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Supremo Tribunal Federal
>v%' .JlíSiKüSJS.J.7.:S?.. .°0196M
Ministério Público Federal
Procuradoria-Geral da República
842N2 60050/2015 -ASJCIV/SAJ/PGR
Recurso Extraordinário 842.846 - SC
Relator: Ministro Luiz Fux
Recorrente: Estado de Santa Catarina
Recorrido: Sebastião Vargas
DIREITO ADMINISTRATIVO E CONSTITUCIONAL.
RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃOGERAL. TEMA 777. RESPONSABILIDADE CIVIL DO
ESTADO EM DECORRÊNCIA DE DANOS CAUSADOSA TERCEIROS POR TABELIÃES E OFICIAIS DEREGISTRO NO EXERCÍCIO DE SUAS FUNÇÕES.REGIME DE RESPONSABILIZAÇÃO DESSESDELEGATÁRIOS. ART. 236, § l2, DA CONSTITUIÇÃOFEDERAL. DELIMITAÇÃO EM BASESINFRACONSTITUCIONAIS. RESPONSABILIDADE
SUBJETIVA E DIRETA COM RELAÇÃO AOS PRÓPRIOSATOS E AOS DOS PREPOSTOS. SOLIDÁRIA EMRELAÇÃO À RESPONSABILIDADE CONSTITUCIONALE OBJETIVA DO ESTADO. ART. 37, § 6-, DACONSTITUIÇÃO. PRECEDENTES. DESPROVIMENTO.
1 - A melhor interpretação do ordenamento jurídico, noque diz respeito à responsabilidade civil do Estado em decorrência de danos causados a terceiros por tabeliães e oficiais de registro, conduz ao entendimento de que o Estado ésolidariamente responsável e os delegatários respondem direta e subjetivamente por seus próprios atos funcionais epelos de seus prepostos.
2 - Parecer pelo desprovimento do recurso extraordinário.
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Trata-se de recurso extraordinário, com repercussão geral
reconhecida, paradigma do Tema 777: responsabilidade civil do
Estado em decorrência de danos causados a terceiros por tabeliães
e oficiais de registro no exercício de suas funções.
Na origem, Sebastião Vargas propôs ação de rito ordinário
com o objetivo de ver condenado o Estado de Santa Catarina a
indenizá-lo por danos materiais em razão de suposto erro de Car
tório de Registro Civil das Pessoas Naturais da Comarca de São
Carlos - SC na elaboração da certidão de óbito de sua esposa. A
falha, conforme consta da narrativa dos autos, impediu-o de obter
benefício previdenciário pago pelo Instituto Nacional do Seguro
Social.
O Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, por oca
sião da apelação, atribuiu ao Estado respectivo a responsabilidade
objetiva direta pelo ato comissivo em comento, fazendo incidir o
art. 37, § 6-, da Constituição Federal. O acórdão foi ementado nos
seguintes termos:
Responsabilidade civil do Estado. Dano materialdecorrente de erro de ato de serviço do cartório do
Registro Civil. Legitimidade passiva do Estado.
Denunciação da lide não obrigatória. Ausência de prejuízoao denunciante. Nulidade inexistente. Equívoco do nomeda pessoa finada na expedição da certidão de óbito. fato que
impediu o autor de receber a pensão previdenciária por
morte da esposa. necessidade de ajuizamento de demanda
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para retificação do registro. retardamento na percepção
do benefício. dano material caracterizado.
Responsabilidade objetiva. Dever de indenizar configurado.
Recurso desprovido.
1. "O Estado, na condição de delegante dos serviços notariais, responde objetivamente pela reparação dos danos que ostabeliães e registradores vierem a causar a terceiros em razãodo exercício de suas funções" (AC n. 2007.061873-6, da Capital) .
2. Se a falta de denunciação não implica na perda do direitode regresso nas hipóteses dos incs. I e II do art. 70, repugnaaos princípios de economia e celeridade processual a idéiade se anular o processo em razão do indeferimento dessepleito, ainda quando a litisdenunciação fosse cabível.3. "A indenização por dano material só pode dizer respeitoao ressarcimento daquilo que, em cada situação, representouuma diminuição indevida do patrimônio do ofendido"(Resp 675147/RJ). Sob esta premissa, quem deixou de receber valores a que tinha direito em razão da atuação faltosa depreposto do Estado, deve ser indenizado na integralidade domontante a que, induvidosamente, faziajus.
Daí o presente recurso extraordinário, amparado no art. 102,
III, a, da Constituição Federal, em que o Estado de Santa Catarina
ventila a tese de ofensa ao preceito do art. 37, § 6-, da Carta
Magna.
Aduz que, da redação do preceito constitucional suposta
mente violado, extrai-se que a responsabilidade objetiva recai sobre
os atos das pessoas jurídicas de direito público e das pessoas, físicas
ou jurídicas, de direito privado, dado o uso da conjunção aditiva
"e", e não da alternativa "ou". Por esse viés, complementa, seria
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possível o enquadramento dos tabeliães e registradores no sistema
mais gravoso de responsabilização ali determinado.
Centra-se, em segundo lugar, no argumento de que os tabeli
ães e oficiais de registro são responsáveis objetivamente pelos res
pectivos atos, não se podendo considerar que o Estado responda
por seus comportamentos, uma vez que tais pessoas não se apre
sentam como agentes públicos, mas como particulares delegatários
de serviço público prestado em regime de direito privado.
Ao examinar o preenchimento dos pré-requisitos de interpo-
sição do extraordinário e a transcendência econômica, política, so
cial e jurídica da matéria, o Ministro Relator apontou a
necessidade de assentar qual é o tipo de responsabilidade civil que
rege a atuação desses delegatários, se objetiva ou subjetiva, e se o
Estado-membro ao qual estão vinculados responde de forma pri
mária, subsidiária ou solidária em relação aos tabeliães e registra
dores.
Em 4 de dezembro de 2014, o Relator determinou a remessa
dos autos a esta Procuradoria-Geral da República, para parecer.
Esses, em síntese, são os fatos de interesse.
O recurso extraordinário não comporta provimento.
Um primeiro olhar sobre a matéria pode vir a sugerir que,
por deterem os tabeliães e oficiais de registro independência ge-
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rencial, administrativa e financeira, para além de uma remuneração
autônoma e não limitada ao teto do funcionahsmo púbhco e da
não submissão à aposentadoria compulsória por implemento dos
setenta anos de idade, devem eles responder de forma objetiva e
direta por seus atos, na linha do raciocínio desenvolvido pelo Es
tado recorrente.
Da leitura sistemática e atenta do que preceituam, conjunta
mente, os arts. 37, § 6-, e 236, caput e § 1-, da Constituição Federal,
sem embargo, emerge conclusão diversa. Consta da literahdade de
ambos os dispositivos:
Art.37. [...]
§ 6- As pessoas jurídicas de direito público e as de direitoprivado prestadoras de serviços públicos responderão pelosdanos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros,assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.
Art. 236. Os serviços notariais e de registro são exercidos emcaráter privado, por delegação do Poder Público.
§ 1£ Lei regulará as atividades, disciplinará a responsabilidadecivil e criminal dos notários, dos oficiais de registro e de seusprepostos, e definirá a fiscalização de seus atos pelo PoderJudiciário.
No que se refere à possibilidade de aplicação do regime de
responsabilidade objetiva determinado pelo art. 37, § 6-, da Cons
tituição a pessoas físicas, como é o caso dos tabeliães e oficiais re-
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gistradores, a primeira explicação lançada pelo recorrente é des
provida de amparo no vernáculo.
O dispositivo em questão põe em evidência o fenômeno da
zeugma, isto é, a omissão, ou ehpse, de elementos anteriormente
citados. Ah, a ehpse é de toda a expressão "pessoas jurídicas", com o
adjetivo restritivo (jurídicas) incluso.
A expressão "as pessoas jurídicas" é vista como um todo sintag-
mático. Na concordância nominal, que é a expressão formal proto-
típica de dependência entre os termos oracionais, existe uma
combinação de traços que deve aparecer morfofoneticamente em
todos os três elementos: traços de gênero —no caso, o feminino —,
traços de pluralidade e a impossibilidade de se apagar o termo "ju
rídicas", essencial para o entendimento da frase (já que se refere
apenas a pessoasjurídicas, e não a todas as pessoas).
Desta forma, o todo sintagmático é visto como um grupo
sintático por haver tal combinação de traços compartilhados, que
se comprova por meio da pronominalização. Quer dizer: "as pes
soas jurídicas de direito público" pode ser substituído pelo pronome
"elas".
Dito isso, quando se faz a zeugma de um grupo sintagmático,
em geral, retoma-se apenas um dos elementos para evitar repetição
de palavras. E existe tal possibilidade de omissão apenas quando
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um grupo sintagmático carrega os mesmos traços sintáticos, tal
qual no exemplo analisado1.
Desta forma, no § 6- do art. 37, o trecho "As pessoas jurídicas
de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos
responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a ter
ceiros", a expressão "as de" omite todo o grupo sintagmático "pes
soas jurídicas", já que compartilham traços de concordância em
gênero e número, traços prototípicos de dependência sintática, e
não apenas omite "pessoas".
Ademais, observa-se que a semântica de inclusão ou de ex
clusão que resulta da escolha da conjunção não interfere na inter
pretação sintática do termo omitido.
Feitas essas delimitações das possibilidades de interpretação
do preceito constitucional, tem-se que apenas a analogia com a
expressão "pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço pú-
blico"permitiria a submissão direta e imediata de tabeliães e oficiais
registradores ao regime gravoso da responsabilidade objetiva pelos
atos realizados rio exercício da função.
1 Quando se retoma a frase por um pronome definido "as", que funcionacomo pronome demonstrativo por retomar um elemento anterior, faz-sereferência a toda a expressão com que ele compartilha traços, tais como ode concordância.
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No sistema jurídico brasileiro, para a análise da responsabüi
dade por danos causados a terceiros, a regra é a perquirição de
dolo e culpa —por influência teórica de cunho civilista —ou a in
vestigação do risco da atividade —iluminada por teorias publicistas
da responsabüidade.
A responsabüidade objetiva exsurge como exceção e deve,
pelos püares civüistas, estar expressamente contida em norma
constitucional ou legal. Não cabe presumi-la, tal qual informa o
art. 927 do Código Civü. In litteris:
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causardano a outrem, fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ouquando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor dodano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
E, note-se: é a própria Constituição que autoriza, por norma
de eficácia limitada, ao legislador ordinário disciplinar a responsa
büidade civü e criminal dos tabehães, dos oficiais de registro e de
seus respectivos prepostos, bem como definir a fiscalização de seus
atos pelo Poder Judiciário (art. 236, § l2, da CF/88).
Há quem defenda que o art. 22 da Lei 8.935/1994, que
dispõe sobre os serviços notariais e de registro, no esteio do per
missivo constitucional, instituiu a responsabüidade objetiva desses
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delegatários ao dizer que "responderão pelos danos que eles e seus pre-
postos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegu
rado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos
prepostos".
O enunciado, não obstante, não marca a objetividade do re
gime de responsabilização de forma expressa, limitando-se a dis
por, de forma hialina, sobre a responsabilidade direta do titular da
serventia pelos atos dos prepostos.
Assim, por comportar dupla interpretação, deve-se afastar a
mais gravosa para a pessoa do tabelião ou do registrador, os quais,
embora se apresentem como colaboradores sui generis do Poder
Púbhco - por executarem suas funções em regime privado -,
aproximam-se da categoria dos agentes púbhcos, tanto por força
do sistema de investidura originária por provas e títulos (art. 236, §
3-,da Constituição) quanto por influência do exercício personalís
simo de atividade eminentemente estatal.
Em outro passo, o art. 28 da Lei de Registros Púbhcos (Lei
6.015/1973) contém comando expresso quanto à responsabüidade
subjetiva desses agentes colaboradores do poder público ao infor
mar que eles serão "civilmente responsáveis por todos os prejuízos que,
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pessoalmente, ou pelos prepostos ou substitutos que indicarem, causarem,
por culpa ou dolo, aos interessados no registro"2.
Ainda dentro da mesma lógica legislativa, encontra-se o art.
38 da Lei 9.492/1997, que anota a responsabüidade subjetiva dos
Tabeliães de Protesto de Títulos por seus próprios atos e os de seus
prepostos.
Poder-se-ia, então, noutro giro, pensar o enquadramento do
regime de responsabüidade de tabehães e registradores ao disposto
nos arts. 12 e 14 do Código de Defesa do Consumidor —CDC.
Os dispositivos em referência cristalizam, respectivamente, a res
ponsabüidade objetiva do fornecedor pelo fato do produto e pelo
vício do serviço.
Nesse particular, importa trazer à colação o enunciado do art.
I2 da Lei 8.935/1994, específica para a regência dos cartórios ex
trajudiciais: "Os serviços notariais e de registro são os de organização téc
nica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade,
segurança eeficácia dos atos jurídicos". vár-^
2 Note-se, nesse ponto, que, a entender-se pela existência de responsabilidade objetiva de tabeliães e registradores, por imposição do art. 37, § 6£, daConstituição, estar-se-á, em outros termos, rejeitando a recepção constitucional do citado comando legal. O mesmo ocorrerá com o art. 157 da.Lei6.015/1973, que prevê, quanto ao registro de títulos e documentos, o seguinte: "Art. 157. O oficial, salvo quando agir de má-fé, devidamente comprovada, não será responsável pelos danos decorrentes da anulação doregistro, ou da averbação, por vício intrínseco ou extrínseco do documento, título ou papel,mas, tão-somente, pelos erros ou vícios no processode registro".
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Como se vê, a sua procura não é ato meramente eletivo dos
cidadãos, assim como a tarefa de fornecer os serviços é um poder-
dever do titular da serventia extrajudicial, munus público remune
rado por taxa, isto é, por tributo (ADI 1.378, Relator Ministro
Celso de MeUo,Tribunal Pleno, DJe 30 maio 1997).
Não há ah, em suma, uma relação contratual, como a entabu-
lada nas relações eminentemente civis, ou nas relações de con
sumo, o que afasta a incidência do CDC. Nessa hnha, o precedente
do Recurso Especial 625.144, julgado pela TerceiraTurma do Su
perior Tribunal de Justiça - STJ. Consta da respectiva ementa:
Processual. Administrativo. Constitucional.
Responsabilidade civil. Tabelionato de Notas. Foro
competente. serviços notariais.
- A atividade notarial não é regida pelo CDC. (Vencidos aMinistra Nancy Andrighi e o Ministro Castro Filho).
- O foro competente a ser aplicado em ação de reparação dedanos, em que figure no polo passivo da demanda pessoajurídica que presta serviço notarial é o do domicílio do autor.- Tal conclusão é possível seja pelo art. 101, I, do CDC, oupelo art. 100, parágrafo único, do CPC, bem como segundoa regra geral de competência prevista no CPC. Recurso especial conhecido e provido. (DJe 29 maio 2006.)
Naquela oportunidade, o Ministro Humberto Gomes de
Barros capitaneou divergência com relação ao voto da Ministra
Nancy Andrighy, relatora, procedendo à analogia com o julgado
do Recurso Especial 213.799, em que a Quarta Turma do STJ re
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PGR Recurso Extraordinário 842.846 - SC
cusou o entendimento de que peritos judiciais se submetiam ao
CDC na prestação de seus serviços. Salientou, em seu voto:
Não existe um "mercado de consumo de serviços notários",pois, nesse campo, não há liberdade de concorrência e iniciativa. A chamada "mão invisível" da Economia, na célebre expressão de Adam Smith, não atua nesta seara, que é cercadade restrições legais, definições de "emolumentos" (com natureza de taxa), delimitações territoriais de atuação, fiscalizações externas, etc. Propriamente, não há concorrência demercado entre os notários, pois a Lei e o Estado (via PoderJudiciário), dirigem e fiscalizam a atividade notarial, impedindo uma livre concorrência entre os cartórios.
Capacidade de atuar livremente no mercado, sem intervencionismo estatal direto, é atributo do fornecedor. Quem prestaserviço público típico (remunerado por tributo), não atua no"mercado de consumo", insere-se num "mercado de contribuinte", com responsabilidade civil diferenciada fixada cons-titucionalmente (Art. 37, § 62).
Vale dizer: a prestação de serviço público típico não traduzrelação de consumo, pois fornecida fora do mercado de consumo, escapando da incidência do Código de Defesa doConsumidor.
Em linhas gerais, serviço públicos típicos ou próprios sãoaqueles remunerados por tributos, enquanto, serviços públicos atípicos ou impróprios são retribuídos por tarifa oupreço público, podendo estar sujeitos, conforme o caso, aosditames do CDC.
Do contrário, teríamos que admitir, a União respondendopor "fato do serviço", com base no CDC, pela má prestaçjç^de serviços judiciários, legislativos ou executivos.3
3 Relevante também a contribuição do mencionado Ministro ao observarque o art. 100, parágrafo único, do Código de Processo Civil aplica-se àsações de reparação de danos por atos civis e criminais extracontratuais,prevenindo a necessidade de deslocamento do lesado para promover a de-
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Tampouco pelo prisma do risco administrativo (risco-criado
ou risco-proveito4) - de índole teórica publicista, como já menci^
onado —seria adequado interpretar, analogicamente, o art. 37, § 62,
da Constituição, para ali incluir os tabehães e registradores.
E que referido caminho interpretativo levaria, salvo melhor
entendimento, a uma grave distorção.A pessoa física do serventuá
rio terá de responder, independentemente de culpa por atos dano
sos, mesmo que resultem de disposição legal ou normativa, dado
estar obrigado a tal por força do art. 31, inciso I, da Lei
8.435/19945, o que representa transferência absolutamente inde
vida de responsabilidade diretamente atribuível ao Estado6.
fesa judicial de seus direitos fora do lugar de seu domicílio.Prevê o art. 21 da Lei 8.935/1994: "O gerenciamento administrativo e financeiro dos serviços notariais e de registro é da responsabilidade exclusivado respectivo titular, inclusive no que diz respeito às despesas de custeio,investimento e pessoal, cabendo-lhe estabelecer normas, condições e obrigações relativas à atribuição de funções e de remuneração de seus prepostos de modo a obter a melhor qualidade na prestação dos serviços".
O alerta é feito por Renato Luís Benucci nos seguintes termos: "Como naresponsabilidade objetiva não se analisa, para fins de sua incidência, sehouve falha no sistema normativo ou má execução dos serviços, os notários e registradores seriam, injustamente, responsabilizados pela má elaboração normativa dos serviços, na qual sequer intervieram. A tese daresponsabilidade objetiva poderia levar, assim, a situações em que a indenização seja devida pelo notário e pelo registrador quando estes cumprem fielmente a lei".
Aliás, quando se pensa no dever objetivo de reparação de danos civis porparte do tabelião ou registrador, a responsabilidade lhe será imposta independentemente da rentabilidade do tabelionato ou ofício pelo qual responde - que é altamente variável - e sem que haja meios de preservar seupatrimônio pessoal para além dos mínimos legais. São ônus completamente
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Outro exemplo da distorção que seria causada é trazido por
Henrique Bolzani:
Cite-se, por exemplo, o caso em que é lavrada pelo tabeliãode nota uma escritura pública de compra e venda de umbem imóvel de vultoso valor. Mais tarde, tal negócio jurídicovem a ser anulado judicialmente por um vício de consentimento, um vício social ou, até mesmo, por uma hipótese denulidade não perceptível quando do momento da lavraturada escritura pública. Sob a égide da imputação objetiva, o tabelião poderia ser responsabilizado pelos prejuízos decorrentes desta invalidação de seu instrumento púbhco, mesmo nãotendo concorrido de qualquer forma para os motivos que aensejaram.7
E então, pode-se questionar: se, por essa hnha de intelecção, a
responsabilidade do tabelião e do registrador é subjetiva, abre-se
espaço para a irresponsabihdade administrativa no campo das ativi
dades cartorárias e prejudica-se o cidadão lesado em seus direitos?
A resposta é um retumbante não.
O art. 37, § 6-, da Constituição veicula a opção constitucio
nal por um sistema de responsabüidades púbhcas fundado na teoria
distintos dos assumidos pela pessoa jurídica de direito privado prestadorade serviços públicos (muito embora sejam passíveis de cobrança pelo Estado, no exercício do direito de regresso). Isso porque, no caso dessas pessoas jurídicas privadas, além de haver previsão constitucionalsuficientemente clara a respeito de sua responsabilidade aquiliana ou extra-contratual, elas respondem pelo dano apenas no limite das forças econômicas, o que resguarda, por regra, o patrimônio de seus sóciosadministradores.
7 Bolzani, Henrique. A responsabilidade civil dos notários e dos registradores. SãoPaulo: LTR, 2007, p. 87.
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do risco, mais favorável ao cidadão, na medida em que somente
exige, para fins de reparação civil, (i) a conduta ilícita, a ocorrência
do dano e o nexo de causalidade ente um e outro; ou (ii) a con
duta lícita, o dano especial e anormal ao particular, bem como o
nexo de causahdade entre ambos.
A lógica de sua instituição, desde a Constituição de 1946, foi
não apenas assentar, em termos democráticos, a responsabüidade
do Estado —que no ordenamento jurídico do país detinha feição
subjetiva até então. Seu escopo central era o de sociahzar os riscos
da atividade administrativa, uma vez que, pelo imperativo isonô-
mico, todos os cidadãos devem estar submetidos de forma equâ-
nime aos encargos púbhcos.
O ato notarial ou de registro hcito que gera dano ao particu
lar deve ser atribuído como responsabüidade direta e imediata do
Estado.Aqui a incidência do art. 37, § 62, da Constituição não en
cerra maiores dificuldades.
Por sua vez, o ato ilícito que ocasiona dano ao cidadão que
depende dos serviços cartorários para diversos e relevantes efeitos
da vida civü também pode ser atribuído ao Estado, na medida em
que o tabehão e o registrador são agentes que, embora atuem em
nome próprio, são escolhidos pelo ente estatal e funcionam como
longa manus do Poder Público.
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A colaboração desses agentes se submete, de mais a mais, à
fiscalização do Poder Judiciário local, bem como aos atos normati^
vos e correicionais provenientes do Conselho Nacional de Justiça.
Por conseguinte, as falhas na execução descentrahzada de tais
serviços podem ser entendidas como erro in eligendo ou in vigi-
lando do Poder Púbhco, o que faz incidir de forma direta e imedi
ata o preceito ressarcidor do art. 37, § 6-, da Constituição Federal,
intrinsecamente imbricado nos pÜares axiológicos do sistema jurí
dico brasüeiro, sob o manto dirigente da Constituição Democrá
tica de 19888.
Precisa é a lição de Paulo Bonavides quando afirma que a
responsabüidade do Estado se identifica com a natureza do Estado
de Direito9. A cláusula de responsabüidade aquüiana do Estado
funciona como instrumento de garantia dos demais direitos clau-
sulados na Carta de 1988. Faz reconhecer, segundo Bonavides, "na
pessoa humana, garantida e resguardada em seu direito, em seu valor, em
^r
8 Oportuna é aproximação do caso examinado com precedentes da SupremaCorte acerca da responsabilidade objetiva do Estado por atos de agentespúblicos no exercício de suas funções. Confiram-se os Recursos Extraordinários 327.904 (Relator Ministro Ayres Britto, Primeira Turma, DJ 8 set.2006) e 470.996 AgR (Relator Ministro Eros Grau, Segunda Turma, DJe10 set. 2009).
9 Bonavides, Paulo. A principiologia da responsabilidade do Estado. In: Interessepúblico, v. 13, n. 69, p. 15-21, set./out. 2011, p. 1.
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sua dignidade, em sua cidadania, o ser democrático e igualitário que o Es
tado respeita"10.
Esse prisma de análise, agasalha, por mais de uma razão, o ci
dadão submetido ao encargo púbhco que a atividade notarial re
presenta. Garante-lhe o ressarcimento estatal, fundamental quando,
por exemplo, ocorre a sucessão da serventia —caso em que o su
cessor é investido originariamente e não tem o dever de arcar com
os débitos do anterior. Protege-o, ainda, da insolvência do serven
tuário titular, pois, diferentemente das empresas concessionárias e
permissionárias de serviços púbhcos, inexiste —nem poderia existir
—controle da gestão particular de rendas do tabelião ou registra
dor.
Assim, caso seja diretamente acionado, ao Estado cumprirá,
posteriormente, ajuizar a respectiva ação de regresso contra o tabe
hão ou registrador que perpetrou o dano, de modo a investigar sua
responsabüidade subjetiva na espécie. E o Poder Púbhco quem de
tém, por certo, os meios de constrangê-lo a arcar com o ilícito que
porventura tenha cometido por conta própria ou pela conduta de
seu substituto no exercício da atividade delegada11.
lOOp.cit., p.3.11 Tem-se no julgamento do caso dos presentes autos, a oportunidade de,
uma vez mais, aprimorar da orientação adotada pela Segunda Turma daSuprema Corte nos autos do Recurso Extraordinário 201.595, relatadopelo Ministro Marco Aurélio (DJ 20 abr. 2001).
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A tese ora perfilhada verberou em julgado recente da Pri
meira Turma do Supremo Tribunal Federal. Tratava-se do Agravo
Regimental no Recurso Extraordinário 788.009, cuja ementa se
gue transcrita:
Agravo regimental no recurso extraordinário. Atividade notarial e de registro. Danos materiais. Responsabilidade objetiva do Estado. Possibüidade. Precedentes. 1. A SupremaCorte já assentou o entendimento de que o Estado respondeobjetivamente pelos danos causados a terceiros em decorrência da atividade notarial, cabendo direito de regresso contrao causador do dano em caso de dolo ou culpa, nos termosdo art. 37, § 6-, da Constituição Federal. 2. Agravo regimental não provido.
(Relator Ministro DiasToffoli, DJe 10 out. 2014)
Pelo mesmo prisma interpretativo, encaminharam-se outros
julgados da Suprema Corte:
Constitucional. Servidor público. Tabelião. Titulares de
Ofício de Justiça: responsabilidade civil. Responsabilidadedo estado. CF. ,art. 37, § 62.1.
- Natureza estatal das atividades exercidas pelos serventuáriostitulares de cartórios e registros extrajudiciais, exercidas emcaráter privado, por delegação do Poder Público. Responsabilidade objetiva do Estado pelos danos praticados a terceirospor esses servidores no exercício de tais funções, assegurado
Ementa: "Responsabilidade objetiva - estado - reconhecimento de firma -cartório oficializado. Responde o Estado pelos danos causados em razãode reconhecimento de firma considerada assinatura falsa. Em se tratando
de atividade cartorária exercida à luz do artigo 236 da Constituição Federal, a responsabilidade objetiva é do notário, no que assume posição semelhante àdas pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos - § 6-do artigo 37 também da Carta da República". (Grifos aditados)
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o direito de regresso contra o notário, nos casos de dolo ouculpa (C.F., art. 37, § 62). II. - Negativa de trânsito ao RE.Agravo não provido.
(PvE 209.354 AgR, Relator Ministro Carlos Velloso, Segunda Turma, DJ16 abr. 1999)12
Agravo regimental em agravo de instrumento. 2. Responsabilidade civil do Estado. Danos morais. Ato de tabelionato.
CF, art. 37, § 6°. Cabimento. Precedentes. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(AI 522.832 AgR, Relator Ministro Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJe 27 mar. 2008).
No ponto, uma ressalva: o particular lesado não está constrito
ao acionamento do Estado para lograr o ressarcimento dos danos
sofridos injustamente. Pode ele, se entender que lhe convém —e
para não submeter-se, mais à frente, por exemplo, ao processo de
execução contra a Fazenda Pública e, eventualmente, à sistemática
dos precatórios —, tomar providências diretas com relação ao ser
ventuário responsável pelo dano, ciente, no entanto, de que lhe in
cumbirá comprovar o dolo ou culpa do delegatário e de seus
prepostos.
O entendimento que aqui se defende é coerente com o escó-
ho de Celso Antônio Bandeira de MeUo, para quem o art. 37, § 62,
da Constituição outorga
12 Nessa linha, também o RE 518.894 AgR (Relator Ministro Ayres Britto,Segunda Turma, DJe 22 set. 2011), o RE 551.156 AgR (Relatora MinistraEllen Gracie, Segunda Turma, DJe 2 abr. 2009) e o AI 846317 AgR (Relatora Ministra Cármen Lúcia, Segunda Turma, DJe 27 nov. 2013).
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ao particular lesado um direito contra o Estado, o que evidentemente não significa que, por tal razão, se lhe esteja retirando o de acionar o funcionário. A atribuição de umbenefício jurídico não significa a subtração de outro direito,salvo quando com ele incompatível. Por isso, como sempremuito bem sustentou o Prof. Oswaldo Aranha Bandeira de
Mello, cujas lições também nesta matéria prazerosamente seguimos, "a vítima pode propor ação contra o Estado, contrao funcionário, a sua escolha, ou contra ambos solidariamente,sendo certo que se agir contra o funcionário deverá provarculpa ou dolo, para que prospere a demanda".13
A responsabüidade solidária entre o Poder Púbhco e o presta
dor de serviços públicos notariais e de registro encontra ressonân
cia em precedentes da Suprema Corte, ainda sob a égide da
Constituição de 1967, com redação dada pela Emenda Constituci
onal 1/1969. Confiram-se as ementas, por seu potencial üustrativo:
responsabilidade civil das pessoas de dlreito público -
ação de indenização movida contra o ente público e ofuncionário causador do dano - possibilidade. o fato de a
Constituição Federal prever direito regressivo às Pessoas
Jurídicas de Direito Público contra o funcionárioresponsável pelo dano não impede que este último seja
acionado conjuntamente com aquelas, vez que a hipótese
configura típico litisconsórcio facultativo - voto vencido,
pvecurso extraordinário conhecido e provido.
(RJ3 90.071, Relator Ministro Cunha Peixoto, TribunalPleno, DJ 26 set. 1980)
pvesponsabilidade civil. exegese do artigo 107 da
Constituição Federal. Ação direta contra o servidor
13 Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 28 ed.São Paulo: Malheiros, 2010, p. 1047.
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público com base no artigo 159 do código civil. o artigo
107 da Constituição Federal não impede que a vítima dedano decorrente de ato de servidor público - como o é o
serventuário da justiça, ainda que de serventia não
oficializada - proponha contra este ação direta, com
fundamento no artigo 159 do código civil. pvecurso
extraordinário conhecido, mas não provido.
(RE 99.214, Relator Ministro Moreira Alves, SegundaTurma, DJ 20 maio 1983)
Em suma, entende-se que a melhor interpretação do ordena
mento jurídico conduz às seguintes conclusões no tema exami
nado: o Estado é sohdariamente responsável pelo dano que
exsurge nas atividades precípuas de tabeliães e oficiais registradores
e estes respondem subjetivamente por seus próprios atos funcio
nais e pelos de seus prepostos.
Ante o exposto, opina a Procuradoria-Geral da República
pelo desprovimento do recurso extraordinário.
JCCR/RNSL
Brasüia (DF), 23 de abrü de 2015.
áí^áfefâirot Monteiro de BarrosProcurador-Geral da República
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