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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARAN
TEMPO E HISTORICIDADE EM OS SERTES DE EUCLIDES DA CUNHA
CURITIBA
2013
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HELDER SILVA LIMA
TEMPO E HISTORICIDADE EM OS SERTES DE EUCLIDES DA CUNHA
Dissertao apresentada como requisito
parcial obteno do grau de Mestre em
Histria, Curso de Ps-Graduao, Setor de
Cincias Humanas, Letras e Artes,
Universidade Federal do Paran.
Orientador: Prof. Dr. Renato Lopes Leite
CURITIBA
2013
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velhas rvores
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Para que chova
Sobre terras de ningum
Vazias vastides
de homem nenhum.
J.
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AGRADECIMENTOS
Ao professor Renato Lopes Leite, pela orientao durante todo um longo trajeto. Sem as
aulas primeiras de teoria da histria ps-moderna, nossa memria jamais teria resistido
morte, ressurreio, e esperana do ontem. O futuro passado coisa de muita
monta, houvesse se no quem da tenha dvida, averigue. A graa de ter sido, s num
filme mesmo, desses da lembrana que ficam a girar eternamente l nas bandas do
serto.
A professora Helenice Rodrigues da Silva, por durante todos os anos de convivncia em
aulas e seminrios, a confiana e incentivo para a ousadia e para o sonho da histria
do futuro que por ns tanto passou, fossem outros que no a fome das feras os fados a se
requerer do mar.
Um agradecimento aos professores do departamento de Histria da Universidade
Federal do Paran, pelo seu esforo no ensino e na historiografia. Ao professor Jos
Braga Portella, pelas aulas de Teoria da Histria IV, por participar da banca de
qualificao, comandando tudo, e da banca de defesa. Ao professor Carlos Lima, por
conversas grandes, amplas e vastas.
Ao professor Paolo Soethe pela atenta leitura e precisa crtica do relatrio desse
trabalho.
Ao professor Luiz Sergio Duarte e o pessoal da UFG pelo detonal. Escola detonal
serialista dodecafnica de teoria da histria de Gois.
A Capes pela bolsa de estudos, permitindo a pesquisa emprica de como ser um dndi
do final do sculo XIX. Mais do que isso, a realizao desse trabalho.
Em Canudos, a todos, em especial a hospitaleira Dona Cl, e seus netos, teatro e
estilingues na Guerra; ao seu Mrio Serandim, profeta e estudante da histria do mundo.
Ao Frederico Tavares, grande e profundo o cangao, forte o sol. Em Buque, ao seu
Carlos, sempre na guarda da parquia, e grande entendedor de circo. Em Salvador, ao
professor Raimundo Nonato e os alunos da UFBA. Em Recife, aos estudantes da
Universidade Rural de Pernambuco e aos membros da mesa redndula; a concluso,
naquele dia, que a rumo da Histria hermenutica leva ao campo de concentrao clari.
Raphael Guilherme de Carvalho, por ter me revelado o segredo da umbanda, da sua
ligao com a sentido hermenutico do mundo, e com a personalidade autoritria.
Jefferson de Oliveira, grande mo com as mudanas, desde o Admirvel Mundo Novo,
anos atrs, e muito antes at, sempre. E todos os seus, tios e tias, primos.
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Dona Pamela F. Beltramin, de muitas receitas e muitas grandes ideias, a maior delas
para as grandes teses brasileiras, relaxar faz-se mister, o mister relaxar.
Seu Felipe (valeu pela quinta edio de Os Sertes), Seu Dom Caio, Seu Paolo
Balozinho, o futuro buda do Tibet que o Alto da XV, e Seu Antnio. Na lida do
centro de Curitiba, Reitoria. (ou onde se roubam as botas mas se vendem as botinas).
Gabriela Kreutz Binko. Onde tudo errante, mesmo passageiro, motorista e cobrador.
S poderei escrever as notas do sobressolo, qui depois de percorrer os arranha-cus de
Stalingrado. Est no tar cigano e no zodaco online, o misterioso orculo astral diz
apenas Tchekov o que de Tchekov, Joyce o que de Joyce, ao Pequeno Prncipe o
que do Pequeno Prncipe. Essas tradues embaralham tudo; eu mesmo s sei jogar a
velha canastra. E quem perguntar ao guarda pela direo, ao Um Dia Daqueles o que
do Um Dia Daqueles.
Jos Adil Blanco de Lima, que quando precisar caar uns lobisomens, mulas-sem-
cabea, bestas furiosas do cinco mares, ou chamar o tcnico do elevador, e outros
monstros e monstrengos barrocos, sabei que sou bom na espingarda, fura-bucho, e ferro
frio, todas armas bentas e benzidas. Se descobrirmos que essas no funcionam com os
mal-assombrados das trevas, ser a hora de usar das armas secretas da histria com
esses excomungados: pai vio, esse charuto t me pondo tonto, pai vio, tambm
conhecido como a sutra sagrado do Era uma Vez, revelado por Dongshan Shouchu,
conforme encontrado no Registro do rochedo azul, pasta 12.
Franciele do Couto Grabowski, por partilhar dos rastros perdidos do caminho
esquecido, colheita de muita sustncia para os vivos, doloridos e famintos.
Modernidade, melancolia, alegria. E um monte de outras coisas que ficaram de fora
dessa histria. La fora, onde o vento faz a curva e no a curva faz o vento. Na cidade, o
metr vai virar trem, e o trem virar biarticulado. Uma histria antiga, cantiga, memria.
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RESUMO
Este estudo investiga a relao que se expe no livro Os Sertes, de Euclides da Cunha,
entre tempo e a historicidade atribuda ao serto e ao sertanejo. Nesta obra, lanada em
1902, que se apresenta como um estudo da Campanha de Canudos postula-se, desde o
incio, uma distncia temporal entre o narrador letrado e os tipos populares, que foram
observados na ocasio da guerra. Conforme o autor, os sertanejos figurariam como
pertencentes ao passado, espcimes do atavismo histrico, preservados no interior que
logo seriam suplantados pela marcha da civilizao. Portanto, desde cedo o autor
demonstra uma conscincia histrica, a qual o permite discorrer sobre a historicidade
dos habitantes do serto. Destarte, representa o mundo rural em oposio ao mundo
urbano, e sobretudo o tempo passado em oposio ao tempo presente. Existe, pois, uma
articulao da conscincia histrica, pela qual Euclides da Cunha, projeta o serto e seu
homem para o passado, mesmo que presentes. Pe-se em causa, nesta pesquisa, o
propsito de tal conscincia histrica, a qual define uma historicidade prpria ao
narrador e a sua matria narrada. A percepo do tempo responsvel pela maneira
como Euclides representa o seu serto. Com o suporte terico da teoria da histria de
Jrn Rsen, a historicidade, manifesta no livro de Euclides da Cunha pode ser
explicada.
Palavras-Chave: Histria Intelectual; Teoria da Histria; Conscincia histrica.
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ABSTRACT
This study sought to investigate the relationship between time and history in the book
Rebellion in the Backland, by Euclides da Cunha. In this work published in 1902, which
pretend to be an essay about the Canudos Campaign, he asseverates since the
beginning a temporal distance between the literary narrator and the popular folks, which
were seem in the occasion of the war. As the author says the sertanejos were types of
the past, representing the historical atavism that had preserved in the backlands, where
the march of the civilization would supplant them by force. Hence, the author
demonstrates a historical consciousness that permits him to write about the historicity of
the habitants of the backlands. Thus, he represents the rural world in opposition to the
urban world, and above all the past time in opposition to the present time. A use of the
historical consciousness projects the backlands and its folks to the past present. This
research questions this historical consciousness, which defines a historicity to the
narrator and another to the narrated. The perception of the experience of time must be
the responsible of the means by which Euclides da Cunha represent the backlands. With
the support of Jrn Rsens theory of history the historicity of the book can be
explained.
Keywords: Intellectual history, Theory of History, Historical Consciousness.
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SUMRIO
INTRODUO .......................................................................................................................... 10
CAPTULO 1 - MODERNIDADE COMO CONTINGNCIA TEMPORAL ......................... 23
POSIO DE EUCLIDES DA CUNHA NO CONTEXTO DA I REPBLICA. ................. 25
O MODERNO ......................................................................................................................... 51
CAPTULO 2 - PERSPECTIVAS SOBRE A HISTRIA. SERTO E CANUDOS .............. 58
O SERTO ............................................................................................................................. 59
A NOSSA VENDIA ............................................................................................................. 70
CAPTULO 3 - O SERTO ARCAICO - NARRATIVA, TEMPO E HISTRIA. .................. 76
POSIO DO NARRADOR.................................................................................................. 77
HISTRIA E TEMPO ............................................................................................................ 86
CONCLUSO .......................................................................................................................... 101
OBRAS DE EUCLIDES DA CUNHA CONSULTADAS: ...................................................... 106
BIBLIOGRAFIA ....................................................................................................................... 108
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INTRODUO
Este estudo sobre o livro Os Sertes, de Euclides da Cunha, tomado em suas
caractersticas de forma e de funo, com que se elabora a conscincia histrica nele
encontrada. Isto , a princpio no trata diretamente do serto, mas de um autor e de um
livro que tratam do serto. A pergunta bsica que motiva esse estudo, portanto, levanta
um tema que ser tratado em dilogo com a teoria da histria. Os fios condutores desta
anlise so a experincia do tempo e sua humanizao em uma narrativa histrica.
No pretende-se fixar ou sugerir uma interpretao de Os Sertes, como quem
dissesse: este o sentido do livro. Lanado no mercado editorial em 1902, este
procedimento foi, desde ento, feito e refeito pela crtica especializada e amadora. Em
geral, essas intepretaes caracterizam-se por interessarem-se pela questo nacional,
isto , o sentido do livro estaria intimamente ligado ao sentido do desenvolvimento do
estado e da identidade nacional brasileira.1 Diversamente, nesta dissertao, procede-se
metodicamente com o recorte e a seleo de trechos que respondem s diretrizes de
investigao formuladas por uma pergunta terica. Tal pergunta originou-se do campo
de debate da teoria da histria, concernente ao papel da histria e da linguagem na
organizao da experincia temporal. Mais do que a soluo de uma questo, o objetivo
principal construir um problema e encontrar possveis vias de solues. Passo a seguir,
a formular o problema, cujo o corpo da dissertao tentar responder.
A primeira edio de Os Sertes foi publicada em 1902. A narrativa da
Campanha de Canudos feita por Euclides da Cunha tem muito do contexto da viragem
do sculo XIX para o XX. O livro foi dedicado aos futuros historiadores, que
pudessem olhar para o caso da guerra de Canudos no apenas como arrolado de fatos
sem alma mas que encontrassem ali, no texto que Euclides oferecia, os traos atuais
mais expressivos das sub-raas sertanejas do Brasil. O livro esboava mesmo que
1 Acerca desse debate, cf. LIMA, Nsia Trindade. Um serto chamado Brasil: Intelectuais e
representao geogrfica da identidade nacional. Rio de Janeiro : Revan : IUPERJ, UCAM, 1999.
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palidamente, e com alguma timidez declarada do autor, um ensaio narrativo-histrico
sobre os sertes brasileiros.
Em um livro que se quer mais que um simples relato dos acontecimentos, mas
um estudo da formao das pessoas que viviam na terra afastada das cidades do litoral,
uma das grandes caracterizaes da peculiaridade que o espao sertanejo apresenta
definido pela sua posio no tempo. Ao longo do livro, na descrio e na narrao dos
fatos relacionados com as populaes sertanejas, encontra-se forte caracterizao
temporal dessas como pertencentes ao tempo passado.
Desde a Nota Introdutria do livro, o autor expe seus pressupostos quanto
as gentes do serto. Nas paragens isoladas da costa habitavam os tipos populares
sertanejos, o jaguno destemeroso, o tabaru ingnuo e o caipira simplrio.2 A
justificativa para o esboo seria que ante o inevitvel triunfo da civilizao o
prximo desaparecimento daquelas populaes sertanejas era certo e sua existncia
efmera.3 Importava, logo, o registro das caractersticas sertanejas, pois o autor
antevia sua desapario eminente. Ele acreditava que elas seriam suplantadas pelo
avano civilizatrio do progresso. Logo, ele apresenta o serto e o homem que o habita
como traos de um mundo evanescente, que sobrevivia apenas por estar escondido no
interior. Aqui a questo temporal se manifesta de forma clara. Aps elencar os tipos
sertanejos na Nota Introdutria de Os Sertes, Euclides afirma:
Alm disto, mal unidos queles extraordinrios patrcios pelo solo em parte
desconhecido, deles de todo nos separa uma coordenada histrica o tempo.
Aquela campanha lembra um refluxo para o passado4.
Mais do que a distncia geogrfica, todavia superada pela viagem, a maior
distncia que Euclides apontava entre os civilizados modernos e os populares sertanejos
era uma coordenada histrica. O travesso indica a peculiaridade da coordenada
histrica em causa, o tempo. Ao longo do livro, de fato, encontramos a definio dos
sertanejos que pelejaram contra as tropas do Exrcito da I Repblica como refratrios
2 CUNHA, Euclides da. Os Sertes: edio crtica por Walnice Nogueira Galvo. So Paulo : Brasiliense,
1985. [1902]. p. 85
3 Idem.
4 Ibidem. p.86
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marcha da Histria, e de Antnio Conselheiro como um herege da Idade Mdia fora de
sua poca.
O que permite a Euclides da Cunha estabelecer essa distncia temporal, tomando
a civilizao como pertencente ao presente e ao futuro e encarar o sertanejo como
passado?
A questo evidencia uma complexidade. Pois, cronologicamente, ambos,
narrador-observador e sertanejo-observado, so simultneos. No entanto, Euclides
revela uma conscincia histrica que o faz tomar o serto como lugar do passado. De
outra forma, encontramos durante a leitura do livro imagens de deserto e solido que
contrastam com imagens da civilizao e da cidade. Cabe perguntar, que espcie utopia
ao avesso esta, que se projeta em uma fuga no para o futuro mas para o passado,
como no para uma sociedade melhor mas para o deserto. Analisando como o tempo
configurado em sua narrativa, formando o sentido para a histria, pode-se desvelar a
conscincia histrica de Euclides da Cunha.5 Embora trate-se de um autor e sua obra,
essa operao analtica relaciona-se com um problema de cultura, pois por seu meio
podemos entender como uma poca lida e quais problemas coloca histria. Assim,
alm do livro em causa, optou-se por considerar os escritos do autor como um bloco de
sentido, que se define com o contexto do final do sculo XIX e a primeira dcada do
sculo XX.
Quando em 1902 Euclides da Cunha lana no mercado sua narrativa histrica
sobre a Campanha militar da guerra de Canudos, ocorrida entre 1896 e 1897, o ttulo de
Os Sertes evocava o imaginrio j ento bem estabelecido quanto ao espao do
interior. Pode-se entend-lo como o ponto culminante de toda a literatura sobre o serto,
elaborada com os traos romnticos desde a segunda metade do sculo, afora a
referncia aos autores coloniais, nos tratados de terras e gentes e nas descries de
viagem.6 Ponto culminante, pois, aps sua publicao, ele persistir como uma sombra
ou fundo de tudo o que se falou desde ento sobre o serto. No apenas na criao
5 A noo de hermenutica da conscincia histrica, baseada nas categorias temporais, surge do trabalho
do historiador alemo Reinhart Koselleck. Cf. KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Rio de Janeiro:
Contraponto, Puc Ed-Rio, 2006.
6 BONATO, Tiago. O serto, Os sertes: a construo da regio Nordeste do Brasil a partir da interface
entre histria e literatura IN: Histria: Debates e Tendncias v. 8, n. 1, jan./jul. 2008, publ. no 1o sem. 2009. pp. 195-214.
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literria, mas no pensamento sobre os problemas sociais do pas, que se costuma nomear
pensamento social brasileiro.7
H um debate quanto a sua categoria, se seria um livro de antropologia,
sociologia, histria, ou literatura. Luiz Costa Lima demonstrou como sua recepo na
poca de lanamento o considerou sobre duplo aspecto, tanto cientfico quanto literrio,
sem indicar nenhum problema quanto ao misto de cincia e arte.8 Posteriormente,
partindo de oficiais do exrcito veio a crtica de que Euclides da Cunha teria
poetizado e assim desvirtuado a verdade dos fatos da guerra, no podendo, portanto,
ser considerado dignamente um livro cientifico, mas apenas literatura. Neste trabalho,
considera-se Os Sertes dentro da categoria de ensaio e do ensaismo latino-americano,
cujas caractersticas so a liberdade de composio garantidas pela forma livre. Nesse
sentido, o ensaio permite mltiplas vias de significao, e tambm de leitura. Seu
sentido nunca fechado, mas aberto s possibilidades de explorao, tanto quanto sua
composio permitiu ao autor a possibilidade de explorar e integrar os aspectos
contraditrios de sua cultura. Isto , na Amrica Latina, entre a civilizao europeia e a
cultura colonial, o ensasta lida com mundos hbridos, que se refletem em seu texto.9
Euclides da Cunha autor que se revela cheio de paradoxos. Esses paradoxos
so interessantes para sua leitura. Era um autor comprometido com o cientificismo de
sua poca, ao mesmo tempo em que, espaadamente, em sua obra, encontramos
questionamentos da validade da prpria cincia. Republicano exaltado na sua juventude,
crente na ideia do progresso e do carter redentor da civilizao, acabaria criticando os
rumos tomados pelo governo. Entre adepto da modernizao e antimodernista que chora
a destruio do arcaico trazido pelo progresso, surgem rompantes utpicos
necessidade de esperana que o autor busca satisfazer escrevendo. Euclides tinha um
ideal ilustrado de humanidade, provindo da sua leitura da revoluo francesa feita pelo
romantismo Victor Hugo, Carlyle, Guizot.
7 SCOVILLE, Andr Luiz Martins Lopes de. Literatura das Secas: Fico e Histria. Tese Doutorado.
Universidade Federal do Paran, 2011. pp. 55 100.
8 LIMA, Luiz Costa. Terra Ignota. A construo de Os Sertes. Rio de Janeiro : Civilizao Brasileira,
1997.
9 Cf. WEINBERG, Liliana. El ensayo, entre el paraso y el infierno. Mxico : Universidad Nacional
Autnoma de Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 2001.
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Na recente produo crtica sobre a obra de Euclides da Cunha, existem alguns
comentrios sobre a relao de Os Sertes com a histria. Ronald Machado faz um
ensaio em que aplica a potica da histria de Hayden White anlise do livro de
Euclides da Cunha. O resultado da anlise presa pelos aspectos lingusticos de
configurao da narrativa enquanto arte de composio do enredo. Segundo Ronald
Machado, o texto euclidiano apresenta um enredo trgico, de explicao
mecanicista, para o conflito de Canudos. Sua posio poltica, de acordo com as
categorias de White, se mostraria como conservadora, pois segundo Machado, o
processo de mudana temporal no texto euclidiano tido como natural e necessrio,
concebendo a evoluo histrica como o aperfeioamento progressivo da sociedade
vigente10. O tropo predominante no livro seria a metonmia. Formando uma
sequncia, nas categorias de White, da seguinte maneira: potica metonmica, modo
verbal trgico, forma mecanicista e ideologia conservadora. No entanto, segundo
Ronald Machado, o carter literrio do livro modularia essa estrutura, fazendo com que
o texto acabasse por fugir dela, tendendo a se manifestar como uma composio mais
complexa.11
Entraria no decorrer da narrativa de Euclides o elemento irnico,
sinalizando com isto, o autor, uma descrena, simultaneamente explcita e implcita, na
verdade de seus prprios enunciados.12
O efeito dessa ironia seria construir argumento narrativo autocrtico com
respeito as suas prprias convices13. Logo, Ronald Machado conclui que as
categorias de construo meta-histricas do livro no so restritas a uma regra
combinatria nica. O texto, assim, considerado hbrido, polissmico,
caleidoscpico.14 A ironia autocrtica redundaria na desconfiana quanto a seus
prprios enunciados, conjugando a elaborao lingustica conhecida crtica social
pertinente ao contedo sociolgico do livro. Isto , o texto espelharia, quanto a si
10
MACHADO, Ronald. A narrativa da histria em Os Sertes. In: GOMES, Gnia Maria. Euclides da
Cunha: literatura e histria. Porto Alegre : Ed. UFRGS, 2005. p.100.
11 Ibidem. p. 101.
12 Ibidem, p. 102.
13 Ibidem, p. 105.
14 Ibidem, p. 106.
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mesmo, a crtica social dirigida aos rumos da Primeira Repblica e atuao criminal do
exrcito nacional na guerra.15
J para Marlia Papalo Fitchner, Os Sertes mergulharia no mago de ns
mesmos, no mago de nossa Terra ignota, que no outra coisa do que o espao de
representao mental chamado memria16 Portanto, esta anlise concebe o livro como
uma viagem de autodescoberta, para o interior de nossos medos, nossas imagens
reprimidas e monstruosas, que se manifesta quando nos deparamos com o outro, o
sertanejo. Memria, aqui, tratada como uma espcie de alucinao que sofreu o
apagamento. O serto esquecido revivido, pois, pela narrativa de Euclides da Cunha.17
O livro, traria, desta forma, a imagem do mar extinto, figura da memria perdida,
resgatando uma dimenso que a autora do ensaio no sabe explicar seno dizendo ser o
inconsciente, o subterrneo a nossa dimenso cultural.18
O enigmtico dessa dimenso permanece nas explicaes da autora. Ao longo
do livro, apresentados vida sertaneja, no meio de tanta secura e dor, vamos
decodificando simultaneamente, dentro dessa teratologia, a narrao de coisas
maravilhosas, maravilhosas mas perdidas, quem sabe?, para sempre....19 A autora
finalmente identifica a narrativa histrica de Euclides como uma viso da histria que
seria a da evoluo regressiva.20 O rumo evolucionrio seria o rumo da memria
esquecida, do passado perdido, da imagem do serto que alucina e faz ver no meio da
seca a iluso do mar que um dia aquele lugar teria sido.21
Para o crtico e tradutor alemo Berthold Zilly, Euclides da Cunha apresenta
uma concepo trgica mas alentadora da histria. O sertanejo morreu na realidade,
15
Ibidem, pp. 104 - 105.
16 FITCHNER Marlia Papalo. Os Sertes: memria, imagem, representao visual. In: GOMES, M.G.
Op. Cit., p. 252.
17 Idem.
18 Idem.
19 Ibidem, p. 253.
20 Ibidem, p. 254.
21 Os comentrios da autora sobre esse aspecto da alucinao do mar se baseiam no trecho de Os Sertes
chamado Fantasia de Gelogo, cujo tema exatamente a existncia no serto do norte de um mar na era
terciria. A autora do ensaio discutido sugere uma curiosa interpretao: o relato de Euclides encarna um choque de mentalidades e de civilizaes que produz mais metforas do que argumentos racionais. Ento,
para no enlouquecer, acho que ele acabou enlouquecendo o mestio Ibidem, p. 255.
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(...) morreu tambm no livro de Euclides, mas neste, e s neste, ele tambm revive,
sendo ressuscitado e imortalizado como utopia e mito.22 Percebemos, portanto, que o
texto cumpriria uma funo histrica de memria, mito e esperana. De fato, para Zilly,
o livro seria expresso da violncia da colonizao, segundo o ponto de vista de um
autor latino-americano. O embate de Canudos assume essa dimenso, que eleva o
conflito ponto fulminante de toda histria brasileira. Em seu aspecto mais importante,
Zilly considera que Euclides faz a crtica da razo colonialista.23 Sua histria da
guerra de Canudos projetou e perpetuou um flagrante dessa performance fugaz do
sertanejo no palco da Histria.24 Registro e memria, seriam a funo que a narrativa
cumpriria, ao nvel da observao subjetiva e da configurao esttica..25 Ele no
tem disposio uma cincia social que possa ser ferramenta de anlise e compreenso
da populao sertaneja, de modo que a literatura, a potica e retrica, apoiadas pela
histria e mitologia do Velho Mundo26 se tornam o meio mais apropriado para
representar o serto.
J para Lus Fernando Valente, Os Sertes situa-se entre a histria e a
memria, no sentido que lhe empresta Piere Nora27. Este comentador empresta de Nora
a reflexo sobre os lugares da memria, para interpretar Os Sertes como um livro
memria que escreve a histria brasileira em face do evento da Guerra de Canudos. O
autor v, assim, o livro de Euclides como uma suma instituidora de uma identidade
nacional. No considera a literalidade ou ficcionalidade do texto euclidiano como
impedimentos da participao do livro na escrita da histria.28 No que concerne ao
tempo, o autor do comentrio assinala em Os Sertes uma utopia, restaurada da
continuidade entre o passado isto , as nossas origens o presente e o futuro29. O
autor parece referir-se ao entrelaamento das trs dimenses temporais que compe a
22
ZILLY, Berthold. Um patriota na era do imperialismo: o brilho cambiante de Os sertes In: GOMES,
M.G. Op. Cit., p. 46.
23 Ibidem, p. 35.
24 Ibidem, p, 44.
25 Ibidem p. 36.
26 Idem.
27 VALENTE, Luiz Fernando. Os Sertes: Entre a memria e a histria. In: BERNUCCI, L.M. (org.)
Discurso, Cincia e controvrsia em Euclides da Cunha. So Paulo: EdUSP, 2008. p. 160.
28 Ibidem, p. 169.
29 Ibidem, p. 163.
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dimenso histrica do livro. A utopia designaria, desta maneira, simplesmente a
superao dos problemas identificados por Euclides da Cunha na sociedade brasileira do
final do sculo XIX.
Por sua vez, Francisco Foot Hardman denomina a esttica histrica de Euclides
da Cunha de potica das runas.30 Tal denominao origina-se da recorrente referncia
s runas, encontrada nos textos euclidianos. O gosto do autor pelo passado derrudo,
preservado porm decadente, indicaria, para Hardman, a influncia da obra do
iluminista francs Volney Les ruines, ou meditation sur les revolutions des empires, de
179131
. No se encontra nos textos de Euclides da Cunha uma referncia direta
Volney, mas Hardman insiste que o tema teria chegado ao autor brasileiro diludo pelas
obras de historiadores como Buckle, idelogos como Chateubriand, poetas como
Byron, Wordsworth, Victor Hugo32. A presena dos lxicos mais recorrentes em Os
Sertes para designar essa atmosfera geral de desgaste e desolao33 so: "atraso";
"retardatrio"; "tardio"; "serdio"; "ruinaria"; "runa"; "ruiniforme"; "restos";
"destroos"; "decado"; e "destruio.34 O que essa esttica ou potica das runas
indicaria, seria, de acordo com Hardman um romantismo de base, de matriz hugoniana,
que provoca em sua prosa e poesia uma interessante combinao entre esttica do
sublime, dramatizao da natureza e da histria e discurso socialmente empenhado.
30
HARDMAN, Francisco Foot. A potica das runas nOs Sertes. In: BERNUCCI, L.M. (org.)
Discurso, Cincia e controvrsia em Euclides da Cunha. So Paulo: EdUSP, 2008. pp. 117 - 124.
31 Tambm conhecido como as Runas de Palmira. As Runas ou Meditao sobre a Revoluo dos
Imprios, no ttulo traduzido por Pedro Ciriaco da Silva, de acordo com a edio portuguesa de 1822.
Note-se, contudo, que esta edio portuguesa foi livremente traduzida. Cf. VOLNEY, C. F.C de. As Runas ou Meditao sobre a Revoluo dos Imprios. Typografia de Diziderio Marques Leo Lisboa
: 1822. Disponvel em: www.brasiliana.usp.br. O professor Hardman faz um comentrio interessante
sobre a difuso de Volney: Domingo Sarmiento, em Facundo o civilizacin y barbarie (1845) constri uma paisagem arruinada e oriental em torno dos pampas, inspirada diretamente em Volney. Taunay cita
Volney no elenco de suas leituras: este e outros aspectos da relao entre historia, memorialismo e fico
na obra do autor de Inocncia vm sendo pesquisados por Maria Ldia Maretti, orientanda do programa
de doutorado em teoria literria do IEL/Unicamp. Se em A retirada da Laguna, h traos evidentes do
binmio histria-runa, na sua narrativa histrica A cidade do ouro e das runas, cuja primeira edio data
de 1891, contando o episdio da morte do pintor e tio Adrien Taunay no rio Guapor, numa Vila Bela j
decadente do ciclo aurfero, durante a malfadada expedio Langsdorff, as afinidades com a linhagem de
Volney so profundas. HARDMAN, Francisco Foot. Brutalidade antiga: sobre histria e runa em Euclides. In: Estudos Avanados, 10 (26). 1996. P. 308.
32 HARDMAN, Francisco Foot. A potica das runas nOs Sertes. In: Op. Cit. p. 118.
33 HARDMAN, Francisco Foot. Brutalidade antiga: sobre histria e runa em Euclides. In: Estudos
Avanados, 10 (26). 1996. P. 307.
34 Idem.
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Todavia, Hardman prefere designar o tema das runas Volney, e esquece de mencionar
a Bblia, como fonte de imagens poderosas de runas e destruio.
Seguindo outro vis, Raimundo Nonato Pereira Moreira demonstrou, em sua
tese de doutorado, a influncia dos historiadores franceses romnticos, como Michelet,
Thiers, Thierry, Quinet, Guizot, na construo narrativa de Os Sertes. Assim, o
romantismo francs seria a grande matriz de concepo da histria para Euclides da
Cunha. Raimundo Nonato, partindo de uma interessante questo, no que literatura se
assemelha histria, mas que influncia a historiografia tem sobre a literatura
(considerando Os Sertes, como narrativa, disso advir maiores consequncias),
buscou nos registros dos livros lidos por Euclides da Cunha aqueles de historiografia. A
grande influncia historiogrfica teria sido a consolidao de uma imagem da
Revoluo francesa, que foi operacionalizada na referncia de Canudos como a Vendia
brasileira.35
Raimundo Nonato identifica essa imagem como sobretudo dependente do
livro Histria de Frana Popular e Illustrada, do historiador Henri Martin, numa
edio portuguesa lida por Euclides da Cunha em 1884.36
Outra importante influncia
historiogrfica foram os livros de Thomas Carlyle e Hippolite Taine, com The French
Revolution, On Heroes, Hero-Worship and the Heroic in History, do primeiro; e Essai
sur Tite-Live, Le positivisme anglais: tude sur Stuart Mill, Page Choisirs, Les Origines
de la France contemporaine, do segundo.37
Embora a prtica da citao e indicao da
referncia da informao sejam raras vezes encontradas nos Escritos de Euclides da
Cunha, podemos supor que constelao dos eventos histricos que o autor dispunha em
35
Trato dessa identificao no Captulo 2 da dissertao, como primeira interpretao e constituio
histrica se sentido atribudo Canudos por Euclides da Cunha.
36 MOREIRA, Raimundo Nonato Pereira. E Canudos era a Vendia... O imaginrio da Revoluo
Francesa na construo da narrativa de Os Sertes. So Paulo : Annablume, 2009. p. 255.
37 Ibidem, p. 262. Raimundo Nonato reconstri, alm disso, um quadro das possveis leituras de Euclides,
de acordo com as edies disponveis no mercado durante a elaborao de Os Sertes. Segue a lista
encontrada: Dix ans detudes historiques, de Thierry; Histoire de la Rvolution franaise, de Thiers;
Histoire de la Rvolution franaise, de Mignet; Histoire de la civilisation em France e Essais sur
lhistoire de France, de Guizot; Histoire de France Populaire, de Henri Martin; Histoire parlementarie
de la Rvolution franaise, de Philippe Buchez; Histoire de Girondins, de Lamartine; Histoire de la
Revolution Franaise, e Histoire de France, de Michelet; Histoire de la Revolution, de Louis Blanc;
LAncien Regime et la Rvolution, de Tocqueville; La Revolution, de Edgar Quinet. A pesquisa de
Raimundo Nonato foi balizada pelo tema da histria da Frana e da Revoluo Francesa, e no pretende
ser um levantamento exaustivo das respectivas obras historiogrficas. Indicam, contudo, o grande
interesse no mercado editorial brasileiro pela histria francesa. Era esta historiografia que orientava o
passo em que estava o centro da civilizao. Cf. Ibidem. pp. 254-255.
-
19
sua bagagem advinha dessas obras. Segundo Raimundo Nonato, isso certo para
imagem da Revoluo Francesa que Euclides se valia em sua narrativa.38
Isso leva a discusso para o lado do estatuto discursivo de Os Sertes. Assim,
Luiz Costa Lima parte de uma indeterminao para explorar a questo se o texto de
Euclides seria cientfico ou ficcional.39
Conclui optando pelo cientfico, onde o ficcional
entra como adorno retrico. Porm, o mais interessante do estudo que consagra a este
problema, ter notado que o texto pertence a era anterior da consolidao da
historiografia como cincia, no qual prevaleciam ainda uma velha concepo retrica da
histria, herdada, em ltimo caso, pelo idioma portugus, da pennsula ibrica.40
Portanto, segundo Luiz Costa Lima, Os Sertes se inscreveria como uma obra
sobre um duplo carter, cientfico e literrio.41
Euclides seria pois cientista por sua
fidelidade factual, historiador por sua fidelidade aos fatos e romancista pelo tom pico-
trgico que empresta sobretudo a A Luta.42 O crtico defende que tal duplo carter
pode ser identificado na construo das frases euclidianas, sendo o ncleo destas o fato
positivo, adornado, logo depois, pela construo literria, cumprindo a funo de borda
ou contorno potico.43
Luiz Costa Lima aproxima, corretamente, esse amalgama entre
cincia e arte dos propsitos do naturalista Alexander von Humboldt, cujos escritos
buscavam exatamente a descrio cientfica porm dotada de funo esttica.44
38
Idem.
39 LIMA, Luiz Costa. Terra Ignota. A construo de Os Sertes. Rio de Janeiro : Civilizao Brasileira,
1997.
40 Ibidem, p. 17; pp. 213 238.
41 Tal dupla inscrio corresponderia, ademais, ao prprio modo pelo qual o livro foi recebido em sua
poca. Sobre o carter de dupla inscrio da obra ento se levantara que ela parece indicar que nossos crticos do comeo do sculo no distinguiam entre a concepo retrica das belas-letras, que, no
levando em conta o trabalho dos antiqurios, inclua a histria entre os seus objetos, e a concepo
romntica de literatura, diferenciada enquanto expresso e explorao do infinito individual. Ibidem, p. 128. Ou seja, no havia maiores problemas, entre os crticos que resenharam a obra, no momento de seu
lanamento, com o amalgama da pretenso cientfica com a construo literria. Essa questo, portanto,
teria surgido na crtica posteriormente, no decorrer do sculo XX.
42 Ibidem, p, 132.
43 Ibidem, p. 137.
44 Ibidem, p. 143. Sobre Alexander von Humboldt e a unio entre cincia e esttica, com propsito
romntico de reunificar o homem com a natureza, Laura Dassow Walls explica: For the Humboldtian sicentist, the doing of science combined rigorous and exacting labor with the joy of poetic creation and an
almost spiritual sense of revelation, as if nature borrowed the mind and hand of the scientist to describe its
own most beatiful laws and structures. WALLS, Laura Dassow. The Passage to Cosmos. Alexander von Humboldt and the Shaping of America. Chigago, London : The University of Chicago Press, 2009. p.
8.
-
20
Estas so, entre as obras crticas mais recentes, as que se relacionam de algum
modo com a temtica explorada neste trabalho. Nota-se que embora tragam comentrios
instigantes e elucidativos, pouco ou no relacionam o tema da histria, narrativa e
tempo de Os Sertes de forma integrada. Os comentrios sobre a memria, por
exemplo, ficam como que pairando no ar, sem esclarecer qual sua funo para uma
compreenso dos elementos em jogo na construo cultural do passado. De igual modo,
no lanam luz questo aqui construda, sobre a projeo de um tempo retrgrado em
cima dos sertanejos.
Neste trabalho a teoria da histria deve ser usada como instrumento heurstico
de crtica e interpretao. Sua capacidade de explicitar os procedimentos constitutivos
do pensamento histrico moderno pode ser empregada para a leitura de textos literrios
e histricos.45
Com a matriz disciplinar do pensamento histrico elaborado por Jrn
Rsen, na qual so elucidadas as etapas e funes da orientao da vida humana no
tempo, pode-se pensar o problema aqui levantando acerca do livro Os Sertes.
Segundo Rsen, historias cumprem sua funo ao orientarem temporalmente o
agir da vida prtica. Elas so dependentes, todavia, de uma carncia fundamental: a
necessidade de dar sentido para a ao e paixo sofridas no tempo. O agir e sofrimento
humanos que ocorrem no tempo precisam ser inteligveis para serem empreendidos e
suportados. Isso significa que a experincia do tempo necessita ser elaborada
culturalmente de alguma forma. Linguisticamente a experincia da passagem do tempo
elaborada por uma narrativa histrica. O tempo assim humanizado, o passado
retomado e o futuro esperado pelo presente. A conscincia da mudana temporal
elaborada por uma histria chamada de conscincia histrica. Para Rsen,
o homem necessita estabelecer um quadro interpretativo do que experimenta
como mudana de si mesmo e de seu mundo, ao longo do tempo, a fim de
poder agir nesse decurso temporal, ou seja, assenhorear-se dele de formal tal
que possa realizar as intenes do seu agir. (...) A conscincia histrica ,
assim, o modo pelo qual a relao dinmica entre a experincia do tempo e
inteno no tempo se realiza no processo da vida humana.46
45
Com resultados positivos, ela j foi testada, entre outros, por ASSIS, Arthur. A teoria da histria como
hermenutica da historiografia: uma interpretao de Do Imprio Repblica, de Srgio Buarque de
Holanda. Revista Brasileira de Histria. So Paulo, v. 30, n 59, 2010. p. 91-120. e PEREIRA, Ana
Carolina B. Que objetividade para a Cincia da Histria? : o ndio brasileiro e a revoluo francesa
luz da teoria da histria, de Rsen a Hayden White. Dissertao (mestrado)Universidade de Braslia, Departamento de Histria, 2007.
46 RSEN, Jrn. Razo Histrica. Teoria da Histria: os fundamentos da cincia histrica. Braslia: Ed.
UNB, 2001. p.58
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21
Pode-se tambm entender a conscincia histrica como constituio de
sentido da experincia do tempo.47 Com histrias, o sentido da experincia do tempo
elaborado narrativamente. Ou seja, a narrativa o modo lingustico pelo qual se domina
a contingncia de viver no tempo, transformando o agir e sofrer em histrias com
sentido. O carter de um enunciado, de uma articulao ou manifestao de sentido,
histrico se o sentido intencionado abrange um contexto narrvel entre o passado, o
presente e (tendencialmente) tambm o futuro, sentido esse no qual a experincia do
passado interpretada de forma que o presente possa ser entendido e o futuro esperado.
Assim, o sentido histrico necessita formalmente de uma estrutura narrativa,
cujo contedo deve vir da experincia do passado, e precisa cumprir sua funo de
orientar a vida humana nas demandas de seu presente. Uma historia narra o passar do
tempo, e supre com sentido as transformaes ocorridas. Conceitos, perspectivas,
categorias, mtodos e procedimentos com que se olha e investiga o passado encontram
formas de representao do passado.
Pode-se estabelecer a relao entre texto e contexto tambm mediante a teoria
da histria. Histrias nascem da carncia de se orientar temporalmente a vida. A
dimenso temporal de toda experincia articulada pela histria. O mundo da vida
perpassado pelas relaes interpessoais, e signos e sentidos so compartilhados pela
cultura. Isso significa que as carncias de orientao so elaboradas a partir dos
elementos de sentidos de uma cultura, e logo passam pela mediao social. Pode-se
referir a isto com a noo de cultura histrica. Com o conceito de cultura histrica, a
conscincia histrica remetida a um mbito maior. Passa a referir a cultura, que assim
pode ser localizada tanto geogrfica como temporalmente, e desta forma particularizada.
O conceito de cultura histrica tem funo de categorizar fenmenos distintos e
mltiplos que envolvem a memria histrica na esfera pblica. Explora e denomina um
amplo campo de processos que entretecem as relaes sociais com a cultura, no modo
particular do pensamento histrico. O conceito refere-se a prtica cultural orientada
historicamente para o agir, isto , ao com sentido orientada temporalmente entre
passado presente e futuro. Ele tem assim a estimativa de ligar o pensamento histrico de
47
Ibidem, p. 59
-
22
uma sociedade com a ao concreta dos indivduos, mostrando que a histria influi
neles com sua funo de orientao temporal da vida. Cultura histrica seria a
conscincia histrica de uma sociedade, isto , sua maneira de entender-se e reproduzir-
se a partir de uma conscincia cultural orientada historicamente. Como a define Rusen:
Assim a cultura histrica pode ser definida como a articulao prtica e operativa da
conscincia histrica na vida de uma sociedade48
Com o instrumento heurstico fornecido pela teoria da histria, pode-se abordar
o problema do tempo e da historicidade no livro de Euclides da Cunha.49
Os Sertes foi publicado em contexto de rpidas mudanas, vividas tanto no
plano poltico quanto no social com a modernizao e advento da indstria. O Captulo
1 desta dissertao situa o lugar de enunciao de Euclides da Cunha em sua poca. Um
autor que tomou posio nos assuntos polticos e assumiu a tarefa da civilizao como
engenheiro. O Captulo 2 trata do tema do serto como contraposio civilizao.
fundamental para entender a urdidura da concepo de histria do Brasil que se
encontra em Os Sertes. alm disso, crucial como elaborao da situao apontada no
captulo 1, a modernidade, se refletindo em uma orientao histrica que toma a
contrarrevoluo de Vendia como parmetro de interpretao. O presente do autor
props problemas para os quais ele buscou na histria uma resposta. O Captulo 3
finalmente entra no livro Os Sertes, procurando desvendar o sentido histrico atribudo
ao serto e ao sertanejo. O pensamento histrico aqui conscientemente elaborado por
um autor, que se via como um escritor de ensaios que misturavam a cincia, em
concepo positiva e racional, com arte, em concepo subjetiva e fantasista. Depois de
que a situao e a concepo de histria do autor foram elucidadas, ficar mais claro
porque sua representao do serto como lugar do passado. Se o objetivo for cumprido,
o texto agora deve retornar ao contexto e o contexto iluminar texto.
48
RSEN, Jrn. Qu es la cultura histrica?: Reflexiones sobre una nueva manera de abordar la
historia. Disponvel em: http://www.culturahistorica.es/ruesen/cultura_historica.pdf Acesso em:
09/10/2011.
49 Alm de Rsen e Koselleck, cf. Cf. RICOEUR, Paul. A memria, a histria, o esquecimento.
Campinas, SP.: Ed. Unicamp, 2008. ANKERSMIT, Frank. Truth in Literature and History. Cultura
Histrica, 2009. disponvel em
http://www.culturahistorica.es/ankersmit/truth_in_literature_and_history.pdf Acesso em 31/03/2012.
-
23
CAPTULO 1 - MODERNIDADE COMO CONTINGNCIA
TEMPORAL
Para Euclides da Cunha a civilizao o caminho percorrido pela humanidade.
Segui-lo a tarefa da sua poca, encontrar na civilizao o fim dos injustos problemas
do homem. A cincia e a razo triunfavam com a II Revoluo Industrial, seus xitos
tcnicos obtidos no sculo XIX provavam ser possvel uma grande transformao do
mundo, capaz de ser moldado palmo a palmo pela engenharia do homem. O engenheiro
o homem por excelncia que domina a cincia determinada obteno de fins pela
manipulao de seus meios - a tcnica. Eram os engenheiros desde o comeo do sculo
XIX os responsveis por construir e administrar os novos meios tcnicos da Revoluo
Industrial. Erigiam redes de telegrfo, pontes metlicas, estradas de ferro, ruas e
projetos que atendiam modernizao da sociedade. Enquanto escrevia Os Sertes,
Euclides da Cunha trabalhava como engenheiro da Superintendncia de Obras Pblicas
do Estado de So Paulo. Entre o fim da Guerra de Canudos em 1897 e a publicao do
livro em 1902, decorreu um perodo durante o qual o autor manteve-se no interior de
So Paulo, em So Jos do Rio Pardo. Retirado da grande capital do Rio de Janeiro, e
tambm do centro paulista, Euclides da Cunha escrevia sobre o interior afastado da
costa litornea, o serto.
No era uma novidade. Nem literria, pois Bernardo Guimares j iniciara em
1865 com O Ermito de Muqum o romance histrico sobre os sertes brasileiros, nem
cientfica, pois tanto os institutos de cincia, geogrficos e histricos, como o governo
mantinham seus interesse por uma terra desconhecida, nos modelos administrativos
modernos. A regio de Canudos j havia sido percorrida e parcialmente estudada pela
comisso da qual fizera parte Teodoro Sampaio, outro engenheiro pblico.50
Capistrano
de Abreu j publicara artigos sobre a histria das entradas, rumo dos bandeirantes de
penetrao da terra por veias fluviais, cuja audcia nos primeiros tempos da colnia
50
SAMPAIO, Theodoro. O Rio So Francisco e a Chapada Diamantina: trechos de um dirio de
viagem (1879-80). So Paulo : Escolas Profissionaes Salesianas, 1905.
-
24
tinham garantido a posse portuguesa.51
Euclides da Cunha fazia de Os Sertes um livro
libelo, era a denncia dos crimes humanitrios cometidos pela Repblica em uma guerra
civil nos confins da Bahia. Embora compartilhasse de teses raciais e de determinismos
do meio sobre a ao dos homens, seguindo a linha narrativa do livros, a medida que se
avana nos acontecimentos da guerra, o autor vai perdendo seu primeiro entusiasmo
com a civilizao, para uma cada vez maior postura de desconfiana em relao ao
prometido sonho civilizatrio.
O interior do pas era objeto de interesse desde que uma tese sobre a histria
brasileira foi lanada. Com o processo de Independncia, interrogou-se o passado para
fins de provir o sentido ao agrupamento poltico. Sob o Imprio, tal tarefa foi
coordenada especialmente pelo Instituto Histrico e Geogrfico Brasileiro. A
monografia de Karl Friedrich Von Martius, Como se deve escrever a histria do
Brasil52
, definia as diretrizes para uma historiografia cuja tarefa era explicar a formao
da nao brasileira. Nesse escrito, fixava-se um padro que se veria consagrado: vias de
penetrao do territrio pelos rios eram o caminho da colonizao, empresa que
proporcionara o encontro e cruzamento de trs raas o portugus, o africano e o
indgena da terra. Desse encontro embalado pela aventura da expanso ultramarina
portuguesa dava-se a experincia que constitua o Brasil, das trs raas miscigenadas
originava-se o brasileiro.53
A preocupao com a essncia da nacionalidade foi clara na Amrica a partir
dos processos e lutas de Independncia. Incorporando da Europa as matrizes,
necessidade de definio nacional e os meios para tanto, foi desenvolvida uma literatura
romance e histria que localizava, resgatava, definia os tipos, os costumes, e
particularidades de cada regio, e da regio prosseguiam, por analogia, identificao
51
ABREU, Joo Capistrano de. Os caminhos antigos e o povoamento do Brasil. [1899] In: PAIM,
Antonio (org.) Capistrano de Abreu. Descobrimento do Brasil e Povoamento. [s.l] : Centro de
Documentao do Pensamento Brasileiro [s.d] Disponvel em
http://www.cdpb.org.br/capistrano_de_abreu%5B1%5D.pdf Acesso em 02/05/2012.
52 MARTIUS, Karl Friedrich Von. Como se deve escrever a Historia do Brasil. In: Revista de Histria
de Amrica, No. 42 (Dec., 1956), pp. 433-458. Disponvel em http://www.jstor.org/stable/20137096.
Acesso em 10\06\2012.
53Cf. GUIMARES, Manoel Luis Salgado. Nao e Civilizao nos Trpicos: O Instituto Histrico e
Geogrfico Brasileiro e o Projeto de uma histria nacional. In: Estudos Histricos, Rio de Janeiro. n. 1,
1988. pp.5-27.
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25
do ser nacional. Constituio simblica do estado nacional, que devia transpor a
unidade poltica unidade cultural.54
Um historicismo romntico de base, considerado em amplo sentido, com a
instituio da histria como provedora de sentido da experincia do coletivo singular a
nao constitua o modelo para a busca da excentricidade, a peculiaridade, o tpico, a
sntese dos costumes da terra, amoldurados pela experincia do passado sedimentada
atravs dos sculos e vividas na maneira de ser das pessoas da terra no presente e futuro.
Contava-se atravs da escrita o que era a identidade cultural, formando um conjunto de
smbolos e signos, intersubjetivamente partilhados, do Estado nacional. Os Sertes de
Euclides da Cunha mantinha ainda, no contexto da viragem do sculo XIX para o XX,
as preocupaes sobre a nao, que se encontravam nos escritores americanos.
POSIO DE EUCLIDES DA CUNHA NO CONTEXTO DA I REPBLICA.
O contexto histrico em que Euclides da Cunha viveu foi um perodo de
grande desestabilizao, com uma srie de crises polticas e econmicas que
acompanham a queda da monarquia e o reajustamento da ordem sob o regime
republicano.
Euclides da Cunha situava-se no seio da efervescncia poltica, contribuindo
com o movimento de ideias e confabulando para um novo regime poltico. Era cadete
do exercito, como aluno do curso de engenharia, da Escola Militar da Praia Vermelha,
quando o golpe de 15 de Novembro de 1889 foi proclamado. Nos dias anteriores a
proclamao, Euclides escrevia para a imprensa, colaborando com artigos para a
54
Otto Maria Carpeaux aponta a ironia dos nacionalismos que se difundiram desde o romantismo Embora
buscassem definir a unidade nacional, foram basicamente os mesmos princpios que serviram a todos: A
literatura romntica, que tantas vezes se gabava de ser mais nacional e mais nacionalista do que o
classicismo, constituiu, no entanto, o movimento literrio mais internacional de quantos a Europa at
ento tinha visto. [...] O romance histrico maneira de Scott, o poema narrativo maneira de Byron, o
teatro maneira de Hugo, aboliram todas as fronteiras literrias. E aqueles elementos nacionais
combinaram-se, criando os tipos da literatura romntica internacional. CARPEAUX, Otto Maria. Histria
da Literatura Ocidental. V. 4. Rio de Janeiro : Edies O Cruzeiro, 1962.p.1652.
-
26
Provncia de So Paulo, peridico da linha republicana, nos quais atacava a instituio
monrquica e previa as glrias de uma repblica. Desde esta poca, quando ainda era
um jovem estudante, formava-se como um homem de letras, um escritor que fazia da
palavra a voz de uma causa social. O modelo acompanhava, a seu modo, a formao, na
Europa, do homem letrado que engaja-se no debate pblico, em nome da verdade e do
humanismo universalista o intelectual.55
Euclides nascera no interior do Rio de Janeiro, na fazenda chamada Saudade,
no distrito de Cantagalo. Seu pai, Manuel Pimenta da Cunha, era guarda-livros,
empregado nas fazendas de caf do Vale do Paraba. Sua me, Eudoxia da Cunha,
morrera quando Euclides tinha trs, deixando o menino aos cuidados das tias. Os
bigrafos de Euclides, Olmpio de Souza Andrade e Roberto Ventura, atribuem
infncia passada na fazenda, o ambiente rural serrano do Rio de Janeiro, a melancolia
frente natureza rural que o autor expressaria nos seus escritos na vida adulta.
Para Olmpio de Sousa Andrade, Euclides da Cunha era filho da roa, tocado
pela natureza quando viveu no Vale do Paraba. Do tempo vivido entre fazendas,
Euclides da Cunha levaria o gosto pela vida do campo. Segundo Andrade, dos quatorze
aos vinte anos, j no rio de Janeiro, lembrou muito esse tempo perdido, ao rabiscar o
primeiro artigo para um jornal de estudantes e ao escrever versos que valem como
documentos.56 Sua posio concorda com a de Roberto Ventura. Segundo Ventura, as
serras fluminenses marcaram a infncia do futuro escritor. De Terespolis, cidadezinha
atravessada pelo riozinho Paquequer e cercada pelas serras e neblina nas manhs e
tardes, guardou a lembrana de infncia mais remota. Seria a terra sagrada onde passara
o seus mais verdes anos, como confessava, em carta a Lucio Mendona, o cenrio mais
55
De fato, Emile Zola era um autor atual no Brasil no fim do sculo XIX, era acompanhado e debatido
nas resenhas do crculo letrado. O Caso Dreyfus foi noticiado na imprensa local, e para Euclides era um
modelo do homem que lutava no campo das ideias. O caso Dreyfus teve grande repercusso no Brasil. Vrios jornais, dentre eles o Estado, publicaram os artigos de Zola, que transformou a imprensa em
tribuna de acusao ao Exrcito e Terceira Repblica franceses. O tom inflamado de Zola teve ecos em
Euclides, que morava nesta poca em So Jos do Rio Pardo, onde escreveu grande parte de Os Sertes. VENTURA, Roberto. Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha. So Paulo : Companhia
das Letras, 2003. pp. 189-190.
56 ANDRADE, Olmpio de Souza. Historia e Interpretao de Os Sertes. 4.ed. Rio de Janeiro :
Academia Brasileira de Letras, 2002. p. 20.
-
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longnquo de suas recordaes e suas saudades.57
Euclides lembrava-se das paisagens
vistas na infncia com serras envoltas na cerrao, rochedos banhados por filetes de
gua, vises do sol entre as montanhas58, quando remetia epistolas a seus amigos.
Ademais, para Roberto Ventura, Euclides voltava-se para a natureza para se consolar
da morte da me e da difcil instabilidade de sua infncia e juventude, em que teve de
trocar, por inmeras vezes, de casa e colgio.59 O menino mudava-se frequentemente,
pois viveu a infncia entre Terespolis, So Fidlis, Rio de Janeiro, Salvador, e Rio de
Janeiro.
A percepo dos bigrafos valiosa, Euclides da Cunha nascera no meio rural,
e viveu sua fase adulta na cidade. A diferena entre o campo, a fazenda, a serra e a rua,
a vitrine da mercadoria, a cidade drstica. Seguindo os bigrafos, seria uma fase
infantil que retornaria como lembrana longnqua de uma amena natureza, que se
contraporia turbamulta urbana e a dureza da vida adulta. Mais do que um dado
biogrfico a indicao de uma condio social. Em um pas de populao rural, o
processo de modernizao impulsionado desde meados do sculo XIX incentivava a
transformao da sociedade, sendo fato significativo o crescimento da vida urbana.
Revelava uma condio social, um escritor engenheiro, cuja profisso e atividade
letrada estava intimamente associada com a vida citadina, dependente da instaurao da
civilizao industrial e da circulao de ideias por meio do papel no crculo literrio
formado por revistas e jornais. No entanto, nascera e vivera a infncia no campo, em um
pas que herdava do meio rural sua mais forte caracterstica cultural.
Em um carto postal Machado de Assis, que encontrava-se na ocasio em
Nova Friburgo, Euclides da Cunha dizia:
O sr. Est numa cidade que eu vi na mais remota juventude, e bem perto do
pequenssimo vilarejo onde nasci Santa Rita do Rio Negro. No a conheo mais. Mesmo dessa encantadora Nova Friburgo tenho uma impresso
exagerada. Foi a primeira cidade eu vi; e conservo-lhe neste rever na idade
57
Roberto Ventura afirma o fato com base na mencionada carta a Lcio Mendona. Para o bigrafo,
importante fixar a cena da infncia para desvendar a personalidade do escritor Euclides da Cunha. Cf.
VENTURA, Roberto. Op. Cit. p. 37.
58 Ibidem p. 38.
59 Idem.
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28
viril, uma impresso de criana, a imagem desmesurada de uma quase
Babilnia...60
A impresso de uma quase Babilnia frente a uma cidade do interior
simblica, enuncia o impacto causado pela urbana em um menino da fazenda. O sentido
desmesurado dado no postal cidade uma imperial Babilnia revela o choque, que
pode ser considerado em amplo sentido social, vivido pela transformao do pas na
direo da urbanidade, da civilizao e das tcnicas da sociedade industrial, como o
telegrafo e a linha de ferro.
Na poca do colgio, Euclides da Cunha lia os autores romnticos. Segundo
Roberto Ventura, ele admirava sobretudo Fagundes Varela. O modelo seguido pelos
romantismo brasileiro era essencialmente francs. Tanto Varela como Castro Alves
seguiam o modelo do negro nobre, vivificado pela literatura francesa, como o
personagem Bug-Jargal de Victor Hugo. A causa abolicionista tambm tornava-se tema
da poesia romntica, e o carter social desta marcava nos estudantes a vontade de
empregar a palavra em nome de uma causa pblica. Euclides e seus colegas da escola
empolgavam-se com a defesa social da abolio, influenciados por Joaquim Nabuco,
Jos do Patrocnio, Andr Rebouas e Lus Gama. Segunda Ventura, a denuncia dos
horrores do trfico ou a exposio da crueldade dos senhores, comuns na poesia
romntica, evocavam temas caros aos colegiais e estudantes: a perda de razes, a
nostalgia das origens e a ausncia de liberdade.61
Segundo seu bigrafo, o sentimento romntico incutira-se no futuro escritor.
Adotava uma postura romntica diante da vida e da histria, com sentimentos que
oscilavam entre a utopia e a melancolia.62 Formando-se um leitor dos autores
romnticos, brasileiros, portugueses e franceses principalmente, Euclides da Cunha
absorvia do romantismo um ethos. Entre os autores que mais influenciaram Euclides,
encontram-se Victor Hugo no romance; Carlyle, Guizot, Thiers, Thierry, Lamartine,
Michelet, na historiografia, Alexander von Humboldt na literatura de viagem. Estes
proveram ao jovem estudante o ideal da justia social, matizada por uma histria magna
60
. CUNHA, Euclides da. A Machado de Assis. Santos, 15 de fevereiro de 1904. In: Obra Completa:
volume 2. Organizado por Paulo Roberto Pereira, 2ed. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 2009. p. 920.
61 VENTURA, Roberto. Op. Cit. . P. 43
62 Ibidem, p. 47
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29
da Revoluo Francesa como passo decisivo no avano ao futuro da humanidade,
guiada pela cincia.63
Havia, entretanto, um inconveniente que acompanhava o desenvolvimento
civilizatrio. De fato, escrevera para o historiador Oliveira Lima, em 1908: Reivindico
o belo ttulo de ltimo dos romnticos, no j do Brasil apenas, mas do mundo todo,
nestes tempos utilitrios A progresso do mundo tcnico, com o avano das novas
tecnologias e de um novo sentimento de estar no mundo, refletido nas artes no final do
sculo XIX, nas variadas correntes de vanguarda, que geralmente consideravam-se
modernas ou modernistas, era tambm sentido por Euclides da Cunha.
Euclides aps o ginsio tornara-se cadete, como aluno da Escola Militar.
Cursava a carreira de engenharia, em uma instituio que seguia um modelo francs de
ensino, ilustrado, advindo da Escola Politcnica fundada em 1794 durante a Revoluo.
O objetivo da implantao desse modelo de escola era prover quadros civis e militares
para o Estado, formar tcnicos, treinados nas funes doravante requisitadas. Coincidia,
tanto no caso da Politcnica francesa como no caso brasileiro da Real Academia Militar,
fundada por D. Joo VI, com o advento do mundo industrial e com a formalizao de
um incipiente estado nacional.64
Euclides da Cunha entrava na Escola Militar da Praia Vermelha no bojo da
movimentao republicana, quando o exercito, em vias de profissionalizao, tornava-se
um ator social cuja ao repercutiria efeitos fundamentais. Recebera, na Escola, aulas
com Benjamin Constant de Botelho Magalhes, seguidor do positivismo de Auguste
Comte e defensor de uma repblica baseada no modelo da III Republica francesa de
1870. Euclides deixou-se influenciar por seu professor, como atestam os bigrafos,
absorvendo o positivismo, Comte, Spencer, e partilhava do ideal de cincia como
provedora da verdade e ordenadora do mundo.65
Como membro do exercito, mesmo
como jovem aluno, seguia a disciplina militar, com sua ordem de formao, exerccios e
treinos. Tal aspecto importante, pois mais tarde em sua vida, quando escreveu Os
63
Cf. MOREIRA, Raimundo Nonato Pereira. E Canudos era a Vendia... O imginrio da Revoluo
Francesa na construo narrativa de Os Sertes. So Paulo : Annablume, 2009.
64 GALVO, Walnice Nogueira. Euclides e a Escola Militar. In: Euclidiana. Ensaios sobre Euclides da
Cunha. So Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 99-133
65 ARMORY, Frederic. Euclides da Cunha: Uma Odissia nos Trpicos. Cotia, SP : Ateli Editorial,
2009. pp. 65-67.
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Sertes, sua crtica aos desmandos e crimes de guerra se assomam a uma ironia frente a
ordem militar, suas regras e tticas, importadas do exercito francs e prussiano.
Como aluno, Euclides engajara-se junto com os cadetes na movimentao
republicana. Um ato seu ganhou notoriedade. Enquanto o ministro da Guerra da
monarquia, em visita a Escola, passava em revista os alunos formados, Euclides da
Cunha sai de formao dirigindo-se ao ministro, d vivas republica, tenta quebrar sem
sucesso seu sabre no joelho, e termina o atirando ao cho. O ato de protesto solitrio era
parte de um suposto plano estabelecido entre os alunos, que previa a sublevao contra
o ministro da guerra, sua priso na Escola, donde o levante seguiria para derrubar a
monarquia. Como apenas Euclides aderiu ao plano na ltima hora, o mesmo foi preso,
levado ao hospital, e expulso da Escola. Posteriormente, depois do proclamao de 15
de Novembro de 1889, seu antigo professor, Benjamin Constant de Botelhos Magalhes
assume o ministrio da guerra, e reincorpora Euclides Escola.
Devido ao ato, foi convidado por Jlio Mesquita, ento diretor do jornal A
provncia de So Paulo, rgo de imprensa que apoiava o republicanismo pondo-se ao
lado do partido republicano paulista, a colaborar no jornal. Escreve uma srie de artigos
atacando a monarquia, nos quais se destaca a linguagem que utiliza para qualifica-la.
Era uma instituio retrgrada, no condizente com a marcha do progresso e da
civilizao, era o descompasso brasileiro frente aos outros povos de primeira linha.
Propagava o republicanismo como uma mudana no curso da histria brasileira,
encarando a implantao de um novo regime como o meio de se retirar o Brasil atraso e
p-lo nos devidos trilhos da histria.
A retrica utilizava-se de exemplos e tentava seguir uma lgica histrica. Seu
pressuposto era a Revoluo Francesa, como marco da poca. Tinha sido a grande
Revoluo que dera inicios aos tempos modernos vividos pelas naes do mundo, e sua
bandeira de justia social era assumida como um dever humanitrio por Euclides.
Servia-se tambm do positivismo, como doutrina que embasaria cientificamente o
grande sentido dado histria desde a Revoluo de 1789. As fases de evoluo
humana prognosticavam, com certeza, um futuro realizado, poca de uma humanidade
plenamente satisfeita, auxiliada pelo domnio cientifico da natureza, pela tcnica, e
organizao racional da sociedade. Era uma linha evolutiva traada, desde as
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concepes rudimentares da humanidade, o misticismo, a religio, a metafsica, s
conquistas do sculo XIX, que indicavam a idade da cincia, e baseado nela,
prometiam, solucionar os problemas sociais e prover a humanidade de bem-estar. Essa
utopia positivista cultuava a razo, e colocava-se ao lado da verdade, cientificamente
alcanvel. A cincia sempre foi um ideal para Euclides, mesmo em sua fase mais
tardia, quando recuava do positivismo estrito para formas hibridas mais sutis de
sociologia e literatura.66
Frente aos bacharis em direito, e aos mdicos, situava-se como um letrado nos
assuntos cientficos e tcnicos. Desde a sociologia, passando pela geografia, geologia,
botnica, conquistas da tcnica industrial, e mais tudo que se pudesse contar numa
linguagem cientifica, cabia a pena do escritor engenheiro. Interferia como um mediador,
entre o conhecimento tcnico-cientfico e o pblico leigo. Assim, sua posio era a de
um comentador qualificado, a explicar e discorrer para um pblico amplo, porm
instrudo, sobre a situao, o progresso do conhecimento, o estado do saber da
humanidade, e as valias que se poderiam ter com os fatos. Como comentador de
assuntos sociais, investia-se da autoridade do socilogo, homem dos fatos e mtodos
corretos com que se interpretar os eventos caticos da sociedade, dando-lhe correta
feio e significao, com a certeza de uma verdade positiva. Segundo Jos Carlos de
Barreto Santana, mediante seus trabalhos como escritor, o contedo cientfico
exposto a um pblico mais amplo que o normalmente associado ao que consumiria o
contedo veiculado pelos livros e peridicos especficos das cincias.67 Donde a
autoridade de seus juzos, no do reles mundo das opinies, mas do reino exato de uma
cincia, pois falava como especialista.
O noviciado de Euclides da Cunha na imprensa adere, assim, ao contexto da
histria da Primeira Repblica brasileira e as mudanas sociais pelas quais passam o
pas entre o final do sculo XIX e as primeiras dcadas dos sculo XX. Interferindo no
debate pblico por meio dos seus artigos para os jornais, Euclides da Cunha tornava-se
66
Em especial nos escritos amaznicos, sobretudo na crnica Judas Ashverus, o carter literrio parece
predominar sobre as consideraes sociolgicas. Cf. HATOUM, Milton. Expatriados em sua prpria
ptria. In: CUNHA, Euclides da. Obra completa. Vol. 1. 2.ed. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 2009. pp.
CLV-CLXXII.
67SANTANA, Jos Carlos Barreto. Cincia e Arte: Euclides da Cunha e as Cincias Naturais. So
Paulo : Hucitec, Feira de Santana : Universidade Estadual de Feira de Santana, 2001. p.35.
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um dos incipientes escritores que, no dizer de Nicolau Sevcenko, tentavam fazer de sua
palavra escrita a valia de uma causa pblica.68
Mais que mero articulista que comentava os fatos polticos da sua poca,
Euclides da Cunha manteve-se muito prximo das mudanas por que passava o Brasil.
Fazia parte, como aluno-cadete, do exercito, confabulando junto com seus colegas a
favor do republicanismo. Como articulista, publicara na imprensa de So Paulo e Rio de
Janeiro, centro da opinio publica que girava em torno da capital federal. Como
engenheiro, participava da linhagem de Andr Rebouas e Teodoro Sampaio, em uma
profisso que era requisitada pela modernizao do pas.69
Ainda, foi colega, na escola
militar, de Alberto Rangel, Lauro Mller, Tasso Fragoso e Cndido Rondon. O nome de
Rondon exemplar da turma de tcnicos-militares que achavam nos quadros
burocrticos da Nova Republica uma funo importante. Carregava como tcnico, em
nome do governo, o desenvolvimento para o interior do pas com linhas de telgrafo,
smbolo da integrao do territrio nos modernos quadros de funcionalidade e
administrao.70
Conforme Csar Guilhermino sustenta, a preocupao com o espao interior
relata-se conjuntura que envolve a Guerra do Paraguai (1864 1870), o movimento
abolicionista, a propaganda republicana, as ondas imigratrias e os projetos de expanso
da malha ferroviria e martima para as zonas rurais, numa preocupao de afirmar e
garantir os limites do territrio nacional.71
Projeto de construo de nao moderna, de
civilizao, que necessitava tanto do empreendimento da engenharia quanto uma
engenharia simblica, que construsse a identidade da nao. 72
Euclides da Cunha forma-se em 8 de janeiro de 1892, concluindo o curso de
Estado-Maior e engenharia militar, da ento Escola Superior de Guerra, sendo com isso
promovido ao posto de tenente, o ltimo de sua carreira militar. Recebe com a
68
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como misso: tenses sociais e criao cultural na Primeira
Repblica. 2.ed. So Paulo : Companhia das Letras, 2003.
69 Sobre a modernizao brasileira no perodo, cf. GRAHAM, Richard. Britain and the onset of
modernization in Brazil 1850-1914. Cambridge: At the Univ. Press, 1968.
70 Cf. CESAR, Guilhermino. A viso prospectiva de Euclides da Cunha. In: CESAR, Guilhermino;
SCHULER, Donaldo; CHAVES, Flavio Loureiro. Euclides da Cunha. Porto Alegre: UFRS, 1966.
71 Ibidem, p.15
72 GRAHAM, Richard. Op. Cit.
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formatura o diploma de bacharel em matemtica e cincias fsicas e natural, de onde o
vocativo de Doutor que iria sustentar ao longo da vida. Participa como engenheiro
militar da Revolta da Armada, no Rio de Janeiro, em 1893, construindo trincheiras e
fortificaes na orla martima. Permanece trabalhando como engenheiro para o exercito
at 1895, quando obtm licena, abandonando a carreira militar com a qual se sentia
desconfortvel. Assume no mesmo ano o posto de engenheiro na Superintendncia de
Obras Pblicas de So Paulo. Neste cargo, trabalhar supervisionando obras, viajando
muito pelo interior do estado.73
Dizia-se de si prprio nas cartas aos amigos um
engenheiro errante, pois se sentia transeunte entre uma obra e outra, vagando pelas
estradas do estado de So Paulo.74
Euclides da Cunha trabalhava como engenheiro quando irrompeu a o conflito
em Canudos em 1896. Com a derrota da terceira expedio comandada pelo coronel
Moreira Cesar, que morrera abatido por uma bala, o conflito toma propores maiores,
repercutindo na imprensa do Rio de Janeiro e So Paulo. Com a mobilizao de foras
nacionais para a composio da quarta expedio, os peridicos passam a acompanhar o
dirio do campo de batalha.75
Fervilhavam rumores sobre uma conspirao monarquista,
por trs do grupo de Antnio Conselheiro. Era um boato que se espalhava, explicando a
derrota das expedies enviadas e a resistncia inflexvel que encontrava a quarta
expedio, a mais bem armada e provida de praas at ento.
Nesse ambiente, Euclides publica em 14 de maro e 17 de julho de 1897 um
artigo em duas partes, em O Estado de So Paulo, intitulado A nossa Vendia. Era
seu primeiro pronunciamento pblico sobre a guerra que acontecia nos sertes da Bahia.
Neles podemos ver o prottipo do livro que escreveria aps o fim do conflito, entre
1897 e 1902. De fato, embora fossem escritos tendo mo informaes parcas, manter-
se- em Os Sertes a mesma postura discursiva, o mesmo interesse temtico sobre a
terra e o homem que nela habita, girando em torno do conflito que ocorreu, em uma
semelhante tese histrica - Canudos entrava para a Histria, e o embate entre o jaguno
73
VENTURA, Roberto. Op. Cit. p. 290-291.
74 CUNHA, Euclides da. Correspondncia Ativa. 1890 1909. In: Op. Cit. v.II, 2009. pp. 771 1112.
75 Cf. GALVO, Walnice Nogueira. No calor da hora: a guerra de Canudos nos jornais: 4. Expedio. 3.
ed. So Paulo: Atica, 1994.
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e a Repblica era o embate entre a barbrie e civilizao. Em Os Sertes, contudo,
mudar-se-ia o sentido narrativo, do triunfo para a tragdia da histria.
Graas a esses dois artigos, e aos promissores conhecimentos que o engenheiro
detinha quanto a natureza da terra a explicar a natureza da guerra, foi escalado por Jlio
Mesquista, diretor de O Estado de So Paulo, para cobrir a 4 expedio contra
Canudos. nomeado, para desencarregar tal funo, adido do Estado-Maior do ministro
da Guerra, marechal Carlos Machado de Bittencourt, em 31 de julho de 1897. Parte do
Rio de Janeiro no vapor Esprito Santo rumo a Salvador, aonde observa a
movimentao que a guerra provoca na cidade e escreve suas primeiras reportagens.
Nelas vemos ainda o tom laudatrio da Repblica, arroubos de patriotismo e exaltao
de um ideal que se representa numa heroicidade atribuda aos soldados convalescentes,
sacrificados ao futuro da nao. As grandes vtimas obscuras do dever76, soldados
mutilados que retornam da luta, anima-os, porm, heris adventcios, o entusiasmo de
se guerrear em nome da ptria, numa corrente de mrtires que chegam e de valentes
que avanam, em dias que lembram as lutas da Independncia.77 Nestas expresses
reportava ao jornal as notcias da guerra. Euclides planejava, de antemo, recolher
material para um livro com o ttulo de A nossa Vendia. O projeto que se tornaria Os
Sertes. O conflito transmudava-se em um smbolo histrico, a significar o sentido
assumido na histria da constituio da nao. O engenheiro empolgava-se com o
testemunho de tal processo, narrando ao jornal de So Paulo e seu leitores os fatos do
grande acontecimento.78
De Salvador, parte aps esperar a organizao das tropas com as quais seguiria,
para Monte Santo, em 30 de agosto; de Monte Santo segue em 13 de setembro a
Canudos, aonde chega na tarde do dia 16 de setembro. Euclides passa 18 dias na frente
de batalha, observando a ltima fase da guerra, quando o arraial de Canudos j estava
parcialmente tomado, e os sertanejos ofereciam ainda resistncia at o completo
esgotamento. Ao observar a guerra acontecendo diante de seus olhos, em um povoado
de casas de pau-a-pique e contra gente em extrema condio de misria, presenciou a
76
Reportagem enviada da Bahia em 12 de agosto de 1897. In: CUNHA, Euclides da. Obra Completa.
V.II, 2.ed. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 2009. p. 511.
77 Reportagem enviada da Bahia em 10 de agosto de 1897. In: CUNHA, Euclides da. Op. Cit v. II. pp.
507 - 508.
78 CUNHA, Euclides da. Canudos Dirio de uma Expedio. In: Op. Cit, v. II, 2009. pp. 495 - 602.
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prtica do exrcito republicano de degolar brutalmente os prisioneiros, num desenlace
de barbrie pelos supostos civilizados portadores do grande ideal de uma repblica feliz.
Nessas condies, vivenciando a guerra, entre exploses de granadas e estampidos de
fuzis, Euclides da Cunha muda seu jeito de entender a guerra.
O momento que ocorre a mudana de um tom exclusivamente laudatrio em
favor do triunfo de uma Repblica idealizada pelas vias da civilizao para uma viso
trgica que suspende seu otimismo na humanidade assumindo uma voz proftica que
anuncia a runa de todos, pode ser observada na Caderneta de Campo de Euclides, dirio
pessoal, em que recolhia dados e anotava causos que se destinava a compor o futuro
livro. No fulgor da batalha, escrevia em minutos de descanso Euclides sobre os fatos
que conseguia compor em ordem. Dizia: tudo incompreensvel nesta campanha: a
batalha continuava, mais tenaz e mortfera, se possvel.79 As investidas do exrcito
republicano eram resistidas pelos jagunos, criando uma situao que no era possvel
compreender - como tamanho poder destruidor mobilizado, em contas de canhes,
baionetas e soldados, no arrasava Canudos de vez?. Nesta ocasio trs estampidos
mais violentos que a exploso das granadas fizeram-se ouvir no ponto em que mais
tenaz se mostrava a resistncia do inimigo prximo a latada80, contava Euclides na
caderneta. Do seu posto de observao, vivenciava a luta, causando-lhe forte impresso,
que se transferia para suas anotaes: Mais violenta, mais forte, mais mortfera, se
possvel prosseguia a batalha.81 A histria que alevantava a Repblica guerra era
encarada frente morte do homem, tolhido a bala. Observando a investida de um
batalho, atentou para o gesto de um capito, que valente e dedicado tirou o chapu
alevantando um viva ardente e entusistico Republica!.82 Donde extraia do ato uma
considerao sobre o dispndio da vida a favor da guerra: e essa saudao custou-lhe a
vida e a vida escapou-se-lhe do peito atravessado por uma bala precisamente no
momento em que a sua alma sincera e nobilssima ansiava pela existncia eterna da
Repblica.83
79
CUNHA, Euclides da. Caderneta de Campo. In: Op. Cit, v. II, 2009. p. 631.
80 Idem.
81 Ibidem, p. 632
82 Idem.
83 Idem..
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Nesse ambiente, atravessado por soldados feridos, inimigos capturados e
degolados entre o som de balas e estampidos de granadas, Euclides incorre numa
reflexo sobre a guerra e seus horrores. Ponto, pois, de mutao e de reavaliao de seus
ideais sobre a Repblica e sua causa, em nome da qual e a favor da qual se
disponibilizara como cronista da guerra, detrator dos brbaros sertanejos, e homem de
cincia, com que contribuiria para um futuro melhor. , desta forma, notrio o seguinte
trecho, que por si descreve a sua viso, em aspecto tenebroso, inserindo a guerra em
uma referncia ao inferno de Dante:
Quando, 1 hora da tarde, da porta da Farmcia contemplei o quadro
comovedor e extraordinrio achei pequeno o gnio sombrio e formidvel de
Dante. Porque h uma coisa que ele no soube pintar e que eu vi naquela
sanga estreitssima, abafada e ardente, mais lgubre que o mais lgubre vale
do Inferno: a blasfmia orvalhada de lgrimas, rugindo nas bocas
simultaneamente com os gemidos de dor e os soluos extremos da morte...
Feridas de toda sorte, em todos os lugares, bizarras e extravagantes muitas,
dolorosas todas, progredindo numa continuidade perfeita dos pontos apenas
perceptveis das Mannlichers aos crculos maiores deixados pelas
Comblains84
, aos rombos largos e profundo das balas grosseiras dos trabucos
Enchia o ar um coro sinistro de imprecaes, gemidos, queixas e pedidos. Alguns contorciam-se sob o ntimo acleo de dores profundas, arrastavam-se
outros disputando um resto de sombra das barracas, quedavam-se outros,
imveis, as mos cruzadas sobre a fronte, resguardando-a do sol, imveis,
num estoicismo heroico, numa indiferena mrbida pelo sofrimento e pela
vida. No fundo das barracas, arrimados sobre os cotovelos os antigos doentes,
os feridos de combates anteriores olhavam assustados para os novos
companheiros de desdita, concorrentes s mesmas horas de desesperana e
martrio. Ao fundo, deitados sobre o cho duro, francamente batidos pelo sol,
alinhavam-se trs cadveres o coronel Tupi, o major Queirs e o alferes Raposo.
Felizes os que no presenciaram nunca um tal quadro. Quando eu voltei,
percorrendo lentamente, sob os ardores da cancula, o vale tortuoso e longo
que leva ao acampamento, senti a mesma mgoa indefinvel, o mesmo
desapontamento que deve sentir um nababo opulento expulso bruscamente
dos sales dourados em que nasceu e obrigado a pedir uma esmola na praa
pblica.
Quanto ideal ali deixei perdido, naquela sanga maldita e quanta aspirao l
ficou, morta, absolutamente extinta, compartindo o mesmo destino dos que
agonizavam cheios de poeira e sangue.85
De uma posio inicial como defensor dos atos praticados em nome do ideal de
Repblica, passa-se a outro, mais pessimista, em que o fato da guerra situado numa
reflexo dantesca sobre o destino da humanidade sobre a face da terra, tendo em
84
Mannlicher fuzil de fabricao alem; Comblain fuzil de fabricao belga. Armas modernas adquiridas pelo exercito brasileiro, empregadas na guerra.
85 Caderneta de Campo. In: CUNHA, Euclides da. Op. Cit. v. I.. p P.632-633.
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considerao a omisso de um criador, num mundo regido pela lei do mais forte ou da
arma mais poderosa.86
Em Os Sertes, o narrador, pela palavra, assume os trajes de um
pantommico a copiar o narrador absoluto da existncia, o demiurgo supremo da histria
chamada vida, e num rogo de perdo pela fatalidade de ser homem, a percorrer um
longo vale de tormentos, com tarefa de contar a criao e a queda, d vazo a uma
esperana redentiva a ser alcanada no fim da histria.87
Tal posio deve ser mantida em mente. Ser analisada nos captulos seguintes
a maneira como se insere na narrativa de Os Sertes a reverso do triunfo para a
decadncia, crucial para entender o que Euclides nomeava de vingana, as vezes
chamava justia, que fazia com seu livro aos sertanejos de Canudos, estropiados pela
fora de um exercito racionalmente organizado pelo estado-nacional que seguia o
caminho da Histria.
Antes da derrocada do arraial de Canudos, Euclides da Cunha retirou-se do
campo de batalhas. O biografo Roberto Ventura acredita que por motivo de doena, que
o forou a voltar para Salvador, donde retornou ao Rio de Janeiro. Retirando-se do
trabalho, por licena mdica, instala-se na fazenda de seu pai, em Descalvado, interior
de So Paulo. Nesse retiro interiorano inicia a escrita de Os Sertes, num trabalho que
duraria at os fins de 1901, data com que subscreve a Nota Introdutria do livro.
Durante a composio do livro, em 1898, o autor retornou ao trabalho como engenheiro
na Superintendncia de Obras Pblicas. Sua tarefa era a reconstruo de um ponte
metlica que havia cado, em So Jos do Rio Pardo, interior de So Paulo. 88
86
A referncia a Hobbes na nota Introdutria de Os Sertes remete a frase o homem o lobo do homem; Ludwig Gumplowicz, socilogo judeu, que fez carreira na ustria, entendia a luta entre raas, no qual o poder do mais forte prevalece, como mvel da histria.
87 Tanto Berthold Zilly como Roberto Ventura noticiam a concepo trgica que caracteriza a histria
para Euclides da Cunha a narrativa histrica funciona como drama trgico, cujas cenas se apresentam como num teatro ou palco (Ventura), transfigurando o sertanejo de bandido a heri numa apoteose quase
milagrosa (Zilly). Cf. VENTURA, Roberto. Euclides da Cunha no Vale da Morte. In: FERNANDES,
Rinaldo de. O clarim e a Orao. So Paulo : Gerao Editorial, 2002. p. 451. ZILLY, Berthold. Um
depoimento brasileiro para a Histria Universal: traduzibilidade e atualidade de Euclides da Cunha. In:
Humboldt (Bonn), 72: 8-12, 1996. p.12. e ZILLY, Berthold. A guerra como painel e espetculo. A
historia encenada em Os Sertes. In: Histria, Cincias, Sade: Manguinhos (Rio de Janeiro), v. 1, 1:
13-37, 1997. Sobre o serto em Euclides da Cunha, cf. GALVO, Walnice Nogueira. Anseios de
Amplido. In: Euclidiana. Ensaios sobre Euclides da Cunha. So Paulo Companhia das Letras, 2009.
p.59
88 VENTURA, Roberto. Op. Cit. p. 292.
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Segundo Roberto Ventura, as condies do trabalho de engenheiro durante a
reconstruo da ponte incorporam-se na escrita do livro. Por exemplo, na questo
geolgica, enquanto Euclides perscrutava o leito do Rio Pardo para encontrar terreno
grantico slido, ao mesmo tempo descrevia o sertanejo como rocha viva da
nacionalidade. Tal como a formao geolgica de camadas sucessivas de material
sedimentrio a constituir a dura unidade rochosa, a formao de diferentes estratos
raciais constituiria na arquitetura argumentativa de Os Sertes a unidade racial do tipo
brasileiro por excelncia, encontrado nos sertes do pas. Tal como uma escavao
tcnica do solo, perscrutao do substrato profundo a fornecer alicerce para a
construo, o estudo de Os Sertes procedia a decifrao dos elementos constitutivos
histricos e biolgicos, encontrados no interior, no mago do territrio, que garantiam
ao pas sua definio enquanto povo e seu futuro enquanto nao.89
O trabalho com metal, ao fundido e rebitado, tcnica essencialmente provinda
da revoluo industrial, possibilita uma arquitetura nela baseada, que empregada tanto
em edifcios como em pontes e carrilhes, em um estilo tpico dos meados do sculo
XIX que encontraria na belle poque nas fachadas e interiores art noveau sua grande