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FABRICE SCHURMANS
O GENOCDIO DO RUANDA NO CINEMA: AUSNCIA, REPRESENTAO, MANIPULAO
Janeiro de 2010 Oficina n 336
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Fabrice Schurmans
O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
Oficina do CES n. 336 Janeiro de 2010
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OFICINA DO CES Publicao seriada do
Centro de Estudos Sociais Praa D. Dinis
Colgio de S. Jernimo, Coimbra
Correspondncia: Apartado 3087
3001-401 COIMBRA, Portugal
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Fabrice Schurmans
O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
Resumo: Nos ltimos anos, o genocdio no Ruanda foi objecto de vrias obras cinematogrficas, algumas celebradas pela crtica, outras produzidas como no existentes. As primeiras destacam-se por uma viso pouco matizada dos acontecimentos, a ausncia de contextualizao, a vontade de suscitar d e piedade numa perspectiva trgica, uma estrutura narrativa assaz clssica. As segundas escolheram, pelo contrrio, dar voz a personagens locais, tentaram dar alguma espessura histrica ao acontecimento e enveredaram por uma estrutura narrativa mais complexa. Neste ensaio gostaria de questionar a maneira como um certo cinema representa e manipula em vrias ocorrncias um acontecimento to dificilmente transmissvel como um genocdio.
Introduo
O cinema, como qualquer outro media, susceptvel de evidenciar tendncias manifestas
ou latentes da sociedade na qual produzido,1 ou seja, pode pelo seu contedo descrever
em parte a dita sociedade (o lado manifesto). Porm, muitas vezes insinua mais do que
pretende significar. Cabe ao crtico revelar este lado latente do cinema, recorrendo tanto
anlise do discurso flmico, como histria, Sociologia ou, para diz-lo noutras palavras,
cabe-lhe articular cincias sociais e humanas para praticar uma hermenutica do filme.
Neste artigo pretendo analisar alguns dos filmes de fico sobre o genocdio no
Ruanda que foram produzidos no Norte e no Sul entre 2004 e 2006, a fim de mostrar que os
filmes do Norte, se, por um lado, descrevem de maneira assaz fiel o genocdio nos seus
aspectos tcnicos (massacres de civis em larga escala por outros civis, com machados e
outras ferramentas agrcolas), tendem a evitar questionar as suas origens imediatas ou
histricas. Atravs da anlise das figuras do discurso cinematogrfico, ambiciono tambm
evidenciar como alguns destes filmes colocam o branco no centro do quadro (e do guio),
reduzindo o negro a um papel secundrio, nas suas margens, acabando desta maneira por 1 Partilho a posio de Ignacio Ramonet sobre a ligao estreita entre cinema e sociedade: On ne peut gure refuser dadmettre les qualits dindicateur sociologique du cinma. Lanalyse du film et de ses signes nous permet de dceler avec assez de prcision les tendances implicites de la socit qui le produit. Socit dont il constitue, en tant que produit culturel, un des symptmes ou des rvlateurs sociaux privilgis (2005: 94).
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(re)produzir uma ideologia africanista e eurocntrica. Por fim, tentarei mostrar como e por
que razes a esttica de um certo discurso televisivo influenciou parte do corpus escolhido.
A ausncia de imagens
Dos principais genocdios do sculo XX temos parcas representaes: algumas fotografias
pouco claras ou desfocadas quando tiradas pelas vtimas, mais ntidas quando surgem como
trofu nas mos dos carrascos; filmes de actualidade, reportagens fotogrficas s dos
campos de concentrao nazis libertados, ou seja, de depois do acontecimento. Este tipo de
imagem significa pouco. S remete para o genocdio, por um lado, pela interpretao que se
fez delas surgindo por outro como uma espcie de metonmia de uma imagem inexistente.
Em si, muitas dessas imagens evocam uma aco violenta, uma execuo em curso, mas se
dizem, em parte, o genocdio foi unicamente porque passaram por um processo de anlise,
de comentrio, de contextualizao. Se dependssemos apenas delas como provas da
realidade do genocdio, seria difcil corroborar a sua existncia.
O processo genocidirio tem sido descrito, analisado, dissecado, mas teve de passar
pela lngua escrita para ganhar algum contorno. A representao do genocdio primeiro
um acto de lngua, quase um acto performativo, que (re)cria o acontecimento medida que
o vai descrevendo. No entanto, todos temos a certeza de j ter visto uma imagem das
cmaras de gs a funcionar, das valas comuns a serem atulhadas de corpos, de prisioneiros
esquelticos a titubear nas alamedas de um campo. Foram o cinema e a televiso que, em
grande parte, preencheram o (quase) vazio audiovisual com representaes supostamente
fiis s experincias narradas pelos sobreviventes, assim como pelos executores
(nomeadamente por ocasio de processos).
O genocdio no Ruanda2 no escapa a esta (quase) vacuidade de registo visual dos
massacres. Entre 6 de Abril e meados de Maio, a fase mais aguda do genocdio, o Ruanda
ocupa pouco espao na imprensa francesa e quase sempre em pginas interiores. Os
jornalistas presentes no terreno resumem-se a dois fotgrafos trabalhando para agncias e
2 Entre 6 de Abril (assassnio do presidente Habyarimana) e 15 de Julho de 1994 (vitria da Frente Patritica
Ruandesa, movimento armado de oposio principalmente de etnia Tutsi) estima-se que entre 800.000 e 1.000.000 de pessoas tenham sido mortas em todo o pas (maioritariamente de etnia Tutsi, mas tambm opositores do governo de etnia Hutu), em grande parte pela prpria populao civil e com recurso a armas brancas. Existe uma vasta bibliografia que retrata no s o desenrolar dos massacres, como a sua gnese. Ver entre os mais recentes: Franche (2004), Kimonyo (2008), Pris e Servenay (2007).
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alguns correspondentes estrangeiros (que saram logo a seguir ao comeo dos massacres) e
regionais. Segundo Roskis, o genocdio passa a notcia principal, ou seja, passa primeira
pgina de um jornal francs com fotografia (Le Quotidien de Paris) a 18 de Maio, quando
as primeiras estimativas j atingem 500.000 mortos. No que diz respeito s imagens, apesar
das fotografias disponveis nas agncias, poucos jornais parecem interessados nelas at
incio de Maio (Roskis, 1994), o que no deixa de surpreender, na medida em que as fotos
mostram os corpos violentados das primeiras vtimas. de facto bem conhecida a apetncia
de grande parte do pblico pela representao de mortes violentas nos media, tendncia que
Seaton evidenciou como fenmeno recente no contexto de sociedades ocidentais que
paradoxalmente ocultaram e privatizaram a morte (Seaton, 2005: 183).
O Ruanda disporia assim dos ingredientes para atrair as atenes dos media do Norte:
massacres de civis, modo de matar muito chocante (utilizao de armas brancas,
ferramentas de lavoura, etc.) e possibilidade de ler o genocdio de maneira dicotmica
(maus Hutu versus bons Tutsi). Porm, como acabmos de ver atravs do exemplo da
imprensa francesa, os principais jornais demonstraram pouco interesse pelas notcias
provenientes do Ruanda. Entre outras razes, destacaria primeiro o contexto no qual teve
lugar o genocdio: muitos recursos jornalsticos europeus estavam concentrados num
conflito domstico (Bsnia), poucos meses depois de os mesmos media se terem
deslocado em massa para a Somlia com a operao Restore Hope. Em segundo lugar, o
desinteresse pelo genocdio explica-se com o que Moeller (1999: 12) chamou o cansao
da compaixo, uma espcie de desinteresse pelo sofrimento alheio, sobretudo quando este
repetitivo (Mais uma vez frica!) e longnquo (Onde que fica o Ruanda?). Por fim,
um terceiro elemento explica, a meu ver, a falta de interesse pelo genocdio em curso: o da
cor da pele das vtimas. Moeller tem razo em insistir neste factor importante, se bem que
raramente admitido, na hierarquizao das notcias: The newsroom truism goes: One
dead fireman in Brooklyn is worth five English bobbies, who are worth 50 Arabs, who are
worth 500 Africans (Moeller, 1999: 22) .
As reportagens, tanto fotogrficas como em vdeo, comearam a ocupar o espao
meditico a partir de Junho de 1994, com um pico em meados de Julho quando, em poucas
horas, centenas de milhares de refugiados entraram no Congo (ex-Zaire). No entanto, os
jornalistas presentes em massa no estavam a presenciar o genocdio (este j tinha
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terminado), mas antes a consequncia da vitria da Frente Patritica Ruandesa (FPR),
maioritariamente composta pela etnia Tutsi, sobre as foras governamentais e as milcias
radicais Hutu. Com a derrota, estas fugiram para o Sul do pas empurrando centenas de
milhares de civis na sua frente rumo zona de segurana estabelecida pelo Exrcito
Francs.3 Ou seja, muitas das imagens que associamos s vtimas dos conflitos em frica
(refugiados atingidos pela doena, crianas famlicas, surtos de clera, mortos annimos na
beira da estrada), por causa da representao hegemnica e exclusiva destes por parte das
redaces ocidentais, correspondiam realidade retratada pelos correspondentes no terreno.
Por outras palavras; as imagens da catstrofe humanitria de Julho substituram, na
memria meditica, a falta de imagens do genocdio perpetuado nas semanas anteriores
(Moeller, 1999: 28).
semelhana do que aconteceu com a Shoah, foi o cinema que se encarregou de
preencher os vazios da histria. As representaes cinematogrficas vm assim completar
uma memria desprovida de imagens do genocdio em curso (pois se as fotografias e
reportagens de corpos abatidos, disseminados pelas cidades e pelo campo no faltam, temos
poucas da actuao dos assassinos).
A fico ao contrrio do documentrio que tenta restabelecer o fio dos
acontecimentos a partir da palavra das testemunhas da poca , pretende recriar as
condies nas quais centenas de milhares de pessoas foram atacadas. Representa um ponto
de vista sobre o real, mas um ponto de vista que se d como verosmil e que visa, ao mesmo
tempo, comover o espectador, suscitar nele um sentimento de piedade para com as vtimas.
Ou seja, dez anos depois dos acontecimentos, trata-se de sensibilizar um espectador que,
como vimos, no o foi na altura. Enquanto representao e reconstruo, estes filmes
apresentam-se igualmente como edificao de uma verdade possvel, e uma leitura crtica
tem de incidir sobre os dois elementos ao mesmo tempo: o filme enquanto obra de arte
(com a sua linguagem, a suas figuras discursivas) e o filme enquanto produtor de
significaes (o que diz e no diz sobre o genocdio). Embora os dois estejam intimamente
ligados, grande parte da crtica s incide no contedo, no grau de verosimilhana, nas
3 Na realidade, esta zona serviu sobretudo para proteger muitos actores do genocdio, incluindo dirigentes do exrcito e das milcias, os quais escaparam desta maneira no s s foras da FPR como justia internacional. Ainda que negada pelas entidades oficiais francesas, a coluso entre os sucessivos governos franceses, nomeadamente os da era Mitterand, e o governo ruands transparece da leitura de partes de arquivos oficiais tornados pblicos h pouco tempo (Smolar, 2007; Braeckman, 2007).
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personagens principais ou ainda na estrutura narrativa global. A descodificao da imagem
cinematogrfica requer todavia uma articulao ou um vaivm permanente entre anlise
retrica (o fazer do filme, com a anlise de sequncias por exemplo. Cf. Aumont, 1999,
Goliot-Lt, 2007, Jullier, 2006) e anlise do contedo (o ponto de vista do realizador sobre
a histria). Pois, como acontece com o texto literrio, a anlise do texto flmico s ganha
contornos quando se articulam ambas as leituras, o contexto de enunciao e as estratgias
discursivas utilizadas pelo autor.
A representao do genocdio. A inveno das imagens
Antes de comear a anlise, torna-se necessrio evidenciar as linhas que separam o corpus
de filmes escolhidos, uma vez que estes no gozam do mesmo estatuto dentro do campo
cinematogrfico. Trs apresentam claramente pontos de vista ocidentais: Hotel Ruanda, de
Terry George, 2005; Shooting dogs, de Michael Caton-Jones, 2006; Un dimanche Kigali,
de Robert Favreau, 2006; e dois pontos de vista do Sul: La nuit de la vrit, de Fanta
Regina Nacro, 2004; Sometimes in April, de Raoul Peck, 2004. Esta seria a linha mais
visvel que divide o corpus, uma linha quase abissal, ou seja, uma linha que separa o Norte
do Sul enquanto produtores de saberes e de conhecimentos. Parece-me possvel recorrer em
parte a este conceito desenvolvido por Santos (2007) para dar conta da diferena de
tratamento entre os filmes por parte das instncias de legitimao. Para o socilogo, o
pensamento ocidental um pensamento de tipo abissal que divide a sociedade em
realidades visveis e invisveis, cada realidade estando separada por linhas abissais. O outro
lado de uma linha abissal, o que Santos chamou de Sul global, no existe para o lado
ocidental da linha: desaparece enquanto realidade, torna-se inexistente, e mesmo
produzido como inexistente (3-4). Aplicado ao nosso corpus, um exame superficial
tenderia a estabelecer uma linha abissal entre o primeiro grupo (viso ocidental e
hegemnica do genocdio) e o segundo (viso do Sul e contra-hegemnica do mesmo
genocdio).
Porm, um exame mais detalhado da posio de cada filme no campo
cinematogrfico leva a matizar esta classificao inicial. Se tomarmos em conta a origem
dos produtores, assim como o trabalho de legitimao por parte da crtica, as linhas
movem-se e assistimos a uma recomposio dos grupos. No primeiro grupo, Hotel Ruanda
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e Shooting dogs receberam ampla cobertura meditica, encontraram distribuidores em
muitos pases, entraram em competies oficiais de renome, enquanto Un dimanche
Kigali no conheceu a mesma difuso (poucas crticas, participao em festivais de menor
importncia). Ou seja, este ltimo, apesar de apresentar um ponto de vista hegemnico,
foi alvo de um procedimento de tipo abissal dentro do prprio campo, sendo produzido
como quase no existente na Europa, por exemplo. No outro grupo, Sometimes in April,
produo norte-americana da autoria de um realizador haitiano, apesar de apresentar um
ponto de vista contra-hegemnico entrou na seleco oficial do Festival de Berlim (2005) e
recebeu crticas laudativas em vrios rgos de imprensa (Braeckman e Crousse, 2006;
Sotinel, 2005a; Stanley, 2005). No entanto, por razes obviamente polticas, no encontrou
distribuidora na Frana e na Blgica, onde s pde ser visto no canal Arte, o que representa
uma outra maneira de produzir um objecto cultural como no existente. O nico filme que,
no estado actual da minha pesquisa, me parece ter sido inviabilizado no Norte foi o da
realizadora do Burkina-Faso: pouco difundido em salas no Norte, muito poucos artigos na
imprensa de qualidade (Sotinel, 2005b, por exemplo), aquela que torna um filme visvel e
que confere o capital simblico nas suas pginas dedicada crtica de cinema.
Desta maneira, se os filmes do primeiro grupo se aparentam pela leitura que fazem do
genocdio, divergem relativamente ao capital simblico acumulado e subsequente
influncia que exerceram junto do pblico enquanto representaes. Isto significa que,
ainda que seja pertinente juntar Un dimanche Kigali a Hotel Ruanda e Shooting Dogs
enquanto reflexo do ponto de vista dominante, h que ter em ateno o fraco
reconhecimento que o filme teve junto do pblico.
Se Hotel Ruanda no foi a primeira fico sobre o genocdio ruands (100 Days de
Nick Hughes, 2001), foi sem dvida o primeiro sucesso pblico de um filme sobre este
tema. Trata-se da histria de um homem partida normal, Paul Rusesabagina, gerente do
Htel des Mille Collines em Kigali, que se transforma em heri por causa das
circunstncias. Homem hbil, com agudo senso comercial, suborna quando precisa do
apoio de algum, mesmo quando se trata de George Rutaganda, chefe das milcias
extremistas. Casado com uma mulher Tutsi, Tatiana, e pai de trs filhos, v-se obrigado a
proteg-los da fria dos genocidirios. Leva-os para o hotel, por a se albergar uma clientela
maioritariamente branca protegida por um destacamento de capacetes azuis comandados
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pelo Coronel Oliver. Rapidamente, outros Tutsi chegam ao hotel procura de segurana.
Rusesabagina, que comeou por proteger a sua famlia, empenha-se na salvao dos
refugiados, negoceia com os militares do exrcito nacional a fim de obter alguma proteco
contra as milcias. Confia na comunidade internacional para salvar os Tutsi dos massacres,
mas, depois do assassnio de dez capacetes azuis pelo exrcito ruands e pelas milcias, as
Naes Unidas retiram grande parte do contingente. Rusesabagina encontra-se ento
praticamente isolado face aos assassinos: durante trs meses compra a proteco dos
refugiados junto de uma alta patente com dinheiro, lcool de luxo e ameaas de
testemunhar perante a justia internacional. Vrias vezes, as milcias quase conseguem
apoderar-se do hotel ou da famlia de Rusesabagina, e, no final, apenas a interveno da
FPR salva os protagonistas. Chegam finalmente a um campo de refugiados onde encontram
as sobrinhas de Tatiana, que perderam os pais nos massacres.
A contextualizao reduz-se durante o genrico inicial a vrios rudos off de rdios a
serem sintonizadas: ouvem-se noticirios em francs e em ingls que evocam Sarajevo e
trechos de uma rdio extremista Hutu que anuncia o massacre dos Tutsi. Supe-se que o
realizador quis aqui atingir uma tripla meta: a referncia a Sarajevo remete para o
momento, as rdios em off para o papel central dos media na sociedade global e, por fim,
anuncia a dicotomizao que atravessa e estrutura o filme (Hutu vs Tutsi).
certo que no decorrer do filme Hotel Ruanda haver um momento de
contextualizao histrica que dura um minuto! O facto de a localizao geogrfica no
ser mencionada (para o senso comum deve ser ainda hoje difcil situar com preciso o pas
num mapa) e de o contexto histrico estar quase ausente deve-se, a meu ver, ao guio que
faz da personagem de Rusesabagina o eixo volta do qual se organiza toda a aco: no se
trata de perceber como isto foi possvel, mas de entender como um homem banal se
transforma em heri em circunstncias extraordinrias. Da, sem dvida, a presena
permanente da personagem principal so poucos os planos onde no ocupa o centro do
quadro desde a sequncia inicial (que nos mostra Rusesabagina de carrinha a atravessar
Kigali por causa dos seus negcios) sequncia final (quando no campo de refugiados
reencontra as sobrinhas de Tatiana). O tipo de plano utilizado para enquadrar Rusesabagina
sublinha a sua importncia e d-lhe espessura emocional, pois o plano aproximado e o
grande plano permitem a percepo dos sentimentos que animam a personagem.
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Do ponto de vista narrativo, este tipo de escolha (a exemplaridade de um ser nico)
facilita claramente a empatia, tal como favorece a identificao com as vtimas, mas em
detrimento da percepo do entendimento das causas do genocdio. Assim, numa curta
sequncia filmada em plano aproximado beira da piscina do hotel, Paul Rusesabagina
descreve a um empregado os corpos mortos espalhados pela cidade e quando este lhe
pergunta porque as pessoas so to cruis, ele responde dio ou loucura, no sei. As
razes histricas, os problemas sociais, o papel desempenhado pelos media locais
desaparecem para dar lugar a argumentos como o inexplicvel, o mistrio de uma psique
humana perturbada (a loucura).
No entanto, este tipo de plano onde a personagem principal se encontra literalmente
no centro das atenes, coloca outra pergunta que a do fora de campo. sabido que o
quadro no cinema opera um corte na realidade filmada e que esta se prolonga virtualmente
no que se chama um fora de campo. Para Deleuze, o fora de campo remete para o que no
se ouve nem se v, no entanto est perfeitamente presente (1983: 28) . Esta definio
parece-me problemtica, pois o fora de campo remete em muitos filmes para o que se ouve,
e portanto para uma realidade existente fora do quadro. Ou seja, o som, enquanto parte pelo
todo, uma espcie de fio que liga o visvel ao (ainda) no visvel. O som, como indicador
forte da presena de uma realidade fora de campo, mantm ainda com o campo uma tenso
de tipo dialctico. Assim, em Hotel Ruanda, vrias cenas atestam a presena do fora de
campo por sons que evocam a guerra (tiros, exploses) numa tenso permanente, pois o
espao virtual da guerra e do genocdio em curso ameaa constantemente o espao actual
do hotel, onde, apesar de tudo, se consegue sobreviver.
Uma cena em particular ilustra a tenso de tipo dialctico entre campo e fora de
campo que estrutura parcialmente o filme. Quando Rusesabagina percebe que esgotou
quase todos os seus recursos para salvar os refugiados, convida Tatiana para ir ao terrao do
hotel para aparentemente tomarem uma bebida luz de velas. A conversa entre as duas
personagens filmada em grande plano e em campo e contra-campo, mais uma vez de
maneira a humaniz-las, a conceder-lhes espessura. Em off, uma msica que supostamente
evoca um encontro romntico mistura-se com sons que dimanam do fora de campo e que
evocam o perigo e a morte. A tenso da qual falava h pouco atinge aqui o seu clmax, pois
o campo revela um elemento positivo, enquanto o fora de campo anuncia uma morte
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virtual, mas sempre possvel. A tenso s se resolve quando Rusesabagina pede a Tatiana
para no hesitar em se atirar do telhado com as crianas no caso de as milcias entrarem no
hotel, pois neste momento tomamos conscincia de que, aos olhos da personagem principal,
a morte passou de possvel a algo provvel. Os sons provenientes do fora de campo tomam
retrospectivamente outra significao: tanto antecedem como anunciam o pedido de
Rusesabagina.
Esta cena tambm essencial por aperfeioar a figura de Rusesabagina como ser
nico, essencialmente positivo, que naquele momento prev um possvel fracasso. Se a
imprensa internacional (por exemplo Mantilla, 2005) fez de Paul Rusesabagina uma espcie
de Schindler ruands, contribuindo assim no s para a sua fama como para o sucesso do
filme, um livro recente veio colocar perguntas relativamente construo da personagem
no filme de Terry George. Apesar de uma estrutura geral um pouco confusa, de uma escrita
desleixada e de alguns erros factuais, o livro de Ndahiro e Rutazibwa (2008) pe em causa
de maneira convincente a figura de Paul Rusesabagina. Os autores fundamentam as suas
observaes em entrevistas conduzidas com 74 dos 1200 sobreviventes, assim como em
documentos diversos (cartas, faxes enviados pelos refugiados), que indicam que estes no
s no deviam a sua sobrevivncia ao gerente, como tambm que este tentara aproveitar-se
da situao para ganhar dinheiro (fez pagar os quartos at a Sabena, proprietria do hotel, o
mandar parar, e vendia a escassa comida). De facto, quando interrogados sobre as razes
que os tinham levado a escolher o Hotel des Mille Collines como refgio, grande parte dos
entrevistados responderam que fora por causa da presena de elementos da MINUAR, e s
uma testemunha afirmou que o retrato de Paul Rusesabagina do filme correspondia
realidade.
Como se ter percebido, os autores apontam para alguns elementos pelos menos
perturbantes que colocam srias dvidas relativamente actuao de Rusesabagina na
altura. Se Hotel Ruanda no fez dele uma personagem complexa, dividida, mas antes um
ser inteiramente colocado do lado do bem, tal deve-se a uma concepo do cinema como
arte prxima da tragdia. Na sua Potica, Aristteles j defendia uma tragdia que
suscitasse o temor e a compaixo junto dos espectadores, a fim de os purgar da tenso
acumulada no decorrer da representao e assim transformar sentimentos penosos em
prazer. Se a personagem de Rusesabagina nunca poderia ter sido considerada trgica aos
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olhos dos tericos da tragdia clssica, este filme, na sua estrutura, responde bem
definio aristotlica de um gnero que, paradoxalmente, suscita prazer junto dos
espectadores com imagens que os assombrariam na realidade.
Este paradoxo continua a interpelar alguns autores contemporneos; assim Luc
Boltanski (1993, 2000) situa-se claramente na esteira terica de Aristteles quando evoca o
sentimento de compaixo que se apodera de um espectador que assiste distncia, tanto
geogrfica como ficcional, ao sofrimento de um ser humano. sabido que o socilogo
francs coloca esta questo para entender o que suscita, junto do espectador do sofrimento,
a vontade de reagir, de se investir ou de se empenhar em prol da vtima. Retoma a ideia,
importante para o meu propsito, da dificuldade em distinguir entre a compaixo suscitada
pelo sofrimento real, evocado atravs de uma reportagem, e a ficcional, suscitada por um
filme, sobretudo quando se trata de um ser sofredor longnquo. O espectador (co)movido
distncia precisa de uma narrativa (aparentemente) objectiva do sofrimento, de maneira a
poder partilhar o seu sentimento com outros espectadores; mas ao mesmo tempo esta
narrativa tem de atiar nele o sentimento da compaixo (1993: 38-42; 2000: 7). Esta dupla
exigncia encontra-se bem ilustrada no caso da vtima remota, o ser humano que temos
pouca ou nenhuma hiptese de poder ajudar, pois neste caso, como nota Boltanski, o
espectador tender a apreender a narrativa da vtima de um modo ficcional.
justamente o que est em jogo com os filmes sobre o genocdio no Ruanda: a
escassez de imagens do genocdio real, a indiferena da maior parte dos e dos pblicos no
Ocidente, originaram alguns anos mais tarde a vontade de representar os acontecimentos e,
por conseguinte, de suscitar compaixo para com as vtimas na tripla distncia do tempo, do
espao e da fico. Deste ponto de vista, a discrepncia entre Hotel Ruanda e Sometimes in
April situa-se, entre outros elementos, na gesto pelos realizadores dos elementos
fundamentais da tragdia. Ambos utilizam o temor e a compaixo como motor para suscitar
empatia e interesse junto do espectador, mas o primeiro, pelo seu fim feliz, favorece o
efeito de catarse, enquanto o segundo, ao mostrar a dificuldade ou at a impossibilidade de
gerir os sofrimentos ps-genocdio, o impede.
Esta vontade de comover, que caracteriza tanto os filmes do primeiro como os do
segundo grupo, se bem que com modalidades diferentes, como veremos mais frente, s se
entende plenamente se tivermos em conta o projecto que subjaz s cinco obras: representar
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para testemunhar os sofrimentos, produzir imagens de fico para substituir a ausncia de
imagens reais. Da, sem dvida, o carcter empenhado de filmes que evidenciam o falhano
dos media internacionais na cobertura do genocdio, o que acontece de maneira mais clara
em Hotel Ruanda e Shooting dogs. Estas duas produes falam talvez mais dos fracassos
combinados da comunidade internacional e dos media do que do genocdio em si. Em
Shooting dogs, Rachel, jornalista da BBC, e Joe, um jovem activista idealista, conversam a
propsito dos massacres que presenciaram. A primeira compara o que testemunhara no
Ruanda com cenas semelhantes na Bsnia: quando nos Balcs via uma mulher branca
morta, pensava que podia ser a sua me, mas no Ruanda no passam de Africanos
mortos. Em Hotel Ruanda, uma curta sequncia ganha um relevo particular nesta
perspectiva: Daglish, o operador, conversa com Rusesabagina a propsito das imagens dos
massacres que acabou de filmar. O gerente acha que estas vo provocar alguma reaco
junto da comunidade internacional, ao contrrio de Daglish que responde: As pessoas que
vo ver as imagens vo dizer: Meu Deus! terrvel e vo continuar a jantar. Ambos os
exemplos ilustram paradigmaticamente o que Boltanski dizia a propsito do sofrimento
distncia. Se concebvel sofrer distncia, o grau de sofrimento e de envolvimento para
(tentar) reduzir o sofrimento do outro dependem claramente do estatuto das vtimas.
Os filmes do primeiro grupo giram todos volta desta culpabilidade da comunidade
internacional e dos media, o que explica, em parte, a escolha de colocar personagens
brancas no centro das atenes em Un dimanche Kigali e Shooting dogs. Neste ponto, o
que disse Douin, crtico de cinema, sobre o segundo vale igualmente para o primeiro:
Ce point de vue sur un gnocide admis sans broncher puis ni pendant un temps (800 000 morts seulement!) est donc celui de Blancs accusant les Blancs d'aveuglement et de lchet. Ce qui explique (partiellement) le manque d'paisseur des personnages africains, pour la plupart fondus dans une masse scinde entre bons apeurs et mchants menaants (Douin, 2006).
Contudo a vontade, consciente ou inconsciente de mostrar o que no foi mostrado na
altura, de comover distncia quando se deveria ter comovido no momento, tem outra
consequncia: a linguagem flmica utilizada no primeiro grupo aproxima-se da linguagem
das reportagens televisivas. O cinema, neste caso, foi buscar televiso os seus cdigos
para originar um discurso que esta no produziu na altura. A influncia do dispositivo
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televisivo qui mais patente no filme de Caton-Jones, no s por causa das referidas
reflexes das personagens sobre o papel dos jornalistas, mas sobretudo por causa da
linguagem flmica utilizada.
Tal como Hotel Ruanda, o guio de Shooting dogs inspira-se em factos verdicos.
Logo a seguir ao incio dos massacres, duas mil pessoas refugiaram-se na ETO (cole
Technique Officielle) de Kigali, por estar sob proteco das Naes Unidas e a este ttulo
albergar um destacamento de capacetes azuis. O guionista, ele prprio antigo jornalista que
cobriu o Ruanda ao servio da BBC, acrescentou vrias personagens fictcias a fim de
fomentar o temor e a compaixo. Christopher um padre catlico, com trinta anos de
terreno, fluente na lngua nacional, que trabalha na ETO. Joe, jovem entusiasta, est no pas
por conta da Oxfam para dar aulas s crianas da escola. Pouco tempo depois do assassnio
do presidente, centenas de Tutsi, assim como algumas dezenas de brancos, vm buscar
alguma proteco junto dos soldados da ONU. Rapidamente, as milcias extremistas
cercam o recinto e impedem qualquer sada. Durante o cerco, cada um tenta com os seus
fracos recursos ajudar os refugiados: Christopher continua a celebrar a missa e Joe procura
Rachel, uma jornalista da BBC, para testemunhar o que est a acontecer. Esta s aceita
acompanh-lo quando sabe que h europeus entre os refugiados. Pouco tempo depois,
soldados franceses, que actuam fora do mandato da ONU, chegam para levar os brancos,
mas Joe decide ficar e continuar a ajudar os refugiados, entre os quais se conta Marie, uma
jovem Tutsi pela qual parece ter uma certa atraco. Porm, a situao piora quando a ONU
manda retirar grande parte do contingente no pas, o que significa a sada do destacamento
da escola. Joe, assustado pelas matanas, foge com os soldados, enquanto Christopher
decide ficar entre os refugiados. Antes de morrer, este consegue ainda salvar vrias crianas
e adolescentes, Marie includa. Cinco anos mais tarde esta reencontra Joe na Inglaterra e
perdoa-lhe a fuga.
Como em Sometimes in April, o filme comea com um carto que d algumas
informaes preliminares: Durante 30 anos o governo de maioria Hutu perseguiu a
minoria Tutsi. Sob a presso dos pases ocidentais, o presidente aceitou com relutncia
partilhar o poder com os Tutsi. Relembra-se ainda a presena de uma pequena fora das
Naes Unidas em Kigali e arredores. Procede-se assim a uma apresentao dicotmica do
contexto social como sendo uma realidade em que os prejudicados (Tutsi) e os
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O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
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prejudicadores (Hutu) se distinguem claramente. No se mencionam elementos to
essenciais para entender o genocdio como a guerra travada pela FPR desde 1990, ou o
papel desempenhado pelos colonizadores alemes e belgas assim como pela Igreja Catlica.
Nisso Shooting dogs aproxima-se claramente de Hotel Ruanda: ambos evitam questionar
um contexto mais matizado onde a histria, a economia, a religio, os media locais
desempenham um papel complexo. Esta postura inicial explica porque as duas personagens
principais (Christopher e Joe) no entendem o que est a acontecer, no conseguindo,
semelhana de Rusesabagina, interpretar o genocdio como consequncia das polticas
coloniais e ps-coloniais.
Como nos outros filmes do primeiro grupo, o guio de Shooting dogs construdo em
torno do referido duplo falhano e do sentimento de culpa. Da talvez a escolha da figura do
padre, que supostamente deveria carregar de maneira simblica o peso da culpa colectiva.
Com Joe, Christopher representa de maneira metonmica o espectador sofredor distncia,
ou melhor, na relao especular que tambm o cinema, a dupla oferece ao espectador um
reflexo do seu sofrimento perante os acontecimentos: de facto Joe e Christopher permitem-
nos experimentar o temor e a compaixo em diferido.
Shooting dogs poblematiza de duas maneiras o fracasso dos media em geral e da
televiso em particular em retratar o genocdio que est a decorrer. Como vimos, no prprio
guio, a equipa da BBC representa de modo metonmico o comportamento dos media na
altura. S tem interesse em filmar corpos mortos e segue Joe ETO unicamente por causa
da presena de brancos. Esta cena aponta para um duplo fracasso dos media: por um lado, o
de um certo sentido moral (no do importncia s narrativas, ao ponto de vista das vtimas,
comportam-se como abutres quando avistam os corpos de uma famlia) e, por outro, o do
seu suposto poder de influncia (o espectador levado a constatar a incapacidade da
imagem jornalstica em influenciar a opinio internacional). O prprio Joe acredita ainda
que imagens do que est a acontecer na ETO podero mudar o fatum dos refugiados: Se
uma coisa no aparece na TV, no existe ou ainda Se as pessoas virem o que est a
acontecer, devem fazer algo . Possui as iluses que Daglish, em Hotel Ruanda, j perdera:
o espectador distncia sofrer, sentir compaixo pelas vtimas, mas no se empenhar
em pressionar o seu governo.
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O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
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A segunda maneira de problematizar o fracasso da televiso tem a ver com a maneira
de filmar de Caton-Jones. A esttica do seu filme inspira-se na esttica televisiva, filmando
como a televiso o deveria ter feito na altura, com a cmara ao ombro, por exemplo. Dois
exemplos ilustram esta tendncia.
No primeiro dia do genocdio (7 de Abril), Joe pega na carrinha para ir procura de
Marie e do seu pai, Roland. A cmara ao ombro gira volta do seu eixo (panormico) ou
fica espera de a camioneta entrar no campo. Nesta sequncia, um plano rpido d-nos o
ponto de vista de Joe a conduzir (cmara subjectiva), com a imagem a tremer. Acontece o
mesmo quando chega casa de Roland: cmara subjectiva no corredor, atrs das costas de
Joe ou em grande plano. A montagem alterna assim os grandes planos com a cmara
subjectiva, de maneira a suscitar um efeito de suspense provocado pelo facto de sabermos
tanto como ele (ser que Marie e a sua famlia foram mortas?). No que tem a ver com o
som, h uma msica ilustrativa que evoca a tristeza durante a curta viagem da carrinha e
que pra quando Joe chega a casa de Roland. Depois ouvem-se tiros em off (como em Hotel
Ruanda, estes remetem para um fora de plano de onde dimana o perigo) e o tiquetaque de
um relgio que reala o peso do silncio, um silncio de morte. O tratamento da imagem e
do som participam do efeito procurado, o de suspense, que visa associar o ponto de vista da
personagem principal ao do espectador. O realizador coloca-nos literalmente na pele da
personagem para nos obrigar a entrar em empatia, no s com ela mas com o seu olhar
sobre os acontecimentos. Aos poucos, os sentimentos de Joe tornam-se nossos, ou seja,
comeamos a sofrer distncia por intermdio de uma personagem na qual delegmos a
experincia do sofrimento directo.
O fim da sequncia vem confirm-lo: no caminho de volta ETO, um soldado do
exrcito oficial manda parar Joe num bloqueio de estrada. O ponto de vista continua a ser o
deste (em cmara subjectiva), que avista algumas vtimas a serem molestadas por tropas. O
movimento da carrinha apaga-as do plano. O plano seguinte, largo e fixo, mostra a carrinha
a afastar-se da barragem. Em off, ouve-se uma rajada que pode ser associada execuo
das vtimas annimas.
H pelo menos mais um momento que ilustra a influncia do formato da reportagem
televisiva. Quando Joe se encontra a caminho da ETO com Rachel e a restante equipa da
BBC, um grupo de milicianos embriagados manda-os parar e ameaa-os. Conseguem
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O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
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escapar morte e, pouco depois, Rachel avista corpos mortos e pede a Joe para parar. O
operador de cmara aproxima-se dos corpos chacinados, comea a filmar enquanto Rachel
toma apontamentos. Mais uma vez, o ponto de vista parece ser o de Joe revestido da misso
de comover o espectador distncia. O dispositivo flmico mostra em plano de semi-
conjunto, com cmara ao ombro, a equipa em trabalho. Os planos dos corpos remetem para
o olhar de Joe que passa de um corpo ao outro, o que parece ser comprovado pelos planos
de pormenor que mostram o olhar aterrorizado da personagem. Porm, a imagem sacudida
no aponta s para o seu olhar, mas igualmente para a esttica que a da reportagem
televisiva: planos curtos, filmagem na urgncia, imagem agitada, etc. Para alm de produzir
uma imagem de cunho televisivo como substituto s imagens que no foram divulgadas na
altura, esta sequncia poderia tambm ser lida como crtica tendncia voyeurista da
reportagem televisiva (a apetncia dos media pela morte da qual falava Seaton) e aos
jornalistas abutres. Porm, ao faz-lo, o prprio realizador tambm se torna parte do
dispositivo de evidenciao, da encenao complacente da morte e do sofrimento alheio.
neste ponto provavelmente que a articulao entre ambos os discursos (o televisivo
e o cinematogrfico) se torna mais evidente. A fico vai buscar parte da sua linguagem
reportagem de guerra e, no sentido inverso, a reportagem, ou at o documentrio,
ficcionaliza por assim dizer a realidade, quando no importa mesmo trechos de filmes para
atestar as suas prprias ausncias. Como Seaton demonstrou, as narrativas televisivas das
mortes violentas devem muito fico, tal como as testemunhas de guerra que relatam a
sua experincia consoante modelos literrios e culturais dos quais podem ou no ter
conscincia (Seaton, 2005: 186-187). Por outras palavras, teramos tendncia para contar
experincias traumatizantes numa linguagem que se aproxima da fico. No caso da
representao jornalstica de uma guerra ou de um genocdio, isto significa que as
reportagens tendem a assemelhar-se experincia mais prxima que o espectador destes
tem: o filme de fico (Moeller, 1999: 18-19). Assim, por causa da confuso permanente
entre mortos reais e fingidos, acabamos por nos sentir mais comovidos pelo sofrimento
reconstitudo do que pelo sofrimento real. A mistura dos discursos acaba por confundir os
sentimentos e percebemos talvez seja a concluso mais perturbadora que o figurante
annimo ruands que finge a sua morte de maneira convincente pesa mais, do ponto de
vista emocional, do que um corpo annimo real em decomposio beira de um caminho.
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O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
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Ao focalizarem-se quase exclusivamente no fracasso dos media e na impotncia da
comunidade internacional, os filmes do primeiro grupo evitam questionar o papel essencial
desempenhado pela Igreja Catlica na gnese e no desenrolar do genocdio. No caso de
Shooting dogs, no s se trata tanto de uma omisso, mas inclusivamente de uma
manipulao da histria da colnia e do estado independente. O guio reala o momento
simblico no qual o genocdio toma lugar: a Pscoa e a sua noo central de sacrifcio de
Jesus pela redeno dos pecadores. A personagem de Christopher parece ter sido pensada
como metfora deste sacrifcio inicial: o Justo que morre em martrio para salvar parte da
humanidade. Ter-se- notado a proximidade onomstica entre Cristo e Christopher (O que
leva Cristo ao ombros), proximidade que refora a analogia entre ambas as figuras. Juntos
carregam o peso do mal e da desgraa, entendem os criminosos como sendo igualmente
filhos de Deus, aceitam o preo a pagar pela salvao do mundo ou de uma mo cheia de
crianas. Figura tutelar dos refugiados da ETO, eixo volta do qual se organiza o guio, o
padre oferece uma s sada aos Tutsi: abnegao e entrega das almas a Deus. Assim, na
sequncia da fuga dos capacetes azuis, alguns planos curtos so reveladores no s da
posio central de Christopher na narrativa, como da ideologia veiculada pelo filme. Pronto
a sair, Joe avista o padre na multido, salta do camio militar e pergunta a Christopher
porque quer ficar. Este responde-lhe: Deus est com esta gente, sofrendo. O seu amor est
aqui. O campo-contra-campo em plano aproximado das duas personagens remete a
multido para mero pano de fundo, rostos e corpos que atravessam o plano, que se agitam
sem passar da categoria de figurantes de personagens. A tenso est neste momento
concentrada na nica alternativa que o guio permite: fugir com os capacetes azuis (Joe) ou
permanecer entre os seres sofredores e aceitar o sacrifcio (Christopher). Esta sequncia
manifesta o duplo subentendido que estrutura o filme: por um lado, o branco o nico
portador de sentidos, a personagem atravs da qual possvel ao espectador experimentar o
sofrimento distncia; por outro, a f crist -nos apresentada como via de salvao
exclusiva para as vtimas.
Este sentido exonera completamente a Igreja Catlica das suas responsabilidades no
contexto ruands. Como vrios historiadores mostraram, esta no s participou, durante o
perodo colonial, na radicalizao e na racializao das diferenas que podiam existir entre
Tutsi e Hutu (Chrtien, 1985, 2000), como pactuou com o regime ps-colonial do
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O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
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presidente Habyarimana que preparou, pela sua poltica de ndole racista, os massacres de
1990 e o genocdio de 1994. Nada disso transparece em Shooting dogs: a Igreja aparece
constantemente como soluo (a f para superar o sofrimento) e produzida como vtima
(veja-se a sequncia em que Christopher descobre que as freiras de um convento tinham
sido violadas e assassinadas). Neste ponto, Shooting dogs assemelha-se a Hotel Ruanda,
onde o carrasco nos era dado como ser monstruoso, incompreensvel, alheio f e ao
humanismo cristo, enquanto Tatiana, por exemplo, pelo seu estatuto de ser indefeso, de
borrego preste a ser degolado, era associada ao plo da pureza e da f.
Un dimanche Kigali (2006), produo canadiana (Quebeque), o terceiro filme do
primeiro grupo, participa da mesma obliterao das responsabilidades da Igreja Catlica
nas tenses que conduziram ao genocdio. Retrata-o do ponto de vista de um jornalista e
cineasta quebequiano, Bernard Valcourt, homem de meia-idade, sem iluses, alcolico,
presente em Kigali para realizar um documentrio sobre a SIDA. Na companhia de um
operador de imagem, Modeste, e de um tcnico de som, Augustin, percorre a capital
procura de testemunhas e de vtimas da doena. Aos poucos entende que algo terrvel est
em preparao e decide ficar para informar o mundo exterior. Reside no Hotel des Mille
Collines, onde trabalha Gentille, uma empregada de mesa pela qual se apaixona. Esta,
apesar de ser Hutu pelo lado do pai, corre risco de vida por causa da aparncia fsica que a
assemelha a uma mulher Tutsi, pelo menos aos olhos dos extremistas Hutu. Depois do
assassnio de um padre quebequiano que ajudava refugiados Tutsi, Valcourt entende que
ningum est a salvo. A impotncia da ONU em parar a onda crescente de massacres
convence-o a casar-se com Gentille de maneira a poder lev-la para o Canad. Contudo, os
acontecimentos precipitam-se depois do assassnio do presidente Habyarimana. O casal
tenta ento fugir numa caravana organizada pelos capacetes azuis, mas num bloqueio de
estrada de milicianos que procuram Tutsi, Modeste, agora chefe de milcia, rapta Gentille
perante os olhos impotentes de Valcourt. Ela ser violada e mutilada antes de ser
abandonada. Logo a seguir ao fim do genocdio, Valcourt reencontra-a agonizante na casa
em runa do pai e aceita ajud-la a morrer, asfixiando-a.
Este resumo restabelece a cronologia de um filme cuja estrutura dramtica funciona
com frequentes analepses. O filme comea com um Valcourt esgotado de volta ao Hotel
des Mille Collines em Julho de 1994, logo a seguir vitria da FPR. Interroga os
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O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
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sobreviventes procura de uma pista que o possa levar a Gentille. Flashbacks regulares
levam-nos ao perodo anterior ao genocdio e tm como funo mostrar o desmoronamento
do pas, assim como o incio da relao entre Valcourt e Gentille. Mais uma vez, o guio
procura comover atravs de uma personagem branca, uma personagem com a qual o
espectador, sofredor distncia, consegue identificar-se, ou melhor, uma personagem com
a qual o guionista achava que o espectador poderia identificar-se.
Como nos dois outros filmes, o realizador e co-guionista, Robert Favreau, no
contextualiza os acontecimentos. No genrico, aparecem alguns cartes com parcas
informaes sobre o desenrolar dos primeiros momentos do genocdio. Relembram que, a 6
de Abril, o avio de Habyarimana abatido e que a sua guarda, assim como as milcias,
entram logo em aco. Como em Hotel Ruanda, o fim do genocdio est claramente
associado vitria da FPR. Quando aparece a informao sobre a identidade das vtimas
(que eram de facto de origem Tutsi na sua maioria), um crucifixo ocupa o centro do plano,
seguido de trs que dividem o plano em diagonal e que, ao mesmo tempo que anunciam os
cemitrios que aparecem no plano de abertura, designam a presena de padres canadianos.
interessante notar que aqui, como em Shooting dogs, os padres so sempre brancos e
encarados como figuras positivas: no s protegem os Tutsi, como esto dispostos a morrer
por estes.
Parece-me uma vez mais que esta atitude se deve tendncia, consciente ou no, de
apreender a situao de maneira dicotmica num determinado tipo de cinema: para
comover o espectador distncia, este tem obviamente de criar empatia com o plo
positivo, ao mesmo tempo que tem de reconhecer um plo negativo onde as personagens
so encaradas sobretudo no modo da subtraco ou da ausncia (menos humanidade, menos
respeito pelo outro, sem razo, etc.). O padre branco/catlico, assim como a ideologia
crist, situam-se sem dvida aos olhos dos trs realizadores no plo positivo, enquanto os
sacerdotes negros, e com eles a instituio da Igreja Catlica no Ruanda, so produzidos
como no existentes ou reduzidos s margens da histria.
Uma sequncia ilustra paradigmaticamente a leitura tendenciosa da histria pelos
guionistas (Favreau e Courtemanche). Valcourt conversa com o padre quebequiano que
confessara o coronel Bagosora, provvel organizador do atentado que custou a vida a
Juvenal Habyarimana e planificador do genocdio. O padre revela ao jornalista as intenes
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O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
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dos extremistas Hutu (organizao do atentado, planeamento do genocdio).
Estranhamente, o facto de o principal organizador dos massacres ser catlico no levanta
nenhum comentrio (quem o formou?) e ainda menos qualquer crtica sobre a ideologia
religiosa em questo (como que a moral crist explica tal deturpao da mensagem
evanglica?). Bernard Valcourt contenta-se em filmar e gravar o depoimento do padre com
a sua cmara de vdeo, como se a imagem assim produzida falasse por si, a de um padre
destroado pelo que ouviu, num acto de palavra que em princpio nunca deveria ter
revelado. A complexidade histrica e o empenhamento de membros de toda a hierarquia
catlica ruandesa nos massacres permanecem nas margens do guio, ou melhor dito, nos
silncios e no ditos que o assombram.
A imagem vdeo aponta para um segundo ponto de aproximao de Un dimanche
Kigali a Hotel Ruanda e Shooting Dogs: a omnipresena dos jornalistas e da representao
do sofrimento numa esttica de ndole televisiva. Os trs filmes tm no guio uma figura de
operador de cmara e jornalistas, evidncia da vontade de comover atravs da imagem de
fico, ou melhor, de uma imagem que se d na fico como substituto de uma imagem real
que quase no existiu. Valcourt, como Daglish (Hotel Ruanda) ou Rachel (Shooting dogs),
entende aos poucos que o mundo ocidental no quer saber do que est a acontecer no
Ruanda. No seu quarto do Hotel des Mille Collines, fala por telefone com um colega no
Canad e explica que se trata de um plano preparado de genocdio, e no de uma guerra
tribal entre Hutu e Tutsi. Irrita-se com o ntido desinteresse do campo jornalstico ocidental,
desliga e depois vai ter com Gentille varanda. Em plano aproximado, aponta para o
telefone que fica agora no fora de campo e diz No h ningum que queira saber o que
est a acontecer aqui!. Gentille pergunta-lhe ento Porqu que ficas? e ele responde
Porque as palavras no bastam. preciso imagem para parar esta loucura. Durante o
dilogo, ouvem-se no fora de campo sons de tiros de armas automticas e de exploses que
remetem, como nos outros filmes, para o perigo latente que ameaa permanentemente os
seres presentes no campo. A sequncia aproxima a figura de Valcourt de Daglish e de
Rachel. Nenhum dos trs acredita na capacidade dos media em comover suficientemente o
espectador para o obrigar a reagir. Quando, no final do dilogo, questionado por Gentille
sobre se acredita na eficcia dos seus esforos, Valcourt responde Honestamente, no
No tenho o direito de no tentar.
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O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
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Porm, o que este comentrio no pe em causa a propenso dos prprios media
para no representar alguns acontecimentos ou para os representar em moldes que ajudam a
produzir o cansao do espectador. Como vimos, o espectador cansa-se em parte por causa
de questes que tm a ver com a sua prpria predisposio ideolgica (quando a cor da pele
da vtima intervm, por exemplo), cansa-se devido ao formato das notcias, devido
repetio do mesmo a intervalos regulares, devido falta de uma notcia que seja
finalmente matizada. Valcourt, Daglish e Rachel no pem realmente em causa o seu
prprio trabalho, julgam at fazer um trabalho profissional; o mais grave, porm, que a
fico, apesar da distncia, reproduz, quase sem a contradizer, esta opinio do meio
jornalstico sobre ele prprio.
O problema deste tipo de filmes que se concentra no imediato do genocdio,
privilegia o agora, nunca o antes. Se este tipo de estrutura favorece claramente a tenso
dramtica, o envolvimento do espectador, a empatia com certas personagens, f-lo em
detrimento da espessura histrica, esquecendo, por ignorncia no melhor dos casos, factores
essenciais para entender um genocdio.
Este ltimo comentrio leva-me terceira semelhana entre os trs filmes: no se
explica um genocdio, pois este um acto de pura loucura. o que sobressai de duas curtas
sequncias: a primeira, perto do incio, mostra-nos Valcourt em conversa com Maurice, um
empregado do Hotel des Mille Collines que perdera a famlia nos massacres. Em plano
peito justificado aqui no s pelas necessidades de filmagem de uma cena dialogada, mas
igualmente pela necessidade de mostrar os estragos da tragdia no rosto de Valcourt , num
cenrio que evoca o abandono, a tristeza, a morte (mveis e objectos dispersos no cho,
piscina com gua estagnante), Maurice atribui o genocdio perda da razo: Vizinhos
mataram os seus vizinhos, amigos mataram os seus amigos, maridos mataram mulher e
filhos. Em Hotel Ruanda, numa escala de plano idntica e no mesmo local, mas antes da
evacuao do Hotel, Rusesabagina tambm evitava colocar perguntas relativas s causas
polticas e histricas do genocdio. A loucura passageira de parte da sociedade ruandesa
parece bastar em ambos os filmes para explicar os acontecimentos.
A segunda sequncia tem lugar perto do fim, depois de Valcourt ter ido a casa do pai
de Gentille para a pedir em casamento. Conduz e observa as colinas que circundam Kigali.
Eis o seu comentrio dirigido a Gentille sentada ao seu lado: Continuo sem perceber.
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O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
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Como que tanta beleza pode gerar tanto dio? Pois, para o ponto de vista hegemnico,
no se decifra um genocdio, ele inexplicvel por natureza, sem causas histricas
aparentes, espcie de monstro produzido no momento e cujo fim parece to misterioso
como o seu princpio. Por outras palavras, os filmes do primeiro grupo, ao concentrarem-se
no imediato do genocdio, transformam o genocdio ruands na duplicao de qualquer
outro. Da talvez a sensao de repetio ao ver os trs filmes: privilegiam a tenso
dramtica em detrimento da explicao, envolvem emocionalmente o espectador em torno
de uma dupla de personagens (Paul/Tatiana; Christopher/Joe; Valcourt/Gentille) em vez de
suscitarem nele um questionamento (sobre as responsabilidades ocidentais, por exemplo),
ou seja, limitam-se a provocar no espectador (momentaneamente) sofredor distncia os
sentimentos de receio e de piedade que se esvairo com a catarse final. Existe, no entanto,
uma outra via possvel para o cinema sobre o genocdio: so as propostas contra-
hegemnicas que tratarei a seguir.
Propostas contra-hegemnicas oriundas do Sul
Os realizadores Raoul Peck (Haiti) e Fanta Regina Nacro (Burkina-Faso) propuseram uma
viso alternativa dos acontecimentos em questo, uma verso mais matizada, mais
preocupada tambm com as realidades locais. No entanto, ambos os realizadores viram os
seus filmes produzidos como no existentes na maior parte dos pases europeus. Sometimes
in April (Peck), por exemplo, nunca arranjou distribuidoras em Frana e na Blgica. Ser
que o contedo crtico relativamente s responsabilidades destes dois pases no genocdio
explica a espcie de censura da qual foi vtima? Ou ser por o filme no ter actores
conhecidos (junto de um pblico ocidental claro) ou ainda por assumir a espessura histrica
num guio forosamente complexo? Embora La nuit de la vrit tenha estreado em Frana,
recebeu poucas crticas e no atingiu o sucesso pblico de Hotel Ruanda ou de Shooting
dogs. Sem actores (re)conhecidos, com uma estrutura pouco habitual, sem o apoio da
mquina meditica, tinha igualmente poucas hipteses de adquirir o capital simblico
suficiente para ganhar os favores dos espectadores. aqui, porm, que se encontram as
leituras contra-hegemnicas que evocava h pouco. Uma apresentao rpida ajuda a
entender as diferenas fundamentais entre os filmes dos dois grupos.
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O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
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Sometimes in April (2004) conta a histria de um sobrevivente, Augustin Muganza
(Hutu), antigo soldado do exrcito oficial, procura do que aconteceu sua famlia durante
o genocdio. No incio do filme (2004), encontra-se numa escola a debater com alunos um
discurso do Presidente Clinton que passa na televiso. De volta a casa, depara-se com uma
carta do irmo, Honor Botera, acusado de cumplicidade no genocdio por causa do seu
papel de animador na rdio que incitava ao dio e aos massacres. Este pede a Augustin para
o ir visitar a Arusha, sede do Tribunal Penal Internacional para o Ruanda, porque tem
informaes sobre o que aconteceu a Jeanne (Tutsi), mulher de Augustin, e aos dois filhos,
Marcus e Yves Andr. Esta solicitao do irmo obriga Augustin a recordar o que
acontecera dez anos antes, entre Abril e Julho de 1994. A primeira reaco de Augustin
de recusa perante a dor de reviver um passado que tenta esquecer, mas Martine, a sua nova
companheira, antiga professora de Anne-Marie, outra filha de Augustin e Jeanne, morta
tambm no genocdio, anima-o a viajar Tanznia. O difcil dilogo que se reata entre
Honor e Augustin obriga o ltimo a convocar os fantasmas que o assombram desde a
Primavera de 1994.
Logo nos primeiros dias do genocdio, Augustin quer mandar a sua famlia, assim
como a do seu amigo Xavier, outro oficial das foras armadas, para o Hotel des Mille
Collines. Com muita relutncia, Honor aceita levar as famlias para o que ainda
considerado um lugar seguro. Augustin e Xavier, enquanto oficiais acusados de traio, no
podem acompanh-los e tm de fugir pelos seus prprios meios. Na fuga, Xavier
apanhado pelas milcias e abatido. Augustin consegue atingir o hotel, mas no encontra l a
sua famlia. S dez anos mais tarde, em Arusha, que Honor lhe conta o que acontecera.
Na fuga tinham sido parados num bloqueio de estrada do exrcito, onde os militares tinham
abatido a tiro os filhos de Augustin e abandonado Jeanne como morta. Horas depois,
Honor salvara-a e levara-a para a igreja da Sainte-Famille, pois julgara que ali ficaria em
segurana. No entanto, violada por tropas, suicidara-se antes de ser executada. Depois de
ter assistido a vrios momentos dos processos em curso em Arusha, Augustin volta para
Kigali onde tenta continuar a viver com Martine, grvida de um rapaz.
Uma montagem paralela d igualmente ao espectador informaes sobre o que
acontecia em Washington na mesma altura. Vrias sequncias mostram uma funcionria
norte-americana (Bushnell), que luta para fazer entender a gravidade da situao a
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O genocdio do Ruanda no cinema: ausncia, representao, manipulao
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superiores desinteressados. Este tipo de montagem leva-nos tambm at aos dirigentes
ruandeses implicados na planificao do genocdio. Assim Bagosora d metonimicamente a
cara aos carrascos, e vrias cenas apontam para a sua importncia nos acontecimentos
(recepo das armas entregues pelo Exrcito Francs, por exemplo).
Percebe-se pela leitura deste resumo a complexidade do guio de um realizador que
quis abranger vrios pontos de vista, ou seja, que sobrepe, atravs da montagem, discursos
diferentes sobre o mesmo assunto. Os acontecimentos so-nos dados a ler simultaneamente
ao nvel individual (o destino de Augustin e da sua famlia) e ao nvel colectivo (reaces
internacionais, principalmente a americana), sem que haja interaco entre os dois nveis
dentro da prpria diegese. Mais do que nos filmes do primeiro grupo, o espectador no se
pode acantonar na funo de mero receptor da informao, -lhe pedido um esforo no s
de interpretao mas tambm de ligao entre diferentes pontos de vista.
Assim, o incio do filme prope pelo menos cinco tipos de discursos que nos so
dados sucessivamente pela montagem, mas que temos de encarar simultaneamente para
entender o genocdio e as suas origens. Ao contrrio dos filmes do primeiro grupo, que
remetiam o genocdio para a perda da razo, Peck defende a possibilidade de explicar as
suas origens.
O primeiro dos discursos em questo o da histria. O genrico inicial mostra um
mapa antigo de frica, um mapa desenhado pelos conquistadores europeus. Este plano
inicial altamente significativo, pois remete para a apropriao violenta de um continente
que passou a existir aos olhos europeus a partir do momento no qual foi transladado,
traduzido, enclausurado num mapa. Um travelling ptico foca lentamente o centro deste
mapa enquanto aparecem cartes com informaes sobre a colonizao da zona pelos
belgas. medida que o zoom se vai aproximando do pas, uma srie de fondu-enchan faz
emergir outros mapas mais recentes, o que, ao mesmo tempo, aponta para uma progresso
cronolgica, assim como para a constncia do apoderamento do continente pelos Europeus.
O continente s existiu aos olhos do Norte na medida em que foi descrito e transformado
com vista sua apropriao violenta.
o que afirma sem ambiguidade o segundo discurso. O genrico acaba com um
fecho em esbatido sobre o Ruanda contemporneo e assegura um raccord com a sequncia
seguinte que, com uma abertura em esbatido, abre sobre um plano de paisagem. A voz off
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de Augustin pergunta em que momento que o pas se tornou um inferno. Mais uma vez, o
guio coloca a culpa inicial do lado dos colonizadores: trechos de filmes da poca
evidenciam o papel negativo dos cientistas belgas no processo de racializao (um filme
documental a preto e branco mostra mos brancas a tomar medidas antropomrficas das
populaes locais). O ponto de vista dos colonizadores constituiria, desta maneira, o
terceiro tipo de discurso tido sobre o Ruanda. No fim desta sequncia comea-se a ouvir um
discurso de Clinton sobre o genocdio em off, com um plano de fundo de uma paisagem
idlica, alis falsamente idlica, uma vez que fora palco de massacres.
O discurso de Clinton em causa permite o raccord com a terceira sequncia e o
terceiro ponto de vista, o da potncia hegemnica, os Estados-Unidos, que na altura no s
no intervieram como tambm travaram qualquer esforo por parte das Naes Unidas para
mandar mais tropas para o Ruanda. A retransmisso do discurso ocupa o ecr durante um
tempo at um raccord cut nos dar a entender que se tratam de alunos de uma escola a ver
uma gravao vdeo numa sala de aula. Um travelling lateral em plano aproximado ou em
grande plano aponta para rapazes e raparigas concentrados no discurso do presidente norte-
americano. Assistimos aqui a uma transio entre o ponto de vista macro e o ponto de vista
micro, que nos leva para o ltimo nvel de verdade, o dos habitantes do Ruanda. Depois da
transmisso, Augustin, agora professor, questiona os alunos. Uma jovem, que parece ter
sofrido, pergunta se o genocdio podia ter sido evitado. Logo uma colega reage com ira
(Estas coisas ms pertencem ao passado), o que aponta sem dvida para a dificuldade de
reconciliao entre as duas comunidades. Esta sequncia da escola essencial, pois em
poucos minutos aponta para o fracasso dos prprios ruandeses e da comunidade
internacional, para a memria do que aconteceu e a difcil reconciliao.
A sobreposio dos discursos determina em grande parte a estrutura do filme e a
escolha por parte do realizador da montagem paralela entre os vrios nveis de verdade,
montagem que estabelece relaes lgicas entre muitas sequncias. Vejamos, entre outros
exemplos, a articulao entre as duas sequncias seguintes: na primeira, temos uma
conversa exaltada em Washington entre funcionrios e militares sobre as opes possveis
de interveno no Ruanda. Bushnell defende que se silencie atravs de interferncias na
rdio na qual trabalha Honor. Um oficial responde-lhe que uma rdio nunca matou
ningum. Na sequncia seguinte, ouve-se a rdio em questo a funcionar numa casa
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isolada. Um campons annimo sai, pega num instrumento agrcola e anuncia mulher que
vai ao trabalho (expresso muitas vezes utilizada pelos assassinos para designar o acto de
matar). Existe simultaneamente uma relao de contradio entre a declarao feita pelo
oficial em Washington e a actuao do campons no terreno, assim como uma relao de
consequncia entre a opinio de Bushnell sobre a rdio e os seus efeitos nos carrascos. O
efeito produzido pela articulao entre as sequncias ilustra igualmente a vertente
pedaggica do filme de Peck: a passagem de um espao para o outro quase sempre
altamente significativa, a resposta a uma pergunta de uma personagem num lugar encontra-
se noutro lugar na sequncia seguinte. Desta maneira, o espectador tem de estar sempre
atento aos efeitos de montagem, pois s perceber o propsito do filme, assim como a
opinio de Peck sobre os acontecimentos, se conseguir desvendar e analisar o tipo de
ligao e a motivao por trs da montagem paralela. O filme de Peck movimenta-se assim
permanentemente entre os nveis de verdade, passando de um espao ao outro, um
correspondendo ao passado (tempo do enigma e da dor em 1994) e o outro ao presente
(tempo da resposta e de uma certa desopresso em 2004).
Esta circulao complexa de significaes no hesita em confrontar-se com questes
mais sensveis, como a da actuao de vrios ministros do culto catlico durante o
genocdio. Ao contrrio dos filmes do primeiro grupo, que tinham tendncia para produzir
uma Igreja isenta de compromisso com os genocidirios, Sometimes in April, mais fiel a
este respeito ao que aconteceu no terreno, evidencia o papel desempenhado por membros
locais do clero que actuaram pelo menos como cmplices dos assassinos. Uma sequncia
reveladora deste propsito de Peck: a da violao e do suicdio de Jeanne. Situa-se perto do
fim do filme e narrada em voz off por Honor, a partir da priso onde Augustin o visitou.
Jeanne fora violada juntamente com outras mulheres na sacristia da igreja da Sainte-Famille
e os soldados anunciam que vo mat-las. Como noutras sequncias, o significado desta
ganha igualmente com os pormenores que se escondem nos planos. So muitos os
elementos que remetem para a presena da Igreja Catlica no Ruanda: crucifixo, gravura
representando Cristo, fotografia de um eclesistico branco, fotografia de Joo Paulo II
(provavelmente durante a sua viagem ao Ruanda) e, por fim, o prprio padre que pede a
Jeanne para no atirar a granada e desaparece na escurido com as mos postas em orao.
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Em suma, Sometimes in April distingue-se dos filmes do primeiro grupo no s pela
complexidade de uma estrutura narrativa adaptada complexidade da realidade
representada, pela apresentao de uma multiplicidade de pontos de vista ou nveis de
verdade, ou pela espessura humana que d s suas personagens, mas sobretudo pela
vontade bvia de interpelar o espectador, de lhe mostrar que os annimos tambm tinham
rosto. Uma curta sequncia de execuo oferece uma ilustrao paradigmtica desta
vontade de transformar as vtimas em personagens. Comea com um panormico lento que
mostra parte da igreja e um pedao de cu azul antes de descer ao nvel dos troncos de um
bananal. No fundo do plano, vem-se futuras vtimas levadas por soldados para junto de
outras j ajoelhadas. O plano seguinte apresenta as vtimas em plano aproximado do peito,
que aparecem e desaparecem medida que o travelling as apaga, sendo o pano de fundo
constitudo por soldados das foras armadas ruandesas que as vo fuzilar. Contudo, alm da
tristeza que dimana da cena tristeza realada por um requiem em off , a sequncia no s
procura suscitar o temor e a compaixo junto do destinatrio, mas sobretudo interpel-lo
com recurso ao olhar-cmara. Vrias vtimas seguem com o olhar o movimento lateral do
aparelho, mas o choque para o espectador acontece quando o travelling pra em frente de
uma jovem cabisbaixa. Esta levanta a cabea e mergulha o olhar na objectiva e, atravs
desta, no prprio olhar do espectador/destinatrio. Do ponto de vista tcnico, este plano
corresponde letra definio do olhar-cmara:
Pour obtenir un regard la camra, il faut que lacteur regarde lobjectif sans quun acteur ou un objet, qui pourrait tre tenu pour le destinataire de ce regard, sinterpose entre les deux. Il faut aussi que lacteur soit assez prs de la camra pour qu limage, on puisse juger de la direction de son regard. Il faut donc que lacteur soit film en gros plan, tout le moins en plan amricain, dans la position la plus frontale possible (Vernet, 1988: 11).
esta a figura com a qual nos defrontamos aqui: a jovem annima fixa, quase no
sentido fotogrfico, petrifica, semelhana de Medusa, quem recebe o seu olhar,
transformando assim o espectador em alvo. Se os filmes do primeiro grupo reproduziam
nos seus efeitos o duplo movimento aristotlico (temor-compaixo/catarse) que permite ao
espectador sofrer sem envolvimento, Sometimes in April causa nesta sequncia um
sentimento de compaixo mas anula o efeito catrtico, pois este nico olhar no s impede
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a sensao de prazer decorrente da catarse como anula a iluso referencial. Caracterstica
essencial do olhar-cmara, a abolio da iluso (Journot, 2005) torna desconfortvel a
posio do espectador: compelido a encarar o filme no s como obra de arte com a sua
esttica, com as suas figuras de retrica (das quais o olhar-cmara faz parte), mas tambm
como testemunha do inefvel: a morte em massa de desconhecidos. De facto, o filme
remete a execuo para o fora de campo na sequncia seguinte (rajadas em off). Por
conseguinte, o essencial no evidenciar uma morte por si indescritvel Peck conhece a
utilizao repetitiva de cenas de execues em filmes sobre o genocdio , mas colocar
frente a frente vtima e espectador, sem intermedirio. No espanta, neste contexto, que a
sequncia no tenha comentrios nem dilogo; o receptor deste olhar tem de o aceitar pelo
que este realmente: um olhar especular (o da jovem reflectindo-se no meu) para uma
morte anunciada.
Como se v, em Sometimes in April, ainda que haja espao para um certo grau de
esperana, no h lugar para um final feliz, como acontece por exemplo em Hotel Ruanda
(Stanley, 2005). O genocdio surge como um desmoronamento completo da humanidade do
Homem, como um espelho da responsabilidade original do colonialismo e, nas suas
representaes, como uma tragdia no sentido clssico, ou seja, como um texto onde
pairam a morte e as culpas (do colonizador belga, dos sucessivos governos ps-coloniais,
da ONU, etc.).
No outro filme do segundo grupo, La nuit de la vrit (2004), Fanta Regina Nacro
reivindica justamente a influncia da tragdia na construo das suas personagens (Sotinel,
2005b). Uma descrio rpida do contedo evidencia a estrutura trgica do filme.
Num pas africano imaginrio, para pr fim a uma guerra civil entre os Nayaks, etnia
do Presidente Miossoune, e os Bonands, etnia do Coronel Tho, organiza-se uma festa de
reconciliao em casa deste ltimo, mas a tenso forte entre os soldados dos dois grupos.
No entanto, o Presidente e o Coronel esto dispostos a construir a paz entre os grupos.
Percebe-se rapidamente que Tho est atormentado por um crime que cometeu durante a
guerra e que Edna, a mulher do Presidente, est atormentada pelo assassnio de Michel, o
seu filho. Num determinado momento da festa, Tho revela mulher do Presidente que
ele o assassino de Michel e, como razo principal para o seu acto, diz que se deixara
submergir pelo gosto de matar. Pede ento o perdo da mulher para poder continuar a viver.
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Esta tinha entretanto preparado uma ratoeira com a ajuda de um oficial do exrcito (o
verdadeiro pai da criana): alguns homens apoderam-se de Tho e assam-no at morrer.
Quando se descobre a morte de Tho, a tenso volta entre os grupos. O Presidente mata a
tiro a mulher e impede assim um reatar da guerra. No fim, um ex-soldado louco conversa
com o esprito de Tho e anuncia os progressos da reconciliao e da paz no pas. Durante o
genrico final, uma professora dita a uma turma de midos um texto do coronel Tho sobre
a necessidade da unidade.
A aco desenrola-se quase na sua totalidade no recinto fechado da casa do Coronel e
em pouco mais de 12 horas, respeitando desta maneira a unidade de lugar e de tempo
caracterstica da tragdia clssica. A noo de culpa, to presente nas tragdias gregas ou
shakespearianas, tambm se encontra no filme de Nacro (sobre a influncia do dramaturgo
ingls, ver Allardice, 2005). Percebe-se desde o incio que Tho cometeu algo terrvel no
passado, que no s determina o seu desejo de parar a loucura da guerra, como tambm
explica o desejo de vingana por parte de Edna. Ou seja, antes do encontro entre os ex-
inimigos, decises e aces anteriores determinam o destino das personagens ali agregadas.
O espao cerrado da aco aumenta igualmente o risco de confronto entre os homens dos
dois exrcitos, mas tambm o risco de cruzamento entre destinos que, embora diversos,
convergem por causa de uma desgraa comum (Tho/Edna, por exemplo). Neste contexto,
entende-se a razo pela qual a realizadora foca as suas atenes nos seres humanos e no na
paisagem. Na escala de planos, La nuit de la vrit oscila, em grande parte, entre plano
mdio e grande plano, ou seja, cola-se s personagens, aos seus gestos, s suas reaces
Ao contrrio de muitos filmes ocidentais produzidos sobre o continente africano, no
existem, no filme de Nacro, planos de grande conjunto revelando um horizonte extico (um
pr-do-sol, por exemplo). Se em Un dimanche Kigali Valcourt perguntava como tanto
dio podia coexistir no meio de tanta beleza natural, as personagens principais de La nuit
de la vrit s se preocupam com a possibilidade da paz. Por outras palavras, a paisagem
relegada para o fora de campo e nunca chega a actualizar-se no campo.
O tema que interessa realizadora, o da paz entre antigos inimigos, no precisa de
uma natureza indiferente aos assuntos humanos. S intervm quando processada e
transformada numa comida, encarada como elemento essencial de uma cultura. Da talvez a
presena em vrias sequncias de pratos cozinhados, especialidades de um ou de outro
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grupo. Uma em particular ganha especial relevo: o coronel Tho e o presidente Miossoune,
assim como as suas esposas respectivas, filmados em plano americano, convidam o antigo
inimigo a partilhar a comida do outro. Apesar das relutncias recprocas, acabam por
provar a cultura do ex-inimigo e assim dar um passo na sua direco. O alimento aparece,
desta maneira, como metfora da cultura de cada um e o acto de provar a comida do
estranho (e do estrangeiro) como smbolo da abertura diferena. Entende-se assim o
comentrio no fora de plano de Soumari, mulher do coronel: As nossas cozinhas so
diferentes, mas retiramos os produtos da mesma natureza. Alm disso, o enfoque numa
comida preparada das mais diversas maneiras (grelhados, cozidos) aponta igualmente
para a cena da execuo do coronel, a ltima refeio, derradeiro teste reconciliao,
onde haver a mesma reciprocidade verificada na sequncia da refeio: Edna tira uma vida
Bonand (Tho), acto destabilizador, mas Mioussone tira uma vida Nayak (a prpria
mulher), restabelecendo o equilbrio.
Percebe-se ento por que razo Nacro no contextualizou o seu filme, no o radicou
num pas existente. Atrs dos Nayaks e dos Bonands, o receptor poder, em funo da sua
experincia, encontrar aluses ao Ruanda, Costa de Marfim, Serra Leoa, ao Congo ou
ainda ex-Jugoslvia ( de facto neste ltimo conflito que Nacro pensava quando escreveu
o guio do seu filme). Como Peck, e ao contrrio dos filmes do primeiro grupo, Nacro
coloca a pergunta que levanta qualquer guerra civil: como conviver com o inimigo? Como
partilhar o mesmo espao de vida? Como gerir o desejo compreensvel de vingana por
parte dos sobreviventes? Com a inveno das duas etnias, Nacro ampliou e universalizou o
propsito, mas as solues que prope no seu filme passam todas por uma inevitvel
abertura s diferenas culturais. Tal como Sometimes in April, La nuit de la vrit no
idealiza o processo de reconciliao, mostra que este passa, de facto, por fases de
sofrimento e de regresso, mas encara-o como inevitvel em sociedades onde carrascos e
sobreviventes tm de conviver no seu dia-a-dia (como o caso no Ruanda).
Concluso
Um dos pressupostos do presente ensaio radicava na centralidade da representao flmica
como reveladora de tendncias sociais profundas, mas tambm como modo preferencial de
acesso a uma realidade muitas vezes inacessvel. Seria errneo ver uma relao de
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continuidade entre estes dois nveis; eles so antes concomitantes, j que cada segmento do
filme manifesta ao mesmo tempo um e outro. A principal consequncia desta duplicidade,
to fundadora como fundamental, reside na especificidade da anlise flmica: tem de incidir
ao mesmo tempo sobre o contedo e a forma, o que significa que a decomposio crtica de
uma sequncia em planos, a descrio das figuras narrativas utilizadas, etc., se reveladora
de um estilo, pode muito bem constituir um exerccio vo, se no for articulada com uma
anlise de contedo. Shooting dogs, por exemplo, ganha assim outros contornos quando se
tomam em conta ao mesmo tempo a forma de organizao das sequncias onde aparecem
Christopher (quase sempre ocupando o centro do campo) e o lugar, ele prprio central, da
Igreja Catlica nas origens do antagonismo Hutu/Tutsi.
Considerado desta maneira, o filme deixa de ser mero objecto de divertimento ou de
prazer esttico para se tornar uma espcie de texto que, semelhana do texto literrio, tem
de ser acompanhado e comentado, para revelar a espessura dos seus significados. Como
qualquer outro discurso, portador/veculo de ideologia, dominante ou no, possuindo
como poucos um amplo poder amplificador. A anlise flmica tem, portanto, como tarefa
revelar e expor este contedo ideolgico para ajudar o receptor a desenvolver a sua
capacidade de desconfiana.
O meu trabalho hermenutico tentou assim demonstrar como todos os filmes do
primeiro grupo recebem e propagam simultaneamente a ideologia africanista, ou seja, um
sistema explicativo holstico que pretende entender todo o continente com base num
nmero reduzido de clichs e representaes, repetidas, retomadas e raramente
questionadas. Atravs dos filmes do segundo grupo tentei evidenciar precisamente a
possibilidade e as especificidades de um discurso diferente, oriundo do Sul, contra-
hegemnico e, de certo modo, emancipador. Revelar a existncia de outras vozes, aqui
radica sem dvida um dos papis fundamentais do crtico.
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