JUSTIFICAÇÃO CONSTITUCIONAL PARA AS POLÍTICAS AFIRMATIVAS
VOLTADAS AOS AFRODESCENDENTES NO BRASIL
Alexandre E. Bach∗
RESUMO
Mesmo depois de cerca de quatro décadas após o surgimento do Estatuto dos Direitos
Civis (Civil Rights Law) de 1964 nos EUA, a discriminação em relação aos
afrodescentes ainda é visível. A análise de tal experiência, principalmente a partir da
obra de JOAQUIM B. BARBOSA GOMES1 corrobora, portanto, para a constatação da
ineficácia de procedimentos clássicos de combate à discriminação, baseados,
principalmente, em atos legislativos. Perante tal ineficácia, surgiram nos EUA as ações
afirmativas, também chamadas de discriminações positivas, um conjunto de políticas
voltadas a mitigar a desigualdade, a discriminação e o preconceito existente em relação
à parcela negra e afrodescendente da população, bem como, para aumentar suas
possibilidades de fruição de direitos fundamentais básicos. No mesmo sentido, no Brasil
tais políticas foram criadas. Porém, não vemos tais políticas prosperarem, mesmo diante
de comandos constitucionais explícitos no sentido de combate à pobreza, à
marginalização e à desigualdade. Propomos-nos, portanto, a discutir a existência e
justificação das políticas afirmativas destinadas aos afrodescendentes no Brasil, sua
coadunação com os comandos constitucionais, especialmente o princípio da igualdade;
sua legitimidade, face o princípio da proporcionalidade e a possibilidade de as referidas
políticas contribuírem para a formação de uma nova forma produção do conhecimento
jurídico que implique em abertura do sistema. Neste sentido, objetivamos mostrar que
as políticas em comento podem contribuir, ao funcionar como cláusulas de abertura,
para a conquista de uma ordem jurídica aberta e informada por regras, normas e
princípios, uma vez que as mesmas implicam em novas formas de produção do direito,
desvinculadas da simples idéia de subsunção e de um sistema hermético de normas. ∗ Alexandre Eleutério Bach: graduando em Direito pelas Faculdades do Brasil – Unibrasil. Integrante do PROINC, Programa de Iniciação Científica da referida Faculdade, sob orientação e colaboração do Prof. Ms. Ozias Paese Neves. 1 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e (o) princípio constitucional da igualdade: o direito com instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. RJ:Renovar, 2001.
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PALAVRAS CHAVE
POLÍTICAS AFIRMATIVAS; PRINCÍPIO DA IGUALDADE;
ABSTRACT
Even after about four decades after the appearance of the Statute of the Civil laws
(Civil Rights Law) of 1964 in the USA, the discrimination in relation to the
afrodescendings is still visible. The analysis of such experience, mainly starting from
JOAQUIM B. BARBOSA GOMES' work corroborates, therefore, for the verification of
the inefficacy of classic procedures of combat to the discrimination, based, mainly, in
legislative actions. Before such inefficacy, they appeared in the USA the affirmative
actions, also calls of positive discriminations, a group of politics to mitigated the
inequality, the discrimination and the existent prejudice in relation to the black portion
and afrodescendings of the population again, as well as, to increase their possibilities of
fruition of basic fundamental rights. In the same sense, in the such a political Brazil was
created. However, we don't see such politics prosper, even before explicit constitutional
commands in the combat sense to the poverty, to the marginalization and the inequality.
We intend, therefore, to discuss the existence and justification of the affirmative politics
destined to the afrodescendings in Brazil, his/her accord to the constitutional
commands, especially the beginning of the equality; his/her legitimacy, face the
beginning of the proportionality and the possibility of the referred politics contribute to
the formation of a new one forms production of the juridical knowledge that implicates
in opening of the system.
In this sense, we aimed at to show that the politics in I comment on can contribute,
when working as opening terms, for the conquest of an open and informed juridical
order for rules, norms and beginnings, once the same ones implicate in new forms of
production of the right, disentailed of the simple idea of subsunction and of a hermetic
system of norms.
KEYWORDS
AFFIRMATIVE POLITICS; BEGINNING OF THE EQUALITY;
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INTRODUÇÃO
Nos propomos a falar de políticas afirmativas. No entanto, gostaríamos de fazer
algumas observações preliminares acerca dos preconceitos e dos argumentos negadores
da legitimidade das referidas políticas públicas. Argumentos que, na esteira de idéias
sobre a igualdade como a kantiana – essencialmente formal, porquanto afirma que todos
os homens teriam a mesma dignidade, independentemente de suas situações existenciais
concretas – tentam nos convencer da ilegitimidade das referidas ações. Além de se valer
de uma idéia essencialmente formal de igualdade, tentaremos demonstrar que tais
argumentos são frutos, especialmente de uma tradição jurídica na qual se nota forte
influência de princípios liberais - ideário que defende que a igualdade se dá apenas
perante à lei - e o fato de a pesquisa jurídica se dar, no mais das vezes, somente no
âmbito da lei.
A igualdade é tida como um direito fundamental, como tal, tem o mister de
proteger a dignidade humana. Não são mais plausíveis, portanto, idéias de igualdade
como a que surgiu e se desenvolveu entre os gregos antigos, que apesar de viverem num
regime democrático, admitiam o trabalho escravo e a exclusão das mulheres. Também
não se conforma com os comandos constitucionais atuais a idéia de igualdade vivida e
buscada durante a Revolução Francesa, já que convivia com o colonialismo e a
escravidão nas colônias. Portanto, urge a conquista de novos conteúdos para o comando
constitucional da igualdade, porém, mais afinados com a proteção da dignidade humana.
Face aos comandos constitucionais, mormente os presentes entre os objetivos da
República do Brasil e os demais princípios constitucionais, nos parece que a idéia de
igualdade a ser perseguida na atualidade é a da igualdade material. Para se lograr tal
espécie de igualdade, especialmente face à desigualdade concreta dos cidadãos, a
concentração de renda, e a desigual distribuirão e fruição de oportunidades de educação
e trabalho na sociedade brasileira, necessário se faz a criação de políticas públicas – tais
como as que instituíram as políticas afirmativas - aptas garantir o gozo e a fruição de
direitos fundamentais básicos que possam garantir o mínimo de dignidade à todas as
pessoas.
DESENVOLVIMENTO
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Já fazem quase duas décadas da proclamação da Constituição Federal vigente e
não vemos grandes avanços sociais na luta pela conquista da igualdade. Não obstante a
importância do princípio da igualdade para a seara das relações jurídicas
contemporâneas, gostariamos de frisar, por sua vez, que, se volvermos um olhar mais
atento para seu alcance, efetividade e realização, veremos que tal garantia não vem se
prestando para efetivas e maiores conquistas sociais, especialmente no que diz respeito
aos afrodescendentes. 2 Não se trata, pois, de uma questão de eficácia ou normatividade
do princípio da igualdade, pois como norma constitucional tem poder de gerar efeitos
jurídicos, regular perfeitamente uma relação jurídica, bem como, ser instrumento para a
aplicação de sanções. O que não podemos deixar de constatar, porém, é o fato de que o
Brasil é um país com um grande percentual de população afrodescendente que, no plano
da existência concreta, não tem condições materiais para gozar uma vida com
dignidade, ou seja, com educação de qualidade, acesso à saúde, trabalho digno, etc3.
Diante deste quadro, somos impelidos a perguntar: O que é igualdade? Será esta uma
mera questão semântica? De que igualdade estará falando a Constituição em seu artigo
quinto? A Constituição Federal de 1988, ao garantir a igualdade a todos, estará se
referindo à igualdade material ou apenas à igualdade formal – aquela garantida
abstratamente, ou seja, por leis gerais e abstratas, que ignoram as diferenças concretas e
os condicionamentos sociais reais - já garantida desde as revoluções burguesas nas
Constituições modernas?4
2 (...) a exclusão social surge como um dado ‘natural’, quase como variável fixa, a conformar a estrutura da sociedade brasileira a despeito das mudanças nos modelos e padrões de desenvolvimento. Neste sentido, a velha exclusão social não desaparece. O problema dos baixos níveis de renda e instrução se mantém, mas agora sob nova forma. (...) Ainda que mais visível, a nova exclusão mal consegue esconder a manifestação velha da exclusão. Na realidade ela intensifica aquela exclusão associada a baixos níveis de renda e de instrução ao reproduzir níveis de consumo abaixo do mínimo necessário e bloquear a ascensão profissional, oferecendo empregos precário (CAMPOS, André; POCHMANN Marcio; AMORIN Ricarco; SILVA Ronnie [et. al]. Atlas da exclusão social no Brasil: dinâmica e manifestação territorial (vol. 2). SP: Cortez, 2003. p. 54.) 3 Veja-se: GOMES, Joaquim Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro. In, Revista de Informação Legislativa. p 139. 4 “Por encerrar um essencial ao Estado Democrático, a igualdade foi amplamente perseguida pelas revoluções burguesas do século XVIII. Tamanha foi sua importância que foi “concebida para o fim específico de abolir os privilégios característicos do ancien regime e para dar cabo às distinções e discriminações baseadas na linhagem, na posição social (...)”. Uma idéia de igualdade explicitamente contrária a qualquer modalidade de privilégios oriunda de posições sociais ou de títulos de nobreza. Tal idéia, por sua vez, floreceu e “firmou-se como idéia chave do constitucionalismo que floresceu no século XIX e prosseguiu sua trajetória triunfante por boa parte do século XX”. Com o triunfo do liberalismo, e principalmente da idéia do Estado com ente responsável pelas condições de mercado, livre concorrência e de institutos como a autonomia da vontade, a idéia de igualdade, contudo, se restringe a uma situação de igualdade perante à lei. Para BARBOSA GOMES, “segundo este conceito de igualdade que veio dar
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Ao tratar dos direitos fundamentais – núcleo essencial do sistema jurídico atual –
a Constituição garante também a igualdade como direito fundamental. Mas qual será o
conteúdo de tal igualdade? Será a igualdade almejada pelos burgueses no período
revolucionário francês, iniciado em 1789? Será a igualdade vivida durante o período
colonial no Brasil, que convivia com o voto censitário e a exclusão das mulheres dos
sufrágios? Será a igualdade vivenciada durante o período militar (1964-1985) no Brasil?
A idéia de igualdade expressa na Constituição não é uma norma cujo significado
está pronto e acabado, ademais, a idéia de igualdade não está explícita na Constituição.
É, antes, uma garantia que deve ser construída a partir da vivência social em cada
momento histórico. Destarte, a igualdade a que se refere a Constituição brasileira não é
a mesma almejada no século XVIII. Não é fruto de um juízo sintético a priori ou de um
postulado resultante de um conceito universal e abstrato. Seu conteúdo não será logrado
sem se atentar para a dinâmica social brasileira, posto que agora falamos de uma ordem
jurídica aberta. Um sistema aberto de normas e princípios, no qual os valores vividos e
desejados pela sociedade devem informar a construção do conteúdo das normas
jurídicas.
Ao tratar do ordenamento jurídico, EROS GRAU o apresenta como um sistema
aberto de normas e princípios, ou seja, uma “ordem teleológica de princípios gerais
do direito. (...) A conexão aglutinadora das normas que compõe o sistema jurídico – daí
sua unidade – encontra-se nos princípios gerais do direito (de cada direito)”. Percebe-se
aí a importância dos princípios, tal qual o da igualdade. Lembremos, por sua vez, que os
princípios são espécies de normas. Estas, as normas, “compreendem um gênero do
qual são espécies, as regras e os princípios”5. EROS GRAU destaca especialmente a
importância da normas, pois estas não seriam esgotadas nos enunciados lingüísticos.
Para o referido autor
sustentação jurídica ao Estado burguês, a lei deve ser igual para todos, de distinções de qualquer espécies. A igualdade, neste contexto, é tida como uma situação que nega qualquer forma de privilégio ou tratamento diferenciado”. Não esqueçamos que tal idéia de igualdade, amplamente difundida pelos revolucionários burgueses na França pós-revolução de 1789, convivia com o colonialismo e com a escravidão nas colônias. (GOMES, Joaquim B. Barbosa. Ação Afirmativa e (o) princípio constitucional da igualdade: o direito com instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. RJ: Renovar, 2001, pp. 1-2.) 5 GRAU, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. 6. ed. SP: Malheiros, 2005. p 22
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“é necessário que se esclareça, a esta altura, que tomo a interpretação como atividade que se presta a transformar disposições (textos; enunciados) em normas; a interpretação é o meio de expressão de conteúdos normativos das disposições, meio através do qual o Juiz desvenda normas contidas (...) Por isso, podemos dizer que as normas resultam da interpretação e podemos dizer que elas, enquanto disposições, não dizem nada – elas dizem o que os intérpretes dizem que elas dizem.”6
Ao analisarmos obras como o Atlas da exclusão social no Brasil, constataremos,
que o nosso país, especialmente sob o ponto de vista de sua formação histórica, possui
um quadro social é alarmante, notadamente em virtude da concentração de renda, da má
distribuição das terras agricultáveis – concentração fundiária – e do fato de o grosso da
população estar na linha da pobreza ou abaixo desta. Tal fato nos ajudará assim, a
compreender e constatar que a noção de igualdade garantida e desejada pela
Constituição Federal é a da igualdade material. Ademais, se atentarmos para os
objetivos da República, constantes no art. 3º da Constituição7, veremos que a nossa
Carta Magna ordena expressamente o combate à pobreza e a erradicação das
desigualdades sociais e regionais. Portanto, é nítida a noção de igualdade material.
Desta feita, perguntamos: não é um comando constitucional explícito o dever de
combate às desigualdades? Não é dever do poder público e da sociedade criar
mecanismos destinados a garantir e fomentar a conquista da igualdade material? Não
seriam, neste contexto, as políticas afirmativas, políticas públicas coadunadas com tal
desiderato?
No que tange as políticas afirmativas voltadas à população afrodescendente, é
importante, antes de qualquer julgamento de sua legitimidade, verificarmos a tônica
social na qual se insere tal parcela da população, ou seja, destacarmos quais as reais
condições materiais e de vida destes cidadãos. A grosso modo, podemos dizer que tais
pessoas correspondem a 45% da população brasileira e vivem, em sua maioria, em
situação de pobreza extrema8. Neste sentido, ao se referir a tal parcela da população,
6 Idem, p.95 7 “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I- Construir uma sociedade livre, justa e solidária; II- Garantir o desenvolvimento nacional; III- Erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV-Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem de raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.(Constituição da República. VADMECUM, 2006. Copyright 2006. Edições Vértice. 8 GOMES, Joaquim Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro. In, Revista de Informação Legislativa. p. 129.
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JOAQUIM B. BARBOSA GOMES afirma que as políticas afirmativas tornam-se, na
atual conjuntura, um tema de importância relevante, especialmente, pelo nosso “gritante
e envergonhador quadro social” 9, bem como, porque nossa sociedade é composta por
uma parcela significativa da população com ascendência africana, que “além da
discrimação, esteve historicamente excluída do acesso aos meios de produção e de
qualquer expectativa de ascensão social.”10. Aliás, não esqueçamos o fato de que o
escravagismo durou mais de 300 anos no Brasil e tal prática foi legitimada pelo
ordenamento jurídico.11 No entanto, abolida a escravidão, o tratamento desumano para
com os afrodescendentes não parou. Novas formas de controle social surgiram. Se a
violência e o controle sobre os negros foram explícitos durante o período colonial, após
a abolição, com urbanização e a industrialização, especialmente com o início da
produção fabril, os modos de controle social sobre tal população mudaram. Neste
sentido, EVANDRO DUARTE destaca que durante o período colonial os símbolos do
poder punitivo da sociedade eram as “Ordenações: o pelourinho, o chicote, o tronco, os
grilhões, a senzala, etc. (...)”12. Após a libertação dos escravos tivemos o
desenvolvimento de uma economia urbana. “A urbanização requeria uma nova
organização do controle social para além das mãos do senhor, ou seja, a constituição de
um espaço público para a punição, público no sentido de que não seria mais exercido
pela iniciativa privada dos senhores do interior da unidade produtiva”13. O sistema de
controle saía da esfera privada dos senhores de engenho e produtores de café e se
instalava nas cidades, agora sob nova roupagem, a criminalização. No ambiente urbano,
o Direito Penal é que cuidou do controle desses brasileiros infortunados. Para
entendermos melhor as lições de EVANDRO DUARTE, basta lembrarmos o fato de
9 Idem, p. 130. 10 Ibidem, p. 130 11 Cabe lembrarmos ainda, que a legislação pátria limitou o acesso à propriedade durante muitas décadas, até séculos, fato que pode ser verificado se olharmos atentamente para o que representou a Lei de Terras (1850), que tornou o acesso a propriedade possível apenas pela compra, excluindo pobres e escravos, com o fito de se manter o caráter exportador da economia colonial; a matança de negros e afrodescentes que representou o ataque governamental ao Quilombo de Palmares (1644 e 1645). Fatos históricos que, além de nos auxiliar na conquista de uma melhor compreensão histórica da formação da sociedade brasileira, reforçam a tese de que o Direito pátrio serviu, historicamente, para legitimar o status quo vigente. (Veja-se: WOLKMER, Antônio Carlos. História do direito no Brasil. 3ed. RJ: Forense, 2002.) 12 DUARTE, Evandro Charles Piza. Criminologia e racismo. Curitiba: Juruá, 2002. p. 158; apud (KÖERNER, p. 69-70) 13DUARTE, Evandro Charles Piza. Op. cit. p.167
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que condutas como a vadiagem, a prática de capoeira e outras práticas próprias da
cultura africana foram criminalizadas e duramente repreendidas.
Superada tal fase histórica, a citada parcela da população ainda enfrenta graves
problemas para conquistar uma vida digna. Daí, no contexto atual, a urgência de
pensarmos e concebermos políticas aptas a promover a inclusão social e a promoção da
dignidade de tal parcela da população que historicamente foi excluída. A Constituição
brasileira revela grande preocupação com a preservação da dignidade da pessoa
humana. Neste sentido, a protege contra qualquer ataque ou ameaça. Tal proteção se
revela também com o tratamento dispensado aos direitos fundamentais, direitos cuja
fruição e gozo são pressuposto básico para a conquista da dignidade. Dizer que um
direito é fundamental significa, além do mister de proteger a dignidade humana, dizer
que o referido direito recebe uma proteção diferenciada do sistema jurídico. Significa
dizer também que o mesmo implica num regime jurídico de proteção diferenciada. No
texto constitucional, podemos identificar também tal preocupação com os direitos
fundamentais já que: (i) possuem uma situação topográfica privilegiada, pois aparecem
no Título II ; (ii) os referidos direitos integram o rol das cláusulas pétreas, que é a
proteção máxima do sistema jurídico; (iii) integram o rol das cláusulas constitucionais
sensíveis, cláusulas que uma vez vulneradas ensejam a deflagração de situações
excepcionais de intervenção.
A realização de um direito fundamental14, contudo, não se esgota nestes prismas
supra indicados. A preocupação com a dimensão material dos referidos direitos nos faz
reperguntar pela dimensão existencial do alcance de sua proteção normativa, ou seja,
sua efetividade na garantia de um mínimo existencial que promova condições dignas de 14 Como se vê, os direitos fundamentais, tais como o direito à igualdade, à vida, à dignidade, etc,. realizam uma espécie de abertura hermenêutica do sistema jurídico. Não é mais suficiente, portanto, falarmos em subsunção de normas oriundas de um sistema hermético e hierárquico. Tais direitos fundamentais realizam uma cláusula de abertura do ordenamento jurídico, ou seja, trazem a baila a idéia de que as normas jurídicas e seu significado são construídos historicamente, segundo os anseios e problemas específicos de cada povo e tempo. Daí podermos dizer, como Paulo SCHIER, que “os direitos fundamentais não nascem de uma só vez, nem de uma vez por todas”. Dada esta tarefa fundamental, podemos dizer que a Constituição dá guarida aos direitos fundamentais como especial forma de proteção tanto das (a) liberdades fundamentais, expressas como campos de liberdade individual que implicam a não interferência pública ou de outrem; (b) dos direitos fundamentais que implicam em prestações positivas (como a garantia de saúde e educação) e atuação normativa, como a proteção ao trabalhador; (c) bem como, a proteção de garantias processuais e institucionais como o direito de petição, acesso à justiça. O que é importante, porém, é vislumbrarmos que estes vários significados e propósitos dos direitos fundamentais não se excluem, antes, se complementam, pois a abertura semântica do texto constitucional se opera justamente quando novos significados, especialmente relativos à proteção da dignidade humana, são construídos.
1300
vida. Em consulta feita por J. J. GOMES CANOTILHO ao judiciário português, o
referido mestre lusitano perguntou a alguns membros do Judiciário de seu país se estes
não concordavam com a noção, segundo a qual, a garantia de igualdade exigia
condições mínimas e, portanto, alguma forma de prestação social, como forma de
resguardar a dignidade humana, tal como o direito ao alimento. A resposta obtida foi
que os direitos fundamentais já seriam condição de luta por uma dignidade mínima,
explicitando clara postura absentista do Judiciário, ou seja, uma nítida influência liberal
oitocentista. 15
Não obstante a importância da proteção normativa dos direitos fundamentais,
pensamos que estes implicam em atuação estatal, quer por programas sociais básicos,
quer por atuações normativas. Os direitos fundamentais são normas constitucionais, ou
seja, dotados do mais alto grau de hierarquia dentro do sistema jurídico. Por que então
tanta dificuldade em se lograr a efetivação das normas constitucionais que se dirigem a
proteção da dignidade da pessoa humana?16 Dada a proteção diferenciada, alhures
explicitada, não importariam também os direitos fundamentais numa espécie de
interpretação diferenciada? Não poderíamos falar também de uma aplicação
diferenciada, superando a simples idéia de subsunção, própria do positivismo jurídico?
Como lograr tal aplicação, mais afinada com a proteção da dignidade da pessoa
humana?17
15Joaquim J. Gomes CANOTILHO, em palestra proferida por ocasião do IX Congresso Ibero-americando de Direito Constitucional – VII Simpósio Nacional - realizado em Curitiba, nos dias 11,12,13,14 e 15 de Outubro de 2006. 16 Sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, veja-se LUÍS ROBERTO BARROSO, op. cit, p.381. Para o referido autor, a existência de tal princípio torna imperativa a realização de um mínimo existencial que garante uma vida com dignidade, implicando, deste modo, em ações que garantam direito à renda mínima, saúde básica, educação fundamental e o acesso à justiça. . Para FRANCISCO AMARAL, citando LOPEZ-V; L. MONTES, devemos encarar os direitos fundamentais “como objeto de especial garantia em face do Estado. Os direitos fundamentais seriam um núcleo ou círculo mais restrito de direitos humanos especialmente protegidos pela Constituição” AMARAL, Francisco. Direito Civil: Introdução. 6.ed. RJ: Renovar, 2006. p. 255. 17 Na tentativa de definir direitos fundamentais, podemos destacar a existência de critérios formais, que se valem do critério topográfico e do critério da proteção especial. Também podemos citar o esforço representado pelos que se valem do critério material, mais preocupado com a proteção da dignidade humana. No que se refere aos critérios formais, o primeiro (topográfico), pode-se afirmar que leva em conta o locus, ou seja, a localização de tais direitos. Uma vez que estão presentes no título II da Constituição, seriam gravados como cláusulas pétreas. Além do que, o próprio constituinte deixou claro que os referidos direitos têm eficácia plena e aplicabilidade imediata. Importante, contudo, é lembrarmos que existem direitos fundamentais fora do Título II, o que implica no fato de que a sua utilização não pode dar-se de maneira isolada, e também, que não podemos ignorar a produção de outras normas infraconstitucionais que também tenham por tarefa a proteção indicada no Título II da Constituição Federal. Já o segundo critério formal (o critério da proteção especial) toma por base a proteção diferenciada que os direitos fundamentais merecem. Deveríamos, para identificar possíveis direitos
1301
Através de prestações sociais mínimas e outras formas de atuação estatal no
sentido de se proteger a dignidade humana, pensamos que se possa lograr uma espécie
de abertura hermenêutica do sistema jurídico. Não é mais suficiente, portanto, falarmos
em subsunção de normas oriundas de um sistema hermético e hierárquico. Os direitos
fundamentais, são aptos, neste sentido, a realizar uma cláusula de abertura do
ordenamento jurídico. Apesar de terem vários significados, pois temos várias
concepções e definições acerca de direitos fundamentais, estas não se excluem, antes, se
complementam, pois a abertura semântica do texto constitucional se opera justamente
quando novos significados, especialmente relativos à proteção da dignidade humana,
são construídos.18
Se levarmos em conta o critério material de definição dos direitos fundamentais,
que se pauta em critérios que prezam pela proteção da dignidade (que julgamos
importante, pois se presta para identificarmos possíveis direitos fundamentais presentes
fora do Título II da Constituição Federal) poderemos considerar como direito
fundamental todo aquele direito vinculado à dignidade humana, com especial fito de
protegê-la e realizá-la. Neste sentido, todo direito fundamental teria aplicação
diferenciada, porquanto, tem por função proteger situações existenciais nas quais a
dignidade esteja ameaçada, exigindo atuação estatal, seja com políticas afirmativas, seja
com prestações sociais mínimas. Insistimos, pois, que tal aplicação diferenciada – dado
o telos de proteção da dignidade humana - justificaria, portanto, a criação de
discriminações positivas, ou seja, tratamentos diferenciados aos hipossuficientes, no
sentido de igualar suas oportunidades de fruição de garantias sociais básicas.
A aplicação diferenciada dos direitos fundamentais exige atuação estatal, seja
por prestações existenciais com intuito de garantir um mínimo existencial, seja por
alguma atuação normativa no sentido de proteger os hipossuficientes. No Brasil temos
dois exemplos claros de atuação estatal em tal sentido. Falamos do Código de Defesa do fundamentais fora do Título II, verificar quais direitos que estão fora do referido catálogo e gozam de proteção representada pela rigidez constitucional, porquanto impliquem procedimento especial de modificação. 18 Os direitos fundamentais tiveram um papel importante nas revoluções burguesas, também na conquista de um Estado Democrático de Direito e tem especial importância na atualidade, porém, com novo significado, o alcance da justiça social. Dada esta tarefa fundamental, podemos dizer que a Constituição dá guarida aos direitos fundamentais como especial forma de proteção tanto das (a) liberdades fundamentais, expressas como campos de liberdade individual que implicam a não interferência pública ou de outrem, como (b) dos direitos fundamentais, estes que implicam em prestações positivas (como a garantia de saúde e educação) e atuação normativa, como a proteção ao trabalhador. Bem como, a proteção de garantias processuais e institucionais como o direito de petição, acesso à justiça.
1302
Consumidor, destinado a proteger o consumidor, parte mais vulnerável nas relações de
consumo. Também tivemos a criação da CLT, consolidação de leis destinada a proteger
o obreiro, parte mais fraca nas relações de produção. Tais criações legislativas são
exemplos de que já existem intervenções estatais no Direito brasileiro no sentido de se
proteger alguns cidadãos em situações em que se encontrem mais vulneráveis. São
grandes conquistas sociais, porém, não são suficientes. Tais atuações estatais devem ser
ampliadas no sentido de abranger também as situações existenciais nas quais a
dignidade humana esteja ameaçada. Devem, portanto, também importar na criação de
práticas jurídicas que impliquem em formas de proteção diferenciada.
Do mesmo modo como no contexto da criação do CDC e da CLT, a atuação
normativa estatal pode, no que tange aos direitos fundamentais, regulamentá-los,
restringi-los, ou mesmo estendê-los àqueles que não possuem condições materiais de
gozá-los. No que diz respeito às políticas afirmativas voltadas aos afrodescendentes,
pensamos que a atuação estatal no sentido de criar discriminações favoráveis a uma
parcela da população, o que implica em restrição no gozo de certos direitos ao restante
dos cidadãos, estaria justificada constitucionalmente. Isto porque, face o princípio da
proporcionalidade, se busca a criação de algumas situações jurídicas nas quais se facilita
e possibilita a fruição e gozo de determinados direitos a uma parcela da população, que
sem a referida intervenção, dificilmente poderia usufruir de tais direitos, como o acesso
às Universidades. Tal atividade de regulamentação e restrição dos direitos fundamentais
deve, por sua vez, respeitar o princípio da preservação do núcleo essencial do direito
restringido e, especialmente, possuir razoável justificativa constitucional.
A criação de políticas afirmativas implica na restrição do gozo de alguns direitos
ao restante da população, mas não na supressão da possibilidade de gozo do referido
direito, pois preserva o núcleo do direito restringido, possibilitando que os demais
cidadãos continuem a gozar deste direito. A restrição de direitos representada pela
criação de políticas afirmativas não é e não pode ser considerada um empecilho para a
fruição de qualquer direito fundamental, pois, no caso de, por exemplo, criação de cotas
para afrodescentes nas Universidades, estas representam muitas vezes, cerca de 20% do
número total de vagas existentes. Também no caso de criação de vagas em concursos
públicos, vagas em cargos públicos eletivos, ou em empresas privadas, tais práticas
1303
discriminatórias tem por fito a perseguição de outros valores constitucionais, e não
representam óbice para a fruição dos mesmos direitos para as demais pessoas.
Tal restrição de direitos resultante das políticas afirmativas também parece ser
razoável. LUIS ROBERTO BARROSO, ao tratar do princípio da proporcionalidade,
reitera que “é razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio moderação e
harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponde ao senso comum,
aos valores vigentes em dado momento ou lugar”19. Parece-nos, assim, que as restrições
de direito que implicam as políticas afirmativas respeitam o princípio da
proporcionalidade, porquanto, o referido princípio é “um parâmetro de valoração dos
atos do poder público para se aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente
a todo ordenamento jurídico: a justiça.”20 Ao tratar do princípio da proporcionalidade
na restrição de direitos, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO nos fala que toda
restrição a qualquer direito fundamental por norma infraconstitucional deve atender a
um pressuposto lógico, ou seja, ter uma finalidade constitucional razoável que autorize a
diferenciação/discriminação e ser proporcional.21
Desta feita, nos parece que as políticas afirmativas em comento respeitam o
princípio da razoabilidade, pois, ao se balizar nas situações reais e concretas de
desigualdade material, podemos falar das seguintes justificativas: (i) a necessidade da
medida; (ii) adequação meio-fim; (iii) razoabilidade na quantidade da medida
restritiva.22 Isto porque, segundo BARROSO, “a atuação do Estado na produção de
normas jurídicas normalmente far-se-á diante de certas circunstâncias concretas; será
determinada a realização de determinados fins, a serem dirigidos pelo emprego de
determinados meios”23, neste sentido, seriam importantes, na análise de qualquer
atuação estatal, “os motivos (circunstâncias de fato), os fins e os meios.24
Considerando os índices oficiais, especialmente os que demonstram a quase
inexistência de negros e afrodescendentes em Universidades25; considerando o exercício
de cargos como gerência, direção e prepostos em empresas privadas, também 19 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 6.ed. SP: Saraiva, 2004. p. 224. 20 Idem, p. 224. 21 Veja-se: DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Revista Trimestral de Direito Público, nº 1, p. 170. 22 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: Fundamentos de uma dogmática constitucional transformada. 6.ed. SP: Saraiva, 2004. p. 373 23 GOMES, Joaquim Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro. In, Revista de Informação Legislativa, p. 139 24 Idem, p.139 25 Ibidem, p. 139
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constataremos a quase inexistência de afrodescendentes no exercício dos referidos
cargos. Importante também é vermos os índices que tratam da população carcerária,
pois poderemos ver que o grosso de tal população é negra.
Falamos em discriminações positivas, porquanto forma de promover a igualdade
material de pessoas que se encontram em situações materiais desiguais, tomando por
base as situações reais de desigualdade econômica e social. A grosso modo, toda e
qualquer restrição de direito fundamental só será legítima se derivar de lei e se tiver por
finalidade a proteção de outro direito fundamental de titularidade individual ou coletiva,
ou ainda, a proteção de um bem ou valor constitucionalmente protegido, como a
dignidade humana. Daí podermos falar que qualquer restrição de direito, e aqui nos
referimos às discriminações positivas em especial, só será razoável e proporcional se
tiver alguma justificação constitucional, ou seja, se houver necessidade da referida
restrição face aos mandamentos constitucionais e as situações fáticas vividas pela
sociedade. As discriminações positivas, enquanto restringem a fruição de direitos por
alguns, protegem e tornam efetivas as expectativas de gozo de direitos por outros.
Justifica-se sua proporcionalidade na medida em que servem de instrumento para
proteger a possibilidade de fruição de direitos que, devido às péssimas condições de
vida da maioria da população afrodescendente, nunca poderiam ser usufruídos, como o
acesso às universidades. Fato que é fácil percebermos se olharmos para os índices de
afrodescendentes cursando cursos superiores em nosso país.
No que diz respeito à quantidade da medida – requisito fundamental do princípio
da proporcionalidade – podemos destacar que toda a intervenção restritiva no campo do
gozo dos direitos fundamentais deve ser mínima, ou seja, a quantidade da medida
restritiva também deve ser razoável, pois não pode implicar na criação de programas
exclusivos, políticas privativas, ou mesmo, tratamentos diferenciados não justificados
faticamente pela inferioridade econômica, discriminação social ou racial.
A criação de políticas afirmativas que impliquem em discriminações positivas
está, portanto, em coadunação com os comandos constitucionais de luta pela igualdade,
combate a pobreza e luta contra qualquer forma de discriminação e marginalização. Tais
políticas afirmativas estão, assim, legitimadas por expressa disposição constitucional,
uma vez que as ações no sentido de combate a pobreza resultam de um juízo de valor
emanado do próprio poder constituinte. Ademais, possuem justificativa constitucional
1305
também porque respeitam os limites, materiais e formais, impostos a qualquer restrição
a direitos. A atividade de restrição do gozo de determinados direitos da população não
afrodescendente, em face da proteção de outros interesses e princípios também
constitucionalmente protegidos se torna assim, uma atividade de ponderação de valores
constitucionais com legitimidade na própria Constituição.
Ao se prestarem como ferramenta para a busca de igualdade material, as
políticas afirmativas voltadas aos afrodescendentes podem ser importantes para (i)
superar, no ordenamento jurídico, uma concepção meramente formal e abstrata da
igualdade, tida tradicionalmente como isonomia. Também, para (ii) superar a postura
meramente absentista do Estado, pois para a efetiva garantia e tutela da dignidade de
toda pessoa humana, as prestações positivas ou prestações sociais mínimas se tornam
imperativas. São, portanto, também formas de criação e igualação de oportunidades,
bem como, políticas redutoras da discriminação e majorantes das expectativas de
inclusão social. Também podem ser consideradas (iii) formas razoáveis de justificar a
implementação de discriminações positivas, ou seja, práticas que impliquem em
tratamentos discriminatórios, porém, pautados na realidade desigual dos cidadãos. São
práticas que consideram as desigualdades reais e, assim, podem efetivamente ser
instrumento hábil para se promover o aumento de oportunidades de inclusão social pelo
trabalho, educação, moradia, etc.
As políticas afirmativas, neste contexto, também são importantes para explicitar
as diferenças, contradições e antagonismos existentes na sociedade através do direito,
ou seja, fazendo com que o direito seja um palco de lutas no qual se explicitem os
diversos atores sociais, seus anseios, interesses e lutas, bem como, suas condições
socioeconômicas e materiais peculiares. Neste sentido, CLÈVE assevera que
Importa, todavia, captar as classes sociais como portadoras e agentes das lutas sócio-políticos. A sociedade não pode ser concebida como um corpo sem fraturas e sem conflitos. Estes, em verdade, são a própria motriz da história, o que nem sempre é reconhecido pelo saber jurídico tradicional, que tende a analisar o direito com um corpo-sujeito dotado de princípios axiológicos e enunciados normativos capazes de garantir a ordem.26
26CLÈVE, Clèmerson Merlin. O direito e os direitos. 2.ed. SP: Max Limond. 2001, p. 157.
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Ao realizar a explicitação dos conflitos existentes entre diferentes segmentos e
classes sociais, e seus diferentes anseios, as referidas políticas acabam denunciando os
discursos e as práticas jurídicas e sociais que tentam, no mais das vezes, se valer da
idéia de igualdade na tentativa de se mascarar as desigualdades concretas existentes na
sociedade. Cabe, portanto, também fazermos aqui a denúncia de que as críticas às
políticas afirmativas se valem de idéias arcaicas e burguesas do princípio da igualdade.
Baseadas numa idéia de igualdade meramente formal surgem argumentos como: i) que a
criação de políticas afirmativas implicará em novas formas de discriminação e
segregação racial; (ii) que serviços públicos – como a educação e saúde – devem ter
caráter universal e laico, nunca podendo privilegiar apenas uma parcela da população;
(iii) as práticas representadas pelas políticas afirmativas somente atingiriam alguns
afrodescendentes, apenas uma pequena parcela da população negra, razão pela qual, não
são legítimas, pois excluem o grosso da referida parcela da população.
Mas novamente perguntamos: O que é ser igual numa sociedade de indivíduos
de condições econômicas muito diferentes? Será que os afrodescentes devem esperar
todos lograrem uma efetiva igualdade material para somente então poderem gozar dos
serviços públicos básicos, como saúde, moradia e educação de qualidade?
Sabemos que é impossível todos alcançarem a igualdade econômica através das
políticas aqui discutidas. Porém, como novas formas de produção do saber jurídico, tais
políticas são aptas a resguardar o mínimo de dignidade às pessoas mais marginalizadas.
Almejar a igualdade pode ser traduzido, portanto, em almejar e lograr um mínimo de
dignidade; alcançar, por prestações sociais mínimas, as mínimas possibilidades de gozo
e fruição de serviços básicos como saúde, educação e moradia.
As políticas afirmativas constituem-se num mecanismo efetivo de se fomentar a
luta pela igualdade material, mas também, e principalmente, em forma de promoção da
dignidade humana. Para JOAQUIM BARBOSA GOMES, “a essas políticas sociais, que
nada mais são do que tentativas de concretização da igualdade substancial ou material,
dá-se a denominação de ação afirmativa”27, pois, implicam em atuações positivas do
Estado, não uma simples postura absentista.
Para JOAQUIM BARBOSA GOMES, as políticas afirmativas “visam combater
não somente as manifestações flagrantes de discriminação, mas também a discriminação 27 GOMES, Joaquim Barbosa. A recepção do instituto da ação afirmativa pelo Direito Constitucional Brasileiro. In, Revista de Informação Legislativa. p. 130.
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de fato, de fundo cultural, estrutural, enraizada na sociedade”.28 Acertada, portanto, a
lição do referido autor, especialmente quando este associa a idéia de igualdade material
às políticas afirmativas, classificando estas, como meio de se fomentar a promoção da
igualdade. Nesse desiderato, as políticas afirmativas poderiam se constituir, em forma
de luta contra as várias formas de dominação e opressão, e embasar muitas prestações
positivas “pautadas na necessidade de se extinguir ou pelo menos mitigar o peso das
desigualdades econômicas e sociais e, consequentemente, de promover a justiça
social”29.
Objetivamos, pois, explicitar que as políticas afirmativas voltadas aos
afrodescendentes tornam-se, na atual conjuntura política, uma tentativa idônea de
efetivação de prestações mínimas voltadas para a população afrodescendente, conquanto
formas de tentar preservar a dignidade de toda pessoa humana. A consagração
normativa dessas políticas sociais representa, assim, um momento de ruptura com o
modo de produção do Direito iniciado na França após a revolução de 1789. Podem vir a
ser mais um esforço no sentido de ruptura com o modelo de Estado absentista, portanto,
podem ser vistas como políticas públicas aptas a contribuir para a formação de um novo
modo de produção do Direito, enquanto implicam em novas práticas e posturas
jurídicas. Inauguram, pois, a produção de um saber a partir do qual o “Estado abandona
sua posição de neutralidade e de mero espectador dos embates que se travam no campo
da convivência entre os homens e passa a atuar ativamente na busca da concretização da
igualdade positivada nos textos constitucionais”30.
As políticas afirmativas voltadas às pessoas afrodescendentes se inserem num
novo contexto de juridicidade. Implicam em novas posturas, não neutras, mas
comprometidas com os valores constitucionais voltados à proteção da dignidade da
pessoa humana. Não obstante o fato de o positivismo jurídico ser ainda uma prática
constante, as políticas afirmativas abrem caminhos para novas práticas jurídicas.
Se o direito dominante contemporâneo é o direito do Estado, ou seja, o que o Estado reconhece como tal, os direitos [nos referimos ao direito alternativo e aos vários direitos expressos como garantias na Constituição] no plural são uma arma política que
28 Idem, p. 132 29 Ibidem, p.131 30 GOMES, Joaquim Barbosa. Op. cit. p.132
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serve de bandeira de luta para os partidos, os juristas participantes e as classes populares reivindicarem sua transformação31.
Neste sentido, pensamos que as políticas afirmativas podem vir a se constituir no
que CLÈVE chama de “produção de um saber jurídico participante, inserido na
historicidade, resultado de uma relação de conhecimento do jurista com o mundo e,
voltando-se para o futuro, apto a formular conceitos teórico-práticos para mudá-lo” 32.
Tal iniciativa se constitui numa forma especial de se alargar o uso e as possibilidades do
direito, uma vez que “não descarta o aparato normativo oficial. Antes, procura alargar
seus postulados democráticos. Trata-se então, no dizer de Saavedra LOPES, de utilizar
o direito e os instrumentos jurídicos postos a disposição do cidadão, mas os orientando
para que assumam uma dimensão emancipadora”33. Assim, não se “intenta advogar uma
livre criação do direito à margem das fontes previstas no ordenamento jurídico (...), pois
não se intenta despojar o legislador de sua função, nem libertar o poder Judiciário de sua
vinculação ao direito escrito, senão promover uma política jurídica ou judicial permitida
já pelas possibilidades do mesmo ordenamento jurídico”34. Tal uso do ordenamento, por
sua vez, não deve ser feito sem a devida cautela face o positivismo e seus ideais de
“imparcialidade do juiz, cientificidade da aplicação do direito, neutralidade da lei”35,
afastamento do judiciário das questões políticas e de sua completa inconseqüência com
as questões sociais urgentes.
Práticas de tamanha envergadura, como as que implementam novas políticas
afirmativas, são aptas a promover uma nova juridicidade, pois surgem “criando nova
cultura jurídica, desmistificando e desconstruindo velhos mitos”36, ampliando o campo
de atuação do direito, pois são políticas públicas aptas a mostrar também que “a luta
pela democratização da sociedade política passa obrigatoriamente pelo direito”. É
possível, assim, compreender melhor a célebre expressão do Prof. Clèmerson CLÈVE,
segundo o qual, o direito é um palco de lutas, pois “cristaliza não apenas as vitórias da
classe hegemônica, como também as vitórias, ainda que difíceis, dos demais setores da
31 CLÈVE, Clèmerson Merlin. O direito e os direitos. 2.ed. SP: Max Limond. 2001, p. 201. 32 Idem, p. 201. 33 Ibidem, p. 202. 34 Ibidem, p. 203 35 Ibidem, p. 206 36 Ibidem, p. 205
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sociedade.”37 Daí o fato de o referido professor afirmar que “o direito não é só opressão;
é igualmente o signo da libertação. Daí porque cabe perfeitamente falar em uso
alternativo do direito: o uso do direito orientado no sentido de reforçar o caráter
emancipatório e democrático da juridicidade”38.
Implementar políticas afirmativas pode significar também, o ponto de partida
para a ampliação hermenêutica do conteúdo da igualdade material. A partir da
implantação de tais políticas, no mais das vezes por um viés normativo, podemos
descobrir novos desdobramentos e implicações dos princípios constitucionais
informadores da ordem jurídica, posto que “os pontos de partida normativos sofrem
toda a sorte de construção hermenêutica e argumentativa com o sentido de reforçar a
extensão dos espaços democráticos do direito” 39.
Impõe-se, portanto, uma nova leitura dos ditames constitucionais, pois não cabe
ao ordenamento jurídico apenas tentar conformar-se aos referidos ditames a partir de um
controle de constitucionalidade negativo de leis e decretos normativos. Deve-se, por
outro lado, instrumentalizá-los, ou seja, dar à Constituição e às suas normas, uma real
efetividade, principalmente às garantias individuais, tal qual a da igualdade. Para tal
processo, bem como para o uso alternativo do direito, CLÈVE afirma que “a
transformação do direito depende, pois, de dois momentos. Primeiro, o momento pré-
legislativo. Aqui trata-se de buscar a noção de direitos como um instrumento de luta”40,
mais que, isso, garantias de dignidade. “Afinal, os direitos humanos não constituem,
sempre, o direito positivo, eles são, todavia, a expressão de uma política que visa
invadir o espaço jurídico impondo conquistas. Este é o momento instituínte. É o
momento plural.”41
Muito grande é a gama de direitos e valores aos quais a Constituição vigente dá
guarida. Nesta, se destaca a opção por um Estado Democrático de direito e o
compromisso com a dignidade do homem. Neste sentido, as políticas afirmativas em
tela vem representar também a possibilidade de construção de uma nova juridicidade
comprometida com a realização de garantias aptas a promover a dignidade de toda
37 Idem, p. 205 38 Ibidem, p. 205 39 Ibidem, p. 206. 40 Ibidem p. 206. 41 Ibidem, p. 206
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pessoa. Falamos neste sentido, em novas práticas jurídicas. CLÈVE, por sua vez, nos
fala de uma nova práxis alternativa.Tal práxis é destacada pelo autor, uma vez que
Uma Constituição democrática é uma fonte inesgotável de argumentos que podem ser utilizados com o sentido de democratizar o direito, inclusive, se for o caso, para o fim de negar aplicação à lei que viole o valor protegido pela Lei Fundamental. 42
42 Ibidem, p. 207
1311
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As políticas afirmativas aqui tratadas podem, portanto, se constituir num marco
para a conquista de novas formas de interpretação, compreensão e aplicação dos direitos
fundamentais, especialmente, para a garantia de igualdade e de dignidade da pessoa
humana. Pensar a igualdade é uma tarefa urgente, mormente frente às gigantescas
desigualdades existentes na sociedade brasileira. Nesta tarefa, pensamos ser também o
Direito um campo do saber fecundo para o desenvolvimento de idéias e práticas
voltadas à conquista de uma sociedade democrática, na qual, a perseguição de valores
como o respeito à pluralidade, à diversidade, e outros cânones da Democracia, são
tarefas inafastáveis. Somente lograremos um regime democrático sólido, quando de fato
se resguardar a dignidade de toda pessoa. Nesta tarefa, a perseguição da igualdade
material é de importância ímpar, e impõe atuação dos poderes públicos e de toda a
sociedade. Como historicamente os afrodescendentes foram excluídos das
possibilidades de ascensão social, acesso aos meios de produção e fruição de direitos
fundamentais, oportunidades estas, que foram sempre acessíveis às classes mais
favorecidas, importante se faz agora, uma prática jurídica que lhes possibilite – através
de algumas facilidades – o gozo e fruição de direitos fundamentais que historicamente
lhes foram negados.
Por derradeiro, é sempre bom lembrarmos as sábias palavras de MARTIN
LUTHER KING,
...I have a dream that one day on the red hills of Geórgia the sons of formens slaves and the sons of former slaveowners will be able to sit down together at the table of brotherhood (...) I have a dream that my four little children will one day live in a nation where they will not be judged by the color of their skin but by the content of their character.43
43 MARQUES, Amadeu. Password English. SP:Ática, 1992. p 103 Apud:USA Today, Friday, Jan. 17, 1986
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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