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ÍNDICE
INTRODUÇÃO……………………………………………………………………….….3
1. A QUESTÃO DO DUPLO. HISTÓRIA E ESTUDO…………………………………8
1.1. O duplo na narrativa. Breve revisão………………………………………...11
1.2. A sombra junguiana…………………………………….…………………..16
1.3. O sinistro e o duplo…………………………………………………………19
1.4. O duplo como emisário da morte…………………………………………...21
1.5. Aproximações a uma tipologia do duplo…………………………………...23
2. O DUPLO EM FREI LUÍS DE SOUSA E JORNADA DE ÁFRICA………………….28
2.1. O duplo em Frei Luís de Sousa……………………………………………..30
2.1.1 D. João e D. Sebastião: duplos da portugalidade………………….32
2.1.2 O ominoso e sinistro……………………………………………….36
2.2. O duplo em Jornada de África……………………………………………...39
3. O AMOR E O INDIVÍDUO………………………………………………………….49
3.1. A importância do indivíduo………………………………………………...51
3.2. O amor………………………………………………………………………53
3.3. Frei Luís de Sousa e Jornada de África…………………………………….58
3.3.1. D. Madalena versus D. João/D. Sebastião………………………..60
3.3.2. Em Jornada de África…………………………………………….66
2
4. RITUAL, FATALIDADE E O DUPLO……………………………………………...72
4.1. Mito e ritual…………………………………………………………………74
4.2. Jornada e ritual……………………………………………………………...76
4.3. Os duplos impõem-se……………………………………………………….88
4.4. O destino como fatalidade. O poder do inconsciente……………………….90
CONCLUSÃO…………………………………………………………………………..99
BIBLIOGRAFIA……………………………………………………………………….103
Dos autores……………………………………………………………………..103
De Almeida Garrett…………………………………………………….103
De Manuel Alegre……………………………………………………...103
Sobre os autores………………………………………………………………..103
Almeida Garrett………………………………………………………...103
Manuel Alegre………………………………………………………….105
Sobre o duplo…………………………………………………………………..105
Sobre sebastianismo……………………………………………………………107
Vária……………………………………………………………………………108
3
Introdução
Si hay alguna inquietud consustancial al individuo moderno, ésa es la preservación de la identidad. La búsqueda de cobijo en un colectivo, la asunción de unas marcas que permitan al sujeto identificarse con un grupo concreto de personas y, por contraste, diferenciarse de otras, parece hoy en día un trámite obligado para poseer una identidad, para ser alguien. Sin embargo, no estaría de más interrogarse acerca de lo que subyace tras esta necesidad casi compulsiva de filiación. No me parece descabellado aventurar que lo que el individuo realmente teme es enfrentarse a sí mismo. La literatura nos ha invitado, sobre todo a partir de la inflexión romántica, a emprender un viaje de estas características, a preguntarnos quiénes somos y, sobre todo, si realmente somos quienes creemos ser. El motivo del doble es el fruto, entre otras cosas, de una indagación profunda al respecto.1
O problema da individualidade implica um paradoxo. Se por uma parte, as
sociedades modernas têm-se desenvolvido na valoração do indivíduo, por outra, na busca
de uma identidade, procura-se aderir a um sistema de valores que, no fundo, uniformiza a
unicidade especifica de cada um. Este é um equilíbrio delicado. Na adesão incondicional
a um colectivo, corre-se o perigo de se perder nele, escondendo-se de si mesmo,
1 Rebeca Martín López, Las manifestaciones del doble en la narrativa breve española contemporánea, (Tese de Doutoramento), Barcelona, Universitat Autònoma de Barcelona, 2006, p. 7. http://www.tdx.cbuc.es/TESIS_UAB/AVAILABLE/TDX-1013106-110206/(consultada Novembro 2007).
4
afastando-se da unidade interior. O duplo, como se assiná-la na anterior citação, convida
a indagar sobre as raízes da individualidade que, cindida e duplicada, vira uma
personagem desconhecida, diferente e até oposta à própria atitude consciente do sujeito
duplicado.
Sendo a construção da individualidade uma problemática intrínseca ao Ser Humano, cada
povo reflecte-a e problematiza-a desde a sua própria circunstância cultural, única e
particular. É no meio deste contexto que o indivíduo se constrói, defrontado-se com
particularidades que o vão definindo como parte de uma e não doutra cultura humana. E
a sua luta, a sua elaboração e a sua problematização falam, ao mesmo tempo, dele como
um indivíduo subjectivo, assim como da cultura na qual está inserido, demarcando, neste
jogo de influências, as particularidades e prerrogativas que lhe são exigidas dentro do
contexo nacional ao qual pertence.
Assim, pretende-se com esta dissertação evidenciar de que maneira o individual, no
contexto de Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett e Jornada de África de Manuel
Alegre, é completamente apagado e esmagado pela carga colectiva cultural representada
no duplo. E este, como vértice onde se juntam ambas as obras, é encarnado pela figura
mítica de D. Sebastião, símbolo da portugalidade, e, portanto, de representação do
colectivo. Dado que o duplo alude à oposição de contrários, este trabalho supõe o estudo
de uma polaridade, e se, por um lado, se encontra um princípio colectivo, no outro
extremo opõe-se o individual. Suspeitamos assim que nesta polarização, que per se já
implica dissociação, se manifesta um desequilíbrio onde o aspecto individual e
subjectivo é o mais desconsiderado enquanto o colectivo é infinitamente ponderado. Esta
extrema parcialização leva à invisibilidade a importância da condição individual e o seu
desenvolvimento como princípio único diferenciado depositário essencial da saúde o do
bem-estar colectivo.
Em relação à escolha especifica de Frei Luís de Sousa (1843) e Jornada de África (1989)
para este trabalho, é importante esclarecer que ambas partilham uma mesma estrutura no
que respeita ao motivo do duplo. Embora sejam obras distanciadas no tempo, ambas
5
respondem e estruturam de modo comum o relacionamento dicotómico de opostos
indivíduo-colectividade e o final paradigmático no que a individualidade (D. Madalena e
Sebastião) é abalada em favor do duplo D. Sebastião, símbolo da portugalidade
(colectividade).
Para além de ser a escolha das obras uma questão de preferência, esta responde à
evidência de um diálogo histórico que atravessa 146 anos e no qual subjaz a presença
mítica de D. Sebastião, determinada e encarnada em ambas obras como duplo.
Analisando a sua maneira de agir e a forma que determina e é determinado pela sua
contraparte dialéctica, a individualidade aprofunda-se indirectamente na sua
extraordinária importância, na medida em que se reconhece a desvalorização do
individual. Qualquer parcialização produz desequilíbrio, e se se pretende a conciliação e
encontrar um desenvolvimento em qualquer dos campos da experiência humana, é de
grande importância situar-se no contexto do desvalorizado, neste caso do individual,
para começar a integrar os opostos desequilibrados.
Esclarecemos que a nossa arrumação bibliográfica obedeceu ao critério de optar por uma
bibliografia selectiva e restrita aos textos que foram de facto utilizados e essenciais para
a realização deste trabalho e dos seus objectivos: questionar e problematizar o
relacionamento entre o indivíduo e o seu duplo.
Desta maneira, veremos nas seguintes páginas o que se deduz do tête à tête do
indivíduo com o seu duplo, e que evidentemente transcende a mera figuração física,
pondo o indivíduo de cara com a sua portugalidade, manifestando, em primeiro lugar,
como esta tem o devastador poder de esmagar o que há de subjectivo nele, impondo-se
como fatalidade.
Para os nossos propósitos, estruturou-se a presente dissertação em quatro capítulos.
O primeiro é uma aproximação geral aos estudos e teorias sobre o duplo na literatura. O
objectivo deste capítulo é delimitar uma definição geral sobre o motivo e as suas
problemáticas relacionadas e ilustradas com exemplos clássicos que vão desde as suas
primeiras aparições até ao Romantismo, altura em que o duplo como Doppelgänger
6
desenvolveu a suas cotas mais altas. Também se faz uma aproximação ao motivo desde a
perspectiva da sombra; por outras palavras, como o desdobramento entre um lado bom e
outro mau da personalidade remarca o aspecto inconsciente da psique e o
desconhecimento do próprio sujeito das suas profundezas interiores. Daí aproximamo-
nos do seu aspecto sinistro, pois é do desconhecimento e do estranhamento da
complexidade subjectiva, do inconsciente, que se desprende a qualidade sinistra e
misteriosa com que se reveste a figura do duplo e a sua significação como emissário da
morte. Finalmente, e a partir da infinidade de formas que adopta o duplo na Literatura,
faz-se uma breve tipologia e descrição do motivo de acordo com suas manifestações nas
obras representativas.
No segundo capítulo, estudou-se o duplo em ambas as obras, o seu significado e o
seu papel em cada uma delas a partir do seu relacionamento dicotómico com D.
Madalena e Sebastião. No caso de Frei Luís de Sousa, analisou-se a sua significação
enquanto duplo de D. João de Portugal e aprofundou-se a sua condição ou qualidade de
ominoso e sinistro para D. Madalena. Seguiu-se com a análise do duplo em Jornada de
África e o seu relacionamento com Sebastião na sua gradual despersonalização.
No terceiro capítulo estudou-se a importância do indivíduo e da subjectividade
como fonte e sustentáculo do colectivo. Analisou-se também o valor do Amor como
motor do movimento evolutivo do subjectivo. Seguidamente, fez-se uma análise
aplicando estes conceitos nas obras, ponderando o conflito representado na luta do
indivíduo contra o colectivo encarnado no duplo. Em Frei Luís de Sousa, o subjectivo
projectou-se em D. Madalena, que se debate entre o amor e a imposição do destino com
o regresso de D. João/D.Sebastião. Mas adiante, em Jornada de África, estuda-se o papel
do amor na problematica existencial do alferes Sebastião e a fatalidade que o contorna
através do seu duplo.
No último e quarto capítulo revisa-se o conceito de ritual baseado nos estudos do
historiador das religões, Mircea Eliade, para aplicá-lo à estrutura espiráldica ritualista de
7
Jornada de Africa, a mesma que segue a estrutura dos rituais primordias, cuja finalidade
é a restauração do mito originário num eterno retorno. Estuda-se também como a
estrutura ritual de Jornada de Africa que não só não põe término a cinco séculos de
espera sebástica, como também a reactualiza na sua re-presentação. Depois, analisa-se o
conceito de destino como fatalidade e as suas implicações com o motivo do duplo e com
o duplo como D. Sebastião.
Recapitulando, diremos soamente que a existência do duplo alerta-nos para uma
problemática que atinge a individualidade. Este situa a problemática a tratar, o conflito,
no interior do indivíduo. Sublinha que o desdobramento vem do desconhecimento da
própria natureza, que, cindida, exterioriza-se, salientando a existência de uma fraqueza
na estrutura individual e subjectiva. Assim, em termos gerais, este trabalho é um estudo
dialéctico de dois princípios contrários: colectividade e indivíduo, e da forma como estes
interagem e libram a suas lutas de contrários.
8
1. A QUESTÃO DO DUPLO. HISTÓRIA E
ESTUDO
O tema do duplo como oposição de contrários faz parte da Literatura do
Ocidente. Reveste diferentes aspectos e modalidades, cada um profuso em ramificações e
variedades, mas, em termos gerais, estes reflectem e abrangem a problemática
relacionada com a luta de contrários e a unidade implícita neles. O duplo é polaridade,
alteridade e dualidade. Pressupõe a divisão e a unidade, a luz e a sombra, a noite e o dia,
o esquerdo e o direito, o masculino e o feminino. Evidencia, na existência de um
princípio, o seu oposto, sublinhando assim a qualidade simétrica do universo.
Citando Denis de Rougemont, o filólogo espanhol Juan Bargalló escreve:
dicha oposición de contrarios constituye un supuesto básico en la doctrina de los más antiguos pensadores de Occidente, como Heráclito y Platón, está latente en el mito de Edipo, se manifiesta, bajo las formas más diversas, en las páginas de la literatura de todos los tiempos, y determina uno de los capítulos destacados de la crítica moderna (…). El desdoblamiento quizás no suponga más que una metáfora de esa antítesis o de esa oposición de contrarios, cada uno de los cuales encuentra en el otro su propio complemento; de lo que resultaría que el desdoblamiento (la aparición del Otro) no sería
9
más que el reconocimiento de la propia indigencia, del vacío que experimenta el ser en el fondo de si mismo y de la búsqueda del Otro para intentar llenarlo.2
O duplo, em primeiro plano, reflecte a questão da unidade cindida; cisão que se
pode expressar como dissociação, harmonia, conflito, ou evidenciar a existência de
realidades alternas. Assim, o duplo tem-se manifestado na história da cultura e na
mitologia como os irmãos gémeos. Estes fazem parte de todas as mitologias do mundo,
com maior ou menor importância, simbolizando essencialmente “o estado de
ambivalência do universo mítico”3, as forças antagónicas e duais de tudo o que se
manifesta:
Quaisquer que sejam as formas sob as quais eles são imaginados: perfeitamente simétricos, ou um obscuro e o outro luminoso, um voltado para o céu e o outro para terra, um negro e o outro branco, vermelho ou azul, um com cabeça de touro e o outro com cabeça de escorpião, exprimem, ao mesmo tempo, uma intervenção do além e a dualidade de todo ser ou o dualismo das suas tendências, espirituais e materiais, diurnas e nocturnas. É o dia e a noite, os aspectos celeste e terrestre do cosmos e do homem. 4
As diferenças ou semelhanças dos gémeos representam de maneira simbólica o
estado em que as forças antagónicas se relacionam. Por isso, se por uma parte estas são
espelho da dualidade, podem paradoxalmente também ser exemplificadoras do estado de
equílibrio originário destas forças. É assim quando os gémeos são completamente
idênticos, simbolizando então o equilibro dos contrários, a harmonia implícita na
contradição, a superação da tensão dos opostos: “não exprimem então senão a unidade de
uma dualidade equilibrada. Simbolizam a harmonia interior obtida pela redução do
múltiplo à unidade.”5
O Homem vive imerso na dualidade: noite e dia, calor e frio, húmido e seco, acção
e reacção, nascimento e morte, etc. Este antagonismo, que está representado no mundo
natural, faz parte da natureza intrínseca humana. Assim, na religião, o ser humano está
2 Juan Bargalló Carraté, “Hacia una tipología del doble: el doble por fusión, por fisión y por metamorfosis”, in Identidad y Alteridad: Aproximación al tema del doble, Sevilla, Ediciones Alfar, 1994, p. 11. 3 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, Dicionário dos símbolos, Lisboa, Teorema, 1982, p. 349. 4 Jean Chevalier, Ibidem. 5 Ibidem.
10
entre a virtude e o pecado, no direito, entre a justiça e a injustiça, na economia, entre a
pobreza e a riqueza, na política, entre a paz e a guerra, e entre Eros e Tanatos na
psicanálise:
Dualitiy was to take part both in the Freudian and in the Russian revolutions: to the second of these it brought the dialectic of Hegel, with its progressive leaps and interplay of opposities, and it also brought the quasi-religious duo of exploiters and exploited, ‘them’ and ‘us’. Marriage came to be conceived- by Yeats, for instance, and D.H. Lawrence- as a union of complementary opposities, and so did many other arrangements.6
Este conflito humano veio a ser cristalizado e elaborado na literatura, entre outras
formas, com o duplo. Nela, a sua aparição e uso é variável e não remete para uma única
forma, pois o duplo pode manifestar-se ora como gémeos, máscara ou disfarce - usando
uma, escondemo-nos dos outros e ficamos dois, duas caras numa mesma pessoa: Desde
ese momento, yo soy dos (Yo y también el Otro) - , ora como espelho, reflexo, sombra,
retrato, boneco, ou, inclusivamente, como animal.
No que respeita ao nível narrativo, o duplo circunscreve-se: “a unas secuencias
narrativas concretas: el encuentro entre original y doble, la usurpación de personalidad
en los ámbitos público y privado, la circularidad y la repetición, la duda sobre la própria
identidad, o el intento de aniquilar al rival.”7 Pérez Cervantes resume oito:
confusión de personalidades por similitud de apariencia física, identificación por familia y linaje, reproducción de una imagen, fragmentación metafísica de la personalidad, oposición de personalidades (doble complementario), doble rival, persecución producto del miedo a conocerse y el doble como emisario de la muerte o la locura.8
Os nomes atribuídos ao duplo também são variáveis e vão desde sósia - retirado do
Anfitrião de Plauto-, alter ego, até outro ou segundo eu. Mas foi no Romantismo que o
motivo do duplo adquiriu um estatuto mais definido.9 Instaurado especificamente pelo
6 Karl Miller, Doubles, Miller, Karl, Doubles. Studies in literary history, Great Britain, Oxford University Press, 1985, p. viii. 7 Rebeca Martín López, ob. cit., p. 15. 8 Abel Pérez Cervantes, “Las estrategias narrativas del doble literario en “Continuidad de los parques” de Julio Cortazar in: Escritos, Revista del Centro de Ciencias del Lenguaje, número 30, julio-diciembre de 2004, p. 179. www.escritos.buap.mx/escri30/abelperez.pdf (consultado Março de 2008). 9 “Desde el romanticismo alemán el motivo asumirá una entidad eminentemente subjetiva (…) se concentrará en la contemplación del doble desde y por parte de un Yo protagonista, para el que tal
11
alemão Jean Paul, influenciado por sua vez pela filosofia de Fichte, usou o termo
doppelgänger pela primeira vez no seu romance Siebenkäs, onde define o termo duplos:
“Dobles se llaman aquellos que se ven a sí mismos”.10 No Romantismo o tema seduziu
autores como E. T. A. Hoffmann, Adelbert von Chamisso e Guy de Maupassant, entre
outros: “Sabe-se que fascinação horrificada exerceram as famosas personalidades duplas
no século passado.”11 Mas para além de se circunscrever a uma determinada época, o
duplo “reaparece de modo persistente en los textos literarios”12, abrindo um enorme
leque interdisciplinar para o seu estudo, dado que a profundidade a que alude, a
multiplicidade e complexidade das suas representações, o torna difícil de definir e
enquadrar numa única condição.
Para continuar, faremos uma sucinta revisitação do duplo nas obras literárias mais
representantivas.
1.1. O duplo na narrativa. Breve revisão
Uma das suas primeiras manifestações literárias aparece na peça cómica Anfitrião,
de Plauto e, segundo alguns críticos, desde antes, na epopeia de Gilgamesh (III a.C.). 13
Em Anfitrião Júpiter toma a aparência deste para desfrutar com a sua esposa Alcmena,
enquanto Anfitrião luta na batalha contra os Teléboas. O engano e a usurpação é o jogo
do duplo, ajudado por Mercúrio, que também se disfarça de Sósias, o criado de Anfitrião,
criando assim confusões que desembocam no nascimento dos gémeos, filhos de Acmena,
contemplación constituirá un conflicto. A partir de entonces el encuentro con el doble supondrá siempre un encuentro con el destino”. Victor Herrera, La sombra en el espejo, México, Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1997, p. 33. 10 Elisabeth Frenzel, Diccionario de motivos de la literatura universal, Madrid, Editorial Gredos, 1980, p. 101. 11 Louis Vax, A arte e a literatura fantásticas, Lisboa, Editora Arcádia, 1972, p. 39. 12 Louis Vax, ob. cit., p. 24. 13 Ver Rebeca Martín López, op. cit., p. 17.
12
Júpiter e Anfitrião. O mais velho chama-se Héracles, filho de Júpiter, e Ificles, filho de
Anfitrião. 14
Plauto, no ano 206 a. de C., também desenvolveu a problemática do engano,
confusão e suplantação de identidades de dois irmãos gémeos na peça cómica Os dois
Menecmos.15 O argumento, segundo Elizabeth Frenzel16, teve grande influência na
Renascença, em Espanha, com Lope de Veja, no Palacio Confuso, mas especialmente na
Comédia dos Erros17, de William Shakespeare, e Noite de Reis 18 do mesmo autor, onde
à substituição de irmãos tratada por Plauto acrescenta-se a inovação de estes serem de
diferente sexo, mas psiquicamente idênticos.
No drama espanhol, usou-se o duplo como suplantador e oposto de um indivíduo
poderoso, mas cruel e dissoluto. Assim, em La ventura en el nombre19 de Tirso de
Molina, um duplo, que governa com justiça, substitui um tirano assassinado. Em El rey
por semejanza, de J. Grajales, um rei colérico é substituído pelo seu duplo, um
camponês, que governa com equidade.20
O motivo do duplo, em combinação com o motivo do pretendente ao trono, aparece no
século XVII em torno de um falso rei Sebastião na comédia de Jerónimo de Cuéllar, El
pastelero de Madrigal 21, e em José Zorrilla, no século XIX, no drama Traidor,
inconfeso y mártir22. O argumento é o seguinte: depois do desaparecimento do Rei
Sebastião e não conformado com o herdeiro Felipe II de Espanha, Frei Miguel de los
Santos, num passeio por Madrigal, encontra um pasteleiro, Gabriel de Espinosa, idêntico
ao desaparecido rei. Convence-o a substituir D. Sebastião e evitar que Felipe II fique
com o trono. No final, o plano é descoberto e o pasteleiro morto pelos espanhóis.
14 Plauto, Anfitrião, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1978. 15 Plauto, Os dois Menecmos, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica, 1989, p.116. 16 Ver Elizabeth Frenzel, ob. cit., p. 97. 17 William Shakespeare, A comédia dos erros, Lisboa, Contexto, 1989, pp. 32. 18 Ibidem, Noite de Reis, Lisboa, Contexto, 1990, pp. 32. 19 Tirso de Molina, “La ventura en el nombre” in: Obras Dramáticas Completas, volume 3, Madrid, Aguilar, 1968, pp. 953- 1001. 20 Cfr. Elizabeth Frenzel, ob.cit. p. 98. 21 Citado por Eliazbeth Frenzel, ob. cit., p. 99. 22 José Zorrilla, Don Juan Tenorio, Traidor, inconfeso y mártir, Barcelona, RBA Editores, 1993, pp. 144-262.
13
No Romantismo, o motivo do duplo, com o conceito de desdobramento, adquiriu
notas muito mais sombrias. Os finais das obras já não são felizes, mas realçam o
elemento sobrenatural e misterioso e aparece o mágico, inquietante e assustador.
Exemplo paradigmático do sombrio e assustador encontra-se em Edgar Allan Poe, com
obras como Ligeia23, onde a esposa morta possui a sua substituta, que também se
encontra à beira da morte; O gato preto24, no qual o protagonista projecta a sua natureza
maligna num gato, o qual acaba por matar para depois re-aparecer num segundo gato
preto, extensão do primeiro ou reencarnação deste; Em As montanhas escabrosas 25, o
protagonista é afectado pelas visões da morte de um homem afastado no tempo, que, por
influxos misteriosos, reaparece nos traços e na fisionomia do protagonista, que
posteriormente sofre a mesma morte.
Em Ernest Theodor Amadeus Hoffmann, génio musical e literário, as
personalidades duplas abundam. O duplo “llegó a ser determinante de la estructura. Lo
implantó en numerosas obras y creó nuevas variantes de gran pluralidad de formas,
desarrollando psicológicamente el principio romántico de la polaridad.”26 Aparece numa
infinidade de formas em contos como La señorita Scuderi27, La princesa Brambilla28, El
caballero Gluck29, Ignaz Denner30, El perro de Braganza31, El Magnetizador32, Los
autómatas33, El hombre de arena34 - que inspirou o famoso ensaio Lo Siniestro35 de
Freud - A máscara da morte36, onde o duplo aparece na hora fatal, e nos romances Las
opiniones del gato Murr37, que “se puede leer como otra historia del doble. O si se
23 E. A. Poe, “Ligeia” in: Histórias de Mistério e Imaginação, Lisboa, Editorial Verbo, s/a, pp. 83-101. 24 E. A. Poe, “O gato preto” in: Histórias Completas de Edgar Poe, segundo volume, Lisboa, Editora Arcádia, 1972, pp. 281-289. 25 E.A. Poe, “As montanhas escabrosas”, in Histórias escolhidas por um psicopata. Uma antologia psicótica de Edgar Allan Poe, Parede, Fio da Navalha Editora, 2004, pp. 20-37. 26 Eliazbeth Frenzel, ob. cit., p. 102. 27 E.T.A. Hoffmann, La señorita Scuderi, Barcelona, Casals, 1983. 28 E.T.A. Hoffmann, La princesa Brambilla, Madrid, Mauricio d'Ors editor, 1992. 29 Ibidem, “EL caballero Gluck in: Cuentos 2, Madrid, Alianza, 2002, pp. 18-30. 30 Ibidem, “Ignaz Denner”, Ibidem, pp. 47-62. 31 Ibidem, “El perro de Braganza” , Ibidem, pp. 32-45. 32 Ibidem, O magnetizador, Sintra, Colares Editora, s/n. 33 Ibidem, Los autómatas, España, José J. de Olañeta Editor, 1981. 34 Ibidem, “O homem da areia” in: Contos Nocturnos, Lisboa, Guimarães Editores, 2005, pp. 9-54. 35 S. Freud, “Lo siniestro” in: Obras Completas, Tomo VII, Madrid, Editorial Biblioteca Nueva, 1974, pp. 2483-2505. 36 E.T.A. Hoffmann, “A máscara da morte” in Contos fantásticos, S. Pedro de Estoril, Edições Atena, 1998, 7-58. 37Ibidem, Las opiniones del gato Murr, Madrid, Cátedra, 1997, pp. 528.
14
quiere, como el desdoblamiento simbólico del proprio Hoffmann entre el gato Murr (…)
y el artista Johannes Kreisler…”38 e Los elíxires del diablo.39 Neste último, o outro Eu
aparece evidenciando a disjuntiva e a luta de opostos, num permanente jogo de duplos
misturados misteriosamente entre passado e presente, numa labiríntica e fatal herança
familiar. Medardo, o protagonista, tem o seu duplo contraposto em Victorino, que tende
para a corrupção, o crime e o demoníaco, enquanto Medardo procura a absolução e o
amor puro.
O duplo no século XIX obedece à crença na polaridade de um Eu bom e outro
mau, e sua rivalidade e luta.40 No conto William Wilson,41 de Edgar Allan Poe, o duplo
age como um Eu bom que persegue o original, decadente e vicioso, até que é morto por
este. Em Os crimes da Rua Morgue42, o macaco, que se comporta como uma espécie de
duplo, representa o ser instintivo, indepente do guia da razão. Em O Estranho caso do
Dr. Jekyll e de Mister Hyde43, de Robert Louise Stevenson, Hyde realiza os crimes a que
resiste o civilizado Dr. Jekyll, até ganhar quase todo o controlo do Doutor. Em O retrato
de Dorian Grey44, de Oscar Wilde, o retrato carrega a evidência de toda a decadência,
degradação e vícios que a beleza angelical de Dorian encobre. Em O Horlá45, de Guy de
Maupassant, um segundo Eu de outro mundo vive, parasitariamente, atacando e
perseguindo o protagonista.
Os românticos e os seus duplos marcaram a escritores contemporâneos e
posteriores, que viram em Edgar Allan Poe, principalmente, um pai do sobrenatural e das
personalidades divididas. Como menciona Pérez Cervantes,
De él, declaradamente, Guy de Maupassant, Robert Louis Stevenson, Fiodor Dostoyevsky, Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares y Julio Cortázar tuvieron influencia directa. Y,
38Natalie Reber apud Ramón Cotarelo García, La interpretación literaria del conflicto fundamental del ser humano. Sobre la figura del doble en la literatura in: Revista El Catoblepas, número 34, (diciembre 2004), http://www.nodulo.org/ec/2004/n034p18.htm (consultado Fevereiro 2008). 39 E.T.A. Hoffmann, Los elíxires del diablo, Madrid, Valdemar, 2003. 40 Ver Elizabeth Frenzel, ob. cit. p. 104. 41 E.A. Poe, “William Willson”, in Contos fantásticos, Lisboa, Guimarães Editores, 2002, pp. 42 E.A. Poe, Histórias completas de Edgar Poe, ob. cit., pp 11-43. 43 R. L. Stevenson, O Estranho caso do Dr. Jekyll e de Mister Hyde, Lisboa, Relógio D’Água, s/d. 44 Oscar Wilde, O retrato de Dorian Grey, Lisboa, Relógio D’Água, 1998, pp. 17-276. 45 Guy De Maupassant, O Horlá, Lisboa, Difel, 1987, pp. 15-58.
15
con ellos, Gabriel García Márquez, Carlos Fuentes, Augusto Monterroso, Juan José Arreola…46
O tema do duplo, especialmente aquele produzido desde o Romantismo, é
largamente estudado na literatura psicanalítica a partir de distintas interpretações. Este
interesse deve-se de certo modo à indeterminação, à ambigüidade, ao misterioso, ao lado
mágico da existência que no Romantismo é exaltado, - anunciando já a descoberta do
inconsciente e os estudos sobre as profundezas da psique que trariam definitivamente à
luz a multiplicidade e ambiguidade da alma humana47- e que se personificavam no
misterioso outro eu que habita em nós.48 Acrescenta-se a isto a associação entre duplo,
alucinação e doença mental, acentuada pelas personalidades de autores clássicos sobre
duplos: Hoffmann, Poe, Dostoievsky, Maupassant, conhecidos todos eles pela sua
amizade com o álcool. Sem ser competência deste trabalho dissertar sobre tais estudos,
remete-se apenas para as interpretações clássicas sobre o tema de Otto Rank, Melanie
Klein e J. Lacan que os trabalhos de T. E. Apter analisa.49 No entanto, como refere
Martín López, em toda “recapitulación suscitadas por el doble no puede faltar la
referencia al arquetipo de la sombra de Carl Gustav Jung y sus repercusiones en el
concepto tradicional de individuo.”50 Seguidamente faremos uma revisão sobre a sombra
jungiana e alguns tópicos associados ao duplo.
46 Abel Pérez Cervantes, ob. cit., pp. 179. 47 “Para dizermos as coisas em termos simples: depois das diversas evidenciações da ideia de inconsciente, tornou-se nos impossível continuarmos a acreditar ingenuamente que podíamos ser, como acreditava Descartes, perfeitamente transparentes para nós próprios. A célebre fórmula de Rimbaud, «Je est un autre», recebeu por parte da psicanálise, mas também do conjunto da filosofia contemporânea, de Nietzsche a Heidegger, um apoio, ou uma confirmação conceptual de uma envergadura sem precedentes. O indivíduo fechado sobre si e senhor de si próprio teve que dar lugar ao sujeito «quebrado», aberto à determinação infinita do inconsciente.” Luc Ferry, “Modernidade e sujeito” in: M.M. Carrilho (Direcção), Dicionário do pensamento Contemporâneo, Lisboa, Dom Quixote, 1991, p. 235. 48 “The double stands at the start of that cultivation of uncertanity by which the literature of the modern world has come to be distinguished…” K, Miller, ob. cit., p. viii. 49 Ver Apter, T.E. Apter, Fantasy literature. An approach to reality, Hong Kong, The Macmillan Press LTD, 1982, pp. 49-53 e S. Maris Poggian, El tema del doble en el cine, como manifestación del imaginario audiovisual en el sujeto moderno, Tese de Doutoramento, Barcelona, Universitat Autònoma de Barcelona, 2002. pp. 31-36. www.tesisenxarxa.net/TESIS_UAB/AVAILABLE/TDX-1127102-162115//smp1de2.pdf (consultada Janeiro 2008). 50 R. Martín López, ob. cit.,, p. 31.
16
1.2. A Sombra junguiana
Como vimos, o Romantismo interessou-se pelo duplo como personificação do
aspecto escuro e misterioso do ser humano. A esta personificação, o psicanalista suíço
Carl Gustav Jung, dentro do seu esquema de personalidade humana, chamou Sombra.
Jung use this term two related but nonetheless different phenomena: the entirety of the unconscious: i.e. everything that we fail to recognize about ourselves; and (2) a specific personification of what a person “has no wish to be” (CW I6, para. 470), “the sum of all those unpleasant qualities” a person likes to hide: CW 7, p. 65n). The shadow is thus a personification of an aspect of one’s personality as it really is. Because the ego tends to repress such aspects of its personality, the shadow often manifests itself compulsively.51
A Sombra entra numa relação fundamental com a interpretação do duplo
enquanto bifurcação entre uma entidade boa, adaptada e socialmente aceite, e uma outra
demoníaca e malvada, como se mostra no caso paradigmático de Dr. Jekyll e Sr. Hyde.
É importante esclarecer que, embora na sua concepção do arquétipo de Sombra Jung não
se referisse especificamente ao duplo, as suas ideias sobre esta reflectem e iluminam o
significado daquele.
Jung define-a como uma instância ou personificação onírica ou projectada em
outros, na qual se depositam os aspectos negados ou percebidos como negativos da
própria personalidade,
aquela personalidade oculta, recalcada, freqüentemente inferior e carregada de culpas, cujas ramificações se estendem até o reino de nossos ancestrais animalescos, englobando, deste modo, todo o aspecto histórico do inconsciente.52
Trata-se de uma personificação da esfera do inconsciente, estruturada com as
qualidades negativas inerentes à condição humana. Mas esta faceta é dinâmica e proclive
de integração à esfera da consciência: “representa cualidades y atributos desconocidos o
poco conocidos del ego: aspectos que, en su mayoría, pertenecen a la esfera personal y
51 Polly Young-Eisendrath e Terence Dawson (Editores), The Cambridge Companion to Jung, United Kingdom, Cambridge Univesity Press, 1997, pp. 260-261. 52 C. G. Jung, Aion. Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo, Petrópolis, Vozes, 1982, p. 254.
17
que también podrían ser conscientes.”53 A sua integração na esfera consciente é
indispensável, pois de outra maneira acarretaria conflitos morais e psicológicos.
A descoberta da sombra supõe um processo de auto-avaliação e auto-
conhecimento que equivale a uma autoscopia, a um ver-se a si mesmo como se fosse um
outro, pois as características encontradas na sombra podem ser percebidas como
absolutamente estranhas à personalidade, portanto, projectada ou personificada em
outros, mas com um estranho e sugestivo sentimento de identidade:
Cuando un individuo hace un intento para ver su sombra, se da cuenta (y a veces se avergüenza) de cualidades e impulsos que niega en sí mismo, pero que puede ver claramente en otras personas – cosas tales como egotismo, pereza mental y sensiblería; fantasías, planes e intrigas irreales; negligencia y cobardía; apetito desordenado de dinero y posesiones…54
A realização ou assunção da sombra é parte de um processo global ou total da
personalidade a que Jung chamou individuação ou realização de si-mesmo. Este é um
processo que aprofunda progressivamente, no conhecimento da individualidade, o que
integra e unifica, na sua aceitação e consciencialização, as partes divididas ou cindidas
do ser.
the process of individuation could be defined as life lived consciously – not as simple a matter as it sounds. Not only our rational minds, but habits of thought and action contribute to the general unconscious in which life can be lived. For Jung, to be unconscious was perhaps the greatest evil, and the meant “unconscious” inn a specific sense: unconscious of our own unconscious.55
A sombra, neste sentido, seria o aspecto inconsciente da própria individualidade que fica
de parte, na margem da concepção que temos de nós próprios, mas que, no entanto, influi
negativamente na vida diária e quotidiana, evidenciando uma dissociação do sujeito. Este
obscuro outro eu suporia a manifestação de uma ruptura íntima que intervém nos planos
conscientes, criando situações avessas aos planos conscientes, o que se interpõe com as
nossas boas intenções:
53 C. G. Jung, El hombre y sus símbolos, Madrid, Aguilar, 1979, p.168. 54Ibidem. 55 Polly Young-Eisendrath e Terence Dawson, ob. cit., p. 97.
18
También se muestra con frecuencia en un acto impulsivo o impensado. Antes de que se tenga tiempo de pensarlo, el comentario avieso estalla, surge el plan, se realiza la decisión errónea, y nos enfrentamos con resultados que jamás pretendimos o deseamos conscientemente.56
A sombra reflecte a contradição interior do indivíduo, mas esta ambivalência, da mesma
maneira que o duplo, pode derivar numa ajuda ou na perdição. A aparição do duplo,
assim como no reconhecimento da sombra, como explica Martín López,
puede considerarse tanto una revelación que ha de interpretarse y explotarse en beneficio propio, como un síntoma de la disolución del yo. El conflicto surgiría, pues, cuando en lugar de conciliación entre el individuo y su sombra se produce una disociación: el doble supondría la manifestación de esta rotura íntima, convirtiéndose en una terrible amenaza.57
A concepção de sombra de Jung, baseada na oposição de princípios, em que, por um
lado, se encontra o lado civilizado personificado na consciência, a persona ou máscara
que se mostra em sociedade, e, por outro lado, a sombra, o aspecto animalesco e
inferior rejeitado do sujeito, exemplifica a problemática do duplo na literatura do século
XIX. O duplo, como a sombra, que fundamentam a paradigmática divisão e luta entre o
bem e o mal58, representam também um dos conflitos fundamentais do ser humano.
A presença tanto da sombra como do duplo remete para a pergunta ontológica sobre a
própria identidade e a sua configuração dentro do esquema social. A sua existência
evidencia o conflito do indivíduo com a sociedade e “su relación problemática con la
realidad en que está inmerso.”59 Assim o exemplificam as célebres obras O estranho
caso do Dr. Jekyll e Mr. Hyde, O retrato de Dorian Gray, o Sósia, William Willson, Los
elíxires del diablo, entre outras.
Juntamente com o conceito de sombra jungiana, o duplo representa o vazio
personificado da nossa parte desconhecida. E usamos a palavra vazio como prova da
imensidão que o desconhecimento pode representar. Um vazio aterrador de algo que
56 C.G, Jung, El Hombre y sus Símbolos, ob. cit., p.169. 57 Rebeca Martín López, ob. cit., p. 34. 58 “The most common notion of the divided self, or of the double self, is the division between the good and the bad self.” T. E. Apter, ob. cit., , p. 48. 59 R. Martín López, ob. cit., p.18.
19
existe, mas não existe, é uma escuridão completa de algo que é o próprio indivíduo, mas
que fica fora da consciência, dos limites do eu. Este vazio do desconhecimento de si
próprio, representado no duplo, produz medo, terror, a percepção de algo sinistro,
ominoso, aterrador. Este medo, como menciona Paul Coates, é medo do auto-
conhecimento: “Fear of the double is fear of self-knowledge”.60 Mas para além desse
medo, pode dizer-se que na manifestação do duplo existe a necessidade de se observar a
si próprio, de enfrentar-se a si próprio enquanto ser com toda sua complexidade.
1.3. O sinistro e o duplo
Uma das características do duplo é a sua condição de personagem sinistra,
terrível e ameaçadora. A duplicação de algo tão familiar como o próprio corpo - que
enquanto sendo um é unívoco, próximo e familiar - num outro ser independente, e cujo
comportamento sai completamente do conhecido e do controlo, ao grau de contradizer,
confrontar e até desprezar o primeiro, transforma-se em sinistro. Este processo de
desfamiliarização está “vinculado con la revelación de lo que, hasta la aparición del
intruso, había permanecido oculto, hurtado a la memória.”61 Na revelação do duplo
concretiza-se o lado reprimido e obscuro do sujeito, sendo portanto este portador de
impressões supostamente esquecidas, desagradáveis e temidas.
No seu estudo Lo Siniestro, Freud refere que este sentimento parte de uma
duplicidade, de algo que num determinado tempo foi consciente, perfeitamente
quotidiano e próximo, e tornou-se algo incompreensível, bizarro, estranho. A partir da
análise da palavra alemã Heimlich, o familiar, o pertencente à casa, doméstico, íntimo,
até chegar a seu antónimo, o Unheimlich, o sinistro, escondido, oculto e perigoso, traz-se
à luz, no percurso analítico que liga ambos os vocábulos, a própria definição de sinistro,
de Unheimlich: algo que foi conhecido e se tornou desconhecido. 62
60 Paul Coates apud R. Martín López, ob. cit., p. 37. 61 R. Martín López, ob. cit., p.31. 62 Ver Sigmund Freud, ob. cit., pp. 2483-2488.
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Citando H. Heine, Freud conclui, aplicando a sua teoria do sinistro ao porquê do
carácter extraordinariamente sinistro do duplo:
El carácter siniestro sólo puede obedecer a que el «doble» es una formación perteneciente a las épocas psíquicas primitivas y superadas, en las cuales sin duda tenía un sentido menos hostil. El «doble» se ha transformado en un espantajo, así como los dioses se tornan demonios una vez caídas sus religiones.63
O duplo, nesta linha de conta, está impregnado da vivência do sinistro como
resultado da repressão de aspectos negativos da personalidade, da culpa “do reprimido,
que é cindido no espaço exterior como um eu autoctone, atormentando com a su
presença o sujeito.”64 Como a sombra junguiana, o duplo é a corporização da carga
psicológica negativa, sempre pressentida e com o dedo apontando na direcção do
indivíduo.
O carácter de fatalidade que vem com o duplo, portanto, deve-se a que aquilo que
este representa é o rosto oculto do sujeito, é seu iniludível outro eu, que só com ele tem
a ver. Assim, quanto maior a tensão entre o indivíduo e a sua sombra, maior o poder e a
realidade do duplo, menos integrado na consciência e mais tendente a se manifestar: “En
el desdoblamiento se observa una doble cara, una desvelada que cubre y oculta otra.”65 É
aterrador porque tanto flutua no paradoxo do desconhecido como do secretamente
familiar. O filosofo Eugenio Trías, no ensaio onde coloca a hipótese de que “lo
siniestro constituye condición y límite de lo bello”66 escreve o seguinte:
En lo bello reconocemos acaso un rostro familiar, recognoscible, acorde a nuestra limitación y estatura, un ser u objeto que podemos reconocer, que pertenece a nuestro entorno hogareño y domestico; nada, pues, que exceda o extralimite nuestro horizonte. Pero de pronto eso tan familiar, tan armónico respecto a nuestro propio límite, se muestra revelador y portador de misterios y secretos que hemos olvidado por represión, sin ser en absoluto ajenos a las fantasías primeras urdidas por nuestro deseo; deseo bañado de temores primordiales.67
63 Ibidem, p. 2495. 64 Román Gubern, Máscaras da ficção, Lisboa, Fim de Século, 2005, p.22. 65 S. Maris Poggian, ob. cit., p. 124. 66 E. Trías, Lo bello y lo siniestro, Barcelona, Ariel, 1992, p. 17. 67 Ibidem, p. 41.
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Assim, o duplo é definido como aquele outro que habita em nós, mas que não
podemos dizer ser nós próprios. É aquela parte censurada e reprimida que vive escondida
dentro do indivíduo e que se manifesta sub-repticiamente, causando a aniquilação do
indivíduo: “El doble materializa el lado oscuro del ser humano, los aspectos sombríos
que el individuo destierra (o pretende desterrar) al olvido en su vida cotidiana.”68 Assim
acontece em William Wilson, Dr. Jekyll e Mister Hyde, O sósia, O retrato de Dorian
Gray. Daí desprende-se a sua condição de emissário da morte.
1.4. O duplo como emissário da morte
A ideia de que ver o duplo é a anunciação da própria morte regista-se nas mais
profundas raízes populares,69 como se ver a outra parte de si fosse um interdito, um ver
para além que leva à loucura e à morte. A vida humana está baseada na dialéctica, na
oposição, no branco que não pode ser preto, no bom que não pode ser mau. Mas
encontrar o duplo seria como uma espécie de coniunctio oppossitorum (conjunção de
opostos), um paradoxo incomparável com a vida humana, uma visão divina que alude ao
cessar das contradições, união dos contrários que significa a reunião dos pares de
opostos. Ver o duplo é a anunciação desta coniunctio que só acontece com a própria
morte, seja psíquica (a loucura) ou física. 70
Para Freud, o duplo, ao princípio, pode representar a exorcização do medo da
morte. Seguindo as origens deste fenómeno nos estudos de Otto Rank, nos quais se
apresenta a ideia de que originalmente o duplo era a concepção da alma imortal, como
uma medida reforçadora, o duplo expressaria o medo à morte na duplicação da qualidade
imortal:
Pero también echa viva luz sobre la sorprendente evolución de este tema. En efecto, el «doble» fue primitivamente una medida de seguridad contra la destrucción del yo, un «enérgico mentis a la omnipotencia de la muerte»(O. Rank), y probablemente haya sido el alma «inmortal» el primer «doble» de nuestro cuerpo. La creación de semejante
68 R. Martín López, ob. cit., p. 32. 69 Louis Vax, ob. cit., Lisboa, Editora Arcádia, 1972, p. 40. 70 Ver Juan Bargalló, ob. cit.
22
desdoblamiento, destinado a conjurar la aniquilación, tiene su parangón en un modismo expresivo del lenguaje onírico, consistente en representar la castración por la duplicación o multiplicación del símbolo genital. En la cultura de los viejos egipcios esa tendencia compele a los artistas a modelar la imagen del muerto con una sustancia duradera. Por esta representaciones surgieron en el terreno de la egofilia ilimitada, del narcisismo primitivo que domina el alma del niño tanto como la del hombre primitivo, y sólo al superarse esta fase se modifica el signo algebraico del «doble»: de un asegurador de la supervivencia se convierte en un siniestro mensajero de la muerte.71
Por outro lado, o duplo, ao simbolizar as oposições internas e o seu combate
implícito, evidencia, então, um significado sacrifical. Por outras palavras, uma das partes
da dualidade simbolizada no duplo representa uma força que deve ser ultrapassada, na
impossibilidade de as duas co-existirem. Assim, uma parte da dualidade deve ser
dominada ou abandonada. Em relação aos gémeos, o Dicionário dos símbolos explica:
Quando eles simbolizam, assim, as oposições internas do homem e o combate que ele tem de travar para ultrapassá-las, revestem-se de um significado sacrifical: a necessidade duma abnegação, da destruição ou da submissão, do abandono duma parte de si mesmo, para o triunfo do outro.72
Como a existência de um duplo equivale a uma antinomia, a um paradoxo, a uma
impossibilidade, a sua existência significaria um interdito não humano que só anuncia a
proximidade do transcendente, do limiar, portanto, da morte.
O duplo como resultado de um influxo sobrenatural,
concilia con la concepción dominante en la creencia popular de que la existencia del hombre en el sueño, en la imagen reflejada, en la sombra, incluso en el retrato significa una segunda existencia y que la imagen es una parte viva de la persona. Según una concepción germánica, poco antes de la muerte o en el momento de la muerte del hombre se desdobla un segundo Yo que se presenta al moribundo y le anuncia así el «desenlace». Esta primitiva representación, con fundamento mágico, de un desdoblamiento del Yo se ha conservado sobre todo en el mito de Narciso (…). Narciso se enamora de su imagen recogida por el agua, en principio sin saber que es una imagen reflejada, y luego se vuelve más prudente y al mismo tiempo más desgraciado, ya que su amor nunca hallará cumplimiento; la visiõn del doble conduce a la percepción mortal del Yo eternamente dividido y sin embargo único.73
71 S. Freud, ob. cit., pp. 2493-2494. 72 Jean Chevalier e Alain Gheerbrant , ob. cit., p. 349. 73 E. Frenzel, ob. cit., p. 100.
23
Esta supertição aparece tanto em El doble, Aurelia, Historia de uno de caballería
e na obra esencial do Romantismo Los años de aprendizaje del Wilhelm Meister, de
Goethe.74
1.5. Aproximações a uma tipologia do duplo
Não existe um consenso geral na classificação tipológica do duplo. Encontram-se
nos estudos literários diferentes aproximações feitas a partir de diferentes critérios de
análise. Mas uma única tipologia, ou uma tipologia rígida e rigorosamente delimitada
resulta contrária à problemática do duplo. Sendo este um tema que abrange, como se
citou anteriormente, “toda la estructura de Occidente como oposición de contrarios”, a
sua aparição manifesta-se de maneiras sempre diversas; assim, não existe um só duplo,
mas em geral, “tantos como usos literários puedan hacerse…”75 Por exemplo, um mesmo
tipo de duplo pode “presentar varias modificaciones, como de hecho ocurre según las
diversas culturas o los distintos momentos históricos en que aparece, así como a tenor de
las diferentes estructuras literarias en que se manifiesta.” 76 Assim mesmo, o
relacionamento entre ambas as entidades pode ir da semelhança absoluta até ao contraste
total. Pode variar inclusivamente da qualidade de onde ou em que acontece a duplicação,
podendo ser num quadro, como no caso de O retrato de Dorian Grey, ou numa barata,
no caso da Metamorfose77, de Kafka:
la relación entre ambas encarnaciones puede ir desde la semejanza total (lo que conlleva la posibilidad de substitución), como la obra de Dostoïevsky, hasta el contraste más perentorio, como en la novela de Stevenson; este contraste es más acentuado todavía, cuando una de las encarnaciones es una entidad no humana, como en el cuadro de El retrato de Dorian Grey.78
74 Ver R. Martín Piedra, ob. cit. A autora faz um detalhado analise sobre as obras citadas. 75 I. Velázquez Esquerra, “Aspectos textual y psicoanalítico del tema del doble en la Literatura. (I): Los desdoblamientos de M. Tournier”, in: Cuadernos de investigación filológica, Nº 8, 1982 , p. 49. 76 J. Bargalló, ob cit., p. 16. 77 F. Kafka, Metamorfose, Lisboa, Edição «Livros do Brasil», 1998. 78 J. Bargalló, ob. cit., p. 16.
24
Também um aspecto determinante representa a variedade em que as duas encarnações se
manifestam, podendo ser de maneira simultânea, num mesmo espaço e tempo, ou
sucessiva, como no caso do Orlando79, de Virgina Woolf, onde, sendo uma mesma
entidade encarnada em diferentes tempos, impossibilita a simultaneidade. 80
Neste subcapítulo estudaremos algumas aproximações feitas a uma tipologia do
duplo que esclarecem e mostram a profundidade e a problemática que este trabalho leva
consigo.
Juan Bargalló fez duas aproximações ao estudo do duplo.81 Uma envolve o
aspecto paradigmático e a segunda o aspecto sintagmático. Em relação ao aspecto
paradigmático escreve:
la relación entre ambas encarnaciones puede ir desde la semejanza total (lo que conlleva la posibilidad de substitución), como en la obra de Dostoïevski, hasta el contraste más perentorio, como en la novela de Stevenson; este contraste es más acentuado todavía, cuando una de las encarnaciones es una entidad no humana, como en el cuadro de El retrato de Dorian Grey.82
Assim, o duplo pode ser representado como una cópia idêntica ao original em
semelhança física, ou no contraste mais absoluto, como o encontrado entre o Dr. Jekyll,
exemplo de elegância e educação, em oposição ao aspecto horripilante do Sr. Hyde. Essa
diferença entre os duplos pode ir ainda mais longe, se este for representado como um
objecto não humano, como no caso de O retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde.
Desde o aspecto sintagmático, Bargalló encontra duas variedades. Na primeira, as
encarnações manifestam-se num mesmo tempo e num mesmo espaço. A outra
possibilidade é que a simultaneidade seja impossível, sendo que de uma encarnação
passe a outra, pois cada personificação exclui a outra.
Dentro destas possibilidades, acrescentando complexidade à classificação,
encontram-se os casos em que o desdobramento não apresenta estruturas que coincidam
com as antes ditas e sim estruturas intermédias.83
79 Virginia Woolf, Orlando – Uma biografia, Lisboa, Relógio D’Água, 1994. 80 Cf. J. Bargalló, ob. cit., p. 16. 81 Cf. Ibidem, pp. 13-17. 82 Ibidem, p. 16. 83 Ibidem, p. 17.
25
Bargalló cria outra classificação do duplo a partir de seu modo de construção. As
suas representações podem referir-se a um processo de fusão, de cissão ou de
metamorfose.
A fusão é indicada quando dois seres diferentes se fundem em um só, numa
identificação que pode ser gradual. Tal é o caso de William Wilson de Edgar Allan Poe.
Neste conto, dois indivíduos idênticos, mas separados, vão-se encontrando
sucessivamente ao longo do relato, até chegarem ao ponto em que o original ou narrador
dá-se conta de que “havia matado a melhor parte de si próprio.”84 O Sósia85 de
Dostoïevsky e outro conto de Poe, As montanhas escabrosas, seriam exemplos desta
classificação.
A cissão existe quando de um único indivíduo surge um outro. Tal é o caso de O
nariz de N. Gogol, romance onde um nariz se torna independente do major Kavaliov, e
como usa farda de Conselheiro de Estado, o major não pode levá-lo a julgamento por
causa das diferenças sociais entre ambos.
A metamorfose acontece quando o indivíduo se transforma, se metamorfoseia
num outro, como no caso emblemático da Metamorfose, de F. Kafka.
Uma segunda tipologia é apresentada por Maris Poggian. A autora cria uma
tipologia do duplo onde entram cinco classificações.86 A última refere-se ao duplo no
cinema, pelo que a excluímos da nossa exposição.
A primeira divisão é chamada “desdobramento”. Poggian define-a como
“cuando dos encarnaciones alternativas de un sólo y mismo individuo coexisten en un
sólo y mismo mundo de ficción.”87 O exemplo paradigmático é representado pelo
clássico romance O estranho caso do Dr. Jekyll e Mister Hyde. Aqui, as duas
encarnações, Hyde, desdobrado em Dr. Jekyll, coexistem no mesmo mundo de ficção,
mas não podem representar-se num mesmo espaço, por que a presença de uma anula a
outra.
84 E. A. Poe, “Willim Willson” in: Contos fantásticos, Lisboa, Guimarães Editores, 2002, pp. 85 F. Dostoievsky, “O Sósia” in: Obras Completas, v.1, Lisboa, Editora Arcádia, 1964. 86 Cf., S. Maris Poggian, ob. cit., pp. 117-120. 87 Ibidem, p.119.
26
A segunda classificação é chamada dos gémeos idênticos ou Doppelgänger,
fazendo alusão ao termo de Jean Paul. A particularidade aqui é dada pela similitude
física em identidades separadas, como a exposta no conto William Wilson, de Poe.
Orlando é a terceira classificação: “está basada en un solo y mismo individuo
(una sola y misma identidad) pero existe bajo una o dos formas en dos o más mundos
distintos.”88 Baseada no romance homónimo de Virgina Woolf, esta variante está
influída na teoria da reencarnação.
A quarta variante é a circunscrita ao Anfitrião de Plauto onde se alude ao
disfarce. Nesta tipologia existem duas identidades distintas, mas confundidas pelo
disfarce. Um exemplo é a Comédia dos Erros, de Shakespeare.89
Martín López, na sua brilhante e exaustiva tese doutoral, expõe quatro tipos de
duplo.90 A primeira e mais facilmente identificável é quando duas encarnações da mesma
personagem coexistem no mesmo espaço ficcional, fazendo possível a autoscopia, a
contemplação de si próprio. Esta descrição obedece à definição de Jean Paul do
doppelgänger.
Acrescenta mais três definições. Na primeira, o duplo existe num ou mais
mundos ficcionais que logo acabam fundindo-se, tal é o caso de As montanhas
escabrosas, de Poe. Na segunda variante, dois indivíduos com identidades distintas mas
com atributos essenciais iguais, numa espécie de identidade espiritual, coexistem numa
mesma dimensão. Um exemplo típico desta encontra-se no relacionamento entre
Medardo-Victorino no hermético romance Los elíxires del diablo, de Hoffmann. Na sua
última classificação, a autora descreve o caso em que o indivíduo contempla-se a si
mesmo morto. Esta tipologia afunda “sus raíces en el acervo legendario español”.91
Uma outra tipologia ou classificação é a apresentada por Jourde e Tortonese, que
Martín López cita. Nesta, os autores definem o duplo a partir de duas categorias segundo
a sua natureza subjectiva ou objectiva:
88 Ibidem, p. 119. 89 Ver E. Frenzel, ob cit., p. 98. 90 Cf. R. Martín López, ob cit., pp. 18-19. 91 Ibidem, p.19.
27
La tipología de Jourde y Tortonese, que distingue double subjectif de double objectif, resulta especialmente útil para describir las implicaciones narrativas del motivo en el texto literario. El doble subjetivo se manifiesta cuando el protagonista (y muy a menudo narrador) se enfrenta a su propio doble; es externo cuando adopta forma física (la autoscopia, los gemelos), e interno si se manifiesta psíquicamente (la personalidad múltiple, la posesión). Mientras el doble subjetivo externo se vincula con un rasgo distintivo muy concreto -la similitud física, la expresión autoscópica-, la construcción del doble subjetivo interno se funda en criterios excesivamente ambiguos, pues, como se verá, esa dimensión psicológica puede traducirse bien en un obvio desdoblamiento interno del personaje literario -pienso en “¿Un loco?” (1884), de Guy de Maupassant-, bien en un dudoso nexo del individuo con gatos negros -me refiero al famoso cuento de Poe-, o insectos gigantes - La metamorfosis, de Franz Kafka-.92
Como se constatou, existem várias e diversas aproximações na hora de clarificar o
motivo do duplo, desde classificações baseadas na similitude física, psicológica, na
representação objectiva ou subjectiva, na maneira em que acontece a duplicação, no
espaço ficcional em que esta acontece, no modo como o indivíduo e a duplicação se
relacionam, na forma como este aparece na narrativa, entre outras.
Neste capítulo só se tencionou fazer um resumo, sem pretender ser exaustivo e,
sim, geral, sobre o significado do duplo e uma aproximação ao seu estudo e
representação na Literatura. Vimos as diferentes maneiras em que este pode manifestar-
se e que estas vão depender da própria criatividade do autor, assim como do contexto
cultural, histórico e social em que a obra nasce. O duplo, de uma ou outra maneira, é um
leque de possibilidades onde se manifesta o eterno conflito da dualidade – podendo ser
desde a oposição entre o bem ou o mal, a consciência versus as forças regressivas
inconscientes, instinto-civilização, ou indivíduo e colectividade, como as forças
mitológicas e simbólicas de uma nação, que comprende ao modo como o duplo será
encarado nas obras a analisar neste trabalho. No capítulo seguinte abordaremos as
particularidades do duplo em Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett e Jornada de África
de Manuel Alegre e as maneira como este é representado.
92 Rebeca Martín López, ob. cit., p. 19.
28
2. O duplo em Frei Luís de Sousa e Jornada de África
As vezes, sinto a presença muito próxima do meu duplo, estranho a mim mesmo e que, no entanto, sou eu. Outras vezes, pelo contrário, sendo-me estranho, observo-me a partir do meu duplo. Reconheço no fundo de mim um abismo insondável, que, não deixando de me ser próprio, é o de cada um de nós.93
Edgar Morin
Se fazer uma definição literal, unívoca e conclusiva sobre o duplo na literatura
resulta difícil, pode-se, no entanto, circunscrevê-la numa espécie de campo semântico
onde gravite uma consciência de significado determinada. Assim, pode-se dizer que
El proteico concepto de doble gira en torno a las nociones de dualidad y binarismo, y se construye en función de una lucha entre principios, potencias o entidades opuestas y complementarias a la vez. Pero sobre todo, el doble literario se inscribe en la línea de interrogación acerca de la identidad y la unidad del individuo. Se configura así, como un mecanismo del lenguaje y la literatura para vehicular y darle una forma coherente a la disgregación de las nociones de indivíduo y de identidad. 94
O duplo é paradigma da vulnerabilidade da personalidade, da sua natureza heterogénea,
múltipla e da sua propensão para a dissociação. Representa o desconhecido que habita
em “nós” e, ao mesmo tempo, a angústia perante essa vida desagregada. A sua aparição
desafia a identidade do sujeito duplicado ou desdobrado, pelo que a sua mensagem 93 Edgar Morin, Os meus demónios, Portugal, Publicações Europa-América, 1995, p. 12. 94 R. Martín López, ob. cit., p. 17.
29
implícita vai dirigida como questionamento em torno da identidade. Ataca as bases do eu
que se reflecte, que se desdobra e se observa, e este, desafiado, trava uma luta
desesperada pela sua preservação.
Esta problemática típica do tema tem, porém, uma diferença, tanto em Frei Luís
de Sousa de Almeida Garrett como em Jornada de África de Manuel Alegre: a
personagem duplicada não resiste à duplicação; no máximo, em Jornada de África, ela
produz uma inquietação/sedução no alferes Sebastião, para depois ser desterrada por uma
fatal aceitação. A consciência, o eu das personagens, não se revolta, nem luta, mas
entrega-se ao destino que o duplo implica.
Comecemos a análise com Frei Luis de Sousa de Almeida Garrett. A peça relata
em síntese o seguinte: junto ao rei D. Sebastião, desaparecido em 1578 na Batalha de
Alcácer Quibir, desaparece o nobre D. João de Portugal, marido de Madalena de
Vilhena. Tendo esperado durante sete anos o seu retorno, esta finalmente casa com
Manuel de Sousa Coutinho. Durante vinte anos vive angustiada com a possibilidade de
que o primeiro marido estivesse ainda vivo, angústias alimentadas por Telmo Paes, o
escudeiro de D. João. A peça inicia-se após vinte anos, quando D. João de Portugal
retorna à procura da mulher. Este retorno significa o clímax que irrompe como desespero
e morte, dominando todas as personagens implicadas: Manuel de Sousa Coutinho e
Madalena tomam o hábito religioso e Maria de Noronha, filha do casal, morre aos pés
dos pais.
O retorno de D. João de Portugal é associado implicitamente ao de D. Sebastião;
e é desta associação, ponto fulcral da nossa análise, que se implica a temática do duplo.
D. João e D. Sebastião são identificados por afinidade e correspondência numa espécie
de unidade de significado duplicada: ambos representam o patriotismo e a nacionalidade
portuguesa, evidenciada no seus idênticos percursos vitais. Mas D. João é inconsciente
do jogo de imagens, relações e correspondências que o unem a D. Sebastião. A
problemática do duplo analisada no capítulo anterior não implica, nem questiona o
próprio D. João sobre si mesmo. Esta duplicação é vivida pelas outras personagens, D.
Madalena e Telmo, mas, sobretudo, pelo leitor/espectador, enquanto português. A
intertextualidade, as conotações culturais e a sombra pululante de D. Sebastião na tensão
30
e interrogação constante sobre a possibilidade de sobrevivência de D. João são
mensagens que o leitor/espectador recebe uma a uma ao longo da peça. Cada
personagem representa arquétipos no campo semântico identitário português. Não é em
vão que Frei Luis de Sousa, como já o estudou Eduardo Lourenço, é visionada como
uma obra sobre a problemática nacional e suas raízes.95
2.1 O duplo em Frei Luis de Sousa
O tema do duplo, ao fazer relação com a dualidade e a duplicidade, remete para
questão de que se este existe, se existem dois de um, então está implícito que há um que
foi primeiro e original, ou pelo menos, concreto. Em O estranho caso do Dr. Jekyll e o
Sr. Hyde, o Dr. Jekyll é o indivíduo original que logo se desdobra em o Sr Hyde. Em
William Willson, o narrador, o primeiro Willson, é duplicado em seu homónimo, o
William Wilson II, que aparece intercaladamente na sua vida para transtorná-la. O duplo
em ambas as obras aparece como figura fantástica que subverte o sentido de unidade do
primeiro. É assim também em O sósia de Dostoyevsky. A unidade de Goldyak vê-se
interrompida, transtornada com a irrupção repentina de Goldyak II.
Em Frei Luis de Sousa é a partir de D. João de Portugal que a figura de D.
Sebastião funciona como duplo.96 D. João é a presença que se invoca e em quem está
concentrada a obra explicitamente, e é quem, no final, se concretiza. Mas,
95 “Interpretou-se (à superficie) o Frei Luís de Sousa em termos de puro melodrama psicológico, de pura contextura romântica – o que é, naturalmente – mas o autêntico trágico que nele existe é de natureza histórico-política, ou, se se prefere, simbólico-patriótica.” Eduardo Lourenço, O labirinto da saudade. Psicanálise mítica do destino português, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1978, p. 86. 96 J. Cândido Martins diz a respeito desta identidade: “(Frei Luís de Sousa)... é uma peça assombrada, habitada por dois fantasmas – um quase fantasma (D. João de Portugal) e um outro fantasma mítico (D. Sebastião). O simbolismo alegórico que une os dois personagens está bem representado no nome do primeiro: o primeiro nome (D. João) remete-nos para alguns monarcas da História de Portugal; e no sobrenome (de Portugal) está cristalizado o próprio nome da Nação, num momento crucial da sua História.” J. Cândido De Oliveira Martins, “Para uma sistematização didáctica das leitura interpretativas do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett”, in Almeida Garrett, um romântico, volume II, Lisboa, Imprensa Nacional, 2003, pp. 126.
31
implicitamente, vem sempre acompanhada de D. Sebastião, cuja figura é desenhada na
sua identidade vital com D. João97. Existem em geral na obra três elementos que
permitem fazer esta identificação:
1. D. Sebastião aparece como duplo não pela paridade de nomes ou de aspecto,
mas, em primeiro lugar, pelo facto de ambos terem percorrido a mesma trajectória
patriota vital. Ambos lutaram na batalha de Alcácer Quibir e ambos, igualmente,
desapareceram nela. Assim, quando Madalena diz: “Depois que fiquei só, depois daquela
funesta jornada de África que me deixou viúva, órfã e sem ninguém…”, falando do
marido, também implica a imagem de D. Sebastião, que desapareceu nas mesmas areias,
na mesma jornada.
2. A indeterminação da morte, implícita igualmente na anterior citação. De
nenhum dos dois foram encontrados os corpos, o que origina esta duplicidade que os
confunde e que possibilita unificá-los. E se ambos desapareceram da mesma forma,
podem aparecer de igual maneira.
3. Finalmente, e não menos importante, se por um lado esta paridade na vida dos
dois os unifica, o facto de ambos representarem em imagem e símbolo o exemplo de ser
português, confunde-os como uma só entidade. Esta marca de ser português e da
portugalidade também está envolvida no percurso vital de ambos. Vida e pessoa em
ambos representam e simbolizam o ser português.
97 Para Maria Vieira o Romeiro é duplo do Desejado: “A comparência do Desejado, na figura do seu duplo – o Romeiro – traz o aniquilamento total, físico e espiritual àqueles que o esperavam. Poder-se-á objectar que o Romeiro é um falso Sebastião. Se assim fosse, o seu regresso não poderia alterar o destino colectivo no espaço e no tempo do seu surgimento. D. João é uma das figurações do Encoberto. E o rosto ressucitado, que se mostra ante o nosso terror e piedade, é o rosto morto de Portugal/Ninguém.” Maria de Lourdes Cidraes Vieira, O Frei Luís de Sousa- ou a segunda morte de D. Sebastião” in: Estudos Portugueses. Homenagem a António José Saraiva, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1990, p. 388-399. Nós diríamos que o Desejado é o duplo do Romeiro, dado que o desejado é uma presença subjacente à do Romeiro. O Desejado é o outro que metalinguisticamente está implícito como cenário em toda a peça. A sua substância é quase imaterial e a sua acção está determinada em função da de D. João. Embora, desde a análise ou perspectiva do Encoberto, D. João seja uma “figuração” sua, desde a perspectiva do duplo na peça de Almeida Garrett, é D. Sebastião quem emana da proximidade de D. João. De qualquer maneira, este dilema mostra de que forma um e outro se confundem, sendo ambos, segundo a perspectiva, seu próprio duplo. Tal como Maria Vieira, também J. Cândido Martins os identifica como duplos, embora, esta autora utilize o adjectivo “falso” para determinar esta identidade: “O regresso do (falso) D. Sebastião, na figura de D. João, implica a alteração do rumo da história e o aniquilamento. Por isso, diante do espelho do seu retrato, o representante do Portugal morto e sebástico se define como Ninguém. J. Cândido De Oliveira Martins, ob. cit., p. 124.
32
Os traços e sinais que os contornam e identificam são visíveis no pano de fundo do
desenvolvimento da obra. Estes só vêm sugeridos e não expressos explicitamente. E se
na obra se menciona o nome de D. João tantas vezes, em cada espera ansiosa e temerosa
de Madalena pelo seu primeiro marido, em cada fatídico pressentimento da sua volta está
insinuado o nome do outro, de D. Sebastião. De tal forma é assim que ao se falar do
regresso de um, espera-se implicitamente o de outro.
Até o acto segundo, cena XII, com o aparecimento do Romeiro, ambos ficam no espaço
intermitente do impossível-possível. A sua condição indeterminada e a incerteza da sua
morte condiciona-os como potenciais presenças vivas. Na milagrosa revelação de que
uma das partes da unidade D. Sebastião- D. João está viva com o aparecimento do
Romeiro, automaticamente a outra, como mensagem implícita, dado que até esse
momento havia sido idêntica, hipoteticamente também se torna viva.
Mas se a identidade entre ambos é qualitativamente semelhante - ambos são símbolos de
portugalidade – o grau é o que os diferencia: D. Sebastião é Portugal, D. João português.
2.1.1 D. João e D. Sebastião: duplos da portugalidade
1. A partir da personagem de Telmo Pais é que D. João e D. Sebastião são
entrelaçados numa espécie de identidade duplicada. Este visionário do povo que espera
D. João (“E és tu o que andas, continuamente e quase por acinte, a sustentar essa
quimera, a levantar esse fantasma…”98), espera o próprio D. Sebastião. Anunciando
uma, anuncia a outra: “…as tuas palavras misteriosas, as tuas alusões frequentes a esse
desgraçado rei D. Sebastião, que o seu mais desgraçado povo ainda não quis acreditar
que morresse, por quem ainda espera em sua leal incredulidade!”99
98 Almeida Garrett, Frei Luís de Sousa, Lisboa, Editorial Comunicação, 1982, p. 99. 99 Ibidem, p.100.
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Quando Telmo Pais fala do regresso de D. João, semeia na cabeça de Maria de Noronha
os agouros da vinda de D. Sebastião.100 Enquanto Telmo fala do regresso de D. João,
Maria de Noronha fá-lo de D. Sebastião: “… é o outro, é o da ilha encoberta onde está el-
rei D. Sebastião, que não morreu e que há-de vir, um dia de névoa muito cerrada… Que
ele não morreu…”101 Por isso, a partir de Telmo, a figura de um prefigura a do outro: se
é possível o regresso de D. João, para além das leis da vida e da morte, se esse homem
santo voltasse, D. Sebastião, como espera seu povo, poderia fazer o mesmo.
Nos presságios do regresso de D. João e de D. Sebastião, estes identificam-se
como duplos, unidos em semelhança. Falando de um, fala-se do outro, ambos
representando, a um mesmo tempo, um como português personificado e o outro como
personificação de nação, um Portugal imaginário102.
D. João, como encarnação da nacionalidade, exemplifica a individualidade do
Bom Português, de um indivíduo que se identifica totalmente com a pátria, mas que não
tem personalidade individual humana, pois é quase divino; concretiza uma
colectividade, uma nação. E D. Sebastião exemplifica o aspecto simbólico, as raízes
míticas e arquetípicas inconscientes de uma nacionalidade. Mas estando ambos unidos e
em sintonia, juntos representam uma concepção colectiva, um par unificado – português-
Portugal, a saber, uma nacionalidade. A única marca distintiva da individualidade de D.
João é o seu amor por Dona Madalena; é o que o identifica como indivíduo com desejos
particulares.103 Fora isso, só aparece como representante da nacionalidade portuguesa – o
nome já o indica –, imagem exemplar de português patriota. As alusões à sua pessoa são
sobrenaturalmente exemplares para poder ser um indivíduo de carne e osso. D. Manuel,
pelo menos, era tão humano que podia ser “guapo cavalheiro, honrado fidalgo e bom
100 Ibidem. 101 Ibidem, p. 104. 102 Eduardo Lourenço, ob. cit., p. 85. 103 Maria Vieira explica: “D. João de Portugal, abandonados nome e lugar, é Ninguém – imagem dum eu esvaziado de identidade, a que a teia frágil dum falso amor tentara, em vão, garantir um ser fictício.” Esta citação mostra que o amor dotaria de realidade a personalidade de D. João. Ao chamá-lo de falso, em função de ser ancrónico-irreal, este vira uma personalidade esvaziada como ser subjectivo, simbolizando, como a mesma autora escreve mais à frente “o Velho Portugal – o Portugal heróico do passado (...) figura emblemática, arquétipo do portugês antigo ...” “...cadáver desenterrado dos areais do tempo, novo Homem de Pedra (...) a sombra imensa do passado...” Imagem mítica de Portugal. Maria de Lourdes Cidraes Vieira, ob.cit., p. 394.
34
português”104, e tinha defeitos: “Aquele carácter inflexível de Manuel De Sousa…”105.
Mas D. João de Portugal é quase divino, tanto que nem uma pessoa extraordinária como
Manuel de Sousa Coutinho podia ser-lhe comparada.106 Aqui, em palavras de Telmo: “…
mas não é, nunca há-de ser, aquele espelho de cavalaria e gentileza, aquela flor dos
bons… Ah meu nobre amo, meu santo amo!” 107
Desta forma, D. João não é tanto uma personalidade humana definida humanamente, mas
antes a personificação de um ideal colectivo português. Funcionando assim, este encarna
o veículo idóneo para agourar ele próprio, com o seu regresso, o retorno do duplo, D.
Sebastião.
Antes do aparecimento do Romeiro, D. João e D. Sebastião funcionavam como imagem
dupla de um mesmo princípio, o de Portugal e o de Português, (não há Portugal sem
portugueses nem portugueses sem Portugal, neste sentido é simbiótica a relação).
Mas no momento em que o Romeiro aparece, pode dizer-se que D. João vem
exemplificar a imagem individuada do sebastianismo, pois se no espaço simbólico
funcionavam como uma unidade, no momento em que D. João aparece no solo físico,
desdobra-se e anuncia, sempre de maneira subjacente, o retorno do outro. Não existe um
antagonismo entre eles, como o marcam os outros duplos literários, não há uma
consciencialização de um em relação ao outro, não representam princípios opostos, salvo
no muito importante facto de que um se concretiza e o outro permanece no imaginário,
neste sentido são opostos e duplos porque o regresso de um manifesta a possibilidade do
regresso do outro:
ninguém nesta casa gosta de ouvir falar em que escapasse o nosso bravo rei, o nosso santo rei D. Sebastião. – Meu pai, que é tão bom português, que não pode sofrer estes castelhanos, e que até às vezes dizem que é de mais o que ele faz e o que ele fala… em
104 Almeida Garrett, ob. cit., p. 98. 105 Ibidem, p.103. 106 Para Maria Vieira, D. João simboliza o velho Portugal e D. Manuel o Portugal Novo. Esta concepção não se opõe à nossa linha de análise enquanto D. João é ligado ao passado, ao mítico e ao sebastianismo, e D. Manuel a uma nova concepção de nacionalidade mais inserida no presente e no real e, portanto, mais humana e subjectiva: “A figura de D. Manuel insere-se na realidade de um tempo presente (…). Manuel de Sousa representa o Portugal Novo, modelado pelos ideais liberais do patriotismo da justiça e do civismo e também o homem moderno, que ao querer une o saber.” Maria de Lourdes Cidraes Vieira, ob., cit., p. 395. 107 Almeida Garrett, ob. cit., p. 99.
35
ouvindo duvidar da morte do meu querido rei D. Sebastião… ninguém tal há-de dizer, mas põe-se logo outro, muda de semblante, fica pensativo e carrancudo: parece que o vinha a afrontar, se voltasse, o pobre rei. 108
Esta unidade desdobrada de D. João/D. Sebastião, como se disse, é desafiante
principalmente para Madalena, a sua família e Telmo, e, no final, funciona como
advertência/moral para o espectador/leitor: um regresso antecipa o outro: se um voltou e
causou a desgraça pelo seu esquecimento, o outro também poderia fazer o mesmo.
2. A identidade questionada na obra não é a de uma personagem da peça. Frei Luís
de Sousa é uma demanda de interrogação sobre a identidade, primeiro como pátria, e
depois como indivíduos enquanto portugueses. É uma interrogação que o próprio autor
se faz e que lança ao espectador-leitor. Qual é a tua individualidade se isto acontece à tua
pátria, se a tua pátria exige isto? Lourenço, no Labirinto da Saudade, já o manifesta:
É ao passado e no passado – mas por causa do presente,(…) – que o cidadão, o autor, o combatente liberal e patriota Almeida Garrett dirige a interrogação, ao mesmo tempo pessoal e transpessoal: que ser é o meu, se a pátria a que pertenço não está segura de possuir e ter o seu?109
A Pátria portuguesa, representada pela dupla D. João e D. Sebastião, explicita o
predomínio do mítico e nebuloso; a espera subjacente de um rei desaparecido, mas
presente. Por um lado, temos D. João como imagem do Portugal consciente, real,
concreto – enquanto personagem concreta e personificada – que responde à pergunta
sobre a própria identidade como Ninguém. Corresponde-lhe, por outro lado, o seu duplo,
aspecto inconsciente – enquanto imaginário e irreal – D. Sebastião, que domina nas
sombras perante a indefinição consciente. Um mito e uma espera. Como escreve Eduardo
Lourenço, é esta a representação de um Portugal como ser imaginário:
O drama de Garrett e fundamentalmente a teatralização de Portugal como povo que só já tem ser imaginário (ou mesmo fantasmático) – realidade indecisa, incerta do seu perfil e lugar na História, objecto de saudades impotentes ou pressentimentos trágicos. Quem
108 Ibidem, p. 105. 109 Eduardo Lourenço, Labirinto da saudade, ob. cit., p. 86.
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responde pela boca de D. João (de Portugal…), definindo-se como ninguém, não é um mero marido ressuscitado fora da estação, é a própria Pátria.110
D. Sebastião, o duplo, é o outro lado, o mito que vive no inconsciente de uma nação,
sendo a consciência representada em D. João, protótipo de português exemplar. Desta
maneira, coloca-se implicitamente a figura de D. Sebastião como intrínseca à
nacionalidade.
2.1.2 O ominoso e sinistro
Como se viu no primeiro capítulo, a condição de ominoso e sinistro parte de uma
duplicidade, de algo outrora diáfano e familiar que logo, ao ser reprimido por diversas
causas e com o correr do tempo, retorna com as roupas mortuárias do esquecimento e da
deformidade: torna-se depositário do rejeitado e do anómalo.
Para Madalena, em Frei Luis de Sousa, o sinistro radica na intuição do que se avizinha.
Tudo se banha de um ambiente escuro, cheio de pressentimentos. O regresso prometido
de D. João parece não só atemorizá-la pelas questões razoáveis religiosas e mundanas, o
facto de ser bígama, por exemplo,111 mas também pela aura metafísica que este regresso
significaria e por uma certa imposição sobre as leis da natureza. Um facto
possível/impossível que remete, como uma duplicação, para o regresso anunciado
também de D. Sebastião, el-rei. A aura metafísica transmitida ao longo da obra parece
110 Ibidem, p. 85. 111 J. Cândido Martins propõe diferentes leituras interpretativas ao Frei Luís de Sousa. Na interpretação religiosa explica a angústia de D. Madalena como resultado da consciência de pecado:“Atormentada pelos fantasmas do passado e pela sua consciência, D. Madalena vive em constante e profunda ansiedade. Não só teme dolorosamente o regresso do seu primeiro marido, como se sente angustiada por ter amado ilicitamente o homem que viria a ser o seu segundo esposo, estando ainda casada com o primeiro (consciência de adultério em pensamento)”. J. Cândido De Oliveira Martins, ob. cit., p. 105. Para Andrée Crabbé, este não um problema apenas religioso, mas na intensidade emocional do drama de Madalena: “Uma das provas queria dirigir todo o interesse nesse sentido, é que o problema (…) nunca está posto como um caso de bigamia, mas sempre como um caso de adultério.”Andrée Crabbé Rocha, O teatro de Garrett,(Tese de Doutoramento), Coimbra, Universidade de Lisboa, 1944, p. 163. Para nós, poder-se-ia reduzir o conflito tanto num caso de adultério, como num problema apenas religioso se D. João não estivesse ligado a D. Sebastião. Nesta ordem de ideais, a angústia de D. Madalena também tem conotações metafísicas e sobrenaturais, pois vive no meio de sinistros agouros e pressentimentos; e é a partir destas características que baseamos a nossa análise.
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evidenciar a existência paralela de um outro lado, onde as coisas e os eventos deste lado
já estão determinados. Assim, D. João representaria um mensageiro do além, de onde o
regresso de D. Sebastião é potencialmente possível. Ao partilhar o percurso vital de D.
Sebastião e a promessa de um retorno, este é temido como a realização do pressentido
quase impossível. Neste caso, tanto D. João como D. Sebastião são temidos como figuras
ominosas e sinistras, dado que são mensageiros de uma realidade transcendental temida
pelas consequências que podem provocar na vida e felicidade de Madalena, e, ao mesmo
tempo, esperadas com temor reverencial, enquanto figuras sobrenaturais e fantásticas,
quer dizer, portadoras do numen característico do outro lado.
D. João atravessa a obra como uma constante promessa de vir a ser real, de um não ser
sendo, e de chegar a aparecer fantasticamente e concretizar os mais terríveis presságios
de Madalena. A incerteza dessa espera carga o ambiente da escuridão da própria
interioridade de Madalena, cheia de ominiosos agouros onde se fantasia sobre o
inominável retorno de D. João:
Se da la sensação de lo siniestro cuando algo sentido y presentido, temido y secretamente deseado por el sujeto, se hace, de forma súbita, realidad. Produce, pues, el sentimiento do sinistro la realización de un deseo escondido, íntimo e prohibido. Siniestro es un deseo entretenido en la fantasía inconsciente que comparece en lo real; es la verificación de una fantasia formulada como deseo, si bien temida. En el intersticio entre ese deseo y ese temor se cobija lo siniestro potencial, que al efectuarse se torna siniestro efectivo. Lo fantástico encarnado: tal podría ser la formula definitoria de lo siniestro.112
O estado de Madalena é de constante angústia e terror: “Oh! Que o não saiba ele ao
menos, que não suspeite o estado em que eu vivo… este medo, estes contínuos terrores,
que ainda me não deixaram gozar um só momento de toda a imensa felicidade que me
dava o seu amor.”113 Madalena sempre viveu com o secreto temor de que o marido
voltasse. Se, por um lado, a lógica e a razão podiam invalidar estes temores, uma
angústia premonitória a impedia de ser feliz. Estes sentimentos, obscurecidos pelo
tempo, mas nunca descartados, permearam o ambiente de uma sinistra fatalidade:
112 Eugenio Trias, ob. cit, pp. 35-36. 113 Almeida Garrett, ob. cit., pp. 79-80.
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todo afecto de un impulso emocional, cualquiera que sea su naturaleza, es convertido por la represión en angustia, entonces es preciso que entre las formas do angustioso exista un grupo en el cual se pueda reconocer que esto, lo angustioso, es algo reprimido que retorna. Esta forma de la angustia sería precisamente lo sinistro...114
Podemos definir então o estado de Madalena como de sinistro angustioso. Vive em
estado de total angústia, e aquilo que teme, adopta a forma do sinistro, dado que o
sinistro é inerente à figura de Dom João. Pode dizer-se que Madalena teme que seus
pressentimentos inconfessáveis virem realidade. Teme o regresso do primeiro marido.
Este temor irracional – que alguém continue vivo depois de 21 anos de desaparecimento
numa guerra perdida vai contra toda lógica e todas as probabilidades – vive enraizado no
seu presente como fantasia catastrófica. São inconfessáveis, porque se aceitar os seus
pressentimentos como reais - que seu primeiro marido está vivo –, então a evidenciariam
como aleivosamente infligidora dos seus deveres de esposa para com D. João. Este
saber, ao ser reprimido, torna-se angustioso e sinistro, e na sua condição de reprimido,
assalta-a constantemente em forma de pressentimentos, os quais são constantemente
atiçados por Telmo. Veja-se esta passagem, referindo-se à possível ilegitimidade de
Maria de Noronha:
Telmo Não lhe digo nada que não possa, que não deva saber uma donzela honesta e digna de melhor… de melhor… Madalena Melhor quê? Telmo De nascer em melhor estado. – Quiseste ouvi-lo… está dito. Madalena Oh Telmo! Deus te perdoe o mal que me fazes. (Desata a chorar.)
Este saber não deixa de a atormentar nunca, apesar de ser apagado com lógica:
D. João ficou naquela batalha com seu pai, com a flor da nossa gente. (…) Sabeis como chorei a sua perda, como respetei a sua memória, como durante sete anos, incrédula a tantas provas e testemunhos de sua morte, o fiz procurar por essas costas de Berberia, por todas as séjanas de Fez e Marrocos …115
114 Sigmund Freud, ob. cit., p. 2498. 115 Almeida Garrett, ob. cit., p. 94.
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É um saber soterrado com uma determinação justificada escrupulosamente: “Depois de
que fiquei só, depois daquela funesta jornada de África que me deixou viúva, órfã e sem
ninguém… sem ninguém, e numa idade… com dezessete anos!”116
Mas este saber não é baseado só na intuição, mas também na terrível determinação de D.
João, capaz de reverter as leis da natureza, e que plasmou na sua última carta a
Madalena, no mesmo dia da funesta batalha; esta determinação roça o fanático e o
profético: “«vivo ou morto, Madalena, hei-de ver-vos pelo menos ainda uma vez neste
mundo.»”117
Não parece possível enterrar tais palavras. Madalena está condenada. Estas palavras em
si próprias já aludem a qualidades sobrenaturais, escuras, terríveis: em si mesmas criam
um efeito sinistro e revestem D. João de uma aura escura, porque desafiam as leis
naturais. A vontade de voltar a ver a dona Madalena, mesmo estando morto, arrepia a
qualquer um.
2.2. O duplo em Jornada de África
1. Em Jornada de África de Manuel Alegre a duplicação começa desde o título.
O livro de Alegre é duplo de um primeiro com o mesmo nome, escrito por Jerónimo de
Mendonça no ano 1607. Em ambos os livros, narra-se o desaparecimento de dois
Sebastião no mistério da indefinição. Como explica Fernanda Leitão,
há no romance a intersecção de dois tempos históricos – o passado e o presente – aqui representados pela sobreposição do desaparecimento do Alferes Sebastião em Nambuangongo, e o desaparecimento de el-Rei D. Sebastião em Alcácer Quibir.118
116 Ibidem, p. 93. 117 Ibidem, p. 95. 118 Fernanda Judite De Jesus Pereira De Bastos Leitão, Ecos e diálogos na obra de Manuel Alegre, Lisboa, Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, 1994, p. 31.
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A jornada do alferes Sebastião, avessa119 dessa primeira – contrária, oposta,
adversa, do outro lado –, relata o processo de fusão entre o alferes Sebastião e o seu
duplo, D. Sebastião. Duas encarnações que no final se confundem. O alferes, um jovem
estudante de Coimbra, contrário à guerra120, alista-se no exército para ir lutar em Angola
que buscava a sua independência nos estertores do império colonialista português. Em
Angola enfrenta eventos extraordinários que evidenciam e o ligam iniludivelmente a D.
Sebastião e aos acontecimentos e nomes que rodearam seu desaparecimento121.
Entretanto, conhece Bárbara, uma mestiça na qual se vislumbra a salvação para tão
peremptórias circunstâncias122. Mas tudo está escrito e o alferes é levado a cumprir o
destino imposto pelo seu duplo, D. Sebastião. Assim, gradual e progressivamente, o
alferes sofre uma despersonalização na qual se vê completamente imerso até desaparecer
na poeira da batalha de onde ninguém jamais o voltou a ver. Sebastião repete
ritualmente, como num padrão, as circunstâncias nas quais D. Sebastião desapareceu,
fundando um mito.
119 O alferes é chamado como um “sebastianista do avesso”. Para Clara Rocha, este estado do avesso vem do facto de Sebastião seguir o seu destino por estar contra ele: “…uma personagem feita de lúcida consciência, que segue o seu destino precisamente por estar contra e por não acreditar na guerra”. Clara Rocha, “Jornada de África de Manuel Alegre: determinação e autodeterminação do herói”, in O cachimbo de António Nobre e outros Ensaios, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2002, p. 241. O sentido do avesso seria uma maneira de descrever a duplicação entre um e outro Sebastião, diferenciados precisamente pela “lúcida consciência” do alferes. O mesmo significado de avesso como duplicação é manifestado por Urbano Tavares na sua afirmação: “Manuel Alegre tem o condão de atar as duas pontas da História”. Urbano Tavares Rodrigues, “Entre Quipedro e Alcácer Quibir. O espaço dramático e mítico de Manuel Alegre” in: Os Tempos e os Lugares na Obra Lírica, Épica e Narrativa de Manuel Alegre, Lisboa, Edições Universitárias Lusófonas, 1996, p. 18. 120 Fernanda Leitão explica esta postura concisamente: “Sebastião entende que esta guerra é contrária aos interesses nacionais e defende que Portugal deve fazer-se «para dentro», isto é, deve olhar para o território nacional, reencontrar as suas raízes e desenvolver-se dentro das suas fronteiras naturais. Esta opinião pressupunha o abandono dos territórios africanos e a independência dos povos colonizados, atitude em tudo contrária à política do governo português. Fernanda Judite. De Jesus Pereira De Bastos Leitão, ob. cit., p. 37. 121 O seguinte parágrafo de António Quadros descreve, de maneira impossível de melhorar, o recurso das intersecções de Manuel Alegre que misturam passado e presente: “O poeta evoca crónicas antigas ou episódios decisivos do nosso passado histórico colectivo e intersecciona-os (em alternâncias significativas), com episódios do presente ou com momentos da sua própria subjectividade de Português de hoje, envolvido em eventos que sente como igualmente decisivos. Deste modo realça dramaticamente as conotações, os paralelismos, as convergências e as divergências entre passadas situações-limite da história portuguesa (por vezes quase reproduzindo a própria linguagem de cronistas e de testemunhas presenciais), e os eventos hodiernos mais pesados de significação ou com uma maior carga de destino.” António Quadros, “Manuel Alegre ou o sonho neo-sebástico de «Chegar aqui», in A ideia de Portugal na Literatura Portuguesa dos últimos 100 anos, Lisboa, Fundação Lusíada, 1989, p. 14. 122 Como diz Fernanda Leitão: “Bárbara é o símbolo desta solidariedade pelos povos africanos sob domínio português.” F. J. De Jesus Pereira De Bastos Leitão, ob. cit., p. 37.
41
Na Jornada de África, de Manuel Alegre, a unidade essencial entre Sebastião e
D. Sebastião, além de se manifestar no nome, evidencia-se nas coincidências das datas e
nos nomes, no espaço físico (África), no motivo expansionista subjacente em ambas as
jornadas, e no seu fracasso123. Mas para nós, entre ambos os Sebastião, traça-se uma
dualidade, própria dos duplos, na qual cada um deles representa um princípio oposto.
Por um lado, o alferes representa os ideais de liberdade, realidade e vida
subjectiva,124 enquanto D. Sebastião simboliza uma ideia mitificada de Portugal125;
representa uma nação como mito: sonhos de expansão e grandeza, a conquista de
impérios e a superveniência de um sonho126: “O que o mito em verdade procura é um
permanente além”127, em suma, o imaginário colectivo representado pelo
sebastianismo128. O alferes, enquanto indivíduo, rejeita estes princípios, aspira à
realização realista de uma nação e à importância do indivíduo, onde cada subjectividade
tem a liberdade de ter o próprio ideal sem o peso de uma nação que sonha o mito
sebastianista.
Assim, entre ambos, há uma diferença radical: um representa a subjectividade individual
e o outro a força colectiva do mito. Embora no alferes exista uma postura niilista129 em
123 “Manuel Alegre procura (...) estabelecer constantes exemplares”, tanto positivas, como negativas: “ Alcácer Quibir e da guerra ultramarina, ambos vistos como inúteis tragédias nacionais.” A. Quadros, ob. cit., p. 15. 124 “Passa da meia-noite quando de súbito vê entrar o Poeta. Sebastião nem quer acreditar, é o seu melhor amigo (...). Com ele partilhou boémias, riscos, inquietações, a descoberta de Coimbra, do mundo, de si mesmo, os livros, as interrogações, amores e desamores, Camus, sartre, Rilke, Camões, Pessoa, Marx e Rimbaud, Lorca, Hemingway, Ava Gardner e juliette Greco, Brassens, a Guerra Civil de Espanha e a Resistência Francesa, (...) Hamlet, a revolução, to be or not to be.” Manuel Alegre, Jornada de África, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989, pp. 217-218. 125 António Quadros responde a pergunta sobre quem é este D. Sebastião para os poetas do século vinte, entre eles M. Alegre: “É talvez muito simplesmente a aspiração de uma sociedade quotidianizada esvaziada do sentido axiológico sem o qual nenhuma paideia é vivaz, para readquirir um sentido superior da pátria, para recuperar a verdade encoberta de uma aventura espiritual interrompida e reconquistar valores éticos e escatológicos que se perderam em sucessivas degradações; aspiração inconsciente de um povo, que na obra dos seus poetas inspirados adquire palavra, música, forma e consciência, ao corporizarem numa figura simbólica o enigma (e não só a realidade) de uma gesta e ao profetizarem um futuro em que se cumprirão as promessas inomináveis, pletóricas, supra-sociológicas e supra-políticas do mito.” António Quadros, ob. cit., p. 15. 126 Cf. Jorge Humberto Santos Carnaxide, O Ultimo Império. O Estado Novo e a Guerra Colonial na Literatura portuguesa, tese de Mestrado, Universidade de Lisboa, s/n, pp. 40-65. 127 António Quadros, ob. cit., p. 18. 128 No quarto capítulo tratar-se-á o tema em maior extensão. 129 Clara Rocha escreve: “Sebastião desaparece em combate como o modelo quinhentista, e nesse sentido ele é um herói determinado – determinado pelo destino intertextual que é, em parte, o seu, e que adivinhamos ao longo da leitura do romance através de alguns presságios e dum permanente diálogo da personagem com a morte. Mas o seu acto não é uma pura reincidência, uma reecenação da entrega
42
relação à sua própria condição individual, Sebastião parece sentir-se subjugado pelo
fantástico de ser o duplo de D. Sebastião e destinado a algo que o transcende. Desde o
começo perfila-se esta personalidade predestinada “ao nada”, ao indeterminado e à sua
natureza “aristocrática”: “Sebastião (…) acha que tudo lhe é devido”130; a sua busca do
metafísico, “a saudade e a inquietação do que não há”131; a busca do lado inefável da
realidade, do intangível no tangível, do pressentido, do outro lado, do duplo: “Há
sempre uma mulher ausente em cada mulher presente, é essa que eu quero, a que não
há.”132 Em última análise, a sua busca do próprio destino, a parte invisível do que
acontece no agora; a outra superfície, o duplo da vida concreta, o desconhecido que vem.
O alferes pressente as forças sobrenaturais, colectivas e poderosas que o transportam
dentro das circunstâncias às circunstâncias. O seus sonhos de liberdade e de amor, de
abertura a outras culturas e ideais (França, a Literatura) parecem ceder desde o princípio
às tendências dominantes de seu duplo e tudo o que nele se simboliza. E se a descoberta
do Amor em Bárbara parece despertar uma luz de vida individual, subjetiva, a
possibilidade de um futuro livre e possível, ele próprio se sente já preso na teia de aranha
herdada da sua nação.
Sebastião segue um chamado que em princípio se ouve como um chamado da pátria.133
Este seu caminho sente-se como único, no mesmo sentido do caminho do herói, aquele
que não foi trilhado por outros, o que o faz “irremediavelmente individualista”,134
marcando o sentido do seu destino particular, único. Mas este destino é ambíguo: leva à
descoberta da própria alma, ou leva-o a ser engolido por estas mesmas forças inefáveis;
domina-se o dragão ou é-se comido, como os temerários homens das lendas medievais
que eram seduzidos e logo afogados pelas ninfas ao luar das profundezas da floresta.
desesperada à derrota e ao abismo. O sentido do seu desaparecimento é, paradoxalmente, o duma autodeterminação.” C. Rocha, ob. cit., p. 241. Para nós, esta “autodeterminação” em seguir o modelo sebástico equivale a um esquecimento de si como ser subjectivo, a uma descrença e um abandono, por isso refere-se a uma atitude niilista. Falar-se-á mais detalhadamente sobre o assunto no capítulo seguinte. 130 Manuel Alegre, ob. cit., p. 21. 131 Ibidem, p. 20. 132 Ibidem, p. 22. 133 “ir à guerra ou não ir? Muitos defendiam a deserção, a certa altura o poeta disse: Estamos contra esta guerra mas apesar de tudo ela é também a nossa guerra, toda a nossa geração vai ser marcada por ela, eu quero ir, quero ver como é, estarei contra mas dentro.” Ibidem, p. 218. 134 Ibidem, p. 22.
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Jornada de África é uma viagem iniciática e, desde o primeiro capítulo, o futuro alferes
traça o início desta: a conquista da sua individualidade, ou ser devorado pelas forças que
o rodeiam. Como se fosse um ritual, repete a primeira partida, a originária, a gesta da não
concretização, da dúvida, da incerteza, da indefinição. As datas concordam, empatadas
como um relógio que atravessa a recta regressiva para recomeçar e repetir o ciclo, a
reordenação de um mundo135.
Gradativamente, ao longo do romance, o Sebastião de Coimbra fica preso na cadeia de
acontecimentos que o ligam ao OUTRO, afastando-o pouco a pouco da sua identidade
originária. A distância ou a estranheza que o próprio nome lhe produz – “Sebastião tem
a impressão de não reconhecer o próprio nome (…) parece o nome de um outro (...)”136–
exprime uma espécie de desdobramento, de expropriação da identidade; deixa atrás
aquele que foi, aquela vida subjectiva. Assim, começa o questionamento em torno da
própria identidade. O Sebastião que havia sido está a desaparecer e a luta pela própria
vida está a começar: “Apetece-lhe gritar.”137 “Luanda (…) cidade sem rosto onde seu
nome lhe parece estrangeiro”.138 Questionamentos em torno da identidade são típicos do
tema do duplo, e na medida em que este aparece fatalmente na sua vida, Sebastião
começa a cair numa despersonalização onde a própria vontade e o caminho individual
perdem relevância, impondo-se em troca a estrutura do caminho uma vez percorrido pelo
duplo.
Esta despersonalização faz duvidar sobre quem, em metade da obra, duplica quem.
Sebastião é levado a emular o significado da vida de D. Sebastião, aquela parte que o fez
imortal, e, quando isto acontece, o duplo adquire predominância e o alferes parece ser o
duplo de D. Sebastião. E quando o alferes consegue ser ele próprio, quando luta contra
essa força do destino/duplo com as suas lembranças e ideais, D. Sebastião parece o
duplo. Como escreve Clément Rosset, a duplicação
supone la existencia de un original e uma copia, e cabe preguntarse cuál de los dos, el acontecimiento real o el “otro acontecimiento”, es el modelo y cuál es el duplo [...] Así, al
135 O sentido ritualístico da jornada do alferes Sebastião será tratada no capítulo 4. 136 Manuel Alegre, ob. cit., p.37-38. 137 Ibidem, p. 38. 138 Ibidem, p. 39.
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final resulta que el acontecimiento real es el “otro”: el otro es esto real que ocurre, o sea, el duplo de otra realidad que será lo real mesmo, pero que siempre se escapa y del que nunca podremos decir o saber nada.139
À medida que os acontecimentos se concentram, o alferes vai-se prefigurando como
duplo de D. Sebastião. Começa a sentir uma “angústia metafísica”140, que mais do que
uma angústia juvenil é o medo de se perder a si mesmo, não só “uma parte importante de
si próprio”, mas ele e o seu futuro como sujeito subjectivo na escolha de uma vida para
si. A consciência disto é expressa na carta que escreve para a namorada:
Já não sei ao certo quem sou, há aqui um estranho mistério de nomes que preciso de decifrar. Vou receber alguém que tem o nome do autor da crónica do OUTRO, quem sabe se não está destinado a escrever a minha.141
No capítulo quinto, a despersonalização, a comoção de já não se pertencer a si começa a
ser mais evidente: “Quem sou, pergunta-se. Já não sabe quem é, o nome saiu dele, é de
um outro que ficou ninguém sabe onde, há muito tempo.”142 Este “um outro que ficou
ninguém sabe onde, há muito tempo” é o outro, o duplo, D. Sebastião. Uma batalha
perdida no tempo, que parece ter de ser repetida em sacrifício da sua vida subjectiva, a de
um estudante, um sonhador, um indivíduo.
2. A subjectividade de Sebastião, a que progressivamente é posta de lado, é
representada e amplificada no seu relacionamento com o poeta. Para F.J. Leitão, o poeta
funciona como alter-ego de Sebastião:
As grandes afinidades ideológicas e culturais entre «o poeta, o narrador, quem sabe quem» e Sebastião, a grande amizade que os une desde Coimbra, a partilha dos mesmo sonhos e das mesmas inquietações, colocam-nos o problema da individualidade de cada um deles, pois a certa altura do romance temos a sensação de que um é o alter-ego do outro. 143
139 Clément Rosset apud Rebeca Martín López, ob. cit. p. 38. 140 Manuel Alegre, ob. cit., p. 42. 141 Ibidem, p. 75. 142 Ibidem, p. 48. 143 Fernanda Judite De Jesus Bastos Leitão, ob. cit., p.34
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Nós pensamos que o poeta liga Sebastião com a sua parte subjectiva. Sim, como
um alter-ego que o aproxima de si e da sua condição histórica, mas sem prantear nenhum
dos problemas típicos dos duplos. O poeta é mais uma extensão e ampliação de si mesmo
do que representação de uma oposição ou contradição, que é o que caracteriza os duplos.
Tanto é assim que, no meio da despersonalização que o aproxima do duplo, ao ver o
poeta sente “uma grande saudade de si mesmo. (...) tem a sensação de estar a ver o seu
olhar.”144
Logo, esta personalidade do alferes, a parte da sua vida subjectiva individual
inserida no seu tempo, que se projecta na sua amizade com o poeta, que o relaciona com
o profundo do seu próprio coração, as suas reflexões constantes, os seus ideais, os seus
sonhos, parece uma capa, a consciência, a razão que cobre o outro rosto de si mesmo,
representado no seu duplo, D. Sebastião.
Esta consciência com que o alferes rejeita a guerra é o que a diferencia da Jornada de D.
Sebastião, como escreveu Clara Rocha. A consciência da sua insensatez e do
conhecimento de aquela já ser perdida. Mas esta postura não deixa de estar baseada em
raciocínios. A razão é uma, a vida é outra. O próprio alferes o manifesta ao escritor: “A
razão diz-me que não pode ser, mas o que é a razão? A verdade é que você é Jerónimo de
Mendoça e eu sou Sebastião…”145 “As palavras e os seus jogos têm o poder de criar o
irremediável.”146 A coincidência dos nomes tem o poder cifrado do destino. O facto de o
alferes ser chamado Sebastião implica uma ligação de acontecimentos e de acasos que
vêm desde o “avô que se perdeu em Alcácer.”147 Mas mais do que acasos, estes
parecem representar uma estrutura arquetípica que se ordena em volta do mito
sebastianista, e o mito tem a força das idades e das gerações fundidas numa só estrutura,
povoa a estrutura inconsciente tanto das nações como dos indivíduos.148 Portanto, a razão
resulta insuficiente para apagar um mito; por outras palavras, a vida e os seus mistérios
ultrapassam o mais perfeito dos razoamentos e das razões, assim como o inconsciente
ultrapassa a consciência. Jung explica-o: “Estes não podem ser atacados pelo intelecto, 144 Manuel Alegre, ob. cit., p. 227. 145 Ibidem, pp. 76-77. 146 Ibidem, p. 77. 147 Ibidem, p.76. 148 “Ao que parece, os conteúdos mais importantes do inconsciente coletivo são as “imagens primordiais”, isto é, as ideias coletivas inconscientes e os impulsos vitais (vida e pensamento mítico).” C. G. Jung, O Eu e o inconsciente, Obras completas de C. G. Jung, VII/2, Brasil, Vozes, 1978, p.155.
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porque não têm base intelectual ou racional, suas raízes mergulham numa vida de
fantasia irracional e inconsciente, inacessível à crítica.”149 Os argumentos resultam
infinitamente pequenos perante a força de um duplo mítico que se esculpe como original
enquanto se avança no romance.
Assim, para além das palavras, para além das posturas, todos os nomes
convergem em D. Sebastião e na Jornada de África. Sebastião, ao deixar de ser ele, ao
ser engolido gradualmente pela fatalidade que cada vez mais encarna, é levado por forças
colectivas e de gerações, pelas façanhas de outros tempos: “E as belas, velhas, loucas
cargas de cavalaria. O seu corcel o leva, ou é um jipe, já não sabe o seu nome, é um
guerreiro, um simples centurião, um cavaleiro de outras eras desembarcado nesta
guerra.”150 Estes sentimentos, esta consciência de ser levado por algum outro, por forças
transcendentes, vão-se direccionando em torno de uma única figura, a de D. Sebastião.
A força das coincidências, das sincronias, povoa tudo de fatalidade. Desde o início sabe-
se que a batalha está perdida. Mesmo os encontros clandestinos, anti-coloniais, estão
imersos na fatalidade do duplo D. Sebastião. O escritor, os dissidentes, têm desde
nascença o estigma da fatalidade: cada um deles tem um nome da primeira jornada:
Jerónimo de Mendoça, Alvito, Duarte de Meneses, Vasco da Silveira, etc.
Com isto, a tentativa de dissidência de Sebastião, se é pensada como resistência à
fatalidade, e, portanto, ao duplo, parece condenada ao fracasso, como se não houvesse
escapatória. Existe um mistério na identidade nacional, que no mito do sebastianismo
encontra expressão. Um mistério já manifesto no verso de Fernando Pessoa, escolhido
como sinal identitário do grupo clandestino: “As nações todas são mistérios.”151 E na
resposta-chave, tão fatal quanto o futuro do alferes: “Eu vi a luz em um pais perdido.”152
149 C. G. Jung, Ibidem, p.90. 150 Manuel Alegre, ob. cit., p. 49. 151 Ibidem, p. 73. 152 Ibidem, p. 74.
47
3. D. Sebastião, em Jornada de África, é o outro, o duplo, como o foi noutro livro,
noutra época: o Romeiro de Frei Luis de Sousa. O duplo em ambas as obras é a mesma
presença mítica que subjaz aos eventos e vicissitudes. O tempo deixa de ser uma linha
recta com três pontos: passado, presente, futuro. Passa a ser uma unidade de
acontecimentos, os quais se arranjam de um modo simbolicamente significativo,
agrupados por este eixo que aparece como duplo- transcendente do mundo concreto. O
alferes, ao se identificar com el-rei, abre a porta para o atemporal e o simbólico, onde o
duplo ubíquo D. Sebastião leva o ritmo e a estrutura dos acontecimentos. Desta maneira,
o Romeiro e o alferes (com maior ou menor consciência por parte deles) levam uma
mesma estafeta que simboliza um sonho, um potencial, uma identidade colectiva, uma
única identidade que atravessa as eras, as épocas, os cenários os indivíduos, para se
afirmar como força operadora essencial, subjacente e permanente:
Se perguntassem por ele poderia responder apontando um retrato algures numa sala antiga: Ninguém. Sim, é talvez o Romeiro regressado dessa fatal Jornada de África, vindo directamente para a picada onde a poeira é o pó acumulado dos séculos, o soldado desconhecido de todas as guerras perdidas, o certo é que sabe, agora sabe que tudo ó outro ritmo, é o filho da tribo que espera a iniciação, por isso lhe deram um jipe e um corcel ao som de uma fanfarra, já el-Rei deu sinal de Santiago enquanto a coluna avança e os cavalos cavalgam, cavalgam pela picada fora.153
O duplo evidencia o conflito de uma unidade dividida. Em Jornada de África, a
personalidade “A” desta unidade, a do alferes, é aquela dos pensamentos conscientes, e a
“B” a misteriosa e mítica de D. Sebastião el-rei. A primeira representa a vontade
consciente racional, e a outra a força inconsciente que também sabe desejar.154 Por ser
esta uma dualidade, evidencia-se aqui o conflito de duas vontades opostas. Uma seria de
natureza pessoal, a pessoa subjectiva, e a outra desconhecida, pertencente ao mundo
misterioso e desconhecido do inconsciente. Este segundo Eu, o Sebastião que vem do
passado e da herança colectiva, chega e está ali como um destino. Este duplo envolve a
atmosfera de pressentimentos e de predeterminação, como o mito que retorna e se
restaura num ritual que recria a gesta originária: a ouruborus, a serpente que se morde a
própria cauda.
153 Ibidem, p. 49. 154 Cf. C.G. Jung, O Eu e o inconsciente, ob. cit., p. 41.
48
A dualidade remete para a condição dos opostos, estes de diferente natureza e
circunstâncias: noite-dia, bem-mal, homem-mulher, indivíduo-sociedade,
predeterminação-liberdade, aberto-fechado, e daí para cima.155 A dualidade que remete o
alferes Sebastião a D. Sebastião é, num aspecto, a do homem histórico, subjectivo,
individual versus carga histórico-cultural-mítica que vem atrás do nome D. Sebastião.
Em Frei Luís de Sousa, D. Sebastião e D. João são uma dupla que representa o mesmo
princípio colectivo, enfrentados neste caso pela individualidade representada em
Madalena. Por um lado, um indivíduo e os seus projectos, e, pelo outro, o colectivo e a
sua força mítica. Cada aspecto da dualidade vem emoldurado com as expectativas,
planos e realidades próprias da sua condição. No capítulo seguinte analisaremos esta
dinâmica oposição individual/colectivo nas obras estudadas.
155 “O mito do duplo é coerente com o dualismo que domina o pensamento humano:corpo/alma, bem/mal, vida/morte, dia/noite, etc.” Román Gubern, ob. cit., p. 15.
49
3. O Amor e o Indivíduo
Para justificar e delinear adequadamente a nossa linha de análise, é importante
ressaltar e descrever a importância do indivíduo. Se D. Madalena e Sebastião são
paradigmas do individual nas duas obras estudadas, é necessário saber por que a
individualidade é tão preciosa e de que maneira o colectivo, seu contrário dialéctico,
tende a engoli-la. A existência de um duplo evidencia uma unidade cindida, uma
conuntio opositorum, e se por um lado temos no duplo a imagem mítica de Portugal
como símbolo colectivo, por outro lado deve encontrar-se o seu contrário, o indivíduo.156
Reconhecendo a sua importância e a do amor como veículo e torneador dessa
individualidade, clarificar-se-á a estrutura semelhante, no que respeita à nossa análise, de
Jornada de África e Frei Luis de Sousa, na qual a individualidade é determinada
potencialmente (Jornada de África) e concretamente (Frei Luis de Sousa) pelo amor, e
acaba por perder-se na batalha contra o princípio colectivo, o ubíquo duplo D. Sebastião.
156 “Tudo na esfera do tempo é dual: passado e futuro, morto e vivo, ser e não-ser…” Joseph Campbell, O poder do mito, São Paulo, Palas Athena, 1990, p. 69. A existência de um princípio automaticamente refere a existência do seu contrário, falando-se de um, fala-se do oposto, intrínseca ou extrinsecamente.
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Antes de começarmos, queríamos acrescentar um aspecto: em Frei Luís de Sousa há uma
total exibição de portugalidade na interpretação das personagens. 157 Telmo Pais é
representante do povo, Manuel de Sousa é a razão158, um possível Portugal moderno e D.
João precedido por D. Sebastião são imagens e símbolos essencias da portugalidade.
Mas onde é que fica o indivíduo nas interpretações? Não se deve esquecer que uma
sociedade é composta de indivíduos. Surge então a pergunta necessária: qual é o seu
papel no desenvolvimento da obra? Onde é que está representado? Pois se estes não
existem, também não existe nação. Só há símbolos de Portugal em diferentes graus e
estados? Mas, como expressa Luciana Stegagno em relação a algumas interpretações
feitas à obra,
…queste interpretazioni sono ancora legate a una realtà storica portoghese e a un personaggio storico Garrett. L’a importanza del Frei Luís de Sousa sta invece proprio nella sua universalità. (…) l’opera è tanto grande que come ogni capolavoro offre a tutti e a tutte le epoche una nuova chiave per la propria interpretazione.159
A obra pode ser lida e interpretada para além da realidade histórica portuguesa. E
reflecte, a partir da nossa interpretação, a luta do indivíduo, e também de uma nação,
para sobreviver. É uma obra atemporal, que ultrapassa a realidade histórica portuguesa
porque representa o indivíduo na sua condição humana. Não devemos esquecer que a
sociedade é reflexo do estado dos indivíduos. Se a uma sociedade se lhe chama de
157 “A consciência dos personagens não está centrada na sua individualidade própria, mas refracta sob ângulos diversos uma relação objectiva: a de cada um com o destino histórico da Pátria, ou melhor, com o seu ser. Tudo o que Manuel de Sousa, Telmo, Madalena, Maria, são (ou não são) está em relação directa com o que a Pátria é. Eduardo Lourenço, “Romantismo e tempo. E o tempo do nosso Romantismo. A propósito de Frei Luís de Sousa”, in Estética do Romantismo em Portugal, Primeiro Colóquio, Lisboa, Grêmio Literário, 1970, p.109. Concordamos com o facto de que cada personagem está em relação objectiva com a Pátria, mas para nós, Madalena fornece um exemplo de uma subjectividade; é verdade que em contraposição com a Pátria. Ao se falar tanto da Pátria, falasse dos seus indivíduos. Mas precisamente este é o ponto, uma colectividade é forte quando o ´indivíduo é permitido de sê-lo, e se este é frustrado e limitado, que pátria há? Lourenço explica mais enfrente que o Portugal de Frei Luís de Sousa é um Portugal anómalo, um “pais fictício, pura possibilidade”. Neste sentido, Madalena representaria a frágil individualidade, sua impossibilidade de ser dentro da Pátria que a obra apresenta; uma individualidade a nascer, que não está nem no tempo profano, nem no tempo mítico. Cf. Eduardo Lourenço, “Romantismo e tempo…”, ob. cit., p. 109. 158 Maria de Lourdes Cidraes Vieira, “O Frei Luís de Sousa – Ou a segunda morte de D. Sebastião”, in: Estudos Portugueses. Homenagem a António José Saraiva, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1990, p. 395. 159 Luciana Stegagno Picchio, Storia del teatro portoghese, Roma, Edizioni dell’Ateneo, 1964, p. 187.
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decadente é porque os seus indivíduos estão igualmente em decadência, "La
psicopatología de las masas tiene sus raíces en la psicología de los indivíduos."160
Assim, nós encontramos em D. Madalena, imagem e símbolo do indivíduo, um ser
subjectivo. E em sua filha, Maria de Noronha, o fruto de uma individualidade incipiente
(D. Madalena) e de um Portugal novo161, que permanece num estado intermédio entre o
potencial e o realizado, reflexo de uma tentativa de conciliação entre o amor e o
subjectivo, representado por D. Madalena, e um Portugal novo, representado por Manuel
de Sousa. Como se sabe, no final morre como vítima inocente. Mas esta criatura
predefinida, pre-espírito quase carne, morre denunciando a impossibilidade da sua
existência num matrimónio impossível. Mas não é nosso objectivo fazer uma análise
específica das personagens da obra, mas, sim, evidenciar a luta entre o indivíduo e o
colectivo - representado no duplo - como oposição de contrários, típica da problemática
do duplo.
3. 1. A importância do indivíduo
Em primeiro lugar parece-nos pertinente, ao tratar este tema, perguntar-nos: afinal
de contas, o que é o indivíduo? A etimologia da palavra vem de indivisível. 162 Chegar a
ser um indivíduo implica reduzir ao máximo as divisões da personalidade, integrando-as
numa unidade. Para C.G. Jung, que criou todo um edifício teórico em torno do seu
conceito e desenvolvimento, a vida subjectiva é, em último termo, essencial:
Las guerras, las dinastías, las transformaciones sociales, las conquistas y las religiones, no son sino los síntomas más superficiales de una actitud espiritual fundamental y secreta del individuo, actitud de la que él mismo no tiene conciencia (…). Los grandes acontecimientos de la historia del mundo son, en el fondo, de una profunda insignificancia. En último análisis, sólo la vida subjetiva del individuo es esencial. Es esta sólo la que hace
160 C. G. Jung, "La lucha con la sombra" in: Obras completas, vol.10. Barcelona, Trotta, 2001, pár. 432. 161 Representado em Manuel de Sousa, segundo a linha interpretativa de Maria de Lourdes Cidraes Vieira. Cf. ob. cit., p. 395. 162 Antenor Nascentes, Dicionário etimológico da língua portuguesa, Rio de Janeiro, Jornal do Commercio, 1955, p. 275.
52
la historia, es en ella en donde se producen primero las grandes transformaciones; la historia entera y el futuro del mundo resultan, en definitiva, de la suma colosal de estas fuentes ocultas e individuales.163
Ao processo de desenvolvimento do indivíduo, Jung deu o nome de individuação. Este é
um processo de formação e diferenciação psicológica de seres individuais, nele “el
individuo se desarrolla como un ser distinto de la psicología colectiva, teniendo como
meta el desarrollo de la personalidad individual.”164 Representa o conhecimento de si e
corresponde à acção de ligar ao indivíduo a sua própria singularidade:
La individuación sólo puede significar un proceso de evolución psicológica que realiza las determinaciones individuales dadas (…) constituye al ser humano como ese ente singular que es (…) realiza su singularidad.165
Realizar, dar-se conta das determinações individuais dadas é o caminho da individuação.
Tal consciencialização vai desenvolvendo a singularidade que se expressa na própria
determinação de ser o que se é.
A focalização na importância do indivíduo vem do facto de este ser considerado
propulsor, em última análise, do desenvolvimento da humanidade, das sociedades e de
todo o seu avanço. É importante reconhecer-lhe o seu valor como força primária - às
vezes tida como insignificante -, pois este facilmente fica esquecido frente ao peso dos
aspectos sociais e exteriores da existência e em comparação com o valor atribuído às
estruturas colectivas, quando na realidade estas estruturas sustentam-se no adequado ou
inadequado desenvolvimento dos seus indivíduos:
El hombre, elemento anónimo de una masa, amenaza con ahogar, con tragarse al individuo. Al ser humano tomado aparte, sobre cuya responsabilidad reposa, sin embargo toda la obra edificada por mano humana. La masa, como tal, es siempre anónima e irresponsable. Los llamados jefes son los síntomas inevitables de todo movimiento de masa. Los verdaderos jefes de la humanidad, sin embargo, son siempre aquellos que, meditando sobre sí mismos, aligeran al menos de su propio peso el peso de la masa, manteniéndose conscientemente alejados de la inercia natural y ciega, inherente a toda masa en movimiento.166
163 C. G. Jung, Los complejos y el inconsciente, Madrid, Alianza Editorial, 1980, p. 48. 164 C. G. Jung, Tipos psicológicos, Buenos Aires, Editorial Sudamericana, 1994, p. 535. 165 C. G. Jung, Las relaciones entre el yo y el inconsciente, España, Piados,1993, p. 70. 166 C. G. Jung, Los complejos y el inconsciente, ob. cit., p. 78.
53
As guerras, as religiões, as grandes transformações sociais são os sintomas mais
superficiais de “una actitud fundamental y secreta del indivíduo, actitud de la que él
mismo no tiene conciencia”167 . O sujeito molda o colectivo através do desenvolvimento
individual, outorgando-lhe direcção e consistência. O indivíduo está ligado, desde a sua
essência, à humanidade. Cada um de nós, inclusive inconscientemente, leva em si as
sementes do futuro desenvolvimento da humanidade e das sociedades, além do seu
passado histórico. Contém e é receptáculo da problemática existencial dos seus
contemporâneos, assim como também das possíveis soluções criativas para o
desenvolvimento da cultura.168 Dito com as poéticas palavras de Joseph Campbell, assim
“como el sabor del oceano está contenido en una gota y todo el misterio de la vida en el
huevo de una pulga”169, no indivíduo guarda-se o mistério de toda a existência.
É o indivíduo que, originalmente, é penetrado pela fonte da vida através da vivência
interna e profunda. Ele é o canal pelo qual emerge à luz da consciência o conhecimento
aninhado nas raízes do inconsciente colectivo. E as suas experiências vitais, como o
amor - e que muitas vezes é forçado a experimentar -, são as catalisadoras e a forja do
seu crescimento e fortalecimento como ser subjectivo. E o amor, como experiência
profunda e fundamental, é o catalisador paradigmático do desenvolvimento individual.170
3.2. O Amor
1. Tornar-se “si mesmo”, como uma realidade única e indissolúvel, é a meta da vida e o
bem mais precioso que se pode desenvolver. Este chamado a nós próprios muitas vezes é 167 Ibidem, p. 68. 168 Cf. J. Salazar Flores, Un acercamiento a la Industria Cultural en Theodor W. Adorno y el Proceso de Indivuduación en Carl G. Jung, (Tese), México, Universidad Nacional Autónoma de México, 2003, p.105. 169 Joseph Campbell, El héroe de las mil caras. Psicoanálisis del mito, México, F.C.E., 1997, p.11. 170 “… la concepción misma de subjetividad tendría un carácter histórico (…) y el amor sería un elemento esencial en dicha construcción.” Mari Luz Esteban Galarza, Rosa Medina Doménech, Ana Távora Rivero ¿Por qué analizar el amor? Nuevas posibilidades para el estudio de las desigualdades de género, Comunicación presentada dentro del Simposio “Cambios culturales y desigualdades de género en el marco local-global actual” que tendrá lugar dentro del X Congreso de Antropología de la F.A.A.E.E., en Sevilla los días 19 al 22 de septiembre de 2005, p. 6. www.ugr.es/~rosam/pdf/Sevilla-05.pdf
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sentido como o apelo do amor. O amor é preferência, escolha do coração: “é uma
experiência pessoal, individual, e creio que esse é o aspecto essencial que torna
grandioso o Ocidente.”171 Simbolicamente, sabemos que a sede dos sentimentos é o
coração, de onde radica a nossa essência mais pura como seres subjetivos dotados de
unicidade. Amor, sentimentos e subjectividade entrelaçam-se, o indivíduo como tesouro
da evolução e o amor como expressão e sustentáculo desse valor. Francesco Alberoni
escreve:
Na espécie humana, o indivíduo pode impor uma mudança de rumo à cultura e, por isso, definitivamente, à evolução. A inteligência criativa pode realizar este supremo acontecimento. O indivíduo singular é, potencialmente, detentor de um poder imane, do poder de criar novas espécies biológicas. A consciência é, portanto, consciência de ser (potencialmente) uma espécie em si mesmo. A inteligência está programada para a criação do universo. Cada homem é (potencialmente) um novo Adão. Isto confere um incrível valor à individualidade. O enamoramento, o amor materno ou paterno, a amizade, dirigem-se todos à individualidade pessoal. A coisa mais frágil que tem necessidade de um sustentáculo externo, do reconhecimento e do amor de uma outra pessoa dotada de valor. E no entanto a única potência indomável da natureza.172
Na vida do indivíduo, por um lado, existe o dever, as instituições, as obrigações que tem
como ser social, a força do colectivo. Por outro lado, este possui a vida privada, os
desejos profundos e a subjectividade. Por isso, o amor escolhe o indivíduo porque este é
preferência, escolhe um e não outro. O amor é parcial e não uniformiza, mas distingue,
diferencia, afasta o sujeito da massa informe das estatísticas. As instituições, as
organizações, os colectivos tipificam. O
Amor baseado em experiência própria, tomar a própria experiência como fonte de sabedoria (…) isso é o indivíduo. A melhor parte da tradição ocidental expressou reconhecimento e respeito pelo indivíduo como entidade viva. A função da sociedade é promover o indivíduo. Não é função do indivíduo sustentar a sociedade.173
Mas a vida em sociedade exige uma ética que seja imparcial e que se guie por acima das
preferências pessoais, por isso esta instaura-se no dever, em contraste com o amor que se
171 Joseph Campbell, O poder do mito, ob. cit., p. 197. 172 Francesco Alberoni, A amizade. Bertrand Editora, 1988, p. 55. 173 Joseph Campbell, O poder do mito, ob. cit., p. 200.
55
afirma como um sentimento espontâneo, que não pode ser suscitados pela vontade174.
Mas o bom funcionamento da sociedade precisa da ética, a qual, como explica Alberoni
citando Kant, “não tem nada a ver com a amizade, simpatia ou amor. A acção moral é
feita por puro dever, contra a própria inclinação, contra os próprios sentimentos.”175 Ora,
esta ética foi essencial para a construção das sociedades contemporâneas176:
Se não tivéssemos construído uma ética impessoal que exige a imparcialidade absoluta, nunca teríamos construído instituições justas, que dão a todos a mesma justiça, prestam os mesmos serviços. Para superar o particularismo da amizade, da família, do parentesco, da preferência, aparece uma ética que condena tudo aquilo que se baseia no sentimento e afirma o nosso dever idêntico para com todos os homens. 177
2. O amor é a preferência do coração, a busca da unicidade, do diverso que nos
define também como seres únicos, valiosos, dignos: “com o Amor, o que temos é um
ideal puramente pessoal.”178 Sem esta consciência que torna o indivíduo um ser único,
este agiria como autómato, igual aos outros que conformam o tudo comunitário:
É a pessoa consciente aquilo que conta. Cada coisa é única, mesmo esta pedra, mas não é por isso que tem valor. O valor é dado pela centralização do eu como consciência, unidade consciente do múltiplo. Por uma razão totalmente misteriosa a vida produziu a consciência, e esta sabe que existe e que não pode deixar de existir. Para escolher a existência a consciência deve querer-se, deve falar de si a si própria, valorizar-se (…) Se não o fizesse (…) dissolver-se-ia. No animal, o sentido de conservação está ligado ao instinto (…) No homem à escolha entre ser ou não ser. (…) E se escolhe ser, ou seja a si próprio (…) não é apenas pelo medo, pela fome (…) ou seja o instinto. Mas ainda porque o eu se aprecia a si próprio, chega a amar esta sua miraculosa individualidade. Frágil, patética individualidade pessoal. (…) Por esse motivo cada um quer ser amado por si próprio, acima de tudo, apenas por pura inclinação. Cada um, basicamente, quer a preferência absoluta. Porque, criada a consciência, a vida apenas pode prosseguir se a consciência individual for dotada de valor, se se preferir. O amor é o modelo desta preferência. Até o enamoramento é, em definitivo, encontrar aquele que, preferido e preferível entre todos, se ama mais do que qualquer outro.179
174 Cf , F. Alberoni, A amizade, ob. cit., p. 50. 175 Ibidem. 176 Cf. Ibidem. 177 Ibidem. 178 Joseph Campbell, ob. cit., p. 197. 179 F. Alberoni, ob. cit., p. 54.
56
O amor é a presença viva do destino único de cada subjectividade, sempre diverso e em
correspondência às circunstâncias particulares e próprias de cada indivíduo. Nele,
reconhece-se em cada um o insubstituível, o intransferível.180 Para as regras do colectivo,
o indivíduo é uma partícula entre outras cuja importância radica no adequado
cumprimento das leis, preservando e dando continuidade ao colectivo. Por isso, “a
coragem de amar se tornou a coragem de afirmar uma experiência individual contra a
tradição.” Isto foi determinante para Ocidente porque deu
essa ênfase no indivíduo, no sentido de que cada um tivesse fé na sua própria experiência, em vez de simplesmente repetir o que lhe era imposto pelos outros. Isso sublinha a validade da experiência individual no tocante à humanidade, à vida, aos valores, contra o caráter monolítico do sistema. O sistema monolítico é um sistema mecânico: cada máquina funciona exatamente como qualquer outra, saída da mesma oficina.181
3. El enamoramiento, aun estando presente en todas las sociedades y en todas las épocas, ha alcanzado una configuración concreta y se ha convertido en la base de la convivencia amorosa y del matrimonio sólo en Occidente. Porque sólo en occidente ha emergido la individualidad, que ha logrado su libertad rompiendo con la familia y las costumbres. El enamoramiento es el fruto de la libertad. En la India siempre ha dominado el sistema de castas, en China siempre ha prevalecido la tradición, en el mundo islámico la mujer siempre se ha mantenido en un nivel inferior. Todavía prevalecen las costumbres. 182
Nos povos primitivos, e até à Idade Média, o sujeito não tinha uma identidade
pessoal, mas sim colectiva, e tudo girava em função da preservação da espécie.183 A
emergência do indivíduo - e a par deste, a da intimidade e a do Amor184 - deveio nos
180 O amor está directamente ligado à individualidade enquanto força que revela especificamente a individualidade do outro e de nós próprios. Alberoni, no seu ensaio Enamoramento e amor, expõe: “Com o enamoramento nasce uma força terrível que tende para nossa fusão e torna cada um de nós insubstituível, único para o outro. O outro, o amado, transforma-se naquele que não pode ser senão ele, o absolutamente particular…” F. Alberoni, Enamoramento e Amor, s/l, Bertrand Editora, 1988, p. 23. 181 Joseph Campbell, O poder do mito, ob. cit., p. 197. 182 Francesco Alberoni, Sexo y Amor, Barcelona, Gedisa, 2006, p. 182, 183 Nas sociedades primitivas, não existia consciência individual, só grupal. A consciência individual é uma conquista tardia da evolução: “su forma original es una simple conciencia de grupo.” C. G. Jung, Los complejos y el inconsciente, ob. cit., p. 46. 184 “Os jogos amorosos instituíram no interior da sociedade cortesã as estruturas mais firmes de recolhimento, impondo aos amantes vivirem a dois uma solidão oculta, como se nada se passasse, no seio da gente da casa, envoltos no segredo, numa clausura que os maus procuravam constantemente forçar. Talvez tenha sido aqui, nos refinamentos da relação masculino/feminino e pela provação, difícil, da
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séculos XI e XII com o florescimento dos jogos de cavalaria e a instituição monástica,185
e só na época moderna no mundo ocidental o matrimónio começou a depender mais da
escolha individual, dos sentimentos, do que dos interesses familiares.
Cuando entre los años 1000 y 1200 arranca el desarrollo económico y la sociedad europea cristiana se transforma rápidamente, estallan los movimientos de renovación y las utopías de una sociedad perfecta. Pues bien, el mismo fenómeno se presenta también a nivel de pareja. El enamoramiento es una revolución contra el matrimonio acordado entre familias, una afirmación de la libertad individual. A veces incluso supone una revuelta contra el orden constituido, contra los deberes conyugales y de lealtad feudal. Y siempre se contrapone a ellos como valores. Tristán e Isolda, Lanzarote y Ginebra, Abelardo y Eloisa, Pablo y Francisca son traidores y adúlteros, pero a su vez – y ésta es la paradoja específica de Occidente – también son héroes.186
Individualidade e colectividade formam um equilíbrio onde cada um precisa do seu
espaço e do seu valor. Mas se um esmaga o outro, produz-se um desequilíbrio. Como
consequência deste, forma-se uma polarização que por sua vez cria uma confrontação
entre os pólos, de que no melhor dos casos, resulta numa conciliação. Mas, quando uma
das partes se erige como única e absoluta, a semente e a floresta entram em colapso. Nas
duas obras que estudamos, vimos de que maneira a individualidade, o sujeito subjectivo
é apagado pelo predomínio do duplo em Jornada de África, e pela unidade duplicada de
D. João e D. Sebastião em Frei Luis de Sousa. Em ambas, encontramos contornada a
confrontação do indivíduo contra um destino - que na tragédia clássica era representado
pelos deuses. Na sua transposição nas obras, os deuses adoptaram a forma do contexto
social, cultural e histórico contido na figura de D. Sebastião, mas o fundamento não
muda: o indivíduo segue debatendo-se contra o que fica de fora, sejam os deuses ou a
estrutura social, histórica ou cultural.
discrição e do silêncio, que nasceu na sociedade profana, a partir do final do século XII, o primeiro rebento daquilo que se tornará, para nós, a intimidade.” Georges Duby, (direcção), História da vida privada, volume 2, Porto, Edições Afrontamento, 1990, p. 516. 185 “Para apreender até o fim, até à libertação do indivíduo, os progresso incertos da segmentação, é necessário concentrarmo-nos de novo em dois estreitos sectores da sociedade. Antes do século XIV, estes progressos só são claramente visíveis a dois níveis, o da instituição monástica e o dos sonhos e dos jogos de cavalaria.” George Duby, ob. cit., p. 509. 186 Francesco Alberoni, Sexo y Amor, ob. cit., p. 183.
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O caminho individual187 que leva ao desenvolvimento da individualidade, como já se
disse, apresenta-se muitas vezes debaixo do signo do amor. Em D. Madalena, no seu
amor por D. Manuel, e em Sebastião, por Bárbara. Ambas as tentativas fracassam, mas
vejamos como se apresentam.
3.3 Frei Luís de Sousa e Jornada de África
Frei Luís de Sousa e Jornada de África partilham uma estrutura semelhante no
que se refere à confrontação entre indivíduo e colectivo. Vejamos porquê. Frei Luís de
Sousa é a história de uma mulher, D. Madalena, que casa muito nova com D. João de
Portugal, imagem proverbial do bom português e ligado às camadas míticas da sua
nação. Já casada, conhece Dom Manuel de Sousa Coutinho, por quem se apaixona desde
o primeiro olhar, e com quem, mais tarde, casa, quando D. João estava há sete anos
desaparecido na infeliz batalha de Alcácer Quibir. D. Manuel e D. Madalena vivem o seu
amor aparentemente livres, tendo uma menina, que, como espírito fadado, vive entre o
sonho e a realidade, entre o pressentimento e o sentimento. Frágil e mágica representa o
fruto desse amor. Com o regresso de D. João, catastroficamente pressentido por Telmo e
Madalena, a família é rigorosamente desfeita, ficando só a desolação, a interrogação e a
expectativa sobre a vinda do omnipresente duplo de D. João, D. Sebastião.
Em Jornada de África temos um jovem estudante de Coimbra, Sebastião, que,
alistando-se no exército, é enviado para a guerra colonial em Angola. Desde o momento
da sua partida para África, estranhas coincidências e sincronias evidenciam espantosos e
187 “La individuación es un ideal que significa como premisa fundamental, fidelidad para con la ley propia. Impone, en muchos aspectos, un alejamiento de las normas colectivas convencionales para seguir el propio camino. Pero ¿qué significa el camino propio? Las convenciones sociales protegen contra las fuerzas oscuras de la naturaleza humana, resguardando al individuo de su propia naturaleza, de si mismo. (…) El camino auspiciado por las conveniencias de orden social, político o religioso es el transitado por la abrumadora mayoría que se desarrollará a partir de un método colectivo; una protección pagada al precio de la propia integridad. Y sin embargo, este camino no será nunca considerado como un ideal, porque significa fuga de las consecuencias del propio e individual desarrollo.” J. Salazar, ob. cit., p. 110. “El mecanismo de lo conveniente mantiene a los hombres en la inconsciencia, que les permite seguir, como los animales, las rutas conocidas desde tiempos atrás sin obligarles a decidirse conscientemente.” C. G. Jung, Realidad del alma, Buenos Aires, Editorial Losada, 1946, p. 130.
59
fatídicos paralelismos entre o jovem Alferes e o seu homónimo D. Sebastião. A partir
desse momento, Sebastião cai num limbo de despersonalização onde o tempo presente é
matizado, como sua própria subjectividade, por outros tempos passados, criando uma
unidade atemporal onde os acontecimentos repetidos, duplicados, desfilam ritualmente, e
onde a sua existência subjectiva é contornada pela sobrenatural projecção nos
acontecimentos do seu duplo, tornando a sua jornada tão trágica quanto a de D.
Sebastião. No meio destes acontecimentos, apaixona-se por Bárbara, mestiça angolana,
que, como símbolo de conciliação, projecta-se como um potencial futuro diferente,
próprio, individual, não comprometido pela herança centenária e colectiva de um
Império. Com este amor, o leitor é levado a imaginar um novo futuro para o alferes,
inundado numa Guerra que ele mesmo entende como perdida.
O final, repetição ritual da batalha de Alcácer Quibir, termina com o futuro sonhado com
Bárbara, e Sebastião, o alferes, é engolido na escuridão das areias de África pelo destino
repetido dos sonhos de um país.
Como se vê, existe em ambas as obras um antagonismo, no qual um pólo é apagado e
banido pelo outro. A força destruidora é sempre a mesma: D. Sebastião, claramente
explícito em Jornada, e matizado com a figura de D. João em Frei Luís de Sousa.
Também em ambas há um indivíduo em particular a quem é dirigida a descarga mítica:
Sebastião e Madalena. As duas personagens gravitam entre seu universo subjectivo –
amor, família, ideais, amizade – e aquele mundo que se materializa no duplo
representado por D. Sebastião. Este é portador de forças destruidoras vindas do passado,
que acabam por se impor no presente, materializando-se gradualmente ao longo do
desenvolvimento das obras. No seguinte apartado, veremos o caso específico de Frei
Luís de Sousa e a oposição existente, como princípios contrários, entre D. Madalena, -
representante do subjectivo individual - e D. João/D. Sebastião, representante da força
colectiva mítica.
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3.3.1. D. Madalena versus D. João/D. Sebastião
1. Para Andrée Crabbé Rocha a paixão, a intensidade amorosa de D. Madalena, é
uma “das realizações mais perfeitas de Garrett”188, um dos pontos cardeais de Frei Luís
de Sousa189 e onde radica a sua tensão dramática.190 O amor humaniza a personagem,
torna-a real e dolorosamente humana; e é nesse sofrimento que o leitor é capaz de
entrever uma subjectividade “natural, terrena, mesquinha e digna de piedade.”191 Essa
limitação, essa mesquinhice expressa no puro e simples desejo de reconhecer sua própria
felicidade como a única coisa de verdadeira importância, fá-la mergulhar nos avatares da
condição humana, subjectiva e limitada. D. Madalena erige-se assim como símbolo do
subjectivo, do indivíduo frente ao embate da fatalidade, personificada por D. João/D.
Sebastião.192 É na intensidade criada entre o seu amor apaixonado e paroxístico e a
imposição da fatalidade mítica que encontramos o âmago da luta do indivíduo versus o
colectivo da nossa análise.
Maria de Lourdes Vieira escreveu que para Oliveira Martins e José António Saraiva o
Frei Luis de Sousa representa, em termos simbólicos, “no centro da tragédia, o próprio
Homem.”193 A obra é um mosaico de imagens paradigmáticas que reflectem a condição
humana, a luta do Homem pela sua autonomia e desenvolvimento, entendendo Homem
188 Andrée Crabbé Rocha, O teatro de Garrett, (tese de doutoramento), Coimbra, Universidade de Lisboa, 1944, p. 165. 189 Andrée Crabbé Rocha, ob. cit., p. 166. 190 Cf. Ibidem, p. 162. 191 Ibidem, p. 167. 192 Esta abordagem é relativamente nova. António J. Saraiva chamou atenção sobre a importância principal de Telmo Pais como expresão do eu ao descobrirse e revelar-se a si propio na dileraceração entre a fidelidade a D. João e sue amor por Maria. Cf. António Saraiva, A evolução do teatro de Garrett. Os temas e as formas, Lisboa, 1948, pp. 30-31. Jacinto do Prado Coelho suscreve-se a esta interpretação de Telmo Pais. Cf. Jacinto do Prado Coelho, “Frei Luís de Sousa”, in Dicionário de Literatura, II, Porto, Figuerinhas, p. 352. Para Maria de Lourdes Cidraes Vieira, a personagem central é a familia,( cf. ob. cit., p. 396), assim como para W. Kayser: “a família (…) é a personagem do drama.” Wolfgang Kayser, Análise e interpretação da obra literária, Coimbra, Arménio Amado Editor, 1976, p. 418. Y J. Almeida Pavão interpreta a posição de Maria como personagem fulcral. Cf. Frei Luís de Sousa: o trágico e uma intromissão do cómico, separata da Revista Arquipiélago, n II, Janeiro, 1980, p. 194. Já para Luciana Stegagno Picchio o destino cego é o motor da obra. Cf. ob. cit. p. 188. Estas só são algumas das múltiplas interpretações à obra, mas para uma mais pormenorizada e sistematizada ordem das diversas interpretações ver Cândido de Oliveira Martins, “Para uma sistematização didáctica das leituras interpretativas do Frei Luís de Sousa de Almeida Garrett in: Almeida Garrett, um romântico, um moderno, vol. II, Lisboa, Casa da Moeda, 2003, pp. 89-135. 193 Maria de Lourdes Cidraes Vieira, ob. cit., p. 388.
61
como indivíduo. Esta luta é travada contra as forças arquetípicas de uma nação, onde,
como expressa Maria Vieira, o mito do Encoberto tem uma conotação negativa ao expor
o sacrifício final não como “imolação redentora, mas ritual de morte”.194 A figura mítica
nacional destrói as tentativas de desenvolvimento do diferente, do indivíduo, em favor do
mito, do sonho colectivo.
Maria de Lourdes Vieira, mais à frente, escreve: “A tragédia de Garret é um fragmento,
(...) de um discurso amoroso em que o outro, constantemente invocado, é a pátria...”195 O
outro, sempre presente na própria tragédia de D. Madalena. O outro, D. João/D.
Sebastião, que a limita na sua liberdade. A pátria e o dever para com ela; a sociedade e o
seu dever de esposa. Se retomarmos a ideia de que o amor é uma das bases, o reduto da
nossa última intimidade, onde expressamos a nossa individualidade, a eleição do
coração, então é Madalena quem melhor representa esta subjectividade. A tensão criada
entre o amor, a culpa e o dever nasce da tentativa emocional de ser ela própria e de viver
de acordo com a sua própria natureza, contra a imposição do destino que por nascimento,
circunstância, contexto histórico, e, sobretudo, por ser portuguesa196, se lhe impõe.197 É
verdade que ela não parece demonstrar consciência disto e a sua inconsciência
manifestar-se-á no seu encontro com o Romeiro, a quem expressa inocentemente o seu
matrimónio com D. Manuel.198
A força escura desta figuração de pátria anula as suas tentativas de desenvolvimento
como sujeito individual ao enfrentar o colectivo em que está inserida. Esta é uma luta
trágica por se libertar de algo maior que se impõe, a luta do indivíduo contra o
destino/pátria. Assim, “O Frei Luis de Sousa representa o protesto e a recusa de todas as
formas de tirania e opressão: política, moral ou religiosa.” 199
194 Ibidem, p. 389. 195 Ibidem, p. 392. 196 Tomando em linha de conta quem é que vem a quebrantar a sua familia –D. João/D. Sebastião – e de onde vêm – Alcácer Quibir. 197 Andrée Crabbé sublinha a intensidade deste amor que, ainda quando tudo parece pedir renuncia, continua desejando: “O que foi genial, foi mostrar precisamente um paroxismo de amor no momento me que tudo pede renúncia e morte”. Ob. cit., p. 164. 198 Cf. Almeida Garrett, ob. cit., p. 178. 199 Maria de Lourdes Cidraes Vieira, ob. cit., p. 394.
62
2. É a partir das acções – matrimónio, formação de uma família - de D.
Madalena que a tragédia se desenvolve. A família, pelo seu amor criada, é a que vem a
ser destruída com o regresso do Romeiro.200 A sua angústia, os seus pressentimentos e
agouros do regresso de D. João, sentidos como uma tragédia que se avizinha, devem-se,
em certa medida, ao sentimento de culpa pela sua falha na condição de amante esposa de
D. João. Se D. Madalena tivesse amado o seu primeiro marido, tê-lo-ia esperado. Se D.
Manuel tivesse sido o desaparecido, com certeza que o teria esperado. Porque para D.
Madalena é mais importante o Amor que a pátria ou as obrigações cívicas. É mais
importante a própria felicidade e a realização subjectiva: a sua família. Portanto, o amor
é o grande propulsor das suas acções: não ouve o instinto que lhe diz que o primeiro
marido pode estar vivo e casa com o homem que ama; tem uma filha e forma uma
família. Todas estas acções são construções do Amor, a parte dela que sonha e deseja
não pelo bem de uma nação, mas pelo seu próprio amor subjectivo, e é isto o que vem a
ser destruído.
Em Frei Luís de Sousa, D. Madalena luta pelo destino que ela quer para si mesma.
Interessa o coração, não a nação. Por outras palavras: “interessa-me a minha
subjectividade”, não os interesses do colectivo. Para Maria de Lourdes Vieira D.
Madalena “representa o primado do sentimento”201 É verdade que D. Madalena é levada
pelo amor. O amor é a escolha do coração, é o caminho misterioso da construção da
individualidade que nos leva dentro do nosso destino individual. Mas a autora explica
que sem uma razão guia: “Os afectos, sem o suporte da razão, levam o sujeito a perder-
se, entre a solidez do real e a vertigem interior”202. A autora continua a sua análise
explicando que a razão é representada por D. Manuel de Sousa, visto como um patriota
inserido no seu tempo, representante de um Portugal novo. D. Manuel é representante de
um colectivo novo, fresco e saudável sim, mas que razão é esta? É verdade que é uma
personagem que vive ancorada à realidade e age a partir do presente, do concreto, do que
200 A familia é consequência da afirmação de Madalena, neste sentido a interpretamos como uma criação vinda do amor e fruto dessa subjectividade. 201 Maria de Lourdes Cidraes Vieira, ob. cit., p. 395. 202 Ibidem.
63
parece manifestar-se como razão, mas os dados fornecidos por essa realidade evidente
não são suficientes para enfrentar a totalidade da situação que vive D. Madalena, nem as
suas implicações com a temática nacional mitológica que esta acarreta. A realidade
concreta e presente é só uma parcela da imensa paisagem do drama de D. João, D.
Sebastião e D. Madalena. Neste sentido, a razão representada por D. Manuel é uma razão
limitada, o que demonstra de que maneira a razão, o sentido comum e a realidade
concreta são insuficientes para abranger a unidade de significado, e as suas implicações
simbólicas, das circunstâncias que arrastam a família de D. Manuel de Sousa até à sua
destruição.
Em D. Madalena, o coração comanda verdadeiramente, o que a leva a ser realista
e razoável, pois a partir deste amor é capaz de pôr de parte a palavra de um marido quase
morto, desaparecido em batalha durante anos, e de entregar-se e comprometer-se com
quem sempre amou, actos que parecem absolutamente razoáveis. Mas são as
circunstâncias, os acontecimentos e a força que os subjaz, o que cobre tudo de elementos
irracionais: a presença omnipresente de um sonho colectivo quase sobrenatural
personificado em D. Sebastião, o regresso de um morto (ou que razoavelmente devia sê-
lo203), o desaparecimento de um rei e a ordem perdida num país onde a liberdade está
comprometida. A única verdade cristalina que aparece mais real é o amor de Madalena.
3. Na lógica dicotómica indivíduo/nação, D. Madalena e a sua paixão são a
unidade confrontada no acto segundo, cena XIV. Ela é o pólo que se opõe ao Romeiro, já
encarnado e desdobrado da sua unidade simbólica com D. Sebastião. D. João e D.
Sebastião funcionam aqui como unidade desdobrada – duplos – que ostentam o princípio
de ser português e suas conotações míticas (D. Sebastião), e cívicas (D. João); ambos
representam a portugalidade, em oposição a Madalena, que se representa a si mesma: um
sujeito que deseja e ama. Isto implica que a subjectividade, inconscientemente manifesta
no amor apaixonado, entra em choque colossal com a anacrónica busca de
203 Andrée Crabbé escreve: “... no fundo de todos os corações, tanto das personagens como dos espectadores, há uma profunda mágoa por D. João não ter morrido de verdade, e uma inconfessada indignação contra o algoz que mata uma criança e pede uma fidelidade conjugal levada ao absurdo!” Ob. cit., p. 164.
64
reconhecimento – de ser salvo do esquecimento – e, portanto, de amor, entrega e
fidelidade de um Ninguém. A brutal e sincera falta destes elementos no coração de D.
Madalena leva à anulação de tudo o que ela representa e cria.
A D. Madalena caber-lhe-ia, inserida no seu papel social, amar João de Portugal. Este
papel implica várias conotações: significa amar a pátria sobre todas as coisas e contra
toda a lógica. No nome do primeiro marido vem implícito quem simbolicamente é este,
como se referiu no capítulo anterior, e quem vem por detrás dele. Mas Madalena, se bem
ama e se individualiza nesse acto, não parece ter as condições nem sociais, nem
históricas para se antepor ao destino imposto por ser mulher de D. João. Não existe nas
suas circunstâncias um espaço onde encontre refúgio da sua subjectividade, é esposa de
João de Portugal e ponto. Já o seu segundo matrimónio é a busca desse espaço. Madalena
quer ser ela, mas deve cumprir com as exigências implícitas em D. João e a
portugalidade que este simboliza se não quer morrer. Não existe o divórcio, e o seu amor
por D. Manuel, que implica o seu desejo de ser ela mesma, parece culpável desde o
momento em que surgiu. Mas também não é capaz de viver com o papel de mulher de D.
João. Este acarreta o respeito às normas e deveres de portuguesa e de boa esposa. Mas
exige ainda mais: a obrigação de acreditar, esperar o regresso de D. João com fé cega.
Uma fé como prova de tempo e de evidência, uma fé quase religiosa. Fé no impossível
para os olhos da lógica, mas possível na lógica do mito do regresso, do Desejado. Por
isso não tem saída: ou acredita com fé cega em D. João, ou morre.
4. D. Madalena sente, nas suas angústias, que uma força implacável e fatal a
procura: o cumprimento de um destino. Mas Madalena, guiada pelo sentimento, pela
força do coração, tenta viver no presente. Neste sentido, a chegada de D. João é irrupção
do passado no presente, como escreve Ofélia P. Monteiro: “era simbolicamente sugerir
que a irrupção do Passado, na sua fixidez, prejudica a dinâmica do Presente, já que a vida
se inscreve no tempo que flui.”204 Mas o presente de D. Madalena está baseado num
204 Ofélia Paiva Monteiro, “Frei Luís de Sousa”, in Biblos. Enciclopédia Verbo das Literaturas de Língua Portuguesa, vol. II, Lisboa, Editorial Verbo, p. 693.
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passado que se pretende esquecer, não assumir, porque esse passado a prende, não a
deixa livre. Na verdade, Madalena não teve a força para se opor ao seu passado, à sua
história, e a carrega como um fardo que a angústia enche de funestos presságios. O
passado para ela é um constante presente, e a aparição do Romeiro só vem manifestar a
verdade: que o passado a mantém irrefutavelmente presa. Por isso, “É preciso matar ou
exorcizar o passado, para que Portugal possa ter futuro...”205 Mas esse passado é um
pano de fundo coberto pelo véu de um presente removível. Daí a importância da sua
exorcização; o passado é uma força poderosa que tem de ser enfrentada, pois o presente é
diminuído pela força maior de um passado eterno.
Por isso, a aparente assunção de D. Madalena de que o passado ficou por trás206 não
resolveu o problema. É verdade que D. João não estava, mas existia, e isso é o
importante. A fragilidade do presente estava baseada na vontade individual de Madalena,
na vontade de um amor e na expressão de si mesma com desejos próprios e únicos. É isto
que a aparição de D. João vem destruir. Mas essa vontade estava afundada num solo
removível, incerto, vago. A individualidade não tem a oportunidade de se enraizar com
profundidade na terra do presente, pois esta terra é feita de esperanças, sonhos e
promessas metafísicas e imateriais na temida espera de alguém.
Frei Luís de Sousa evidencia problemáticas que podem ser interpretadas de
múltiplas formas, como se pode reconhecer na extensa bibliografia que há a esse
respeito. Mas, sobretudo, evidencia o enorme poder que o mito tem na vida das suas
personagens. Evidencia a realidade do sebastianismo, seja este bom ou mau, e dessa
realidade se nutre o texto. Se seria melhor ultrapassá-lo: bem; se seria melhor assumi-lo:
bem. Mas não se pode viver alheio a este: essa é uma das mensagens da obra. Não há
nela alguma coisa que verdadeiramente destrua o sebastianismo, antes, este é
simplesmente expresso. Ignorá-lo é uma tragédia - como se reconhece no destino de
Madalena e da sua família -, fazer-lhe frente poderia não sê-lo, mas em Frei Luis de
Sousa não se lhe faz frente, quando D. João chega, fá-lo disfarçado, como Romeiro, e
205 J. Cândido de Oliveira Martins, ob. cit., p. 126. 206 Deduz-se isto pela realização do seu segundo matrimónio.
66
detrás dele, encoberto como duplo, vem D. Sebastião; e assim como veio, foi-se,
desbastando tudo na escuridão.
3.3.2. Em Jornada de África
1. Em Jornada de África, o amor apresenta-se com a face da conciliação, ou a
possibilidade dela. O amor representado por Bárbara, e tudo o que ela simboliza (nome e
mistura de raças)207, possibilita imaginar um futuro, um caminho próprio (mestiçagem e
abertura a novas possibilidades de vida) para o alferes. O nome, já em si mesmo, como o
esclareceu na sua tese Fernanda Leitão, remete para a obra camoniana, a poesia e a
outras viagens.208 Esse amor, de alguma maneira, parece determinado culturalmente; por
outras palavras, parece entrar também no entrecruzamento de coincidências significativas
e sincronias, que envolvem o Alferes na nebulosidade da sua nacionalidade. Parece
querer dizer que também a realização do indivíduo, o caminho individual, está
prefigurado na história da sua nação. Quer dizer que na vida do alferes existia a liberdade
final de escolher entre um destino ou outro (aquele que viveu ao repetir o percurso de D.
Sebastião, ou, por exemplo, fugir com Bárbara), mas ambos estavam já predeterminados
pela cultura.209 Quando Sebastião encontra Bárbara, reconhece tudo o que ela simboliza e
exclama: “A nossa cultura é uma cultura de mestiçagem.”210 Apaixona-se pela
conciliação que ela representa, pela história de navegantes, de conquistadores e pela
207 “Olha para as duas e repara que há nelas um não sei quê, apesar dos olhos verdes de Bárbara e da pele muito branca de Madalena, talvez a boca, talvez a curva dos olhos (…). Um traço africano ou oriental. Sangues cruzados, (…) só as grandes cruzas são capazes de uma tal beleza, Europa, África, Ásia, viva a grande peregrinação lusíada.” Manuel Alegre, ob. cit., p. 156. 208 Cf. F.J. de Bastos Leitão Pereira, ob. cit., pp. 101-102. 209 Quando Sebastião conhece Bárbara, repete um excerto das Endechas a Bárbara de Luís de Camões, que fazem alusão à escrava negra com o mesmo nome, da qual a tradição informa que se apaixonou. Ao reconhecer a repetição das circunstancias, mais uma vez, entre o passado cultural e histórico português e as sua próprias circunstancias, o alferes exclama: “É tudo a mesma crónica”. Manuel Alegre, ob. cit., p. 157. 210 Ibidem, p. 156.
67
beleza resgatada de todas as gestas no rosto dela. Escolher o amor seria escolher a via do
poeta, a via de Camões, a via do ser subjetivo por excelência, sendo a lírica o mais
pessoal e subjetivo dos géneros. E sendo Camões imagem e símbolo de amor à pátria211,
o caminho individual aparece definido como uma conciliação harmoniosa, uma unidade
entre o subjetivo e o colectivo, imagem de conjunção entre nacionalidade e
subjectividade. A poesia é o caminho da conciliação, o poeta que canta a sua pátria é
uma metáfora do subjectivo em harmonia e alimentando o colectivo, fundido nela mas
conservando a sua natureza eminentemente singular. Não é o colectivo que devora o
subjectivo e o subjuga, são ambos, juntos e separados. Como diz o escritor:
tudo começou pela poesia. O movimento nacionalista nasceu em volta de uma revista chamada Mensagem, repare em mais esta coincidência. Tinha como programa redescobrir Angola através da literatura, encontrar, através dela, as raízes da angolanidade. Assim a poesia se fez arma antes das armas. 212
E verdadeiramente é assim, todo o movimento colectivo começa pelo indivíduo, por um
que pensa, sente livremente e escolhe. Mas o colectivo não deveria engolir o indivíduo.
As revoluções nascem naqueles que sonham e sentem o poder da sua vontade e força
individual. O homem sempre tem lutado contra o destino que se impõe, desde o
primitivo que se resguardava de uma morte segura ao abrigo do calor do fogo, até a
estrutura das tragédias clássicas e das gestas míticas dos heróis. Estes são símbolos do
indivíduo, do ego na busca da sua libertação213; lutam contra a força indómada da
natureza, da fatalidade, criando as civilizações. A fatalidade que domina o indivíduo não
é gesta heróica, é perda de autonomia frente às forças da natureza e das múltiplas formas
em que esta se apresenta: dragão, inconsciente, fatalidade, estrutura social. Quando isto
acontece, o herói deixa de sê-lo porque só é herói quem dirige o seu destino, não quem se
limita a padecê-lo. Mas em Sebastião, que reconhece uma possibilidade de convergência
real para a sua pátria em Bárbara, as forças colectivas exerceram uma tal sedução, que,
ao final, se une ao seu duplo em destino, repetindo um ciclo, que se de alguma maneira
211 “Manuel Alegre presta uma homenagem àquele que considera o grande artífice da poesia e o mestre da língua portuguesa.” F.J. de Bastos Leitão Pereira, ob. cit., p. 99. 212 M. Alegre, ob. cit., p. 159. 213 Cf. Joseph Campbell, El heroe de las mil caras, ob. cit.
68
foi fechado, da mesma maneira o restaura, como a repetição ritualística preserva as
tradições.
2. A ambivalência do duplo tem a ver, por um lado, com a possibilidade que
outorga para o melhor conhecimento do sujeito214, e, por outro, como evidência ou sinal
da dissolução do eu. 215 Pode ser usado para poder ver-se a si próprio por fora e por
dentro e analisar-se, integrando na sua análise os aspectos desconhecidos de si que se
desdobraram. Este desdobramento pode ser simplesmente um sinal da cisão do eu, de
uma gradual decomposição da personalidade como unidade. Se adaptarmos estes
conceitos ao alferes e a D. Sebastião, entendemos que este, o duplo, é um aspecto da sua
natureza que resulta incompatível com a sua realidade consciente; no entanto, é-lhe
consubstancial. Na verdade, não pode fugir dele, porque é ele próprio. E este laço
indissolúvel vem contornado como traço hereditário centenário. 216 Não só a partir da
linha hereditária familiar, mas também como herança de ser português. O alferes é o
receptáculo da continuação de um mito cultural pátrio que supera a sua condição de
indivíduo. 217 A herança é colectiva e de tal forma consistente e resistente que a sua força
como indivíduo se perde na sua identidade com o colectivo. O colectivo prevalece sobre
o individual, anulando a subjectividade.
Do anterior se deduz que o duplo, como herança cultural e histórica, é mais forte que a
possibilidade de Sebastião se lhe impor e conseguir uma conciliação entre seu ser
214 “La concepción del Doppelgänger como producto de la escisión entre lo familiar y lo extraño, lo consciente y lo inconsciente, está vinculada a una de sus aplicaciones literarias más afortunadas: la oportunidad del hombre de conocerse a sí mismo y las consecuencias que se derivan de dicha ocasión. La autoscopia sería en este caso el desencadenante de un proceso de autoconocimiento en la figura de otro que es, en realidad, el mismo yo.” Rebeca Martín López, ob. cit., p. 36. 215 Cf. Ibidem, p. 67. 216 “Há várias gerações que há sempre um Sebastião na minha família. Homenagem a um avô que se perdeu em Alcácer. Agora calhou ser eu.” M. Alegre, ob. cit., p. 76. 217 A identidade é também, como recorda Eugenio Trías, produto de uma tradição cultural: “el sujeto no se constituye desde sí mismo [...], sino que se halla armado y estructurado desde y a partir de un principio fundacional que le precede, que le es externo y lo inscribe en un orden generacional, a modo de secuencia, sintagma o rol prescrito por un autor que queda fuera de la representación [...] En él se inscriben viejas, oscuras pasiones, culpas, euménides vividas, sufridas y deseadas por series precedentes de padres y antepasados”. Eugenio Trías, ob cit., p. 115.
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subjectivo e a herança. O duplo supõe uma ameaça quando é antagónica com o sujeito,
quando a tendência ideal seria a conciliação entre ambos os mundos. O aspecto sinistro
e ameaçador deste, é dado pelo seu total poderio sobre a individualidade, pela força
abrasadora que sobre ela exerce. Mas no Alferes parece não existir uma verdadeira luta,
mas uma gradual aceitação do sino. Encontra-se pasmado pelas espantosas e fatais
sincronias que o ligam ao seu duplo, e segue os sinais, seduzido por estes. Se existisse
mais equilíbrio entre o duplo e ele como indivíduo, mais oportunidade de conciliação
haveria, mas a força deste é esmagadora, e o Alferes não é capaz de lutar e escolher
livremente, resultando a força do duplo ominosa, incontrolável e fatídica.
No caso de D. Madalena, vemos que as circunstâncias a abraçam sem ela
verdadeiramente ter consciência daquilo que se passa. Não julga nem analisa as
conotações intertextuais que ligam a D. João com D. Sebastião, por exemplo. Mas o
alferes sabe, tem um critério, uma educação e encontra-se numa situação histórica que
lhe permite julgar a sua condição e circunstância; mas nunca o conhecimento foi
suficiente para apagar as forças colectivas do inconsciente. O alferes parece, em certas
alturas, assumir o seu carácter subjectivo e representar-se a si próprio, como quando,
estando dentro da guerra, luta e conspira contra ela. Mas por mais justificada que seja a
sua intervenção nesta e ele próprio a renegue, de qualquer maneira parece dúbia e
predeterminada essa intervenção, assim como o carácter fatal que tem a sua entrega a ela.
Na verdade, é que em termos práticos e no mundo dos factos, onde verdadeiramente
acciona e participa – é chamado de Alferes – , é na guerra, fazendo parte do mesmo
sonho imperialista do avô. A sua participação nesta, dado o desenlace, parece um
cumprimento e a consciência das espantosas circunstâncias que o cercam – das quais
poderia fugir e que ao emular se lhes dá mais força –, o conhecimento e a cultura que o
alferes tem, não retira nada ao poder do mito, muito pelo contrário, a consciência
comprova a sua existência efectiva, contra toda a racionalidade este existe.
Clara Rocha explica que Sebastião segue o seu destino por estar contra ele.218 Por isso é
chamada esta jornada de “sebastianismo do avesso” e a Sebastião “herói do não”. Mas
218 Cf. Clara Rocha, ob. cit., p. 241.
70
como já se disse, Sebastião está possuído pelo peso da carga colectiva que marca o seu
destino desde o nascimento, este “não ser” porque vive a partir da corrente delimitada
pelo colectivo cultural; o indivíduo anula-se, consciente e contra a natureza. Sebastião
sabe e não acredita no sonho imperialista de Portugal, mas cumpre este destino à letra.
Sabe que não está bem, mas presta-se como carne para canhão. Isto põe em evidência a
força irracional do mito, do sebastianismo. Irracional não num sentido pejorativo, mas
sim na sua acepção de não fazer parte da função racional. A força que subjaz à jornada
do alferes é mítica, onde a razão é derrubada, e a força do amor, a coragem de se afirmar
a si próprio, fica a meio caminho.
3. Madalena, tal como o alferes, é confrontada pelas forças colectivas da sua própria
nacionalidade que a subjugam e, finalmente, a apagam. Ambos representam a
individualidade frente ao colectivo, ambos se projectam no amor como seres subjectivos
e em ambos as tentativas da via do amor resultam vencidas.
Madalena não sabe, sente, e o alferes sabe, sabe que é uma guerra que não é para ele,
mas não é o suficiente. Madalena sabe com o coração, sabe que é o amor o que a faz
feliz, é por esta via que tenta seguir o seu caminho. Não é mulher do dever, mas do amor.
Em ambos os livros há um amor que floresce, contraposto a um mesmo duplo,
representado por D. Sebastião, que se impõe sobre a vida de um indivíduo. D. Madalena
cumpre com o dever ético da esposa amante do português exemplar, a quem o seu
coração nunca correspondeu. No alferes, o amor é confrontado com um destino
misterioso e peremptório, que se mostra implacável na repetição de datas e factos numa
Angola do século XX. Nenhum dos dois consegue seguir a via do amor, a dos desejos
profundos e subjectivos. A via do amor fica truncada. São obrigados a seguir, como
dever e força colectiva, o caminho do sebastianismo. É neste sentido que se revela a
confrontação entre subjectividade e colectividade, entre indivíduo e nação, e, neste
sentido também, evidencia-se a similitude entre ambas as obras, na forma em que o
indivíduo como ser subjectivo tenta afirmar-se como tal: através do amor. Nas duas
71
fracassa a tentativa de individuação e termina-se por impor a figura do duplo/D.
Sebastião com força superior e primária.
Os rituais são praticados quando se termina um ciclo. A sua função é reinstaurar a
ordem por meio da repetição. Em Jornada de África, o alferes foi a vítima sacrifical para
tal reinstauração, para a reactualização de um mito, seja este do avesso ou do direito, de
ambas as formas é a mesma roupagem com que se veste a nação. A única coisa que
verdadeiramente se pode opor ao poder do colectivo é a consciência individual, o
desenvolvimento do indivíduo. Neste sentido, o amor é uma porta que atira o sujeito para
o confronto e para a descoberta dos próprios limites e para a afirmação da sua unicidade.
Mas a jornada do alferes assemelha-se mais a um ritual restaurador do que a liberação do
passado por meio da própria libertação do alferes. No capítulo seguinte, estudaremos
precisamente a função dos rituais como sustentadores das tradições e de que maneira a
jornada do alferes se assemelha a um ritual, restaurando, neste sentido, um mito.
72
4. Ritual, Fatalidade e o Duplo
Tão regrada, regular e organizada é a vida social portuguesa que mais parece que somos um exército do que uma nação de gente com existências individuais.219
Fernando Pessoa
Jornada de África pode ler-se como um ritual no qual um ser predestinado desde
o nome, Sebastião, gradualmente se aproxima do encontro com o seu duplo. Este
percurso inciático descreve uma perda gradual de identidade, a qual será suplantada pelo
mito de quem leva o nome. Capítulo a capítulo, as duas identidades, a do alferes
219 Fernando Pessoa, Portugal, Sebastianismo e Quinto Império, Portugal, Mem Martins Publicações Europa-América, s/d, p. 52.
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Sebastião e a de D. Sebastião, vão progressivamente unificando-se até se converterem
numa só, quando ambas se reunirem numa batalha perdida em África. O alferes, ao
repetir com o seu desaparecimento o percurso sebástico, assimila-se, incorpora-se no
mito.
Mas esta reunião, marcada no encontro vislumbrado entre o alferes e Domingos da Luta,
é o clímax de uma gradual despersonalização de Sebastião, que começou desde a sua
saída de Portugal com destino a África. Um caminho traçado a cada passo, no interior de
uma África que, impertérrita, assiste ao manipular determinado das mãos do destino, as
quais, num ritmo antigo, constante e repetitivo - o ritual -, guiam sem distúrbios a sina
do alferes. O duplo, arquétipo de D. Sebastião, fecha a mão sobre ele naquele encontro
final, desvanecendo-o no meio do mato, levando-o consigo definitivamente, concluindo a
repetição ritual que culmina nesse desaparecimento.
A repetição da viagem do alferes tem características típicas dos rituais sagrados. Estes
são representações que marcam uma conjunção entre o tempo - o finito - e o intemporal,
o quotidiano e o eterno. O caminho ritual é uma preparação para sair do quotidiano
numa passagem que segue o caminho transcendente das origens, nos primórdios da
criação, no início dos tempos. Sebastião – na sua jornada - foi, na repetição dos factos
paradigmáticos da primeira jornada, o depositário do cumprimento destes
acontecimentos que reactualizavam a jornada do mítico D. Sebastião. E é esta a função
dos rituais: o regresso às origens para reactualizar os mitos como paradigmas culturais:
para o homem das sociedades arcaicas, aquilo que se passou ab origine é susceptível de se repetir pelo poder dos ritos. Para ele, portanto, o essencial é conhecer os mitos. Não só porque os mitos lhe fornecem uma explicação do Mundo e da própria maneira de estar no mundo, mas sobretudo porque, ao recordar, ao reactualizá-los, ele é capaz de repetir o que os Deuses, os Heróis ou os Antepassados fizeram ab origine. Conhecer os mitos é aprender o segredo da origem das coisas. Por outras palavras, aprende-se não só como as coisas passaram a existir, mas também onde as encontrar e como fazê-las ressurgir quando elas desaparecem.220
220 Mircea Eliade, Aspectos do mito, Lisboa, Edições 70, s/d , p. 19.
74
4.1. Mito e ritual
A realidade do mito é uma realidade transcendente. A sua existência refere-se a um
plano de existência real e absoluto no sentido de este mostrar a origem das realizações
humanas; é o plano das “realidades absolutas”221. Para o historiador das religiões, Mircea
Eliade, estas são exemplares porque mostram “o como” e “o porquê” do mundo ter sido
criado. Cada acto humano, o cultivo das plantas, a origem da chuva, o matrimónio, a
morte, etc., tem uma realidade última expressa nos mitos. Neles, um deus, os
antepassados ou um herói, geraram a existência.
Com efeito, os mitos relatam não só a origem do Mundo, dos animais, das plantas e do homem, mas também todos os acontecimentos primordiais em consequência dos quais o homem se transformou naquilo que é hoje (…). Se o mundo existe, se o homem existe, foi apenas porque os Seres Sobrenaturais desenvolveram uma actividade criadora nas «origens». Mas outros acontecimentos tiveram lugar depois da cosmogonia e da antropogonia e o homem, tal como é hoje, é o resultado directo desses acontecimentos míticos, é constituído por esses acontecimentos.”222
Desta maneira, o homem primitivo, ao reconhecer um tempo das origens, dividia o
seu mundo entre esse tempo primordial e o tempo que vivia das suas consequências. Por
outras palavras, através do mito, experimentava e dividia o mundo entre o sagrado e o
profano. A história transcorre no tempo profano, no tempo dos homens e do quotidiano.
O tempo sagrado é o mítico, onde o tempo deixa de ser tempo para ser chamado de
eternidade. Para acederem a ela, os homens da antiguidade voltavam ao estado mítico,
representando-o através dos rituais.
Numa fórmula sumária, poder-se-ia dizer que, «vivendo» os mitos, sai-se do tempo profano, cronológico, e penetra-se num tempo qualitativamente diferente, um tempo «sagrado», simultaneamente primordial e indefinidamente recuperável.223
É numa espécie de intemporalidade eterna e subjacente onde se geram os
paradigmas do tempo profano. Assim, os homens primitivos religavam-se com a
eternidade mítica para salvaguardarem-se da morte, da decadência e do finito; aboliam o 221 “É da experiência do sagrado, do encontro com uma realidade trans-humana, que nasce a idéia de que qualquer coisa existe realmente, que existem valores absolutos, capazes de guiar o homem e de dar um significado a existência humana.” Mircea Eliade, Ibidem, p. 119. 222 Mircea Eliade, Ibidem, p. 17. 223 Ibidem, p. 23.
75
tempo histórico e profano com a imitação e a repetição dos actos paradigmáticos da
origem:
Um sacrifício, por exemplo, não só reproduz exactamente o sacrifício inicial revelado por um deus ab origine, no princípio dos tempos, mas também se situa nesse mesmo momento mítico primordial; quer dizer, todo o sacrifício repete o sacrifício inicial e coincide com ele. Todos os sacrifícios são feitos no mesmo instante mítico do princípio; o tempo profano e a duração são suspensos pelo paradoxo do rito. E o mesmo se passa com todas as repetições, ou seja, com todas as repetições dos arquétipos; através dessa imitação, o homem é projectado numa época mítica em que os arquétipos foram pela primeira vez revelados. (…) a repetição de gestos paradigmáticos confere realidade a um acto (ou objecto) e é nessa medida que há uma abolição implícita do tempo profano, da duração, da «história»; aquele que reproduz o gesto exemplar é transportado assim para a época mítica em que esse gesto exemplar foi revelado.224
A repetição cíclica e a renovação periódica da vida responde a uma ideia de renovação,
baseada na observação dos ritmos biocósmicos:
há sempre uma concepção do fim e do princípio de um novo período de tempo (…) enquadrada num sistema mais vasto, o sistema das purificações periódicas (…) e da renovação periódica da vida (…) uma renovação periódica do tempo pressupõe (…) uma nova Criação, ou seja, uma repetição do acto cosmogónico. E esta concepção de uma criação periódica, isto é, a renovação cíclica do tempo, coloca a questão da abolição da «história».225
O ritual era uma celebração que recriava, isto é, repetia os feitos e façanhas realizadas
por uma figura mítica, um deus, um rei ou um herói cultural para, consolidando a
cosmogonia, renovar-se. Desta maneira, o ritual era um meio de renascimento e
reactualização dos mitos; retornando à origem, imitava a figura mítica, para depois voltar
a inserir-se no tempo profano purificado. Era uma maneira de renascer, de purificação,
de reincorporação e revalidação dos símbolos e arquétipos significativos, numa tentativa
de reordenar o mundo através da sacralização e da religação com o tempo mítico226: “a
renovação do mundo e da vida pela repetição da Cosmogonia.”227
224 Mircea Eliade, O mito do eterno retorno, Lisboa, Edições 70, s/d, p. 50. 225 Ibidem, , p. 67. 226 Cf. ibidem, p. 69. 227 Ibidem, p. 76.
76
A função da repetição implícita nos rituais é a reactualização das cosmogonias e os
rituais são o meio-padrão em que está estruturada a gesta arquetípica. O ritual é o
seguimento de um modelo arquetípico que se percorre para se religar ao estado
atemporal do sagrado e conseguir a regeneração:
O valor apodítico do mito e periodicamente reconfirmado pelos rituais. A rememoração e a reactualização do acontecimento primordial ajudam o homem «primitivo» a distinguir e reter o real. Pela repetição contínua de um gesto paradigmático, qualquer coisa revela-se fixa e durável no fluxo universal. Pela repetição periódica daquilo que foi feito in illo tempore, impõe-se a certeza de que qualquer coisa existe de uma maneira absoluta.228
Entendendo o ritual como um percurso iniciático que gradualmente se aproxima, numa
repetição dos feitos arquetípicos da origem, ao próprio “Olimpo”, por assim dizer, para
renovar o paradigma mítico, a jornada do alferes distingue-se pela sua ritualidade em
aproximá-lo do seu homónimo, remarcando a actividade mítica deste e reiniciando-a.
4.2. Jornada e ritual
No segundo capítulo de Jornada de África, Sebastião entra numa estrutura fixa e
fatídica pelas datas marcadas, de grande relevância na história cultural de Portugal:
“Talvez Sebastião tenha sido condenado a partir nessa data.”229 “Está visto, Junho é o
mês do embarque…”.230 A partir deste ponto, os acontecimentos que o rodeiam saem do
tempo profano e fundem-se e sincronizam-se com aqueles que viveu um dia el-rei D.
Sebastião. Neste novo espaço ritual e sagrado, ambos sucedem juntos, paralelos, como
se o tempo decorresse em espiral onde o alferes se encontra num extremo ligeiramente
acima de outro extremo, ligeiramente abaixo, onde D. Sebastião e seus homens partem
simultaneamente para África.
Agora, o destino tem um nome para o alferes: D. Sebastião, o outro, o seu duplo - ou de
quem é duplo - cuja vida é o seu paradigma e padrão, está prestes a repetir-se. É uma
228 Mircea Eliade, Aspectos do mito, ob. cit., p.119. 229 Ibidem, p. 25. 230 Ibidem.
77
coisa marcada. O nome é essência e o alferes recebeu esse destino como herança familiar
que vem do passado, que vem das origens. O duplo aparece como uma força cultural,
histórica, baseada nas esperanças e no imaginário secular de um povo. Desde que
Sebastião vai para África de avião, sua vida decorre em duas bandas, naquela marcada
pelo destino e pelo duplo, que representa as forças colectivas da sua nação, e naquela
vivida no seu coração, inspirada pelos olhos verdes da hospedeira, Bárbara.
As coincidências das datas marcam uma simultaneidade: “É o ritmo da partida, quer se
queira quer não. (…) Não há nada a fazer, esta é a métrica, de nau ou de avião é a mesma
coisa.”231 É o início da conta regressiva, o ritual iniciado; Sebastião está a cumprir o seu
destino. Desde esse momento, o alferes já não é só um sujeito entre outros, é a
personificação de uma figura mítica232: “…o dedo apontado para ele.”233 Segue um
destino, sendo neste caso equivalente à fatalidade, oposto a liberdade, oposto ao caminho
individual, no qual o indivíduo, conhecendo-se a si mesmo, conquista-se na descoberta
de quem é, conciliando os aspectos dissociados da sua personalidade; realiza-se seguindo
o próprio caminho.
O percurso do alferes Sebastião desde Portugal a África, desde os sonhos de Coimbra até
à guerra em África, assemelha-se, ou melhor, é um ritual cíclico de renovação, porque
segue um ritmo sincrónico que invoca os tempos em que a história teve início, onde se
respondem aos comos e aos porquês. O alferes é o eleito para emular e realizá-lo e,
assim, manter a ordem cultural renovada.
Nos rituais, o tempo detém-se, ou melhor, sai-se da temporalidade para ser um com o
deus ou herói a emular. Chega-se a uma completa identidade com o deus ou herói
originário quando se completa a repetição ritual da façanha originária. Antes da
culminação, o rito é um encontro gradativo, um processo inciático de preparação. O
sujeito/vítima sacrifical perde a identidade para re-criar o mito, identificando-se com o
deus ou herói. Assim, na culminação, o deus é completamente incorporado, repetindo o
início dos tempos, renovando-os e restabelecendo a ordem.
231 Ibidem, p. 26. 232 Desde que o alferes vive um ritual no que gradualmente se aproxima da personagem mítica (D. Sebastião), ele é carregado de maná ou numen, portanto, é portador do mistério. A sua atitude consciente não lhe tira a importância do seu protagonismo no ritual. 233Mircea Eliade, Aspectos do mito, ob. cit., p. 27.
78
Sebastião começa a sua viagem iniciática apercebendo-se de ser depositário de seculares
identidades, assim como de ser o rapaz que estudou em Coimbra, que namora e sonha em
poesia, que é impressionado pela imagem de uma angolana de olhos verdes, símbolo de
mistura, de conciliação e de integração. Esse amor de olhos verdes aparece como o ideal
de uma vida possível, a de Sebastião, com nome e apelido próprio, cujo nome é seu. O
homem que merece a vida, o indivíduo que a procura e nessa procura a faz única, não a
vida de um sonho colectivo, não a vida de um herói anónimo nacional: a vida de um ser
único amado por alguém único, um indíviduo.
Neste sentido, o indivíduo e o colectivo são antagónicos. O duplo do alferes emerge das
sombras centenares do passado histórico português, atravessando-o. D. Sebastião aparece
como o mito, o deus que exige entrega e repetição. O duplo, sendo assim, é uma
personificação cultural arquetípica, que subjaz à identidade do alferes, marcando o seu
destino. É um mito vivo, porque atravessou os tempos e os acontecimentos históricos
para levar o seu homónimo a viver e rememorar a batalha fatídica que o viu nascer como
mito.
A tradição é mantida nos ritos, na repetição, no sacrifício. O elemento perturbador é o
facto de que este duplo mítico usurpa uma individualidade. Fere a semente do mais caro
ao Homem, o seu próprio desenvolvimento subjectivo, o seu próprio destino como
indivíduo.
As grandes criações humanas, os avanços da humanidade são dados através da
individualidade. São os indivíduos no desenvolvimento da subjectividade que levam o
colectivo sempre para a frente. Os mitos apoiam este caminhar, mas existe sempre o
perigo de se ser tragado por eles, estes são forças colectivas que estruturam a vida do
Homem. O indivíduo deve ser apoiado por estes para se desenvolver, não para ser a
repetição do que já foi. Cada vida é única e Sebastião vive a sua perda de identidade, a
expropriação da sua vida individual como a frustração do próprio caminho.
Este caminho via-se projectado no amor por Bárbara e em tudo o que ela representa:
conciliação, abertura, liberdade, futuro, criatividade e coração. Mas Sebastião é levado
pela força arquetipal do seu duplo e fica perdido na poeira da indeterminação. Um ritual
sem glória, nem aplausos; um ritual silencioso.
79
A consciência, a aversão que a guerra causa em Sebastião nesta segunda jornada de
África, é sintoma de uma maior consciencialização do significado do sonho imperial. É o
alferes como ser subjectivo, como indivíduo livre e não como predestinado quem diz
não. É consciente do erro. Mas todos, ele e os outros – nomes de Alcácer: Miguel de
Noronha, Alvito, Jorge Alburquerque Coelho, Duarte de Meneses -, são levados por
forças superiores a estas tentativas de libertação, de desenvolvimento da individualidade.
1. No seu trabalho sobre Jornada de África, Roberto Vecchi explica que, ao repetir o
ciclo da primeira jornada, a jornada do alferes leva em si a tentativa de confiná-la dentro
do tempo histórico; historizá-la e situá-la definitivamente nos confins históricos do
tempo:
Sebastião non è qui il sovrano destinato a creare con la propria scomparsa il mito, ma è il sottotenente ribelle inviato in Angola e destinato a ripeterne differenzialmente il mito, su cui incombe la fatalità tragica di rigenerare in sé la ritualità archetipica della scomparsa, con l’intento però risolutivo di spezzarne l’epifania ciclica e consegnarlo definitivamente all’uomo storico.234
Nós não concordamos. Esta poderia ser a intenção original que subjaz ao texto235, como
já escreveu João Medina: “o romance de Alegre não deixa de abrir uma porta de algum 234 Roberto Vecchi, “La guerra coloniale tra genere e tema: «Jornada de África» di Manuel Alegre, in: Dalle armi ai garofani, Roma, Bulzoni Editore, 1995, p. 55. 235 “O fechar do ciclo parece ser, pois, a ideia fulcral da obra, que obrigará Portugal a voltar a si, passo também ainda mais difícil do que perder África. A dúvida acomete Sebastião: «Portugal fez-se para for a, não sei se conseguirá regressar, ou melhor, não sei se voltará, se é que se pode voltar de uma viagem assim.»(P.228.) Mas para o fechar do ciclo (ou do círculo) ser possível tem de haver, por um lado, uma linha de continuidade – e daí o paralelismo de dois Sebastião – e, por outro, o sentido inverso dessa linha – o modo como o alferes Sebastião é o outro do «avesso» (palavra que o narrador constantemente utiliza), um «herói do não», como também se dirá.” Maria das Graças Moreira de Sá, Jornada de África de Manuel Alegre: O último Sebastião ou o fechar de um ciclo histórico”, in: As duas faces de Jano, Lisboa, 1999, pp. 178-179. Mas este ir de sentido inverso à linha de continuidade, numa excomungacão, como parece ter sido a intenção do autor, resulta numa repetição, e o sentido “avesso”, mais uma pretensão do que uma “realidade”. O sentido de “avesso” - como se verá mais adiante – baseado na atitude de Sebastião como contrário a guerra e ao colonialismo, e que o posiciona como um anti-Sebastião, e portanto com a capacidade de excomungá-lo, sendo e não sendo D. Sebastião, é uma atitude que não o define na sua totalidade. A presença do duplo é um sintoma da cisão da personalidade. Neste sentido, a complexidade do alferes vai para além da sua primeira posição anti-colonialista . Nele habita um D. Sebastião, e sua aversão à guerra não é mais do que uma polaridade da sua própria contradição interior, sendo que no final é o duplo quem termina por dominar essa contradição, fazendo com que a questão do “avesso” não seja realmente cumprida. Por outras palavras, a polaridade interior sebástica, ao se impor, desactiva a posição “avessa” do alferes. Isto ver-se-á com maior profundidade mais adiante.
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modo surpreendente ao próprio mito sebastianista, ainda que fosse sua intenção enterrar
a guitarra doente e louca que cantara a arremetida de 1578 e, depois, a de 1961.”236 Mas
ao ser a segunda jornada repetição exacta, no sentido de também ter um idêntico
desenlace da primeira, o único que se manifesta com ela é a descrição dum processo
ritual assim como foi entendido por Mircea Eliade, como vimos antes. No ritual do
alferes reinstaura-se e recria-se um tempo sacro, um tempo fora do tempo que no final
permanece como paradigma ao ser reelaborado por este. Quer dizer, a jornada do alferes
reinstaura e não reduz ao tempo histórico o mito do desaparecido D. Sebastião, porque
cumpre com os elementos que definem os rituais: saída do tempo profano para entrar no
intemporal das origens que se estão a emular; repetição destes feitos arquetípicos, cuja
razão de se repetir é a de reinstaurá-los; culminação idêntica no ritual do feito
paradigmático.
Reduzi-lo ao tempo histórico teria sido, por exemplo, que tivesse voltado com vida
Sebastião, dado que, ao desaparecer, como o primeiro, na indefinição, mitifica-se. Isto
poderia ter sido uma reelaboração. Ao regressar, o alferes teria adquirido um estatuto
histórico, pois a este regresso seguir-se-ia uma vida inserida no tempo quotidiano
histórico: possível matrimónio, filhos, velhice, degradação e morte — um percurso vital
humano. Ao desaparecer, adquire, no entanto, conotações míticas, pois ao não se
encontrar um corpo mortal, este situa-se para além da mortalidade; por outras palavras,
entra na eternidade do tempo do indefinido, fora da condição humana, no solo da
imortalidade, entra no solo do sagrado reafirmando o desaparecimento de D.
Sebastião.237
236 João Medina, “O mito sebastianista hoje : dois exemplos da literatura portuguesa comtemporânea : Manuel Alegre e António Lobo Antunes”, in Literatura, artes e identidade nacional, actas dos 3º Cursos Internacionais de Verão de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1997, p. 211. 237 “O paralelismo de identificação entre o primeiro Sebastião e este último obrigava, para que o fechar do ciclo fosse efectivo, como toda a estrutura da obra parece denunciar, a um mesmo destino dos dois – o mistério do seu desaparecimento, equiparável ou não à morte. Esperava, talvez, o leitor que o alferes Sebastião morresse de facto, para não deixar atrás de si nenhuma ponte de possível sebastianismo. O ciclo fecha-se – não fosse o alferes Sebastião o símbolo de uma guerra em África já sem sentido, que acarretará a saída portuguesa dos domínios africanos – mas abre-se na multiplicidade de novos sentidos a dar à História, onde outras formas de messianismo ou de sebastianismo são possíveis (talvez um messianismo ou um sebastianismo do avesso). Afinal, navegava dentro do alferes Sebastião um Portugal secular que, se devia encerrar um ciclo de cinco séculos de História, tinha de continuar supostamente vivo para construir um novo Portugal, desta vez, assente em pressupostos inversos, pressupostos anti-colonialistas e anti-sebastianistas, que marcam a figura do protagonista. Sebastião tem de se perder, como o outro, para se poder achar de outro modo. Embora a acção decorra entre 1961 e 1962, ele é já, pelas malhas que
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Roberto Vecchi expõe a tese de que a aceitação do destino por Sebastião, de encarnar o
retorno do mito, o sacrifício de se oferecer como vítima, transforma a repetição num anti-
ritual:
Il senso del sacrificio di Sebastião si tranforma allora in un poderoso atto sovversivo e antirituale dell’uomo storico che, assumeendo coscientemente il ritorno del mito, ne chiude definitivamente il ciclo, lo storicizza facendone esperienza e può così consegnarlo per sempre alla storia, strappandolo alla eventualità incombente della ripetizione.238
Nesta citação explica-se que, ao assumir conscientemente o retorno do mito, o historiza.
Nós achamos o contrário. A aceitação do destino de encarnar o mito é mais um acto
niilista, como já se disse no anterior capítulo. A consciência do alferes não gere a
situação nem é capaz de conciliar as circunstâncias, pois estas sobrepõe-se aos seus
conhecimentos deixando-o numa constante interrogação sobre o porquê dos
acontecimentos. E muito pelo contrário, a verdade é que está consciente da historia
mítico-poética da sua nacionalidade e das consequências que levaram à guerra colonial,
mas este é o seu limite. O neurótico pode ser consciente de ter uma neurose, mas isso
não o faz menos neurótico; continua preso às suas compulsões. Sebastião, para escapar
– pensamos nós – ,primeiro necessitaria assumir-se cabalmente como indivíduo, pois só
assim poderia aceder a Bárbara, símbolo da aceitação de todo um mundo para além do
entretece, prenúncio do fim do regime e da política africana. O final do romance é, assim, fim de um ciclo e anúncio de um outro que está por vir, o de um Portugal de não menos messiânica liberdade, que tinha agora, a partir de 1974, de que todo o romance é sinal, de se (re)inventar outro.” Maria das Graças Moreira de SÁ, ob. cit., pp. 183-184. Desde a perspectiva da reinvenção da nação, concordamos com o anterior, mas nós estudamos Sebastião como paradigma do individual, desde a sua condição humana, e a sua perda não pode ser inofensiva. Espera-se um novo Portugal, baseado no sacrifício do individual, na perdida do ser que se imola na espera do ser? Neste sentido, este fechar do ciclo, anuncia outro na espera contínua através do tempo, infinita e paradoxal como a Ouruborus, a serpente que morde a própria cauda. Este perder-se para se encontrar parece uma atitude inerme intrinsecamente niilista e passiva, pois este encontrar parece ter de vir como graça divina, pois, de outro modo, não era necessário perder-se, mas procurar. Por isso, a aceitação da perda é reflexo da continuidade subjacente aos cinco séculos de império: a espera. Reactualiza-se o mito. Em relação a se reinventar outro, a ideia de que ser chamado de avesso faz com que, quase magicamente, as coisas, ao recomeçarem, sejam diferentes, contradiz a problemática do duplo que vive o alferes e que denunciam problemas de identidade - como se viu e verá mas adiante – e com o ritual, que intrinsecamente expõe a repetição das cosmogonias para reactualizá-las, não para excomulgá-las. O virar ao avesso D. Sebastião e sair Sebastião o alferes e querer com isso excomungar cinco séculos de História, parece um jogo de mãos quando estudado desde a perspectiva dos ritos e do duplo como cisão da identidade. 238 Roberto Vecchi, ob. cit., p. 58.
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mito. Ao se perder dentro do mito, levado pela sua coesão repetitiva, perde a autonomia;
e a consciência, o conhecimento e o pensamento crítico vêem-se reduzidos frente à
potência implacável e irracional do mítico.239
Roberto Vecchi explica que fecha o ciclo ao historizá-lo com a experiência, mas esta
realmente não se faz concreta nem real porque o desaparecimento de Sebastião situa-se
todo, no início, na indefinição. A experiência seria real e realmente se historizaria se
Sebastião, como se disse antes, tivesse regressado para viver a vida de um mortal, mas a
única coisa que faz é, exactamente, uma repetição do mito, na qual se volta a evidenciar
que, neste caso, o mito impõe-se à história, ao indivíduo, pois domina completamente e
precisamente a consciência do alferes – impõe-se apesar dela –, e apesar de o mundo
continuar girando e existam Bárbaras, outros países e outros caminhos. Sebastião é
incapaz de se subtrair à fatalidade do mito, a repetir o seu ciclo e é levado à perda de
controlo da sua identidade. Vecchi explica que ao assumir conscientemente o sacrifício
de se perder, fecha o ciclo. Mas é exactamente o contrário: Sebastião está subjugado pela
sincronia e fatalidade dos eventos, está espantado e sem explicações, pelo que a sua
consciência vê-se reduzida, posta de parte pelo pouco racional dos eventos. Estes
deixam-no desarmado, inerme. Não há uma consciência ou controlo sobre os eventos,
nem sobre o porquê das coisas e muito menos um abranger, com a consciência, o poder
do mito que, em última análise, é o que controla os acontecimentos: o mito assenhora-se
da situação, não é a consciência que o faz.
Sebastião não tem explicação para o que se passa, portanto não pode assumir
conscientemente nada, nem no conhecimento escolher o que é melhor ou pior; os
eventos empurram, obrigam, levam-no a deixar-se ir, perde as rédeas.
Poderia ser, também já se disse, que a intenção do autor tenha sido a interpretação que
faz Roberto Vecchi, mas a partir do romance não se pode interpretar assim. Há um fechar
de um ciclo, sim, mas na medida em que se reactualiza. Recria-se um evento já
mitológico que marcou uma cultura. Ao recriar reactualiza-se e, ao que assistimos como
leitores, é ao espectáculo do auténtico poderio do mito que influi e condena, guia e
modela através dos séculos, das consciências e das individualidades.
239 Os mitos são potencias irracionais que, como os símbolos, são imagens que ultrapassam o sistema racional da consciência.
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Não falamos da função da obra ao tratar um tema histórico e da sua repercussão como
motor de experiência, como explica Roberto Vecchi240 , falamos do texto em si. Os
factos dentro do texto afirmam a proeminência do mito; neste sentido, é mitológico
porque o leitor assiste à calamidade do mito e ao seu poderio que volta, impõe-se e
mantém-se, incompreensível e aporrinhante. Não interessa que o alferes seja um homem
culto, sensível, idealista, inteligente e revolucionário, desde o princípio que o seu nome
está condenado, como assim demonstra o seu fim. Então, que se poderia esperar de quem
não tem nenhuma consciência?
O herói combate e, se morre, fá-lo por combater; e se em algum momento parece perder
força, arremete depois e conquista. Mas aqui não há conquistas, só destino,
cumprimentos e o mundo a seguir seu rumo. Neste sentido é verdade que é um anti-
herói. O que fica é o sentimento da inexplicável e implacável fatalidade do mito. E se o
objectivo é inserir a obra como prefácio dos acontecimentos posteriores, como a
Revolução de Abril, não deixa ainda assim de ser verdade que o mito levou consigo e
dominou as vontades da segunda jornada de África.
A Jornada de África descreve a gradual perda de identidade de Sebastião, Esta está
perdida em directa proporção com a predominância do duplo de Sebastião. Roberto
Vecchi escreve, por sua vez:
Ma in questa conscienza dissociata di sé como altro, non è solo l’esperienza lacerante del conflitto ad incrinare l’identità piena del suo “io”, ad assecondare la sua deriva alienata: Sebastião, incarnando il ritorno di un mito a garanzia della nazionalità, se fa metafora viva di una perdita di identità piu ampia, collettiva, di una generazione, di un intero popolo che non si può più riconoscere nel discorso ideologico dominante che strumentalizza miti ed immagini fondatori della conscienzia nazionale per legittimare la propria crociata anche dentro la modernità, come fa nella sua lezione lo specialista anti-guerriglia portoghese, nel ripristinare l’idea di missione civilizzatrice: «estamos aqui para defender cinco séculos de História e assegurar a permanencia de Portugal numa perspectiva de renovação e de futuro. Estamos aqui para ser o braço armado da lei, do progresso, da justiça, numa palavra: da Portugalidade»”. 241
Como se pode deduzir, para Roberto Vecchi Sebastião é um símbolo de toda uma
geração que é incompatível com a ideologia de um determinado momento da história
240 Cf. Roberto Vecchi, ob. cit., p. 54. 241 Roberto Vecchi, ob. cit.,pp. 56-57.
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portuguesa, a que usa os símbolos fundadores da pátria para dominar. Sem negar este
ponto, devemos salientar que o mito - D. Sebastião – existe e subjaz a essa ideologia. A
força do mito operante, a do regresso de D. Sebastião, não é produto ou simples
ferramenta de uma ideologia: daí deriva a sua força. O próprio mito tem sua própria força
que se demonstra na sua permanência para além da História e o seu decurso no
inconsciente colectivo nacional. Precisamente, a sua aparição como duplo em Frei Luis
de Sousa, 146 anos antes, exigindo a total rendição de D. Madalena, evidencia de que
maneira a existência do mito sebástico tem um valor apodíctico. E, neste sentido, o
fechar de um ciclo não remete só a cinco séculos de História, mas à imaterial
consistência do mito que subjaz à pragmática História. A segunda jornada abrange o
imaginário português que simplesmente não pode ser fechado com um regresso “a si e a
seu estreito rectangular perfil atlântico”242 O mito é cultura e sustentáculo de um povo,
não desaparece simplesmente pela perda de uma guerra. Por isso, este fechar,
iniludivelmente, alude a um recomeço. Portanto, Sebastião “é ele, a sua geração, o el-rei
do mito e Portugal”: 243 em qualquer dos casos, não só seria o representante de uma
geração, mas o representante dos portugueses na sua condição de indivíduos,
desdobrados e expropriados da própria capacidade de conduzir e dirigir seu próprio
destino, levados, em troca, pela marca arquetípica do mito, que se lhes impõe como
encarnação da sua parte cindida, inconsciente, encarnada como duplo em D. Sebastião.
Não é só um momento histórico, como a guerra colonial, este responde ao todo da
identidade nacional, mas não a abarca.
Seguindo a linha de análise de Roberto Vecchi, Clara Rocha, ao referir-se a
Sebastião como “uma personagem feita de lúcida consciência que segue o seu destino
precisamente por estar contra e por não acreditar na guerra”244, parece imunizar o alferes
das contradições que o levam a seguir o caminho do mito. E é muito pelo contrário, esta
consciência, paradoxalmente, que acentua o poderio do mito, que está dentro e fora da
personagem, criando situações muito contraditórias pois, apesar de este ser contra a
guerra, apesar do pensamento e a constante reflexão, o mito impõe-se na sua própria
242 Maria das Graças Moreira de Sá, ob. cit.,p. 177. 243 Ibidem. 244 Clara Rocha, “Jornada de África de Manuel Alegre: determinação e autodeterminação do herói”, in O cachimbo de António Nobre e outros ensaios, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2002, p. 241.
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consciência e nos factos exteriores. Na contradição criada pela sua posição racional e a
alucinante predeterminação do modelo sebástico, este último marca o caminho a seguir e
mostra a enorme distância, na contradição, entre o Eu que reflecte e o que o domínio
mítico determina.
A autora, no mesmo parágrafo acrescenta: “a força que o empurra não é da convicção
mas da interrogação.”245 Se contrapormos “lúcida consciência” a “interrogação”,
descobrimos que a interrogação , o espanto e a própria incapacidade para compreender os
acontecimentos o levam até ao final paradigmático da primeira jornada: o mistério que o
envolve, a interrogação e o fascínio que estes criam nele rodeiam-no até ao inevitável
encontro frontal que o dissolve e leva, precisamente, ao mistério da nacionalidade. Por
outras palavras, o mistério da portugalidade é o grande condutor do destino do alferes,
não a sua consciência dominante. A consciência lúcida que a autora refere é o próprio
questionamento interior, mas este não é equiparável a um domínio consciente sobre a
situação. Sebastião é a peça central com que se põe em movimento o ritmo ritualista do
mito sebástico e a sua consciência, à qual temos acesso, é o eu subjectivo que no final é
apagado e posto de lado.
Clara Rocha explica, mais adiante, que a repetição do alferes do modelo quinhentista
“não é uma pura reincidência, uma reencenação da entrega desesperada à derrota e ao
abismo. O sentido do seu desaparecimento é, paradoxalmente, o duma
autodeterminação”.246 A esta “autodeterminação” nós aplicaríamos uma modificação:
determinação. Há uma determinação ritual, estruturada, que pertence ao ritmo mítico da
primeira gesta. O alferes entra, é inserido – como já se viu antes – nela por herança,
nome, e, em suma, por destino. E o que se pode chamar de autodeterminação é o que nós
vimos como um certo espírito niilista de se entregar – na constante interrogação, é
verdade – ao predeterminado e não ao autodeterminado:
tenho a impressão de que está tudo escrito, chego a sentir-me a personagem de uma história que alguém há-de contar.247
245 Ibidem, p 241 246 Ibidem, p. 241 247 Manuel Alegre, ob. cit., p. 174.
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Clara Rocha, apoiando a tese de Roberto Vecchi, explica que na reencenação do
mito, este o esconjura, o devolve à dimensão histórica, “pois consuma um desafio”248 e,
ao vivê-lo conscientemente, o transforma num acto anti-ritual249, libertando-se:
O herói reencontra o sentido da sua condição de réplica ou de duplo: cabe-lhe reencenar o mito para o esconjurar, restituindo-lhe a sua dimensão histórica e pondo assim termo à maldição. Deste modo, o seu gesto é simultaneamente um gesto trágico, porque cumpre um destino previamente traçado, e épico, na medida em que consuma um desafio. No limite entre o conhecido e o desconhecido, entre o passado e o futuro, Sebastião avança para o nada como quem se condena e ao mesmo tempo se liberta.”250
Mas nós já vimos que embora o alferes tenha consciencia dos acontecimentos, isso não
quer dizer necesariamente que ele tenha dominio sobre os mesmos, isto é, verificamos
que este questionamento consciente tem os seus limites. Pensa sim, e nós entramos na
sua subjectividade, no seu passado e no seu percurso identitário, mas isto não é
equivalente a ser consciente no sentido de saber qual é o solo que se pisa e conduzir os
acontecimentos. O seu pensamento é o seu último reduto como ser subjectivo, mas os
factos e as suas acções mostram um ser quase indiferentes a esta subjectividade que
pensa. A autora expõe que Sebastião consuma um desafio. Mas aqui não há desafio, há
um aproximar-se gradativo à culminação de um destino, que se repete à letra. Há um
sacrifício, sim: o alferes é a vítima, mas não um herói que nalgum momento está
determinado a esconjurar a tirania de um deus ou de uma crença. Simplesmente é
capturado pelo passado, seduzido e fascinado na dinâmica ritual do mito.
Durante o livro assistimos ao espanto de um Sebastião pelas sincronias e a uma perda
gradual da identidade em favor do predomínio dos acontecimentos arquetípicos.
Assistimos a um ritual que fica consumado com o seu desaparecimento, e onde,
finalmente, une a sua vida, o seu destino e a sua identidade, confundindo-se com a de D.
Sebastião. Isto contrasta com a conclusão de Clara Rocha quando explica:
este só se individualiza verdadeiramente no momento da morte ou do desaparecimento, no final do romance, que termina, à maneira dum western, como um duelo.251
248 Clara Rocha, ob. cit., p. 242. 249 Cf. ibidem, p. 242. 250 Ibidem. 251 Ibidem, pp. 242-243.
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Para nós, é neste momento crucial que o alferes se entrega totalmente ao seu destino,
pondo de parte a subjectividade pela qual lutava e se questionava ao longo do romance.
A autora explica que na polaridade entre Sebastião e Domingos da Luta – a mesma
conclusão a que chegou Roberto Vecchi – os contornos individuais de Sebastião
definem-se com maior intensidade. Mas não é o Sebastião subjectivo quem é enfrentado,
mas sim, em primeiro lugar, um representante de um império colonialista, portanto,
representante de um colectivo, no qual não age como indivíduo, como o Sebastião que lê
poesia, mas em função daquilo que a história nacional e o seu destino implícito o
levaram a representar. Por isso, é nesse momento que se desfaz completamente da sua
identidade individual e assume completa e totalmente as feições daquilo que representa,
isso por uma parte. Pela outra, o Domingos da Luta, no nível mitológico do romance, não
é mais que a força de um destino que joga o seu papel – o do confrontante – nesta
derradeira jornada, e que precipita o final anunciado do desaparecimento do alferes.
Assim, as forças do destino, no duelo final, encontram-se para realizar a repetição ritual
do modelo mítico de D. Sebastião: fecha-se um ciclo e reinicia-se outro, auspiciado este,
também, pelo semblante mitológico de D. Sebastião. O alferes Sebastião perde a
identidade como figura humana e mortal, entrando no espaço do inexplicável e mítico da
intemporalidade indefinida.
Ao repetir o sacrifício arquetípico, o sacrificador, em plena operação cerimonial,
abandona o mundo profano dos mortais e insere-se no mundo divino dos imortais. Se
regressasse ao mundo profano, que abandonou durante o rito, sem uma certa preparação,
morreria imediatamente; é por isso que são necessários certos ritos de dessacralização
para reintegrar o sacrificador no profano.252
Sebastião é inserido no tempo sacro na repetição paradigmático dos gestos de D.
Sebastião, transformando-se naquilo que imita, pois há uma “transformação do homem
em arquétipo através da repetição.”253 De ter um duplo, o alferes passou a ser o duplo
do outro, do desejado; por outras palavras, o duplo adquiriu predominância e domínio na
252 Mircea Eliade, O mito do eterno retorno, ob. cit., pp. 50-51. 253 Ibidem, p. 51.
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unidade cindida que ambos representavam, perdendo-se, portanto, a personalidade
subjectiva do alferes para ficar, no seu percurso vital, como corolário a sua vida, o puro
nome: Sebastião e a sua carga simbólica, a casca herdada de quem era, pois a
interioridade, a subjectividade, foi dissolvida no seguimento do destino. O acto final é o
definitivo — a desaparição e o nunca encontrar a evidência de uma verdadeira morte é o
que possibilita e sugere o possível retorno, um eterno retorno de quem nunca foi dado
por morto definitivamente.
4.3. Os duplos impõem-se
O motivo do duplo problematiza o tema da identidade: “En los relatos sobre
duplos, a la pérdida de la identidad se le suma la de la individualidad.254 O facto de o
alferes ter um duplo, e virar logo em duplo de quem era duplo, exemplifica de que
maneira o domínio consciente de Sebastião está questionado. Se existe um desafio, é
aquele que o estimula a lutar pela sua integridade como indivíduo; mas não reage, deixa-
se levar.
Falou-se no capítulo dois que o tema do duplo, nos dois romances estudados, guardava
uma diferença em relação aos outros duplos literários: é que naqueles o indivíduo
duplicado luta e até é levado aos limiares da sensatez frente aos questionamentos sobre a
própria identidade que o duplo suscita.
La amenaza del doble desemboca en el miedo del sujeto a la invisibilidad, a no ser, mientras el otro goza de su vida. Es un lugar común que el personaje dude de su propia existencia y llegue a creer que él, y no el otro, es la copia, el intruso, el impostor.255
Estas circunstancias naturalmente geram pavor, angústia, porque está em causa a própria
existência, é uma questão de sobrevivência, de instinto de vida e de preservação, por isso
o tema do duplo também é anunciação de morte - está em causa a própria identidade:
254 Rebeca Martín López, ob. cit., p. 38. 255 Ibidem, p. 38.
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El pavor a disolverse en la nada, a perder identidad e individualidad, enlaza con otra faceta tradicional del motivo: el doble como protector ante la muerte primero y emisario de ésta después, célebre tesis sostenida por Rank y Freud.75 En palabras de Chizhevsky,“The ethical function of the appearance of the double is obviously the same as he ethical function of death, i.e., the loss of existence of the depersonalization of the subject”.256
O duplo é um tema tão diverso que permite imensas variações, expressando em cada
variação uma problemática especifica e particular: “Como se pode ver, o mito do duplo
constitui um verdadeiro poço sem fundo para toda a espécie de angústias humanas.”257 E,
desde a nossa análise, em ambas as obras a fraca resistência da individualidade perante a
presença do duplo é o problema fulcral que se expõe implicitamente. É a particularidade
específica, mas a problemática principal do tema, é, na verdade, a da oposição dos
opostos, que está presente e é evidente: indivíduo e colectividade como dois pólos
opostos, contrapostos.
No caso de Jornada de África, estes questionamentos em torno da própria identidade
angustiam no princípio Sebastião, mas este não chega a sentir pavor, nem resistência ou
verdadeira luta. Esta é principalmente a característica que surpreende: o indivíduo é de
tal modo dominado e sujeito que a salutar luta, a resistência vital pela própria vida não
chega verdadeiramente a se expressar e desenrolar.
A aparição do duplo, como refere T.E. Apter em relação a Golyadkin de O Sósia, é
evidência de uma verdade atemorizadora, o indivíduo não é senhor de si: “This is
precisely what Golyadkin cannot believe. The emergence of his double confirms his
worst fears: he is not his own master.”258 E esta é a mesma realidade que o duplo vem a
demonstrar na problemática do alferes: não há uma tal consciência que domina e
esconjura a repetição fatídica do mito, é o indivíduo, o alferes, quem é dominado e
despersonalizado, mostrando, assim, o poder do mito e sua prevalência.
A liberdade de acção é uma ilusão que o duplo vem evidenciar em ambas as obras.
O seu poder como portador de mensagens metafísicas colocam-no numa situação de 256 Ibidem, p 39. Dmtri Chizhevsky, “The theme of the double in Dostoevsky”, en René Wellek, ed., Dostoevsky. A collection of Critical Essays, Prentice Hall Inc., Eglewood Cliff, N. J., 1962, p. 129, apud Rebeca Martín López, ob. cit. 257 Román Gubern, ob. cit., p. 23. 258 T. E. Apter, ob. cit., p. 61.
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superioridade onde o indivíduo só é capaz de esperar os resultados a partir do desenrolar
dos acontecimentos. O sujeito é praticamente devorado por aquilo que dirige como
destino, independente das suas intenções pessoais e subjectivas; os seus desejos são
minúsculas parcelas na imensidão daquilo que o duplo manifesta: as forças míticas de
uma nação. Assim, o indivíduo transforma-se em veículo destas forças que o superam em
todos os sentidos. O duplo, neste sentido, personifica o que E. T. A. Hoffmann
denominava como “poder sombrio”259, forças escuras e sinistras que marcam sua
presencia como um
Constante retorno de lo semejante, con la repetición de los mismos rasgos faciales, caracteres, destinos, actos criminales, aun de los mismos nombres en varias generaciones sucesivas. 260
4.4 O destino como fatalidade. O poder do inconsciente
1. No âmbito da psicologia analítica junguiana, o destino é fundamentalmente indicado pela noção de Si-mesmo261 na sua acepção de depositário do ser e do devir individuais ou na de resultante da situação psíquica complexiva em que o indivíduo se encontra num determinado momento. Neste sentido o termo assume fundamentalmente o significado de aquilo que condiciona e limita a possibilidade, ou então a liberdade e a projetividade humanas. Mas exatamente enquanto tal o destino é o elemento estático que, fazendo atrito com a liberdade e a projetividade, permite a estas, por assim dizer, não “girar no vazio” e conseqüentemente de constituir um movimento real. Nesta acepção o destino (e portanto o Si-mesmo) é imagem do mundo interno que o Eu constitui como dado externo ao Eu, e com o qual o próprio Eu, para constituir-se verdadeiramente como tal, deve entrar em relação. A respeito disso, e referindo-se à psicologia da personalidade, Jung argumenta: “A tentativa de fazer derivar a personalidade da herança familiar ou do ambiente não tem pleno êxito”, por conseguinte, o fator verdadeiramente necessitante se encontra naquela idéia formada dentro do indivíduo e que o próprio indivíduo experimenta como estranha, isto é, a experiência subjetiva de uma “voz interior” ou de uma “atividade objetiva da
259 Louis Vax, ob. cit., p. 109. 260 Sigmund Freud, ob. cit. p.2493. 261 “En cuanto concepto empírico, el sí-mismo designa el conjunto de todos los fenómenos psíquicos del hombre. Expresa la unidad y la totalidad de la personalidad en su conjunto.” Liliane Frey-Rohn, De Freud a Jung, México, Fondo de Cultura Económica, 1991, p. 173.
91
psique (…) independente da vontade consciente”. Conseqüentemente, na esfera da psicologia das neuroses Jung afirma o que segue: “Por trás da perversão neurótica se oculta a vocação, o destino e o devir da personalidade, a realização completa da vontade vital inata em todo indivíduo. O neurótico é o homem desprovido de amor fati (amor ao destino). Ele se descuida de si mesmo e nunca poderá repetir com Nietzsche: ‘Jamais se eleva o homem mais alto do que quando não sabe para onde o seu destino o conduzirá’”. Ocorre portanto que o caráter de necessidade expresso pela alteridade que chegou a se diferenciar através do processo de individuação seja, exatamente, integrado pelo Eu: uma vez que “se o Eu obedecer inteiramente à voz interior, então (…) segue-se a catástrofe. Se o Eu obedecer apenas em parte e puder salvar-se de ser totalmente devorado, fazendo uso da auto-afirmação, então poderá assimilar a voz.262
Na citação anterior, é expressa a regra psicológica jungiana que diz que quando
uma situação ou problemática interior não se faz consciente, não se assume como
própria, representa-se no exterior como destino. Desta maneira, o indivíduo é forçado a
enfrentar-se a si mesmo e a integrar os seus aspectos cindidos à consciência. Isto é,
quando o indivíduo não assume e não está consciente das suas contradições e do seu
oposto interior, o mundo exterior é levado a representar o conflito, dividindo-se —
reflectindo a cisão do Eu — em duas metades opostas.
O enfrentar do destino seria, em última análise, um enfrentar da própria interioridade
cindida. Neste sentido, o destino pode ser visto como a “realização completa da vontade
vital inata em todo indivíduo”. Mas aqui se adverte de um perigo: o enfrentar do destino
deve resultar numa integração do conteúdo cindido, pois “se o Eu obedecer inteiramente
à voz interior, então (…) segue-se a catástrofe. Se o Eu obedecer apenas em parte e
puder salvar-se de ser totalmente devorado, fazendo uso da auto-afirmação, então poderá
assimilar a voz”. O indivíduo deveria, fazendo uso da sua auto-afirmação, gerir os
acontecimentos gradativamente, integrando e fazendo frente ao que se apresenta como
inevitável. Se este se deixar envolver e dominar pelos eventos exteriores vividos como
destino, perde a autonomia e a sua condição de condutor da sua vida, entregue às mãos
do destino, como um boneco sem vontade, mas “se o Eu obedecer apenas em parte e
puder salvar-se de ser totalmente devorado, fazendo uso da auto-afirmação, então poderá
assimilar a voz”.
262 Paolo Francesco Pieri (direcção), Dicionário Junguiano, Petrópolis, Editora Vozes, 2002, p. 148.
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Do anterior pode concluir-se, entre outras coisas, que nada que se apresenta como
destino é alheio ao sujeito, pois este faz parte da sua estrutura inconsciente; é-lhe próprio,
conatural. Neste sentido, é fatal, pois está inserido no fundo da sua alma. Mas na medida
em que se é consciente, na medida em que se conquistam novas parcelas do próprio
inconsciente, menos incapacitado se está para enfrentar o que quer que seja no exterior.
O inconsciente exterioriza-se, mas, quanto mais conhecimento o sujeito tem de si, mais
será capaz de confrontar os desafios que a sua própria alma lhe apresenta. Assim, o
destino está dentro do próprio indivíduo; é a própria alma desconhecida que se lhe
apresenta desafiante nos acontecimentos vividos como fatais.
Transferindo-se o anterior às obras estudadas, podemos reconhecer que, em Jornada de
África, D. Sebastião é o rosto oculto de Sebastião, o alferes. Se em Frei Luis de Sousa o
duplo é representado como força do destino completamente exterior e alheia à
individualidade, representada em D. Madalena, na jornada do alferes o problema do
duplo já é apresentado como uma dilaceração interior. Aqui já não é uma identidade que
se manifesta como independente e fora do alcance e conciliação, como no caso de D.
Madalena e da sua família. O duplo é-o do próprio alferes e este vive uma dupla
identidade através de D. Sebastião. Este seria, segundo o exposto nas teorias sobre o
duplo, a outra parte de si mesmo, que o empurra a representar e a seguir um determinado
caminho. Mas em relação a Frei Luís de Sousa, o problema do duplo passou de ser um
destino imposto totalmente pelo exterior a um problema que pode ser vivido dentro da
alma da personagem. Isto significa um avanço. Está-se mais perto do problema do
duplo/D. Sebastião vir a ser não um problema só vivido como fatalidade sem remédio,
mas como algo mais próximo do indivíduo.
O conflito interiorizou-se, embora para o alferes este não seja um problema interior, mas
ao ser D. Sebastião seu duplo, chega-se à conclusão de que este é a outra parte de si
cindida, deixando aberta a possibilidade de uma maior possibilidade de conciliação, pois
este é apresentado como um problema individual.
Com isto não se quer dizer que as circunstâncias exteriores não sejam de importância,
continuam a sê-lo. Pode ser visto como um problema de identidade nacional, mas que
radica no indivíduo. O indivíduo é o detentor último desta problemática. Um mito é vivo
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porque vive através dos indivíduos de uma determinada sociedade. E vira destino na
medida que não é problematizado como um problema interior. Quer dizer, o que se
deduz é que se D. Sebastião, como mito, continua vivo, é porque vive inconscientemente
através dos indivíduos.
O duplo é uma representação exterior na medida em que não é assimilado como parte da
própria interioridade. É um desconhecido que vive dentro do sujeito e que, ao ser
inconsciente, representa-se no ambiente como eventos ou personificações fatídicas: é a
maneira como o sujeito o interioriza e se dá conta da sua existência. Por isso, no que
respeita a esta conscientização, Jornada de África representa um avanço nesta
assimilação: Sebastião é arrastado pelos eventos, mas ao ser o motor destes D. Sebastião,
seu duplo, ou seja, uma parte de si mesmo desdobrada – ambos são avessos263 um do
outro – ,o problema aproxima-se do indivíduo. Não é só uma terrível imposição exterior,
como se representa em Frei Luis de Sousa ao ser D. João/D. Sebastião a identidade
duplicada, e D. Madalena e a sua família as vítimas sacrificadas. No caso de Jornada de
África, o problema radica já completamente no interior do indivíduo. E é, também, a
polaridade interior do alferes a que se acaba por impor.
De qualquer maneira, em ambos os casos, há uma condição inexorável que leva à
individualidade, à sua desaparição. Mas o que chama a atenção em ambas as obras em
relação aos outros duplos literários – William Wilson, O sósia, etc. –, é que o indivíduo
aceita o destino imposto pelo duplo. D. João vive essa duplicação na maior
inconsciência, como se a própria individualidade fosse uma cópia decalcada da de D.
Sebastião; não interessa sua própria individualidade. E D. Madalena luta, opõe-se na
medida das suas possibilidades, mas a problemática da duplicação é posta fora do seu
alcance, como uma absoluta imposição exterior, como destino cruel. Luta, mas quando
as circunstâncias o permitem: casa com outro porque o primeiro marido é dado como
morto. E quando se evidencia a força inexorável do destino com a presença do romeiro,
fica completamente inerme, incapaz de fazer nada mais que experimentar o desfecho dos
acontecimentos já condenados.
Sendo assim, ao reconhecer-se a atitude individual nas obras estudadas, frente ao
problema do duplo e a todo o que este representa (contradição, cisão, dualidade,
263 Neste sentido é que ambos – os dois Sebastião – são avessos um do outro.
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oposição), realça-se e salienta-se a própria problemática do indivíduo e o que tenha que
ver com o individual. O valor do indivíduo, no sentido mais restrito, parece carecer da
importância que merece: importa a portugalidade, o sonho imperial, a prevalência da
cultura com todos os alicerces, mas o indivíduo como tal é secundário. Não é que
alguém decida isto, é a forma como se apresentam os acontecimentos, é o próprio mito
em acção, como um poderio silencioso e misterioso que subjaz a acontecimentos e
indivíduos. Mantém-se uma continuidade mítica colectiva à custa do individual, que
significa o diferente, o original, o único, o particular, o subjectivo. E este, em ambas as
obras, é representado como incapaz de realmente combatê-lo e muito menos conciliá-lo.
O duplo vive-se como um destino fatal que se impõe apesar de todos os pesares. A força
destruidora do destino só o é na medida em que domina completamente a dialéctica que
representa com o indivíduo. Engole-se o indivíduo: “se o Eu obedecer inteiramente à voz
interior (destino), então (…) segue-se a catástrofe. Se o Eu obedecer apenas em parte e
puder salvar-se de ser totalmente devorado, fazendo uso da auto-afirmação, então poderá
assimilar a voz.”264 E assimilar significa integrar, já não ser dividido, assumindo as
contradições que, como destino, desafiam o sujeito.
2. A psicologia profunda de C. G. Jung funda-se no “ concept of integration of
opposites forms the cornerstone of the individuation process. (…) According to Jung, the
succesfully individuated self is a coincidentia oppositorum, or synthesis of light and dark
qualities.”265
Desde o ponto de vista de C. G. Jung, assim como para os românticos266, a
personalidade humana é uma conjunção de opostos, daí que o motivo do duplo tenha
264 Paolo Francesco Pieri (direcção), ob. cit., p. 148. Parêntesis nossos. 265 Gayana Jurkevich, “Archetypal motifs of the double in Unamuno’s Abel Sanchez”, in Hispania, vol. 73, n. 2, Maio, 1990, American Association of teachers of spanish and portuguese, p. 347. 266 “Anticipating Jung, the Romantics subcribed to the notion that true human struggle lay in the urge to integrate good and evil. True evil lodged in the opposition of psychic principles; true good in their reconciliation(…). For the Romantics the polarity Christ/Satan came to signify precisely this need for psychic integration.” Gayana Jurkevich, ob. cit., pp. 347-348.
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sido especialmente desenvolvido no Romantismo.267 Desta forma, vemos que D.
Sebastião é a parte inconsciente negada da psique do alferes, pois
split personality occurs when an ego rejects its unconscious shadow by denying it access to participation in the adult self. Under these circumstances the shadow splinters away from the personality and assumes the rival existence of an autonomous psychic entity. 268
A individualidade desenvolvida é a que integra as suas partes divididas, equilibrando a
polaridade. Mas Sebastião está subjugado pela sua contraparte, e embora seja capaz de
reconhecer e identificar a existência do duplo, fá-lo como uma força do destino, mais do
que como parte de si próprio. Daí que a sua posição perante ele seja mais de resignação,
ou de aceitação como de uma força exterior que o rodeia, do que de reconciliação. Para
que isto acontecesse, teria primeiro que reconhecê-la como parte de si mesmo e
reconciliar-se com ela, o que se faz reconhecendo que a existência do duplo é reflexo de
principalmente um problema interior, de uma contradição interna.
Este posicionamento de reconhecimento interior permitiria uma maior liberdade como
indivíduo autónomo, com livre arbítrio, pois a força do destino, de ser completamente
vivenciada como uma potência exterior, passaria a ser experimentada como um problema
interno, onde se teria uma maior possibilidade de ingerência e transformação. Dadas
estas condições, a verdadeira luta dar-se-ía no interior do sujeito, e a responsabilidade e
potencial de transformação ficaria dentro do campo de responsabilidade individual.
Daí a importância da subjectividade e o seu papel no desenvolvimento das sociedades.
Sebastião, como indivíduo, poderia ter chegado a uma conciliação com a sua herança
cultural, sem se deixar dominar e devorar por ela. Reconhecendo o conflito e a
contradição como um problema interior em primeira instância, já não seria uma vítima
nas mãos do destino, mas um co-participante na construção deste. Desta maneira, o
alferes, reconhece que, se por um lado acredita na liberdade, nele também existe, como
267 “Ya en la literatura romántica, el doble vino a demostrar que lo desconocido no se hallaba únicamente en los cementerios o los castillos góticos, sino en el mismo ser humano.” Rebeca Martín López, ob. cit., p. 59. 268 Gayana Jurkevich, ob. cit., p. 348.
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herança afundada no seu próprio inconsciente, o sonho imperialista, personificado em D.
Sebastião.
“Hate and rejection of some aspects of the self, personifed by pursuing shadow-
image or double, often culminate in “suicide by way of death intended for the irksome
persecutor””.269 O desaparecimento de Sebastião não significou um movimento
conciliatório, mas um apagamento da própria identidade. Uma das partes da polaridade
Sebastião/D. Sebastião desapareceu na outra. Sebastião assimilou-se à identidade mítica
perdendo a própria. Não houve uma conciliação ou integração, mas o predomínio gradual
de uma polaridade na medida em que Sebastião vai despersonalizando-se enquanto se
aproxima do fim. Entregando-se à força do destino encarnada no duplo, acredita que
Talvez o Quinto Império seja afinal o fim de todos os impérios. O Grande Império do Avesso, o Anti-Império. E talvez seja esse o único sentido possível desta guerra: fechar o ciclo. Talvez tenhamos de nos perder aqui para chegar finalmente ao porto por achar: dentro de nós. Talvez tenhamos de não ser para podermos voltar a ser. Há outro Portugal, não este. E sinto que tinha de passar por aqui para o encontrar. Não sei se fim ou se princípio. Sei que sou desse país: um país que já foi, um país que ainda não é.270
Quando escreve esta carta para o poeta, Sebastião tem consciência que
brevemente deixará de ser: “Talvez tenhamos de não ser para podermos voltar a ser.” E
espera nesse entregar-se ao não ser, o consolo de, assim, chegar a ser. Sabe que existe
outra forma de vida, uma outra hipótese de se ser, um porto interior: eis a chave. Depois
muda, pensando que na perda do ser, poderá reencontrar-se. Mas ao entregar o seu ser,
deita a responsabilidade de ser não em si e na própria responsabilidade como agente
conciliador da sua própria história, mas na espera de que nessa abdicação de si o traga de
volta à vida. O mesmo Sebastião explica que o seu ser vive num país que não existe
ainda. Entrega-se à força do destino deixando de ser, esperando, um dia, voltar a ser,
como D. Sebastião. Maria das Graças já apontou “[…] o erro de Portugal: a sua
persistência em não deixar ser e em também não querer ser, profetizando o final da
história e da História.”271
269 Ibidem, p. 349. 270 Manuel Alegre, ob. cit., p. 231. 271 Maria das Graças Moreira de Sá, ob. cit., p. 183.
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Jung exprime uma posição crítica diante da mera adesão do homem à moralidade tradicional, pois tal posição comporta uma forma de existência sob o signo de valores atribuídos coletivamente, que é contrário da existência verdadeira, a qual exige a capacidade de cada um de individuar-se, isto é, de tornar-se si mesmo, e portanto, de ser essencialmente aquilo que é para além do bem e do mal (enquanto valores veiculados coletivamente). Nesta formula junguiana existe a crítica ao moralismo enquanto conformismo moral do indivíduo, que, pelo fato de ser “uma orientação coletiva da vida”, demonstra ter escasa substância vital para o próprio indivíduo. Desse modo, a moralidade coletiva e o moralismo que dela pode derivar são colocados estreitamente em relação com a moralidade de cada um de nós. Com efeito, quando “a norma se torna sempre mais supérflua”, com isso “a verdadeira moralidade cai em ruínas”. E “quanto mais o homem está submetido a normas coletivas , tanto maior é a sua imoralidade individual. 272
Sebastião fecha o ciclo com seu próprio sacrifício, mas ao mesmo tempo o
renova entrando num novo ciclo que também vive na espera. Um mito que tem o poder
de invocar um sacrifício é um mito vivo e o desaparecimento do alferes constata-o.
Assim, Sebastião assume-se como um português de “um país que já foi, um país
que ainda não é”. Um país indefinido, irreal, no sentido de não estar no presente nem no
agora, ou seja, um país que espera por ser. Fecha um ciclo com sua dissolução e passa a
formar parte daquele Portugal que aspira a ser, que aguarda a hora de ser, a vinda e a
concretização para voltar a ser. Fecha-se um ciclo com esta espera regenerada - pelo
ritual do alferes – de voltar a ser.
Se interpretarmos a problemática de Jornada de África como uma problemática
do indivíduo e da sua dissociação, como já aponta a simples existência do duplo,
entramos no solo da contradição interior, onde a divisão “metaphorizes the conflict
between the conscious ego and the unnconscious contents of a rival shadow personality.
The battle between the light and dark sides of the human psyche…”273 Vemos que
Sebastião fica inerme perante o duplo, porque o vive como um problema especificamente
exterior. A contradição: o sonho colectivo do Grande Império versus os seus próprios
sonhos de liberdade e amor não são questionados como problemas interiores. O destino,
revestido de sincronias e personificado no duplo, o grande outro, é a herança cultural que
se vive unicamente como factos exteriores. E vive à letra a repetição da jornada mítica,
espantado e fascinado, envolvido nos sonhos sebásticos de voltar a ser, sem realmente
272 Paolo Francesco Pieri, ob. cit., p. 328. 273 Gayana Jurkevich, ob. cit., p. 346.
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ser ele subjectivamente. E não é porque desiste de ser, desiste da sua subjectividade,
deixando e esperando sebasticamente vir a ser algum dia. Por isto, a sua individualidade,
na medida em que avança o romance e segue o caminho que o duplo traça, é vivida não
a partir do subjectivo, mas a partir do duplo e o que este representa: nacionalidade,
herança cultural, história, pátria. E sacrificando o subjectivo de si mesmo, repetindo o
ciclo mítico, espera encontrar-se de novo não no real, mas no sonhado: num Portugal que
está permanentemente à espera. Mas se os indivíduos não assumem a responsabilidade
do próprio ser, que ser pode ter a pátria?
Sebastião, ao ver o duplo como algo puramente exterior e circunstancial, deixa de
ter poder sobre ele, sobre as circunstâncias e sobre si próprio. Ao não se sentir
depositário de si mesmo, entrega-se àquilo que ostenta o poder. O poder é deixado no
outro, no duplo, nas circunstâncias e no destino. Sebastião entrega-se ao duplo que é o
destino, deixando que este seja quem aja nas suas misteriosas sincronias e repetições. É o
mito quem age no seu lugar, com a sua estrutura e a sua demarcação. Assim, no final,
Sebastião vira uma sombra de si mesmo, como o indivíduo vive à sombra do mítico:
Sebastião vira duplo de D. Sebastião: “o essencial não é o Fim, mas a certeza de um novo
começo. Ora este recomeço é, a bem dizer, a réplica do começo absoluto, a
cosmogonia.”274 E nós ficamos, como Maria das Graças escreve, a assistir ao “fim de um
ciclo e anúncio de um outro que está por vir, o de um Portugal de não menos messiânica
liberdade…”275
274 Mircea Eliade, Aspectos do mito, ob. cit., p. 67. 275 Maria das Graças Moreira de Sá, ob. cit., p. 184.
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Conclusão
Somos as vítimas individuais de uma prolongada servidão colectiva.
Fernando Pessoa276
Estudar através da perspectiva do duplo o mito sebástico gerou informações
muito específicas sobre este e a problemática que o envolve.
Primeiro, é importante demarcar que a aproximação feita ao mito de D. Sebastião
como duplo no presente trabalho ofereceu a oportunidade de estudá-lo desde um ponto
de vista intermédio, quer dizer, analisou-se o seu contexto natural como mito e a sua
figuração cultural na criação artística. Não se questionou sobre a sua validez, pertinência
ou conveniência, mas como elemento próprio de uma cultura, em virtude do seu
comportamento na dinâmica das duas obras estudadas. E neste contexto específico, o
sebastianismo tomou uma forma particular, “apalavrou-se”, investeu-se das roupagens
276 Fernando Pessoa, ob. cit., p. 50.
100
do duplo, o qual implica certos parâmetros, que outorgaram as ferramentas para obter
informações sobre a sua natureza. Da mesma forma em que sabemos que o mito de Zeus
abrange certos comportamentos, princípios e que conota determinadas atitudes estudado
na obra literária, D. Sebastião foi visto e estudado segundo o seu comportamento no
contexto literário específico e sob a figuração do duplo.
Dado que o duplo alude à oposição de contrários, à coniunctio oppositorum,
comprendeu-se que o seu oposto complementar dialéctico, neste jogo de contrários, foi a
subjectividade, o indivíduo, encarnada primeiro em D. Madalena em Frei Luís de Sousa
e depois em Sebastião, o alferes em Jornada de África. E o primeiro aspecto que se
encontrou foi a descoberta da pouca consideração e importância que tem a
individualidade per se. As próprias personagens que personificam este princípio
submetem-se quase pasivamente ao domínio do colectivo numa resignação notável. A
importância e a problemática sempre são focadas como um problema que incumbe à
portugalidade e, portanto, ao colectivo. Os próprios estudosos das obras muito raramente
aludem à questão do indivíduo nas suas análises, pondo ênfase nesta paracialização
acentuada no colectivo. Mas sabemos que toda parcialização leva ao desequilíbrio, à
decadência, à doença. E tratando-se de obras que expõem o motivo do duplo e portanto, a
uma tentativa de equilíbrio no desdobramento, foi pertinente perguntar-se, qual é o outro
extremo que segura a corda tensada de D. Sebastião como duplo.
Assim, a individualidade como princípio criativo - e com o potencial para se
desenvolver para além dos limites colectivos sem se desentender deles, muito pelo
contrário, na sua diferenciação, providencia novos brios e sustentáculo aos paradigmas
culturais - tende a ser nulificada. Isto produz que, paradoxalmente, ao ser intensamente
problematizada a questão da portugalidade - em oposição à individualidade -, a sua
particularidade, unicidade e originalidade sejam fortemente desenvolvidas, em
detrimento do indivíduo, que, afinal de contas, é o que dá sustentáculo a toda cultura. E
toda cultura, sem individualidades, ao final, adoece.
101
A individualidade de Portugal e da portugalidade é de tal forma posta em ênfâse e
problematizada como unidade esencial irredutível, que é experimentada como o grande
OUTRO que subjaz às acções individuais. É o duplo sacral mitologizado da realidade
profana, realidade onde a vida de outros sebastiãos e madalenas desenvolvem-se,
fazendo, até certo ponto, que o subjectivo como tal seja banalizado.
Uma das tentativas deste trabalho foi a de reconhecer o papel do indivíduo, desde
onde a portugalidade nasce, e desde a qual este surge também. O resultado foi
contundente: o indivíduo é a vítima sacrifical que dá vida à força colectiva coesa,
unitária da portugalidade, investida em D. Sebastião, que, por sua parte, aparece como
duplo fantasmal, o outro eterno e presente na paisagem que rodeia e cerca as aspirações
de ser do indivíduo. É isto o que se infere do comportamento do mito nas obras
estudadas, e o individual, nelas, cai presa destas demandas.
Outra conclusão importante que se tirou foi que - saindo das intensas,
apaixonadas e controversas polémicas sobre a natureza e importância do sebastianismo
na longa e interessantísima história do seu estudo, pois como já disse José van den
Besselaar, “O sebastianismo é um assunto mais discutido que estudado”277 –, o mito
sebastianista oferece um enorme campo de estudo na sua análise mítica e simbólica,
como já reconheceu António Quadros:
Depois dos estudos de um C.G. Jung, de um Mircea Eliade, de um Gaston Bachelard, de um Henry Corbin, de um Georges Gusdorf, de um Gilber Durand, em Portugal de um José Marinho, de um Álvaro Ribeiro ou de um Eudoro de Sousa, entende-se hoje melhor toda a potencialidade, toda a energia psiquica, toda a verdade oculta nos arquétipos, nos símbolos e nos mitos.278
Por outras palavras, o estudo do mito desde o seu contexto natural artístico, como fruto
das camadas inconscientes e simbólicas do inconsciente colectivo e aplicando as teorias
que se vêm desenvolvendo a respeito desde princípios do século passado com Carl
277 José van den Besselaar, O Sebastianismo – História sumária, Lisboa, Biblioteca Breve, 1987, p. 11. 278 António Quadros, A Ideia de Portugal na literatura portuguesa dos últimos cem anos, Lisboa, Fundação Lusíada, 1989, p.50.
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Gustav Jung, oferece um enorme, interessantíssimo e quase inexplorado campo de estudo
e análise de um ou do maior mito cultural português como o é D. Sebastião.
Assim, estudar o sebastianismo como mito, contornando nessa análise o seu simbolismo,
a sua natureza, as suas implicações segundo o seu comportamento nas produções
literárias, forneceria importantes e objectivas informações sobre a sua natureza e as suas
transformações ao longo do tempo, de igual maneira como o mito de Zeus tem sido
estudado, por exemplo.279 Estudar a evolução e a natureza do mito na sua expressão
simbólica nas obras literárias abre a compreensão sobre as transformações e a cultura na
qual está inserido. Não discutir a sua existência, mas estudá-la a partir do seu
comportamento na literatura, por exemplo.
A presença de D. Sebastião mantém-se contínua e expande-se no presente, como
o evidência a produção literária actual. Paradigmo do OUTRO, o que está na sombra,
que é a sombra em si mesma, terror e misterio, que é o duplo, o constante outro.
279 “Zeus dá luz, ele é o soberano pai dos deuses e dos homens (Homero); a partir da terceira geração mitológica, segundo Hesíodo, é ele que preside a todas as manifestações do Céu, Zeus é o eter, Zeus é tudo o que está acima de tudo (Esquilo, Helíadas, fragmento 70, tradução francesa em SECG, 81). (…) Tudo aquilo que simboliza o nome de Zeus evoluiu simultaneamente. De fantasia omnipotente a Espírito puro, o percurso é longo e as imagens variadas. Os desacordos na interpretação do símbolo podem multiplicar-se até ao infinito, como para todas as personagens da mitologia, dependendo se nos detivermos em tal fase de uma evolução, em tal lenda em particular, em tal aspecto da divinidade ou em tal nível de análise. A concepção de Zeus como divinidade suprema e como potência universal desenvolveu-se a partir dos poemas homéricos e chega , entre os filosofos helenistas, à concepção duma Providência única.” J. Chevalier, Dicionário dos símmbolos, ob. cit., p. 707.
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