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Bacharelado em Linguística e Licenciatura em Letras • UEMS/Campo Grande
M e s t r a d o e m L e t r a s • U E M S / C a m p o G r a n d e
ISSN: 2178-1486 • Volume 1 • Número 6 • feverei ro 2012
Homenagem ao Prof. Dr. Ataliba Teixeira de Castilho
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NORMA E PRECONCEITO SOCIAL1
Roberto Gomes Camacho (UNESP-SJRP)
RESUMO: O objetivo deste artigo é discutir as razões que motivaram ataques sistemáticos da mídia à
política educacional do governo com base na divulgação da ideia de que um livro didático ensina errado.
Por trás desses ataques está um conceito tradicional de norma que necessita urgentemente de revisão.
PALAVRAS-CHAVE: norma descritiva; norma prescritiva; variação.
ABSTRACT: The aim of this paper is to discuss the reasons for systematic attacks in the media to the
government‟s education policy by spreading the idea that a textbook teaches wrongly. Behind these
attacks is a traditional concept of language standard requiring urgent revision.
KEYWORDS: descriptive standard; prescriptive standard; variation
Palavras iniciais
Vez ou outra uma questão linguística aflora na mídia. Em 1999, o deputado Aldo
Rebelo propôs um Projeto de Lei para proteger a pureza do idioma mediante a proibição do uso
de estrangeirismos. Mais recentemente, a mídia deu ampla divulgação a uma suposta sugestão
de que o sistema escolar deveria incorporar formas “erradas”, contida no livro didático Por uma
vida melhor da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático
(do MEC) para escolas voltadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA). A acusação explícita de
que o livro ensina errado não apenas descontextualiza o conteúdo do livro, mas também traz no
bojo uma crítica oportunista orquestrada por alguns setores da mídia à política educacional
adotada pelo governo.
A polêmica foi sustentada e fomentada por uma atitude irresponsável por pessoas que
interpretaram o que não está explicitamente formulado no livro, e o que é ainda mais grave,
inclusive por jornalistas respeitáveis, como Clóvis Rossi2, e por um gramático conceituado
1 A discussão desse tema foi praticamente inaugurada na linguística brasileira pelo Prof. Ataliba Teixeira
de Castilho, a quem este trabalho presta homenagem sincera. 2Ver na seção Opinião do jornal Folha de São Paulo, de 15/05/2011, o artigo Inguinorança de Clovis
Rossi.
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como Evanildo Bechara3. A falta de uma análise criteriosa do material revela, no mínimo,
desconhecimento lamentável sobre a realidade sociolinguística do Brasil. O assunto foi
incansavelmente debatido tanto por setores extremamente conservadores da mídia quanto por
setores mais inovadores e a ABRALIN, Associação Brasileira de Linguística marcou posição
com a divulgação de um pronunciamento4.
Meu objetivo neste texto é discutir a relação entre variação, norma e preconceito social
e, por outro, mostrar como o arcabouço teórico consolidado pela sociolinguística está na base do
texto do livro didático Por uma vida melhor. Para tanto, na seção 1 pretendo discutir o conceito
de norma a partir uma visão descritiva de língua; na seção 2, desenvolvo mais especificamente
os dois conceitos de norma; finalmente, na seção 3, procuro dar uma notícia sobre a origem
ideológica que perpassa o conceito prescritivo de norma; minhas palavras finais são destinadas à
análise de alguns conceitos desenvolvidos no livro didático, que provocaram a polêmica.
1. A noção de norma
Em torno dessas questões está um ponto nevrálgico da linguística, o que mais se presta a
polêmicas apaixonadas: a questão da norma. Segundo François (1974), para saber
adequadamente a razão por que a atitude prescritiva é tão difundida é necessário levar em conta
dois fatos. O primeiro é o de que, em razão de seu caráter convencional e de requerer, por isso,
um aprendizado, a língua, principalmente a escrita, levanta sérios problemas de ensino. Um
modo de nos garantir é recorrermos a uma atitude prescritiva. O segundo fato assenta na
natureza funcional da linguagem: a língua como instrumento de comunicação é um bem comum
do qual, como falantes, todos somos depositários. Por isso, somos tentados a nos atribuir o
direito de cuidar da língua, de preservar um traço de pureza original que ninguém sabe
exatamente qual é5.
3Ver entrevista de Evanildo Bechara à revista VEJA, edição 2219, de 01/06/2011, intitulada Em defesa da
gramática. 4Ver o artigo Língua e ignorância no site www.abralin.org/noticia?did.pdf.
5 É curioso verificar como a atitude prescritiva, que rege a gramática do português brasileiro, baseia-se no
português europeu escrito e literário do séc. XVIII, como se devesse encontrar no passado a pureza
original da língua, que seu uso quotidiano vem corrompendo. Um esquecimento, talvez necessário para
assumir uma atitude mítica como essa, é que o próprio português, como língua, surgiu de uma variedade
do Latim, falada e não escrita, e falada em situações informais, não em situações formais – o chamado
Latim Vulgar.
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A afirmação corriqueira de um linguista (e agora de autores de livros didáticos) de que
nós pega o peixe é uma forma alternativa legítima de nós pegamos o peixe desencadeia paixões
tão violentas quanto as vozes que se levantaram contra uma variante similar no livro didático
Por uma vida melhor.
No geral, os falantes/escreventes, que dispõem de um grau mais elevado de educação
formal, reconhecem, na língua, especialmente na variedade de prestígio, um signo exterior de
riqueza. No entanto, ao mesmo tempo em que aderem aos preceitos da variedade de prestígio,
esses mesmos usuários se surpreendem com a complexidade dos fatos linguísticos envolvida,
por exemplo, numa regra prescritiva como a obrigatoriedade da concordância verbo-sujeito.
Um caso simples como esse requer, em primeiro lugar, o domínio do conceito de sujeito
e de suas categorias constituintes (sintagma nominal, elementos nucleares como pronome
pessoal ou substantivo, especificadores, modificadores), da flexão número-pessoal do verbo, da
ordem do sujeito em relação ao verbo e assim por diante. Diante dessas dificuldades, o refúgio
mais confortável é fiar-se numa atitude prescritiva e admitir que Chegou os meninos está errado
e Chegaram os meninos está certo, a despeito do uso extremamente frequente da primeira em
função da posição pós-verbal do sujeito.
François (1974) aponta os seguintes traços comuns a toda atitude prescritiva:
(i) o privilégio, mesmo em assunto de pronúncia, das formas escritas que, quase
sempre coincidem com as formas literárias;
(ii) a identificação, com a mais extrema parcialidade e arbitrariedade, da porção da
língua que se destaca, atitude que provoca permanentes cuidados repressivos às
formas restantes;
(iii) fundamentação dessa triagem em critérios exteriores à própria língua, o que
significa identificá-la com uma variedade geográfica, temporal ou literariamente
delimitada.
Examinemos, agora, o que caracteriza uma atitude descritiva e como essa atitude
aparece no livro didático objeto de polêmica. Um dos postulados básicos, desenvolvidos
preliminarmente em qualquer curso de iniciação à linguística, afirma que nenhuma língua ou
variedade é inerentemente inferior a outra língua ou variedade similar. Esse postulado questiona
que uma variedade estigmatizada, ou destituída de prestígio social, seja um aglomerado de erros
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em relação às variedades socioculturalmente prestigiadas, como afirmam os postulados
prescritivos acima referidos.
Para a linguística, toda língua ou variedade é, na realidade, um sistema altamente
estruturado, mediante o qual é plenamente possível transmitir, lógica e coerentemente, qualquer
conteúdo a respeito da realidade circundante. Variedades linguísticas são, portanto, diferentes
no que concerne aos mecanismos expressivos disponíveis para a formulação de atos de
comunicação verbal, mas, ao mesmo tempo, absolutamente idênticas no que respeito à
qualidade comunicativa dos mecanismos que empregam.
O que isso implica na prática? A ideia de que a chamada variedade caipira do português
brasileiro com seu traço mais característico, a variante retroflexa do /r/ em posição de coda
silábica, é tão complexa para a formulação do pensamento lógico no processo de comunicação
quanto a variedade paulistana com sua variante apical, ou a carioca com sua variante velar; ou
que falar nós pega o peixe ou nós pegamos o peixe, em qualquer variedade, não interfere com a
capacidade cognitiva do usuário.
O surgimento da linguística moderna, entendida como a que se realizou a partir do
século XIX, com o modo imanente dos neogramáticos entenderem a mudança linguística, teve
seu apogeu com a publicação, em 1916, do Curso de Linguística Geral por Ferdinand de
Saussure. Saussure ([1916] 1977), amplamente reconhecido como o pai da linguística moderna,
deu sustentação à interpretação da linguagem como um objeto sincrônico em si mesmo e por si
mesmo. Essa sustentação representou, na realidade, um gesto de criação que propiciaria a
construção de um estatuto de autonomia para a linguística no conjunto das ciências humanas.
Embora rompesse com a tradição diacrônica do século XIX, em especial a de linhagem
neogramática, em que o próprio Saussure se formou, o princípio formal segundo o qual a língua
se define no jogo de relações de oposição no interior do sistema deu consistência formal à velha
intuição de que as línguas humanas são totalmente organizadas (cf. FARACO, 2004). Como a
construção teórica e o trabalho descritivo convergiram para criar a ideia de que não é
teoricamente legítima a crença na evolução degenerativa das línguas?
Comecemos com a construção de um objeto teórico. Ao instituir uma concepção de
língua como um sistema de valores puros, cujos membros se acham em estrita relação de
interdependência, Saussure ([1916]1977) a entendia como essencialmente arbitrária,
arbitrariedade fundada não só na relação do significante com o significado, mas também na
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relação do significado com a percepção dos fenômenos no mundo. Como esse sistema se basta a
si próprio, o equilíbrio solidário das partes que o compõem é absolutamente independente das
mudanças diacrônicas e é justamente por isso que o sistema linguístico é imune a uma
concepção de mudança como degeneração ou progresso (FARACO, 2005, p. 79). Uma
consequência prática dessa concepção está na ideia de que o uso de variantes estigmatizadas não
degenera a pureza do sistema linguístico, que apenas tende a mudar, nem para melhor nem para
pior.
Passemos agora a examinar como os estudos descritivos reforçaram o princípio de
plenitude formal sustentado por Sapir ([1924]1969). O compromisso com a tarefa descritiva era
proporcional, em grau de relevância, ao compromisso de evitar a interferência do conhecimento
acumulado com o estudo das línguas ocidentais indo-europeias. A orientação subjacente a esse
compromisso de que cada língua tem sua própria organização gramatical foi, segundo Ilari
(2004), reforçada pelas teses relativistas de Benjamim Lee Whorf.
A atitude objetiva em relação aos fatos da linguagem assumida pela linguística norte-
americana é historicamente derivada da vertente relativista da antropologia cultural, inaugurada
por Malinowski. Segundo Durham (1986) a pesquisa de Malinowski junto as Ilhas Trobiands
fez dele um inovador, já que o pesquisador se envolveu mais diretamente com o objeto de
pesquisa.
No início do século XX, antropólogos, como Malinowski, em contato com uma
realidade diferente e ao mesmo tempo altamente complexa, reagiram contra as medidas
avaliativas de seus predecessores nas ciências sociais, que descreviam culturas não-ocidentais
com base numa visão etnocêntrica, usando como régua justamente os parâmetros da cultura
ocidental.
Esse processo propiciou ocasião oportuna para que se desencadeasse reação similar no
modo como os linguistas passaram a enxergar as diferenças entre duas línguas ou duas
variedades de uma mesma língua. A insistência dos antropólogos, na análise descritiva de
culturas diferentes, em contornar os problemas de uma visão evolucionista, vigente desde o
século XIX, fê-los abandonar a ideia de classificar algumas culturas ou mesmo línguas como se
estivessem num estágio comparativamente inferior, simplesmente porque não se achavam
associadas a avanços tecnológicos próprios de outras civilizações ocidentais. O conceito de
língua ou cultura primitiva foi, portanto, denunciado como um produto ideológico de uma visão
etnocêntrica, cujo olhar partia sempre da lente de civilizações tecnologicamente avançadas.
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Como um resultado natural da primazia absoluta da cultura greco-latina sobre o
pensamento ocidental, em virtude do grau de desenvolvimento atingido pelo Império Romano, o
latim acabou se fixando como modelo por excelência de língua flexional. Tanto é verdade que,
no início do século XVI, quando os estados europeus começaram a traçar seu processo de
consolidação, a busca de legitimação para as línguas que se firmavam encontrava no latim seus
critérios de autoridade.
Esse processo de atribuição de prestígio cultural acabou gerando outros tipos de
preconceito ao ser transposto para as línguas dos povos colonizadores, como o inglês, o
espanhol, o português, o francês, o holandês, em relação às línguas “exóticas” faladas pelos
povos das terras conquistadas (algo próximo ao rótulo de bárbaros que os gregos costumavam
colar nos povos não helênicos).
A abordagem descritiva de línguas sem tradição escrita de povos indígenas da América
do Norte, e mais tarde da América do Sul, forneceu evidências suficientes de que algumas
dessas línguas são comparativamente muito mais “flexionais” que o próprio latim, o modelo,
por definição, desse tipo de estrutura.
É com base nesse ponto de vista que, para Sapir ([1924]1969), como para qualquer
outro linguista estruturalista das gerações seguintes, passou a ser suficientemente claro e
evidente que cada língua deveria ser enfocada segundo a natureza de sua própria organização
estrutural. Esse postulado envolve abandonar a ideia de ver a língua segundo um modelo de
referência, geralmente uma língua do tipo flexional, cujo critério fundamental, de natureza
extralinguística, tem base na distribuição de prestígio cultural.
O correlato mais evidente do etnocentrismo está na orientação normativa, que, segundo
Ilari (2004) facilita o entendimento de que somente a variedade padrão é sistemática e regular.
Tudo quanto dela foge constitui formas corrompidas dessa variedade. Já a orientação descritiva
permite descobrir naturalmente que as variedades não-padrão não têm uma estrutura ilógica ou
ineficiente, mas é apenas diferente da organização disponível na variedade padrão (cf. ILARI,
2004, p. 87). Ao fazer um balanço da influência do estruturalismo na linguística brasileira, Ilari
(2004) ressalta que um dos saldos mais positivos foi justamente ter instaurado a crença de que a
língua portuguesa deveria ser tomada como objeto de descrição atitude que contrariou em
grande medida a longa tradição normativa.
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2. Dois conceitos de norma
Como uma consequência natural do princípio pós-estruturalista de que a variação e a
mudança constituem propriedades constitutivas da linguagem (WEINREICH, LABOV,
HERZOG, [1975] 2006), uma questão importante de política linguística é o de padronização.
Como as línguas variam tipicamente na pronúncia dos fonemas, na codificação gramatical e na
organização lexical, as forças centrípetas que produzem uniformidade podem, inclusive, levar
alguns países a sentir a necessidade de estabelecer princípios de padronização, como a busca de
critérios para determinar que variedades são consideradas mais apropriadas para publicações
governamentais, ensino público, uso na mídia e demais instituições públicas. Alguns países
atribuem às academias a tarefa de estabelecer os critérios de padronização. Papel importante
nesse âmbito tem sido atribuído à L‟Académie Française, para determinar o padrão do francês, e
La Real Academia Española, para o do espanhol.
A discussão desse assunto enveredou para um campo aparentemente neutro ao se
entender a padronização como um procedimento de seleção entre variantes com a finalidade de
obter uniformização em alguns usos mais formais da modalidade oral e da modalidade escrita.
Entretanto, a noção de padronização tem aspectos simbólicos que ultrapassam muito seus
aspectos puramente técnicos e pragmáticos. Mesmo nos casos em que se atribui a padronização
ao trabalho das academias, as pessoas passam a acreditar que a língua descrita nas gramáticas e
nos dicionários é a única variedade correta.
A estratégia cortadora da relativa, por exemplo, de que a menina que você gosta é um
caso ilustrativo, é extremamente usada em vários contextos sociais por todos os tipos de
falantes, mas a impressão que passa é a de que apenas a estratégia preposicional – a menina de
que você gosta - é a correta e, portanto, mais adequada não apenas ao uso formal escrito, mas
também a todas as demais circunstâncias de interação. A noção de correção, atribuída por algum
critério padronizador, é, portanto, entendida como correta num sentido tão absoluto que deixar
de usar a variante padrão equivale a deixar de usar a língua real. É esse conceito que está na
base do discurso de Cipro Neto, segundo o qual para “o pensamento de uma corrente
relativista”, o dos linguistas, o certo e o errado em português não são conceitos absolutos6. E
não são mesmo!
6 Veja, edição 1725 de 7 de novembro de 2011, p. 112.
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Como o termo padrão é em si mesmo ambíguo, pode-se afirmar que há dois tipos de
padrão, que Fasold (2006) identifica como mínimo e arbitrário. Por trás do estabelecimento de
um padrão mínimo, acha-se uma escala de mensuração. Respeitá-lo implica atingir o ponto de
referência adotado como medida mínima de aceitabilidade. Já o estabelecimento de um padrão
arbitrário é uma questão totalmente diferente por implicar a existência de características não-
mensuráveis de comportamento que resultam de convenções socialmente estabelecidas.
Quando um linguista usa o termo variedade padrão, ele certamente quer referir-se a um
padrão arbitrário, como as regras convencionais que governam, por exemplo, o uso de garfo
para a ingestão de alimentos sólidos e a de colher para a ingestão de alimentos líquidos (ainda
que seja muito mais prático usar uma colher para comer um alimento sólido como ervilha).
É extremamente vantajoso haver consenso em torno de certos padrões arbitrários para o
uso de uma língua, que é reconhecidamente derivada de um acordo tácito. Em geral, é a
aceitação social que deveria fornecer um padrão arbitrário operacional, não alguma
superioridade inerente das características que ele especifica. Padrões arbitrários de correção
mudam, ainda que vagarosamente e, enquanto isso ocorre, as penalidades possíveis são
derivadas das regras sociais convencionalmente estabelecidas, que se resumem a seguir ou a não
seguir os padrões arbitrários em circunstâncias em que eles devem ou não devem ser
observados.
A oposição entre padrão arbitrário e padrão mínimo se correlaciona aproximadamente
ao conceito de norma postulado por Rey (1972). Para ele, um enfoque lexicológico da palavra
norma detecta dois conceitos por trás de seus usos: num deles, norma é dependente da
observação, e no outro, de elaboração de um sistema de valores. O primeiro conceito
corresponde a uma situação objetiva e estatística, baseada em convenções sociais, que se alinha
ao de padrão arbitrário; o segundo a um conjunto de intenções subjetivas, que se alinha ao
conceito de padrão mínimo.
Desse modo, o mesmo item lexical (a palavra norma), empregado sem a devida
precaução, corresponde, por um lado, à ideia de frequência, de tendência geral e habitualmente
realizada, e, por outro, à ideia de conformidade a um padrão mínimo de referência, de
julgamento de valor. Para dar conta dessa diferença semântica, a morfologia portuguesa conta
com dois adjetivos derivados: normal para o primeiro sentido, e normativo para o segundo7.
7 Ver também a esse propósito Bagno (2003).
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Os fatos convencionais, produzidos com base no estabelecimento de um padrão
arbitrário, nos termos de Fasold (2006), possibilitam ao observador detectar uma média objetiva
entre os usos correntes para registrar o que, na fala é sentido como normal. Já os fatos
estabelecidos com base numa medida externa produzem apenas a situação subjetiva dos juízos
de valores, a que é mais aplicável o epíteto normativo. Não é preciso muito esforço mental para
entender que os ataques ao livro didático se basearam num conceito supostamente imutável de
padrão mínimo e não no conceito de padrão arbitrário.
Uma medida mínima, historicamente estabelecida no debate travado no século XIX
sobre a “língua brasileira”, é considerar como critério de correção a modalidade escrita e
literária dos escritores clássicos portugueses. É considerada incorreta uma variante que estiver
fora da medida estabelecida pelo padrão mínimo, isto é, a que for usada em situações informais
por falantes de baixa escolaridade.
Sobre esse assunto, Faraco (2008) afirma que não foi a língua de Portugal, que serviu
como referência para o padrão mínimo, já que ela é, em si mesma, também marcada por um
conjunto diversificado de variedades; nem foi ela uma imposição de Portugal ao Brasil. Nesse
debate, alguns intelectuais portugueses contribuíram de fato para essa fixação, ao acusarem os
brasileiros de escreverem errado, mas a lusitanização da norma padrão brasileira foi
responsabilidade integral de nossa própria elite letrada (cf. FARACO, 2008, p. 81), que
combatia os fenômenos linguísticos típicos como sinônimos de corrupção e degeneração.
Castilho (1988) enumera ainda outros parâmetros de referência mediante os quais é
possível mensurar qualitativamente a variação para o estabelecimento de um padrão mínimo: há
concepções estéticas que medem o grau de beleza e elegância da norma; elitistas ou
aristocráticas, que medem o falar das classes elevadas, contrastando-a com o falar popular; há
concepções puristas, que usam o metro da vernaculidade, da tradição e até concepções
naturalistas, que, por identificarem a língua com um ser vivo, usam medidas baseadas no grau
de desenvolvimento: as línguas nascem, atingem o apogeu, decaem e morrem (CASTILHO,
1988, p. 55-56).
Para as elites, as mesmas que estrelaram os preconceitos recentes na mídia, há, portanto,
uma e somente uma língua correta e eficaz a todas as circunstâncias de interação, que se define
como norma padrão. Esse conceito, que não implica nenhuma variedade específica, como a
variedade culta falada nos centros urbanos, representa uma forma institucionalizada de
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imposição baseada em registros escritos e literários do passado. Adquiriu o direito de ser a
língua e de aplicar às demais variedades cuidados repressivos.
Alternativamente, a principal força centrípeta, passível de estabelecer uma aproximação
entre as variedades de prestígio e as variedades estigmatizadas, arbitrariamente estabelecidas,
estaria hoje, segundo Faraco (2008) na atração que exercem as populações tradicionalmente
urbanas, situadas na escala de renda média para alta, e que têm assegurado historicamente bons
níveis de escolaridade, ou seja, pelo menos o ensino médio completo e acesso a bens
simbólicos, como os da cultura escrita e letrada. Esse possível padrão arbitrário já está tão
suficientemente conhecido que pode guiar o uso de formas variáveis em situações formais.
Basta ver os trabalhos descritivos baseados no Projeto da Norma Urbana Culta que forneceram
subsídios para a elaboração de uma gramática do português falado culto (JUBRAN, KOCH,
2006; ILARI, NEVES, 2008; KATO, NASCIMENTO, 2009).
3. A origem ideológica de norma
Inicialmente, pode-se afirmar que é em razão do prestígio que a variedade literária
adquire para uma determinada elite letrada que a norma padrão das línguas europeias ocidentais
passou por um processo que Auroux (1992) denomina de gramatização. Na realidade, o advento
dos estudos linguísticos (mais adequado dizer “metalinguísticos”), somente ocorreu, na
civilização ocidental, com o advento da escrita, que congelou a forma falada das línguas, dando-
lhe formato apreensível e suscetível à análise. Paralelamente ao processo de formação dos
estados modernos, no início da era clássica, selecionou-se a variedade de uma elite letrada, que
se gramatizou como objeto de gramáticas e dicionários, para figurar como norma. Nesse caso,
dicionários e gramáticas não operaram como instrumentos descritivos em relação ao padrão
arbitrário, mas como instrumentos normativos direcionados para a fixação de um padrão
mínimo.
Também Gnerre (1985) lembra que o momento fundamental da ascensão de uma
variedade ao estatuto de norma foi a associação dela com a escrita, relação que lhe confere
legitimidade. Nada há de neutro no processo histórico de legitimação de uma norma e,
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sobretudo, nada de intrinsecamente linguístico na natureza de uma variedade para que seja ela e
não outra a norma padrão. Conforme afirma Gnerre,
(...) assim como o estado e o poder são apresentados como entidades
superiores e „neutras‟, também o código aceito „oficialmente‟ pelo poder é
apontado como neutro e superior, e todos os cidadãos têm que produzi-lo e
entendê-lo nas relações com o poder (GNERRE, 1985, p. 6).
O princípio que rege o estabelecimento de qualquer norma social e, por conseguinte,
também o da norma linguística, consiste na pré-existência daquilo que se pretende realizar, cujo
efeito é a fixação de um arquétipo, de um modelo. E uma vez que nos procedimentos que
produzem esse modelo, não se distingue a ação voluntária ou, ao menos, a intenção e a
finalidade de um legislador, esse arquétipo é, segundo Rey (1972), progressivamente desligado
da vontade dele para fundar-se ficticiamente em uma norma constituída, que basta observar-se
para que institua naturalmente um modelo de uso sadio que tenha o direito de sanar os desvios,
as diferenças. O que faz uma gramática prescritiva é repetir as mesmas regras presentes nas
gramáticas que a precederam, assumindo um gesto que as reitera acriticamente, sem entender as
razões que as motivaram.
Essas motivações permanecem no esquecimento mediante um processo que Bourdieu e
Boltansky (apud GNERRE, 1985, p. 21) denominam “amnésia de gênesis”. A amnésia de
gênesis permite que se continue a propagar e a aprender a norma padrão fora das condições
sociais e políticas de sua própria instituição, o que garante também sua legitimação. A variedade
escolhida como norma no século XIX não é a mesma que a do período clássico, mas a
impressão que dá é de haver uma continuidade (GNERRE, 1985).
Assim, em termos de linguagem, a construção ideológica da norma prescritiva se
assenta inteiramente sobre o conceito habilmente manipulado de „uso‟. Acrescenta Rey:
O discurso avaliativo-prescritivo da classe dominante se abriga sob a
constatação de uma lei abstrata. A regra da ratio, que os gramáticos se
empenham em descobrir por trás dos „usos‟, é assimilada a uma pseudo-
opressão da norma social (o uso geral) e reabre, de fato, uma intenção
unificante e opressora” (REY, 1972, p. 8, tradução minha)
A norma prescritiva é um pseudo-sistema, porque ela passa a representar a língua como
um todo, que, em grande parte ignora. Os usos que não se sujeitarem ao sistema, tomado como
norma padrão, são desqualificados socialmente e, como tal, cumpre corrigir.
Outro traço tipicamente ideológico, relacionado com o estabelecimento de uma norma,
é o próprio discurso que a instaura. O discurso prescritivo consiste ao mesmo tempo numa
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avaliação crítica e numa eventual condenação de outros discursos e é, ao mesmo tempo, um
discurso definidor, porque, ao rejeitar uma parte dos usos linguísticos, delimita também um
objeto, que é a própria norma padrão.
Uma das características essenciais do discurso prescritivo é a de que, a natureza
deôntica, ao mesmo tempo autoritária e coercitiva, do tipo se deve x não se deve, é
frequentemente omitida. O discurso modalizador é geralmente abandonado em proveito de
formulações alternativas que lhe dão a aparência de um discurso didático, objetivo e neutro (cf.
REY, 1972).
A preservação do processo de lusitanização na fixação da norma padrão brasileira (cf.
FARACO, 2008, p. 81), já mencionado, representa um procedimento ideológico, mediante o
qual certa elite pretende continuar a distinguir-se da “plebe”, principalmente no debate político,
em que usar a norma padrão acaba por constituir elemento de desqualificação individual8. O
mesmo movimento que combatia o “português de preto” no século XIX e defendia o
branqueamento da população mestiça brasileira se preserva nos mecanismos de desqualificação
social mediante o uso da língua.
Por isso é que Bagno (2003) afirma, com razão, que o preconceito linguístico não existe
em si mesmo, o que existe é o preconceito social. Como o preconceito racial, social ou sexual é
reprimido pela lei, é a repressão a certos usos linguísticos que permitem continuar a exercer, de
modo mais sutil e socialmente complexo, o preconceito social. Para isso, é necessário assegurar
como norma padrão uma variedade que nada tem a ver com o que falam e escrevem os
brasileiros.
Palavras finais
É tempo de fechamento. Para cumprir os dois objetivos fixados, resta-me agora discutir
como o arcabouço teórico consolidado pela linguística está na base do texto do livro didático
Por uma vida melhor, o principal protagonista da polêmica criada na mídia.
Na realidade, esse livro didático representa um sopro de renovação ao tocar na relação
entre norma e variação social. Lembra que as classes sociais menos valorizadas usam uma
8 Basta ver os ataques constantes da mídia ao discurso do candidato e, depois, do já empossado presidente
Lula, discutidos por Bagno,(2003).
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variedade diferente da usada pelas classes sociais que têm mais escolarização, mas as duas são
igualmente eficientes como meios de comunicação.
No entanto, em função do prestígio social atribuído à variedade utilizada pelo grupo
mais escolarizado, os falantes das variedades populares sofrem preconceito social e é justamente
em razão disso que um falante deve dominar diferentes variedades, cada qual com sua hora e
vez na interação verbal. Como a norma padrão representaria, assim, nessa concepção, uma
variedade a mais à disposição dos estudantes, a escola deve preocupar-se em mostrar-lhes a
relevância de seu domínio. Por isso, o capítulo 1 (Escrever é diferente de falar) mostra uma
clara preocupação em identificar os problemas que aparecem num texto tomado como ponto de
partida, e resolvê-los adequadamente, aplicando-lhe regras próprias da norma que rege a
modalidade escrita formal.
Em outra seção, o livro didático traz como exemplo casos de variação de concordância
nominal, como em Os livros ilustrados mais interessantes estão emprestados / Os livro
ilustrado mais interessante estão emprestado, para mostrar que, na variedade popular, a
indicação de plural se faz sem redundância. A resposta à pergunta retórica “Mas nós podemos
falar os livro?”é positiva, mas com um alerta de que não usar todas as formas de plural pode
tornar o aluno vítima de preconceito social.
O que causou a indignação de jornalistas, professores de língua portuguesa e de
membros da Academia Brasileira de Letras são frases pinçadas e despojadas de seu contexto,
como nós pega o peixe, os menino pega o peixe, que foram largamente usadas como exemplos
de que um livro didático, aprovado pelo próprio PNLD do MEC, ensina a escrever “errado”. No
entanto, o que faz o livro é relativizar o critério absoluto de correção, que rege a norma
prescritiva, afirmando que é preciso dominar a forma de prestígio, além da popular, para que o
aluno tenha capacidade de escolher a que considerar mais adequada à situação de interação. Em
nenhuma parte do texto, os autores fazem qualquer gesto possível de recusa do domínio a norma
culta.
A recorrência desse fato apenas reflete a recusa da imprensa e da população em geral de
aceitar uma visão descritiva, científica aos fatos da língua em face dos problemas de
aprendizagem que a língua provoca, o que implica recorrer sempre ao refúgio seguro da atitude
prescritiva para preservar sua pureza original, que, paradoxalmente, converge com o português
europeu falado no século XVIII, adotado como norma para o português brasileiro no século
seguinte.
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A explicação para esse processo, segundo Pagotto (2001), está no processo de
europeização da língua, que seria apenas o correlato linguístico de outros processos de
europeização da vida nacional. Esse processo responderia pela intenção das elites de cunhar
uma imagem da nação em que sobreviveriam as relações de poder, excluindo a maioria da
população do processo de identidade pela língua (PAGOTTO, 2001, p. 41-42).
A população iletrada fica configurada nesse espaço político como a que fala uma não-
língua, e dá sustentação ao mito, que continua a perpassar a sociedade brasileira moderna, de
que os brasileiros não sabem português, ou o de que a gramática do português é a mais difícil de
se aprender. É lamentável constatar que são princípios equivocados como esses que deram a
tônica dominante ao debate sobre o livro didático Por uma vida melhor na mídia.
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