IMPRENSA PERIÓDICA ILUSTRADA E POLÍTICA: A REVISTA KODAK E OS
USOS DAS REPRESENTAÇÕES HUMORÍSTICAS NA CONSTRUÇÃO DA
OPINIÃO PÚBLICA. PORTO ALEGRE, 1912-13
Alice D. Trusz
Doutora em História – UFRGS
Pós-doutora pela ECA-USP
Publicada em Porto Alegre a partir de 1912, a revista Kodak foi um semanário
ilustrado dedicado às artes e à literatura, cuja proposta editorial era dar conta da
multiplicidade das manifestações da vida, promovendo as sociabilidades públicas e o
mundanismo cosmopolita. Lançada nos moldes da congênere carioca Fon-Fon, a Kodak
foi um produto representativo da cultura da belle époque brasileira e defendeu que a
linguagem que melhor correspondia aos “elétricos tempos” então vividos, de
“cinematografia e de vertigem”, em que tudo devia ser “breve, instantâneo, sintético”,
era a visual, tendo, por isso, feito largo uso da fotografia e da ilustração.
Na sua primeira edição, a Kodak publicou um editorial explicando o seu título e
apresentando o seu programa. Segundo esclareceu, o seu nome de batismo lhe definia
previamente a feitura e a destinação: ela seria a fotografia semanal do Estado e da
cidade. Seria uma revista “de poucas palavras e de muitas ilustrações”, pois, “como
instrumento de luta e propaganda, nada há de mais eficaz e eloquente que a figura
geométrica de uma caricatura ou de um cliché.” Por fim, avisava: “Sendo nosso intuito
fazer obra de simpatia, de solidariedade e de aperfeiçoamento social, seja muito embora
uma revista impressa a cores, fica, desde já, proscrita de suas colunas toda e qualquer
cor política, como perniciosa à vista e ao coração.”
A Kodak realmente seguiu os seus propósitos editoriais, contrariando apenas a
promessa de manter-se monocromática com relação à política. Presente em seus
conteúdos textuais e visuais, o tema não chegou a ganhar cores partidárias, mas
evidenciou a tendência da publicação e o seu papel no contexto da eleição e posse de
Borges de Medeiros ao terceiro mandato no governo estadual.
Esta comunicação tem por objetivo apresentar algumas das conclusões de uma
investigação que partiu das charges de temática política veiculadas nas capas da revista
entre outubro de 1912 e junho de 1913, mas se estendeu a outros conteúdos do impresso
e o extrapolou. O seu intuito foi identificar como foi abordada a política pela revista por
meio da visualidade e do humor nas charges por ela publicadas no seu espaço nobre, a
capa, que é a porta de entrada e o cartão de apresentação de toda publicação. O exame
dessas representações teve por objetivo identificar os sentidos dessas imagens e o papel
que elas e a revista que as produziu e publicou podem ter desempenhado no seu
contexto de circulação.
Além de revelar algumas das expectativas e preocupações dos contemporâneos
em relação às práticas políticas nos âmbitos local, regional e nacional, o estudo de caso
também permitiu evidenciar aspectos da relação entre a imprensa e a política no Brasil
da Primeira República. Alarga-se, assim, a compreensão da dinâmica da produção
cultural brasileira em um contexto de transformação do jornalismo, que se aperfeiçoou
tecnicamente como indústria gráfica e se racionalizou como empresa comercial, e, nesse
movimento, estabeleceu e desfez compromissos com as elites, barganhando recursos,
prestígio e poder.
Para tal fim, foram examinadas as capas das edições de números 1 a 36, das
quais 17 fizeram referência direta à política, sendo 14 com charges. Desse grupo, 9
tiveram por ilustrador Giga e 5 foram criadas por Nero. Giga (Fig. 1) era o pseudônimo
do artista italiano Giuseppe Gaudenzi, que se estabeleceu em Porto Alegre em 1909 a
convite do engenheiro João Lüderitz, professor do Instituto Técnico Profissional
Parobé, da Escola de Engenharia de Porto Alegre. O convite foi feito e aceito durante a
viagem de Lüderitz à Europa, como enviado do governo gaúcho com a missão de
contratar professores para aquela instituição de ensino. Durante os anos de 1910-12,
Gaudenzi, como professor do curso de modelagem em arte decorativa do Instituto
Profissional, prestigiou, juntamente com seus empregadores e colegas de trabalho, todos
correligionários do PRR, os eventos públicos que envolviam dirigentes da instituição e
políticos do partido.
Nero era o pseudônimo de Orzolino Martins. (Fig. 2) Ilustrador do semanário
humorístico ilustrado local Pau Bate desde 1908, deixou a publicação em dezembro de
1910 para fundar sua própria revista, do mesmo gênero, o 606. O título era emprestado
de um medicamento injetável então em voga, indicado para o tratamento da sífilis. O
semanário teve boa aceitação no meio local, entre o público e órgãos de imprensa de
distintas tendências políticas, o que significa que distribuía democraticamente as suas
críticas. Nero colaborou com a Kodak durante 1913 e 1914, sem abandonar a publicação
do 606.
Fig. 1 – Fotogravura de Giuseppe Gaudenzi (Giga). O Independente, POA, 29/07/1914, p. 1.
Fig. 2 - Caricatura de Orzolino Martins (Nero). Autor: Nero. Kodak, POA, ano 2, n. 52,
11/10/1913.1
As charges publicadas nas capas da Kodak eram policromáticas e ocupavam a
quase totalidade do espaço da página. (Fig. 3) Giga costumava criar cenas que
contavam com a participação de um personagem peculiar, por ele criado, o Zé Gaúcho,
que vestia trajes típicos regionais (à esquerda, na gravura). Ele estava presente nos
acontecimentos como observador, mas costumava fazer comentários ou recomendações.
Desenhado já na primeira capa de Giga, e retomado em outras dez, o personagem foi
inclusive preservado por Nero em quatro capas suas. (Fig. 4).
Fig. 3 – Charge. Autor: Giga. Capa. Kodak, POA, ano 1, n. 10, 30/11/1912.
Fig. 4 – Charge. Autor: Nero. Capa. Kodak, POA, ano 1, n. 19, 22/02/1913.
A figura do Zé Gaúcho remete diretamente a outro personagem assíduo na
ilustração de humor brasileira da época, o Zé Povo. (Fig. 5) Objeto de representações
visuais diversas desde a década de 1880, ele costumava ser desenhado como tipo
popular, com aspecto desalinhado e vestes remendadas.
1 A presente versão desta comunicação é a mesma que foi apresentada oralmente na Anpuh 2016. Porém,
devido aos limites impostos pelo sistema para o peso dos textos completos destinados à publicação nos
Anais (3MB), a maior parte das figuras exibidas durante a apresentação não pode ser anexada aqui.
Fig. 5 – Charge. Autor: Storni. O malho, RJ, n. 393, 26/03/1910.
Contudo, aqui interessa destacar a concepção que dele fez o ilustrador Lobão
(João Batista Ramos) nas charges de sátira política que desenhou para as capas do
semanário carioca O Malho entre 1905 e 1914. (Fig. 6) Nelas, o Zé Povo aparece como
um tipo urbano, um homem comum que se vestia com simplicidade, mas era uma figura
distinta, que usava sapatos e chapéu de palhinha, e cuja marca registrada era uma
gravada vermelha em laço no pescoço. Ele não era a encarnação da revista, que possuía
sua própria representação (personagem com touca e botas vermelhas). Eles inclusive
contracenaram juntos em diferentes capas.
Fig. 6 – Charge. Autor: J. R. Lobão. Capa. O malho, RJ, n. 412, 6/08/1910.
Segundo Luiz Teixeira (2001), pode-se dizer que o Zé Povo representava todos
os oprimidos, diante de todos os opressores. Sua singularidade estaria em ser mero
espectador, externo à sociedade e à lógica das lutas políticas, não mais que um
comentador de fatos que não lhe diziam diretamente respeito. Ele seria um observador
impotente de uma cena política da qual se sabe e se sente excluído a priori, sempre à
margem. Ele simbolizaria, assim, o permanente desencontro entre elite e povo, povo e
nação, onde um não se reconhece nem se identifica com o outro. Porém, embora
destituído de poder para interferir nos acontecimentos, tinha por característica central a
lucidez (Fig. 7), o que o legitimava como o personagem que, nas charges, colocava em
pauta a isenção, a ética, a concórdia e o equilíbrio, geralmente ausentes nas práticas dos
políticos e dirigentes brasileiros “do passado”. Nos exemplos mostrados, Zé Povo é
representado de braços com o velho bom senso e a pedir juízo aos políticos.
Fig. 7a - Charge. Autor: J. R. Lobão. Capa. O malho, RJ, n. 353, 19/06/1909. Fig. 7b – Charge. Autor: J. R. Lobão. Capa. O malho, RJ, n. 361, 14/08/1909.
Fig. 8 – Charge. Autor: Giga. Capa. Kodak, ano 1, n. 5, 26/10/1912.
Alguns destes traços podem ser percebidos no Zé Gaúcho de Giga (Fig. 8),
artista que deve ter sido leitor d’O Malho, a mais importante revista de crítica à vida
política do país do seu tempo. Ele parece ter partido daquele Zé genérico para criar o
seu tipo regional, o Zé Gaúcho, mas com algumas particularidades, como uma postura
mais irônica e cética frente às políticas nacional e municipal e mais tendenciosa quando
se tratava do âmbito estadual.
As charges publicadas pela Kodak sobre a política nacional foram produzidas e
circuladas durante o governo de Hermes da Fonseca (1910-14) e a ele se referem. A
primeira capa política de Giga para a Kodak não foi uma charge, mas uma alegoria.
(Fig. 9). Nela, a República brasileira é representada como uma mulher altiva e resoluta,
que empunha a bandeira do Brasil e conduz uma biga com determinação. A visão
otimista do regime, então convulsionado por sucessivos movimentos sociais, como a
Guerra do Contestado, e que foram duramente reprimidos pelo marechal Hermes, é
endossada pelo texto da base: “Apesar, afirma o Giga, dos fanáticos do monge
(referência ao Contestado), levada por esta biga, a República há de ir longe...”
Fig. 9 – Ilustração alegórica. Autor: Giga. Capa. Kodak, POA, ano 1, n. 8, 16/11/1912.
Nas cinco charges seguintes sobre o tema, três desenhadas por Giga e duas por
Nero, a política nacional foi objeto de crítica e ironia, mas cuidando-se em distinguir a
Nação das práticas de seus governantes e políticos. Em quatro delas, o senador gaúcho
Pinheiro Machado está presente. (Fig. 10)
Fig. 10a - Charge. Autor: Giga. Capa. Kodak, POA, ano 1, n. 11, 07/12/1912.
Fig. 10b - Charge. Autor: Giga. Capa. Kodak, POA, ano 1, n. 22, 15/03/1913.
Pinheiro Machado foi um dos republicanos históricos que lançaram a
candidatura do militar Hermes da Fonseca à presidência da República contra o civilista
Rui Barbosa. As eleições de 1910 foram vencidas por Hermes e a partir de então ganhou
força a influência do senador na direção da política nacional. O controle dos estados por
caciques políticos era a regra, bem como as lutas entre eles pela manutenção deste
domínio. Buscando centralizar o poder, o Marechal Hermes acionou, a partir de 1911, a
política salvacionista, que consistia em depor governadores nos Estados e os substituir
por interventores fiéis ao governo. Ela permitiu que o senador Pinheiro Machado
estabelecesse alianças entre o RS e estados do Norte e Nordeste, apoiando e
manipulando coronéis. Marcadas por forte autoritarismo, tais intervenções provocaram
resistência e conflitos armados, bem como reações no Congresso, no Senado e na
imprensa.
A atuação de Pinheiro Machado na sustentação do governo Hermes, e os
conchavos políticos que manipulou em nível nacional, foram assunto reincidente nas
charges da época. Os exemplos mostrados, desenhados por Giga, remetem às
dificuldades de estabelecer e manter o controle sobre tais alianças. Na primeira charge,
o senador escreve cartas para políticos e é advertido por Zé Gaúcho, respondendo-lhe
com expressão de tédio. Na segunda, o senador, agachado, esforça-se para segurar os
fios de vários balões coloridos representando políticos. Eles tentam escapar e ele
machuca os dedos no esforço, reclamando do seu “peso”.
A percepção de Pinheiro Machado como o presidente de fato, aquele que
realmente governava no lugar de Hermes, o eleito, foi outro aspecto que marcou a
produção humorística do período 1910-14. (Fig. 11) Desde 1909, os chargistas cariocas
se esmeravam na representação do senador como criador e manipulador do marechal. O
primeiro exemplo faz referência direta à obra do escultor Michelângelo, em particular
ao seu Moisés, que se encontra em Roma, e que, de tão perfeito, só falta falar. Pinheiro,
como criador, e Hermes, como criatura, metaforizam a ideia da perfeição da obra,
salientada pela ordem do artista à pequena estatueta: “- Non parla!...”. Contudo,
mantém-se a ambiguidade, como é característico do humor, entre a interpretação
elogiosa da eficiência da manipulação do presidente pelo senador e a crítica à
incapacidade do presidente em agir com autonomia. O segundo exemplo, que representa
Pinheiro Machado com a babá do bebê Hermes, que o guia no aprendizado do caminhar,
devendo evitar as pedras do seu caminho (oposicionismo e desagrado popular), e o
alimenta com uma mamadeira de “conselhos”, é outra representação da mesma ideia.
A charge criada por Giga sobre o tema também é memorável. (Fig. 12)
Intitulada “Esperando a onda...”, a cena de banho de mar mostra Pinheiro segurando
Hermes para que não afunde, ajudando-o a boiar. A profundidade é rasa e mesmo assim
Hermes teme se afogar. O senador o tranquiliza, dizendo que, enquanto ele, Pinheiro
continuar na posição que ocupa, o marechal há de boiar em segurança. Ao fundo, Zé
Gaúcho observa-os, remando em uma canoa da Kodak, e aproveita para avisá-los sobre
a previsão de um temporal e o fato da sua canoa só poder salvar um dos dois.
Fig. 11b – Charge. Autor: K. Lixto. Fon-Fon, RJ, n. 33, 13/08/1910.
Fig. 11a – Charge. Autor: J. Carlos. Careta,
RJ, n. 72, 16/10/1909.
Fig. 12 – Charge. Autor: Giga. Capa.
Kodak, POA, ano 1, n. 18, 15/02/1913.
Ainda que Hermes fosse gaúcho e tivesse sido apoiado pelo RS na campanha
eleitoral de 1909, torna-se objeto de riso, no que Giga se alinha à percepção nacional
acerca do seu governo. Contudo, inverte essa percepção quando se trata do outro
político gaúcho, Pinheiro Machado, do qual é feita uma imagem até certo ponto
positiva, revelando uma concepção oposta àquela corrente nas charges cariocas, nas
quais o senador era comumente representado como figura prepotente e ambiciosa e
denominado o Chantecler, o galo dos terreiros. (Fig. 13) Chamo a atenção para a
charge, do monumento, em que o senador galináceo apoia-se em um queijo e segura
uma faca. Para endosso, lê-se na placa afixada ao pedestal: “L’etat c’est moi”.
Fig. 13a – Caricatura de Pinheiro Machado. Autor: J. Carlos. Careta, RJ, n. 92, 5/03/1910.
Fig. 13b – Charge/caricatura de Pinheiro Machado. Autor: J. Carlos. Careta, RJ, n. 102,
14/05/1910.
No que respeita à política municipal, observa-se que a administração do “eterno
intendente” Montaury foi objeto de críticas sucessivas tanto em ilustrações de humor
quanto em crônicas. Por outro lado, fotografias dele e dos conselheiros municipais
foram publicadas na Kodak com certa solenidade, demonstrando a ambiguidade ou zelo
da revista no tratamento da questão.
José Montaury administrou Porto Alegre entre 1897 e 1923 rigidamente dentro
dos preceitos positivistas, que primavam pelo lema “conservar, melhorando” e
orientavam-se pela necessidade de manter o equilíbrio orçamentário. Ele era um
republicano, membro do PRR e figura de confiança do governo do Estado. Em sua
administração, empreendeu medidas estruturais de urbanização, mas foram obras
morosas e comedidas, de pouca visibilidade, que motivaram reclamações recorrentes na
imprensa. (Fig. 14) A charge de Nero dá conta da percepção dos contemporâneos sobre
o ritmo dos “Melhoramentos de Porto Alegre” sob a condução de Montaury.
Questionado por Zé Gaúcho sobre a lentidão do processo, o intendente justifica-se
dizendo que “devagar se vai mais longe” e é mais seguro.
Fig. 14 – Charge. Autor: Nero. Kodak, POA, ano 1, n. 32, 24/05/1913.
Na capa criada por Giga sobre o tema (Fig. 15), Montaury é representado no
interior do seu gabinete, telefonando para Deus. Zé Gaúcho, sofrendo com o forte calor,
acompanha o drama do administrador. Ele pede chuva e atribui à estiagem a interrupção
das obras. Zé está justamente sentado sobre uma pilha de documentos municipais, como
o relatório e projetos de obras públicas, de modo que a própria imagem expressa a sua
perda de utilidade e função: de vetores de obras, tornaram-se assento. Ironizando a
situação, Zé sugere ao intendente que aproveite o telefonema para pedir a Deus que
“extermine o trust do açúcar, senão este ano os presos da cadeia não comem
marmelada.”
Fig. 15 – Charge. Autor: Giga. Capa. Kodak, Porto Alegre, ano 1, n. 20, 01/03/1913.
Nos dois casos, a abordagem humorística procura amenizar as críticas a
Montaury, cujo poder era, afinal, legitimado pelo PRR e renovado a cada reeleição.
Assim, o Intendente é representado como uma figura quase infantilizada, um incapaz, e
menos como um administrador ineficiente. A recorrência ao divino, nesse sentido, é
acionada como último recurso, já que não há esperança de ação humana na reversão do
quadro de inoperância.
Já o poder estadual foi abordado nas charges das capas da Kodak por meio de
uma representação positiva, destinada a legitimá-lo simbolicamente. Das cinco
ilustrações identificadas, três assinadas por Giga e duas por Nero, foram selecionadas
duas por suas referências diretas à eleição e posse de Borges de Medeiros no governo do
estado. (Fig. 16)
Tendo ocupado tal cargo por dois mandatos consecutivos entre 1898 e 1908,
Borges retornou à administração direta do Rio Grande do Sul em 1913, sucedendo a
Carlos Barbosa, também do PRR. A charge que vemos foi publicada logo após a
divulgação dos resultados da eleição, em novembro de 1912. Na cena, destaca-se a
figura do homem gigante, alto e forte, já grisalho e bem vestido, que representa o PRR.
Ele ergue Borges de Medeiros com uma das mãos, enquanto que, com a outra, sustenta
a cadeira da presidência. Borges é elevado às alturas pelo partido, e, por sua vez, segura
uma balança, símbolo da justiça, enfatizando o caráter legal e constitucional de sua
vitória eleitoral, respaldada em sólida base política (inscrita na figura do velho,
representando tradição e força). Assim eram contestadas as acusações da oposição sobre
as fraudes eleitorais e o abuso de poder, que de fato caracterizavam as eleições no
Estado. Zé Gaúcho observa a cena, desenhado na mesma escala reduzida de Borges. As
legendas, revelando o seu diálogo com o partido, orientam a interpretação sobre o papel
do personagem na cena como avalista do processo eleitoral.
Fig. 16 – Charge. Autor: Giga. Capa.
Kodak, POA, ano 1, n. 9, 23/11/1912.
PRR (para Borges): - Equilibre-se nessa
posição, seu chefe!... olhe que em tal altura
nem todos se aguentam!...
Zé Gaúcho – Nada de posição. Aqui não há
disso. “Quem está montado na razão, não
precisa de esporas.”
Fig. 17 – Charge. Autor: Giga. Capa.
Kodak, POA, ano 1, n. 17, 25/01/1913.
Dr. Borges de Medeiros: - Olha, Zé, ao
sentar-me, novamente, nesta cadeira, tenho
na frente a visão querida do Mestre.
Zé Gaúcho: - É a confirmação da sentença
do Grande filósofo, dr.: “os vivos são cada
vez mais governados pelos mortos.”
Já a capa seguinte (Fig. 17) foi publicada no dia da posse de Borges, em
25/01/1913, data em que também foi inaugurado oficialmente o monumento a Júlio de
Castilhos na Praça da Matriz. Na cena, Borges, trajando gala, segue pelo tapete
vermelho que leva à cadeira presidencial, em cujo encosto estão gravados os símbolos
da República rio-grandense. A figura gigantesca e espectral de Júlio de Castilhos paira
sobre o encosto da cadeira e a oferece a Borges, demonstrando que a lembrança do
“Grande Morto” continuava presente, orientando e protegendo a atuação do seu
discípulo e sucessor. As legendas novamente ancoram a imagem, enfatizando a ideia.
Didático, Zé Gaúcho se refere a Augusto Comte e aos princípios que inspiraram
Júlio de Castilhos na elaboração de doutrina política positivista. Tratava-se de dar nova
expressão à recorrente evocação da figura de Castilhos pelos republicanos gaúchos, uma
figura política menos disponível a críticas, pois glorificada pela morte prematura e
inesperada, como justificativa para legitimar Borges como seu herdeiro político.
Procurando-se sintetizar o que foi apresentado, observa-se que a Kodak, por
meio das charges sobre política que veiculou em suas capas, expressou uma visão crítica
sobre as práticas de políticos e governantes aos níveis nacional e municipal, mas
assumiu posição de adesão e propaganda da política estadual. Tais manifestações
apareceram também em outros tipos de conteúdos, visuais e textuais, publicados no
interior da revista. Retratos de políticos do PRR e panoramas de obras do governo
estadual também serviram para dar visibilidade e promover pessoas e iniciativas,
distinguindo-as frente à comunidade leitora da revista, cujas expectativas estavam
representadas nessas ações.
A esse respeito, vale destacar um aspecto até aqui omitido, mas que contribui
para ampliar a compreensão sobre as práticas editoriais do periódico e as relações entre
a imprensa e a política. Na sua edição inaugural, de 28/09/1912, a capa da Kodak foi
inteiramente ocupada pela fotogravura de um monumento que acabara de ser concluído
em uma praça da cidade, mas que ainda não havia sido inaugurado. (Fig. 18) A
princípio, ao publicar uma fotogravura em cores da obra, que acabara de ficar livre dos
tapumes que ocultaram a sua construção da população, a revista estava cumprindo o seu
programa como impresso ilustrado de variedades, mostrando-se tecnicamente
capacitada e tematicamente atualizada como veículo de comunicação.
Mas se formos um pouco mais longe e considerarmos que este monumento era
uma encomenda do governo do Estado para glorificar em bronze a memória de
Castilhos e que ele havia sido construído na principal praça da cidade, centro dos
poderes executivo, judiciário e religioso, e que Lourival Cunha, fundador e diretor-
proprietário da revista, também era correligionário da Federação e militante do PRR, o
significado da seleção desta imagem como a primeira que o comprador da primeira
Kodak veria se modifica.
Fig. 18 – Fotogravura. Capa. Kodak, Porto Alegre, ano 1, n. 1, 28/09/1912.
Lourival Cunha, que começou sua carreira como jornalista em Jaguarão, em
1907, dirigindo um jornal da situação, manteve estreita convivência com o alto escalão
republicano gaúcho nos anos que precederam o lançamento da Kodak. Desde fevereiro
de 1912, ele atuava como secretário geral da ‘Junta Central Popular Pró-Borges’, órgão
que reunia a “mocidade castilhista” e cujo objetivo era fazer a propaganda organizada
da candidatura de Borges à presidência do Estado.
Lançada no final de setembro de 1912, a Kodak surgiu, portanto, às vésperas da
eleição, que seria realizada em 25 de outubro, e com Lourival envolvido na campanha
governista. Assim sendo, é pertinente perceber a veiculação da fotografia do
monumento a Castilhos na capa da Kodak n. 1 também como uma declaração de opção
política, uma declaração de voto.
Além dos compromissos políticos dos seus produtores, a presença das ‘cores
políticas’ na publicação também se explica por ter sido de praxe em vários outros
periódicos nacionais do gênero, nos quais a política marcou presença, ganhando
fluência sob a expressão mais coloquial, lúdica e libertária da ilustração de humor. A
partir dessas colocações, acredita-se terem sido evidenciadas algumas das relações nas
quais estavam inscritos os produtores da revista Kodak, bem como os compromissos
políticos que em algum grau orientaram as temáticas reunidas na revista e as formas
como foram abordadas. Trata-se de fazer emergir o diálogo entre a revista e a sociedade
e o papel da imprensa na expressão, dinamização e construção da realidade.
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