para a clínica especializada de Psicologia, o profissional de Saúde ou
Assistência Social interpreta a necessidade do encaminhamento observando a ausência
de normalidade na família, na qual faz parte o governamento para que a família volte a
funcionar, exercendo sobre ela uma relação de poder no sentido do lugar que se
encontra enquanto profissional da Rede, como percebido no excerto apresentado:
A família não consegue, não sabe como ajudar, não consegue ver o
quanto está interferindo a negligência, ou a ausência [...] se a família
não está funcionando bem, alguma coisa a criança vai estar
61
sinalizando em alguma área. Daí é preciso encaminhar. (Entrevistada
2).
No caso das famílias assistidas pela Casa de Passagem ou pelo CREAS, os
profissionais da Assistência Social atuam no monitoramento das condutas familiares,
como já visto nas discussões anteriores, apontando aos membros familiares
direcionamentos que incluem o acompanhamento psicológico e psiquiátrico, por
exemplo, além da procura de emprego, capacitação para o mercado de trabalho, dentre
outros. Conforme Conrad (2007) esse controle ocorre por meio da medicalização, uma
forma cultural de controle social, que cria expectativas sobre o corpo, comportamento,
no qual as expectativas médicas estabelecem os limites do comportamento e do bem-
estar. Essa forma de controle pela medicalização se assenta, de forma atualizada ao
contexto biotecnológico que hoje temos, naquilo que Foucault (1995, p. 242) analisou
sobre as relações de poder e a obediência na sociedade europeia do século XIX, e que
chamou de disciplinarização da sociedade, na qual “os indivíduos que dela fazem parte
se tornam cada vez mais obedientes”.
Como menciona Mitjavila (2015) para que ocorra a medicalização é preciso que
se deflagrem algum processo de problematização social caracterizado por certo nível de
risco, tal como elencado na fala do conselheiro tutelar que exerce poder sobre as
famílias:
Um adolescente que convive com a família ou que pelo menos poderia
viver com a família, mas que não frequenta a escola, que a mãe de
repente com as saídas dele, com o círculo de amigos dele, ele começa
a se distanciar dessa família, e começam a ocorrer alguns problemas
(Entrevistado 5).
Nesse ínterim é possível trazer à baila a definição de Foucault (1995) em relação
às relações de poder e de governo, quando o autor pontua que uma relação de poder é
definida pelo modo em que uma ação age sobre o campo possível de outra, e não apenas
direta e imediatamente sobre os outros. Isso ocorre porque o outro coloca-se como um
sujeito de ação. Para o filósofo (1995, p. 235):
“Há dois significados para a palavra sujeito: sujeito a alguém pelo
controle e dependência, e preso a sua própria identidade por uma
consciência ou autoconhecimento. Ambos sugerem uma forma de
poder que subjuga e torna sujeito a”.
62
Assim, no exercício do poder há o governamento do Estado, através de suas
diferentes ações e instituições, no campo de ação do sujeito. Além disso, conforme
Foucault (1995) é preciso haver liberdade para que o poder se exerça. Compreendo que
quando as famílias se recusam a submeter seus filhos e filhas, e acabam lutando para
permanecerem em liberdade, o Estado numa relação de poder utilizando-se dos
documentos oficiais como o ECA e das prerrogativas das leis e sanções, atua com o
dispositivo medicalizante como um modo de governamento.
Por outra via, a maneira das famílias se comportarem, recusando-se em assinar
os termos de compromisso de atendimento individual, não comparecendo semanalmente
às sessões avaliativas, chegando atrasadas às consultas (sabendo que o tempo de
atendimento torna-se reduzido), agindo à beira da ilegalidade, tanto que podem sofrer
algum tipo de punição pelo MP, evidenciam também resistência à medicalização
coercitiva de suas vidas. Veiga-Neto (2008) afirma que é sempre possível exercer uma
resistência, nesse caso compreendida como uma reação ou uma ação contra o poder.
Porém, “resistir a uma ação de poder significa problematizar tal ação, valendo-se para
isso, também do poder” (VEIGA-NETO, 2008, p.22).
A partir do momento em que o MP ameace acolher as crianças e os adolescentes
das famílias que não se submetem a avaliação psicológica e aos tratamentos médicos;
ou observando a circunstância de atuação em que os profissionais da Rede se
encontram, que também podem ser punidos caso não obedeçam as determinações
judiciárias, caso não agendem os pacientes encaminhados no prazo solicitado, há um
deslocamento entre as relações de poder e as relações de violência. Consoante Veiga-
Neto (2008) as relações de poder se dão sempre como estratégias de luta. Para o autor,
não há relações de poder sem resistências, “que são tão mais reais e eficazes quanto
mais se formem ali mesmo onde se exercem as relações de poder, a resistência ao poder
não tem de vir de fora para ser real” (VEIGA-NETO, 2008, p. 22).
Desta forma, trava-se uma luta ou um jogo de relações saber-poder, afinal as
famílias apresentando-se resistentes aos modos de subjetivação, tornam-se também
pontos de exercício do poder, pois segundo Veiga-Neto (2008) só há poder se houver
alguma chance de fuga, por parte daqueles que sofrem as ações. Como percebido na
discussão, as famílias encontram formas alternativas de manterem-se lutando. Sob o
meu ponto de vista, algumas famílias lutam até o fim, colocando-se em oposição e
mantendo-se de modo a não acatar o que delas se tenta extrair. Todavia, algumas
63
tornam-se suscetíveis, principalmente, quando deparam-se com as relações de violência,
e acabam permitindo serem medicalizadas.
Kamers (2013) autentica afirmando que a medicalização atua como um
dispositivo de controle e de vigilância que as instâncias superiores dispõem sobre as
famílias. Assim, os profissionais de saúde e assistência social, conforme Kamers (2013)
agem como reformadores especialistas encarregados de dizer sobre como se deve
educar uma criança. O exemplo do Entrevistado 5 corrobora com essa argumentação,
pois trata-se de um adolescente percebido como em vulnerabilidade social, ou seja, que
ocorre riscos de evadir-se da escola, de tornar-se um menor infrator, e que precisa ser
encaminhado à clínica especializada para acompanhamento psicológico. A questão da
evasão escolar é especialmente valorizada, como um dispositivo de controle social e
governamento. Howe (1992) enfatiza que o paradigma da proteção consolidou em
vigiar, investigar e controlar de forma sistemática e punitiva as famílias. Danzelot
(1986) aponta a polícia das famílias que são os dispositivos de controle e normalidade
social. Por isso, o conselheiro tutelar se recorda de um programa governamental...
A gente se pauta muito pelas referências ou a falta delas. O Apoia que
é um Programa do Governo Estadual com relação as escolas, evasão
escolar, às vezes, ele também está indiretamente implicando no
conflito familiar (Entrevistado 5).
Kamers (2013) explica que a educação e a escolarização são modos de garantia
da ordem pública. O Programa Bolsa Família é um excelente exemplo de controle
familiar, pois as famílias só recebem o valor mensal se as crianças e adolescentes
tiverem presença na escola, monitoradas pelo Programa Apoia, como cita o conselheiro.
Uma criança ou adolescente que não frequenta a escola é tido como em situação de
risco. Contudo, no limite, poderíamos inferir que a evasão escolar pode ser uma forma
de resistência ao governamento, como no caso discutido na abertura deste capítulo, em
que o jovem pelas suas dificuldades de leitura e de escrita é um candidato a abandonar a
escola após os anos de estudos obrigatórios, por não se adequar ou subjetivar ao sistema
imposto. Obviamente é necessário aqui uma ressalva: a evasão escolar não opera
somente numa lógica de resistência e é, sim, um grave problema social que precisa ser
amplamente investigado. O que motivou a discussão aqui é que tal exercício pode ser
compreendido à luz dos jogos de poder e de subjetivação em crianças e adolescentes
tidos como parte de processos de conflito familiar, ou em risco, em função desses.
64
Mitjavila (2015) explica que fatores de risco estão relacionados com a
probabilidade de ocorrência em um futuro determinado, de algum dano indesejado do
ponto de vista da normalidade. Trazendo para a realidade do presente estudo estas
discussões, sabemos que é uma das obrigações das escolas, independentes de serem
públicas ou privadas, informarem ao Conselho Tutelar a respeito do número de faltas
das crianças, e que tais conselheiros devem investigar os motivos pelos quais há faltas,
acionando o MP que cobrará a responsabilidade das famílias.
Para Ribeiro (2017) a medicalização é uma forma de prescrever o modo correto
de se criar filhos, são dispositivos para tentativas de normatização. Castel (1981) chama
tal prática de tecnologias políticas de gestão de riscos sociais, e por sua vez, Mitjavila
(2015) explica que mapeiam-se os riscos, aplicando penalidades e modalidades de
tratamento, como elencando na fala da psicóloga do abrigo municipal:
A gente vai elencando as metas, o que a família precisa fazer, para
atingir, conseguir aquela guarda da criança. A gente faz um plano de
ação com a família. A família tem que cumprir com aquele plano
(Entrevistada 3).
Consoante o excerto acima, percebo que é dada uma série de tarefas e um tempo
hábil para que a família possa se reestabelecer. Como uma criança não pode ser
acolhida por mais do que dois anos num abrigo municipal, quando a família não
consegue voltar à sua normalidade, corre o risco de perder o poder familiar, e ter seu
filho ou filha encaminhado à adoção. Por isso, faz parte da conduta dos profissionais
monitorar, avaliar, dedurar ao MP qualquer movimento considerado desviante.
Conforme Danzelot (1986) o saber médico vem neutralizar a desadaptação da
criança, mediante toda uma estrutura de prevenção. Ainda, Brzozowiski e Caponi
(2013) pontuam que as medidas corretivas ou de adaptação visam à cura. Ou seja, a
normalidade familiar, como citada na fala do psicólogo do CREAS:
Todo o nosso trabalho aqui é envolvendo o empoderamento da família
[...] todo o nosso trabalho é voltado para que a família tenha a
resolutibilidade do seu problema (Entrevistado 4).
Contudo, quando uma criança ou adolescente são encaminhados com suas
famílias para a clínica especializada de Psicologia, para a realização de uma avaliação
psicológica, que busca encontrar um transtorno que justifique o comportamento
65
desviante, pelos profissionais da Rede de Proteção, é possível inferir, a partir de
Foucault (2004), que trata-se do Estado atuando na contenção, no controle e no registro
das doenças. Porém, segundo o autor, é como se o cuidado com o corpo assegurasse o
status de cidadão, como pode ser percebido na fala da psicóloga do abrigo:
O conflito familiar se ele é bem remanejado, ele é até saudável. Aqui
nós temos várias famílias que tiveram conflitos. Isso tem o lado bom.
Para manter o equilíbrio da família (Entrevistada 3).
Gaudenzi e Ortega (2012) complementam afirmando que algumas famílias e
pacientes reivindicam o estatuto da doença, pensando na garantia dos direitos sociais.
Ortega (2009) salienta, ainda, que essa reivindicação é um reflexo da biossociabilidade,
no qual os indivíduos partilham a mesma identidade de acordo com critérios de saúde e
biológicos que podem ser manipulados.
Rose (2013) pontua que estamos experimentando uma medicalização dos
problemas sociais, via condições biotecnológicas tais como as apropriações da vida
pelas tecnologias gênicas, que ampliam o imperialismo dos saberes biomédicos. Para o
autor, antigamente utilizavam-se as intervenções da medicina para curar patologias, para
promover estratégias biopolíticas por meio das modificações do estilo de vida. No
entanto, atualmente isso não apenas incide sobre processos de cura e correção como,
principalmente, pela formação de desejos nas pessoas, tal como uma cultura de mercado
e de consumo. Rose (2013) refere-se ao papel da medicina na subjetivação e, Rabinow
(1996), aponta a respeito de um grupo de pessoas que busca um diagnóstico, um
tratamento médico, e identificam-se nos novos tipos de identidade grupal e individual.
Rose (2013) nos recorda de projetos de cidadania organizados em nome da saúde, em
determinados regimes governamentais. Realizando uma analogia ao presente estudo,
tratam-se mais uma vez de formas de governamento que constituem modos de
subjetivação nos sujeitos envolvidos. Pensando assim, sujeitos que vivenciam conflitos
familiares, em nome da saúde e da cidadania, podem buscar ou serem encaminhados
para avaliação e diagnóstico das suas dificuldades sociais, culturais e relacionais.
A psicóloga do abrigo se recorda de crianças que foram ameaçadas pelos seus
responsáveis da seguinte maneira: “se não se comportar, volta para o abrigo” (Diário de
Campo, 27/11/2019). Compreendo que essa fala seja comum porque no abrigo as
crianças e adolescentes são instituídos de normas e regras sociais, frequentam a escola
com regularidade, são acompanhadas por equipes multiprofissionais da saúde e da
66
assistência social, ou seja, saem de uma situação de risco, para uma situação de controle
social e governamento. Além disso, há as autoridades do promotor e do juiz, que
procuram em nome do Estado regular as famílias através destas intervenções.
De qualquer modo, o Estado controla as famílias e os profissionais de saúde e da
assistência social. Eu mesma já fui ameaçada de prisão por não atender a um pedido do
judiciário, e como percebido devo prestar esclarecimentos frequentes ao MP, de casos
como o citado no início deste subcapítulo. Foucault (1995, p.247) refere que há as
relações estratégicas, como um “conjunto de procedimentos utilizados num confronto
para privar o adversário dos seus meios de combate e reduzi-lo a renunciar à luta”. São
essas relações estratégicas que fazem as famílias se submeterem muitas vezes às
condutas medicalizantes, e que nos fazem cumprir com as estratégias de poder do
Estado.
Assinalo que a Tecnologia Social apresentada e a proposta de trabalho anunciada
no subcapítulo a seguir podem, também, serem formas até mesmo mais sutis de
governamento, talvez como menos efeitos iatrogênicos do que o governamento em
forma de avaliação e acompanhamento psicológico solicitadas pelas instituições do
Estado. Porém, a representação do sujeito criança e adolescente pelo Governo, que
necessita de atendimento, molda o olhar de quem trabalha com a infância e a juventude.
E se a representação do sujeito fosse outra? Para tanto, Moyses e Collares (2013, p. 02)
traz uma importante reflexão:
As crianças que sofrem violência, são atendidas pelo sistema de saúde
e medicadas. O que eu digo é que tudo o que não se espera dessas
crianças é que sejam normais. Aí seria estranho. A medicalização
pode estar destruindo Direitos.
Costa (1999) afirma que as terapêuticas educativas atuais são ativistas da
medicalização. A autora não nega que a desestruturação familiar seja um fato social,
porém, do modo que está insistem em reeducar terapeuticamente as famílias de modo
medicalizante. Essa reflexão é um instrumento importante para a proposta de uma
Tecnologia Social para compartilhar com os profissionais da Rede de Proteção à
Criança e ao Adolescente, pois a minha preocupação é que as crianças e os adolescentes
continuarão sendo encaminhados para a clínica especializada. Porém, eu gostaria muito
de trabalhar com essa demanda, sem associar a um transtorno ou padrão de
67
normalidade, sem precisar avaliar e emitir um documento psicológico. Minha sugestão
encontrar-se-á a seguir.
2.3.1.5 A educação permanente dos profissionais da rede de proteção à criança e ao
adolescente como tecnologia social
Barreto e Piazzalunga (2012, p. 04) afirmam que a partir do ano de 2005 no
Brasil adotou-se chamar de Tecnologia Social "produtos, técnicas e/ou metodologias
reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas
soluções de transformação social". Conforme os autores, a tecnologia social propicia a
comunidade uma parte ativa, deixando de ser só o pesquisador e a pesquisa como os
beneficiários. Para eles a Tecnologia Social é vital para o sucesso da pesquisa em si.
Por se tratar de um Mestrado Profissional, como Tecnologia Social respondendo
a um dos objetivos específicos deste estudo, trago como proposta a construção de um
material pedagógico para a educação permanente dos profissionais da rede protetiva de
crianças e de adolescentes, que realizaram os encaminhamentos para a clínica
psicológica, com a queixa de conflito familiar.
Como psicóloga inserida num serviço de saúde do Sistema Único de Saúde
(SUS), da Prefeitura Municipal de Penha (SC), intento com essa Tecnologia Social
realinhar o fluxo das pessoas encaminhadas, reduzir os encaminhamentos individuais
para a psicologia clínica, ampliar o trabalho com as famílias (e não somente com as
crianças e os adolescentes, que nesse caso são os bodes expiatórios dos conflitos
familiares aos quais me refiro), e o mais importante, contribuir com a educação
permanente dos profissionais que encaminham.
Nietsche, Teixeira e Medeiros (2014, p.95) pontuam que uma tecnologia “serve
para gerar conhecimentos a serem aplicados e socializados”. Merhy e Onocko (2002)
explicam que as tecnologias na área da saúde recebem categorizações. Compreendo que
o material pedagógico encontra-se na categoria Tecnologia Leve-Dura, que se tratam de
saberes estruturados que atuam nas disciplinas na área da saúde; bem como, na
Tecnologia Leve, que de acordo com Merhy e Onocko (2002) referem-se aos processos
de comunicação, das relações, dentre outros exemplos.
O material pedagógico encontra-se também na categoria de uma Tecnologia
Educacional. Nietzsche (2000) menciona que Tecnologias da Educação são aquelas que
agrupam formas de auxiliar na consciência para uma vida saudável. Além disso,
68
Nietzsche et al (2005, p. 346) explicam que as Tecnologias Educacionais são
consideradas um “conjunto sistemático de conhecimentos científicos que tornam
possível o planejamento, a execução, o controle e o acompanhamento, envolvendo todo
o processo educacional formal e informal”.
Consoante Silva e Medeiros (2016) uma Tecnologia Social de Saúde possui uma
dimensão pedagógica. Conforme as autoras, refere-se à educação coletiva e remete ao
campo da formação. De acordo com as professoras, tal dimensão emancipa os atores
sociais, enfoca no campo de intervenção, envolvendo as partes interessadas. Para elas,
colabora e potencializa a troca de saberes, favorece o aprendizado mútuo.
A proposta da presente Tecnologia Social é realizar com os profissionais da
Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente uma educação permanente, cujo objetivo é
de promover uma reflexão sobre a prática profissional e sobre os encaminhamentos
realizados para a clínica psicológica do município. Visto que o mapeamento da rede,
bem como a descrição dos profissionais e instituições que encaminharam as crianças e
os adolescentes com a queixa de conflito familiar já foi concluído, a próxima etapa é
iniciar a educação permanente no início de setembro do presente ano no município de
Penha. Porém, já fui convidada pelo NASF de Balneário Piçarras a realizar uma Oficina
Pedagógica sobre a Medicalização dos conflitos familiares agendada para outubro. O
modelo do Termo de Aceite encontra-se anexo.
Conforme Zen (2011) num plano é necessário incluir tanto os desejos do
profissional, quanto as necessidades dos envolvidos. Pensando nisso, considerando a
pesquisa realizada e o fato de que a Rede continuará encaminhando as crianças e
adolescentes ditos em situação de conflito familiar para a clínica especializada, a
intenção é sair da metodologia tradicional, ou seja, não realizar aulas expositivas com
saberes transmitidos. Fazendo uma crítica à formação desses profissionais, essa
formação bancária ocorre frequentemente, seja pelos seminários e cursos que os
mesmos participam, seja pelas orientações técnicas dos documentos oficiais. O desejo é
de construir saberes com os profissionais da Rede, e por isso, um trabalho em grupo
será válido, em primeiro lugar, como possibilidade de encontro dos profissionais
comigo enquanto pesquisadora e profissional de saúde. O encontro entre nós é muito
raro de ocorrer, e quando ocorre, como mencionado no subcapítulo anterior, vem em
forma de governamento da minha conduta ou da conduta dos sujeitos atendidos na
clínica. Em segundo lugar pela possibilidade de trocas de saberes e de construção de
uma nova forma de se trabalhar com as famílias envolvidas nos conflitos familiares.
69
Assim, por meio de uma oficina pedagógica cujo roteiro encontra-se anexo,
enfatizaria como conteúdos: a diversidade familiar, o conflito familiar, a medicalização
do conflito familiar, e por fim, uma forma de atuar com as famílias, principalmente,
com as crianças e adolescentes, sem medicalizá-las. Como a pesquisa já categorizou a
representação dos sujeitos que são encaminhados para a clínica psicológica, bem como
a concepção de conflito familiar, e utilizando esses conhecimentos prévios, como
metodologia ativa planejo trabalhar com situações simuladas, dramatizações (role play)
e estudo de casos (reais ou fictícios), visando as seguintes etapas e finalidades:
1. Compreender as histórias das famílias que são recebidas pela Rede com
questionamentos: De que lugar vieram? Por que escolheram Penha? Como
viviam na cidade que residiam anteriormente? Como se organizavam lá com
suas crianças e adolescentes? Como foi a “Educação, Criação” dessas pessoas?
Que práticas eram comuns?
2. Identificar a representação do conflito familiar nos estudos de casos, fazendo
uma reflexão sobre a ausência de definição e a generalização do termo conflito
familiar.
3. Abordar a criança como alvo das condutas medicalizantes e os efeitos disso (os
rótulos e a medicação precoce, por exemplo).
4. Construir uma nova forma da rede trabalhar com as famílias em conflito, sem
encaminhar as crianças e os adolescentes para avaliação psicológica, de forma
direta e imediata como ocorre atualmente.
Minha proposta consiste em fazer um trabalho com esses profissionais, para que
futuramente eu possa atuar de uma maneira diferente com as famílias que forem
encaminhadas para a clínica de Psicologia. Entendo que enquanto psicóloga clínica
numa instituição de saúde há algumas expectativas quanto ao meu papel e ao lugar
ocupado por mim. Do mesmo modo, não nego que muitas famílias estão desestruturadas
(como no caso de uma família que passa pelos impactos de uma situação de separação
ou divórcio, por exemplo), passando por dificuldades, ou em situação de sofrimento
psicológico. No entanto, eu gostaria de atuar com as famílias encaminhadas escutando
sobre suas histórias, compreendendo as diferenças culturais na subjetivação desses
sujeitos, resgatando a autoestima dos seus membros e organizando uma forma de atuar
sem que suas crianças e adolescentes sejam submetidas às avaliações psicológicas, que
70
geram pareceres e laudos a respeito das performances dos seus membros, enquadrando
em diagnósticos clínicos.
Compreendo que minha proposta também se trata de uma forma de
governamento porque geralmente essas famílias não escolheram por vontade própria
estarem ali, sendo encaminhadas pelas demais instituições da Rede de Proteção,
apresentando resistências quanto ao atendimento clínico na maioria das vezes. No
entanto, ao apresentar uma proposta alternativa, seja possível o desenvolvimento de
uma prática com menos ênfase nas psicopatologias e menos coercitiva (e ameaçadora),
e com mais participação dos familiares, mais envolvimento e diálogo, favorecendo que
as famílias encontrem algum sentido nessa vivência, de modo que não se insira apenas
em práticas de patologização calcadas em saberes biomédicos, incitando que participem
desses encontros na clínica psicológica.
Como avaliação ressalto que o feedback dos envolvidos na atividade, bem
como as modificações no processo de trabalho cotidiano serão registrados no diário de
campo, gerando uma outra prática da Psicologia no SUS, para posteriormente publicar o
relato desta experiência e, quiçá utilizá-la como uma referência de trabalho clínico.
71
3 CONCLUSÃO
A frequente demanda de crianças e de adolescentes encaminhados com a queixa
de conflito familiar pelos profissionais da Rede de Proteção à clínica especializada do
SUS, para avaliação e posterior acompanhamento psicológico, levou-me a procurar
compreender como os profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente do
município de Penha/SC constroem representações de sujeitos a partir dos
encaminhamentos que foram realizados para a clínica psicológica do município tendo
como justificativa a queixa de conflito familiar.
O presente estudo quanto aos objetivos específicos previu: mapear a Rede de
Proteção à Criança e ao Adolescente; descrever os profissionais e as instituições que
realizam os encaminhamentos; identificar a concepção de conflito familiar pelos
profissionais que encaminham; relacionar os processos de encaminhamento às
tendências de medicalização da sociedade contemporânea; e construir material
pedagógico para a formação continuada de profissionais que fazem parte da Rede de
Proteção à Criança e ao Adolescente acerca dos encaminhamentos que compõe o
conflito familiar.
Os percalços da coleta de dados iniciaram com a demora para a aprovação no
CEP, devido algumas inconsistências nas assinaturas dos Termos de Aceite. Mapeando
a Rede, e descrevendo os profissionais e as instituições, constatei que deveria entrevistar
ao todo 11 sujeitos. No entanto, com as exonerações e novas contratações, alguns dos
profissionais previstos foram excluídos, não compondo a gama de entrevistados. Apesar
de parecer algo comum, essa foi a primeira experiência frustrando-me enquanto
pesquisadora, mas muito significante, pois se refere ao ideal da pesquisa, contrapondo
com o que a realidade me apresentou.
Outro ponto de importante significado foi à questão da Rede de Proteção ter se
reduzido às instituições Saúde e Assistência Social no mapeamento realizado. Causou-
me um impacto a percepção que as famílias e seus conflitos não foram mencionados em
nenhum dos encaminhamentos que recebi no período de abril de 2017 a abril de 2018
pela instituição Educação. Compreendi que isso ocorre pelo modo como os profissionais
da educação, que foram moldados a enxergar o desempenho e o comportamento dos
seus alunos exclusivamente pelas dificuldades escolares de aprendizagem e conduta,
sem olhar para as relações familiares.
72
Quanto aos profissionais de saúde, as referências de normalidade, estando as
crianças e os adolescentes dentro ou fora do esperado no seu curso de desenvolvimento,
sendo os conflitos familiares responsáveis por esse dito atraso no desenvolvimento,
moldaram as representações de sujeitos encaminhados por essa instituição. Como
apresentado na discussão, os profissionais de saúde são subjetivados pelos saberes
médicos, que focam em noções de normalidade, nas comparações entre o ideal, o
normal e o adequado, conhecimentos esses utilizados por quem encontra-se na clínica
especializada.
Já os profissionais da assistência social, esses se pautaram no rompimento de
vínculos, na garantia de Direitos, na potencialidade do risco social, sendo os conflitos
familiares motivos para que as crianças, os adolescentes e suas famílias fossem
submetidos ao processo medicalizante. Pelo que foi apresentado no estudo, ressalto que
é muito mais uma preocupação com o futuro dessa criança ou adolescente do que com
seu estado atual, pois mesmo aqueles que não apresentam sintomas clínicos são
encaminhados para uma avaliação que ateste que os mesmos seguem em curso normal
de desenvolvimento, não apresentando sintomatologias fora do padrão de normalidade.
Pensando a respeito das concepções desses profissionais de saúde e da
assistência social no que se refere ao conflito familiar, ressalto que o modelo ideal de
família, isento de conflitos, em que todos os membros exercem seus papéis
determinados pelos padrões sociais, seguem regras de condutas ditadas socialmente, por
exemplo, mantendo o vínculo com seus membros, conseguindo exercer autoridade com
suas crianças, mantendo seus filhos dentro de suas casas, exigindo que os menores
frequentem a escola, mesmo passando pelas ditas dificuldades de aprendizagem,
refletem na concepção de conflito. Todavia, o parâmetro da normalidade da família
torna-se um motivo para encaminhar as crianças e os adolescentes, a fim de que os
menores se sujeitem a uma avaliação psicológica clínica.
Na revisão de literatura realizada, bem como no material empírico, não foi
encontrada uma definição do que é conflito familiar. E mesmo que tivesse encontrado
algum sujeito ou literatura que a definisse, nenhum dicionário, teórico ou profissional,
conseguiria dar um significado para algo que é muito peculiar às famílias, respeitando
as dinâmicas familiares, a cultura em que os membros estão inseridos, os problemas
sociais que essas famílias encontram. Então, socialmente, parece-me mais pertinente
julgar a família e encontrar no conflito familiar um motivo de desordem, enquadrar seus
membros num atendimento clínico que encontre uma psicopatologia, elaborar um
73
diagnóstico, prescrever uma terapêutica e responsabilizar os menores pelos conflitos
que suas famílias enfrentam.
Como psicóloga clínica e pesquisadora, durante a escrita dessa dissertação,
muitas vezes senti um medo de desqualificar os sentimentos e o sofrimento dessas
famílias, pois intento que frequentemente estou enfatizando que os conflitos familiares
não são motivos para que as crianças e os adolescentes se submetam a uma avaliação
psicológica. Tenho clareza que não nego que essas famílias possam realmente estar
passando por algum tipo de problema e estejam sofrendo. No entanto, não me sinto
confortável em ter que submeter uma criança ou um adolescente ao rigor de uma
avaliação psicológica, que é um processo bastante longo (pelo menos oito sessões
avaliativas), aplicar uma série de instrumentos e testes psicológicos, encontrar um
diagnóstico baseado no DSM 5 para enquadrá-la numa psicopatologia.
Contudo, tendo uma melhor compreensão das relações de poder, de resistência e
de violência, discutidas no subcapítulo a respeito do governamento das vidas das
crianças, dos adolescentes e das famílias, e bem como de nós (incluo-me) profissionais
que atuamos na Rede de Proteção, e que somos governamentados pelos documentos
oficiais, dentre eles o ECA, socialmente temos a “obrigação” (aspas minhas) pelo lugar
que ocupamos em acolher essa criança ou adolescente em situação de vulnerabilidade,
de risco social, ou em conduta desviante, causado pelos conflitos familiares. Considero
interessante que os documentos oficiais preveem uma forma punitiva para quem não
cumpre com suas obrigações. As famílias são ameaçadas por não estarem ofertando aos
menores a garantia de direitos; os profissionais da Rede em nome da perda do direito, a
fim de restaurar, precisam submeter as pessoas aos tratamentos medicalizantes, e se não
o fizerem, há punições também previstas. Nesse ínterim ocorre um jogo entre as
autoridades envolvidas (Conselho Tutelar, MP, Judiciário) e os profissionais da saúde e
da assistência social, que numa dinâmica entre fazer o trabalho e oferecer resistência,
vão ganhando prazos. Do mesmo modo, ocorre com as famílias que precisam se
submeter a essa prática clínica. Vão oferecendo resistência, comparecendo e faltando,
até desistirem completamente de serem medicalizadas.
Recordo-me de uma frase que vi numa rede social em que dizia que o Direito
pelo Direito é opressor. Não sei quem é o autor. Essa frase registrada no meu Diário de
Campo em 05/12/2018 na fase de coleta de dados ganhou um significado nessa
dissertação. Atender as crianças e os adolescentes encaminhados para a clínica
psicológica com a queixa de conflito familiar, pensando na necessidade de normatizá-
74
los, em nome da garantia de direitos à saúde, no qual o ECA prevê atendimento
intersetorial, é exercer uma violência. Na clínica psicológica é papel do psicólogo
compreender de quem é o pedido para o atendimento. No caso dessas famílias ditas em
conflito familiar, raramente o pedido vem delas, é sempre do profissional da Rede que
intenta reabilitar, proteger, garantir o direito das crianças e dos adolescentes, a fim de
restaurar o curso de desenvolvimento ou de regular a família. Então, no meu ponto de
vista, é fundamental que as famílias resistam ao governamento.
Como psicóloga clínica não consigo conceber que as crianças, os adolescentes e
as famílias possam se desenvolver exercendo-se sobre os mesmos uma violência.
Assumo uma posição de trabalhar com essas pessoas envolvidas num modo mais sutil
de governamento, se possível evitando a avaliação psicológica e a emissão de laudo ou
parecer técnico que imprima a performance da família e do membro avaliado num
documento. Para tanto, a Tecnologia Social que pretendo aplicar, para mim tem um
valor especial, principalmente, por se tratar de um mestrado profissional. Sinto que a
aplicabilidade da educação permanente com os profissionais da Rede de Proteção não
esteja relatada na dissertação, pois não houve tempo hábil para tal. Mas a possibilidade
dessa formação e do papel social em que eu ocupo como psicóloga clínica da Rede, faz-
me refletir sobre o meu intento de também agir com governamento sobre os
profissionais, por mais dialógica que seja a minha proposta de oficina pedagógica.
Assim, com a nova proposta de trabalho que procurarei realizar com as famílias, intento
que esteja mais aberta ao diálogo, à compreensão da história familiar, a exploração das
diferenças culturais na subjetivação desses sujeitos, na escuta dos problemas sociais que
enfrentam. Ainda, trata-se de um modo mais sutil de governamento, porém não tão
violento, se assim posso esclarecer.
Comprometo-me em registrar e relatar no Diário de Campo o desenvolvimento
das oficinas pedagógicas previstas com os profissionais da Rede. Quanto ao registro do
trabalho com as famílias, esse estudo não prevê que tal procedimento seja realizado,
além do que seria um conflito de interesse, pois se tratam dos meus pacientes, das
famílias que eu atendo na clínica de Psicologia. Não seria ético, nem prudente, utilizá-
los para dar continuidade ao estudo. Por outro lado, abre um precedente para um estudo
futuro.
Assim, fica como sugestão de estudos futuros, que algum profissional do
mestrado interdisciplinar possa pesquisar essas famílias que passarão por um novo
processo medicalizante. Mesmo que a proposta seja outra, ainda se trata de uma forma
75
terapêutica de atuação com as famílias, uma outra forma de governamento e de
medicalização dos conflitos familiares. Um novo estudo pode ser realizado a respeito
disso.
76
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85
APÊNDICE – Artigo na integra submetido a Revista Interface.
MEDICALIZAÇÃO DO CONFLITO FAMILIAR E CONSTRUÇÃO DE REPRESENTAÇÕES DE SUJEITOS EM UMA CLÍNICA DE PSICOLOGIA DO
SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE
MEDICALIZATION OF FAMILY CONFLICT AND CONSTRUCTION OF
REPRESENTATIONS OF SUBJECTS IN A PSYCHOLOGY CLINIC OF THE
UNIFIED HEALTH SYSTEM
MEDICALIZACIÓN DEL CONFLICTO FAMILIAR Y CONSTRUCCIÓN DE
REPRESENTACIONES DE SUJETOS EN UNA CLÍNICA DE PSICOLOGÍA DEL SISTEMA ÚNICO DE SALUD
RESUMO Objetivou-se nesta pesquisa compreender como os profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente de um município de pequeno porte em Santa Catarina (SC) constroem representações de sujeitos a partir dos encaminhamentos realizados para a clínica psicológica do Sistema Único de Saúde (SUS) tendo como justificativa a queixa de conflito familiar. Realizaram-se entrevistas com cinco profissionais da Rede, e por meio de análise cultural amparada no campo dos Estudos Culturais, duas categorias de representação de sujeito foram elencadas: o sujeito caracterizado em atraso de desenvolvimento pela família conflitante; e o sujeito da garantia de Direitos. São esses dois sujeitos representados que se tornam alvos de condutas medicalizantes encaminhados para a clínica especializada a fim de reestabelecer o equilíbrio familiar. Palavras-chave: Estudos Culturais. Representação. Conflito Familiar. Rede de proteção à criança e ao adolescente. Medicalização.
ABSTRACT The objective of this research was to understand how the professionals of the Child and Adolescent Protection Network of a small municipality in Santa Catarina (SC) construct representations of subjects from the referrals made to the psychological clinic of the Unified Health System (SUS) ), as justification for the family conflict complaint. Interviews were conducted with five professionals of the Network, and through cultural analysis supported in the field of Cultural Studies, two categories of subject representation were listed: the subject characterized by a delayed development by the conflicting family; and the subject of the guarantee of Rights. It is these two represented subjects who become targets of medical procedures, referred to the specialized clinic in order to reestablish the family balance. Keywords: Cultural Studies. Representation. Family Conflict. Child and adolescent protection network. Medicalization.
RESUMEN
En esta investigación se compró cómo los profesionales de la Red de Protección al Niño y al Adolescente de un municipio de pequeño porte en Santa
86
Catarina (SC) construyen representaciones de sujetos a partir de los encaminamientos realizados a la clínica psicológica del Sistema Único de Salud (SUS) teniendo como justificación la queja de conflicto familiar. Se realizaron entrevistas con cinco profesionales de la Red, y por medio de análisis cultural amparado en el campo de los Estudios Culturales, dos categorías de representación de sujeto fueron enumeradas: el sujeto caracterizado en atraso de desarrollo por la familia conflictiva; y el sujeto de la garantía de derechos. Son estos dos sujetos representados que se convierten en blancos de conductas medicalizantes encaminados a la clínica especializada para restablecer el equilibrio familiar. Palabras clave: Estudios Culturales. Representación. Conflicto Familiar. Red de protección al niño y al adolescente. Medicalización.
1 Introdução
Encaminhar é muito mais do que passar o paciente para que outro
profissional atenda. O endosso a esse argumento está presente em documento
oficial elaborado pelo Ministério da Saúde (MS), intitulado “Caminhos para uma
Política de Saúde Mental Infanto-Juvenil”1, e indica que no processo de
encaminhamento de casos clínicos e de usuários no Sistema único de Saúde
(SUS) três autores devem ser incluídos, quais sejam:
O sujeito/caso a ser encaminhado, o profissional/ serviço que encaminha e o profissional/serviço a quem se encaminha, mediatizados pela gestão, por outros serviços, pela família, pela comunidade ou por outros agentes1 (p. 53).
Geralmente os profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao
Adolescente que encaminham casos, situações ou usuários para clínicas de
psicologia inseridas no SUS objetivam o retorno de informações da avaliação
ou tratamento psicológico. Corrobora Noal2 afirmando que a pessoa que realiza
o encaminhamento e a forma como o faz revelam ser aspectos fundamentais
para a busca de uma compreensão do que se espera de uma avaliação
psicológica. Wainstein3 autentica tal assertiva assegurando que o profissional
que realiza o encaminhamento almeja uma avaliação cognitiva, da
personalidade e do emocional de um sujeito.
Todavia, o encaminhamento para uma avaliação gera a expectativa da
devolução por meio de um material impresso, o laudo psicológico. Wainstein3
salienta que o encaminhamento busca auxiliar não só a criança e ao
adolescente, como também, colaborar com a fonte que os encaminhou.
87
Entende-se que com o retorno desses dados em forma de documento
psicológico o encaminhador pauta-se nos resultados analíticos da devolutiva,
podendo traçar com mais propriedade seu plano terapêutico perante a criança
ou ao adolescente encaminhado.
Dentre os inúmeros motivos e intenções de encaminhamentos oriundos
de diferentes profissionais das instituições da Rede de Proteção à Criança e ao
Adolescente, a queixa de conflito familiar é a mais abundante. Segundo a
Cartilha de Violação de Direitos de Brasília4 compõem a Rede de Proteção
todos os serviços que prestam atendimento à criança ou o adolescente, dentre
eles, as instituições de acolhimento (abrigos, casas de passagem, repúblicas),
creches, conselhos tutelares, escolas, delegacias, hospitais, centros de saúde,
órgãos do Judiciário, Ministério Público e serviços que atendam a clientela
infanto-juvenil. Desta forma, a Rede deve atuar de forma integrada e
interssetorial, envolvendo todas as instituições que atuam na atenção à criança
e ao adolescente5.
Nos encaminhamentos realizados pela Rede de Proteção deste estudo
observam-se que os conflitos familiares, mesmo na falta de uma denominação
clara, coesa e explicativa do que ocorre com os membros da família, são
motivos importantes para que a criança e o adolescente se consultem com o
psicólogo clínico. De fato, em nenhum documento consultado há uma definição
clara, coesa e objetiva do que se define por conflito familiar, e caso houvesse,
seria uma tentativa de fixar sentidos e significados para dinâmicas culturais tão
diversas e díspares tais como a que temos conhecimento.
Lacerda et al.6 em um estudo a respeito dos encaminhamentos de
crianças para acompanhamento psicológico enfatizam que o surgimento de
distúrbios psicológicos em crianças é precedido pelo pressuposto de conflito
familiar, o que corrobora para o encaminhamento maciço das mesmas. Na
mesma direção, Alberto et al.7 definem que a atuação do psicólogo que recebe
sujeitos tidos em conflito familiar deve ser de diagnosticar a situação, planejar
ações de enfrentamento, e ainda, mobilizar os profissionais da Rede tendo em
vista à prevenção e o tratamento. No caso dos encaminhamentos do Ministério
Público ou Judiciário, por intermédio de Instituições da Assistência Social como
ocorre no município pesquisado,
88
o psicólogo prestador de serviço para as Varas de Família, da Infância e Juventude tem trabalhado bastante na mediação familiar, visando à resolução de conflitos, como também, proporcionando aos envolvidos a responsabilidade acerca de seus problemas8.
Santos et al.9 numa perspectiva interdisciplinar reconhecem que
enquanto a Psicologia busca conhecer a dinâmica familiar com um paradigma
compreensivo, o Direito aplica a normatividade às questões familiares visando
regular o comportamento de seus membros. Consoante Foucault10 na
modernidade a família se tornou o agente mais constante da medicalização.
Segundo o autor a partir do século XVIII a família foi alvo da cultura médica, e a
política médica passou a se organizar em função da família e dos seus
membros, focando na medicalização do indivíduo10.
Compreende-se que em algumas situações, como por exemplo, no caso
de uma violência familiar perpetuada pelo pai ou pela mãe ao filho, entende-se
necessário o acompanhamento psicológico dependendo da capacidade de
resiliência do infante. Todavia, questiona-se a banalidade dos
encaminhamentos frente às queixas de conflito familiar, no qual não são todos
os membros familiares encaminhados para processos psicoterapêuticos, e sim
somente os menores de 18 anos, voltando ao que Foucault10 se refere à
medicalização do indivíduo e, nesse caso, da criança. Por isso, na legitimidade
do direito, encaminham-se para a clínica especializada do SUS.
Esse adoecimento do sujeito pelas peculiaridades familiares, e o número
de encaminhamentos para a clínica psicológica do SUS exclusivamente com a
queixa de conflito familiar, despertou o interesse em compreender como os
profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente de um
município de pequeno porte em Santa Catarina (SC) constroem
representações de sujeitos a partir dos encaminhamentos realizados para a
clínica psicológica do Sistema Único de Saúde (SUS) tendo como justificativa a
queixa de conflito familiar.
No intento de discussão dessa problemática os pesquisadores guiam-se
para compreensão dos fenômenos estudados pelo conceito de representação
tal como desenvolvido no campo dos Estudos Culturais. Para Woodward12
(p.17) “a representação inclui as práticas de significação e os sistemas
simbólicos por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-se
como sujeitos”. Desse modo, questões norteadoras para a discussão do
89
problema foram elaboradas, tais como: que representações de sujeito são
produzidas pela Rede de Proteção que, frente aos conflitos familiares, impõe
uma intervenção na criança ou adolescente? Que representações de sujeito
são essas que em nome da garantia de Direitos ofertados pelo Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) necessita de uma intervenção pela Rede de
Proteção? Em suma: que representação de sujeito é construída para que
justifique a necessidade de tais processos? Tais indagações orientam as
discussões que seguem.
2 Método
Realizou-se a presente pesquisa em duas instituições da Rede de
Proteção à Criança e ao Adolescente de um pequeno município em Santa
Catarina (SC), especificamente nos setores de Atenção Especializada das
Secretarias Municipais de Saúde e de Assistência Social. Pesquisaram-se na
instituição de saúde no Núcleo de Atenção à Mulher e à Criança (NAM); na
instituição de Assistência Social, no Centro de Referência Especializado de
Assistência Social (CREAS), no Conselho Tutelar, e na Instituição de
Acolhimento (abrigo municipal).
Ressalta-se que a Secretaria de Educação e setores adjacentes não
participaram da pesquisa por não atenderem aos critérios de seleção, que
incluíam somente os profissionais da Rede que encaminharam crianças ou
adolescentes com queixas de conflito familiar para a clínica psicológica do
SUS. Na medida em que os encaminhamentos oriundos da Educação não
registravam a queixa de conflito familiar, não foram inclusos no processo de
pesquisa, pois não atendiam ao critério de inclusão previamente elaborado.
Outro critério de seleção de entrevistados era que fossem profissionais que
trabalhassem há mais de dois anos em suas funções, para que pudessem
contribuir com suas experiências.
Por meio de um levantamento dos encaminhamentos recebidos entre
abril de 2017 a abril de 2018 mapearam-se as instituições e os profissionais
que comporiam o estudo. Estimavam-se entrevistar 11 profissionais, porém
com a eleição de novos conselheiros tutelares e exoneração de alguns
colaboradores da Rede, após contato telefônico e apresentação da pesquisa,
90
elencaram-se cinco profissionais para serem sujeitos da pesquisa, sendo: duas
fonoaudiólogas do NAN; um psicólogo do CREAS; uma psicóloga do abrigo; e
um conselheiro tutelar. Depois de assinarem os Termos de Consentimento
Livre e Esclarecido (TCLE), os mesmos foram entrevistados em seus locais de
trabalho, no período de dezembro de 2018 a janeiro de 2019. As entrevistas
foram guiadas por um roteiro no qual perguntava-se o que os profissionais
entendiam sobre conflito familiar; se poderiam citar exemplos; quando
identificavam que a família estava numa situação conflitante; quais as
características que tais crianças e adolescentes que vivenciam esses conflitos
apresentavam; quais etapas para encaminha-los à clínica especializada, e
ainda, quais os papeis da família e das instituições da Rede na situação
conflitante em questão. Além das entrevistas, utilizou-se registros em diários de
campo a respeito das notas, reflexões e impressões dos pesquisadores.
Após a realização das entrevistas e transição do material empírico,
utilizou-se o conceito de representação tal como proposto no campo dos
Estudos Culturais12 como operador analítico. Tomando, então, a compreensão
de que os processos de atribuição de significados por meio da linguagem se
dão através de mecanismos de representação sobre algo, compondo sentidos
vinculados ao mundo em que estamos inseridos, procurou-se atentar para as
formas pelas quais determinados significados compunham o que viriam a ser
considerados sujeitos com queixas de conflito familiar, de modo que estas
significações constroem representações de sujeito. Nesse ínterim, o conceito
de representação foi organizador das categorias de análise, na medida em que
a partir de sua compreensão encontrou-se dois tipos de usuários a serem
considerados como necessários de atendimento, a saber, o sujeito
caracterizado em atraso de desenvolvimento pela família conflitante; e o sujeito
da garantia de Direitos.
Destaca-se que os conceitos elegidos para a discussão não apenas
permitiram a organização do material empírico e suas problematizações, mas
também, potencializaram a perspectiva sobre o objeto de estudo do modo
como aqui se apresenta. Tais conceitos serão mais bem apresentados no
decorrer da discussão na medida em que estes fazem sentido em seus usos
consoante a problematização dos dados de pesquisa. Esta pesquisa foi
91
submetida e aprovada no Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) da Universidade
em que foi desenvolvida, tendo sido aprovado sob parecer número 3.024.446.
3 Análise e Discussão dos Resultados
Neste estudo, no levantamento dos profissionais da Rede de Proteção à
Criança e ao Adolescente que comporiam os entrevistados, notou-se que os
encaminhamentos para a clínica psicológica do SUS não ocorriam por meio de
um documento padronizado. A saber, cada instituição que compõe a Rede
Protetiva encaminha a seu modo. A Saúde encaminha por meio de uma ficha
de Referência, que constam os motivos da consulta, histórico pregresso,
sintomas identificados, conduta do profissional que encaminha, solicitação do
procedimento, e por fim, recomendações.
A Assistência Social encaminha por meio de uma ficha, explicando a
demanda e os motivos pelos quais está acompanhando a família, solicitando
avaliação e acompanhamento psicológico. O Dicionário de Termos Técnicos da
Assistência Social13 define encaminhamento como um procedimento de
articulação da necessidade do usuário com a oferta de serviço, e percebeu-se
que isso orienta as ações advindas dessa instituição.
O que identifica-se em comum nesses diferentes encaminhamentos
refere-se a queixa de conflito familiar. Por meio de análise cultural, focando no
conceito de representação, entende-se que cada uma dessas instituições
apresenta uma representação de sujeito que vivencia os conflitos familiares,
elencadas a seguir:
3.1 A Representação dos Sujeitos das Instituições de Saúde e de
Assistência Social
Daí quando eu identifico alguma situação, algum conflito familiar que está interferindo no desenvolvimento do adolescente ou da criança, geralmente eu faço um encaminhamento (Entrevistada 1).
O profissional de saúde entrevistado neste estudo e que atende crianças
e adolescentes encaminhados com queixas de conflito familiar se aproxima, em
seu trabalho, de uma perspectiva desenvolvimentista e comportamentalista do
92
ser humano. Não obstante, disciplinas de Psicologia do Desenvolvimento e
Psicologia da Aprendizagem compõe o repertório das formações acadêmicas e
norteiam os olhares da clínica especializada. Cada vez em que se avalia
clinicamente uma criança ou adolescente compara-se o indivíduo em questão
aos demais de sua faixa etária e mesmo sexo, analisando o que se espera em
termos desenvolvimentistas em cada idade e sexo.
No campo da Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem várias
teorias direcionam a perspectiva de construção do que é o desenvolvimento
humano, tal como corrobora Stubbe14 (p. 19), ao descrever alguns autores e
seus respectivos campos teóricos inseridos nesse escopo. Para o referido
autor, são eles: “os teóricos do desenvolvimento primário, Sigmund Freud
(estágios psicossexuais), Erick Erikson (estágios psicossociais) e Jean Piaget e
Vygotsky (estágios cognitivos)”.
Entende-se que nos serviços de saúde, na prática da clínica
especializada, o encaminhamento por atraso no desenvolvimento infantil são
comuns, assim como relata a Entrevistada 1 na epígrafe desta seção. Porém,
quando uma criança ou adolescente são encaminhados devido à queixa de
conflito familiar, tem-se duas representações: a do sujeito em pleno
desenvolvimento e a do sujeito em atraso de desenvolvimento pela família
conflitante.
No sistema de representações, consoante Woodward12 há de se ter que
marcar as identidades pela diferença, pois a identidade é sempre relacional.
Conforme a autora, uma identidade depende da existência de outra. Assim,
infere-se que só pode ser percebido o sujeito cujo conflito familiar interfere no
seu desenvolvimento se este for marcado como diferente do ideal de sujeito em
desenvolvimento pleno. Esta problematização das representações dos sujeitos
a serem atendidos pela clínica especializada de Psicologia se manifesta
também no seguinte trecho de entrevista:
Quando o paciente chega, a gente sempre procura estar ouvindo os pais, ver o que eles têm de acompanhamento em casa, para reconhecer a rotina deles, e ali a gente consegue estar identificando, se é uma família que tem uma rotina, se é uma família que estabelece algumas regras, se é uma família que tenha os mesmos objetivos, enfim, que anda em conjunto, né, se participa ou não, quanto participa, se começa a atrapalhar já o desenvolvimento da criança e do adolescentes, nesse momento, principalmente nesse estágio inicial de contato com o paciente, de estar conhecendo, anamnese e tal, a gente consegue identificar (Entrevistada 2).
93
Stubbe14 refere que pensar em termo desenvolvimentista é considerar as
áreas em que a criança apresenta bom desenvolvimento, e aquelas em que
precisa de intervenção. A autora compreende desenvolvimento como “uma
interação complexa entre o potencial genético, as capacidades biológicas, e o
ambiente de criação” (p.17). Pontua-se que é justamente o ponto de vista
ambiental que enfatiza a necessidade de análise da dinâmica familiar,
entendida por Azevedo15 pela “forma de funcionamento de uma família, ou
seja, suas regras, hierarquias, padrões de comunicação” (p. 37). Culturalmente
espera-se que as famílias tenham dinâmicas comuns quanto à forma de
funcionar e de exercer seu papel perante as crianças e aos adolescentes, ou
seja, espera-se um padrão de comportamento social que quando não é
atendido, quando há um desvio ou anormalidade, é preciso investir em sua
regulação, e neste caso, de forma medicalizante.
Zorzanelli et al.16 explicam que uma das possibilidades de compreensão
da medicalização implica em determinar um comportamento social como um
problema médico, descrevendo um processo pelo qual problemas não médicos
são definidos em termos e doenças ou transtornos. Algo semelhante ocorre
com as famílias, e principalmente com as crianças e adolescentes, que por
meio de um encaminhamento para a clínica psicológica chegam à solicitação
de que se realize um diagnóstico nosológico e psicopatológico, explicando as
relações familiares conflitantes por meio de uma doença psicopatológica.
Assim, nessa comparação entre um sujeito em pleno desenvolvimento e
sujeito outro com seu desenvolvimento comprometido, é possível inferir a partir
de Woodward12 que os significados produzidos pelas representações dão
sentido a experiência e aquilo que somos. De acordo com a autora, a
representação, compreendida como um processo cultural, estabelece
identidades e os sistemas simbólicos se baseiam em fornecer respostas sobre
quem é o sujeito.
Em se tratando de crianças e de adolescentes, os significados
aprendidos com os conhecimentos e experiências na clínica especializada
exigem que além dos infantes, avaliem-se as famílias. Stubbe14 afirma que
para uma boa avaliação do desenvolvimento, bem como das psicopatologias,
faz-se necessário uma avaliação completa da criança, do adolescente e da
94
família. Entende-se que além da avaliação cognitiva, emocional e de
personalidade, cabe avaliar a família e a conduta dos seus membros familiares.
Tais pressupostos fazem-se presentes quando um entrevistado explana os
processos de encaminhamento e atenção que organizam sua prática:
“Daí a gente começa a atender a família, e se há necessidade de acompanhamento psicológico e gente encaminha para o NAN, para o psiquiatra” (Entrevistado 4).
Woodward12 aponta que a produção de significados e a produção de
identidades posicionadas nos sistemas de representação estão estreitamente
vinculadas. Compreende-se que neste ponto de vista a construção de saberes
acerca dessa criança ou adolescente e os conflitos vivenciados na família dela
buscam definir quem ela é; assim como, quando se deve encaminhar uma
criança ou adolescente que não se desenvolve como esperado para a sua
idade e sexo por causa do conflito familiar. Assim, nesse processo de
construção de representações, identifica-se um tipo de sujeito caracterizado
pelo atraso de desenvolvimento causado pela família conflitante que, portanto,
necessita de tratamento psicológico.
Nesse ínterim Féres-Carneiro17 explica que na avaliação da família é
importante observar como os membros interagem, e principalmente, como
desempenham seus papeis familiares (pai, mãe, avó, avô). Esses pressupostos
manifestam nortear intervenções dos profissionais aqui investigados, tal como
no excerto abaixo:
O que é muito comum eu receber é conflito assim entre a educação dos pais. Disputa entre os pais na educação dos filhos, na forma que eles querem conduzir as coisas, é... Ou entre os avós. Tem os pais e tem os avós. É muito comum aqui na nossa cultura, na nossa região, morar, né, mora com o pai, com a mãe, com a avó paterna ou com a avó materna. Então tem muito conflito assim. Às vezes quem traz para o atendimento é a avó e aí ela já relata várias situações de conflito familiar, conflito com a nora, conflito com o filho, então... (Entrevistada 2).
Bee18 estudando os papeis familiares destaca que em todas e diferentes
culturas há a exigência e expectativa de que os adultos aprendam e executem
um conjunto de papeis. Tratando em representações de família, enfatiza-se
que teorias psicológicas e psicossociais reforçam o quanto a definição dos
papeis familiares, bem como a manutenção da hierarquia, são fundamentais
95
para um desenvolvimento sadio. Marcelli19 aponta que para os psicanalistas o
período de conflito pode ser gerador de ansiedades e de angústia,
comprometendo o desenvolvimento da criança ou do adolescente. Ou seja, é
comum no campo da Psicologia orientado por tais perspectivas modelar uma
representação de família e sujeitos e atuar sobre aquelas que não atendam ao
esperado pela produção teórica da área, muitas vezes não relativizando com
as dinâmicas sociais, culturais, econômicas e regionais que marcam a
formação de diferentes formas materiais de família.
O profissional de saúde ao observar o desnivelamento desenvolvimental
e os conflitos familiares, faz esse movimento de decidir quem será incluído ou
excluído da clínica psicológica. Durante as entrevistas, perguntou-se aos
profissionais da Rede quais as características das crianças e dos adolescentes
que vivem conflitos familiares. No atendimento a este questionamento, obteve-
se a seguinte resposta:
A gente percebe uma criança extremamente insegura, ou eu percebo as vezes uma alteração grande no humor, ou eu vejo que é uma criança muito apática, muito triste, ou é uma criança que resolve tudo de uma forma sempre agressiva, independente do conflito, às vezes é um probleminha simples, e a criança resolve da maneira mais agressiva (Entrevistada 1).
Nota-se que o referencial para o encaminhamento à clínica
especializada, segundo a Entrevistada 1, refere-se a alteração no humor ou no
comportamento. Percebe-se que se trata de uma avaliação individual no qual
os sintomas que a criança manifesta servem de parâmetro para aquilo que se
espera de uma criança tida como saudável ou normal, o que refere,
novamente, aos processos de formação de uma identidade relacional.
A respeito de uma série de práticas e intentos que buscam uma
regulação dos comportamentos sociais através de representações culturais de
determinados sujeitos, com efeitos de produção de indivíduos saudáveis,
Rose20 afirma que faz algum tempo que as práticas biomédicas desempenham
um papel na modelação das subjetividades. Menciona que o cuidado com o
corpo se estendeu a mente, surgindo novas ciências neurológicas,
comportamentais e farmacêuticas, que prometem não somente o combate ou a
cura, “mas a correção e o incremento dos tipos de pessoas que somos ou
queremos ser” (p. 45). Tais esforços contemporâneos com base nos saberes
96
biomédicos constroem formas de subjetividades e representações de sujeito
que se ajustam as demandas aqui investigadas de medicalização de
comportamentos.
Percebe-se que os próprios profissionais da saúde sofrem os efeitos da
modelação da subjetividade em suas condutas clínicas, e até mesmo na forma
em que são moldados como profissionais da Rede Protetiva. Rose et al.22
referem-se aos modos de subjetivação, através dos quais as pessoas são
levadas a atuar sob certas formas de autoridade, em relação aos discursos de
verdade em nome da saúde. Os profissionais do NAM aqui investigados, em
nome das representações de sujeito em pleno desenvolvimento e de sujeito
adoecido pela família conflitante, subjetivados em nome da saúde e da garantia
de direitos, escolhem os melhores encaminhamentos a serem tomados. Assim,
o sujeito adoecido pela família conflitante precisa de uma avaliação psicológica
que confirme atrasos de desenvolvimento, e de um posterior acompanhamento
psicológico para reestabelecer o curso adequado. Ressalta-se que a conduta
medicalizante recai sobre o menor, pois não é sua família que foi encaminhada
para a clínica especializada, e sim somente o membro tido como sintomático.
Quanto aos sujeitos encaminhados pelos setores da Assistência Social
com a queixa de conflito familiar, ocorrem duas situações distintas,
complementares. Quando uma família é encaminhada ou assistida pelo
CREAS, na prática significa que os vínculos familiares estão rompidos, e cabe
aos profissionais trabalharem a reconstrução dessas relações familiares e das
situações envolvidas. Por isso que as pessoas atendidas pelo CREAS
necessariamente estão ou vivenciaram alguma situação de maus-tratos,
negligência, abandono, violência, discriminação, cumprimento de medidas
socioeducativas, em situação de rua... Já as crianças ou adolescentes
encaminhados pelo abrigo foram acolhidos e retirados de sua família, com
vistas a assegurar a reintegração familiar e a garantia de seus direitos e de
proteção, como previstos no ECA. Sobre a casa de passagem segue uma
reflexão:
De todos os lugares o abrigo reflete os Conflitos Familiares, e me lembra as tentativas não muito bem sucedidas da família na conduta com seus filhos. Na verdade, o abrigo caracteriza o fracasso familiar, fracasso das relações em que deveriam oferecer suporte emocional e material às crianças; fracasso do pai, da mãe, do avô, da avó, da família extensa que falhou no seu papel.
97
Tenho esse pensamento reflexivo, por também inserir-me na Rede, e ser efeito do discurso de cuidado e de proteção (Diário de Campo, 27/11/2018).
De qualquer forma entende-se que nesses setores citados, os sujeitos
são representados como aqueles que tiveram seus vínculos familiares
rompidos, por isso, tiveram uma privação de um dos direitos garantidos pelo
ECA, devendo por tanto, ser encaminhados para serviços de saúde, que como
consta no documento oficial1 deve oferecer um atendimento integral à criança e
ao adolescente, preferencialmente dentro de uma equipe multiprofissional,
justificando o encaminhamento dos profissionais da Assistência Social para a
psicóloga clínica, como consta no ECA, Capítulo I, que dispõe dos Direitos à
Vida e a Saúde:
Art. 11 - Art. 11 - É assegurado atendimento integral à saúde da criança e do adolescente, por intermédio do Sistema Único de Saúde, garantido o acesso universal e igualitário às ações e serviços para promoção, proteção e recuperação da saúde. (Redação dada pela Lei nº 11.185, de 2005) ECA.
Entende-se duas compreensões de sujeitos: o sujeito com vínculo
familiar que possui seus direitos garantidos; e o sujeito com vínculos familiares
rompidos e privado de seus direitos, por tanto, em situação de risco. Azevedo11
aponta que a violação de direitos é um atendado aos direitos das criança e dos
adolescentes estabelecidos no ECA. Tratam-se de “negligências por parte dos
pais ou responsáveis; vivências nas ruas ou em instituições de abrigo; violência
física, psicológica ou sexual” (p.110). Cruz8 explicam que o ECA tem em sua
instância garantir a integridade física e psicológica de crianças e adolescentes
em situação de risco. Marcelli19 corrobora afirmando que é mais uma
preocupação com o estado futuro da criança ou do adolescente, do que o
estado presente. Por isso, conforme o autor muitas vezes ordena-se uma
medida de consulta, isto é uma avaliação ou acompanhamento psicológico.
Conforme o autor essa medida profilática é muito comum...
“Tanto que muitas vezes as crianças ou adolescentes acolhidos na casa de passagem são encaminhados pelo juiz para a avaliação psicológica, sem apresentar sintomas, isso é, desenvolvendo-se plenamente dentro dos padrões de normalidade esperados” (Diário de Campo, 27/11/2018).
Stubbe14 assinala que as crianças e adolescentes acolhidos são
encaminhados por apresentarem problemas legais. Ou seja, por serem
98
assistidos por instituições regulamentadoras de condutas, tais como a Vara da
Infância e da Juventude ou Ministério Público.
Hall22 explica que os significados são atribuídos aos objetos, pessoas e
eventos através da estrutura de interpretação. Para o autor, tem efeitos reais e
regulam as práticas sociais. Os profissionais da Assistência Social interpretam
o rompimento de vínculo como um motivo para encaminhar as crianças e os
adolescentes. Para tanto, utilizam o modelo ideal de família no qual todos os
membros estão vinculados uns aos outros como referencial. Hall 23 pontua que
possuímos um conjunto de representações mentais a respeito das coisas.
Enfatiza-se que a respeito da família, ainda há um viés conservador e
tradicionalista, e uma imagem de membros vinculados, tal como a do comercial
de margarina. Quando isso não ocorre, necessita-se encaminhar os membros
menores de 18 anos à clínica psicológica, para resolver os conflitos,
restaurando o equilíbrio. Assim, acaba por existir um outro tipo específico de
sujeito, o sujeito (a ser) medicalizado.
As famílias também estão sendo transformadas em famílias
medicalizadas, reguladas nessa cultura, e isso influencia na representação
social das mesmas, como afirma Hall23, afetando as identidades e as
subjetividades das pessoas enquanto atores sociais. Para contribuir com a
discussão, apresenta-se uma das falas do Entrevistado 5 quanto às
subjetividades das mães:
“Antigamente as famílias chegavam no Conselho Tutelar com duas ou três crianças para entregar porque as mães tinham que ser felizes, viver a vida... Agora elas chegam com os adolescentes, muitas querem ver seus filhos no abrigo. Lá eles são cuidados” (Entrevistado 5).
Conforme o excerto do Entrevistado 5, a cultura de garantia de direitos e
de proteção aponta por exemplo, que o abrigo é um local seguro que garante o
desenvolvimento de uma criança ou adolescente, tanto que algumas mães
querem entregar as crianças. Neste caso, cabe ao Conselheiro reforçar aos
responsáveis os seus papeis perante ao que exige o Estado. Rose21 explica
que em nome da saúde há diversos instrutores em modelação da forma de
vida, tais como os conselheiros (Conselheiros sexuais, conselheiros da família,
conselheiros de relacionamentos, conselheiros educacionais, conselheiros
99
genéticos)... Percebe-se que o psicólogo clínico entra aqui como um deles,
visando trabalhar o conflito familiar, porque como aponta Féres-Carneiro17 “os
conflitos são positivamente valorizados quando as diferenças e as
discordâncias entre os membros da família são vistas por eles, não como
ameaça, mas sobretudo, como algo que pode ser construtivo, na medida em
que estimule o crescimento familiar”. Assim, de uma forma medicalizante cabe
ao psicólogo trabalhar para que a família cresça, ou seja, volte à normalidade
funcional. Então, em nome da garantia de direitos de uma criança cujos
vínculos foram rompidos, encaminha-se para clínica especializada a fim de
trata-la, para que seu direito ao cuidado seja restabelecido.
4 Considerações Finais
Dentre os inúmeros motivos e intenções de encaminhamentos oriundos
de diferentes profissionais das instituições da Rede de Proteção à Criança e ao
Adolescente, a queixa de conflito familiar é a mais abundante. Observaram-se
que os conflitos familiares, são motivos importantes para que a criança e o
adolescente se consultem com o profissional de Psicologia da clínica
especializada. Por isso, por meio desta pesquisa buscou-se compreender
como os profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, de um
município de pequeno porte em Santa Catarina (SC), constroem
representações de sujeitos a partir dos encaminhamentos realizados para a
clínica psicológica do Sistema Único de Saúde (SUS) tendo como justificativa a
queixa de conflito familiar.
Compreende-se que os profissionais de Saúde constroem
representações baseando-se nos sujeitos que possuem um curso normal de
desenvolvimento, e naqueles caracterizados em atraso de desenvolvimento
pelo conflito familiar. No campo da clínica especializada trabalha-se com a
perspectiva desenvolvimental, que modela a representação de família e
sujeitos, atuando sobre àquelas que não atendem ao esperado pela produção
teórica da área, muitas vezes não relativizando com as dinâmicas sociais,
culturais, econômicas, regionais que marcam a formação de diferentes formas
materiais de família.
100
Os profissionais da Assistência Social constroem representações de
sujeitos baseados na garantia de direitos. Compreende-se que o campo da
Assistência Social atua em prol da manutenção dos direitos, por isso, quando
um direito é violado, entende-se a necessidade de realizar os
encaminhamentos para a clínica psicológica. Pensando em que as
representações são relacionais, compreende-se que no modelo ideal de família
há a manutenção de vínculos, e que quando o rompimento ocorre, um direito
da criança e do adolescente é violado, o que justifica encaminhar para a clínica
psicológica a fim de resolver os conflitos, restaurar o equilíbrio,
reestabelecendo por tanto, o direito.
Todavia, nessa busca para desenvolver as crianças e adolescentes em
atraso, restaurar o direito violado, por meio da clínica especializada nasce um
novo tipo de sujeito, o sujeito medicalizado. Entende-se que as famílias
possuem dinâmicas variadas que não são compreendidas, levadas em
consideração na ânsia de avaliá-las dentro do que se espera por normal ou
não. É preciso pensar nos efeitos iatrogênicos de avaliações psicológicas e
familiares, utilizadas para decisões importantes a respeito dos membros
envolvidos, tais como, permanecer ou retirar uma criança de sua família;
porque a palavra do psicólogo enquanto um conselheiro, pode interferir na
decisão de uma instância superior, e ser utilizada num caráter de punição e de
regulação da vida familiar.
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7. Alberto MdFPea. O papel dos psicólogos e das entidades junto a crianças e adolescentes em situação
de risco. Psicologia: Ciência e Profissão. 2008 Setembro; 28 (3).
8. Cruz RM, Costa FDN, Campos ICM. Resenha: a atuação do psicólogo no campo jurídico. Psicologia:
Teoria e Pesquisa. 2006 Abril; p. 123-124.
9. Santos MRRd, Costa LF. O tempo na trajetória das famílias que buscam a justiça. Revista do
Departamento de Psicologia da UFF. 2007; 19 (1).
10. Foucault M. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes; 1979.
11. Azevedo MC, Guerra VNdA. A infância e a violência doméstica no Brasil – Século XX. São Paulo:
LACRI/ IPUSP; 2001.
12. Woodward K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In Silva TTd, Hall S,
Woodwark K. Identidade e diferença na perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Editora Vozes;
2000. p. 133.
13. Dicionário de Termos Técnicos da Assistência Social. Belo Horizonte: AsCOM; 2007.
14. Stubbe D. Psiquiatria da Infância e Adolescência. Porto Alegre: Artmed; 2008.
15. Azevedo MA. Pesquisa qualitativa e violência doméstica contra crianças e adolescentes: por que,
como e para que investigar o testemunho dos sobreviventes. Instituto de Psicologia: USP; 2001.
16. Zorzanelli RT, Ortega F, Junior Bezerra B. Um panorama em torno do conceito de medicalização entre
1950-2010. Ciência e Saúde Coletiva. 2014.
17. Féres-Carneiro T. Entrevista estruturada: um método clínico de avaliação das relações familiares. São
Paulo: Casa do Psicólogo; 2001.
18. Bee H. O ciclo vital. Porto Alegre: Artmed; 1997.
19. Marcelli D. Manual de Psicopatologia da Infância de Ajuriaguerra. 5. ed. Porto Alegre: Artmed; 19998.
20. Rose N. A política da própria vida: biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo:
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21. Rose N, Rabinow P. O conceito de biopoder hoje. Revista de Ciências Sociais. 2016 Abril.
102
22. Hall S. Representation. Cultural representation and cultural signifying practices. London: Open
University; 1997.
23. Hall S. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais no nosso tempo. 2. ed. Porto
Alegre: URGS; 2000.
103
6 ANEXOS
TERMO DE ACEITE
Este documento formaliza o aceite para a Formação Continuada dos
Profissionais da Rede de Proteção à Criança e ao Adolescente, pela psicóloga do
Município - Grazielle Rocha França, previsto para o mês de agosto, dando continuidade
a execução da Tecnologia Social desenvolvida com a pesquisa realizada nas Instituições
de Saúde e de Assistência Social.
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Secretaria Municipal de Assistência Social
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Secretaria Municipal de Saúde
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Grazielle Rocha França – Psicóloga – CRP-12/03947
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ROTEIRO DA OFICINA PEDAGÓGICA
a) Nome da Oficina: A medicalização do conflito familiar
b) Coordenadora: Grazielle Rocha França – Psicóloga
c) Objetivos da oficina: Promover uma reflexão sobre a prática profissional e
sobre os encaminhamentos realizados para a clínica psicológica do município.
d) Dinâmica da oficina:
Assuntos: A diversidade familiar; o conflito familiar; a medicalização do conflito
familiar; atuação com menos medicalização.
Tempo estimado: de 40 a 60 minutos.
Materiais: Revistas diversas, folhas A4, canetinhas, canetas, colas branca e tesouras.
Aquecimento: Solicitar que os participantes procurem em revistas os diversos tipos de
famílias. Para tal, colocar os nomes dos tipos e as definições em uma caixinha para
fazer um sorteio. Orientar que pensem num conflito para a família sorteada, bem como,
elenquem os motivos do encaminhamento da criança ou do adolescente para a clínica
psicológica do SUS. A seguir, os participantes devem compartilhar suas produções
gráficas.
Desenvolvimento: Trabalhar o conceito de medicalização por meio de brainstorm.
Realizar um estudo de caso. Dos casos acima apresentados, os participantes devem
escolher um deles. Por meio de uma dramatização, devem encenar a família no local de
atendimento (NAM, CREAS, CRAS, abrigo, Conselho Tutelar) e os profissionais
encaminhando as crianças ou os adolescentes que vivenciam os conflitos familiares.
Todavia, devem pensar a conduta de um modo menos medicalizante. Assim, os
participantes devem conduzir uma entrevista procurando compreender:
✓ De qual lugar vieram?
✓ Por que escolheram Penha para residir?
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✓ Como viviam na cidade anterior?
✓ Como se organizavam com as crianças e os adolescentes?
✓ Como foi a educação ou criação dos demais filhos ou filhas?
✓ Que conflitos familiares essas pessoas carregam?
Finalização: Contrapor com o ideal de família. Abordar a criança ou o adolescente
como alvo da conduta medicalizante. Refletir sobre os efeitos da medicalização no
contexto clínico. Construir uma nova forma da rede trabalhar com as famílias em
conflito, sem encaminhar a criança ou o adolescente para uma avaliação psicológica, e
sim, encaminhar a família.