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Mneme Revista Virtual de Humanidades, n. 11, v. 5, jul./set.2004
Dossi GneroISSN 1518-3394
Disponvel em http://www.seol.com.br/mneme
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Brincadeiras e jogos tradicionais de outros tempos
Anglica ConceioiLicenciada em Antropologia
Viso Cultural, Lda. Investigao e Organizao de Eventos Culturais, Portugal
Sandra NogueiraiiLicenciada em Antropologia
Professora da Enid High School, Enid, Oklahoma, [email protected]
Resumo
A funo social do brinquedo e dos jogos, bem como o papel destes na socializao dos indivduos,
so o tema principal deste trabalho. O manuscrito menciona e analisa o papel dos brinquedos e das
brincadeiras na interaco social de homens e mulheres na primeira metade do Sculo XX, em
Alcanena, Concelho rural, situado no Ribatejo centro de Portugal.
Partindo de trabalho de campo focalizado na recolha de informao junto da populao idosa deste
Concelho, o estudo vai mais alm quando examina at que ponto, os brinquedos podem ter entre
outras funes, a da definio de papis e a da estratificao scio-econmica dos indivduos.
Palavras-chave
Brinquedo; socializao; coeso social
Abstract
The social functions of the toys and the games, as their role in the socialization of the individuals are
the reason of this paper. It mentions and analyses their role in the female and male social interaction
during the first part of the 20th Century, in Alcanena, a rural municipality in the centre of Portugal.
Starting with a field work focused on collecting information through elderly people, the study goes
further, when tries to understand how toys carry among their functions, the individuals roles definition
and their social economic status.
Key words
Toy; socialization; social cohesion
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Introduo
Brinquedos e Jogos Tradicionais a temtica que nos propomos tratar neste artigo que se baseia
num estudo de carcter monogrfico produzido para a Cmara Municipal de Alcanena.
de louvar o interesse e empenhamento desta autarquia no que respeita ao investimento que tem
feito na investigao de carcter antropolgico e, como tal, agradecemos desde j ao Eng Luis
Azevedo, presidente da Edilidade e ao vereador Daniel Caf, responsvel pelo pelouro da Cultura e
Ensino.
Embora existam j alguns trabalhos editados nestas reas no que concerne ao Ribatejo e, mesmo ao
concelho de Alcanena, especialmente no que respeita ao jogos tradicionais, estes resumem-se
apenas recolha e descrio dos mesmos, no tendo obviamente o intuito de aprofundamento dosassuntos.
Destaca-se, porm, a dissertao de Mestrado de Ana Maria Sequeira, no mbito do curso de
Educao Fsica e Desporto da Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias que, apesar
de no se encontrar publicado nos foi gentilmente cedida pela autora.
Parece-nos, pois, relevante analisar este objecto de estudo luz da cincia antropolgica e
concentrarmos a nossa ateno na funo social que os brinquedos e jogos tiveram na primeira
metade do sculo XX no concelho de Alcanena.
Com isto, pretendemos no s contribuir para um maior conhecimento dos usos e costumes do
Concelho, mas tambm para uma maior compreenso do passado recente. O registo e anlise de
diferentes modos de ocupao do tempo e a consequente divulgao dos hbitos de outras
geraes torna-se, sem dvida, uma mais valia para as geraes vindouras, pois
nos nossos dias, os brinquedos perderam muito do seu valor social e dos seus significados
ldicos e mgicos. Deixaram de ser instrumentos activos de formao e divertimento para se
converterem em mercadorias (...). (Pacheco;1995)
Que valor socialseria esse que, presumivelmente, se ter perdido para o mundo actual? Que funo
socialteriam os brinquedos e os jogos nas sociedades ditas tradicionais?
O estudo do caso de Alcanena tem como objectivo dar resposta a questes como estas.
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Entenda-se valores sociais como modelos gerais de conduta que favorecem a integrao social e
que desenvolvem os laos de solidariedade e entenda-se funo social como um elemento que s
explicvel em funo do todo socio-cultural. O fato de cada cultura ser constituda de uma multido de
traos selecionados integrados num sistema total significa que todas as partes tm um
relacionamento especial com o todo. (Hoebel; Frost; 1976) Isto , os usos e costumes relativos aos
brinquedos e jogos existentes no concelho de Alcanena s so entendveis como parte integrante da
cultura daquela comunidade.
Trata-se de uma perspectiva funcionalista em que se enfatiza a dinmica que impera dentro de uma
cultura.
Preocupa-se com muito mais do que com a mera descrio de hbitos e costumes. A.R.
Radcliffe-Brown (1881-1955), que foi um dos primeiros expoentes do funcionalismo e quecontribuiu muito para a seu desenvolvimento, usava uma analogia biolgica para tornar mais
clara a sua significao.As funes de cada parte so encontradas nas contribuies que d
a parte para a manuteno do processo vital de todo o organismo. O mesmo acontece com a
cultura. As funes de cada costume e de cada instituio so encontradas nas contribuies
especiais que do para a manuteno do modo de vida, que a cultura total. Malinowski
ressaltou que o inter-relacionamento de todas as partes de uma cultura significa que a
modificao de qualquer parte individual produzir inevitavelmente modificaes secundrias
nas outras partes. (Idem)
Para Marcel Mauss, os jogos so actividades tradicionais que tm como objectivo um prazer
sensorial, de algum modo esttico. Os jogos esto, muitas vezes, na origem dos ofcios e de
numerosas actividades superiores, rituais ou naturais, ensaiadas, primeiro, na actividade excedentria
que os jogos constituem. Distribuem-se entre as idades, os sexos, as geraes, os tempos, os
espaos. (Mauss; 1967)
Este autor insere aquilo a chamamos brinquedos numa classificao geral de Jogos Manuais, mais
concretamente como jogos materiais permanentes. (Idem) Embora tenhamos em conta a
classificao de Mauss, iremos analisar os brinquedos e os jogos sob os pontos de vista da
socializao e da coeso social.
Entenda-se, pois, socializao, como um processo pelo qual ao longo da vida a pessoa humana
aprende e interioriza os elementos scio-culturais do seu meio, integrando-os na estrutura de sua
personalidade sob a influncia de experincias de agentes sociais significativos, adaptando-se assim
ao ambiente social em que deve viver (Rocher). (Lakatos; 1976) A socializao surge, assim, como
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um processo de integrao que motiva o desenvolvimento da cooperao e da solidariedade entre os
membros do grupo, permitindo a sobrevivncia do prprio grupo. (Oliveira; 1986)
Os brinquedos e os jogos so, deste modo, actividades tradicionais que, atravs de um processo de
socializao, concorrem para uma maior coeso social.
Com base nos testemunhos dos nossos informadores, pretendemos verificar a relao existente entre
os brinquedos e jogos tradicionais e o poder econmico diferenciado e o meio ambiente envolvente,
tendo igualmente em conta o carcter feminino ou masculino associado aos mesmos.
As variveis jogo e brincadeira, podem desta forma, ser analisadas sob diversas perspectivas:
1. Gnero
Apesar da classificao ldica que o jogo e o brinquedo primeiramente possam ter, estes definem e
contribuem tambm para o desenvolvimento do papel social de cada um dos sexos.
Na esfera social, os papis das crianas so desde cedo definidos pelo tipo de actividade ldica que
praticam, sendo estas claramente dicotmicas, ou seja, brinquedos e brincadeiras para raparigasiii e
brinquedos e brincadeiras para rapazes.
O acto de brincar cedo ajuda a projectar social e sexualmente as responsabilidades de cada um dos
gneros.
a. No caso feminino, as brincadeiras e os brinquedos, situam-se na esfera da sua condio de
mulheres, mes, esposas e donas de casa, que se assume todas elas um dia sero. Exemplo
disso so o brincar com bonecas, brincar s casinhas, costurar, bordar, etc.
b. No caso masculino, eram vedadas as brincadeiras ligadas vida domsticaiv,
nomeadamente a partir de uma determinada idade, sendo esses momentos ldicos
preenchidos com objectos como carros, rodas, jogar o pio, jogar bola, brincar ao papagaio
este tem a particularidade de envolver o sonho de voar, visto tradicionalmente como uma
actividade masculina - .
Todas estas brincadeiras e comportamentos a ela ligados, tm directa ou indirectamente ligaes a
esteretipos culturais ligados a poder, controlo, capacidade de liderana e luta, caractersticas estas
vistas apenas nos indivduos do sexo masculino. Os brinquedos e o jogo, so sem dvida e
primeiramente instrumentos definidores do gnero dos indivduos, no do ponto de vista biolgico,
portanto sexual, mas do ponto de vista scio-cultural, ou seja, o que define e diferencia o masculino
do feminino.
Think male and female as designating the biological categories of sex, while masculine and feminine
designate the social, cultural, and psychological categories of gender. (Hockenbury & Hockenbury,
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2003: 411). Estes mesmos autores citam os psiclogos Rhoda Unger e Mary Crawford, reafirmando
que Gender is what culture makes out of the raw materialof biological sex. (Idem). portanto, o
comportamento social e cultural da sociedade, face a cada um dos indivduos, que define gneros.
2. Tempo, Quantidade, Qualidade e Status Social
Os objectos com que se brinca, a quantidade, qualidade e valor econmico dos mesmos, so
indicadores do estracto social das crianas que com eles brincavam.
Este texto, sendo fruto de trabalho de campo desenvolvido num Concelho eminentemente rural, onde
a populao vivia na 1 metade do sculo XX, abaixo dum padro econmico confortvel, revelador
de que os brinquedos eram escassos em quantidade e diminutos em qualidade. maioria das
crianas de ambos os sexos, era posta prova a sua capacidade imaginativa e criativa, pois os
brinquedos eram criados e aperfeioados pelas prprias crianas.
Os brinquedos eram fabricados com as matrias-primas existentes no seu meio ambiente e deste
factor dependia directamente a questo da durabilidade destes. Criados com matrias simples,
facilmente perecveis ou destrutveis como carto, cortia, papel, tecido, etc, a qualidade dos
brinquedos era por conseguinte muito limitada.
A nica vantagem que sendo facilmente degradveis, a capacidade renovativa e inventiva era
bastante mais acentuada. Principalmente quando no se podia de imediato substituir o brinquedo
destrudo. Outro brinquedo ou outra brincadeira, teria de surgir para preencher este espao.
No entanto nem s a quantidade e qualidade dos brinquedos eram reveladores do estracto
econmico das crianas. O tempo e a idade em que se brincava eram igualmente reveladores
econmico-sociais. Crianas filhas de trabalhadores rurais, brincavam muito menos tempo por dia, do
que os seus congneres, filhos de lavradores ou de outras famlias abastadas. As crianas de classe
social baixa, comeavam a trabalhar desde muito tenra idade e o seu tempo de vida infantil era por
conseguinte bastante mais reduzido, do que as crianas provenientes de classes sociais mais
confortveis.
3. Gnero e Espao
A pesquisa desenvolvida revela tambm que o espao fsico onde decorriam as brincadeiras era na
maioria dos casos revelador quanto ao gnero, ou seja, de uma forma geral as crianas do sexo
feminino brincavam em espaos mais interiores, pequenos, como dentro de casa, no quintal ou no
ptio da escola. Brincavam maioritariamente em pequenos grupos, szinhas, tendo as brincadeiras a
caracterstica de serem alternadas. Sendo a sua forma de brincar repetitiva, no lhes despertava um
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certo esprito competitivo, lutador e desafiador, tipicamente caracterstico, das brincadeiras e jogos do
sexo masculino.
Os rapazes brincavam em espaos muito mais no exterior do que interior e, em regra geral espaos
abertos e de grande dimenso, contrastando com o espao ldico dedicado s raparigas. Vemos
pois, os rapazes a terem as suas brincadeiras maioritariamente na rua, nos campos enquanto
tomavam conta dos animais de pasto, por exemplo -, no largo da aldeia, no adro da igreja, no ptio da
escola e maioritariamente em grandes grupos. Esta realidade desenvolveria posteriormente neles
tcnicas competitivas, empreendedoras, grandes disputas e desafios. Estes jogos ou brincadeiras
desenrolados em grandes grupos, dar-lhes-a facilmente um entendimento quanto interdependncia
dos papis sociais de cada um dos intervenientes. Uma socializao feita em larga escala, atravs
das relaes com o exterior, com o mundo l fora, enquanto que s raparigas a socializao era
muito vocacionada para dentro e confinada s relaes de dependncia e no de interedependncia.
H por conseguinte um controlo social sobre o gnero feminino, no s atravs das brincadeiras e
dos brinquedos, mas tambm atravs dos espaos ldicos a elas destinados. De uma forma geral,
indivduos do sexo masculino e feminino no brincavam juntos e em muitos casos nem sequer
partilhavam o mesmo espao fsico nas suas brincadeiras.
Situaes em que aparecem ambos os sexos juntos, acontece na maioria das vezes, durante a
adolescncia, nomeadamente em actividades, como bailes, festas populares, ou reunies sociais
volta de uma fogueira. Mas mesmo aqui, em muitas das freguesias analisadas, as raparigas eram
quase sempre acompanhadas por um adulto.
Este trabalho reparte-se por duas grandes reas, sendo que dedicamos a primeira parte, quilo a que
resolvemos entitular de Brincadeiras de Outros Tempos. O captulo consubstancia-se nas prprias
palavras dos informantes, pois nada melhor para o leitor que poder imaginar atravs das palavras e
expresses dos mesmos como se brincava antigamente. Na nossa opinio esta modalidade permite
que a mensagem possa ser comunicada de forma mais real, quase como se de um quadro se
tratasse, um quadro colorido.
Optmos por identificar o discurso de cada um atravs de um diminuitivo da nossa inteira
responsabilidade, sem que a freguesia a que pertencem esteja claramente identificada. Isto porque
chegmos concluso que a residncia de cada informante no relevante para as questes em
anlise e, por isso mesmo, pretendemos espelhar a homogeneidade existente em termos geogrficos
salientado a importncia de outros factores.
A segunda parte inteiramente dedicada anlise dos brinquedos e dos jogos tradicionais. Da
origem e expanso dos mesmos at funo social que tanto os jogos como os brinquedos
ocuparam no contexto da criao dos nossos informantes, aos quais no podemos deixar de
agradecer o seu grande contributo.
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Manuel Capaz
Maria da Conceio Azedo
Crielmira de Jesus Sintro
Maria de Lurdes Henriques
Manuel Constantino Alegre
Joaquim Jorge Correia
Joaquim Correia Martins
Maria Ferreira Louro
Joo Gil Martins
Maria Dionsio dos Santos Vieira
Joo Rosado Sebastio
Esperamos, efectivamente, que os leitores de hoje, tanto aqueles que ainda tm memria das suasbrincadeiras como os que nunca ouviram falar de bonecas de papelo e de fisgas, encontrem nesta
abordagem um conhecimento adicional sobre o concelho de Alcanena.
Brincadeiras de outros tempos
Sozinha
Na minha infncia, a me no deixava sair para ir brincar com os outros midos, por isso brincava emcasa no quintal. Tinha um quintal grande e ali me entretinha. Havia l uma roseira e ali brincava
volta. Fazia os meus jogos e cantava as minhas cantigas. Gostava muito de cantarolar!
E tambm usava aqueles carrinhos de linhas, que ainda hoje se vendem e andavasempre procura
que a me gastasse as linhas para usar os carrinhos para fazer uns taces para os sapatos. Enfiava
uma linha no buraco, metia-os por baixo dos sapatos e atava por cima do p, por cima do peito do p,
e andava. Fazia daquilo uma brincadeira.
Brincava muito sozinha. A irm tinha 12 anos a mais do que eu e j era uma mulherzinha para fazer
outras actividades em casa para ajudar a me.
Bonecos s tive um. Um bonequinho que um primo meu que morava em Lisboa, e costumava mandar
umas coisinhas no Natal para ns para comer, me mandou. Mandou um boneco para mim. A cabea
era em papelo e os braos e o tronco era tudo em pano. Era uma coisa que no se podia molhar
seno estragava-se. Era uma espcie de papelo plastificado. Eu fazia roupinhas com uns
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bocadinhos de tecido que a me dava, e como eu era muito jeitosa, fazia uns macaquinhos, e essas
coisas.
Tambm jogava malha, que ainda hoje se joga, com um bocadinho de caco de uma telha, por
exemplo. Aperfeioava aquilo um pouquito. Nunca soube saltar corda e aquele jogo que era para
pr as duas mos em cima das costas de uma colega, na escola, tambm nunca soube fazer.
Na escola, aos sbados tnhamos as nossas actividades religiosas, j fazamos uns trabalhinhos
manuais e todos os dias se rezava um pouquinho na escola primria. Jogvamos no recreio tanto
com rapazes como com raparigas. Nunca joguei muito bola, nem ao pio. Nunca tive muito jeito.
A minha actividade quando era mais pequena, mesmo em casa sozinha, era andar de balouo. Tinha
um balouo feito pelo meu pai debaixo de um barraco, aberto para o quintal, mesmo que chovesse
no havia problema. Tinha duas cordas, uma de cada lado, e tinha uma tabunha em baixo. E eraassim, tomava balano sozinha, para a frente e para trs, para a frente e para trs. Ainda hoje sei
fazer isso.
Naquela poca, l perto de mim, todos brincvamos mais ou menos desta maneira. Mas havia
aqueles matules que j se juntavam uns com os outros ao p de uma capelinha que ainda hoje l
existe e eu espreitava pelo buraco do porto, com muita vontade de ir para o p deles. Mas no, para
a rua no se podia ir. Por vezes at partiam as telhas com as fisgas, para matar os passarinhos e era
assim que eles se divertiam, a fazer mal.
Lurdinhas
Eu, por exemplo, era pequenita. At ir para a escola, o filho do dono da fbrica, que era o menino
Luzinho,( ainda hoje o menino Luzinho e tem 74 anos), ele tinha a mania que a filha do Sr.
Joaquim, a Lurdinhas, tinha de ir brincar com ele. Mas eu depois fui para a escola e afastei-me de l.
Sim, ele no saa do quarto sem eu estar dentro do quarto, porque pensava que eu que fugia. Ele
dizia para a criada: Agora fechas a porta! E dizia para mim: E agora tu ds a volta cama e sentas-
te a no cho! E eu tinha que me sentar l no cho. Depois ento que a criada o tirava da cama, o
lavava, o vestia e o arranjava e, depois ento, que eu j podia sair. Mas se tivesse vontade de ir
fazer xixi eu no podia ir fazer, porque ele dizia: Tu queres fugir, mas eu no te deixo! E eu fazia
nas carpetes...
Quando fui para a escola, afastei-me de l logo. O meu pai era mestre e o patro ia pedir ao meu pai
e o meu pai no lhe dizia que no. Saa uma operria da fbrica para me ir buscar a casa da minha
me. Quantos vezes chegou ao cabeo da mata e gritou: Ti Maria, venha vestir a sua menina
para ir brincar com o menino.!
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No meu tempo, a gente, raparigas, juntvamo-nos todas. Havia um rancho de raparigas que era
qualquer coisa! Juntvamo-nos todas na fbrica. S na minha casa ramos quatro, na casa da
vizinha eram cinco. Juntvamo-nos todas e amos ao alecrim, e fazamos uma fogueira quando
chegava ao ms do S. Joo. Todas as semanas havia fogueiras l nos Estreitos, todas as semanas
havia bailarico. No tnhamos mais nada, por isso era cantar e bailar ali na rua. Cantvamos,
bailvamos, saltvamos fogueira e jogvamos ao raminho tranchado.
Raminho ranchado
Que nome me ds...
Era uma correnteza de raparigas e rapazes e ia uma com o raminho e dizia:
Raminho ranchado.
E a outra dizia:
Que amor me ds ou virs.
E dizia-lhe ao ouvido o nome do rapaz. Mas j no me lembro bem como era a seguir, eram
brincadeiras que a gente tinha.
A escola tinha um livro na porta da escola, em pedra, a dizer quem tinha oferecido. E tinha casa de
habitao. Tinha quartos, tinha sala, tinha cozinha, tinha tudo, para as professoras que l estivessem
a dar aulas. Habitaram l muitas professoras e deram aulas l. Era uma sala grande com trs
carreiras de carteiras, uma secretria e dois quadros. Foi onde eu aprendi a ler e a escrever at 3
classe. Tinha um grande quintal e um poo l em cima. Eu era muito cabrazona e havia uma ladeira
relvada e eu punha-me l em cima deitada ao p do poo e vinha a rebolar at c abaixo.
O meu filho jogava muito ao domin, s damas e ao xadrez.
*os nomes entre parntesis foram alterados
Manelito
As brincadeiras era bola e coisa... eram mais ou menos... A gente no tnhamos era stios para isso,
jogvamos no meio das fazendas, dos terrenos. E as bolas tambm no eram to boas, era assim
com um bocadito de trapos, umas coisas quaisquer; no tinha dinheiro para ter essas bolas boas
como h agora.
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A gente no brincava com muitas coisas porque os dinheiros no chegavam para comprar essas
coisas. Nem havia... Hoje um mido mais rico num dia do que a gente era durante toda a vida. No
havia brinquedos e jogos como h hoje. Antigamente, mesmo que os pais tivessem possibilidades,
no havia.
Fazamos coisas imaginrias mas nunca mais era aquilo que hoje. Hoje h aquelas coisas plsticas
que os cachopos fartam-se de brincar e dantes era um carrinho de madeira ou uma coisita qualquer...
Mas os pais da gente no podiam comprar aquilo porque aquilo ainda era caro.
Fisgas e coisitas... Com papagaios nunca brinquei muito a isso, mas havia quem brincasse.
Pois, trabalhava-se mais cedo e os pais todos tinham que lhe dar a fazer. Quando eu era pequeno,
mesmo quando a gente saa da escola, tnhamos que ir guardar umas cabeas de gado ou tnhamos
que ir para a fazenda apanhar figos ou fazer qualquer coisa, toda a gente tinha que mexer qualquer
coisa.
No, os rapazes e as raparigas no brincavam juntos, nem na escola nem na rua. Nunca tinham
comunicaes uns com os outros. Lembro-me uma vez que meteram l umas raparigas na escola
dos rapazes, mas quando era para brincar elas estavam todas apartadas, nunca se misturavam. No,
no, no se misturavam e ai daquele que tocasse em qualquer coisa. No havia possibilidade.
Ali na escola no havia condies para esse convvio. S mais tarde quando a gente comeasse a
tomar rumo de vida que... ali no, na escola no. Mais tarde nos bailaricos ou s se fosse com
vizinhas ou com pessoas assim do conhecimento, de resto no.
Quim
Ah isso o piozito era sempre o scio da gente. Dum bocadinho de madeira fazia-se um pio que era
um instante, fisgas tambm. E papagaios mandvamo-los para o ar... Havia quem tivesse jeito para
fazer carrinhos de madeira, mas eu tinha pouca habilidade.
Quinzinho
Jogvamos bola. Eu jogava muito, tinha uma loucura pela bola. Era o chinquilho, era o pio, o jogo
da bilha. Tnhamos para a 7 ou 8 anos, eu andava na escola. A partir do momento em que sa daescola j no tinha tempo para brincar.
Ainda no tempo da minha me, eu tinha sete anos e ela j estava doente, o meu irmo ia escola de
manh e eu ia de tarde, para estar sempre a brincar. Ia guardar umas 3 ou 4 ovelhas que a gente
tinha e tinha que levar os trabalhos da escola para fazer por l.
H uma gruta, que a gente chamava a Gruta das Figueirinhas, e eu fazia os trabalhos da escola l.
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Fazia os meus brinquedos. Os meus brinquedos eram uma roda de cortia, cortia porque a gente
tinha cortia, depois punha-lhe um eixo com uma cana.
Os rapazes brincavam com as raparigas. porta da escola fazia-se um bailarico todos os dias. As
raparigas danavam com os rapazes e a que eu aprendi a danar. Aqui na Louriceira no havia
escola dividida. Era s uma escola, que no aquela, uma casa que est ali em cima, e os rapazes
estavam junto com as raparigas.
Nesta freguesia no havia condies para haver escola dividida. A escola nova foi feita em 1945 ou
46. Nessa altura j era dividido. Foi a que eu fui fazer exame da 3 classe do curso de adultos com
30 anos. Fui para ali junto com os rapazes. Se ficasse bem podia fazer o exame da 4, mas nessa
altura foi a altura em que me fui embora para Lisboa e j no fiz o exame da 4.
Gilinho
Quando era criana arranjava uma roda de um barril com um arco com arame, jogava a uma coisa
que era um pio. Jogvamos ao boto aqui nas paredes, atirvamos com o boto direito s paredes e
em ficando perto um do outro um palmo, ganhava o jogo, pois era!
Joozinho
Na minha infncia, quando eu era criana, gostava muito de jogar bola. Pratiquei futebol at quase
aos 40 anos, mas levei pancada quando era mido. O meu pai no gostava que a gente jogasse
bola. Tenho um irmo que era um encegueirado a jogar bola, encegueirado mesmo pela bola,
mas era mais reguila. Eu no, eu acobardava-me mais e ento cheguei a levar tareia. Tinha 12, 13 e
14 anos. O meu pai no queria que eu jogasse bola, porque no gostava que eu jogasse bola.
Os pais no gostavam que a gente jogasse bola, no se compreende porqu?! Quer dizer, at se
compreende! Havia falta de um bocado de mentalidade nas pessoas. O meu pai, ento, nunca me
bateu por isto. Eu fui caador durante muitos anos e a que ele.., cada vez que eu saa para a
caa, a que ele ficava todo contente. Mas jogar bola.., cada vez que ele sabia que eu ia jogar
bola... A gente aqui jogava. Eu joguei em Alcanena, e aqui as aldeias jogavam umas com as outras.
Cada vez que ele sabia, a minha me tinha que fazer aquele papel, ralhava, ralhava E agora foste jogar bola e agora partes uma perna ou partes um brao!! Ou mais isto ou mais aquilo... Era
mesmo assim, a gente tinha que trabalhar todos os dias. No gostava que a gente jogasse bola!
O brinquedos, antigamente, fazamo-los ns.
Sabe o que uma pinha de um pinheiro? Bravo, de um pinheiro bravo. H o pinheiro manso e h o
pinheiro bravo que uma pinha sobrecomprida. A gente apanhvamos as pinhas bravas,
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apanhvamos as pinhas bravas e com duas pinhas e um cavaco em cima daquelas caixas que as
pinhas tinham. Era a canga, era uma junta de bois. As pinhas eram a junta de bois e atvamos uns
cordelinhos para puxar por eles. Fazamos um carrinho de cortia, com duas rodazinhas de cortia,
que a gente faza, pnhamos o carrinho atrs das pinhas e era os bois que puxavam as pinhas.
Bicicletas... Tnhamos naquele tempo uma bicicleta. Arranjvamos duas canas, abramo-las ao meio,
metamos uma rodazinha de cortia no meio, com um eixozinho de madeira. Fazamos-se uma
bicicletazinha e aqui em cima fazia-se um guiador com uma rodazinha de cortia.
E era o arco, era o arco... De ferro ou de lata, ou de chapa, desta coisa dos arcos dos barris de vinho.
Arranjvamos uma gancheta para tocar o arco e eram essas as nossas brincadeiras aqui.
E era jogar ao pio, jogar ao feijo... Pronto, eram essas as brincadeiras que a gente tinha.
Os rapazes e as raparigas no brincavam muito juntos. No muito. Antigamente, normalmente os paisno consentiam que elas se juntassem com rapazes a brincar. No senhora!
Manelinho
Naquela altura era diferente de agora, porque os divertimentos desse tempo das aulas na escola era
brincarmos uns com os outros. Jogava-se ao pio, jogava-se com as bugalhazitas. Bugalhazitas
pequenitas dos carvalhos. E a correr atrs uns dos outros e a fazer saltos para cima uns dos outros.
Era tudo diferente de agora, agora no h nada disso.
As raparigas brincavam para um lado e os rapazes para o outro. Agora que tudo misturado. Erarapazes com rapazes e raparigas com raparigas. Mas s vezes tambm brincvamos com raparigas.
Mariazita
As crianas brincavam nas rua umas com as outras.
No havia os passatempos que h hoje e noite estava tudo em casa.
Entrvamos aos sete anos para a escola. No havia jardins-escola nem essas coisas e aqui se
entretinham uns com os outros.
Mariazinha
O meu pai foi um homem muito orientado, mas andava por l quando era ao fim de semana estavam
por l nas tabernas at ao outro dia a jogar ao dinheiro. Depois isso foi proibido, mas esta gente
antiga, como o meu pai, jogavam muito. Jogavam s cartas ao dinheiro.
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Uma corda atada a um ramo de oliveira, era um balanc
As candeias, flores espontneas que abundam nos primeiros meses do ano, transformavam-
se em candeias a srio
Carumas entrelaadas eram santinhos que se sustinham em p
Quatro rodas de casca de melo e cavaquinhos a uni-las faziam um carro
Um pau bifurcado e um elstico formavam uma atiradeira (sic) (Fisga)
Duas pinhas, atadas por um fio de comprimento varivel, representavam uma junta de bois e
um pau ao ombro, o aguilho
Com caixas de fsforos construam-se cestinhas
Raminhos de cerejas serviam de brincos
Com trapos velhos faziam-se lindas bonecas
As paredes velhas armazenavam arroz para cozinhar, o chamado arroz dos telhados
Um carolo transformava-se em boneco, sendo dois pauzinhos as pernas e o terceiro os
braos
Novelos de meias velhas serviam de bolas
Mos habilidosas recortavam elegantes figuras de papel
As partes laterais de um p de milho, para esse fim golpeado, produziam estalidos, quais
castanholas
Um curto e certeiro golpe num p de trigo fazia um apito
Na Santana, feira anual de Minde, os petizes esbugalhavam os olhos perante as carrocinhas de
lata, bonecas de papelo, brinquedos de madeira, sem esquecer as vistosas e tentadoras bolas
de serradura. Estas irresistveis bolas, forradas a papel prateado de cores vivas, presas aos
dedos por um elstico, iam e vinham batendo na palma da mo at que uma distraco, ou um
impulso excessivo, fazia espalhar a serradura pelo cho.
Flautas, canivetes e cornetas constituam outras tantas tentaes. (1994: 189;190)
Dos Brinquedos aos Jogos Tradicionais
A origem do brinquedo perde-se no tempo, se tivermos em conta que qualquer objecto se podetransformar num meio de divertimento. Qualquer pedrinha ou qualquer pauzinho serve para entreter a
imaginao frtil de uma criana.
De acordo com Pina Rodrigues, O brinquedo-objecto nasceu com o Homem. O brinquedo-jogo veio,
possivelmente, depois, j que as suas regras deixam supor a existncia de uma sociedade mais ou
menos organizada, com as suas normas de vida, as suas leis. (1983:9)
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Neste sentido quase que somos levados a crer que as sociedades menos complexas como as dos
caadores-recolectores no recorrem ao brinquedo-jogo como forma de educao, o que no nos
parece plausvel. As sociedades encontram-se organizadas com maior ou menor complexidade, mas
as normas de conduta e os costumes existem na mesma independentemente do grau de
complexidade.
Efectivamente, Os primitivos nunca enfatizam a educao para a vida como o fazemos em nossas
escolas. Num grupo tribal, a educao vida. Os pais no trabalham em fbricas ou escritrios que
as crianas nunca vem. As crianas no ficam encerradas numa escola longe de casa durante horas
e dias sem fim. Num simples acampamento ou aldeia, as crianas esto em volta de um lado para o
outro enquanto se realizam todas as actividades fundamentais da vida adulta. Eles podem brincar
com um arco e uma flecha at chegarem idade de irem para a caa e aprenderem a preceito, na
prtica, como us-los com maestria.
Eles podem brincar em volta das crianas mais velhas que esto guardando o rebanho at que
estejam aptos eles mesmos, para guard-los. Podem ver e imitar os danarinos at que eles prprios
sejam admitidos dana. (Hoebel; Frost; 1976:60)
Parece-nos que a precedncia do brinquedo-objecto face ao brinquedo-jogo tem menos a ver com o
grau de desenvolvimento das sociedades em si e mais com o estgio de aprendizagem do indivduo
face sua integrao na comunidade. Isto porque o brinquedo-objecto poder ser mais facilmente
associado ao entretenimento individual enquanto o brinquedo-jogo implica a relao de grupo e,
consequentemente, a aprendizagem de regras de convivncia social.
Pegar numas pedrinhas e num pau e transform-los num brinquedo um cenrio to realista numa
tribo nmada de frica como o em Alcanena na primeira metade do sculo XX. Mas do brinquedo-
objecto com base nos materiais que a natureza fornece aos carrinhos telecomandados dos dias de
hoje vai um grande passo e aqui sim, o desenvolvimento tecnolgico das sociedades modernas
ocidentais factor decididamente explicativo.
No entanto, o brinquedo-jogo, como por exemplo o jogo da bola, implica j a aprendizagem das
regras da sociedade e o treino de convivncia dentro do grupo. As regras do jogo associadas ao
brinquedo so j modelos de vivncia em grupo e regras de conduta social, sejam estas mais simples
ou mais complexas.
Irrequieto como as crianas que diverte, o brinquedo salta fronteiras, no pra, corre o mundo inteiro.
Atravessa continentes e oceanos, acompanha os guerreiros na conquista das terras, as populaes
nas suas deslocaes, os navegadores nas suas longas viagens.
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Torna-se cidado do mundo. As crianas adoram-no, os adultos ao v-lo revivem tempos passados.
(Rodrigues; 1983:9)
O brinquedo universal; o jogo universal. O acto de aprender a brincar comum a todos os povos
e a todas as culturas, sejam eles pastores nmadas em frica ou camponeses na China, vivam eles
em Tquio em pleno sculo XXI ou em Alcanena no princpio do sculo passado.
Pondo de parte certos aspectos de difuso de brinquedos por antigos povos invasores da Pennsula
ou casos de aparecimento simultneo em regies culturais muito separadas entre si e que no
sofreram, nesse campo, influncias externas, e reportando-nos a tempos mais modernos, essa
expanso devia ter sido feita por uma das vias normais da interpenetrao cultural pessoas dumas
localidades que se fixam definitiva ou temporariamente noutras (...). (Rodrigues; 1983:12)
Muitos dos brinquedos e dos jogos existentes no concelho de Alcanena so comuns a todo o Pas e aoutras regies do mundo, como o papagaio, o pio ou a bola, apenas para referir alguns exemplos.
Pintores de fama no desdenharam reproduzir nas suas telas os mais variados brinquedos.
Bruegel pintor flamengo do Sc. XVI no seu quadro Jogos Infantis exposto no Museu Histrico
de Arte de Viena, pintou os jogos e brinquedos usados pelas crianas da sua poca. Nele se vem
rapazes com o pio, as andas ou pernas de pau, o belindre, jogando ao eixo, correndo com o arco,
jogando o l-vai-alho, andando s cavalitas, brincando malha ou aos paulitos, montando o cavalo
de pau, etc. As meninas brincam s cadeirinhas com os rapazes, uma outra enche de ar uma
bexiga de porco e joga s lojas com uma balana (...) e, ao p, um papelcio com p de tijolo, p
que ela procura obter de um tijolo que esfrega, exactamente como o faziam as meninas de poucas
dcadas atrs.
Algumas brincam com bonecas ou andam de baloio. Aparecem tambm a cabra-cega, o comboio e
outras brincadeiras que desconhecemos. Este quadro, de grande importncia para o estudo dos
brinquedos e dos jogos do Sc. XVI mais um documento a confirmar a sua universalidade.
Noutro quadro de Bruegel - Combate entre o Carnaval e a Quaresma -, tambm exposto naquele
museu, l vemos o pio.
Velasquez reproduziu no quadro Prncipe Baltazar Carlos o Caador uma pequena espingarda; e
Goya, outro afamado pintor espanhol, reproduziu La Cometa (o papagaio de papel) em obras
expostas nos Museus do Escorial e do Prado.
No Museu do Prado est tambm um outro trabalho deste pintor - Los Zancos (as andas).
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O nosso grande Jos Malhoa no Pastorinho pintou uma flauta rstica tocada por um pequeno
pastor. No quadro O Pfaro Novo, Henrique Pinto mostra-nos um rapazito tocando pfaro.
O saragoano Bayeu, em O jogo da Vaquinha tambm exposto em El Escorial, mostra-nos rapazes
brincando s touradas com uma espcie de tourina feita de um cesto. (Rodrigues; 1983:11)
A cultura desenvolve-se atravs de inovaes e, especialmente, atravs de processos de difuso.
Muitos dos brinquedos que hoje conhecemos correram o mundo e foram sofrendo alteraes de
acordo com a cultura especfica de cada povo.
Com o incremento das trocas, tambm a interpenetrao cultural se intensifica. As migraes
proporcionam um maior enriquecimento cultural e, sem dvida, que o concelho de Alcanena no est
isolado deste fenmeno. Quantos no foram aqueles que aqui fixaram residncia? Quantos no
foram os que emigraram e regressaram sua terra natal? O patrimnio cultural do Concelho no querespeita aos brinquedos e jogos tradicionais reflecte toda esta riqueza.
De acordo com Pina Rodrigues, No obstante as diferenas existentes em muitos aspectos da vida
social e cultural das diversas provncias portuguesas, os brinquedos so praticamente os mesmos de
Norte a Sul do nosso pas, embora uns sejam mais usados do que outros e ser possvel terem
desaparecido aqui para aparecerem ali, desaparecerem agora para surgirem mais tarde com outras
modalidades. (1983:12)
Haver brinquedos mais comuns a umas regies do que a outras, como o caso da tourinha na
regio da Lezria, mas muito raramente existir exclusividade.
Mais recentemente a expanso cultural pelos meios de comunicao social, com toda a sua carga de
aspectos positivos e negativos, tem igualmente grande importncia no respeitante imitao por
parte das crianas de inventos como o automvel, o submarino, o avio, o foguete interplanetrio.
(Rodrigues; 1983:12)
E, por outro lado, Feito dos mais diversos materiais madeira, barro, metal, papel tm mantido as
suas caractersticas essenciais em toda a parte, com maior ou menor rudeza, com maior ou menor
perfeio. o caso do pio, belindre ou papagaio.
Se certo que poderiam ser imitados de objectos usados para fins diversos que no para distrair
crianas, como o papagaio utilizado na China como planador para observar tropas inimigas e enviar
mensagens de pedido de socorro no caso de cidades cercadas, tambm certo que tm contribudo
para o avano das cincias. O pio deu origem ao giroscpio e s suas variantes, indispensveis
para vigiar a estabilizao de navios, submarinos e avies; e o papagaio, experimentado com fins
cientficos, serviu de base inveno do pra-raios.
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O brinquedo adapta-se, acompanha a evoluo das sociedades onde se integra, nos seus usos e
costumes, na sua tcnica, na sua vida social.
A boneca de frica no feita da mesma madeira que as das provncias portuguesas ou
apresentadas pela indstria. Os materiais variam consoante os lugares e, no caso dos brinquedos
industriais, conforme o avano tcnico dos fabricantes.
A boneca moderna anda pelo seu p, chora, diz pap e mam e bebe o leitinho todo. S lhe falta
ter alma.
O automvel e o comboio de madeira ou de arame e cana, dos meios rurais, precisam de quem os
puxe; os carros modernos feitos de material plstico ou outro, com grande cpia de pormenores de
inexcedvel perfeio, andam sozinhos ou so telecomandados; o comboio tem vida prpria, andapelas linhas e obedece aos sinais como se fosse conduzido por maquinista experimentado.
(Rodrigues; 1983:9;10)
Efectivamente, o brinquedo evolui, tal como evoluem as sociedades. As crianas de hoje j no
brincam com carros de bois em madeira, pois esto inseridas no seu tempo tal como os seus avs e
bisavs estavam contextualizados nos seus. O mundo das crianas de hoje o mundo da informao
e da realidade virtual, o mundo dos complexos sistemas tecnolgicos e da economia global. No
um mundo pior nem melhor, simplesmente diferente.
No que respeita concretamente ao jogo, e de acordo com Ana Maria Sequeira, Para conhecer o jogo
necessrio antes de mais conhecer o seu envolvimento (o exterior); o tempo e o espao, so
fundamentais na vida do Homem e expressam a importncia e a interpretao do jogo tradicional por
parte do Homem. Tal concepo expressa-se no jogo na sua dimenso simblica. (1997:9)
E ainda: Outros jogos tiveram origem no trabalho humano ou nos utenslios do trabalho, sobretudo
no rural.
A ligao de alguns bastante mais evidente que noutros, como no caso da subida do pau de
sebo, resultante do trabalho dos madeireiros no corte das florestas; a corrida de sacos, relaciona-se
com a guarda dos cereais; a corrida de cntaros, evoca o trabalho da mulher a ir fonte buscar gua;
o jogo do malho, ter a sua origem no trabalho em pedreiras ou dos canteiros; o jogo da pinha e a
reca relaciona-se com o ponheiro, (dela existem outras variantes, a mais simples e variada a
bilharda); o jogo da corrida de burros no qual se utilizava um burro para o transporte de pessoas e
cargas relacionadas com a ida s hortas e servios a ele relacionados; o jogo do pau, nasce do
cajado do guardador de rebanhos, que serve de auxiliar nos caminhos acidentados, de apoio para as
fadigas e de arma contra qualquer espcie de inimigo.
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Nem todos os jogos mostram to claramente a origem laboral. o caso da malha ou fito. Antigamente
era jogado com pedras, pedras essas que eram atiradas para moragalhos ou que atiravam, a
pssaros tentando acertar-lhes. Ora daqui at ao jogo vai um passo. Hoje este jogo joga-se com
malhas de ferro ou moedas.
Para o jogo da bilharda, no se utilizam pequenos paus aguados cortados das rvores por um
canivete. Ter bastado um toque com um outro pau numa das suas pontas eventualmente aguadas
para desencadear o processo ldico. (1997:10)
E prossegue, citando A . Cabral, na sua obra Jogos Populares Portugueses (1987):
Os jogos mais genericamente articulados com o ambiente de trabalho soaqueles que surgem mais espontaneamente ao esprito dos trabalhadores nas
suas tardes de Domingo.
Se bem que o jogo est vinculado ao trabalho, difere no entanto dele, pois ao trabalhar o homem no
realiza apenas o necessrio. Ele faz o que tem de fazer obrigado pela necessidade prtica ou
induzido pelos seus deveres independentemente de interesses ou necessidades imediatas.
A diferena essencial entre a actividade do jogo e a do trabalho reside na diferente atitude da
personalidade em relao sua prpria actividade. (1997:10;11)
A referida autora refere A. Cabral e a sua opinio quanto existncia de trs atitudes fundamentais
que esto na origem do jogo popular: a transferncia, a imitao e a substituio.
Por transferncia, entenda-se o trabalhar numa actividade ldica por se lhe ter achado prazer. o
caso do malho, corrida de andas, subida ao pau ensebado, jogo da reca, jogo da pedra, etc.
Embora a imitao esteja presente na atitude anterior, no o est de forma decisiva. Efectivamente,
A imitao a atitude dominante, retoma o nome e a estrutura, mas modifica os processos e os
objectos. Tome-se por exemplo a corrida de carros de pau que imita as corridas de cavalos,
automveis, motos, etc.
Os jogos so, pois, uma bela forma de relao intersubjectiva, de actividade social.
A imitao mantm-se depois da entrada na escola primria. (1997:11)
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Quanto substituio, trata-se de substituir o objectivo da aco prtica pelo objectivo da aco
ldica, que se torna, deste modo, smbolo do primeiro.
Ana Maria Sequeira considera que o jogo dos polcias e ladres, o jogo das mes e filhas, etc. so
exemplos desse processo de substituio.
No entanto, demonstra o quanto estas trs atitudes interagem umas com as outras no processo de
construo da personalidade da criana.
Ao observar a criana nestes jogos, para alm da imitao ao adulto, o que mais sobressai a
transferncia para o jogo da necessidade de se afirmar, de mostrar que ela tambm tem uma
personalidade. Como diz Chateau: A criana refugia-se num mundo onde toda poderosa.
transferncia que consiste em transformar uma atitude sria numa atitude ldica, no lhe podemoschamar s de transferncia porque neste caso ela conjuga-se com a imitao. o caso das crianas
brincarem s professoras e alunos, ao bom barqueiro, etc. Alis, as atitudes de imitao, de
transferncia e de substituio conjugam-se, dependendo da capacidade inventiva. (1997:12)
Se assim entendido na perspectiva da psicologia, sob o ponto de vista antropolgico,
atravs de um processo de imitao que a criana aprende os padres de conduta da sociedade em
que est inserida. Atravs do brinquedo e do jogo a criana socializada ou enculturada, isto ,
aprende de forma no institucionalizada, de forma inconsciente. Joga o jogo da vida.
Segundo Bernardo Bernardi, importante notar que a enculturao, na mesma medida em que
transmisso da cultura estabelecida pelos pais (...), tambm um meio de crtica, isto , de escolha,
que implica adeso conformista ou, no extremo oposto, recusa renovadora. A enculturao actua num
momento preciso que poderia tambm descrever-se como presente cultural e reflecte o etnostilo
desse dado momento; mas, embora se baseie naquilo que j foi construdo no passado, projecta-se
no futuro. (1974:92;93)
Um jovem de Alcanena de hoje, como qualquer um de qualquer outra cultura, torna-se
comparticipante do modo de vida de Alcanena de hoje e prepara-se para construir o futuro do
Concelho de amanh.
O processo enculturacional informal d-se continuamente ao longo de toda a vida. No h
momento algum em que cada um de ns no amadurea com actividade autnoma, ou no
receba, conscientemente ou no, quaisquer valores ou modo de vida pelos quais se torna
membro de uma determinada cultura num preciso momento de tempo e de lugar (...).
(Bernardi; 1974:93)
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O fenmeno revela-se com maior incidncia no perodo da infncia, quando a criana
educada para ser homem, no mbito da famlia e dos grupos espontneos da mesma idade.
O objectivo essencial da famlia dar criana uma forma de vida, um etnostilo, algo a que
conformar-se como ponto de referncia quanto mais no fosse para super-lo ou neg-lo. Na
famlia, particularmente no primeiro contacto com a me e, depois, com os outros membros, a
criana aprende quem , o que vale, o que deve fazer para se tornar homem adulto. (Idem)
De acordo com Bernardi, A formao de grupos espontneos entre crianas pequenas s
aparentemente tem como fim o divertimento e o jogo; na realidade, representa a primeira tomada de
conscincia das relaes sociais e um modo concreto de as realizar. (1974:94)
A criana de ontem, como a de hoje, imitaria os adultos com quem vivia. As armas de defesa eataque e os instrumentos de trabalho seriam os modelos dos seus primeiros brinquedos. As meninas
teriam os seus irmos mais novos como modelos dos seus bonecos. (Rodrigues; 1983:9)
Assim as crianas aprendiam os diferentes papis que mais tarde viriam a representar na
comunidade. As meninas imitam as mes e as irms mais velhas, brincam s casinhas e fazem
vestidinhos para as suas bonecas. Os meninos aprendem a ser homens e brincam com carrinhos de
bois, como podemos verificar atravs do testemunho dos nossos informantes. O processo de
socializao to subtil que ainda hoje, num mundo completamente diferente, existe algum
preconceito em oferecer uma boneca a um rapaz.
A grande diferenciao sexual do trabalho caracterstica das sociedades tradicionais est bem
espelhada no tipo de brinquedos utilizados pelos rapazes e pelas raparigas, por isso a Sozinha
brincava com bonecas e o. Joozinho brincava com carrinhos.
No perodo infantil, a imitao o aspecto da enculturao que mais surge como determinante. Seria
errado, por outro lado, pensar que as imitaes cessam com a idade infantil; pelo contrrio,
continuam toda a vida e prosseguem com o processo enculturacional. (Bernardi; 1974:94)
Seria, pois, errado pensar que na idade infantil a imitao actua s passivamente; desde os
primeiros anos, com um crescendo contnuo, afirma-se na criana e no homem a sua individualidade,
ou seja, a capacidade de interpretar de maneira autnoma e pessoal aquilo que v e que lhe
apresentado. (Idem)
Atravs dos brinquedos e dos jogos, que muitas vezes andam intimamente associados, as crianas
vivem as regras do jogo e, tal como se de adultos se tratassem, vivem-nas com muita seriedade.
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Podemos verificar isso mesmo atravs das palavras de Ana Maria Sequeira no que respeita
simbologia do jogo.
Jogo simblico uma aco ldica representativa de uma aco sria (brincar s casinhas, s
professoras, s mes e aos filhos) que decorre, na maioria dos casos da imitao do adulto.
O jogo do stop ou das naes (infantil) como no reca (jovens e adultos), para dar apenas dois
exemplos o smbolo est presente quer no material utilizado, quer na aco desenvolvida.
No jogo das naes, as casas desenhadas no cho representam naes e a linguagem imita uma
declarao de guerra.
No jogo da reca, a pinha ou bola com que se joga a reca e o porqueiro, ao conduzi-la para o celeiro,
no faz mais do que representar uma aco real.
O jogo do fito, ou malha, talvez um dos mais populares em Portugal tem origem nas pedras com que
no trabalho se tenta acertar nalgum objecto.
Os materiais do jogo transformam-se quando o jogo se inicia: uma curta vara de ferro ou de tubo
passa a ser um pino ou fito e um pedao de ferro achatado e redondo a malha. Alterou-se-lhes a
funo: a utilidade prtica deu lugar propiciao do prazer. (...)
Os jogos tradicionais utilizam o simbolismo de diversas formas, seja no aspecto da prtica do prprio
jogo, seja na linguagem ou lengalenga que o acompanha, seja no gesto do participante, seja no
prprio objecto do jogo. (...)
Nesta medida, o jogo tradicional, por encerrar em si mesmo os smbolos e os sinais dos Homens que
o praticam, so sem dvida uma forma expressiva do Homem comunicar. (1997:13;14)
Nos brinquedos e nos jogos tradicionais est um mundo de conhecimento. Tudo o que foi dito nos
ajuda a compreender o papel dos mesmos, desde a sua origem sua simbologia.
Em seguida iremos analisar especificamente a funo social que os jogos e brinquedos tradicionais
tinham na primeira metade do sculo XX em Alcanena e que, apesar de se ter desvanecido ao longo
dos tempos, persistiu at h bem pouco tempo.
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A Funo Social dos Brinquedos e Jogos Tradicionais no Concelho de
Alcanena
Os testemunhos dos nossos informantes so deveras elucidativos da forma como se brincava naprimeira metade do sculo XX e a que chammos brincadeiras de outros tempos.
E porqu brincadeiras de outros tempos?
O factor tempo tem alguma influncia nesta nossa anlise?
Inevitavelmente! E no seremos apenas ns a ter conscincia desse facto. Os nossos informantes,
pela prpria lei da vida, do-nos conta do passar do tempo e das mudanas que testemunharam.
Seno vejamos:
Expresses como na minha infncia, no meu tempo, antigamente, quando eu erapequeno, nessa
altura, quando eu era criana, demonstram bem como o tempo passou, e como passou bem
depressa para estas pessoas, pois o perodo de brincadeiras infantis era bem curto para as crianas
de outros tempos.
Se relermos a primeira parte deste artigo, quase que sentimos o sorriso dos nossos informantes
quando trazem memria as suas brincadeiras de infncia...
Mais uma vez, o tempo. Pouco tempo.
Pouco tempo para brincar, pois comeava-se a trabalhar com tenra idade. E, por isso, as prprias
brincadeiras, os brinquedos e os jogos, faziam parte do esquema informal de aprendizagem. Era
preciso aprender a viver e da o ditado popular: de pequenino que se torce o pepino!
- A partir do momento em que sa da escola j no tinha tempo para brincar.
- Pois, trabalhava-se mais cedo e os pais todos tinham que lhe dar a fazer.
A idade das brincadeiras inocentes tinha chegado ao fim! Era preciso ir guardar umas vacas, levar o
almoo ao pai, apanhar o rabisco ou lenha. As brincadeiras tm que ter uma utilidade, preciso
aprender as regras dos adultos, pois o tempo corre.
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Aprende-se brincando, aprende-se jogando, aprende-se imitando os mais velhos. Aprende-se a ser
homem e chefe de famlia e os meninos praticam jogos de destreza e competio e brincam com
carros de bois e com instrumentos de trabalho; aprende-se a ser mulher e me e a governar uma
casa. Da as bonecas e as suas roupinhas.
Comea a ser tempo!
- A irm tinha 12 anos a mais do que eu e j era uma mulherzinha para fazer outras
actividades em casa para ajudar a me.
E das diferenas que o tempo acarretou, tambm temos notcia:
- no tinha dinheiro para ter essas bolas boas como h agora.
- Hoje um mido mais rico num dia do que a gente era durante toda a vida. No havia
brinquedos e jogos como h hoje.
- Naquela altura era diferente de agora, porque os divertimentos desse tempo das aulas na
escola era brincarmos uns com os outros.
Diferenas na quantidade, diferenas na diversidade.
De acordo com os testemunhos dos nossos informantes no existiam muitos brinquedos, no s
porque no existia a quantidade e diversidade que hoje existe, mas tambm porque o dinheiro no
abundava. Ter uma boneca de papelo j era quase um luxo, pois a maioria das crianas
consumiam-se perante as tentaes irresistveis que apareciam nas feiras.
Na Santana, feira anual de Minde, os petizes esbugalhavam os olhos perante as carrocinhas de
lata, bonecas de papelo, brinquedos de madeira, sem esquecer as vistosas e tentadoras bolas
de serradura. (Bento; 1994:190)
O que acontecia usualmente era o aproveitamento dos materiais existentes, desde o caco de barro,
aos botes, desde os carrinhos de linhas aos trapos. Tudo servia para criar um novo brinquedo, no
tivessem as crianas um mundo imaginrio to rico.
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- Fazamos coisas imaginrias mas nunca mais era aquilo que hoje. Hoje h aquelas coisas
plsticas que os cachopos fartam-se de brincar e dantes era um carrinho de madeira ou uma
coisita qualquer...
Os brinquedos era feitos pelas prprias crianas e quem tinha jeito, tinha, quem no tinha, pacincia,
a no ser que o poder de compra dos pais permitisse esbanjar um pouco, ou podia ser que um tio
enviasse uma prenda pelo Natal.
- Fazia os meus brinquedos. Os meus brinquedos eram uma roda de cortia, cortia porque a
gente tinha cortia, depois punha-lhe um eixo com uma cana.
- O brinquedos, antigamente, fazamo-los ns.
- Havia quem tivesse jeito para fazer carrinhos de madeira, mas eu tinha pouca habilidade.
- Bonecos s tive um. Um bonequinho que um primo meu que morava em Lisboa, e costumava
mandar umas coisinhas no Natal para ns para comer, me mandou.
Rapazes para um lado, raparigas para o outro!
Em idade escolar e em escolas mistas poderia haver a possibilidade de brincadeiras em conjunto,
vemos isso na maior parte dos jogos infantis. No havia maldade, como diriam uns. A
confraternizao entre sexos no era homognea, fosse pelas diferentes condies fsicas das
escolas existentes nas diferentes freguesias, fosse pelo maior ou menor conservadorismo dos pais. O
que um facto que havia muito mais restries do que aquelas que existem hoje.
- Os rapazes e as raparigas brincavam juntos, no havia maldade.
- Na minha infncia, a me no deixava sair para ir brincar com os outros midos, por isso
brincava em casa no quintal.
- Jogvamos no recreio tanto com rapazes como com raparigas.
- Naquela poca, l perto de mim, todos brincvamos mais ou menos desta maneira. Mas
havia aqueles matules que j se juntavam uns com os outros ao p de uma capelinha que
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ainda hoje l existe e eu espreitava pelo buraco do porto, com muita vontade de ir para o p
deles. Mas no, para a rua no se podia ir.
- No, os rapazes e as raparigas no brincavam juntos, nem na escola nem na rua. Nunca
tinham comunicaes uns com os outros. Lembro-me uma vez que meteram l umas
raparigas na escola dos rapazes, mas quando era para brincar elas estavam todas apartadas,
nunca se misturavam. No, no, no se misturavam e ai daquele que tocasse em qualquer
coisa. No havia possibilidade.
- Os rapazes brincavam com as raparigas. porta da escola fazia-se um bailarico todos os
dias. As raparigas danavam com os rapazes e a que eu aprendi a danar. Aqui na
Louriceira no havia escola dividida. Era s uma escola, que no aquela, uma casa que
est ali em cima, e os rapazes estavam junto com as raparigas.
- Nesta freguesia no havia condies para haver escola dividida. A escola nova foi feita em
1945 ou 46. Nessa altura j era dividido.
- Os rapazes e as raparigas no brincavam muito juntos. No muito. Antigamente,
normalmente os pais no consentiam que elas se juntassem com rapazes a brincar. No
senhora!
- As raparigas brincavam para um lado e os rapazes para o outro. Agora que tudo
misturado. Era rapazes com rapazes e raparigas com raparigas. Mas s vezes tambm
brincvamos com raparigas.
No entanto, quando se entra na fase da puberdade, o controle comea a acentuar-se e a segregao
maior. As brincadeiras mudam, o brinquedo deixa de ter tanta importncia e os jogos diferenciam-
se. Nestas idades j no existem jogos mistos, como pode ser verificado no captulo anterior. Agora
reinam os bailaricos e as cantorias. Os jovens adultos do sexo masculino esto aptos a competirem
com os adultos.
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- No meu tempo, a gente, raparigas, juntvamo-nos todas. Havia um rancho de raparigas que
era qualquer coisa! Juntvamo-nos todas na fbrica. S na minha casa ramos quatro, na
casa da vizinha eram cinco. Juntvamo-nos todas e amos ao alecrim, e fazamos uma
fogueira quando chegava ao ms do S. Joo. Todas as semanas havia fogueiras l nos
Estreitos, todas as semanas havia bailarico. No tnhamos mais nada, por isso era cantar e
bailar ali na rua. Cantvamos, bailvamos, saltvamos fogueira e jogvamos ao raminho
tranchado.
- Ali na escola no havia condies para esse convvio. S mais tarde quando a gente
comeasse a tomar rumo de vida que... ali no, na escola no. Mais tarde nos bailaricos ou
s se fosse com vizinhas ou com pessoas assim do conhecimento, de resto no.
- Agora quando tinha 20 anos j gostava de brincar era com gajos... queria l saber dos
brinquedos.
A rua, o recreio da escola, o largo ou o adro da igreja eram espaos de eleio para as brincadeiras
de outros tempos. Os jogos de azar eram s para homens, sendo muitas vezes a sua perdio!
Quando se trabalhava de sol a sol, no havia muito espao para o divertimento. Os domingos e os
dias de festa eram, sem dvida, bem apetecveis.
No convvio entre homens, muitas vezes, o prmio dos jogos passava por um copo de vinho e, quem
no quereria ganhar o galo para comer com a famlia num dia festivo?
No podemos nunca esquecer o modo de vida de outros tempos. No podemos dissociar os
brinquedos e os jogos tradicionais no concelho de Alcanena do contexto global do Concelho, pois
estes so parte integrante da cultura das suas gentes.
E a prpria viagem no tempo que nos permite compreender a funo social que os brinquedos e
jogos tradicionais tiveram noutros tempos em Alcanena. Tempos esses em que a aprendizagem
informal tinha um papel mais relevante do que tem hoje em dia e onde o processo de socializao
estava mais dependente da famlia, dos amigos e da prpria comunidade.
No mundo de hoje, a educao formal muito mais efectiva, no s porque se tornou democrtica,
mas tambm porque as crianas esto muito mais tempo afastadas dos pais devido aos
condicionalismos da vida moderna.
Agora o ensino obrigatrio, a acesso educao bsica est garantido pelo Estado, as condies
de vida da generalidade da populao melhoraram. Hoje as crianas no brincam tanto aos adultos
como noutros tempos, hoje as crianas divertem-se.
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Mas ser que se perdeu o valor social do brinquedo e do jogo enquanto elementos preparativos de
integrao na comunidade e de coeso social?
Concluso
Partimos dos testemunhos dos nossos informantes quanto s brincadeiras de outros tempos no
concelho de Alcanena, testemunhos esses que nos transportam para o tempo de criao destes
homens e destas mulheres e que se situam na primeira metade do sculo XX.
Os seus pais e os seus avs no teriam brincado de forma muito diferente. E, se fosse nosso intuito,
no seria muito difcil encontrar na gerao nascida em 70 memrias ainda bem vivas de algumas
destas brincadeiras.
Efectivamente, o concelho de Alcanena, at h poucas dcadas atrs, podia ser caracterizado como
uma comunidade tradicional, baseada numa economia de auto-subsistncia e com um forte cunho de
ruralidade.
Nas sociedades de carcter tradicional existe uma grande ligao ao meio ambiente, para no
dizermos dependncia, o que sem dvida se reflecte no modo de vida dos seus habitantes, nos seus
usos e nos seus costumes.
Assim , que os brinquedos e os jogos tradicionais recorrem essencialmente aos recursos e materiais
fornecidos pelo meio envolvente e as ideias que esto na base da sua criao esto igualmente
condicionadas pelo maior ou menor acesso informao.
Explormos no segundo captulo a origem e expanso dos brinquedos e dos jogos, alguns deles
muito utilizados em Alcanena no princpio do sculo XX, o que nos permitiu verificar a universalidade
dos mesmos.
Dizia Cames que Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, e assim , porque a aldeia
global em que hoje vivemos revolucionou, igualmente, o mundo da fantasia.
Com base nos testemunhos dos nossos informadores, pudemos verificar a relao existente entre os
brinquedos e jogos tradicionais e o poder econmico diferenciado.
A sociedade tradicional est essencialmente vocacionada para a satisfao das necessidades
bsicas e o pouco excedente monetrio que algumas famlias pudessem amealhar no seria
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desperdiado facilmente. Embora no houvesse muita oferta, obviamente que s alguns teriam poder
de compra para adquirir brinquedos. Os restantes teriam mesmo que ser criativos!
Tanto a diviso sexual do trabalho como o controlo apertado por parte da comunidade so elementos
que caracterizam as sociedades tradicionais, da que o processo de socializao das crianas tenha
tido um papel deveras relevante em termos de integrao e coeso sociais.
Os brinquedos e os jogos utilizados em Alcanena na primeira metade do sculo XX, bem como o tipo
de brincadeiras a que os nossos informadores estavam habituados na sua criao so bem
elucidativos deste processo no formal de aprendizagem dos valores e das normas de conduta da
comunidade em que estavam inseridos.
Em nossa opinio, este valor socialque os brinquedos e jogos um dia preencheram no se perdeu
nos tempos de hoje. Os brinquedos no so os mesmos hoje em dia no concelho de Alcanena. As
crianas j no jogam no adro da igreja em dia de festa como jogavam antigamente, mas brincam notrio da escola, desta feita com a Mariazinha e com o Manelito e as instituies encarregues do
ensino formal tm cada vez mais conscincia da preservao do patrimnio cultural, onde esto
includos os brinquedos e jogos tradicionais mas, apesar das brincadeiras terem acompanhado os
tempos, o valor socialintegrador e enculturador mantm-se. O que sofreu alteraes e mudanas foi
a prpria cultura, que dinmica por natureza.
A nosso ver, a funo social que brinquedos e os jogos tinham nas sociedades ditas tradicionais,
enquanto processo de socializao mantm-se. Antigamente em Alcanena brincava-se com o
carrinho de bois e com o arado, o que cumpria a sua funo; agora, brinca-se com um computador, e
continua a cumprir-se a funo.
Obviamente que temos conscincia dos perigos do mundo da informao, mas esses perigos so a
outra face de um mundo mais democrtico. O grande perigo tem a ver com o uso irresponsvel da
liberdade e parece-nos que ser neste ponto que os novos agentes socializadores tero que investir.
A ttulo conclusivo, resta-nos salientar que, com base em testemunhos de outros tempos do
concelho de Alcanena podemos hoje preservar memrias.
Passmos algumas das brincadeiras de outros tempos para o registo em papel, por forma a que as
geraes vindouras tenham acesso a esses testemunhos.
Quem sabe o que as crianas que hoje brincam em Alcanena podero fazer da memria dos seus
antepassados?
Embora no tenhamos a pretenso de fazer futurismo, permita-nos o leitor, pelo menos, uma
pequena brincadeira: ser que o menino Zzinho, barra em informtica e jogos virtuais, ainda to
novinho, quando crescer, no ir pegar neste humilde contributo e propor a um futuro executivo
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Notas
i Responsvel pela metodologia utilizada e pelo trabalho de campo.ii Apenas participao directa na introduo.iii Em Portugal a palavra rapariga no tem a conotao pejorativa que possui no Brasil. Entenda-se pois este termo comoaquele que o Brasil geralmente define como moa.iv As brincadeiras e os brinquedos dos rapazes sempre foram tipificados sexualmente de maneira muito Mais rgida, quandocomparados com as raparigas. Nomeadamente a partir de determinada idade geralmente entrada para a escola -, meninos abrincarem em brincadeiras femininas ou com brinquedos femininos era socialmente incomodativo e por conseguinte
recriminado. No caso feminino, as regras eram um pouco mais flexveis, na medida em que em certos casos especficos, estaspoderiam brincar ou jogar com os brinquedos masculinos.