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Identidades religiosa e cultural no Brasil oitocentista: Um estudo a partir dos relatos
de viagem de Auguste de Saint-Hilaire.
Aparecido Barbosa1
O estudo que propomos tem como objetivo pesquisar as expressões de identidades
religiosa e cultural do brasileiro, nas festas religiosas e dias santos nos relatos de viagens
de Saint-Hilaire, que esteve no Brasil nos anos de 1816 a 1822. Este catolicismo segundo
os historiadores Ítalo D. Santirocchi e Thomas Bruneau deve ser analisado a partir da
relação entre Igreja e Estado, que na sua trajetória histórica foi impactado pelos processos
do regalismo, romanização e mais tarde pelo Ultramontanismo. Como método para a
interpretação e avaliação dos trechos selecionados, enquanto “representação” segundo
Roger Chartier2, será feito uma análise qualitativa dos relatos produzidos pelo viajante. Ou
seja, interpretações representativas dos relatos que dizem respeito ao fenômeno religioso
no Brasil do período estudado. Da historiografia que até o momento pesquisou a literatura
de viagem, percebemos uma lacuna temática nos estudos, pois não se deu a devida atenção
sobre o fenômeno religioso como tema central. Em virtude dessa falta de pesquisas,
pretendemos apontar essa literatura como fonte documental para os estudos e pesquisas
futuras por parte dos cientistas da religião.
Palavras chaves: Relatos de Viagem oitocentista – Representação - Identidades Religiosa.
1 Bacharel em Filosofia e Teologia pela Puc-Campinas; graduando no campo da Licenciatura em História pela Universidade Metodista de Piracicaba; mestrando no programa de pós-graduação stricto sensu em Ciências da Religião da Puc-Campinas na área História das religiões e religiosidade no Brasil, vinculado na linha de pesquisa Fenômeno religioso: instituições e práticas discursivas, sob a orientação do Prof. Dr. João Miguel. 2 Tendo como base os trabalhos de Pierre Bourdieu em La distinction, critique sociale du jugemont, Paris,
Minut, 1979. Roger Chartier entende o conceito de Representação como as classificações e divisões que
organizam a apreensão do mundo social como categorias de percepção do real. As representações são
variáveis segundo as disposições dos grupos ou classes sociais; aspiram à universalidade, mas são sempre
determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam. O poder e a dominação estão sempre presentes. As
representações não são discursos neutros: produzem estratégias e práticas tendentes a impor uma autoridade,
uma deferência, e mesmo a legitimar escolhas. Ora, é certo que elas colocam-se no campo da concorrência e
da luta. Nas lutas de representações tenta-se impor a outro ou ao mesmo grupo sua concepção de mundo
social: conflitos que são tão importantes quanto às lutas econômicas; são tão decisivos quanto menos
imediatamente materiais (CHARTIER, 1990, p. 17).
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1. Literatura de Viagem e pesquisa histórica na análise do fenômeno religioso
Essa pesquisa nasceu de outro projeto, intitulado Relatos de Viajantes: Raça e
Civilização no Brasil Oitocentista, desenvolvido no âmbito do programa de Apoio à
Iniciação Científica da Universidade Metodista de Piracicaba, nos anos 2014/20153. Para
essa pesquisa selecionamos 17 autores; após uma análise mais precisa chegou-se a 9
viajantes. Nos relatos analisados naquela ocasião, encontramos muitos comentários sobre o
fenômeno religioso, como as festas e dias santos. Assim que definimos neste projeto
pesquisar esse fenômeno, acabamos excluindo 8 obras, e definimos o recorte temporal de
1816 a 1822, período que o viajante selecionado esteve no Brasil.
O Viajante é Auguste de Saint-Hilaire, francês; naturalista, botânico e zoólogo;
permaneceu no Brasil de 1816 á 1822. Viajou pelos estados do Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Goiás, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Veio ao Brasil enviado pelo
governo francês, e comissionado pelo Museu de História Natural de Paris. Como botânico
seu principal objetivo era pesquisar e coletar amostras da fauna e da flora brasileira.
Porém, quase nada escapou em seus relatos, descreveu os costumes, a culinária, a cultura
social e religiosa dos negros, índios e brancos. Saint-Hilaire escreveu nove obras, destas
selecionamos sua primeira viagem para analisarmos suas descrições sobre as festas e dias
santos, a saber, a “Voyage dans les provinces de Rio de Janeiro et de Minas Geraes”,
publicada em Paris em 1830.
O contexto e o momento da entrada dos viajantes no Brasil foram à vinda da
família real (1808) e o decreto assinado em Salvador por D. João VI, que possibilitou a
abertura dos portos; o que acarretou o fim do exclusivismo português, e consequentemente,
impulsionou a entrada de muitos viajantes no país. O Viajante Saint-Hilaire descreve esse
momento: “Quando o Rei D. João VI mudou para o Rio de Janeiro a sede do seu império, o
Brasil abriu-se, finalmente, aos estrangeiros” (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 17).
A literatura de viagem foi impulsionada pelo avanço cientifico do século XVIII e XIX,
por interesses econômicos e expansionistas dos estados, pela experiência social do grupo
de origem do viajante e pela própria viajem.
Segundo a historiadora Karen M. Lisboa chegaram ao Brasil: naturalistas,
comerciantes, diplomatas, mercenários, imigrantes e aventureiros. Os objetivos eram:
3 Projeto orientado pela historiadora Dra. Valéria Alves Esteves Lima.
3
“particulares, comerciais, científicos, literários ou de exploração dos recursos naturais,
interagindo com os objetivos da esfera pública” (LISBOA, 1997, p. 32). Estes estudaram a
fauna e a flora, observaram a vida social, tanto rural como urbana, avaliaram as relações de
trabalho, produção, a condição econômica, e se interessaram pelas questões culturais e
religiosas, dentre elas destacamos os relatos sobre as festas religiosas e dias santos.
Segundo a historiadora e antropóloga Ilka Boaventura Leite na Obra “Antropologia
da Viagem”, os relatos culturais e religiosos faz parte do estudo e do culto do “outro”, bem
como da busca e o desejo pelos povos e culturas “exóticas”, que vigorava na Europa
expansionista e colonialista. A literatura que relatava estas informações servia não só aos
governos e cientistas, mas abastecia um mercado por parte de pessoas que não podiam
viajar que buscavam conhecer tais povos e culturas, o “outro”, o “exótico”, do além-mar.
Dai a variabilidade temática dos relatos dos viajantes, e dentre estas estão às descrições, e
às vezes capítulos sobre o fenômeno religioso.
O estilo literário dos viajantes e suas manifestações históricas revelam inúmeras formas
de errância e inúmeros estilos de descrições, determinadas pelas condições históricas e
cientifico de sua época, bem como, pela dimensão subjetiva dos autores, que se apresentam
como detentores do saber, do progresso e da civilização. Segundo a historiadora Karen
“seus escritos estão entre crônicas, epistolas e os relatos científicos” (LISBOA,1997,p. 34).
Há um consenso entre os historiadores e pesquisadores da literatura de viagens que
esses escritos com algumas “ressalvas”4 são fontes para a pesquisa cientifica. Porém, para
uma análise e compreensão mais profunda é preciso pesquisar suas especificidades, como:
o contexto social, cultural, econômico e científico. Bem como, é necessário compreender
os pensamentos que iluminaram esses escritos e as características desse gênero literário, e
consequentemente o procedimento crítico e metodológico que é submetido essa literatura.
Segundo o historiador Adalberto Marson, o pesquisador não pode ser ingênuo, pois “o
documento não é isolado, mas existe em relação a outros que ampliam o seu sentido e
permitem maior aproximação da realidade” (MARSON, 1984, p.53).
Alguns filósofos e naturalistas estão presentes, de forma representativa, na matriz
intelectual e conceitual de Saint-Hilaire. Dentre eles, Jean Jacques Rousseau (1744-1803)
foi um defensor do pensamento iluminista. Refletiu sobre temas como: discurso sobre a
4 Segundo a historiadora Karen M. Lisboa e outros pesquisadores dessa literatura, é preciso ter uma olhar
crítico, criterioso e procedimento metodológico para com esses relatos, pois os mesmos são carregados de
preconceitos, superioridade racial, subjetivismo, emocionalismo e romantismo. Esses viajantes pensam de
acordo com as convenções de seu grupo e incorporam as contradições e ambivalências de sua época, como o
pertencimento a uma sociedade civilizada e detentora do progresso.
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desigualdade, contrato social, educação e religião do homem e do cidadão. Todos esses
temas influenciaram a formação dos viajantes, porém, o mais citado por eles é o da
“perfectibilidade”, neologismo criado por Rousseau para exprimir a capacidade que o
homem possui de aperfeiçoar-se, no caso da religião vale também para o aperfeiçoamento
da mesma.
Outra matriz de Saint-Hilaire e muitos viajantes é Alexander Von Humboldt (1769-
1859), geógrafo, naturalista e explorador, foi o primeiro estrangeiro que recebeu todo
apoio da coroa espanhola para viajar nas suas colônias e, entre outros feitos, elaborou o
conceito de “trópico”, utilizado nas navegações. Na sua viagem a Curitiba, Sant-Hilaire
utiliza as coordenadas deste naturalista: “Humboldt situa essa região vegetal entre 2.280 e
4.920 metros acima do nível do mar, nas terras vizinhas do equador” (SAINT-HILAIRE,
1978, p. 52).
Saint-Hilaire faz parte dos pesquisadores da História Natural, do qual o naturalista
Humboldt era um dos precursores. Para a literária Mary Pratt, a emergência desse
conhecimento científico na metade do século XVIII foi um impulso para “a exploração
continental” (PRATT, 1999, p. 35). Pois, dela adivinha as técnicas de navegação, os
conhecimentos de História, botânica, mineralogistas e geógrafos. Utilizados na busca de
ciência, bem como, de riquezas pessoais e institucionais.
No Brasil segundo a historiadora Ana Rosa Cloclet, os conhecimentos da História
Natural foram utilizados na reforma Luso-brasileira. Ou seja, quando Saint-Hilaire chegou
aqui ela já era utilizada, embora ele tenha criticado tal uso, pois para ele essa ciência era
utilizada aqui de forma muito precária e com poucos investimentos. Mas, segundo a
pesquisadora Ana Rosa, desde o fim do século XVII e inicio do XIX, a coroa portuguesa
“destinava-se a formar pesquisadores de recursos naturais, botânicos, metalurgistas, enfim,
homens capazes de identificar as riquezas do reino e explorá-las” (CLOCLET, 2000, p.
121).
Saint-Hilaire esteve no Brasil no governo de D. João VI, e no contexto da
independência do país por D. Pedro I. O viajante presenciou o conflito político e
institucional religioso entre Igreja, Estado, irmandade e religiosidade. Segundo o
historiador Thomas Bruneau, a análise desta época deve ter como ponto de partida, o
momento quando Sebastião de Carvalho e Mello, o Marquês de Pombal implantou uma
“monarquia absoluta” (1750-1777); deve ainda ser analisado o Regalismo; o projeto de
cristandade, que tinha como premissa chave “a integração da Igreja e do Estado”
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(BRUNEAU, 1974, p. 30); o sistema do Padroado, domínio total do Estado Português sobre
a Igreja e o papado; o Ultramontanismo, movimento que defendia a superioridade do papa;
e o processo de Romanização que pretendia purificar a religiosidade popular (Ìtalo, 2010,
p. 24), que era celebrada a partir da devoção dos santos, nas procissões e dias de festas.
No contexto que Saint-Hilaire esteve no Brasil, o catolicismo era a única religião
oficialmente admitida no país, embora já houvesse certa tolerância religiosa nos lares, mas
não publicamente. Sendo assim, quando falamos de religião neste período, estamos nos
referindo ao catolicismo como à religião do Império, que tinha a função de sacralizar e
perpetuar o poder do Estado Português a partir dos sacramentos e da catequese formal
principalmente nos engenhos e nas fazendas. Porém, houve duas outras realizações
concretas do cristianismo dentro da cultura brasileira gestadas no período colonial, falamos
do Catolicismo Popular e da Religiosidade Popular5.
Diferentemente da religião católica do Império, que possui uma presença forte dos
eclesiásticos, o catolicismo popular, é um conjunto de representações e práticas religiosas
dos católicos que não dependiam da intervenção da autoridade civil e eclesiástica para
serem adotados e vividos pelos fiéis, pelo contrário, em muitos lugares como em Minas
Gerias era quase todo laical. Segundo o historiador Riolando Azzi, essa vivência é marcada
pela cruz, oratórios, ermidas, irmandades, santuários, procissões, devoções e festas. Quanto
a Religiosidade Popular é a socialização miscigenada da presença do divino ou do sagrado
na religião do negro, índio e do branco. Saint-Hilaire nos seus relatos descreve com
algumas criticas muito mais sobre o catolicismo popular.
Muitas pesquisas foram realizadas sobre essa literatura, no âmbito da história,
antropologia, sociologia e demais áreas do conhecimento. Apresento a seguir alguns
trabalhos que tomaram como fonte a literatura de viagem, porém nenhuma delas teve como
objeto de pesquisa as festas e os dias santos, enquanto fenômeno religioso no Brasil
oitocentista. Mas suas pesquisas são luzes para analise que vamos fazer a respeito desse
fenômeno.
Nas décadas de 30/40, do século passado, a sociologia através das obras de Gilberto
Freyre, utilizou das informações fornecidas pelos viajantes para suprir as falhas
decorrentes da escassez e /ou da dificuldade de acesso a outras fontes históricas, o autor
utilizou os escritos de Saint-Hilaire.
5 Tanto a Religião oficial do império, como o Catolicismo Popular podem ser analisados a partir dos seguintes autores: Maria Cecilia Domezi, in “Religiões na História do Brasil” e Riolando Azzi in “Elementos para a história do Catolicismo Popular.
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Na área da história é que destaco vários autores. Silvio Romero, ele cita os viajantes
como fonte fundamental para a descoberta dos componentes formadores da cultura
brasileira. O historiador Robert Slenes fez um estudo exemplar sobre a família escrava no
Sudeste oitocentista, afirma que “(...) os relatos dos oitocentos, quando lidos nas
‘entrelinhas’, revelam um olhar bem menos vazio do que parece à primeira vista”
(SLENES, 1999, p. 48).
Ressaltando a importância dos testemunhos e relatos dos viajantes, o historiador da
religião Hans Jurgen Greschat, na obra O que é Ciência da Religião, diz que esses relatos
trazem muito de curiosidades vistas pelos viajantes, e muitas vezes sem nenhuma
sistematização. Porém, segundo o pesquisador tais escritos “converteram-se em fontes de
informação não apenas para linguistas, mas também para cientistas da religião. Estes lhes
interrogavam sobre temas que guardavam relações com coisas do seu próprio mundo”
(GRESCHAT, 2005, p. 78).
Em Cientificismo e Sensibilidade Romântica. Em busca de um sentido explicativo
para o Brasil no século XIX (2004), Márcia Naxara faz exercício semelhante, ao buscar,
nos relatos de viajantes, chaves para compreender questões relativas à formação e
interpretações do Brasil no século XIX.
A historiadora Valéria Lima na Obra J. B. Debret, Historiador e Pintor – a Viagem
pitoresca e histórica ao Brasil (1816-1839). A autora investiga o sentido histórico e
cultural dessa obra, “acentua os aspectos formais e a superficialidade dos cultos no Brasil,
criticando o amor próprio que se sobrepõe á devoção verdadeira, a hierarquização nas
cerimônias religiosas e esvaziamento da própria experiência de fé” (LIMA, 2007, p. 302). A
autora não aborda o tema proposto, mas apresenta neste relato parte da crítica apontada
pelos viajantes que vamos estudar.
Compreendendo o valor das pesquisas científicas apresentadas acima, que trataram
de vários temas relatados pelos viajantes. Porém, esses trabalhos não tiveram como objeto
de pesquisa e por isso não aprofundaram os estudos sobre as festas e dias santos nos relatos
dos viajantes, mas como citei acima, todos esses estudos serão luzes para aprofundarmos a
pesquisa sobre o objeto proposto.
Quanto à metodologia que iremos utilizar nessa pesquisa, bem como, a
interpretação e análise dos textos selecionados seguirá o percurso metodológico de
trabalho com fontes primárias: identificação da fonte e do autor, contextualização da obra,
análise do potencial informativo do conteúdo selecionado e, por fim, avaliação dos trechos
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selecionados enquanto representações, ou seja, interpretações elaboradas pelo autor a
respeito das festas e dias santos no período estudado, compreendidos pela ciência da
religião como fenômeno religioso na primeira metade do século XIX.
2. Representação das festas religiosas e dias santos nos relatos de viagens de
Saint-Hilaire.
A representação que vamos analisar sobre as descrições das festas e dias santos, feitos
por Saint-Hilaire na sua viagem pelo Rio de janeiro e Minas Gerais, parte do conceito de
representação do historiador Roger Chartier, quando abordou sobre a História Cultural
dizendo que “ela procura entender os sentidos das palavras, das imagens e dos símbolos, e
busca também a reconstrução das práticas culturais em termos de recepção, de invenção e
de lutas de representação” (Colling/Losandro, 2015, p. 575).
A partir do olhar do europeu na busca pelo novo, o exótico, o diferente, Saint-Hilaire
representa nesta obra além das pesquisas sobre a fauna e flora brasileira, as devoções
católicas e populares; superstições, a vida e as propriedades do clero; arquiteturas sacras,
irmandades, ermidas, missas e devoções às almas; fonte milagrosa, a cavalhada, batismos
de índios, festas de pentecostes, semana santa, ausência de igrejas, procissões, devoção a
virgem Maria, oratórios e a devoção ao Sagrado Coração de Jesus.
Nas festas e dias santos, e consequentemente, através das procissões, que estão ligadas
a essas, vamos analisar a presença das identidades religiosa brasileira ou uma possível
construção delas nas representações de Saint-Hilaire. Desde já queremos destacar uma
quase ausência dessas descrições na província do Rio de Janeiro, será que a religiosidade
ou catolicidade nessa região não apresenta quase nada de diferente ou de “exótico” para ser
relatado? Pois, o viajante descreve pouco sobre festas e dias santos na sua passagem ou
estadia pelo Rio de Janeiro, o contrário de Minas Gerais, que como veremos há vários
relatos sobre esse fenômeno.
Iniciemos nossa análise pelo Rio de Janeiro onde o viajante iniciou a viagem com
destino a Minas Gerais no “dia 07 de Dezembro de 1816” (SAINT-HILAIRE, 2000, P. 35).
Num paróquia chamada Irajá o autor se depara com uma casa iluminada por várias
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lanternas de papel enfileiradas, e nessa residência iria celebrar uma festa a Nossa Senhora
da Conceição.
Era já noite quando chegamos a Irajá, e chamou-me a atenção uma casa
que estava iluminada por numerosas lanternas de papel enfileiradas em uma só linha. Disseram-me que o dono dessa casa possuía um pequeno
oratório consagrado à virgem, pela qual professava devoção particular, e,
como no dia seguinte era a festa da conceição, queria festejar sua padroeira (SAINT-HILAIRE, 2000, P. 36).
Nesta descrição presenciamos parte das características do catolicismo e a devoção
popular presente do cristianismo católico. A festa é laical, ou seja, sem a presença do clero
e da igreja. O local é uma casa, e não um templo, e nessa residência possui um oratório,
segundo Riolando Azzi, esse é um símbolo da religiosidade idenditária brasileira. A
devoção a virgem Maria estava sendo celebrada já na véspera, pois no dia seguinte seria a
festa da Imaculada Conceição, celebrada no dia 08 de Dezembro conforme o calendário
Romano. Embora seja essa uma solene festa no calendário da Igreja Romana, a mesma
estava sendo celebrada também de forma popular em uma simples casa no interior do
Brasil.
Num lugarejo chamado Vila do Príncipe Em Minas Gerais, o autor durante as festas
religiosas da Semana Santa, relata também vários momentos “profanos e exóticos” na
representação dele. Como citamos acima, percebe nas descrições parte do conflito religioso
entre Igreja e Estado, catolicismo oficial do Império com o catolicismo popular e as
irmandades, todos juntos celebrando a seu modo a semana santa e nesta mesma data a
Coroação do Rei de Portugal e do Brasil, segundo o autor aconteceu no dia 06 de Abril de
1817.
Estive em Vila do Príncipe durante a quaresma. Três vezes por semana ouvia passar pela rua uma dessas procissões que chamam procissão das
almas, e que tem por objetivo obter do céu a libertação das almas do
purgatório. São ordinariamente precedidas por uma matraca; nenhum sacerdote as acompanha, e são unicamente constituídas pelos habitantes
do lugar possuidores de voz mais agradável (SAINT-HILAIRE, 2000, pp.
150/151).
Como o viajante descreve, era o tempo da quaresma, tempo para os católicos de
Jejum, oração e penitência. Porém, além dessa forma comum de celebrar este tempo,
chama à atenção do viajante as procissões nas ruas, as orações exaustivas pelas almas do
purgatório, os instrumentos utilizados durante o trajeto; e Saint-Hilaire descreve algumas
das características do catolicismo popular, como a ausência dos sacerdotes, a condução
popular dos habitantes, e segundo o autor com uma espiritualidade agradável.
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Na abertura da Semana Santa, no Domingo de Ramos, o viajante durante a
procissão descreve a presença de um sacerdote, irmandade, negros livres, e uma multidão,
ou seja, o catolicismo institucional. Vemos neste relato a diferença do anterior, pois, no
catolicismo popular temos os símbolos da Igreja católica, sem a presença do clero,
enquanto na descrição abaixo temos o sacerdote e o Santíssimo.
No domingo de Ramos, após o por do Sol, houve uma procissão de penitentes da irmandade de São Francisco. Em seguida ás duas filas de
penitentes, que na maioria eram mulatos e negros livres, vinham um
andor sustentado por quatro pessoas, no qual estava uma imagem de tamanho natural representando Jesus Cristo carregando a cruz. Em
seguida a esse andor, caminhava um sacerdote que levava o Santíssimo, e
grande multidão caminhando sem ordem fechava o prestígio (SAINT-
HILAIRE, 2000, p. 151).
A Quinta-feira santa, segundo Saint-Hilaire é considerada uma das maiores festas
do ano, não se trabalha e se celebra na Igreja Matriz. Na missa se participa com traje de
gala, o autor elogia a boa música, dizendo que foi perfeitamente executada. Porém, o
diferente da citação abaixo é o comportamento do clero, o valor que são pagos aos mesmos
por celebrarem um missa solene, destaca ainda que a mesma foi paga pelos irmãos do
Santíssimo Sacramento. Como a irmandade do lugar era pobre ficou sem missa nesta
ocasião. Ou seja, a missa era assistida por quem pudesse pagar, o cristianismo era vivido
pelos pobres de forma popular e nas procissões. Como não podiam pagar, certamente, os
negros, mulatos, não participavam das missas festivas. O viajante descreve o conflito
político e econômico entre Igreja, Estado, Clero e Irmandades, sendo essa última nesses
relatos à força motriz do catolicismo popular neste contexto.
Os párocos, não sendo obrigados a oficiar em missas solenes,
recebem uma retribuição todas as vezes que celebram uma. Foram
os irmãos do Santíssimo Sacramento que custearam, em Vila do
Príncipe, a da quinta-feira santa; o vigário recebeu 4.000 réis (25
fr.), e os adjuntos que serviram de diácono e sub-diácono, foram
pagos na mesma proporção. Como a irmandade não era então rica,
não se celebrou nenhuma dessas cerimônias praticadas nessa época
em nossas igrejas, porque teria sido necessário pagá-las ao vigário (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 151).
E por não poderem pagar a missa ao vigário, segundo Saint-Hilaire “na sexta-feira
santa os artífices trabalharam tão pouco como na véspera; a indigência, porém, das
irmandades, não permitiram realizar-se um único ofício (SAINT-HILAIRE, 2000, p.
151).”
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No domingo de Páscoa o autor descreve uma das características da miscigenada
religiosidade brasileira, quando em plena Páscoa os negros dançavam, cantavam suas
músicas e tocavam os seu batuques até de madrugada. Nesse mesmo dia foi celebrada em
Vila do Príncipe a coroação do Rei de Portugal e do Brasil pelos nobres, revelando por
outro lado a força do “padroado” na colônia.
Já se tinha anunciado, desde muito por toda província, que a coroação do Rei de Portugal e do Brasil teria lugar no Rio de Janeiro a 06 de Abril de
1817, que era o dia de Páscoa. Quis-se também celebrar, em Vila do
Príncipe, esse notável acontecimento... finalmente, os negros dançaram durante toda a noite (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 151).
Em São Domingos Minas Gerais, o viajante descreve as festividades de
Pentecostes, essa festa revela parte da catolicidade brasileira relatado por Saint-Hilaire,
vinda de Portugal, com a presença do catolicismo popular e o institucional. A festa começa
na casa do Imperador, um membro da comunidade, escolhido naquele ano para as
festividades, segue uma multidão até a Igreja, que é acolhido pelo sacerdote, em seguida
inicia-se a missa, que termina com um jantar em frente à casa do Imperador.
(...) dirigi-me em companhia do comandante a casa daquele que, nesse
ano, representava o papel do imperador. Grande número de pessoas se
aglomerava diante da porta. O imperador apareceu, estava vestido de fraque e calções, mas levava um cetro e uma coroa de prata, e por traz de
seu traje estava, à maneira de manto, uma larga banda de veludo
carmesim. Saímos então da casa. Uma orquestra de músicos detestáveis, todos velhos mestiços, veio colocar-se à frente dos dois oficiais, e
executou um hino em honra ao Imperador. À frente desses músicos
alinharam-se alguns sacerdotes vestidos apenas com as batinas, e,
finalmente, uma considerável multidão de povo seguiu todo o cortejo. Chegando à porta da igreja, o Imperador ajoelhou-se. Um padre de
sobrepeliz veio apresentar-lhe o incenso, e um outro deu-lhe o crucifixo a
beijar. O imperador avançou até o santuário, colocou-se debaixo de um pálio, ao lado de um dos altares laterais, e seus três oficiais postaram-se
diante dele. Entoou-se então um Te Deum, e, em seguida, cantou-se uma
missa com música. Após a missa, formou-se o cortejo novamente; saímos
da igreja e dirimo-nos para a casa do Imperador. (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 285).
Segundo o viajante essa festa foi “instituída por uma Rainha de Portugal, teve
originalmente por objeto a distribuição de esmolas; mas, pouco a pouco degenerou, e não é
mais hoje em dia senão oportunidade de regozijo público, em que se misturam a cerimonia
religiosa, de modo bizarro, outras ridículas e profanas” (SAINT-HILAIRE, 2000, p. 285).
Percebe-se que as considerações subjetivas de Saint-Hilaire estão imbuídas do pensamento católico
Romano, estaria ele com as ideias da romanização? Pois, segundo os historiadores Ítalo e Tomas
Bruneau, neste período já estava em curso no Brasil esse processo, que vai tomar corpo através de
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alguns bispos e padres na metade do século XIX. A romanização tinha como um dos seus objetivos
purificar o catolicismo popular.
Mesmo com muitos preconceitos, o viajante descreve uma das mais belas festas populares
brasileira, a festa do Divino Espirito Santo, que acontece em vários estados do País, e cada lugar
ela possui a sua configuração, nessa a presença do Espirito Santo esta na figura do Imperador. Esse
modelo descrito pelo autor se faz presente até hoje no interior de Minas Gerais e Goiás, pois o
processo de romanização que iniciou na metade do século XIX não atingiu seu objetivo, pelo
menos com essa festa popular.
Esse artigo faz parte de uma pesquisa de mestrado que esta em andamento, tem muito
trabalho para uma possível conclusão. Porém, podemos dizer que as descrições de Saint-Hilaire
revela a presença do catolicismo popular no período que esteve no país. Mostra ainda, parte do
conflito politico-religioso e o controle dessa ação por parte do Estado, Igreja, clero e irmandade. A
partir das representações do autor sobre o fenômeno religioso, há uma possiblidade do mesmo
trazer da Europa as ideias da romanização, embora o autor nada relate sobre esse movimento. Por
fim, fica claro na analise historiográfica a lacuna por parte de estudiosos da literatura de viagem
sobre o estudo ou pesquisas sobre o fenômeno religioso no Brasil oitocentista, de modo particular
sobre as festas e dias santos, um modo de viver a fé presente na identidade religiosa católica
brasileira.
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