INTRODUÇÃO SEMIÓTICA À SIMBOLOGIA CRISTÃ DA ARTE
Professor José Luís Landeira1
“O Arco desaparece, funde-se com a gente que passa,
E eu sinto que sou o Arco, e o espaço que ele abrange,
E toda a gente que passa,
E todo o passado da gente que passa,
E todo o futuro da gente que passa,
E toda a gente que passará
E toda a gente que já passou
(...)
Eu próprio sou sujeito e objeto”
(Álvaro de Campos)
1. A leitura dos símbolos cristãos
Na origem deste artigo está o desejo de construir uma ponte. Ponte de
diálogos entre diferentes modos de ver uma realidade que é, ela mesma, plural. E
o desejo construiria um dialogar em que os participantes retornariam para suas
margens com a visão dos espaços e dos tempos e de si próprios mais ampla, mais
profunda, mais intensa.
1 Formado em Letras pela Universidade de Coimbra (Portugal), mestre em Letras (Filologia e Língua
Portuguesa – Leitura Literária) pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, doutor em Linguagem e Educação (Leitura de Poesia) pela Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo.
Nossa proposta é estudar a simbologia cristã tomando as ações simbólicas
e os ritos como textos que são lidos e atualizados no momento de sua
enunciação, com variadas repercussões nesse processo. Assim, acreditamos que
as teorias que se dedicaram à compreensão dos processos de produção de
sentido podem auxiliar a compreender o próprio processo simbólico cristão em um
quadro que tanto nos remeta para o valor cultural como religioso dos símbolos.
Há também nesse diálogo muitas possibilidades a adotar: podemos, por
exemplo, posicionarmo-nos em um quadro das teorias da leitura visando a que
a aplicação de tais conhecimentos no campo da fé e das celebrações litúrgicas
nos ajude a compreender melhor o fenômeno da leitura em si mesmo; podemos
também situamo-nos em um campo de colaboração mútua, visando a que os
estudos desenvolvidos permitam que a própria liturgia, compreendida como
“espaço e tempo simbolizados, linguagem e ação do mistério do Cristo
celebrado” (BUYST, 2011: 15) encontre nas teorias da leitura uma parceira de
trabalho, para melhor atingir seus objetivos.
Mas qual o interesse de se estudar a leitura em um quadro dos estudos da
simbologia cristã? Além de ampliar, claro, os processos de compreensão da
leitura de textos que tenham essa simbologia como objeto. É que somos
autorizados a considerar as manifestações da linguagem religiosa como textos e
aplicando os conhecimentos das teorias da leitura, pretendemos ampliar o modo
de ver e vivenciar essa linguagem ao passo que pretendemos nos aproximar
semioticamente da dimensão da fé.
Na pluralidade de escolhas, optamos por uma atitude colaborativa, em
que a simbologia cristã seja respeitada na sua função psicossocial como
construtora da espiritualidade e da transcendência. Além disso, abrimo-nos para
o complexo e muitas vezes tenso diálogo entre a Teologia, a Cultura e as Artes,
mediado pela Leitura. Tendo um horizonte de tanta envergadura, não é sem
razão que nos propomos a trazer neste artigo uma pequena contribuição que
poderá ser semente de futuras atividades.
Pensar no processo de leitura do ‘símbolo cristão’ remete-nos a dois
problemas anteriores: o que é símbolo? Qual a importância do adjetivo ‘cristão’
para caracterizar tais símbolos? As respostas são tão variadas quantas são as
possibilidades de significar. Iniciemos pensando no problema de conceituar e
definir o símbolo.
2. O símbolo cristão: um problema conceitual
O termo símbolo é extremamente polissêmico e é impossível na
constituição deste texto abordar todos os matizes de significado. Tratemos
daqueles que, acreditamos, podem ser importantes para tecer o diálogo
proposto.
Uma das mais correntes mais comuns na semiótica tem a sua origem nos
estudos de Peirce. Nesta óptica, o símbolo
“não possui outra motivação que não seja histórica ou convencional: em suma,
é opaco ou arbitrário. A maior parte dos signos definidos pelos códigos das
estradas, dos usados na navegação, dos graus militares e da matemática é
arbitrária” (VOLLI, 2012: 44).
A compreensão que Peirce tem do símbolo se torna mais compreensível
quando comparado ao ícone:
“Se o signo caracterizar o objecto denotado por mostrar nele mesmo as
propriedades que um objecto tem, como acontece com as fotografias, os mapas
ou os diagramas químicos, então o signo é um ícone; se não for esse o caso,
então trata-se de um símbolo.” (FIDALGO e GRADIM, 2005/2005: 92, 93).
O símbolo é visto como um tipo particular de signo caracterizado pela
relação arbitrária entre ele mesmo e aquilo que significa. Este distinção torna
polêmica a construção do diálogo entre o campo dos estudos semióticos e os
teológicos (e da religião, como um todo). Como admite o próprio semioticista
italiano Ugo Volli:
“trata-se, porém, de uma terminologia um tanto infeliz, porque na tradição
literária e religiosa entende-se por símbolo algo bem diferente, isto é, um signo
fortemente motivado e rico em implicações emotivas e narrativas” (VOLLI,
2012: 44).
De fato, a liturgista Ione Buyst explica que o símbolo
“tem sua raiz no inconsciente e expressa uma experiência vivida a um nível
anterior à conceituação (...) no símbolo existe como que uma relação interna
que revela a unidade entre sinal sensível e realidade significada” (BUYST, 2007:
32).
Essa linha de raciocínio coaduna-se com a do argentino José Severino
Croatto que define símbolo como
“um elemento desse mundo fenomênico (desde uma coisa até uma pessoa ou
um acontecimento) que foi ‘transiginficado’, enquanto significa algo além de seu
próprio sentido primário. A abóbada celeste é símbolo de transcendência e
soberania. Tal sentido está por trás do que o céu é para o olhar humano.
Por isso, podemos descrever o símbolo como ‘remissivo’; envia para outra
realidade que é a que importa existencialmente. (...) Na experiência do homo
religiosus, o transcendente que o símbolo convoca não é objetivável nem
definível em palavras. Percebe-se como mistério, como claro-escuro, por isso é
preciso a mediação das coisas de nossa experiência comum” (CROATTO, 2010:
87).
Do que se percebe de comum nos dois teólogos é o excesso de significado
presente no símbolo ou seja, ele é “fortemente motivado”, em oposição à ideia de
arbitrariedade defendida por Pierce para o mesmo termo.
No quadro dos estudos semióticos, contudo, encontramos outras
alicerçadas definições para o termo símbolo. Para Ferdinand Saussure,
considerado o fundador da Linguística e, de certa forma, precursor dos estudos
semióticos europeus, os símbolos se opõem aos signos. Para esse professor suíço,
a principal característica do signo é a arbitrariedade, ou seja, ele nunca mantém
uma relação lógica, motivada, com aquilo que ele significa. Não há nada no
significado que motive a escolha do significante. Isto é, não há nada na palavra
árvore que lembre, na própria constituição da palavra a uma árvore. Tanto que a
mesma palavra portuguesa ‘árvore’ corresponde à palavra inglesa tree. Isso, de
algum modo, aproxima o aquilo que Saussure denomina como signo do que
Pierce chama de símbolo.
Para Saussure, a falta de motivação entre signo e o seu respectivo
significado possibilita o princípio da convencionalidade do signo. A relação entre o
conteúdo e a forma do signo é sempre convencional, isto é, gerada no percurso
histórico de uma coletividade.
Na direção oposta, Saussure situa o símbolo, considerando que ele
“tem como característica não ser jamais arbitrário; ele não está vazio, existe um
rudimento de vínculo natural entre o significante e o significado. O símbolo da
justiça, a balança, não poderia ser substituído por um objeto qualquer, um
carro, por exemplo.” (SAUSSURE, 2004: 126)
Esse conceito aproxima-nos da definição defendida contemporaneamente
pelos teólogos e pelos estudiosos da arte.
O problema que as definições de símbolo tanto de Pierce como de
Saussure trazem tem a ver com os limites. Para ambos podemos perguntar o que
vem a ser, exatamente, o arbitrário? Ao pronunciarmos as palavras “vinte” ou
“dois” temos consciência de que há uma completa arbitrariedade na escolha do
significante para designar uma quantia específica, mas e quando falamos “vinte e
dois”? Há uma completa arbitrariedade nesse caso? Seria o caso de que “vinte”
fosse um símbolo (para Pierce) ou um signo (para Saussure) e “vinte e dois” não?
O próprio Saussure fala de uma arbitrariedade absoluta e outra relativa:
“O princípio fundamental da arbitrariedade do signo não impede distinguir, em
cada língua, o que é radicalmente arbitrário, vale dizer, imotivado, daquilo que
o é relativamente. Apenas uma parte dos signos é absolutamente arbitrária; em
outras, intervém um fenômeno que permite reconhecer graus no arbitrário sem
suprimi-lo: o signo pode ser relativamente motivado” (idem, 152)
Uma arbitrariedade relativa, contudo, não imbrica também, de certa
forma, em uma relação relativa, mínima que seja, com a realidade? Seriam os
signos com arbitrariedade relativa símbolos? Essa diferenciação saussureana
entre signos e símbolos talvez seja apenas pouco mais do que retórica vazia nos
debruçarmos sobre certos signos, como os matemáticos (usualmente chamados
de símbolos), mas tem importância relevante nos campos a que aqui nos
referimos.
Acreditamos, portanto, que haja bons motivos para os estudos semióticos
se deterem no conceito do símbolo como um signo fortemente motivado, fugindo
das fluídas zonas limítrofes, assim como os estudos teológicos e os artísticos o
fazem. De fato, o próprio exemplo da balança, na explanação de Saussure, já nos
remete a um signo que ganha não apenas uma forte motivação com a realidade,
principalmente, ao pensarmos nas diferentes ideologias associadas à justiça. Por
exemplo, é ela cega? o que, efetivamente significa a equidade? e muitas outras
considerações que relacionam diferentes elementos psicossociais no momento em
que o símbolo balança circula em sociedade.
Mais ainda, acreditamos que, sem renunciar às unidades individuais
analíticas de significação, os signos, seja mais conveniente pensarmos, ao estudar
os diferentes fenômenos semióticos simbólicos, em textos. Isso porque os
símbolos – e particularmente os símbolos cristãos – são enunciados, usualmente,
em complexas redes sintáticas, com diferentes signos hierárquica e
simbolicamente diferentes, colaborando de modo solidário na produção do
sentido.
Tal pensamento está de acordo com o semioticista Umberto Eco quando
afirma
“Não deve o exposto induzir-nos a renunciar à individuação de funções signícas
elementares (os chamados ‘signos’) ali onde são encontrados, mas serve para
lembrar que os processos semióticos quase sempre lidam com textos HIPO ou
HIPERCODIFICADOS. Quando unidades analíticas não são identificáveis, não é o
caso de negar a correlação semiótica: a presença da convenção cultural não é
testemunhada apenas pela emergência dos chamados ‘signos’ elementares. É,
antes de tudo, testemunhada pela existência identificável de modos de produção
sígnicia” (ECO, 2012: 222).
Atualmente, em um quadro dos estudos da linguagem e da semiótica,
consideramos texto como toda unidade de significado, ou seja, um todo
organizado de sentido e não apenas às manifestações verbais, isto é, por meio
das palavras de uma língua natural, como o português. Um texto pode
manifestar-se por meio das linguagens visual, gestual, musical etc. Assim um
quadro, um filme, uma tira quadrinhos, um balé, uma missa e uma parte
específica de uma missa, como a Eucaristia, são textos. Há textos dentro de um
texto, conforme os diferentes contextos de leitura.
Um texto é delimitado por dois brancos, isto é, dois espaços de não
sentido. A moldura de um quadro delimita o espaço de sentido e o de não
sentido. A acolhida e a despedida, o “Missa finita est”, separam o espaço do texto
missa do espaço do não sentido. A missa é, portanto, um texto.
Desta perspectiva, a compreensão de um texto não é uma atividade com
regras formais e lógicas que resultam em respostas automáticas. A
compreensão de um texto, contudo, envolve processos estratégicos práticos nos
quais se escolhem, com maior ou menor grau de consciência, as alternativas
consideradas mais produtivas. O leitor procura aproveitar ao máximo os
recursos de que dispõe procurando não a lógica do texto, mas a própria vivência
(cognitiva, afetiva e espiritual) do mesmo.
3. Do símbolo cristão ao discurso cristão: um percurso
Desde Aristóteles, a metáfora pode ser considerada como transferência de
sentidos (ARISTÓTELES, 1997: 42). Transferir é um ir além, um mover-se, que
amplia horizontes. A metáfora possibilita a autonomia do símbolo em relação à
realidade, coerente com a estrutura profunda dos conceitos fundamentais da
cultura que originam essa metáfora, mas instiga os participantes a moverem-se
para outros espaços fora de sua estabilidade imediata. Por isso, a metáfora
preconiza a aprendizagem.
Lakoff e Johnson (2002: 46) defendem que toda a nossa experiência
apenas ocorre dentro de proposições culturais. As metáforas permitem que nos
desloquemos a um domínio da experiência para entender outro. Tais
deslocamentos metafóricos se estruturam em solidariedades sistêmicas, ou seja,
não ocorrem apenas na dimensão subjetiva de quem enuncia. Para os estudiosos,
entender algo é realizar um ajuste a um sistema conceitual coerente relativo ao
que se procura entender. Esse conceito possibilita a existência de realidades que
estão além de nós mesmos, no domínio do Sagrado, mas com as quais
interagimos, sem contudo, defender a ausência de significados objetivos que
dependem do processo de enunciação, ou seja, da vivência da produção e
recepção do texto.
O estudioso francês Roland Barthes constrói um conceito de signo
metafórico que se aproxima muito do que consideramos ‘símbolo’. Ele explica que
todo signo relaciona uma determinada forma a certo conteúdo. Ele considera que
a metáfora ocorre quando encontramos um signo cuja forma seja formado por
outro signo:
2 FORMA CONTEÚDO
1 FORMA CONTEÚDO
É o que ocorre com grande parte dos símbolos cristãos, por exemplo. Se
considerarmos a água associada ao significado da purificação, então podemos
entender o batismo como símbolo da remissão dos pecados. No seguinte
esquema:
2 BATISMO REMISSÃO DOS PECADOS
1 água purificação
Em outras palavras,
“No símbolo existe como que uma relação interna que revela a unidade entre
sinal sensível e realidade significada. Por exemplo, a água como símbolo de
purificação, de vida. A água em si já contém como que o sentido de purificação,
de vida. Não é algo que é imposto de fora, racionalmente”. (BUYST, 2007: 32)
Naturalmente o nível 2, ou seja, o nível metafórico (ou conotado) não se
apropria completamente do sentido da denotação. A associação entre o
significante água e o significado purificação poderia encaminhar-nos para muitas
possibilidades, entre as quais, apenas uma delas é o da remissão dos pecados.
Essa ideia se dá dentro de um quadro histórico e social específicos que, inclusive,
não tem uma associação imediata com a origem do batismo.
Podemos dizer que a metáfora, na visão de Barthes, recorta um sistema de
valores, um modo de ver o mundo:
“seja qual for o modo pelo qual a conotação ‘vista’ a mensagem denotada, ela
não a esgota: sempre sobra “denotado” (sem o quê o discurso não seria
possível) e os conotadores afinal são sempre signos descontínuos, “erráticos”,
naturalizados pela mensagem denotada que os veicula. Quanto ao significado de
conotação tem um caráter ao mesmo tempo geral, global e difuso: é, se se
quiser, um fragmento de ideologia” (BARTHES, 1972: 97)
Podemos considerar o símbolo como um signo metafórico. Mas a
compreensão da ação simbólica do batismo exige que a pensemos como texto
metafórico, realizado em determinados tempo e lugar históricos e sociais
específicos e numa abertura dialógica (e sujeita a coerções e tensionalidades)
com a tradição que o constitui.
O valor metafórico do símbolo converte-o em um modo particular de
conhecer a realidade, propício para o exercício do encantamento e da
transcendência. E, de fato, é nesse domínio de afetividades que ele circula com
maior eficiência. Isso, contudo, não significa que a compreensão do símbolo não
possa ser aprendida por meio de estratégias cognitivas (ou avaliada por padrões
de eficácia cognitiva) desde que tais não desconsiderem a natureza em que o
símbolo surge e circula.
No batismo, por exemplo, há mais do que água. Há uma complexa sintaxe
composta de diferentes signos (alguns simbólicos, outros não) que somam à água
outros objetos, como a fonte ou pia batismal; palavras, como a bênção da água
para o batismo e gestos, como o de ablução ou imersão e humanos, como a
presença do padre etc. Esses signos não aparecem todos juntos e não têm a
mesma importância na ação simbólica. Por exemplo, ou o batismo se realiza por
imersão ou por ablução, mas não dos dois modos, ao mesmo tempo. Alguns
símbolos, como flores e perfume que se colocam na água, são opcionais. Além
disso, há a presença de familiares e outros convidados no evento e a figura,
carregada de valor simbólico, do(s) padrinho(s). Essas pessoas, ao mesmo tempo
em que são ‘leitores do texto batismo’ são também parte integrante do mesmo.
Tais elementos formam uma composição simbólica complexa que produz uma
unidade de sentido e cujo estudo ganha profundidade quando o pensamos como
realidade textual ocorrendo em um determinado tempo e lugar, com
determinadas pessoas.
Isto é, os símbolos são colocados em funcionamento em um determinado
contexto sócio-histórico, conformado por valores ideológicos e culturais, em certo
tempo e espaço, envolvendo participantes ativos no próprio processo enunciativo,
ou seja, de produção da ação simbólica. A enunciação se dá em um nunca
repetível aqui e agora e acentua a relação discursiva entre enunciadores quer
sejam reais, imaginados, individuais ou coletivos na sua relação com o universo
da referência.
As instâncias da enunciação podem ser concebidas em termos de uma
topografia social dos falantes. Os que participam na enunciação podem ser
considerados, nesta perspectiva, não tanto como presenças físicas, mas lugares
psicossociais, feixes de traços mais ou menos objetivos. Na constituição do
discurso, esses lugares estabelecem uma topografia ao passo que os
enunciadores instauram as posições que o destinador e o destinatário, ou seja, o
leitor do texto simbólico, atribuem a si mesmos e ao outro, bem como a imagem
que eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro.
O efeito de sentido, elaborado no processo de enunciação, que reproduz
um acontecimento primeiro, expresso em um texto, bem como a experiência que
desse acontecimento se originou, bem como a própria experiência produzida se
sintetiza em um conjunto a que damos o nome de discurso. O texto simbólico se
realiza discursivamente. E é como discurso simbólico que a realização da leitura
do texto se dá.
Desse modo, embora nos detenhamos na realidade dos símbolos, nosso
objetivo maior deve ser o de compreender os textos simbólicos que se realizam
na discursividade cristã. Compreender a linguagem simbólica (no sentido que
estamos aqui atribuindo a símbolo) como discurso é entendê-la para além dos
símbolos individuais e, ao mesmo tempo, superar uma compreensão dos
símbolos como código fechado e superar a visão que se contenta em valorizar a
instrumentalização por meio do seu uso, descobrindo o símbolo como sociedade,
história e possibilidade para o desenvolvimento integral do ser humano,
realidade cognitiva, afetiva e espiritual.
4. A imagem religiosa cristã
Aqui cabe outro aparte, o da imagem religiosa cristã. Trata-se ela de um
símbolo ou de um texto simbólico? A escolha de uma ou outra definição nos leva
a diferentes abordagens de tratamento. O símbolo é um signo, parte de algo
maior, mas que não se realiza como discurso simbólico. A imagem religiosa é um
signo fortemente motivado ou uma rede de signos interagindo entre si e
compondo uma unidade de significação? Inclinamo-nos pela segunda opção. É
muito esclarecedor o raciocínio de Eco ao que aderimos. O trecho a seguir, ainda
que longo, justifica-se pela sua importância:
“com as imagens nós lidamos com blocos macroscópicos, TEXTOS, cujos
elementos articuladores são indiscerníveis. (...) Em outras palavras, estamos
diante do fenômeno de textos que todos, de alguma maneira, compreendem sem
conseguir explicar o porquê. Nas representações icônicas, as relações contextuais
são tão complexas que parece impossível separar as unidades pertinentes das
variantes livres. Podem-se também distinguir unidades pertinentes discretas,
mas, apenas individuadas, elas parecem dissolver-se sem poder funcionar num
novo contexto. Existem às vezes vastas configurações, outras vezes pequenos
segmentos de linha, pontos, áreas escuras, como no desenho esquemático de um
rosto onde dois pontos num círculo podem representar os olhos, enquanto um
pequeno semicírculo corresponde à boca; basta porém mudar o contexto ou
mesmo as simples relações de ordem entre esses elementos, para que o círculo
represente à perfeição um prato, o pequeno semicírculo uma banana e os dois
pontos duas pequenas avelãs. Assim, mesmo quando parecem existir, as figuras
icônicas (...) não têm nenhum valor oposicional fixo no interior do sistema. Seu
valor oposicional não depende do sistema, mas, no máximo, do contexto.
Neste ponto, definitivamente, somos obrigados a considerar os chamados ‘signos
icônicos’ [isto é, na perspectiva de Pierce – nota minha] como (a) TEXTOS
VISUAIS que (b) não são ULTERIORMENTE ANALISÁVEIS nem em signos nem em
figuras” (ECO: 2012, 188, 189)
As imagens, inclusive as religiosas, são textos icônicos, unidades de
significado complexas compostos de diferentes elementos, na sua maioria
(embora, não na sua totalidade), impossíveis de serem identificados e analisados.
A análise de uma imagem religiosa sempre deverá processar-se contextualmente,
assumindo que cada imagem estabelece, no seu contexto, ao realizar-se como
discurso, a construção de um código peculiar. Ou seja, é impossível
estabelecermos um código imagético religioso claro, como um dicionário de
símbolos comum a todas as imagens religiosas, e que faça a tradução de todos os
elementos que compõem a imagem que temos diante de nós, como quando
reconhecemos cognitivamente as palavras e as letras que compõem uma frase
como ‘vou tomar um café’.
Muitas vezes ocorre, inclusive, que uma determinada figura que compõe
uma imagem religiosa é, ela mesma, um símbolo que ganha o estatuto de texto
simbólico quando individualizado. É o caso da cruz nas mãos das imagens de São
Luis Gonzaga ou do lírio associado a São Jose.
Ainda que possamos estabelecer sistemas simbólicos religiosos, a
construção de sentido das imagens religiosas opera pelos processos complexos e
plurais, em que, quaisquer símbolos que componham a totalidade da imagem
religiosa, vista como texto icônico, apenas podem ser compreendidos no seu
contexto de produção e recepção. Tais contextos, contudo, de algum modo se
inscrevem na própria obra, orientando e validando as interpretações. Parece
importante destacar que quanto mais complexo for um texto, mais complexa será
também a relação que se estabelece entre a expressão e o conteúdo.
As imagens religiosas assim como as celebrações litúrgicas são textos
simbólicos (ou metafóricos) que apenas podem ser compreendidos
adequadamente quando levamos em conta o seu processo enunciativo. Isso traz
para a cena de nossas discussões não apenas a motivação que os originou, mas o
processo pelo qual são recebidos.
5. O texto simbólico cristão nas leituras religiosa e cultural
Imaginemos que um antropólogo ateu vá a um batismo católico para
conhecer o rito, como parte de sua formação cultural e científica. Ali se encontra
com o padre, os pais e os padrinhos da criança. Todos juntos participam na
celebração do batismo, mas a presença do antropólogo ao construir esse texto
simbólico não poderá ser a mesma daquele que ali se encontra movido pela fé. O
mesmo podemos afirmar da imagem religiosa.
Vista dentro de uma igreja, como objeto de devoção não produzirá os
mesmos sentidos que em um museu, como objeto de admiração ou de estudo.
Neste caso, o espaço em que se dá a enunciação orienta (mas não limita) o
processo de recepção textual. Naturalmente, uma pessoa não religiosa pode
visitar uma determinada imagem ou outro símbolo religioso em uma determinada
igreja apenas por diletantismo ou com qualquer outro interesse que não se
relaciona com a fé. É o que ocorre, com frequência, nas igrejas mineiras em
cidades como Ouro Preto e Mariana.
Desse modo, temos de considerar que o espaço em que se encontra a
imagem organiza a sua recepção, mas não a limita. Isso porque o espaço é
sempre tomado, numa perspectiva enunciativa, na sua relação geográfica e
social, como ação realizada por indivíduos. Em última análise, é o indivíduo que
construirá o espaço no qual se encontra e irá interagir com o discurso simbólico.
Mas esse indivíduo não pode usar o texto simbólico a seu bel prazer. Os
movimentos da enunciação considera que o artista que elaborou a imagem
religiosa fez seleções para compor o seu texto, rejeitando tudo o que poderia ter
feito e não fez. Esse processo de seleção foi orientado por um propósito inicial,
uma intenção discursiva, que não pode ser deixada de lado. O artista, ao compor
o seu texto simbólico tinha um interlocutor em mente que, de algum modo, está
inscrito na própria produção da obra. Essa inscrição se fez por escolhas
atravessadas por dimensões subjetivas e histórico-sociais.
No que respeita à imagem religiosa, esse interlocutor inscrito na obra
trata-se, costumeiramente, de um homem de fé, de devoção, que, de algum
modo, participa do e no mistério do Sagrado. Embora, possamos também
encontrar imagens religiosas, como muitas obras feitas na renascença, que
visavam à ornamentação da casa ou a manifestação de um determinado discurso
ideológico.
O leitor,quer esteja no museu ou na igreja, deve adentrar nessa proposta
enunciativa, nessa intencionalidade discursiva e interagir com ela. No que respeita
à imagem religiosa, a interpretação deve, quase sempre, dar-se em interação
com a sua dimensão mística e religiosa. Trata-se de um leitor, adequando muito
livremente o pensamento de Eco (2003, 208) que pergunta diante do texto
simbólico que tipo de leitor aquela obra pede que ele seja e deseja ‘ouvir’ e ser
instruído pelo texto.
Embora todo texto artístico seja um texto simbólico, nem todo texto
simbólico será artístico. Isso nos faz pensar que nem todo texto simbólico cristão
será um texto artístico cristão. Ainda que ambos, texto simbólico e texto artístico
estejam dentro de uma formação discursiva própria dos textos culturais.
Consideramos aqui formação discursiva como tudo aquilo que pode e deve ser
expresso em certa conjuntura ordenada por determinados valores. Esses valores
conformam uma identidade psicossocial, ou seja, ao mesmo tempo subjetiva e
social.
Esquematizando, temos:
No item 11 trataremos do texto simbólico artístico cristão, uma espécie
particular de símbolo que suscita uma interação diferenciada.
DISCURSO SIMBÓLICO
TEXTO
SIMBÓLICO
CRISTÃO
TEXTO
SIMBÓLICO
ARTÍSTICO
DISCURSO CULTURAL
6. O processo de leitura dos símbolos cristãos
Compreender a simbologia cristã como linguagem, aproxima a liturgia, do
campo da ação semiótica. Os símbolos, as ações simbólicas e os ritos são vistos
não como objetos, mas como textos simbólicos no quadro de um processo
comunicativo no qual se produz os discursos religiosos católico.
No quadro da composição dos discursos religiosos católico, emerge o
discurso litúrgico. Por discurso litúrgico referimo-nos ao efeito de sentido
construído no processo comunicação promovido pelos mistérios sacramentais e
simbólicos a reprodução de um acontecimento primeiro, bem como a
experiência que dele se originou e a experiência produzida pela reprodução
desse acontecimento, na celebração.
O processo de leitura utiliza-se de duas fontes de informação da leitura: os
conteúdos que chegam à mente pelos diferentes signos empregados na
construção do texto e a informação (cognitiva, afetiva e espiritual) de que o
leitor dispõe e que faz interagir no processo enunciativo.
A partir da informação do texto e dos seus próprios conhecimentos, o leitor
construirá o significado, tomado sempre como vivência de construção do
sentido, em um processo que pode ser dividido em três partes:
A formulação de hipóteses
A verificação das hipóteses
A integração das informações e controle da compreensão
Considera-se que um texto é compreendido quando somos, como leitores,
capazes de explicá-lo com suas próprias formulações elaborar uma síntese ou
uma reflexão da vivência de leitura que seja aplicável à nossa própria
experiência.
A liturgia, no seio da comunidade cristã,
“expressa o que tem de mais sagrado, seu segredo mais profundo, seu
‘mistério’. (...) É um desafio redescobrirmos a força e o fascínio da liturgia como
ação ritual que expressão o mistério de nossa fé cristã e nos leva a uma
experiência espiritual e a um compromisso sempre mais profundo”. (BUYST
2011: 21)
Assim a compreensão leitora da liturgia envolve não apenas – sequer
principalmente – a compreensão racional dos acontecimentos, nos quais emerge
a condição de ‘mistério’, mas a compreensão espiritual que nos compromete
com a vida e com o transcendente.
Por tudo isso, seria um erro considerar a leitura da celebração litúrgica de uma
perspectiva passiva, como processo de recepção de informações preconstruídas.
Antes, o leitor é também co-autor do mistério de Cristo salvando.
“Todas as celebrações litúrgicas são consideradas memória de Jesus, o Cristo,
celebração do seu mistério pascal, cada celebração enfocando um aspecto
diferente. Podemos assim falar de um único mistério, como que desdobrado em
vários ‘mistérios’.” (BUYST, 2011: 29)
7. A formulação de hipóteses
Qualquer leitor, durante a leitura de um texto, relaciona uma série de elementos
textuais e contextuais, ativando esquemas de conhecimentos e antecipando
aspectos do conteúdo. O leitor formula hipóteses sobre o que encontrará a
seguir. Suas hipóteses o direcionam para frente, na compreensão do texto e na
construção de um sentido, uma direção que seja um agir com o texto, uma
vivência pessoal.
Assim, as hipóteses estabelecem expectativas em todos os níveis do texto
e podem ser formuladas como perguntas (conscientes ou não) para as quais o
leitor espera encontrar resposta na continuidade.
Essa atividade é comum em todas as circunstâncias comunicativas:
quando nos reunimos entre amigos, fazemos previsões de certos
comportamentos e construímos expectativas sobre o desenvolvimento futuro
dessa reunião. Quando vamos ao supermercado fazer comprar, antecipamos o
que iremos comprar, em que sessões encontraremos os produtos, o quanto
gastaremos etc. Construir hipóteses é parte integrante do processo de
construção do sentido em qualquer texto.
O que ocorre é que ativamos esquemas pertinentes que fazem parte de
nossos conhecimentos prévios como indivíduos no mundo e os atualizamos
àquela situação específica de leitura, utilizando das informações de que
dispomos. As previsões decorrentes devem, portanto, originar hipóteses
coerentes sobre o que é esperável a seguir a partir do que já sabemos. O que
lemos anteriormente orienta as hipóteses sobre o que têm mais possibilidade de
aparecer nesse contexto, assim como saber que amigos estarão em
determinado lugar que conhecemos orienta as conversas que provavelmente se
desenvolverão no encontro.
Além disso, o leitor deve construir previsões sobre as informações que
devem ser inferidas, que não estão apresentadas de modo explícito.
Para conseguir fazer uma leitura eficiente de um texto, precisamos deduzir
as relações entre as suas diferentes partes e completar as informações do texto
com outras que não são explícitas porque se supunha que fossem, de algum
modo, resgatáveis no processo de leitura. A leitura litúrgica envolve o processo
ritual, que se estende linearmente em um eixo temporal transformando um
determinado espaço.
Mas diante de uma imagem religiosa não há um para a frente claro sobre o
qual propor hipóteses. Há, contudo, algumas figuras que compõem uma sintaxe
visual e sobre a qual se movem os olhos do leitor. Diante de tais figuras surgem
hipóteses que nos remetem para possibilidades. Uma das principais figuras são
aquelas que correspondem posicionamento da imagem em relação ao leitor.
Georges Péninou (1974) valorizou o olhar para compreender a construção
de sentidos produzida pelo leitor. Porém o olhar não é o único responsável, nem
funciona sozinho. Somam-se a ele a orientação do corpo, do rosto, da
profundidade do campo, da distância em relação ao leitor, dos planos envolvidos
e do próprio tamanho da imagem. Tais são alguns dos elementos que trabalham
solidariamente entre si, promovendo hipóteses interpretativas pelo leitor.
Na imagem, a forma frontal com os olhos fixos no destinatário que os
encara, constituiria característica do eu, em um encontro direto com o outro
numa relação muitas vezes apelativa, como que ordenando algo.
O convite e o testemunho faz com que o olhar e a orientação do corpo não
sejam tão diretas, tão frontais. São típicas, portanto, dessa atitude, o baixar dos
olhos, a fixação em outro objeto ou detalhe a fuga dos olhos para longe ou para
o alto.
A personagem de perfil instaura a terceira pessoa e a narrativa. Sem
compromisso com o leitor que a observa, a imagem pode ser revestida de uma
camada ideológica ainda mais forte, dirigindo o leitor da imagem para outras
linguagens, doutrinas, instituições etc.
Mas é a imagem, no processo enunciativo, que irá fornecer os elementos
necesários para que o olhar do leitor construa hipóteses. O Monumento às
Bandeiras, em São Paulo e as estatuetas de barro da arte popular nordestina
trazem narrativas e sentidos bem diferentes. Enquanto um aponta para a
grandeza dos Bandeirantes desenhando os contornos do mapa brasileiro, o
outro fala do êxodo rural e da situação de não-lugar vivida pelos migrantes.
8. A verificação de hipóteses
Tomando que as celebrações litúrgicas se dão em um determinado tempo
e lugar, elas instauram uma linearidade em que os signos não aparecem todos
ao mesmo tempo ou com a mesma importância. Antigamente, era crença
comum que todo processo leitor ocorria recompondo cada signo que se lia em
uma sequência linear. Ou seja, enquanto eu não soubesse o significado de uma
palavra, não adiantava avançar na leitura do texto. Essa herança ainda é muito
forte nas metodologias de leitura adotadas. Mas tal ideia foi há muito superada.
Nosso olhar abarca uma série de signos ao mesmo tempo, mesmo aqueles
que não estão no foco de nossas atenções. Somos capazes de ler, mentalmente,
de modo compreensivo até 400 palavras por minuto. Além do mais, os olhos
não avançam em uma única direção, recuperando o processo linear. Os olhos
deslocam-se em saltos.
Mas ao pensarmos na leitura de um ato litúrgico, temos uma série de
códigos sendo utilizados que requerem a interação entre um conjunto plural de
sentidos. Musicas, palavras, gestos etc. consolidam-se em um único texto. Isso
leva a mente a retroceder, com certa frequência, para poder recuperar
informações perdidas ou avaliar a praticidade das inferências realizadas.
Em outras palavras, ler é sempre uma atividade dinâmica e de constante
avaliação e tomada de ação, que resulta na produção de novas hipóteses. Mais
ainda quando o texto é constituído por diferentes e complexos códigos que
apelam não tanto à compreensão cognitiva, mas a vivência espiritual, como é o
caso da liturgia.
Ou seja, podemos até, por questões metodológicas, como o fazemos aqui,
separar o que pertence ao levantar hipóteses do que se associa à sua
verificação, mas, na prática da leitura – tomada como ação junto – os dois
acontecimentos acontecem, quase sempre, ao mesmo tempo.
Além disso, nosso cérebro percebe conjuntos informativos. O leitor percebe
globalmente um conjunto de informações e as relaciona entre si. A diferença
entre leitores experientes e novatos reside no número de informações
percebidos em cada fixação e nas relações que se constroem. No que se refere a
textos escritos, bons leitores leem palavras ou conjuntos de palavras, enquanto
leitores inexperientes leem letras, sílabas ou palavras simples.
Leitores menos experientes apresentam um campo de visão mais reduzido,
ou seja, percebendo menos elementos em cada fixação, o que os obriga a um
trabalho de leitura mais dispendioso de energia, com um maior número de
fixações durante uma determinada leitura. Além disso, tal energia gasta em
prestar atenção aos muitos acontecimentos ocorrendo, torna mais difícil
elaborar sínteses e fazer reflexões. Isso faz com que ler um mesmo texto seja
mais cansativo para um leitor inexperiente do que para um leitor com
experiência leitora razoável. E, de algum modo, tal cansaço pode dificultar –
embora não impossibilitar – a abertura ao mistério.
Atualmente, acredita-se que o processo eficiente de leitura leva o leitor a
utilizar diferentes estratégias leitoras de acordo com a significação e a amplitude
das unidades captadas em um único olhar. Todas as expectativas gráficas,
léxicas, morfossintáticas, semânticas ou semióticas combinam-se e reforçam-se
umas às outras, de tal modo que o leitor utiliza a ajuda do contexto para
simultaneamente em todos os níveis do processamento para ajustar ao máximo
as suas hipóteses.
9. As hipóteses na celebração litúrgica
A compreensão racional do fenômeno simbólico é importante e pode ser
traduzida na “capacidade de relacionar coisas e gestos simples com a presença de
Jesus Cristo” (BUYST 2007: 46). Essa compreensão passa por um processo
catequético que não pode ser desconsiderado, nem minimizado e que deve ter
como objetivo ensinar “a vivenciar os símbolos, a ligar a fé com os sinais
sensíveis, partindo das escrituras sagradas” (id.).
Mas a compreensão racional não é tão importante, no momento da leitura
que é também – ou principalmente – celebração, como a sensibilidade simbólica
ao fenômeno espiritual que se desenvolve e que nos coloca dentro do próprio
texto e do mistério que discursivamente - como efeito de sentido - se realiza.
Assim, antes de tudo, devemos desenvolver uma sensibilidade simbólica
ao mistério. O que se espera do leitor de um texto litúrgico é que coparticipe do
mistério da salvação sendo realizado. Essa abertura ao mistério torna o levantar
hipóteses algo desafiador, pois o que se deve esperar se prende muito mais a um
abrir o coração à ação divina do que a uma síntese racional dos fenômenos.
Assim, no âmago entre o conhecimento racional do processo e o descortinar
espiritual do mesmo, vislumbramos uma ponte: uma habilidade, que será
sempre semiótica, ou seja, de (res)significar, para unir a razão e a emoção, o
conhecimento cognitivo e o mistério.
Essa sensibilidade simbólica pode ser considerada, dentro de uma relação
afetiva com o que se lê. Em outras palavras, todo ato de leitura litúrgica é um ato
de desenvolvimento de uma relação afetiva com o texto ao mesmo tempo
considerando a dimensão espiritual. Como nos diz Buyst (2011: 92):
“Na liturgia, a sensibilidade, a afetividade... servem para expressar e
veicular simbolicamente o afeto, o bem querer, o amor de Deus para com o seu
povo e viceversa, por Cristo, com Cristo e em Cristo, na unidade do Espírito
Santo. Servem para criar e reforçar a comunhão, a intimidade própria da aliança”.
10. A integração de informação
Para compreender o texto, o leitor precisa elaborar uma interpretação
global durante a sua leitura. Para processar o conjunto do texto, o leitor eficiente
elabora uma macroestrutura psiquíca. Esta corresponde à descrição abstrata do
seu conteúdo, uma espécie de resumo mental e afetivo do tema e das ideias
principais. Ocorre que, as ideias principais nem sempre coincidem nas dimensões
cognitiva e afetiva. Em outras palavras, aquilo que a mente julga essencial, nem
sempre é aquilo que o coração assim o considera. A leitura eficiente, contudo,
aspira a uma coincidência entre cognição e afetividade.
Isso significa que a primeira estratégia de processamento da leitura é de
síntese por meio de diferentes operações: supressões de partes do texto julgadas
pouco relevantes, apreciação cognitivo-afetiva do que foi suprimido e do que foi
considerado essencial, generalização do que se leu e construção e organização da
informações do texto em hierarquias cognitivas e/ou afetivas.
Durante o processo de leitura, o leitor contrasta as informações novas com
aquelas que detém. Se tal nova informação lhe parecer repetida ou de pouca
importância, o leitor experiente a descarta. Ao encontrar uma informação com um
conceito capaz de englobar várias informações, o leitor experiente a valoriza. Se
não encontra tal informação, o próprio leitor terá de construí-la e ativá-la de seu
repertório.
Essa atividade de síntese se produz de modo tão fluido que o leitor
experiente, na maior parte do tempo, não toma consciência do processo. Essa
consciência ocorre, em situações especiais, por exemplo, como quando as
hipóteses são confirmadas pela captação de indícios textuais, mas revelam um
desvio mais ou menos importante ao que parecia esperável. Por exemplo, ao
descobrir, na leitura de um conto, que “na mesa de jantar era servido um tigre
com batatas fritas”. Então ele terá de gerar hipóteses coerentes com tal dado
considerado, inicialmente, incoerente.
Ocorre que o leitor experiente da perspectiva semiótica não o será,
necessariamente, da perspectiva espiritual. Como nos diz Buyst (2011: 21):
“Quem olha de fora, ou quem está lá dentro sem ter sido iniciado, não
conseguirá captar esse ‘mistério’ e ser transformado por ele”. Quem olha de
fora, ou quem está lá dentro sem ter sido iniciado, não conseguirá captar esse
‘mistério’ e ser transformado por ele.
Então, integrar informações aqui obriga-nos ao desenvolvimento de três
competências:
(1) A competência espiritual, marcada pela sensibilidade simbólica, que se abre
ao mistério e que nos coloca dentro dele, como iniciados.
(2) A competência catequética, relacionada ao conhecimento dos símbolos, das
ações simbólicas, dos ritos e de suas relações com as Sagradas Escrituras.
(3) A competência semiótica, que está alerta para o processo de construção de
sentido do texto litúrgico e que sintetiza a competência espiritual e
catequética.
O mecanismo de compreensão leitora implica um estado constante de
alerta por parte do leitor para que possa detectar o erro no processo de construir
hipóteses e verificá-las, bem como de integrar essas informações em uma
compreensão global do que lê. Trata-se de uma atividade de constante
autoavaliação que lhe permite aceitar como válida a informação recebida e,
portanto, continuar a leitura ou adotar alguma estratégia que lhe permita refazer
o processo.
Nesse sentido, as principais ações tomadas pelo leitor são as seguintes:
1) Descartar a incoerência, ignorando o erro, por considerar que aquele
elemento não é importante para a construção da síntese cognitivo-afetiva do
que lê.
2) Suspender o juízo até que obtenha mais informações do texto que lhe
permita reorganizar a compreensão.
3) Buscar explicações alternativas, abandonando as hipóteses já construídas.
4) Retroceder no processo leitor e explorar partes do texto já lidas para situar
o(s) elemento(s) discordante(s).
5) Buscar uma solução exterior ao texto, como consultar um dicionário, uma
enciclopédia, outra pessoa, a internet etc.
11. O texto simbólico artístico cristão e a construção de sentidos
Há coincidências importantes entre o leitor que se aproxima da obra de
arte e aquele que se aproxima do símbolo cristão quando ambos buscam a
transcendência. Nos dois casos, a aproximação é antes de tudo impressiva. São
as emoções que fazem sentir a obra. Nesse sentir, algum elemento, nem sempre
claro, desperta a atenção. Sobre ele formulam-se então hipóteses que se
relacionam com o todo, que os olhos já abarcaram, mas ainda não analisaram.
Quando símbolo cristão e o artístico coincidem em um único objeto, as
possibilidades podem, curiosamente, se potencializar ou estreitar.
Com o filósofo francês Jacques Maritain (2008), podemos defender que a
arte cristã é aquela que possibilita a leitura da esperança e de inquietação
próprios do espírito evangélico. É uma arte que traz para si tanto o profano como
o sagrado. É uma arte feita não tanto para o espaço da Igreja, mas para o da
alma humana.
Por vezes, até, não é feita para tais ambientes religiosos e não provoca
diretamente a devoção do fiel, mas é, antes de tudo, uma arte que provoca... É
uma forma de arte que não reside apenas nas habilidades do artista, como
também nas habilidades do público leitor. A arte cristã não precisa falar do Cristo,
mas precisa provocar o cristão.
Por outro lado, podemos considerar a arte sacra como uma arte com
finalidades pedagógicas, que visa a ensinar ou a motivar uma determinada
atitude de devoção. É uma manifestação da arte que se enuncia para o ambiente
especificamente religioso: a imagem ou a música que promovem o adequado
espírito de devoção, por exemplo.
O perigo da obra de arte sacra é a sua preocupação ideológica de edificar
devocionalmente o outro. Torna-se, então, vítima fácil para visões infantilizadas
(no pior sentido do termo) da vida e para didatismos inapropriados. Desse modo,
perde-se a possibilidade para adentrar no mistério de vida.
O equilíbrio de promover a devoção e a transcendência pode surpreender o
artista em desafio maior do que ele consegue dar conta. A preocupação de
persuadir o outro é uma função que dificulta a construção da obra de arte e, com
isso, da arte genuinamente cristã e, ao mesmo tempo, sacra. O desafio é
construir o diálogo entre as muitas vozes presentes no processo enunciativo de
produção, particularmente, duas: a do artista e a do cristão, mas no constante
esforço de não confundir ou formatar essas fronteiras.
Essas fronteiras, segundo Maritain (2008), se estabelecem na liberdade do
artista enquanto artista. O mesmo poderíamos dizer do leitor, como artesão do
processo de leitura da obra de arte: ele precisa ser livre para ser leitor da obra e
encontrar nela traços de duas inspirações que a devem constituir como trabalho
cristão: a inspiração divina e a humana. Assim, mesmo que pensemos na
instância enunciativa receptora que se inscreve no símbolo cristão, a dimensão
artística promove a liberdade na direção do encontro a duas inspirações que
devem constituir a obra de arte como trabalho cristão: a inspiração divina e a
humana.
Liberdade é palavra chave no processo de interpretação do símbolo cristão,
mas não uma liberdade que permita o uso do símbolo nos propósitos exclusivos
do do artista ou do leitor, mas que respeite a realidade enunciativa: um texto
simbólico ocorrendo em um determinado tempo e lugar historicossocial e
envolvendo diversas pessoas, tanto sincrônica, como diacronicamente. Sendo
sensível para a dimensão metafórica do texto simbólico que é, essencialmente,
movimento. As metáforas possibilitam os deslocamentos para a abertura ao
entendimento do outro. Por isso, a linguagem simbólica, sendo essencialmente
metafórica, nos encaminha para o outro, seja aquele que está mais próximo a
nós, seja um artista no passado, seja o próprio Cristo.
A busca pela transcendência aproxima, nesse sentido, as linguagens
simbólicas da arte e do cristianismo. E essa busca orienta o olhar na construção
do sentido da obra de arte na procura antes de tudo impressiva, mas aberta ao
diálogo com os limites da enunciação.
O olhar busca o mistério e esse mistério é pergunta. Então se trata mais
de formular questões do que de encontrar respostas. Essa parte que se relaciona
com o todo, considera a realidade enunciativa da produção da obra, respeita-a,
particularmente, naquilo que a obra inscreve da enunciação em si. Isso significa
aproximar-se da obra de arte religiosa compreendida como texto simbólico
religioso, embora, nem sempre estejamos no domínio do devocional.
A simbologia cristã e artística expressam a necessidade humana de ir
além, de sentir-se incomodado com a realidade presente e desejar mais em um
movimento de penetrar em si mesmo que vai além de si mesmo. O texto
simbólico cristão constitui-se em caminho para essa passagem, trazendo em si
(como, de certa forma, também o faz o texto simbólico artístico) a possibilidade
do homem se irmanar a todos os homens, ao convidá-lo a assumir-se, no tempo
e no espaço, como um entre aqueles seres que assumem o diálogo que a
efemeridade estabelece com o infinito, que o mínimo estabelece com o absoluto,
como nos diz Manoel de Barros:
“É no ínfimo que eu vejo a exuberância”
(BARROS, 1996: 55)
Apenas nessa perspectiva não pedagogizante, de um didatismo
direcionado, que o textos simbólico artístico e o cristão podem se fundir e
colaborar solidariamente. Então abre-se a possibilidade de despertarmos a
atração a uma luz que não sabemos explicar, da qual divisamos uma parte, uma
centelha, naquela relação que estabelecemos emocional e mentalmente, entre a
parte e o todo da obra. No texto simbólico cristão, ainda mais se for também
artístico, juntam-se, então, a parte do eu cotidiana, resolução dialética entre
emoções e sentimentos, com a outra parte de si mesmo, o Eu que é Outro, por
ser manifestação transcendente do Sagrado. Nesse sentido, a experiência de
leitura do símbolo sagrado é profundamente mística.
Em linguagem poética, nos diz São João da Cruz:
“¡Oh noche que guiaste!
¡Oh noche amable más que el alborada!
¡Oh noche que juntaste
Amado con amada,
amada en el Amado transformada!2”
(CRUZ, 1984: 134)
Encontrar o mistério constitutivo de nossa própria identidade,
representação mental de quem somos, seres únicos em nossas experiências e
história próprias. Centelha do Sagrado que habita em nós. Mas encontrar o
mistério também como parte da nossa identidade social, como uma coleção de
pertenças a grupos, dos quais somos parte integrante: seja na identidade de
sentir-se mais brasileiro diante de uma obra sacra do Barroco em um museu ou
de sentir-se mais cristão diante do rito da Eucaristia. Centelha do Sagrado que
habita o Outro.
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2 Em tradução livre: “Ó noite que guiaste!/ Ó noite mais amável que a alvorada!/ O noite que juntaste/
amado com amada,/ amado no amado transformada!”
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